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Resenha

O UNIVERSO DAS TRABALHADORAS FABRIS EM CURITIBA (1940-1960)


THE UNIVERSE OF SEAMSTRESSES IN CURITIBA(1940-1960)

BOSCHILIA, Roseli T. Entre fitas, bolachas e caixas de fósforos: a mulher no espaço fabril curitibano
(1940-1960). Curitiba: Artes & Textos, 2010.

Cintia Lima Crescêncio1

As mulheres trabalhadoras nem sempre própria bibliografia. Por exemplo, na exploração do


tiveram espaço garantido na historiografia brasileira. conceito de gênero de Joan Scott que advoga em
Corriqueiramente vinculadas ao ambiente defesa do plural, mesmo que o próprio título da
doméstico e, submetidas à curiosidade histórica de obra afirme a mulher (no singular) no espaço fabril
um ou outro pesquisador, o protagonismo das curitibano. Nesse sentido, categorias como mulher,
mulheres em um ambiente considerado público, mulheres e gênero circulavam no mesmo
neste caso, o ambiente profissional, pouca atenção momento. Anos depois, na tentativa de abrandar o
recebeu no campo da história. Ao contrário do que impasse, Butler afirmou: “Que el término sea
se deu na sociologia que, com Heleieth Saffioti, cuestinable no significa que no debamos usarlo,
desde a década de 1960, já se preocupava em pero la necesidad de usarlo tampoco significa que
analisar a situação das mulheres no mercado de no debamos cuestionar permanentemente las
trabalho. exclusiones mediante las cuales se aplica”3. A
No encalço da efervescência da história do filósofa refere-se exatamente às discussões a
trabalho em meados de 1980 e ainda, diante da respeito da adequação de determinados termos
emergência da história das mulheres e dos estudos para fins acadêmicos e políticos, destacando que o
de gênero, a obra Entre fitas, bolachas e caixas de uso de um ou outro, inevitavelmente, promove
fósforos: a mulher no espaço fabril curitibano (1940- inclusões, mas também exclusões.
1960) de autoria de Roseli Boschilia, doutora em Roseli Boschilia encontrava-se em meio a
História do Brasil pela Universidade Federal do esse embate, emergência da história das mulheres e
Paraná e, atualmente, professora desta mesma também da emergência da categoria gênero4 e,
instituição, apresenta-se como um reflexo desse neste sentido, o mais interessante de sua obra é o
duplo movimento, na medida em que contempla a fato de ser contextualmente datada e,
história de mulheres trabalhadoras. Isso, fruto dos invariavelmente, localizada em um embate teórico
efeitos da história social que, conforme Joan Scott: e político. Neste cenário, justifica-se o uso do termo
“Colocaram as mulheres em organizações políticas mulher em seu título, e o frequente uso da expressão
e locais de trabalho, e introduziram novas arenas e mulheres no decorrer do texto, aliado ainda, à
instituições – famílias e cuidados com a casa – como categoria gênero, utilizada como categoria de análise
dignos de estudo”2. ao perceber as relações não só entre homens e
Originalmente defendido como dissertação mulheres, mas também entre as mulheres.
de mestrado no ano de 1996sob orientação do Prof. Nesse livro Boschilia pretendeu, tendo o
Dr. Euclides Marchi, 14 anos depois o livro é trabalho como fio condutor, conhecer as
publicado sem, no entanto, perder sua experiências de trabalho de mulheres nas fábricas
contemporaneidade temática. Apesar disso, Venske (de fitas), Lucinda (de bolachas e massas) e
destaco o quanto a obra está articulada ao seu Fiat Lux (de fósforos), localizadas em Curitiba. Para
momento de produção, o que pode ser notado pela isso explorou 30 entrevistas e registros ainda
1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em História Cultural da UFSC, professora da Universidade Federal de Santa Catarina. E-
mail: cintialima23@gmail.com
2
SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: Burke, Peter (org). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP,
1992. p 81-82.
3
BUTLER, Judith. Cuerpos que importan. Sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires, Barcelona, México:
Paidós, 2002, p. 311.
4
SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo, Anpuh, vol. 27, nº 54, jul-dez, 2007.
Espaço Plural . Ano XII . Nº 24 . 1º Semestre 2011 . ISSN 1518-4196 113
O Universo das Trabalhadoras Fabris em Curitiba (1940-1960)

preservados dessas fábricas. A obra está dividida em entrevistas para perceber como se davam as
uma introdução, 3 capítulos e considerações finais. relações humanas dentro das fábricas e também
Incorporadas ao texto encontram-se ainda imagens dentro das famílias. Boschilia acentuou a existência
e gráficos. Destaco a riqueza das imagens que, por si de relações paternalistas no ambiente de trabalho.
só, poderiam render uma outra pesquisa. Para finalizar, a autora afirmou que, no decorrer dos
A introdução tem um caráter nitidamente relatos orais, algumas mulheres negavam um
acadêmico. A autora pontuou o contexto da cidade passado de trabalhadoras, enquanto outras
de Curitiba que vivia uma transição entre uma fase remontavam a essa fase da vida de maneira lúdica e
“pré-industrial” e a fase industrial em si, aliada à idealizada. Nesse sentido, os relatos orais servem
política trabalhista do Estado Novo que se estende para a compreensão das próprias mulheres. Isto é,
até 1960. A autora construiu o panorama da enquanto o primeiro capítulo ocupou-se de discursos
historiografia sobre as mulheres no Brasil, justificou sobre o trabalho feminino e o segundo foi pautado
seu recorte temporal, apresentou os conceitos a nos registros das fábricas, o terceiro recorreu às
serem instrumentalizados, apontou o uso de fontes trabalhadoras fabris, traçando uma linha que abarca
documentais e também da história oral. Por fim as subjetividades e os relatos de experiências como
justificou a divisão de capítulos que foi baseada na aspectos de construção desses sujeitos.
natureza das fontes. Ao final, diante da exploração das
O primeiro capítulo intitulado “A vida na categorias mulher, mulheres e gênero, Boschilia
cidade” disserta sobre o momento de pontuou que semelhanças e diferenças
industrialização pelo qual passava Curitiba, aproximavam essas mulheres, porém, segundo a
momento este supervalorizado pela imprensa da autora: “Todas, sem exceção, aspiravam ao
época. Nessa relação com a cidade, Boschilia casamento como forma de obtenção de status
destacou como determinados espaços citadinos econômico e social, demonstrando que a imagem
estavam restritos à condições de classe e de gênero. do feminino direcionada para o espaço privado era
5
Finalizando este capítulo a historiadora salientou os igual para todos os grupos” . Apesar disso, na página
diferentes olhares sobre a mulher trabalhadora que, seguinte, a autora discorre sobre mulheres ajustadas
dentro de uma visão tradicional, deveria estar dentro e insurgentes, sendo que as últimas tenderiam a
do ambiente doméstico e não na fábrica. A partir da maior autonomia. Uma nítida contradição que
reflexão sobre esses olhares, lançados pela imprensa e poderia ter sido explorada no sentido de reforçar a
por médicos, a pesquisadora salientou esses discursos noção de poder circular de Foucault, citada na
como produtores de subjetividades dessas mulheres introdução.
que, ao ingressarem no mundo do trabalho, rompiam Entretanto, indico o livro como de grande
com certas expectativas de gênero. valia para os interessados pelos estudos de gênero e
O segundo capítulo denominado “A vida também pela história do trabalho. A obra tem
nas fábricas” fez uso dos registros das fábricas para relevância temática, ao tratar do tema mulheres
perceber como se dava o dia-dia fabril. Apresentou trabalhadoras; possui grande qualidade narrativa;
dados acerca de submissão ou rebeldia, critérios de elabora interessante relação entre as narrativas
contratação que levavam em conta a boa aparência atuais e os documentos do período analisado;
e a preferência pelas imigrantes e, ainda, o operacionaliza os conceitos apresentados. Entre
problema da especialização em função dos fitas, bolachas e caixas de fósforos: a mulher no
empregos serem abandonados pela ocorrência do espaço fabril curitibano (1940-1960) de Roseli
casamento. Com a utilização dessa documentação a Boschilia, certamente, é uma excelente ferramenta
autora permitiu a leitores e leitoras perceberam as para quem deseja emergir no universo do trabalho
complexas relações que se estabeleciam entre essas de mulheres que entre laços, doces e fogo
mulheres e esse universo do trabalho. marcaram a história dos trabalhadores no Brasil.
O terceiro e último capítulo nomeado
“Trabalho, Memória e Representação” pauta-se
principalmente nas informações extraídas das Resenha Recebida em 24/03/2011
Resenha Aceita em 07/06/2011
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BOSCHILIA, Roseli T. Entre fitas, bolachas e caixas de fósforos: a mulher no espaço fabril curitibano (1940-1960). Curitiba: Artes
& Textos, 2010, p. 191.
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