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Compreensão leitora em português – orientado ao direito

Ficha de trabalho – Gestação de substituição

Parte I – Compreensão de texto jurídico


1

Leia o fragmento da lei portuguesa n.90/2021 de 16 de dezembro e responda às


questões que seguidamente lhe são colocadas

Lei n.º 90/2021


de 16 de dezembro

Sumário: Altera o regime jurídico aplicável à gestação de substituição, alterando a Lei


n.º 32/2006, de 26 de julho, que regula a procriação medicamente assistida.

A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da


Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei procede à oitava alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, que regula a
procriação medicamente assistida, alterada pelas Leis n.os Lei n.º 59/2007, de 4 de
setembro, Lei n.º 17/2016, de 20 de junho, Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, Lei n.º
58/2017, de 25 de julho, Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, Lei n.º 48/2019, de 8 de julho,
e Lei n.º 72/2021, de 12 de novembro.
Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
A presente lei aplica-se a cidadãos nacionais e a estrangeiros com residência permanente
em Portugal.
Artigo 3.º
Alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho
Os artigos 8.º, 14.º e 39.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, passam a ter a seguinte
redação:
«Artigo 8.º
Gestação de substituição
1 - Entende-se por 'gestação de substituição' qualquer situação em que a mulher se
disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o
parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade.
2 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição só é admissível a título
excecional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença
deste órgão ou outra situação clínica que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez
da mulher.
3 - A gestante de substituição deve ser, preferencialmente, uma mulher que já tenha sido
mãe, sem prejuízo das concretas circunstâncias do caso o poderem impedir.
4 - A gestação de substituição só pode ser autorizada através de uma técnica de 2

procriação medicamente assistida com recurso aos gâmetas1 de, pelo menos, um dos
respetivos beneficiários, não podendo a gestante de substituição, em caso algum, ser a
dadora de qualquer ovócito2 usado no concreto procedimento em que é participante.
5 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição carece de autorização
prévia do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, entidade que
supervisiona todo o processo, a qual é sempre antecedida de audição da Ordem dos
Médicos e da Ordem dos Psicólogos e apenas pode ser concedida nas situações previstas
no n.º 2 e desde que observadas as disposições contratuais previstas no n.º 13.
6 - O pedido de autorização prévia para a celebração de contratos de gestação de
substituição é apresentado através de formulário disponível no sítio eletrónico do
Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, que cria o respetivo modelo,
subscrito conjuntamente pelos beneficiários e pela gestante de substituição, devendo ser
acompanhado da seguinte documentação:
a) Identificação dos beneficiários e da gestante de substituição;
b) Aceitação das condições previstas no contrato de gestação de substituição por parte
dos beneficiários e da gestante de substituição;
c) Documentação médica, com origem no centro de PMA no qual as técnicas de PMA
necessárias à concretização da gestação de substituição serão efetuadas, destinada a
comprovar que estão preenchidas as condições previstas nos n.os 2 e 4;
d) Declaração do diretor do centro de PMA no qual as técnicas de PMA necessárias à
concretização da gestação de substituição serão efetuadas, aceitando a concretização
nesse centro dos tratamentos a realizar.
7 - É proibido qualquer tipo de pagamento ou a doação de qualquer bem ou quantia dos
beneficiários à gestante de substituição pela gestação da criança, exceto o valor
correspondente às despesas decorrentes do acompanhamento de saúde efetivamente
prestado, incluindo em transportes, desde que devidamente tituladas em documento
próprio.
8 - Não é permitida a celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição quando
existir uma relação de subordinação económica, nomeadamente de natureza laboral ou de
prestação de serviços, entre as partes envolvidas.
9 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a criança que nascer através do recurso
à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários.

1
Gametas são células especializadas responsáveis pela transferência dos genes na reprodução sexuada.
Nos humanos, há os gametas masculinos (espermatozoides) e os gametas femininos (óvulos).
2
Os ovócitos ou oócitos, são células germinativas femininas ou células sexuais produzidas nos ovários.
10 - No tocante à validade e eficácia do consentimento das partes é aplicável à gestação
de substituição, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 14.º, com exceção do
previsto no seu n.º 4 sobre o consentimento livremente revogável, sendo que nos casos
de gestação de substituição o mesmo pode acontecer, por vontade da gestante, até ao
registo da criança nascida.
11 - Os direitos e os deveres previstos nos artigos 12.º e 13.º são aplicáveis, com as
devidas adaptações, aos beneficiários dos contratos de gestação de substituição, sendo os 3

direitos e os deveres da gestante de substituição os que se encontram previstos nos artigos


13.º-A e 13.º-B.
12 - (Revogado.)
13 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de
contrato escrito, estabelecido livremente entre as partes, supervisionado pelo Conselho
Nacional de Procriação Medicamente Assistida, onde constam, obrigatoriamente, entre
outras, cláusulas tendo por objeto:
a) As obrigações da gestante de substituição no que respeita ao cumprimento das
orientações médicas do obstetra que segue a gravidez e da realização dos exames e atos
terapêuticos por este considerados indispensáveis ao correto acompanhamento clínico da
gravidez, tendo em vista assegurar a evolução normal da gravidez e o bem-estar da
criança;
b) Os direitos da gestante de substituição na participação nas decisões referentes à escolha
do obstetra que segue a gravidez, do tipo de parto e do local onde o mesmo terá lugar;
c) O direito da gestante de substituição a um acompanhamento psicológico antes, durante
e após o parto;
d) As obrigações e os direitos da gestante de substituição, tais como a possibilidade de
recusa de se submeter a exames de diagnóstico, como a amniocentese, ou a possibilidade
de realizar viagens em determinados meios de transporte ou fora do país no terceiro
trimestre de gestação;
e) A prestação de informação completa e adequada sobre as técnicas clínicas e os seus
potenciais riscos para a saúde;
f) A prestação de informação ao casal beneficiário e à gestante de substituição sobre o
significado e as consequências da influência do estilo de vida da gestante no
desenvolvimento embrionário e fetal;
g) As disposições a observar sobre quaisquer intercorrências de saúde ocorridas na
gestação, quer a nível fetal, quer a nível da gestante de substituição;
h) As disposições a observar em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez em
conformidade com a legislação em vigor;
i) A possibilidade de denúncia do contrato por qualquer das partes, no caso de se vir a
verificar um determinado número de tentativas de gravidez falhadas e em que termos tal
denúncia pode ter lugar;
j) Os termos de revogação do consentimento ou do contrato em conformidade com a
presente lei;
k) A gratuitidade do negócio jurídico e a ausência de qualquer tipo de imposição,
pagamento ou doação por parte do casal beneficiário a favor da gestante de substituição
por causa da gestação da criança, para além do valor correspondente às despesas
decorrentes do acompanhamento de saúde efetivamente prestado, incluindo em
transportes;
l) Os subsistemas ou seguros de saúde que podem estar associados ao objeto de contrato;
m) A forma de resolução de conflitos a adotar pelas partes em caso de eventual 4

divergência sobre a interpretação ou execução do negócio jurídico.


14 - O contrato referido no número anterior não pode impor à gestante de substituição
normas que atentem contra os seus direitos, nomeadamente os expressos no artigo 13.º-
A.

[…]
Artigo 7.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no primeiro dia do mês subsequente à data da sua
publicação.
Aprovada em 26 de novembro de 2021.

O Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues.

Promulgada em 29 de novembro de 2021.

Publique-se.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Referendada em 7 de dezembro de 2021.

O Primeiro-Ministro, António Luís Santos da Costa.

Responda, agora, às seguintes questões

1- Identifique o objeto da presente lei.

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

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2- Indique em que situações pode ocorrer a celebração de um negócio jurídico de gestação de

substituição.

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5
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_____________________________________________________________________________

3- De acordo com a presente lei, selecione os casos em que é permitido recorrer a uma gestação
de substituição em Portugal:
a) Casal mexicano em turismo prolongado (mais de 6 meses) em Portugal.
b) Casal português com residência permanente no Uruguai.
c) Casal angolano com residência temporária em Portugal.
d) Casal composto por um cidadão de nacionalidade brasileira com residência
permanente em Portugal e uma cidadã portuguesa.
e) Casal irlandês residente permanente em Portugal.
f) Casal japonês a tramitar a residência permanente em Portugal.
g) Casal alemão em turismo.

4- A gestação de substituição não pode ocorrer quando:


a) a mulher será gestante pela primeira vez.
b) existe uma relação laboral entre a mulher gestante e os beneficiários.
c) um dos beneficiários é dador de gâmetas.

5- Selecione as opções verdadeiras:


a) Os beneficiários devem proceder ao pagamento à gestante de substituição de todas as
despesas inerentes ao e decorrentes do processo de gestação, excluindo os transportes.
b) Nos termos da lei, a gestação de substituição terá sempre de recorrer a uma técnica de
procriação assistida.
c) A criança que vier a nascer resultado de uma gestação de substituição possuirá material
genético da mulher gestante, dado que esta é dadora de óvulos.
d) Nos termos da lei, a gestante pode arrepender-se, isto é, pode revogar o contrato até ao
registo da criança.
e) A gestante apenas pode revogar o contrato caso a criança ainda não tiver nascido.
f) A escolha dos procedimentos médicos respeitantes ao local e tipo de parto recai única e
exclusivamente sobre a mulher gestante.
g) A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição encontra-se sujeita a
aprovação prévia por parte do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.
Parte II – Compreensão de texto não jurídico, conectores discursivos e
resumo

Leia atentamente o seguinte artigo científico publicado em revista da especialidade

Gravidez de substituição

Otávio Marambaia dos Santos


Universidade do Porto, Faculdade de Medicina, Programa de Doutoramento em Bioética, Portugal

Resumo

A tecnologia e a ciência médica aplicada tem criado as condições para tornar possível que
casais inférteis, antes condenados a não ter filhos pelos meios biológicos usuais, hoje
alcancem este objetivo. Os formidáveis progressos científicos com a reprodução
medicamente assistida, num primeiro momento, permitiram superar a infertilidade causada
por ovulação insuficiente ou um número pequeno de espermatozóides com a fertilização in
vitro. Num segundo momento, depois de gerado o embrião, implanta-lo no útero materno
e, finalmente, conseguir a sua implantação em outro útero que não o da dona do embrião
gerado em laboratório. Neste estágio - a gravidez de substituição - tem gerado inúmeros
questionamentos de ordem ética e religiosa e jurídica. Se de um lado a lei já tem uma
visão relativamente pacificada - dentro da ótica da estrutura familiar vigente - e os fóruns
éticos já tenham definido deontologicamente os passos deste processo, o campo religioso
continua postando-se de maneira contrária e com uma abertura muito estreita para
discussões sobre o tema. No maior país católico do mundo, no entanto, muitos casais -
mesmo sabendo estar contrariando normas explicitadas por documentos eclesiásticos -
têm buscado, cada vez mais, este recurso que a ciência lhes põe a disposição.

Gravidez de substituição; Maternidade substituta; Reprodução heteróloga

Introdução

A tecnologia e o progresso científico, galopantes em seu ritmo de impor novidades, são


também elementos instigadores de novos e complexos dilemas éticos. Não se trata de
discutir se os avanços até aqui conseguidos pelas novas técnicas e pela ciência são bons
ou maus. Trata-se tão somente de refletir e ponderar eticamente os novos e delicados
problemas que surgiram e surgem a cada dia, gerando situações antes impensáveis.
A assim chamada "reprodução medicamente assistida" pulou dos gradis de mero processo
para corrigir falhas no processo "natural" da reprodução humana, para questões como
mistura genética, manipulação genética - por muitos já rotulada de eugenismo; e chegando
até a produção de clones, antes passando pela "criação" de indivíduos com a missão
precípua de prover órgãos para transplantes. Em todas estas situações a dilemas éticos
intricados a serem resolvidos. Há mais ou menos 50 anos tais situações pertenciam a
úndécima prateleira dos sonhos, mitigados pela ficção científica literária e cinematográfica,
tornando-se hoje parte do cotidiano das pessoas, porém propiciando a cada momento
casos concretos a serem deslindados pela reflexão bioética. A discussão sobre a gravidez 7
de substituição insere-se nestes casos concretos onde a cada dia novas e diferentes
polêmicas surgem. No Brasil onde o aborto não é permitido, excetuando-se duas situações
legalmente aceitas, - e onde só recentemente foi aprovado pelo Supremo Tribunal Federal
a disponibilidade de embriões descartáveis em programas de reprodução assistida para a
pesquisa científica, a gravidez de substituição ou "útero de aluguel" como popularmente é
chamada entre nós, está liberada entre pessoas da mesma família até o segundo grau de
parentesco ou, se aceito após consulta aos Conselhos Regionais de Medicina, a pessoas
estranhas ao círculo familiar, desde que não envolvam acertos pecuniários.

A alguns tais técnicas romperiam os dogmáticos conceitos normalmente levantados pela


Igreja Católica que considera a gravidez fora do útero como antinatural e,
___________________, despido dos aspectos sagrados que estas correntes advogam
para a concepção. Respeitadas que sejam as crenças e os conceitos dos que assim
pensam se tivermos que sacralizar algo, que seja a vida - que obtida desta ou daquela
forma - é inegavelmente o que importa. Se considerarmos ainda que o mister natural
proposto pela natureza é a perpetuação genética, não seria "antinatural" impedir a
qualquer casal que possa ter corrigido um item que lhe impeça ter acesso a este "direito
natural?" Como justificar a negativa de ter acesso a este recurso disponibilizado pela
ciência? Não estaria no mesmo plano negar-lhe acesso a terapias medicamentosas
genéticas para cura de outras doenças ou mesmo impedir-lhe o acesso a um transplante
de órgãos?

A participação piedosa e/ou solidária de um parente ou pessoa que se disponha a ceder


seu corpo para a gravidez de uma mulher que esteja impossibilitada de tal, por problemas
de saúde ou lesões irreversíveis no seu aparelho reprodutor, se justifica plenamente tendo
em vista o preenchimento de uma vida sequiosa por amar outra. Esta vida querida e
desejada, escolhida por decisão consciente, certamente não terá o comprometimento
psicológico que os renitentes adversários desta possibilidade de reprodução
alardeiam. Qual rebento teria mais dificuldades adaptativas: o filho ardentemente buscado
e já amado, conseguido por esta via, hoje permitida pela ciência, ou aquele gerado sob
circunstâncias as mais variadas, fruto de afetos ou desejos carnais eventuais, não
desejado e não querido? Fico claramente inclinado a achar que filhos paridos por mães
que não os desejam e mesmo os rejeitam terão, sem sombra de dúvidas, mais
dificuldades que aqueloutros.

Há também os que levantam a bandeira da dignidade feminina, ultrajada que seria,


transformando-se a mulher em mera "incubadora". Isto obviamente não corresponde aos
fatos desde que não estejamos falando de uma indústria de reprodução em útero alheio
por mulheres fúteis, com motivos idem, que comerciariam a gravidez sob a ótica da
estética, por exemplo, para não "estragar" o corpo com uma gravidez e não da
impossibilidade de uma gestação devido a graves dificuldades em seu corpo. Não se pode
esquecer de que quem quer que se disponha a usar do seu corpo para o simples comércio
estaria em rota de colisão com todo o escopo ético que desenvolvemos até aqui. Não se
pode esquecer, _________________, que mesmo solidária e não visando lucro com tal
concessão, a mulher que livremente se dispõe a uma gestação para outrem tem, a nosso
ver, necessidades que precisam ser supridas por quem será o beneficiário do seu
sacrifício. Isto inclui as despesas médicas e outras surgidas pelas limitações que a
gravidez impõe a mulher no seu dia a dia e no exercício de uma profissão. Não se pode
falar em diminuição da dignidade feminina na gravidez de substituição quando a mulher
que oferecerá seu útero tem respeitado a sua autonomia e autodeterminação e ela as
exerce em sua plenitude.

Há, ____________________, os que se entrincheiram em aspectos jurídicos (mãe é


aquela que pariu) e não avançam daí. Não seria o caso agora de duvidarmos se nesta
condição não estaríamos de fato reduzindo as mulheres à condição de meras
"procriadoras"? Seria esta uma forma de conferir dignidade a figura da mulher?
Certamente que não! Mãe pode e deve ser considerada também como aquela que cria!
Tanto um filho saído do seu útero e com seus próprios cromossomos e do seu 8
companheiro, quanto aquele gestado com suas características genéticas, ____________
em outro útero, conseguido pela solidariedade amorosa de um ente parental ou não.

Gravidez de substituição e conflitos religiosos

Ao decidir buscar os meios postos a sua disposição para a gestação de um filho fora do
seu útero, a mulher fortifica a idéia de uma decisão relacional com o seu parceiro e nesta
decisão está firmemente explicitado que estes progenitores assumem o compromisso com
a nova vida a ser gerada. Esta situação impõe ao casal o firme reconhecimento de suas
responsabilidades com a vida a ser criada e para cujo desenvolvimento incorpora seus
interesses e projeto de vida. Numa sociedade, no entanto, em que a posição da principal
confissão religiosa vê na condição do casal sem filhos um fatalismo intransponível - sem
atentar para o que a ciência já superou - tratando a questão com a crueza dos indiferentes
ou "donos da verdade", a discussão é difícil e resulta na busca da gravidez de substituição
pelos atores envolvidos independentemente da resposta positiva ou não da hierarquia
religiosa.

__________________ hoje a Igreja tenha reconhecido algumas das "falhas" cometidas ao


longo do tempo, um documento de 1987 emitido pela Congregação da Doutrina da Fé diz:
"a maternidade substitutiva é contrária à unidade do matrimônio e à dignidade da
procriação da pessoa humana" (p.30). Em outras palavras: a Igreja segue indiferente aos
anseios dos casais aos quais a ciência possibilita hoje a geração de um filho. Nesta
mesma publicação é dito que o casal que se dispõe a fazer tal tipo de procriação atenta
contra a fidelidade conjugal, o amor materno e a "maternidade responsável". Vai mais
além: ofende ao nascituro em sua dignidade e direitos além de instaurar a cizânia3 no seio
da família.

O Brasil, o assim chamado maior país católico do mundo, tem 70% da sua população
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2008) professando o cristianismo
católico, logo é de suma importância este documento para boa parte dos seus seguidores.
Numa sociedade democrática e pluralista, no entanto, os ditames da hierarquia são postos
em cheque ________________ não dá para se aceitar que alguém que muito deseja um
filho seu e lança mão desta possibilidade conquistada pelo conhecimento humano esteja
querendo-o para não lhe dar todo o amor e cuidado. Ou que o acerto entre o casal
constitua um ato de infidelidade. A infidelidade não seria um fazer com o desconhecimento
do outro? Como já dissemos no intróito: mãe que ardentemente deseja ter um filho já
adredemente assume suas responsabilidades antes mesmo de vê-lo gerado. Falar que
isto atenta contra a maternidade responsável é um argumento pífio e vazio.

[…]

Gravidez de substituição aspectos éticos e conflitos jurídicos

[…]

No Brasil há diversos projetos tramitando no Congresso Nacional ensejando ampla


discussão, mas que se arrastam sem um horizonte previsível para sua aprovação.

3
Cizânia = discórdia.
Recentemente o Conselho Federal de Medicina abriu ampla discussão, aberta aos que
quiserem participar, de modo a prover o Brasil de uma nova resolução, buscando atender
as novidades e interesses de uma sociedade plural e democrática. Nela já existe uma
sugestão a ser discutida sobre a extensão do acesso ao direito da reprodução assistida
para pessoas solteiras e para os que tenham relações homoafetivas. Propõe,
___________________, as mesmas restrições quanto ao âmbito da família parental e a
excepcionalidade vigiada, fora disto, desde que não envolva transações pecuniárias.

___________________ os documentos legais no Brasil ainda não contemplem de maneira 9


explícita as incontáveis situações decorrentes da gravidez de substituição e, até que tal
aconteça, cremos que o legislador ou o aplicador do direito deveria optar pela presunção
de paternidade para o casal que idealizou o filho ainda que o material genético não seja
seu. O filho deve ser, portanto, daqueles que decidiram e quiseram o seu nascimento.

O que é mais importante? Satisfazer a pessoa que não pode ter filhos pelos caminhos
ditos "naturais" ou a criança que nascerá fruto da moderna tecnologia médica? A mãe e o
pai doadores genéticos devem necessariamente ter vínculos afetivos, familiares ou
genéticos com a receptora? Somente casais formalmente constituídos poderiam dispor
destes recursos? Solteiras e solteiros, homossexuais ou não, teriam vez no uso destas
novas tecnologias?

Para tantas questões, e outras mais, não existem respostas prontas nem mesmo debate,
ainda, sobre estes aspectos. Lembrar não custa, mas as principais correntes religiosas no
Brasil ainda buscam argumentos contra a reprodução assistida dentro - e exclusivamente -
do âmbito da estrutura familiar formal.

Obviamente não se pretende hierarquizar a discussão, mas há questões que a sociedade


brasileira precisa avançar, como no debate resolutivo sobre a união homoafetiva e não
ficar tão somente à mercê de resoluções, portarias ou decisões judiciais pontuais. Como
dito, embora não seja precedente, é de bom alvitre atingirmos um consenso nesta seara
antes de acrescentarmos algo que gera, literalmente, tantas inquirições e restrições
mesmo que realizada dentro da família formal.

Aspectos legais da gravidez de substituição no Brasil

A gravidez de substituição do Brasil é permitida, entretanto tal permissão não consta em


leis específicas, mas em documentos com valor legal, como a Resolução do Conselho
Federal de Medicina nº 1.358/1992 que diz no seu Inciso VII:

As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de


reprodução assistida para criarem a situação identificada como gestação de substituição,
desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na
doadora genética.

1. As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num


parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do
Conselho Regional de Medicina.

2. A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Ao estabelecer esta resolução, o Conselho Federal de Medicina do Brasil a estatuiu como


norma deontológica e, por conseguinte, de cumprimento estrito pelos médicos. No Brasil a
gravidez de substituição, atendidos os dispositivos proclamados pela resolução, é não
apenas legal como ética. Felizmente entendeu-se o problema da infertilidade e o quanto
esta condição perturba e prejudica a saúde da mulher e do casal e é como dano a saúde
que é vista. Tanto para a mulher quanto para o homem, aí na condição de participante do
casal. Seria absurdo, e injusto, impedir que estas pessoas com claras dificuldades
biológicas tenham acesso àquilo que a ciência e a tecnologia põem à disposição.
O reparo e o limite seriam a mercantilização ou a utilização desta técnica da reprodução
medicamente assistida para fins cosméticos e fúteis por mulheres aptas fisicamente para a
procriação que assim se valeriam destes métodos como "produtos" à sua disposição. Não
é ética esta utilização.

Considerações finais

Sara, mulher do patriarca Abrão, era avançada em anos e nesta condição já estéril pelo
envelhecimento, usou de um artifício do que poderíamos, grosso modo, chamar de uma
10
gravidez de substituição rudimentar e primitiva: tomou sua escrava Agar e a fez deitar-se
com o patriarca para que lhe gerasse um filho e assim possibilitasse o cumprimento da
promessa divina. Sara, então, se imaginava incapaz de gerar filhos e só muito mais tarde
viria a ter o seu próprio. A história é largamente conhecida e todos sabemos do desfecho
considerado miraculoso da gravidez de Sara, já encanecida, cujo fruto seria Isaac.

A ciência desenvolveu-se de tal sorte que a cada dia mais e mais histórias, parecidas ou
não com esta, se tornam realidade. A intensa vontade de Sara em ter um filho é exemplar
para situações dos nossos dias. Quem poderia condená-la pelo desejo acendrado de ter o
seu próprio filho? E nos dias de hoje, como se pode negar a uma mulher e um homem ou
a um casal alcançar a tão desejada felicidade de perpetuar-se através de um filho? Se há
recursos técnicos e se não há trânsito mercantil na iniciativa, como negar este direito
fundamental da espécie humana?

Compreendo como justo e eticamente aceitável a possibilidade de propiciar-se às


mulheres e famílias sem filhos a oportunidade de uma gravidez de substituição, atendidas
as condições de não comercialização, sem acordos pecuniários, e observadas as
absolutas dificuldades biológicas de quem desejando um filho o seu corpo lhe impeça.

Por fim, cremos que a discussão bioética está apenas começando, vez que a tecnologia
da reprodução tem trazido ao centro do debate novos grupos que não se encaixam na
definição clássica da família nuclear.

Fonte: Santos, O. (2010). Gravidez de substituição. Revista Brasileira de Saúde Materno


Infantil, 10 (Supl. 2): 363-367 (com supressões)

Responda, agora, às seguintes questões:

1. Preencha os espaços em branco com os seguintes conectores do discurso:


vez que por fim no entanto mas malgrado
embora portanto ainda

2. O autor do artigo científico manifesta claramente o seu posicionamento em relação à


gravidez de substituição. Justifique a afirmação recorrendo à transcrição de pelo menos
três passagens do texto, comentando-as.
3. Nas considerações finais, o autor do texto utiliza um episódio bíblico. Explicite o
conteúdo desse episódio e indague sobre as intencionalidades discursivas do autor do
texto na sua utilização.

Bom trabalho! 11

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