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Curso de direito da energia: da história, Tomo I

Book · August 2011

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Luiz Ugeda
University of Minho
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TOMO I – Da História

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LUIZ ANTONIO UGEDA SANCHES

TOMO I – Da História

APRESENTAÇÃO DE
Jorge Miguel Samek
PREFÁCIO DE
Carlos Ari Sundfeld

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©2011 by Luiz Antonio Ugeda Sanches

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida
ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico,
incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e
transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da editora.

Diretor executivo: Luiz Antonio Ugeda Sanches


Capa e produção editorial: Casa de Ideias
Foto da capa: Fundação Energia e Saneamento, 1931.
Imagem sobre a reversão do rio Grande e do rio Pinheiros, São Paulo-SP.
Foto da contracapa: Sérgio Zacchi, 2011.
Foto sobre o rio Pinheiros à ponte Cidade Jardim, São Paulo-SP.
Foto do autor: Sérgio Zacchi, 2011.
Preparação de texto: Anselmo T. Vasconcelos
Revisão: Daniela Braz

Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sanches, Luiz Antonio Ugeda


Curso de direito da energia: da história, tomo I / Luiz Antonio Ugeda Sanches. --
São Paulo : Instituto Geodireito Editora, 2011.

Bibliografia
ISBN 978-85-64533-01-1

1. Eletricidade – Serviços públicos – Direito – Brasil 2. Energia elétrica – Brasil


3. Energia elétrica – Brasil - História I. Título.

11-09697 CDU-34:621.3(81)(09)

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : Direito de energia : História
34:621.3(81)(09)
2. Brasil : Energia elétrica : Direito : História
34:621.3(81)(09)

2011
Rua Hungria, 664, cj 63A – São Paulo – SP
CEP: 01455-904 – Tel.: 55 11 3554-1153
Site: www.geodireito.com

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A Alfredo Valladão, Miguel Reale, Monteiro Lobato,
Rui Barbosa e Walter Tolentino Álvares, juristas que desbravaram
um setor no qual o país ainda descortinará.

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“No conhecimento do nosso país está a chave de todo o nosso
progresso material, a solução de muitos problemas da nossa
economia interna, e paralelamente o nosso
desenvolvimento social.”
Teodoro Sampaio, 1887

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Agradecimentos

“Deixe­‑a jazer no tempo, meu filho.” Com essas palavras,


proferidas em 2006, o professor Walter Tolentino Álvares me
desestimulava na iniciativa de republicar uma de suas princi‑
pais obras, Curso de Direito da Energia, de 1978, resultado de
décadas de estudo do Direito da Energia. A iniciativa, fruto de
minhas atribuições como diretor jurídico da então Associação
Brasileira das Concessionárias de Energia Elétrica – ABCE,
era resgatar um pouco da memória setorial, no sentido de tra‑
zer às atuais gerações os conhecimentos daquele que certa‑
mente foi o jurista brasileiro que mais se debruçou na busca de
uma epistemologia jurídica da energia. Aquele interesse, de
certa forma, foi adaptado de modo a possibilitar a criação da
presente obra, fato que me faz agradecer enormemente ao ilus‑
tre professor pelas orientações, realizadas dentro de suas limi‑
tações impostas pela avançada idade.
Agradeço igualmente a Jorge Miguel Samek, Diretor­‑Geral
Brasileiro da Itaipu Binacional, e a Guilherme Amintas, de
Itaipu Binacional e ex­‑Consultor Jurídico da Comercializado‑
ra Brasileira de Energia Emergencial – CBEE, entusiastas de
primeira hora do projeto, por todo o apoio manifestado e a
confiança depositada mesmo quando tive de suspender os tra‑
balhos por motivo de saúde.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Estendo meus agradecimentos ao professor doutor Carlos Ari


Sundfeld, pelo pronto interesse e disposição em contribuir com a obra,
bem como aos professores doutores Ana Lúcia Rodrigues da Silva e
Fernando Amaral de Almeida Prado Jr., pelas palavras de incentivo e
indicações metodológicas que muito enriqueceram por ofertar uma vi‑
são não jurídica, possibilitando identificar mecanismos para tornar a
obra mais acessível a outros profissionais.
Reforço aqui a gratidão à advogada e historiadora Solange David,
da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, pela lei‑
tura sistemática da obra, bem como pelo envio de relevantes materiais
jurídicos atinentes ao tema; ao advogado Thiago de Mello Ribeiro
Coutinho, do Grupo Ultra, amigo de todas as horas, pelas apuradas
observações que possibilitaram aflorar pontos que mereciam ser apri‑
morados; e à advogada Karine Finn, companheira de grande parte des‑
ta jornada, por ter acreditado que o projeto era viável.
Por fim, faz­‑se necessário agradecer às bibliotecárias do Senado
Federal, sempre prestativas e atenciosas, mesmo defronte às dificuldades
de se buscarem documentos do século XIX, efetivando o trabalho com
cortesia e dedicação. A todas o meu muito obrigado.

Luiz Antonio Ugeda Sanches


Setembro de 2011.

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Apresentação

Ao longo dos anos, temos recebido em Itaipu delegações


de diversos países interessadas em conhecer tanto a engenha‑
ria que permitiu construir a maior usina hidrelétrica do mun‑
do em termos de geração de energia quanto o arcabouço
jurídico que dá sustentação legal e institucional a esse gigan‑
tesco empreendimento.
Parte da área que veio a ser inundada para a implantação
da Usina de Itaipu era de longa data objeto de discussão diplo‑
mática sobre limites de fronteiras entre o Brasil e o Paraguai.
Como meio de conciliar seus interesses, os governos brasileiro
e paraguaio, após intensas negociações, optaram pela solução
de implantar naquele local um complexo hidrelétrico capaz de
proporcionar a energia necessária para o desenvolvimento de
ambos os países, gerido por uma entidade binacional constitu‑
ída sob um regime de igualdade de direitos e obrigações entre
as partes.
Essas negociações culminaram com a assinatura do Tratado
de Itaipu, complexa obra de engenharia jurídica – até então iné‑
dita no direito internacional, societário, tributário, ambiental e
regulatório cuja elaboração contou com a participação funda‑
mental de juristas do mais alto conceito, como Miguel Reale.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Devido à importância e à magnitude do Tratado sob o qual foi


constituída e ao relevante papel que a entidade binacional desempenha
na geração de energia para o Brasil e o Paraguai, a Itaipu entende que
lhe cabe – inclusive no âmbito da responsabilidade social corporativa,
integrante do novo enunciado de sua missão institucional – apoiar ini‑
ciativas voltadas para levar ao público interessado o conhecimento das
questões jurídicas e das discussões doutrinárias que constituem o cha‑
mado Direito da Energia.
No Brasil, importante iniciativa nesse campo foi a criação, pelo ju‑
rista Walter Tolentino Álvares, em Belo Horizonte, na década de 1960,
do Instituto de Direito da Energia, implementado em conjunto com a
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Álvares
situou o Direito da Energia como um ramo do Direito Tecnológico.
Desde então, o país vinha enfrentando escassez de novos pensa‑
mentos nessa área. Felizmente, essa deficiência agora vem sendo sana‑
da com o surgimento de novos talentos interessados no estudo e no
desenvolvimento do Direito da Energia, até mesmo como forma de
responder, no universo jurídico, aos desafios impostos pelas mais re‑
centes exigências tecnológicas, como a exploração do pré­‑sal e a im‑
plantação de hidrelétricas na Amazônia.
A presente obra, concebida e elaborada por Luiz Antonio Ugeda
Sanches, jovem profissional de um período em que os juristas devem
acostumar­‑se a estudar também questões tecnológicas e multidiscipli‑
nares, é fruto de um grande esforço de disseminação do Direito da
Energia. Com postura de vanguarda, ele iniciou um movimento nesse
sentido na Universidade Cândido Mendes (UCAM), que treinou pro‑
fissionais em Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Rio
Branco, constituindo exemplo marcante para as demais áreas de infra‑
estrutura do país.
A obra surpreende por sua densidade e amplitude, ao fazer a aná‑
lise de mais de duas mil normas expedidas desde a Independência, sen‑
do o primeiro registro histórico de como o Direito da Energia se

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Curso de Direito da Energia

desenvolveu no Brasil. E surpreende também pela ousadia de vislum‑


brar uma leitura interdisciplinar entre Direito e Geografia, ao tratar da
relação entre a energia e as desigualdades regionais.
É com satisfação, pois, que a Itaipu empresta seu apoio à publica‑
ção deste livro, no atendimento de uma das dimensões de sua missão
institucional, que é gerar, também, conhecimento.
A todos os interessados, desejamos que obtenham o melhor pro‑
veito desta importante contribuição para o estudo e a divulgação do
Direito da Energia.

Jorge Miguel Samek


Diretor­‑Geral Brasileiro da Itaipu Binacional

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Prefácio

O direito administrativo dos negócios é o campo do direito


público que se ocupa de estudar a atuação do Estado em ativida‑
des negociais. Basicamente, isso pode acontecer de duas manei‑
ras: quando a administração é parte em contratos celebrados com
particulares, como adquirente ou fornecedora, especialmente por
intermédio de suas empresas, ou quando a administração regula
atividades econômicas ou serviços de titularidade estatal.
Recentemente, o direito administrativo dos negócios vem
ganhando espaço em assuntos relacionados a setores estratégi‑
cos para o país.
No setor da energia, por exemplo, empreendimentos de
natureza pública precisam ser construídos e ter sua operação
assegurada. Evidentemente, essas atividades envolvem investi‑
mentos elevados que não podem ser assumidos integralmente
pelo Estado. Daí a necessária participação da iniciativa priva‑
da, em colaboração ao poder público, para o estabelecimento
de parcerias que permitam a construção de infraestruturas e o
desenvolvimento de novas tecnologias que ampliem e tornem
mais eficiente o aproveitamento energético no país.
Essa aproximação necessária entre poder público e inicia‑
tiva privada apenas pode acontecer em um ambiente institu‑

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

cional com regras claras e precisas, capazes de assegurar estabilidade


para as partes envolvidas. Construir, manter e entender o conjunto
normativo que dê suporte a esse ambiente institucional favorável é,
sem dúvida, um dever de pesquisadores e profissionais do direito que
atuam em setores estratégicos, como é o da energia.
Mas essa não é uma tarefa fácil. Pelo contrário. Cada um desses
setores considerados estratégicos possui sua realidade própria, com
suas respectivas normas e atores. É essa realidade setorial bastante es‑
pecífica que acaba por definir a legislação de cada setor, com suas cate‑
gorias e técnicas jurídicas.
E quando o assunto envolve setores da energia, essa complexidade
é ainda mais intensa, pois as normas, atores e técnicas jurídicas variam
a depender da etapa (geração, captação, distribuição etc.) e da fonte de
energia (eletricidade, petróleo, gás etc.) envolvidas.
Desse modo, as teorias jurídicas abstratas sobre normas e instru‑
mentos da regulação têm de se adaptar às características da realidade. É
preciso mergulhar fundo em cada setor da energia para entendê­‑lo em
sua plenitude, compreender sua lógica e, assim, encontrar alternativas
regulatórias eficientes para a manutenção de um ambiente institucional
favorável a novos investimentos e ao incremento da tecnologia.
O livro que ora se apresenta, de Luiz Antonio Ugeda Sanches, é
resultado de mais de dez anos de atuação profissional no setor da ener‑
gia. Uma contribuição de direito administrativo dos negócios para a ain‑
da incipiente bibliografia sobre um setor tão importante para o Brasil.

Carlos Ari Sundfeld


Professor da Escola de Direito da FGV­‑SP e da PUC­‑SP
Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP

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Sumário

Lista de siglas............................................................................21

Introdução.................................................................................29

1 O período monárquico no Brasil (1822­‑1889)..................35


1.1 Regime jurídico das águas.................................................. 42
1.2 Energia enquanto matéria de propriedade intelectual..... 45
1.3 Barão de Mauá e a origem da infraestrutura brasileira.... 47
1.4 Iluminação pública: do gás à energia elétrica.................... 50
1.5 As Geociências e o sistema de outorgas minerais............ 56
1.5.1. Monarquia brasileira: movida a lenha e por
escravos.................................................................... 59
1.5.2. A Revolução Industrial e a importância do
petróleo.................................................................... 64

2 Energia enquanto interesse local (1889­‑1934).................69


2.1 Energia no governo Rodrigues Alves............................... 77
2.2 Rui Barbosa e o Direito da Energia................................... 82
2.3 A Light e o desenvolvimento do eixo Rio-São Paulo...... 88
2.4 Da Inspetoria Geral de Iluminação – IGI....................... 107
2.5 Da instituição do horário de verão.................................. 112
2.6 As Geociências na República Velha: primeiro o solo,
depois o subsolo................................................................ 115
2.7 O carvão e o álcool­‑motor: a EECM, o INT e o IAA.... 123

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

3 Federalização e uniformização normativa (1934­‑1945).............. 131


3.1 O Código de Águas e a regulação do setor elétrico...................... 133
3.2 A regulação da lenha: do serviço florestal ferroviário
ao Código Florestal......................................................................... 143
3.3 O Código de Minas e a regulação minerária: o petróleo
e o CNP............................................................................................ 150
3.4 A regulação do gás: os dirigíveis, o carvão e o DNIG.................. 165
3.5 O racionamento de 1941: a experiência do gasogênio.................. 174

4 Da estatização e o desenvolvimento regional (1946­‑1990)........ 181


4.1 O Sistema Elétrico Nacional: a inserção dos Estados
e a origem dos sistemas interligados............................................... 191
4.2 Criação da Chesf e o modelo de desenvolvimento regional........ 199
4.3 Ministério de Minas e Energia, estrutura regulatória e
equalização tarifária......................................................................... 205
4.4 Criação da Eletrobras e o Plano Nacional de Eletrificação:
o FFE e o Iuee............................................................................... 211
4.5 Criação de Itaipu enquanto hidrelétrica binacional...................... 218
4.6 A questão nuclear: da bomba à eletricidade. O CNPq
e a CNEN........................................................................................ 233
4.7 O “Ouro negro”: o sistema internacional e a Petrobras.............. 244
4.8 O “Sol líquido”: os biocombustíveis e o Proálcool...................... 256

5 Da regulação e competição (desde 1990)................................... 267


5.1 O Primeiro Modelo Energético (1990­‑2002) ............................... 272
5.1.1 Plano Nacional de Desestatização – PND e a
Lei Eliseu Resende...............................................................274
5.1.2 Lei Geral de Concessões e as agências
reguladoras setoriais.............................................................282
5.1.3 Legislação do setor de energia elétrica:
a desverticalização e a Aneel................................................292
5.1.3.1 O RE­‑SEB: a criação do MAE e do ONS ..........298
5.1.3.2 Eficiência Energética e Pesquisa &
Desenvolvimento: a origem no Procel................308

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Curso de Direito da Energia

5.1.3.3 Programa de racionamento de energia elétrica


de 2001: História, a GCE, o Relatório Kelman,
a CBEE e o Anexo V............................................312
5.1.4 Legislação do setor de petróleo: o CNPE e a ANP...........331
5.1.4.1 O renascimento do gás: o PPT e o Gasoduto
Brasil­‑Bolívia – Gasbol.........................................339
5.1.4.2 A Petrobras e a competição na exploração:
as Rodadas de licitações e o Conteúdo Local.....345
5.1.5 Legislação do setor de Águas: o meio ambiente,
os comitês de bacias e a ANA.............................................353
5.2 O Segundo Modelo Energético (desde 2003)................................ 358
5.2.1 Lei da EPE: Planejamento enquanto função de Estado....364
5.2.2 Legislação do setor elétrico. O CMSE................................368
5.2.2.1 Lei de contratação de eletricidade
(ACR e ACL). A CCEE......................................371
5.2.2.2 Programa de Incentivo às Fontes
Alternativas de Energia Elétrica – Proinfa..........376
5.2.2.3 Programa Luz para Todos: a reorientação
na universalização da energia elétrica..................380
5.2.2.4 Reestruturação e internacionalização
da Eletrobras.........................................................387
5.2.2.5 Comitê Interministerial de Cadastramento
Socioeconômico: a questão dos atingidos
pelas barragens....................................................... 390
5.2.3 Legislação do petróleo, gás e biocombustíveis...................391
5.2.3.1 Lei do Biodiesel: o “combustível social”.............396
5.2.3.2 A reestruturação da ANP: a regulação
do gás e dos biocombustíveis...............................401
5.2.3.3 Lei do Gás: o modelo elétrico como
referência................................................................402
5.2.3.4 O álcool se chama etanol: a busca da
commodity global..................................................407

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

5.2.3.5 Pré­‑sal e o modelo de partilha. Criação


da Pré­‑sal Petróleo S.A. – PPSA..........................412

6 Perspectivas do mercado energético brasileiro..........................419


6.1 Projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras
e o PRO­‑REG.................................................................................. 420
6.2 Setor elétrico: a prorrogação das concessões
e a consolidação da legislação......................................................... 426
6.3 Smart Grid, Smart City: as cidades produzem
energia renovável............................................................................. 430
6.4 Integração regional sul­‑americana: Usinas do Rio Madeira
e interconexão com o Peru.............................................................. 435
6.5 Belo Monte e a fragmentação do Estado do Pará......................... 440
6.6 Energias alternativas e a expansão da geração:
a questão indígena e a nuclear......................................................... 444
6.7 Pré­‑sal e a Amazônia Azul: o petróleo em fronteira marítima.... 452
6.8 O Geodireito e o planejamento energético................................... 457

Conclusão............................................................................................. 463

Referências........................................................................................... 467

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Listas de siglas

ABCE – Associação Brasileira das Concessionárias de Energia


Elétrica
Abdib – Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias
de Base
Abeam – Associação Brasileira das Empresas de Apoio Marítimo
Abemi – Associação Brasileira de Engenharia Industrial
Abimaq – Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e
Equipamentos
Abinee – Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica
Abitam – Associação Brasileira da Indústria de Tubos e Aces‑
sórios de Metal
ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas
ABPHE – Associação Brasileira de Pesquisadores em História
Econômica
Abrapet – Associação Brasileira dos Perfuradores de Petróleo
ACL – Ambiente de Contratação Livre
ACR – Ambiente de Contratação Regulada
ADA – Agência de Desenvolvimento da Amazônia
Adene – Agência de Desenvolvimento do Nordeste
AIR – Análise do Impacto Regulatório

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Amforp – American Foreign Power Company


ANA – Agência Nacional de Águas
ANDE – Administración Nacional de Electricidad (Paraguai)
Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica
ANP – Agência Nacional do Petróleo (até 2005)
ANP – Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
(após 2005)
APA – Área de Proteção Ambiental
Asmae – Administradora de Serviços do Mercado Atacadista de Ener‑
gia Elétrica
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
Bird – Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
Braspetro – Petrobras Internacional S.A.
BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China
Caeeb – Companhia Auxiliar de Empresas Elétricas Brasileiras
Canambra – Canadá – America – Brasil Engineering Consultants
Limited
CBEE – Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial
CBTC – Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear
CBTN – Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear
CCC – Conta de Consumo de Combustíveis
CCEAR – Contrato de Comercialização de Energia no Ambiente
Regulado
CCEE – Câmara de Comercialização de Energia Elétrica
CDE – Conta de Desenvolvimento Energético
Ceca – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
Cedpen – Centro de Estudos e Defesa do Petróleo
Ceme – Comissão de Exportação de Materiais Estratégicos

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Curso de Direito da Energia

Cemig – Centrais Elétricas de Minas Gerais


Cenpes – Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo A.
Miguez de Mello
Cepel – Centro de Pesquisa de Energia Elétrica
Cesp – Companhia de Energia de São Paulo
CF – Constituição Federal
CGTEE – Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica
Chesf – Companhia Hidrelétrica do São Francisco
Cide – Contribuição de Intervenção de Domínio Econômico
CMSE – Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico
CNAEE – Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica
CNAL – Conselho Nacional do Álcool
CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear
CNG – Comissão Nacional do Gasogênio
CNI – Confederação Nacional da Indústria
CNP – Conselho Nacional do Petróleo
CNPE – Conselho Nacional de Política Energética
CNPq – Conselho Nacional de Pesquisas
CNUDM – Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar
Coalbra – Coque e Álcool da Madeira S/A
Codevasf – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco
Coge – Comitê de Gestão Empresarial
Comase – Comitê de Meio Ambiente do Setor Elétrico
Comgás – Companhia de Gás de São Paulo
Conama – Conselho Nacional do Meio Ambiente
Conambra – Companhia de Materiais Nucleares do Brasil
CPFL – Companhia Paulista de Força e Luz
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CRC – Conta de Resultados a Compensar
CSN – Companhia Siderúrgica Nacional

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

CVRD – Companhia Vale do Rio Doce


CVSF – Comissão do Vale do São Francisco
Dasp – Departamento Administrativo do Serviço Público
Denatran – Departamento Nacional de Trânsito
DNAE – Departamento Nacional de Águas e Energia
DNAEE – Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica
DNC – Departamento Nacional de Combustíveis
DNIG – Departamento Nacional de Iluminação e Gás
DNPM – Departamento Nacional da Produção Mineral
ECE – Encargo de Capacidade Emergencial
EECM – Estação Experimental de Combustíveis e Minérios
Eletrobras – Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (retirou o acento
em 2009)
Eletronorte – Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A.
Eletrosul – Eletrosul Centrais Elétricas S.A.
Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
EMI – Exposição de Motivos Interministerial
ENI – Ente Nazionale Idrocarburi
EPE – Empresa de Pesquisa Energética
Ermig – Eletrificação Rural de Minas Gerais
Esalq – Escola Superior de Agricultura Luis de Queirós
Escelsa – Espírito Santo Centrais Elétricas S/A
ESG – Escola Superior de Guerra
EUA – Estados Unidos da América
FFE – Fundo Federal de Eletrificação
Finep – Financiadora de Estudos e Projetos
FMI – Fundo Monetário Internacional
FS – Fundo Social
Funcoge – Fundação Coge
Furnas – Central Elétrica de Furnas S.A.

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Curso de Direito da Energia

Gasbol – Gasoduto Bolívia­‑Brasil


Gaspetro – Petrobras Gás S.A.
GCE – Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica
GCOI – Grupo Coordenador para Operação Interligada
GCPS – Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos
GLP – Gás Liquefeito de Petróleo
GT – Grupo de Trabalho
GW – Gigawatt
IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool
Ibam – Instituto Brasileiro de Administração Municipal
IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBP – Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis
ICMS – Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercado‑
rias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação
Idese – Instituto de Desenvolvimento do Setor Elétrico
IEN – Instituto de Energia Nuclear
IGD – Instituto Geodireito
IGI – Inspetoria Geral de Iluminação
IHGB – Instituto Histórico Geográfico Brasileiro
INE – Instituto Nacional de Estatística
Inmetro – Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade
Industrial
INT – Instituto Nacional de Tecnologia
Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPR – Instituto de Pesquisas Radioativas
Iuee – Imposto Único para a Energia Elétrica
kW – Quilowatt
kWh – Quilowatt­‑hora

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Leplac – Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira


MAE – Mercado Atacadista de Energia Elétrica
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MME – Ministério das Minas e Energia
Nuclebrás – Empresas Nucleares Brasileiras Sociedade Anônima
OEA – Organização dos Estados Americanos
Onip – Organização Nacional da Indústria do Petróleo
ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico
Opep – Organização dos Países Exportadores de Petróleo
PAC – Programa de Aceleração do Crescimento
Paeg – Programa de Ação Econômica do Governo
PED – Plano Estratégico de Desenvolvimento
Pemat – Plano Decenal de Expansão da Malha de Gasodutos
Petrobras – Petróleo Brasileiro S/A (retirou o acento em 1994)
PFD – Programa Federal de Desregulamentação
PIA – Produtor Independente Autônomo
PIB – Produto Interno Bruto
PIE – Produtor Independente de Energia Elétrica
PLC – Power Line Communications
PND – Plano Nacional de Desenvolvimento
PND – Programa Nacional de Desestatização
PND –Programa Nacional de Desburocratização
PNPB – Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel
Polamazônia – Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da
Amazônia
PPA – Plano Pluri­‑Anual
PPA – Power Purchase Agreement
PPP – Parceria Público­‑Privada
PPSA – Petróleo e Gás Natural S.A. – Pré­‑Sal Petróleo S.A.
PPT – Programa Prioritário de Termeletricidade

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Curso de Direito da Energia

Proálcool – Programa Nacional do Álcool


Procap – Programa de Capacitação Tecnológica em Águas Profundas
Procel – Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica
Proconve – Programa Nacional de Controle de Poluição do Ar por
Veículos Automotores
Prodist – Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Siste‑
ma Elétrico Nacional
Proinfa – Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia
Elétrica
Prominp – Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petró‑
leo e Gás Natural
Pronaf – Programa Nacional da Agricultura Familiar
PRO­‑REG – Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucio‑
nal para Gestão em Regulação
PRS – Plano de Recuperação Setorial da Eletrobrás
PT – Partido dos Trabalhadores
RCE – Rede Cidades Eficientes em Energia Elétrica
Rencor – Reserva Nacional de Compensação de Remuneração
Repenec – Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento de
Infraestrutura da Indústria Petrolífera nas Regiões Norte, Nordeste
e Centro­‑Oeste
Revise – Revisão Institucional do Setor Elétrico
RGG – Reserva Global de Garantia
RGR – Reserva Global de Reversão
RPBC – Refinaria Presidente Bernardes
RPPN – Reserva Particular do Patrimônio Natural
SBDC – Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência
Sebrae – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SIG – Sistema de Informações Geográficas
Sihesp – Sindicato da Indústria da Energia Hidroelétrica no Estado de
São Paulo

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

SIN – Sistema Interligado Nacional


Sinaval – Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação
Naval e Offshore
Sinercom – Sistema de Contabilização e Liquidação de Energia
Sipron – Sistema de Proteção ao Programa Nuclear Brasileiro
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
Sudene – Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste
Suvale – Superintendência do Vale do São Francisco
Telebrás – Telecomunicações Brasileiras S/A
TNP – Tratado de Não­‑Proliferação
UBP – Uso de Bem Público
Ugem – Unidade de Gestão Energética Municipal
UNE – União Nacional dos Estudantes
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
USP – Universidade de São Paulo
VN – Valor Normativo
YPFB – Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos

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Introdução

O Direito da Energia é uma realidade no Brasil. Desde as


investidas setoriais de Rui Barbosa na década de 1900, a Expo‑
sição de Motivos ao Código de Águas iniciada em 1907 por
Alfredo Valladão e publicada em 1934, seguida pela primeira
grande sistematização doutrinária de alcance nacional, realiza‑
da por Walter Tolentino Álvares a partir da década de 1950, há
a necessidade de se continuar o desenvolvimento histórico,
institucional e epistemológico do que vem a ser este ramo au‑
tônomo do Direito. Em que pese a recente proliferação de tra‑
balhos jurídicos afeitos ao setor de Energia, ainda há um
considerável descompasso entre o desenvolvimento tecnológi‑
co e econômico que o setor tem verificado com a compreensão
das repercussões jurídicas atinentes ao segmento.
A presente obra busca contribuir para esse desenvolvi‑
mento jurídico, ao propor uma trilogia de Direito da Energia
aderente à atual realidade brasileira. No Tomo I – Da Histó-
ria, busca­‑se situar historicamente como o setor energético se
desenvolveu com as premissas tecnológicas de cada período,
que por sua vez impunham interesses públicos sobre suas re‑
percussões na sociedade. No Tomo II – Do Modelo Institu-
cional, haverá o intuito de pormenorizar o intrincado sistema

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

regulatório vigente, dispondo como os agentes setoriais, e não seto‑


riais, influenciam no sistema energético nacional. Por fim, no Tomo
III – Da Epistemologia, haverá propriamente a busca de um regime
jurídico de Energia, identificando suas interfaces com os demais siste‑
mas jurídicos postos.
No presente Tomo em específico, os esforços em buscar a raiz his‑
tórica do que seria o Direito da Energia constituem um verdadeiro quebra­
‑cabeça normativo. A história do Brasil é caracterizada por diversas
rupturas políticas que culminaram na realização de sete Constituições,
em que os agentes subsequentes costumeiramente negaram os avanços
obtidos pelos agentes anteriores. Essa foi a tônica da República Velha,
que, para se afirmar, negava os avanços do Império, do Estado Novo,
que negava aquela República, que passou a ser denominada “velha”, da
Constituição Federal de 1946, que buscou eliminar os resquícios do
regime de exceção de Vargas, do Regime Militar de 1964, que almejava
um “novo Brasil” em vez dos “desvios democráticos” ocorridos em
período de Guerra Fria e, por fim, da redemocratização de 1988, que
alicerça o país em premissas democráticas e objetiva transformar em
mero registro histórico o autoritarismo do regime anterior.
Todavia, o sistema jurídico brasileiro foi construído nesse somató‑
rio de eventos, e assim deve ser compreendido na busca da origem e
dos caminhos setoriais trilhados. O setor de energia pode ser apontado
como um rico sistema de convalidação de interesses das mais distintas
matrizes. Quando os sistemas se modificavam, havia previsões legais
que indicavam regras de transição, formas de compensação e visões das
mais diversas, premissas que, quando analisadas em perspectiva histó‑
rica, constituem verdadeiras cartas programáticas do que se almejava
para o Brasil enquanto projeto de país.
O trabalho apresenta um setor orgânico, pujante, com iniciati‑
vas públicas e privadas ricas em percepções e de complexa organici‑
dade. A linha que separa as iniciativas políticas daquelas técnicas e
jurídicas nem sempre é de imediata percepção, mas parte­‑se do pres‑

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Curso de Direito da Energia

suposto de que existem e devem ser valorizadas na busca de um re‑


gime jurídico próprio.
A presente obra demonstra ainda que alguns entendimentos seto‑
riais notabilizados ao longo dos anos não se sustentam quando de‑
frontados com a realidade dos documentos normativos históricos,
muitos mantidos nesta obra em sua íntegra ou registrados em notas de
rodapé, seja pelo ineditismo desses conhecimentos na sociedade ho‑
dierna, seja pela riqueza de detalhes que refletem com clareza os pro‑
pósitos de determinado momento. É comum identificar no setor
energético afirmações no sentido de apontar o Código de Águas como
a origem do setor elétrico, a Petrobras como início da indústria petro‑
lífera brasileira e o Proálcool enquanto princípio dos biocombustí‑
veis. Entretanto, o Brasil conta com uma regulação setorial centenária,
com a busca de desenvolvimento tecnológico já identificado no Perío‑
do Monárquico e com uma grande riqueza normativa na República
Velha, que já regulamentava, em maior ou menor intensidade, os três
segmentos elencados.
Logo, a profundidade das mudanças realizadas nos governos do
presidente Getúlio Vargas, que encontrou no conciso sistema de codi‑
ficações, na federalização do sistema elétrico e na criação da Petrobras
seus principais marcos jurídico­‑setoriais, em que pese serem elementos
fundamentais de inflexão, não corresponde à criação do setor energéti‑
co, mas sim a uma etapa na edificação de um sistema de outorgas mine‑
rais que remonta ao sistema de propriedade intelectual e de iluminação
pública, ambos instituídos na Monarquia.
Há ainda a busca de se identificar a real repercussão que pessoas
e empresas estrangeiras tiveram no país ao longo do tempo, sobretu‑
do a então canadense Light, no início do século XX, bem como a in‑
tervenção de alguns renomados profissionais, como foi o caso de
Orville Derby, Alexander Mackenzie, Asa Billings e Walter Link,
que certamente fizeram diferença no desenvolvimento energético na‑
cional e polarizaram opiniões, assim como diversas empresas brasi‑

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

leiras, e em especial a Petrobras e a Eletrobras, bem como seus


respectivos profissionais, têm produzido atualmente nos países em
que se dispõem a atuar.
Deve­‑se destacar ainda que a presente obra obedece a critério meto‑
dológico interdisciplinar entre Geociências e o Direito, que comumente
denominamos Geodireito. Difundida na comunidade anglo­‑saxã como
Law & Geography, sua atual raiz constitucional no Brasil pode ser
identificada nas competências da União para organizar e manter os ser‑
viços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito
nacional (art. 21, XV, CF), sendo privativo legislar sobre sistema esta‑
tístico, cartográfico e geológico (art. 22, XVIII, CF) e sendo facultado
articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico para reduzir
desigualdades regionais (art. 43, CF).
Afinal, os recursos naturais têm íntima ligação com a exploração
geológica. O planejamento deve estar conjugado a premissas geográ‑
ficas, bem como às informações expedidas pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE. O interesse público consubstanciado
no Direito confere os mecanismos que estas disposições tomaram ao
longo do tempo. Ao considerar a região uma dimensão geográfica, a
relação entre energia e desenvolvimento regional, iniciada com a cria‑
ção da Chesf em 1945 como elemento de desenvolvimento da bacia
do rio São Francisco, replicada no rio Paraná com Itaipu e, recente‑
mente, no rio Xingu com Belo Monte, reforça o caráter geojurídico
do setor energético.
O Tomo I – Da História traz em seu bojo uma estruturada “car‑
tografia normativa histórica”, que, disposta em ordem cronológica e,
dentro de cada período, dividida tematicamente, indica a existência de
cinco grandes momentos da evolução do Direito da Energia no Brasil:
(i) O período monárquico no Brasil (1822­‑1889); (ii) a energia en‑
quanto interesse local (1889­‑1934); (iii) a Federalização e a uniformi‑
zação normativa (1934­‑1945); (iv) a Estatização e o desenvolvimento
regional (1946­‑1993); e (v) a Regulação e Competição (desde 1990),

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Curso de Direito da Energia

sendo este último período subdividido entre o primeiro e o segundo


modelo energético. Acreditamos que cada um desses períodos contém
elementos suficientes para serem refletidos como regimes jurídicos
distintos e sucessivos. Salvo o período de federalização e o de regula‑
ção, que talvez sejam aqueles que mais se aproximaram de uma ruptu‑
ra de fato com o regime jurídico anterior, nenhum outro período
constituiu uma novação jurídica total, correspondendo a uma conti‑
nuidade normativa com adaptações sobre o que cada governo enten‑
dia como “interesse público”.
Há ainda uma sexta parte, intitulada “Perspectivas do mercado
energético brasileiro”, em que se busca apontar possíveis direções que
o Direito da Energia deve acompanhar nas próximas décadas, seja en‑
quanto elemento de organização da sociedade brasileira, que tem alme‑
jado se tornar a maior potência energética e alimentar mundial, seja no
intuito de identificar elementos que demonstrem as formas de intera‑
ção da sociedade perante essa realidade.
Assim, o presente livro busca suprir algumas necessidades seto‑
riais, como buscar uma compreensão jurídica do sistema eletricidade­
‑hidrocarbonetos­‑recursos hídricos em sua dimensão energética,
minimizar a ausência de compreensão histórica do sistema jurídico
em energia, apontar os níveis de comprometimento institucional com
as necessidades energéticas e identificar uma epistemologia setorial
em um momento no qual o Brasil se prepara para exercer uma in‑
fluência internacional compatível com suas dimensões econômicas,
políticas e territoriais.

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1
O período monárquico no Brasil
(1822­‑1889)

Não se concebe o pensamento sobre o emprego intensivo


da energia sem utilizar a Revolução Industrial como grande
momento de inflexão na história da humanidade. As mudanças
tecnológicas, ocorridas inicialmente na Inglaterra da primeira
metade de século XVIII, produziram uma nova divisão de tra‑
balho social que até hoje produz consequências que necessitam
ser acomodadas nos planos econômico, social, ambiental e ju‑
rídico. A origem inglesa dessa revolução, que referenciou aque‑
le país como a grande potência mundial naquele período, se
justifica por diversos fatores, dentre eles a obtenção de vários
acordos comerciais economicamente vantajosos perante outros
países, grandes reservas de ferro e carvão mineral em seu sub‑
solo e uma iniciativa privada capitalizada, com métodos pró‑
prios de gestão e tecnologia avançada.
No que concerne às relações internacionais entre a In‑
dependência do Brasil (1822) e o fim do Estado Novo (1945),
esse período foi marcado pela hegemonia militar, tecnológi‑
ca e econômica britânica, substituída pela norte­‑americana
no final do período, e pela expansão colonialista na África
e na Ásia, de forma que as nações europeias buscavam obter
reserva de mercado para seus produtos industrializados.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Os ingleses, no período que denominam “Era Vitoriana” (1837­


‑1901), obtiveram uma liberalização sem precedentes de mercados
mundo afora, fato que teve suas implicações no Brasil. Pinto junior
descreve algumas das principais mudanças tecnológicas causadas
pela Revolução Industrial.

No cerne dessa Revolução encontrava­‑se uma sucessão inter­


‑relacionada de mudanças tecnológicas:
1. Substituição da habilidade e do esforço humano pelas máquinas
– rápidas, constantes, eficientes e incansáveis;
2. Substituição das matérias­‑primas vegetais ou animais por mine‑
rais e melhora acentuada nos métodos de extração e transforma‑
ção; especialmente no que hoje se conhece como indústrias
metalúrgica e química;
3. Substituição das fontes animadas de energia – dos homens e dos
animais – pelas fontes inanimadas; em especial a introdução de
máquinas para transformar o calor em trabalho, dando ao homem
acesso a um suprimento novo e quase ilimitado de energia.1

A relação entre Brasil e Inglaterra foi muito intensa no período


imperial. No momento em que a família real portuguesa chega ao Rio
de Janeiro em 1808, de forma a preservar o império português mesmo
com a ocupação napoleônica em Lisboa, o primeiro ato de D. João VI
foi expedir a Carta Régia n. 0­‑001, de 23 de janeiro de 1808, que abriu
os portos do Brasil ao comércio direto estrangeiro. No mesmo ano,
foram conferidas autorizações para instalação de fábricas no Brasil
que, por conseguinte, necessitariam de energia em seu processo produ‑
tivo. Em 1810, antes da independência, foi firmado contrato comercial
com a Inglaterra fixando em 15% a carga tributária para importação de
mercadorias inglesas por 15 anos.

1
PINTO JUNIOR, Helder Queiroz. Economia da energia: fundamentos
econômicos, evolução histórica e organização industrial. Rio de Janeiro: Elsevier,
2007. p. 2.

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Curso de Direito da Energia

Após a independência em 1822, somente reconhecida por Portugal


em 1825, a Lei s/n, de 24 de setembro de 1828,2 fixou em 15% a impor‑
tação de produtos estrangeiros. Essa medida ainda foi insuficiente para
industrializar o país, que majorou o percentual somente em 1844 com
a tarifa Alves Branco, que ampliou as taxas de importação para 20%
sobre produtos sem similar nacional e 60% sobre aqueles com similar
nacional. Com o mercado interno protegido, era a primeira medida
que, de fato, obteve a eficácia possível na industrialização de um país
escravagista, ou seja, sem base real de mercado consumidor.
Em 1850, foi assinada a Lei n. 581, de 4 de setembro, conhecida
como Lei Eusébio de Queiroz, que proibiu a importação de escravos3

2
Lei de 24 de setembro de 1828.
Taxa em quinze por cento para todas as nações, os direitos do importação de qua-
esquer mercadorias e generos estrangeiros.
D. Pedro, por Graça de Deus, e unanime acclamação dos povos, Imperador
Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os nossos
subditos que a Assembléa Geral decretou, e Nós queremos a Lei seguinte:
Art. 1o Os direitos de importação de quaesquer mercadorias, e generos estran‑
geiros, ficam geralmente taxados para todas as nações em quinze por cento, sem
distincção de importadores, em quanto uma Lei, não regular o contrario.
Art. 2o Ficam revogadas as disposições, que se oppuzerem ás da presente Lei.
Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento, e execução
da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteira‑
mente como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios da Fazenda
a faça imprimir; publicar e correr. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 24 dias
do mez de Setembro do anno de 1828, 7o da Independencia e do Imperio.
IMPERADOR, com rubrica e guarda.
3
Art. 1o As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras
encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriaes do Brasil,
tendo a seu bordo escravos, cuja importação he prohibida pela Lei de sete de
Novembro de mil oitocentos trinta e hum, ou havendo-os desembarcado, serão
apprehendidas pelas Autoridades, ou pelos Navios de guerra brasileiros, e
consideradas importadoras de escravos. Aquellas que não tiverem escravos a
bordo, nem os houverem proximamente desembarcado, porêm que se
encontrarem com os signaes de se empregarem no trafico de escravos, serão
igualmente apprehendidas, e consideradas em tentativa de importação de escravos.

37

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

e considerou a atividade como ato de pirataria.4 Em que pese estancar


o fluxo internacional de escravos, houve a intensificação do tráfico in‑
terprovincial, fluxo caracterizado pelo esvaziamento da atividade ca‑
navieira da região Nordeste rumo à cafeicultura no Sudeste, que
igualmente estimulou a entrada de mão de obra imigrante assalariada
no Brasil. A Guerra da Secessão nos Estados Unidos (1861­‑1865) favo‑
receu o crescimento da indústria têxtil e da cultura do algodão, de for‑
ma que, no final do Período Imperial, o país já contava com quase 600
estabelecimentos industriais que, em maior ou menor quantidade, ne‑
cessitavam de energia para a constituição de seu processo produtivo.
Aspectos gerais à parte, para que seja possível identificar a origem
dos institutos afeitos a energia no sistema jurídico brasileiro, torna­‑se
imprescindível realizar uma breve análise constitucional para identifi‑
car o tratamento que a matéria recebe ao longo do tempo.
A Constituição de 1824, enquanto primeira Carta a reger o
país pós­‑independência, não tinha previsão expressa sobre o em‑
prego da energia no Brasil. Não é para menos. Recém­‑saído da
condição de colônia portuguesa, com a totalidade de sua mão de
obra advinda de mãos escravas, não se pensava, inicialmente, no
emprego da energia de forma intensiva, fato que só começou a ga‑
nhar contornos com a propagação das benesses da Revolução In‑
dustrial no país.
Todavia, dois dispositivos dessa Constituição foram centrais para
apoiar o sistema jurídico que seria necessário para desenvolver as ma‑
trizes energéticas. Ambos se encontravam no art. 179, que tratava da

Art. 2o O Governo Imperial marcará em Regulamento os signaes que devem


constituir a presumpção legal do destino das embarcações ao trafico de escravos.
4
Art. 4o A importação de escravos no territorio do Imperio fica nelle considerada
como pirataria, e será punida pelos seus Tribunaes com as penas declaradas no
Artigo segundo da Lei de sete de Novembro de mil oitocentos trinta e hum. A
tentativa e a complicidade serão punidas segundo as regras dos Artigos trinta e
quatro e trinta e cinco do Codigo Criminal.

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Curso de Direito da Energia

inviolabilidade dos direitos civis e políticos e garantia o direito à pro‑


priedade, nos seguintes termos:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Ci‑


dadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança indivi‑
dual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela
maneira seguinte.
[...]
XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua pleni‑
tude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego
da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do va‑
lor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excep‑
ção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.
[...]
XXVI. Os inventores terão a propriedade das suas descobertas,
ou das suas producções. A Lei lhes assegurará um privilegio exclusivo
temporario, ou lhes remunerará em resarcimento da perda, que hajam
de soffrer pela vulgarisação.

Assim, o desenvolvimento da energia no início do período monár‑


quico obedeceu à lógica de um país que beirava 3,5 milhões de habitan‑
tes, com a estimativa de 70% de mão de obra escrava. Logo, em um
ambiente de baixa densidade demográfica e fartos recursos naturais, o
emprego da energia era realizado de forma extensiva, por meio da
queima de madeira das abundantes florestas para as atividades domés‑
ticas, a tração animal como transporte terrestre e o emprego dos ventos
para a navegação oceânica e ribeirinha.
Ao inaugurar todo um período de expansão do emprego da
energia secundária, o direito colocou­‑se de imediato na regulamen‑
tação do setor energético, que pôde ser percebido em dois segmen‑
tos primordiais: (i) o emprego dos materiais e das inovações
tecnológicas até então percebidas, que buscaram tutela nas leis de

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

patentes e de inovações industriais; e (ii) a geração de utilidades,5


consubstanciada na concepção da cadeia produtiva que envolvia a
produção e distribuição energética, que no setor elétrico foi ini‑
cialmente denominada monopólio de área,6 conceito que produz
um critério espacial no Direito da Energia e que pode ser identifi‑
cado como a origem da interdisciplinaridade entre Geociências e
Direito, que comumente denomina­‑se Geodireito, no setor elétri‑
co brasileiro.
No reinado de D. Pedro II (1840­‑1889), momento em que: (i) o
café era o principal produto de exportação do país; (ii) havia uma de‑
cadência da indústria açucareira no Nordeste; (iii) o algodão contava
com um crescimento cíclico pela alta aderência ao mercado norte­
‑americano, que muito importava quando em guerra civil; (iv) havia
um surto industrial ocasionado pelos investimentos diretos da
Inglaterra;7 e (v) havia o fim do tráfico negreiro internacional,8 que
acabou por desviar recursos para áreas de produção; o país passou a
ter condições objetivas de incentivar a indústria energética, indepen‑
dentemente da origem do capital, pois era inviável implementar gran‑
des investimentos em infraestrutura se a mão de obra não era
remunerada e, por conseguinte, não poderia usufruir das benesses que
o emprego energético conferia.
Com a previsão do art. 179, que garantia o direito de propriedade,
incluindo o subsolo, de total gozo e usufruto do proprietário, ressalva‑
das as hipóteses de interesse público, no qual o proprietário seria obri‑

5
Para mais informações, LOUREIRO, L. G. K. A indústria elétrica e o Código de
Águas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007.
6
Importante notar que aquele que posteriormente foi denominado “monopólio
natural” inicialmente tinha uma terminologia que remetia a uma dimensão
geográfica, espacial. Era denominado “monopólio de área”.
7
Lei das S.A. inglesa (1853).
8
Lei Eusébio de Queiroz, de 1850.

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Curso de Direito da Energia

gatoriamente indenizado,9 bem como a garantia aos inventores da


obtenção da propriedade das suas descobertas, ou das suas produções,
possibilitou um crescimento da indústria de energia, ainda que inci‑
piente, na segunda metade do século XIX. Na internalização dos con‑
ceitos adotados na Revolução Industrial, o Brasil começou,
gradualmente, a empregar o carvão mineral nas atividades industriais,
de transporte e de iluminação.
Pode ser utilizada como exemplo desse momento de desenvolvi‑
mento energético a inauguração, em 1879, da Estação Central da Es‑
trada de Ferro D. Pedro II, atual Estrada de Ferro Central do Brasil,
a primeira instalação de iluminação elétrica permanente do país. Em
1881, foi instalada a primeira iluminação externa pública do país pela
Diretoria Geral dos Telégrafos, na cidade do Rio de Janeiro. Poste‑
riormente, foi construída a primeira hidrelétrica do país em Dia‑
mantina, Estado de Minas Gerais, em 1883, em afluente do rio
Jequitinhonha. No mesmo ano, foram inauguradas as primeiras li‑
nhas de bondes elétricos em Niterói, e a primeira rede elétrica de
iluminação pública, em Campos, ambas no Rio de Janeiro, seguidas
em 1885 pelo Município de Rio Claro, Estado de São Paulo, em 1887
por Porto Alegre e pelo Rio de Janeiro. Em 1889, São Paulo foi do‑
tada da termelétrica da Água Branca.
Os empreendimentos eram realizados para alcançar determinada
finalidade, geralmente de iluminação pública, de transporte ou atendi‑
mento de finalidade industrial, sendo implementados de forma difusa
e isolada. Assim, as características desses empreendimentos era atender
a uma necessidade local, seja atrelada à segurança (iluminação pública),
seja para prestar serviço ao poder público municipal ou mesmo a de‑
terminadas atividades do setor primário. Esses conceitos estavam mui‑
to longe das caracterizações de essencialidade que a energia elétrica
obteria a partir do final do século XX.

9
Para mais detalhes, ver PIRES, Paulo Valois. A evolução do monopólio estatal do
petróleo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

41

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

1.1 Regime jurídico das águas10


Por influência das Ordenações do Reino de Portugal, por meio
dos códigos Manuelino e Affonsino, bem como as declarações de di‑
reito formuladas por Dom Duarte, os rios públicos integravam o patri‑
mônio real, que exercia sobre eles sua autoridade. Até aquele momento
histórico, a grande utilidade dos rios era decorrente do consumo hu‑
mano, em especial para as atividades voltadas à agricultura e pecuária,
bem como à navegação.
Com base nessa interpretação, os súditos começaram a se opor e a
explorar esse bem de forma indiscriminada. Ante a aludida realidade,
foi expedido o Alvará de 27 de novembro de 1804, que conferia ao
proprietário da terra ribeirinha direito de fazer canais ou levadas para
regar suas terras, requerendo ao juiz competente a designação do lugar
mais apropriado, ainda que em terreno alheio, cujos donos seriam in‑
denizados dos prejuízos que porventura sofressem.
Logo, além de fixar um direito real de exploração da água aos
proprietários ribeirinhos, aparece no Alvará a origem dos institutos da
desapropriação e da servidão de passagem, ao prever a intervenção no
direito de propriedade de terceiros. Era a servidão de aqueduto, que
independia de autoridade régia e que teve aplicação no Brasil a partir
de 1819, sendo vigente até a Constituição de 1824. Era prerrogativa da
Coroa definir tais direitos reais, que passaram a ser de domínio nacio‑
nal, sendo seu uso permitido a todos, observadas as disposições de po‑
lítica administrativa, acerca de sua navegação, pesca e outras utilidades
que pudessem prestar, ressalvados os direitos adquiridos de terceiros
decorrentes de ocupação prévia ou justo título.
O discrímen da propriedade pública e privada concentrava­‑se na
navegabilidade. Assim, todos os rios que fossem navegáveis, natural ou
artificialmente, em todo o seu curso ou parte dele, por embarcações
de quaisquer natureza ou espécie, inclusive jangadas, pranchas e balsas

10
A base do texto foi extraída de Francisco de Castro Júnior, O domínio das águas
e a energia elétrica. Domínio público, 1909.

42

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Curso de Direito da Energia

de madeira, seriam considerados públicos, sendo privados aqueles que


não atendem a esses requisitos ou que a nascente e a foz estejam dentro
de uma mesma propriedade particular.
Nesse sentido, a Lei de 29 de agosto de 182811 declarou que todas
as obras tendentes a promover a navegação dos rios, quando privati‑

11
Lei de 29 de agosto de 1828.
Estabelece regras para a construcção das obras publicas, que tiverem por objecto
a navegação de rios, abertura de canaes, edificação de estradas, pontes, calcadas
ou aqueductos.
D. Pedro I, pela Graça de Deus, e unanime acclamação dos povos, Imperador
Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os nossos
subditos que a Assembléa Geral decretou, e Nós queremos a Lei seguinte:
Art. 1o As obras, que tiverem por objecto promover a navegação dos rios, abrir
canaes, ou construir estradas, pontes, calçadas, ou aqueductos, poderão ser
desempenhadas por emprezarios nacionaes, ou estrangeiros, associados em
companhias, ou sobre si.
Art. 2o Todas as obras especificadas no artigo antecedente, que forem pertencentes
á provincia capital do Imperio, ou a mais de uma provincia, serão promovidas
pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Imperio; as que forem
privativas de uma só provincia, pelos seus Presidentes em Conselho; e as que
forem do termo de alguma cidade, ou vida, pelas respectivas Camaras Municipaes.
Art. 3o Logo que alguma das sobreditas obras fôr projectada, as autoridades, a
que competir promovel-as, farão levantar a sua planta e plano, e orçar a sua
despeza por engenheiros, ou pessoas intelligentes, na falta destes.
Art. 4o A planta, e orçamento da despeza da obra, se affixarão nos lugares
publicos mais vizinhos della, por um a seis mezes; convidando-se os cidadãos a
fazerem as observações, e reclamações, que convierem.
Art. 5o Approvado o plano de alguma das referida, obras, immediatamente será
a sua construcção offerecida a emprezarios por via de editaes publicos; e havendo
concurrentes, se dará a preferencia a quem offerecer maiores vantagens.
Art. 6o No contracto com os emprezarios se expressará, além das mais condições que
se convencionarem: primeiro, o tempo, dentro do qual a obra deverá ser principiada,
e acabada; segundo, o interesse, que os emprezarios devem perceber em compensação
das suas despezas: e este poderá consistir no direito exclusivo da taxa da navegação
dos rios, ou canaes, que se abrirem; na acquisição dos terrenos alagadiços, que, por
beneficio de taes obras, se aproveitarem; não sendo de propriedade particular; ou no
direito de cobrar certa e determinada taxa do uso da obra, que fizer o objecto da
empreza por certo numero de annos, que se entender necessario para a amortização

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vos de uma só vila ou cidade, de uma só província ou de mais de uma,


seriam de competência das Câmaras municipais, dos Presidentes das
Províncias e do Ministro do Império, respectivamente. O Ato Adicio‑
nal de 1834,12 que alterou a Constituição de 1824, conferiu às assem‑

do capital empregado na obra, com os seus competentes interesses.


Art. 7o A somma do capital, que pelo orçamento da despeza se calcular ser necessario
para a construcção da obra, servirá de base para se fixar o quantitativo da taxa.
Art. 8o Ao fixar-se o quantitativo da taxa cobravel de cada pessoa, que usar da
obra, haverá a necessaria differença, quanto ás estradas, pontes, e calçadas, entre
pedestres, e cavalleiros, as differentes especies de animaes, e os differentes
vehiculos, que por estas passarem; quanto aos rios, e canaes, entre barcos maiores
e menores; e quanto aos aqueductos das aguas para uso das povoações (cuja taxa
se cobrará por fogos), entre o maior, e menor consumo, que cada casa fizer,
tendo-se sobretudo em vista as possibilidades, e circumstancias dos moradores.
Art. 9o Os emprezarios serão obrigados a desempenhar as emprezas, de que se
encarregarem, segundo o plano approvado, e dentro do tempo, que se ajustar,
debaixo da pena de pagarem uma multa, que será estipulada nos contractos.
Art. 10. Os mesmos emprezarios só poderão principiar a cobrar a taxa do uso, e de
passagem, depois que a obra estiver concluida; mas se a mesma taxa se dever cobrar
em diversos pontos, ou barreiras determinadas, poderão receber as quotas
respectivas a estas, logo que as partes da obra relativas aos mesmos lugares ficarem
ultimadas, principiando a contar-se o tempo, neste caso, desde que começar a
cobrança, e cessando esta, ainda que não tenha cessado a das outras partes da obra.
Art. 11. O direito de cobrar as taxas de uso, e de passagem, prescreve a favor das
pessoas, que as deverem pagar, no mesmo momento em que se tiverem posto
fóra do alcance da vista das barreiras, aonde as mesmas taxas se cobrarem,
excepto se tiverem passado por força, porque neste caso serão condemnadas a
pagar o duplo da importancia da taxa imposta no Juizo dos Juizes de Paz; além
das acções, ou correcções criminaes, que podem, e deverem ter.
Art. 12. As obras depois de concluidas serão entretidas em estado de perfeita
conservação á custa dos emprezarios todo o tempo, que durar o direito de cobrar
a taxa de uso, e de passagens das mesmas obras.
Art. 13. Findo o prazo do contracto, as autoridades, a quem competir, poderão
contractar a conservação das obras, reduzindo as taxas do uso, e de passagem,
com quem offerecer melhores vantagens.
12
Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834
Faz algumas alterações e addições á Constituição Politica do Imperio, nos termos
da Lei de 12 de Outubro de 1832.

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bleias legislativas provincianas o direito de legislar sobre as obras e a


navegação no interior da respectiva província. Todavia, essa autono‑
mia provincial não era bem recebida por parte significativa da Corte,
pois poderia ser utilizada como instrumento de financiamento de
pretensões separatistas pelo poder público provincial e pelo empresa‑
riado local.
Assim, com a promulgação da Lei n. 105, de 1840, concomitante
ao término do Período Regencial, decorrente da declaração de maiori‑
dade de D. Pedro II, houve um forte movimento de centralização dos
poderes no Rei, por meio de grande limitação das autonomias provin‑
ciais e municipais. Com essa situação vigendo durante todo o restante
do período monárquico brasileiro, em que o aproveitamento hídrico
estava centralizado nas mãos da Coroa e havia a vigência de uma sofis‑
ticada legislação de propriedade intelectual, nada mais natural que o
nascente setor energético nacional brotasse de forma descentralizada,
sob o regime de patentes e com a necessidade dos municípios em pro‑
mover seu desenvolvimento com a autonomia que lhe restara.

1.2 Energia enquanto matéria de propriedade intelectual


O Brasil vivia seus anacronismos desde sua origem enquanto Esta‑
do soberano. Ao mesmo tempo em que foi um dos últimos países do
mundo a abolir a escravatura, foi de grande pioneirismo no que con‑
cerne a proteção intelectual. Pode­‑se considerar como primeiro instru‑
mento de propriedade industrial do Brasil a Lei s/n, de 28 de agosto de
1830,13 que assegurava ao descobridor ou inventor de uma invenção

Art. 10. Compete ás mesmas Assembléas legislar:


[...]
§ 8o Sobre obras publicas, estradas e navegação no interior da respectiva
Provincia, que não pertenção á administração geral do Estado.
13
Importante destacar que houve o Alvará, de 28 de janeiro de 1809, que tratava
sobre propriedade intelectual. Todavia, naquele período, o Brasil ainda era colô‑
nia de Portugal.

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sua respectiva propriedade, bem como o uso exclusivo da sua desco‑


berta ou invenção.
Em um período no qual o vapor era empregado na matriz energé‑
tica, destinado a substituir a força dos ventos e dos remos na navega‑
ção, pode­‑se perceber pelo sistema de propriedade intelectual
brasileiro as primeiras iniciativas em se obter uma solução alternativa a
essas matrizes. Duas Cartas Imperiais, a primeira em 20 de julho de
183314 e a segunda em 16 de agosto do mesmo ano,15 demonstram os
interesses da Regência Imperial em diversificar a matriz energética para
os transportes. A mesma conduta foi seguida para o aumento da cons‑
trução de embarcações no país, com concessões, autorizações e privilé‑
gios concedidos pelo Imperador.
Assim, o Brasil, que se tornara o quarto país do mundo a prote‑
ger os direitos de propriedade do inventor,16 encontrou o auge desse
sistema na década de 1870. Além de ter participado das duas princi‑
pais conferências sobre o tema no século XIX (Viena, 1873; e Paris,
1878), de forma que foi publicada a segunda lei de patentes por força
da Lei n. 3.129, de 14 de outubro de 1882, D. Pedro II deve ainda ser
reconhecido por introduzir no Brasil, no final da década de 1870, os
combustores de gás aperfeiçoados, o “carvão artificial” enquanto
aproveitamento da lenha, os geradores de eletricidade e abrir o cami‑
nho para desenvolver os sistemas de eletricidade no início da Repú‑
blica, por intermédio da concessão de privilégio à Sociedade Geral de

14
Concede a Henrique José de Medeiros Calumbreiro Góes o privilegio exclusivo,
por dez annos, de uma machina de sua invenção para fazer navegar qualquer
embarcação, ainda sem vento, ou sendo elle contrario.
15
Concede a Belchior Corrêa da Camara o privilegio exclusivo, por 10 annos, pela
invenção, de fazer andar qualquer embarcação de lote ordinario, sem o emprego
de vapor, remos, ou velas.
16
Considera-se que essa vanguarda foi antecedida pelo Estatuto dos Monopólios
inglês, de 1623; pela lei norte-americana de proteção intelectual de 1790 e pela lei
francesa de privilégio de invenção, de 1791.

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Eletricidade, que desejava introduzir no Império sistema de ilumina‑


ção elétrica.
Há ao menos três patentes que merecem destaque. A primeira
consiste na introdução da energia eólica enquanto matriz energética
em 1873, por meio do aparelho denominado Pantanemone Helicolda.
A segunda deve­‑se a concessão a Thomas Edison, em 1879, para intro‑
duzir no Império o uso da luz elétrica. Por fim, em 1880 foi possibili‑
tado o emprego no país do primeiro carburador. Essa vanguarda ainda
pode ser observada no fato de que, em matéria de propriedade intelec‑
tual, o Brasil foi um dos 11 signatários da Convenção Internacional
para a Proteção da Propriedade Industrial, vulgo “Convenção de Pa‑
ris”, firmada em 20 de março de 1883.
Todavia, existem ainda vertentes do desenvolvimento da ener‑
gia no Período Imperial que precisam ser analisadas em separado.
O capitalismo brasileiro dessa época se confunde, muitas vezes,
com o exercício das atividades econômicas do Visconde, e poste‑
riormente, Barão de Mauá, que necessita de uma análise em aparta‑
do. Por seu turno, a natureza local das concessões de iluminação
pública, inicialmente a gás, merece igual destaque, de forma que
possamos unificar a origem do Direito da Energia no Brasil, de
procedência difusa e motivada principalmente pelo peculiar inte‑
resse das províncias.

1.3 Barão de Mauá e a origem da infraestrutura brasileira


O capitalismo exercido no Império se confunde muitas vezes com
a história pessoal do gaúcho Irineu Evangelista de Souza, o Barão de
Mauá. Sem adentrar em sua ampla biografia, se for tomada como base
a proibição do tráfico interatlântico de escravos realizada pela Lei Eu‑
sébio de Queiroz, de 4 de setembro de 1850, momento em que se passa
a investir na industrialização do país em vez de empregá­‑lo na comer‑
cialização de escravos, Barão de Mauá passa a acumular um conjunto
empresarial ímpar, maior inclusive que os ativos do Império Brasileiro,

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que em seu conjunto pode ser identificado como a origem da infraes‑


trutura nacional, como atualmente a concebemos.17
De origens simples, Barão de Mauá já era o maior empresário bra‑
sileiro antes de investir no setor de energia. Leite dimensiona a impor‑
tância do empresário para esse período da história.

O que aconteceu em termos econômicos e empresariais, no curto


período de 1846 a 1854, esteve vinculado ao Barão de Mauá, que tendo
feito fortuna no comércio decidiu pôr em prática ambicioso plano de
industrialização do Brasil. Começou pela aquisição de uma pequena
fundição e estaleiro na ponta da Areia, em Niterói, onde também in‑
corporou operários europeus especializados, ao lado da preexistente
força de trabalho escravo. Ali se construíram navios movidos a vapor,
equipados com caldeiras onde se queimava carvão mineral. Pouco de‑
pois ganhou, em 1849, a concorrência aberta pelo governo para ilumi‑
nação a gás, a ser produzido com carvão mineral e que atenderia a
parte central do Rio de Janeiro. Reuniu, para esse fim, sócios aqui e na
Inglaterra, para a formação da empresa que realizaria os serviços. A
inauguração do sistema ocorreu em 1854, iniciando­‑se aí a substituição
da iluminação pública a azeite de peixe pela iluminação a gás.18

Em que pese ter se destacado no setor de transportes, principal‑


mente com a construção de navios e linhas de trens, e de ter uma
fundição em Niterói que em 1845 produzia, dentre outras coisas,
postes para iluminação pública, o ingresso formal do Barão de Mauá
no setor de energia se procedeu com o Decreto n. 1.179, de 1853, que
aprovou os estatutos da “Companhia da Illuminação a Gaz” capita‑
neada por Mauá e que representaria seus interesses perante o Império
nos termos do contrato firmado enquanto pessoa física junto ao go‑

17
A fortuna de Mauá, em 1867, era de 115 mil contos de réis, enquanto o orçamen‑
to do Império do Brasil para aquele ano era de 97 mil contos de réis. Mauá fale‑
ceu, aos 76 anos de idade, em sua casa de Petrópolis poucas semanas antes da
queda do Império. É atualmente o patrono do Ministério dos Transportes.
18
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

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verno em 11 de março de 1851. No que tange a energia, além de ter


firmado esse contrato, Mauá também obteve lavras de carvão no Rio
Grande do Sul.
Mauá inaugurou a iluminação pública no Rio de Janeiro em
1854 e vendeu sua empresa no ano seguinte, de forma a se capitalizar
para criar a instituição financeira Mauá­‑MacGregor & Cia. Por suas
ideias contrárias à escravidão e pelo caráter liberal adquirido por sua
experiência em Londres, Mauá se distanciava do pensamento da elite
imperial. Nesse ponto, a Questão Platina se mostrou o principal
atrito entre o pensamento de Mauá e o do Império. A Questão ocor‑
reu em Montevidéu, capital do Uruguai, recém­‑criado em 1828, que
sofria embargo militar da Argentina desde 1843. A fronteira meri‑
dional brasileira, com isso, estava vulnerável a incursões argentinas
que, igualmente, bloqueavam o rio da Prata e impediam o Brasil de
acessar os sertões de Mato Grosso. Nesse cenário, o Brasil interveio
com a ajuda de Mauá com o objetivo de neutralizar os argentinos.
Em 1852, foram firmados tratados entre Montevidéu e o Rio de Ja‑
neiro, no qual Mauá se tornou a grande face brasileira na Cisplatina
por investir em estaleiros, fazendas e por ter o maior banco do Uru‑
guai, que, bem gerido, provocou consistente crescimento econômico
naquele país.
Esse crescimento incomodou os argentinos, que em crise econô‑
mica temiam um alinhamento de suas províncias setentrionais ao Uru‑
guai. Assim, em 1862 os argentinos se alinharam aos gaúchos, que
também enfrentavam a prosperidade econômica uruguaia e viam seus
interesses serem afetados pelos uruguaios, que por sua vez estavam ali‑
cerçados por créditos financeiros conferidos pelo banco de Mauá de
Montevidéu. Com a pressão argentina e brasileira, inflada a pedido dos
gaúchos, pouco restou a Mauá a não ser buscar a contemporização do
Império com seus investimentos aportados no Uruguai, tentativa na
qual não obteve êxito e que, em última análise, culminou com a quebra
de suas empresas.

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1.4 Iluminação pública: do gás à energia elétrica


A iluminação pública, que consiste na implementação de sistema
tecnológico para clarear artificialmente e de forma controlada as áreas
públicas das cidades no período noturno, é algo existente desde os pri‑
mórdios da civilização. As primeiras lâmpadas aquecidas a óleo foram
identificadas na Mesopotâmia antiga, na qual há registros do emprego
de iluminação artificial nas cidades da Babilônia e de Ur. Desde então,
em que pesem todos os avanços tecnológicos, o emprego da ilumina‑
ção pública no século XIX continuava a depender, basicamente, da
combustão, ou seja, da transformação de combustíveis sólidos ou lí‑
quidos em calor e luz.
A regulamentação do emprego da iluminação enquanto interesse
público em prover suas cidades advém da própria necessidade dos Es‑
tados contemporâneos de criar condições aos cidadãos de usufruir os
espaços públicos no período noturno com segurança. O aumento da
vida útil diária da cidade possibilita prevenir a criminalidade, o lazer
noturno e facilita a hierarquia viária.
No que concerne à origem da regulamentação dos serviços de ilu‑
minação pública, sob a concepção da Constituição de 1824, devem­‑se
observar duas características principais. A primeira consiste no fato de
que a iluminação pública não foi prevista como “interesse do Império”.
Assim, de forma reversa, deveria ser matéria a ser regulamentada pelas
atribuições dos “Conselhos Geraes de Provincia”. O art. 81 previa a
possibilidade de esses conselhos deliberarem sobre projetos peculiares
às localidades.19 É importante frisar que, apesar de existirem municípios
no período monárquico brasileiro,20 a localidade foi uma expressão em‑

19
Art. 81. Estes Conselhos terão por principal objecto propôr, discutir, e deliberar
sobre os negocios mais interessantes das suas Provincias; formando projectos
peculiares, e accommodados ás suas localidades, e urgencias.
20
Art. 167. Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futu‑
ro se crearem haverá Camaras, ás quaes compete o Governo economico, e muni‑
cipal das mesmas Cidades, e Villas. Art. 168. As Camaras serão electivas, e

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pregada para que as províncias formassem seus projetos peculiares.


Logo, competia a cada localidade regulamentar, por meio de contrato, a
forma de se viabilizar a iluminação pública. A segunda característica,
por sua vez, é que não existia inicialmente a separação entre a ilumina‑
ção pública – o poste com a lâmpada – e o fornecimento de energia, pois
cada lampião era aceso manualmente. Logo, o serviço era considerado
indivisível e regido pelas regras de direito privado.
Todavia, o Imperador criou, por intermédio de Decreto, em 1828,
as primeiras condicionantes públicas para o exercício da atividade de
iluminação pública por um agente privado, a viger na capital do país. A
norma, que dispõe de dez cláusulas, pode ser considerada o primeiro
instrumento público nacional a regular a atividade de iluminação pú‑
blica. Ela concede a um particular a outorga, que se compromete a criar
uma sociedade, e fixa o número de lampiões, que o serviço deve ser
prestado todas as noites exceto naquelas em que houver luar, a remu‑
neração pelo serviço, dentre outras peculiaridades. Dado seu valor his‑
tórico, bem como o ineditismo da manifestação do interesse público
nacional pelo Império que restringe a atividade privada, toma­‑se a li‑
berdade de reproduzi­‑lo em sua íntegra.

Condições com que Antonio da Costa, subdito brazileiro, e ne‑


gociante na praça de Londres, se propõe formar uma companhia de
capitalistas brazileiros e inglezes, que tenha por fim fazer illuminar
a cidade do Rio de Janeiro por meio de gaz
I. Esta companhia ficará debaixo da immediata Protecção de Sua
Magestade o Imperador do Brazil, e lhe será permittido intitular­‑se
Imperial Companhia para a illuminação da cidade do Rio de Janeiro.
II. A mesma companhia será obrigada a fazer illuminar esta capi‑
tal com 1.500 lampeões, os quaes suspendidos em as convenientes co‑

compostas do numero de Vereadores, que a Lei designar, e o que obtiver maior


numero de votos, será Presidente. Art. 169. O exercicio de suas funcções munici‑
paes, formação das suas Posturas policiaes, applicação das suas rendas, e todas as
suas particulares, e uteis attribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar.

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lumnas de ferro serão collocados nos lugares, e nas distancias, que a


autoridade competente houver de designar; com tanto que não se es‑
tenda além daquellas ruas; ou caminhos, que constituem a cidade pro‑
priamente dita, e as suas mais proximas circumvizinhanças; e com
tanto outrosim que de lampeão a lampeão não haja espaço menor que
o de vinte braças, que é o alcance de cada columna ou lampeão de gaz.
III. A luz dos lampeões será fornecida, e entretida por meio de
gaz, e estarão accesos em todas as noites, que não forem de luar, desde
meia hora precisa depois do sol posto, até romper o crepusculo da ma‑
nhã; e nas que o forem durante todo aquelle espaço de tempo, que a lua
não preste claridade sufficiente. Uma tabella baseada na altura da lua
marcará fixamente quando os lampeões se devem acender, e por quan‑
to tempo o devem estar.
IV. O Governo de Sua Magestade Imperial pagará á companhia
pela luz dos referidos 1.500 lampeões a quantia de 60:000$000 annuaes,
que serão solvidos em quarteis de tres em tres mezes, não ficando o
Governo obrigado a adiantamento algum para a compra dos lampeões;
tubos, conductores, e gazometros, que são precisos, nem menos para
as obras necessarias para a sua collocação, porquanto será tudo á custa
da companhia.
V. Se fôr preciso, para melhor commodo e serviço dos habitantes,
e para maior segurança da cidade, augmentar­‑se o numero dos lampeões
além dos 1.500 do ajuste, a companhia será obrigada a fazel­‑o,
pagando­‑lhe o Governo mais 40$000 por anno para cada um lampeão.
VI. Durante o espaço, de vinte e dous annos, contados da data da
concessão á nenhuma outra pessoa, ou companhia será concedido o
fazer illuminar a cidade; por quanto durante aquelle periodo só esta
companhia o fará, gozando do privilegio exclusivo de só ella fornecer
luz por gaz a todas as lojas, armazens, vendas, theatros, estabelecimen‑
tos públicos, e casas da capital, que queiram participar desta commodi‑
dade, segundo a convenção que os resptivos [sic] proprietarios,
ingquilinos, administradores, e habitantes fizerem com a companhia,
ou seus agentes: ficando a segunda parte desta condição dependente da
approvação do Poder Legislativo.
VII. A companhia será obrigada a principiar a illuminação da ci‑
dade, o mais tardar, dous annos depois do decreto da sua concessão, e
acabal­‑a dentro de outros dous annos; e quando assim o não faça, se

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haverá desde logo a graça e privilegio por caduco e de nenhum effeito;


o que semelhantemente terá lugar toda a vez que a companhia falte a
alguma ou algumas das condições a que se obriga.
VIII. O Governo prestará á companhia todos os auxilios e provi‑
dencias, que requisitar para se preencherem os uteis fins, a que se pro‑
põe, e que forem conformes ao systema, e ás leis, que regem o Imperio.
IX.Todas as machinas, canos, lampeões, instrumentos, utensilios,
e quaesquer outros objectos, que a companhia mandar vir para a sua
empreza, serão isentos de direitos alguns, provando­‑se comtudo por
attestações juradas de seus Directores e agentes, como taes autoriza‑
dos, que esses objectos são effectivamente para o uso e emprego da
companhia: ficando a approvação desta condição dependente de um
acto do Poder Legislativo.
X. Os empregados e serventes da companhia serão isentos de
todo o serviço militar, assim da 1ª como da 2ª linha, e ainda das orde‑
nanças; bem entendido porém que, para gozarem dessa isenção, é in‑
dispensavel que se prove que não tinham praça em uma ou outra linha,
quando entraram para o serviço da companhia, a qual não abusará des‑
ta concessão, dando attestados a pessoas, que de facto não estejam em‑
pregadas activamente em seu serviço.
Palacio do Rio de Janeiro em 23 de Outubro de 1828. – José Cle‑
mente Pereira.

Em 1834, a iluminação pública do Rio de Janeiro ganha novos


contornos e investidores, de forma a ter maior clareza das competên‑
cias das unidades Imperiais. A companhia para a iluminação por gás
na cidade do Rio de Janeiro e seus subúrbios seria composta de capi‑
tal nacional e estrangeiro, devendo operar pelo menos 750 lampiões
suspensos em colunas de ferro, construídos de forma uniforme, ele‑
gante21 e colocados em locais a serem designados pela Câmara Muni‑
cipal. Nascia assim a concessão para iluminação pública que, em
1851, por força de contrato entre a Coroa e Barão de Mauá, aprovada
pelo Decreto n. 1.179, de 1853, representou um significativo ganho

21
Adjetivo original do Decreto.

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de escala e melhoria dos índices de qualidade, mesmo que ainda inci‑


pientes. Esse modelo de negócio se demonstrou próspero por quase
20 anos, até o final da década de 1850, de forma que foram permitidos
sucessivos aportes de capital a essa concessionária para suportar a
expansão do sistema.
Em 1861, por força do Decreto n. 2.809, foram aprovadas as ins‑
truções para a fiscalização e regime do serviço da iluminação a gás da
Corte brasileira. A Majestade estava preocupada com a qualidade dos
serviços prestados e criou o cargo não remunerado de “Inspetor de
Iluminação”, bem como autorizou o Chefe de Polícia, sempre que en‑
tendesse conveniente, comunicar ao Governo, para determinar ao Ins‑
petor da Iluminação que verificasse se a luz de determinado lampião
tinha o grau de intensidade de luminosidade firmado em contrato.
O Chefe de Polícia deveria, ainda, organizar anualmente uma ta‑
bela marcando as horas de acender e apagar os combustores e cande‑
labros públicos. As patrulhas deveriam dar parte dos lampiões que
não estivessem acesos nas ruas que percorrerem, de forma que as
contas das despesas com a iluminação pública eram entregues ao
Chefe de Polícia, o qual, após abater os descontos provenientes das
multas pela irregularidade da prestação do serviço, remeteria ao Mi‑
nistro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, para efetivar o
pagamento do serviço.
O crescimento demográfico da capital do Brasil, que fez com que
a população se espraiasse entre morros e o mar, aliada a pouca vertica‑
lização das habitações, tornou a área para se iluminar à noite demasia‑
damente ampla para contemplar poucos beneficiários, fato que
dificultava a operacionalização de se acender, manualmente, alguns mi‑
lhares de lampiões todos os dias, concomitante ao aumento do custo
por metro quadrado para os cofres da Coroa, decorrente da baixa den‑
sidade demográfica dessas regiões.
As décadas de 1860 e 1870 foram de grande expansão da ilumina‑
ção pública nas províncias que, com seus respectivos Conselhos Ge‑

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Curso de Direito da Energia

rais, regulamentavam seus interesses em prover suas principais cidades


de tais benefícios. Houve especial destaque nas províncias do Mara‑
nhão, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, São Paulo e Rio Grande do Sul.
Com o aumento da complexidade da sociedade, havia a necessidade de
se estipularem novos critérios de atendimento do serviço e de fiscaliza‑
ção deste. Para tanto, em 1862 foi celebrado novo contrato, por meio
do Decreto n. 2.920, com Barão de Mauá. A concessão, de 29 itens,
contempla como critério espacial não apenas o Rio de Janeiro, mas
outros locais que o Governo viesse a determinar. Havia uma maior
especificação sobre os critérios de luminosidade, tempo gasto para
acender cada lampião, a possibilidade de se atenderem particulares, a
remuneração individualizada por lampião, a ausência de indenização
para casos fortuitos, valores de multas por má prestação de serviço,
dentre outros.
Por sua vez, em 1879 haveria o ingresso da tecnologia de ilumina‑
ção por eletricidade, que limitaria significativamente a concessão de
iluminação pública a gás dada ao Barão de Mauá em 1862, bem como
levaria o Brasil a um novo estágio de desenvolvimento.22 Todavia, essa
substituição tecnológica somente ocorreu após o final do Império, por
meio do art. 10, item 9, da Lei n. 490, de 1897.23

22
Houve, ainda, a expedição do Decreto n. 8.736, de 1882, que aprovou contrato
provisório para a Rio de Janeiro Gas Company, Limited continuar a iluminar a
cidade do Rio de Janeiro, bem como do Decreto n. 3.278, de 1886, que firmava
contrato entre o Governo Imperial e o francês Henrique Brianthe para iluminar
o Rio de Janeiro com gás corrente.
23
Art. 10. Fica o Governo autorisado:
[...]
9) a rever o contracto com a Sociedade Anonyma do Gaz do Rio de Janeiro, afim
de ser melhorada, sem prejuizo do serviço existente, a illuminação da Capital por
meio da electricidade ou outro processo aperfeiçoado, podendo reduzir ou
transformar os encargos impostos á companhia, assim como os favores daquelle
contracto, os quaes poderá ampliar, comtanto que dahi não resulte onus para o
Thesouro nem para os consumidores; [...]

55

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

1.5 As Geociências e o sistema de outorgas minerais


A extração mineral, bem como a adoção das Geociências no Brasil,
sempre teve sua atividade intrinsecamente ligada ao desenvolvimento
energético e a uma estrutura científica e institucional difusa. Em um
ambiente de baixa densidade demográfica e fartos recursos naturais, D.
Pedro I demonstrou enorme preocupação em levantar informações so‑
bre o território e a população, aliada à iniciativa privada, delegando ao
Secretário do Estado do Império o poder de regulamentá­‑lo por despa‑
chos. Nada nos parece mais autoexplicativo do que a leitura do Decre‑
to de 25 de novembro de 1829.

Decreto de 25 de novembro de 1829


Crêa nesta Côrte uma commissão de Estatistica geographica e
natural, politica e civil.

Sendo reconhecida a necessidade de organisar­‑se a Estatistica des‑


te Imperio pelas vantagens, que do seu exacto conhecimento devem
resultar para os trabalhos da Assembléa Geral Legislativa, e para os
actos do Poder Executivo: Hei por bem crear nesta Côrte uma com‑
missão de Estatistica geographica e natural, politica e civil; e nomear
para ella as pessoas constantes da relação junta, que com este baixa as‑
signada [sic] por José Clemente Pereira, do Meu Conselho, Ministro e
Secretario do Estado dos Negocios do Imperio, que assim o tenha en‑
tendido, e faça executar com os despachos necessarios.

Palacio do Rio de Janeiro em vinte e cinco de Novembro de mil


oitocentos vinte e nove, oitavo da Independencia e do Imperio. [...]

O texto normativo, como se não bastasse sua vanguarda geográfica


e jurídica, foi sucedido por outro que buscava universalizar o conheci‑
mento cartográfico nacional, por meio de expansão do parque gráfico
e da obrigatoriedade de que as cartas fossem comercializadas a preços
módicos, como se direito essencial de todos os cidadãos fosse. Em ou‑
tras palavras, a difusão de mapas na Coroa estava atrelada à capacidade
de ir e vir da população, direito fundamental tão caro em todas as so‑

56

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Curso de Direito da Energia

ciedades contemporâneas, que com os mapas saberiam para onde esta‑


vam se direcionando.

Decreto de 14 de junho de 1830


Autoriza o governo a augmentar e aperfeiçoar a officina lithogra-
phica de propriedade do Estado.
Hei por bem Sanccionar, e Mandar que se execute a Resolução
seguinte da Assembléa Geral Legislativa:
Art. 1o O Governo fica autorizado para augmentar, e aperfeiçoar
a officina lithographica.
Art. 2o Entre os mappas topographicos, corographicos, geogra‑
phicos, e hydrographicos do Imperio, que se acham actualmente no
archivo do imperial corpo de Engenheiros, e no das Secretarias de Esta‑
do, e os que forem de ora em diante mandados levantar pelo Governo
em qualquer parte do territorio do Imperio, escolher­‑se­‑hão os melho‑
res para serem immediatamente lithographados, e distribuídos pelas
Provincias, para alli serem expostos á venda por preços razoaveis. [...]

O Período Regencial (1831‑1840) demonstrava sua preocupação


com o desenvolvimento do ensino da Geografia. Ao menos duas nor‑
mas, o Decreto n. 16, de 26 de julho de 1833, que criou a cadeira de
Geografia, bem como o Decreto n. 2, de 20 de junho de 1834, que
levou o mesmo conhecimento a ser lecionado em Goiás, demonstram
o interesse governamental em descentralizar esse ramo científico.
Afinal, se os cidadãos teriam liberdade de locomoção, como previa a
Constituição de 1824, era o manuseio da cartografia, por meio de
conhecimentos geográficos, que apontaria onde esse direito seria
exercido. Por fim, a criação do Instituto Histórico Geográfico Brasi‑
leiro – IHGB, ocorrida em 1838, seria utilizada com eficácia no Se‑
gundo Reinado.
Com D. Pedro II assumindo o trono brasileiro em 1840, há a bus‑
ca de um processo de legitimação da única monarquia das Américas,24

24
Ressalvado breve período monárquico no México.

57

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

bem como o interesse em criar uma elite no país. Foram expedidos al‑
guns marcos jurídicos nesse sentido. Por intermédio do IHGB,
buscava­‑se formar cientistas em História Natural (que envolve a Geo‑
logia) e em Geografia. Foi criada a Seção de Mineralogia, Geologia e
Ciências Exatas no então Museu Imperial,25 em 1842. No ano seguinte,
foi instituída a Seção de Agricultura, Mineração, Colonização e Civili‑
zação dos Indígenas na Secretaria de Estado dos Negócios do Império.
Por seu turno, o Decreto n. 2.335, de 8 de janeiro de 1859, criou a ca‑
deira de Geografia no Rio Grande do Sul e o Decreto n. 7.315, de 14 de
junho de 1879, aprovou os estatutos da seção da Sociedade de Geogra‑
fia de Lisboa no Brasil. Era a busca do Imperador em constituir uma
identidade nacional a fim de dar unidade ao país.
No contínuo processo de consolidação das Geociências no Segun‑
do Reinado, o geólogo norte­‑americano Orville Adelbert Derby (1851­
‑1915) teve fundamental importância no Brasil. Advindo da
Universidade de Cornell, Derby terminou seu doutorado em junho de
1874, com tese sob o título “On the Carboniferous Braquiopoda of
Itaituba, Rio Tapajós.” Em 1876, Derby foi contratado para a seção de
Mineralogia do Museu Nacional. Naquela época, havia o entendimen‑
to interdisciplinar da ciência geográfica, enquanto especialidade de en‑
genharia. Como exemplo, o Decreto n. 3.001, de 9 de outubro de 1880,
estabelecia os requisitos que deviam satisfazer os Engenheiros Civis,
Geógrafos, Agrimensores e os bacharéis formados em matemáticas,
nacionais ou estrangeiros, para poderem exercer empregos em comis‑
sões. Com a contribuição de Derby, foi fundada a Comissão Geográfi‑
ca e Geológica do Estado de São Paulo, por meio da Lei Provincial n. 9,
de 27 de março de 1886.26
Assim, a Geologia em geral, e a exploração de hidrocarbonetos em
específico, ganhava seus primeiros contornos no Brasil.

25
O Museu Real no Rio de Janeiro foi criado em 1818.
26
Atualmente, se denomina Instituto Geológico de São Paulo.

58

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Curso de Direito da Energia

1.5.1. Monarquia brasileira: movida a lenha e por escravos


A modesta industrialização brasileira no período monárquico tinha
como características principais o uso de mão de obra escrava e o aprovei‑
tamento intensivo da lenha. Nas palavras de Leite,27 o Brasil era uma ver‑
dadeira “civilização da lenha”, uma vez que detinha no seu território fartas
coberturas vegetais e empregava este bem para a produção energética.

Seu suprimento se fazia com regularidade, com base principal‑


mente na exploração de povoamentos florestais heterogêneos de mata
atlântica, compreendendo a extração seletiva de madeiras nobres e a
derrubada das demais e, em muitos casos, também das primeiras, para
a produção de lenha, cujo destino eram as ferrovias, firmadas nas loco‑
motivas a vapor, a incipiente siderurgia a carvão vegetal e as indústrias.
As únicas florestas homogêneas em exploração eram as de araucárias,
no Sul, e a da palmeira babaçu, na zona de transição entre o Nordeste
e a Amazônia.
Paralelamente a atividade florestal, apenas extrativista, não se de‑
senvolvia a mineração do carvão, nem se encontravam indicações da
existência de reservas de petróleo. Era portanto natural que tenha pre‑
valecido a civilização da lenha, até muito mais tarde do que em qual‑
quer dos países industrializados de vanguarda.

As primeiras outorgas voltadas à exploração de carvão decorrem


da década de 1850. O Decreto n. 1.078, de 4 de dezembro de 1852,
concedia ao Visconde de Barbacena e a Antonio de Sousa Ribeiro fa‑
culdade de explorar, por dois anos, em conjunto ou individualmente,
carvão de pedra na província do Rio de Janeiro. Por sua vez, o Decreto
n. 1.771, de 19 de junho de 1856,28 aprovava os Estatutos da “Compa‑

27
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 54-55.
28
Art. 1o Fica incorporada no Rio de Janeiro huma Companhia anonyma com a
denominação de Companhia de – Refinação e Distillação – a qual tem por fim a
refinação de assucar, a distillação em geral, e o fabrico de carvão animal, tudo em
grande escala, com os apparelhos mais modernos e que concorrão para o aperfei‑
çoamento deste ramo de industria. [...]

59

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

nhia de Refinação e Distillação”, destinada a refinar açúcar, sua destila‑


ção, bem como preparar carvão animal, com sede em Niterói, e o Decreto
n. 1.838, de 8 de novembro de 1856, concedia a Caetano da Rocha Pa‑
cova a faculdade de explorar carvão de pedra no Município de Campos.
Ambos os municípios estavam na Província do Rio de Janeiro.
A exploração carbonífera no sul do país iniciou­‑se por força do Decre‑
to n. 1.993, de 12 de outubro de 1857,29 que concedeu ao Barão de Mauá, ao
Conselheiro Luiz Antonio Barbosa e ao Comendador Luiz Alves Leite de
Oliveira Bello, ou empresa que viessem a constituir,30 privilégio de 30 anos
para lavrarem a mina de carvão de pedra do Arroio dos Ratos, com verba
pública. Era uma forma, ainda primária, de se fixar uma espécie de parceria
entre público e privado no Brasil, para uma finalidade de desenvolvimento
econômico com forte repercussão social, pois a atividade carbonífera, além
de ser intensiva em capital, também o é em mão de obra.

29
Attendendo ao que Me requerêrão o Barão de Mauá, o Conselheiro Luiz Anto‑
nio Barbosa e o Commendador Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, e de confor‑
midade com a Minha immediata Resolução de 10 do corrente mez, tomada sobre
Parecer da Secção dos Negocios do Imperio do Conselho d’Estado, exarado em
consulta de 5, – Hei por bem conceder-lhes privilegio exclusivo por tempo de
trinta annos para, por meio de huma Companhia que ficão autorisados a formar,
lavrarem a mina de carvão de pedra do Arroio dos Ratos da Provincia do Rio
Grande do Sul, explorada á expensas dos cofres publicos, no perimetro com‑
prehendido nos lemites actuaes do Municipio do Triumpho, á margem direita do
Rio Jacuhy, e quaesquer outros jazigos carboniferos que descobrirem no mesmo
perimetro; outrosim faculdade para por tempo de cinco annos explorarem terre‑
nos de outros mineraes dentro do referido perimetro, e de carvão fossil em toda
aquella Provincia, mediante as condições que com este baixão, assignadas pelo
Marquez de Olinda, Conselheiro, d’Estado, Presidente do Conselho de Minis‑
tros, Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Imperio, que assim o tenha
entendido e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em doze de Outubro de mil
oitocentos cincoenta e sete, trigesimo sexto da Independencia e do Imperio.
Com a Rubrica de Sua Magestade o Imperador.
Marquez de Olinda.
30
A “Companhia – Rio Grandense – das Minas de Carvão”, empresa constituída
para esta finalidade, foi aprovada pelo Decreto n. 2.219, de 11 de agosto de 1858.

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Curso de Direito da Energia

Logo, o país passava por uma forte reestruturação de sua matriz


energética. De uma espécie de “civilização da lenha”, buscava imple‑
mentar de diversas formas o uso do carvão mineral. O Decreto n. 2.072,
de 9 de janeiro de 1858, isentava de direitos de importação o carvão de
pedra que a Real Companhia de Southampton fizesse importar para o
consumo de seus vapores. Era uma forma de buscar a preservação das
florestas, característica reforçada por D. Pedro II em 1861, com a revi‑
talização da floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, momento em que
necessitava equacionar o desmatamento causado pelas fazendas de café,
que prejudicavam o abastecimento de água potável da capital.
O final dos anos 1850 ainda aponta a descentralização da busca
carbonífera no subsolo brasileiro. O Decreto n. 2.266, de 2 de outubro
de 1858, concedia privilégios para exploração mineral na Bahia,31 sendo
que o Decreto n. 2.435, de 6 de julho de 1859, concedia espécie de ou‑
torga genérica, para quaisquer tipos de minérios eventualmente encon‑
trados no subsolo da província de Pernambuco.32 Assim, minerais dos

31
Concede a José de Barros Pimentel faculdade para por meio de huma Compa‑
nhia extrahir o mineral bituminoso, que denomina “Bituminous Shalk”, proprio
para fabrico de gaz de illuminação, e carvão de pedra, em terrenos situados na
margem do rio Marahú da Provincia da Bahia.
32
Decreto no 2.435 - de 6 de julho de 1859
Concede a Antonio de Paula Fernandes Eiras autorisação para explorar as minas
de carvão de pedra que descobrio e descobrir na Provincia de Pernambuco, e bem
assim as de qualquer outro mineral que descobrir na mesma Provincia.
Attendendo ao que Me representou Antonio de Paula Fernandes Eiras: Hei por
bem Conceder-lhe autorisação para por si, ou por mais de huma Companhia
explorar as minas do carvão de pedra que descobrio e descobrir na Provincia de
Pernambuco, e bem assim as de qualquer outro mineral que descobrir na mesma
Provincia, sob as condições que com este baixão, assignadas por Sergio Teixeira
de Macedo, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do
lmperio, que assim o tenha entendido e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro,
em seis de Julho de mil oitocentos cincoenta e nove, trigesimo oitavo da Inde‑
pendencia e do lmperio.
Com a Rubrica de Sua Magestade o Imperador.
Sergio Teixeira de Macedo.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Condições a que se refere o decreto desta data


1a Fica concedida a Antonio de Paula Fernandes Eiras autorisação para por si ou
por meio de huma Companhia explorar por tempo de cinco annos, a contar desta
data, as minas de carvão de pedra que descobrio e descobrir na Provincia de Per‑
nambuco, e bem assim as minas de qualquer outro mineral que descobrir na mes‑
ma Provincia, e no mesmo prazo designará os lugares em que lhe convier minerar.
2a Escolhidos e designados os lugares para seus trabalhos de mineração ser-lhe-hão
nelles concedidos, salvos os direitos de terceiro, até cento e cincoenta datas mineraes,
as quaes serão medidas e demarcadas na fórma das Leis que regem a mineração,
correndo por conta do concessionario ou da Companhia as despezas respectivas.
3a Se a mina fôr de ouro, prata, cobre ou chumbo, cada huma data será de 141,750
braças quadradas, segundo a base de 225 braças quadradas por trabalhador, esta‑
belecida no § 3o do art. 6o do Alvará de 13 de Maio de 1803, tomando-se o termo
medio de trabalhadores na fórma do § 2o do art. 7o do mesmo Alvará. Se porém
fôr de outro qualquer mineral ou de qualquer producto chimico natural, a data
terá o dobro deste numero de braças. Na concessão de datas de terras diamanti‑
nas se observará a legislação geral.
4a Expirado o prazo de que trata a condição 1a, se o concessionario ou a Compa‑
nhia não tiverem preenchido o numero de cento e cincoenta datas dentro do
mesmo prazo, não poderão mais obter a concessão das que faltarem para o pre‑
encher, salvo se dentro do dito prazo as tiverem requerido, indicando os lugares
que houverem explorado, ficando obrigados a demarca-las dentro de hum anno,
contado do dia em que lhes forem effectivamente concedidas.
5a Nas datas assim concedidas terá o concessionario ou a Companhia a faculdade de
exclusivamente lavrar as minas que se descobrir. Esta faculdade durará por espaço
de 30 annos, os quaes principiarão a correr da concessão de cada huma das datas.
6a A ninguem será licito aproveitar-se dos trabalhos feitos pelo concessionario,
ou pela Companhia, antes ou depois desta concessão, nem tão pouco perturba-
los, ou minerar dentro da área das datas concedidas.
7a O emprezario ou Companhia poderá aproveitar-se de todas as madeiras exis‑
tentes nos terrenos devolutos, comprehendidos nas datas de que precisarem para
a construcção de edificios, pontes, estradas que forem necessarias para seus tra‑
balhos de mineração, assim como poderão desapropriar os terrenos de dominio
particular, em que existirem minas de carvão de pedra.
8a As minas de ouro, prata, cobre, e chumbo ficarão sujeitas aos impostos actuaes,
e aos que por Lei forem decretados.
9a Quanto a outros mineraes ou productos chimicos naturaes ficará sujeitos o
concessionario ou a Companhia aos onus que forem impostos por Lei, excepto

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Curso de Direito da Energia

mais variados como carvão, ouro, chumbo ou petróleo estariam abran‑


gidos por este Decreto.
Com maior ou menor abrangência dos termos de outorga, seja de
material a ser explorado do subsolo, seja pela base geográfica, as déca‑
das de 1860, 1870 e 1880 foram pautadas de atos sucessivos que aten‑
diam aos desígnios do Imperador, sem que houvesse uma regra
abstrata, em que os súditos pudessem compreender quais eram os pro‑
cedimentos para usufruir de outorga mineral. Logo, ora os atos eram
realizados apenas para exploração de carvão, ora para carvão e petró‑
leo, ora para outros minerais, manifestados de forma genérica33 e con‑
soante o livre interesse monárquico.

nos primeiros cinco annos, durante os quaes não pagarão imposto nenhum ou
para explorar ou para lavrar, ficando porém entendido que serão sujeitos assim
nestes mesmos cinco annos, como em todo o tempo, ás disposições da Lei e re‑
gulamentos do Governo no que fôr concernente a regular essa mineração, ou
esta seja nos terrenos devolutos, ou nos de dominio particular.
10. Ao emprezario ou Companhia fica concedida isenção dos direitos de impor‑
tação para os materiaes e instrumentos que mandar vir do estrangeiro para os
trabalhos de exploração ou mineração.
11. Esta concessão ficará dependente de approvação da Assembléa Geral Legislativa.
Palacio do Rio de Janeiro em 6 de Julho de 1859. – Sergio Teixeira de Macedo.
33
Como exemplos, podemos mencionar o Decreto n. 2.737, de 6 de fevereiro de
1861, que aprovava o contrato celebrado com o Visconde de Barbacena, para la‑
vrar as minas de carvão de pedra nas margens do Passa-Dous, Distrito da Laguna,
na Província de Santa Catarina; o Decreto n. 4.180, de 6 de maio de 1868, que
concedia à companhia de navegação a vapor do Pacífico favores de importação do
carvão destinado para os referidos paquetes; o Decreto n. 4.685, de 30 de janeiro
de 1871, que prorrogava o prazo fixado ao Visconde de Barbacena para a organi‑
zação da companhia destinada a lavrar as minas de carvão de pedra nas margens do
Passa­‑Dous, na Província de Santa Catarina; o Decreto n. 6.765, de 15 de dezembro
de 1877, que concedia privilégio a Fernando de Albuquerque para fabricar e ven‑
der o aparelho de sua invenção, destinado a rachar lenha e o Decreto n. 8.235, de
27 de agosto de 1881, que prorrogava o prazo concedido a D. Antonina de Cantos
Durão, para a apresentação das plantas topographica e geológica relativas a lavra
de carvão de pedra e outros minerais nos territórios compreendidos entre as pon‑
tas do rio Santa Maria e os rios Candiotinha, Candiota, Jaguarão e Jaguarão Chico.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Interessante notar que o ato de outorgar exploração mineral per‑


mite concluir que o Império em momento algum temia não se perpe‑
tuar no Brasil. É possível verificar decreto de concessão de outorga
para exploração de petróleo e carvão, firmado pelo Imperador, seis dias
antes da Proclamação da República.

Decreto n. 10.431 ­‑ de 9 de novembro de 1889


Concede permissão a Adam Benaion para explorar petroleo, car-
vão de pedra e outros mineraes na Provincia do Pará.
Attendendo ao que requereu Adam Benaion, Hei por bem
Conceder­‑lhe permissão para explorar petroleo, carvão de pedra e ou‑
tros mineraes no municipio da Prainha, da Provincia do Pará, median‑
te as clausulas que com este baixam assignadas por Lourenço
Cavalcanti de Albuquerque, do Meu Conselho, Ministro e Secretario
de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas,
que assim o tenha entendido e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro
em 9 de Novembro de 1889, 68º da Independencia e do Imperio.
Com a rubrica de Sua Magestade o Imperador.
Lourenço Cavalcanti de Albuquerque.
Clausulas a que se refere o Decreto n. 10.431 desta data
I – Fica concedido a Adam Benaion o prazo de dous annos, con‑
tado desta data, afim de proceder a pesquizas e explorações para o des‑
cobrimento de petroleo, carvão de pedra e outros mineraes no
municipio da Prainha, da Provincia do Pará.
[...]

1.5.2. A Revolução Industrial e a importância do petróleo


Existem, desde a Antiguidade, inúmeros registros de aproveita‑
mento do petróleo para finalidades das mais diversas.34 Todavia, os hi‑
drocarbonetos eram entendidos com um recurso farto, sem repercussão
econômica que justificasse seu uso intensivo. A disputa pelo petróleo,

34
Para aprofundamento da questão, SCHACKNE, Stewart. Petróleo para o mun-
do. São Paulo: Melhoramentos, 1950.

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Curso de Direito da Energia

enquanto recurso natural escasso, com alto interesse comercial para o


desenvolvimento das nações, tem íntima ligação com as relações inter‑
nacionais apenas após a Revolução Industrial.
Enquanto ponto de inflexão na história da humanidade, a Revolu‑
ção Industrial produziu diversas inovações tecnológicas que transfor‑
maram as relações sociais até então existentes. Houve desde então três
mudanças concomitantes e de forma progressiva, que permitiram mol‑
dar a sociedade da forma que atualmente a conhecemos.
A primeira consiste na substituição do esforço humano pelas
máquinas, definidas como rápidas, constantes, eficientes e incansáveis.
A segunda pode ser percebida como a troca de matérias­‑primas vegetais
ou animais por minerais, acompanhada da melhora na forma de ex‑
tração. Por último, houve a substituição das fontes animadas de
energia pelas inanimadas, que, ao transformar o calor em trabalho,
possibilitou ao homem alcançar formas quase ilimitadas de suprir
suas necessidades.35
Desde a Revolução Industrial, o acesso à energia passou a ser
sinônimo de desenvolvimento, sendo sua ausência considerada
atraso social e econômico e, consequentemente, pobreza. Assim, a
energia passou a ser considerada uma propriedade da matéria que
se manifesta de forma mecânica (trabalho), térmica (calor), por li‑
gações químicas (química), ligações físicas (nuclear), elétrica e ele‑
tromagnética.
O petróleo assumiu relevante importância pelo fato de se cons‑
tituir em uma espécie de “energia líquida”. Sua importância pode ser
resumida pela alta capacidade de estocagem e por um aproveitamen‑
to energético com níveis de residualidade praticamente nulo em re‑
lação às demais matrizes até então existentes. O petróleo tornou

35
PINTO JUNIOR., Helder Queiroz. Economia da energia: fundamentos econô‑
micos, evolução histórica e organização industrial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
3 a reimpressão. p. 2.

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viáveis os meios de transportes atuais, que não o seriam com a mes‑


ma eficiência por outra matriz energética.36 Por revolucionar os
transportes, pode­‑se atribuir ao petróleo a reversão da escassez ali‑
mentar, intrínseca da lógica malthusiana, decorrente da mecanização
intensiva do campo e da atividade agrícola. Certamente, os índices
de colheitas atualmente existentes seriam inviáveis sem o desenvol‑
vimento da indústria do petróleo e seu emprego por meio das má‑
quinas e tecnologias agroindustriais.
Assim, o petróleo, a lógica de sua prospecção, o domínio das rotas
de comercialização e o interesse de que nações rivais não obtenham
petróleo abundante explica a maioria dos conflitos ocorridos no mun‑
do desde a segunda metade do século XIX.
O grande marco tecnológico, que possibilitou a exploração de pe‑
tróleo como hoje a concebemos, foi o desenvolvimento da perfuração
pelo processo de percussão, que consistia no processo de levantar e
abaixar uma ferramenta (parafuso de têmpera) para abrir um buraco na
terra. Quem primeiro desenvolveu esse método e descobriu petróleo
no subsolo foi Edwin L. Drake, em Titusville, Pensilvânia, em 1859.
Desde então, procurar petróleo nos Estados Unidos se transformou
em uma atividade altamente recompensadora, transformando em cen‑
tros urbanos prósperos as regiões daquele país sob suspeita de terem as
jazidas. Desenvolveu­‑se uma verdadeira “cultura do petróleo”, na qual
as técnicas de identificação, busca e prospecção de petróleo tiveram um
rápido aprimoramento.
Os Estados Unidos foram a primeira nação a criar mecanismos
regulatórios para acomodar juridicamente as atividades econômicas
do petróleo. É o caso dos elementos levantados em 1877 no julga‑
mento do caso Munn v. Illinois, bem como a criação, em 1887, da

36
De forma a ilustrar, não se concebem aeronaves movidas a carvão, ou submari‑
nos a lenha. Em que pese outros minerais, como o urânio, serem eficientes sob a
ótica energética, o petróleo consegue aliar eficiência energética e segurança no
manuseio com tecnologia acessível.

66

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Curso de Direito da Energia

primeira estrutura regulatória norte­‑americana, a Interstate Com-


merce Commission, que originalmente tratava de questões de trans‑
porte mas que ao longo do tempo recepcionou as questões federais
que envolvem petróleo.37 Nesse período, o Brasil passava por uma
crucial mudança de regime, que culminou com a Proclamação da Re‑
pública em geral e com desdobramentos setoriais ainda tímidos, mas
que sinalizavam o aprimoramento do sistema de outorgas já imple‑
mentado no Império.

37
Na Inglaterra do século XIX, a regulação contemplou diversos setores, como a
saúde pública, o trabalho, os setores ferroviário, de água, gás e de eletricidade.
Inspirada no modelo regulatório norte-americano, criou, no século XX, a Inde-
pendent Television Authority em 1954, além das novas agências reguladoras,
como a Oftel, de telecomunicações, em 1984; a Ofgas, de gás, em 1986; Offer, de
eletricidade, em 1989; Ofwat, de água, em 1990, OFRR, ferroviária, em 1993.

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2
Energia enquanto interesse
local (1889­‑1934)

Com o advento da República, o Brasil se reorganizou a


partir da Constituição de 1891, que tinha no seu bojo o con‑
ceito de descentralização administrativa. Mesmo que omitin‑
do a expressão “local” para atribuí­‑la aos Estados ou aos
municípios, o art. 68 conferia autonomia às municipalidades
adstrita ao que se denominou “peculiar interesse”.1 A exceção
ficava a cargo do que se denominou “despesas de caráter
local”2 do Distrito Federal.
Com a introdução, no país, dos equipamentos elétricos,
houve a necessidade de se mudar a matriz da ainda precária
iluminação pública brasileira de gás para a então nova tecnolo‑
gia da eletricidade. No tocante aos recursos minerais, a Cons‑
tituição de 1891 fixava, no § 17 do art. 72, que o direito de
propriedade manter­‑se­‑ia em sua integralidade, de forma que

1
Art. 68. Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a
autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar
interesse.
2
Art. 67. Salvas as restrições especificadas na Constituição e nas leis
federais, o Distrito Federal é administrado pelas autoridades munici‑
pais. Parágrafo único – As despesas de caráter local, na Capital da Re‑
pública, incumbem exclusivamente à autoridade municipal.

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as minas pertenceriam aos proprietários do solo. Em que pese haver


previsão para exceções, no caso a desapropriação por necessidade ou
por utilidade pública, a Constituição delegava à lei regulamentar limi‑
tações a essa exploração. Assim, no município de Bofete, Estado de São
Paulo, o fazendeiro Eugênio Ferreira de Camargo perfurou o primeiro
poço petrolífero do país em 1892, obtendo apenas dois barris.
O movimento de obtenção de vantagens a grupos privados, para
atuarem com a atividade de energia, observada no período monárqui‑
co, se acentuou no início da República. O Decreto n. 559, de 19 de se‑
tembro de 1891, concedeu à Agencia Constructora do Banco Impulsor
e ao Dr. Pedro Caminada permissão para “illuminar por luz electrica
os theatros do Rio de Janeiro”.3 Esse instrumento pode ser considera‑

3
Decreto n. 559, de 19 de setembro de 1891
Concede á Agencia Constructora do Banco Impulsor e ao Dr. Pedro Caminada
permissão para illuminar por luz electrica os theatros desta cidade.
O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil, attendendo ao que
requereram a Agencia Constructora do Banco Impulsor e o Dr. Pedro Camina‑
da, resolve conceder-lhes permissão para, na conformidade do plano apresenta‑
do, illuminar por luz electrica os theatros desta cidade, sob as condições
seguintes:
1a A presente concessão não importa privilegio e poderá cessar desde que o Go‑
verno o entender conveniente.
2a Onde os conductores para a illuminação electrica tiverem de atravessar as
linhas telegraphicas e telephonicas da Repartição Geral dos Telegraphos, ou
as linhas telephonicas de outras companhias, cuja concessão for anterior, serão
isoladas na extensão, pelo menos, de 20 metros de ambos os lados da travessia e
passarão sempre por baixo das linhas telegraphicas ou telephonicas á distancia
que for julgada conveniente pela direcção dos telegraphos.
3a Os conductores para a illuminação electrica não seguirão parallelamente as
linhas telegraphicas e telephonicas em distancia menor de 100 metros e serão
perfeitamente isoladas dos postes e supportes, sendo os postes collocados em
condições de evitar qualquer desastre.
4a Si verificar-se que as correntes empregadas para a illuminação electrica, por
qualquer motivo perturbem o funccionamento das linhas telegraphicas e tele‑
phonicas, ficam os concessionarios obrigados a mudar, sem direito a indemniza‑
ção, a direcção dos seus conductores.

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do um marco inicial do compartilhamento de infraestrutura, haja vista


a previsão legal de que a prestação de serviço de iluminar o teatro em
hipótese alguma poderia comprometer os cabos de telégrafos, em que
pese terem que dividir o espaço das instalações.
Assim, a Proclamação da República, concomitantemente aos exce‑
dentes financeiros internacionais, começou a favorecer uma mudança
do perfil dos investimentos no setor energético. Começava­‑se a obser‑
var aporte financeiro de pessoas físicas no setor com a principal finali‑
dade de autoprodução de eletricidade. Era o caso do industrial têxtil
Bernardo Mascarenhas, que colocou em funcionamento a hidrelétrica
Marmelos, em Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais, cidade que che‑
gava a ser chamada à época de “Manchester brasileira”.

As luzes de Juiz de Fora, acesas pela primeira usina hidrelétrica cons‑


truída no país, são, em 1889, um ato criador de Bernardo Mascarenhas, o
moço rico mineiro que herdara fazenda de gado e plantação de café, não
frequentara universidade, mas visitara a Europa e os Estados Unidos em
busca de soluções industriais, que o apaixonavam. Ao usar essa primeira
água brasileira para gerar eletricidade – a primeira da América do Sul que o
fazia –, não pensava Bernardo Mascarenhas apenas em substituir o gás das
lâmpadas em vias públicas e nas residências particulares, mas, também e
sobretudo, em obter energia para sua própria fábrica têxtil e para as demais,
de várias naturezas, que se viessem a fundar na cidade a que chegara, dois
anos antes, a fim de cumprir seu fado pioneiro. Não teve de enfrentar so‑
mente as dificuldades naturais mas ainda os receios espalhados pela im‑
prensa local de que a corrente elétrica matasse quem viesse a se servir do
telefone, em acidente provável, provocado pela proximidade das linhas.4

O Ministro de Estado dos Negocios da Instrucção Publica, Correios e Telegra‑


phos assim o faça executar.
Capital Federal, 19 de setembro de 1891, 3o da Republica.
MANOEL DEODORO DA FONSECA.
Antonio Luiz Affonso de Carvalho.
4
EXÉRCITO. Energia elétrica no Brasil: da primeira lâmpada à Eletrobras. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977. p. 34-35.

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O Rio de Janeiro, então capital da República, em que pese a Cons‑


tituição Federal de 1891 prever que a capital deveria ser transferida
para área a ser definida no Planalto Central, foi brindado em 1892 com
o primeiro bonde elétrico do país, inaugurado pelo então vice­
‑presidente Floriano Peixoto. Esse evento não passou despercebido
pela elite da época. Machado de Assis, enquanto passageiro de bonde
tradicional, com tração animal, descreveu sua opinião ao cruzar com
um bonde elétrico na rua:

O que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do co‑


cheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu
bond. Sentia­‑se nele a convicção de que inventara não só o bond elétri‑
co, mas a própria eletricidade.5

Posteriormente, Oswald de Andrade demonstrou, por meio de


sua obra, os preconceitos que essa nova tecnologia trazia no imaginá‑
rio popular e a assimetria econômica entre a cidade do Rio de Janeiro e
a de São Paulo. Era a energia elétrica adquirindo as características mo‑
dernistas que dariam a tônica da obra de Oswald.

Anunciou­‑se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos


veículos puxados a burro, que cortavam a morna da cidade provinciana,
iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na descida da Ladeira
de Santo Antônio, frente à nossa casa, o bonde descer sozinho equili‑
brado pelo breque do condutor. E o par de burros seguindo depois.
Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos.
Como seriam os novos bondes que andavam magicamente, sem impul‑
so exterior? Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira
da minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso este negócio de
eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava grudado e seria
esmagado facilmente pelo bonde. Precisava pular.6

5
MACHADO DE ASSIS. Crônica para o jornal A Semana, de 16 de outubro de 1892.
6
ANDRADE, Oswald. O Bonde e a Cidade. In:___. Obras completas. São Paulo:
Globo, 2005. p. 72.

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O ingresso no Brasil da companhia canadense Light na última dé‑


cada do século XIX, que buscou o mercado do eixo Rio–São Paulo,
provocou uma reviravolta societária na então incipiente indústria elé‑
trica nacional, incorporando usinas que até então estavam nas mãos de
empresários locais. Importante destacar que, em 1901, o carvão e o
querosene representavam, respectivamente, 6% e 2% do total de im‑
portações brasileiras.7
O período que caracteriza o interesse local perante a energia, além
de ter contribuído para formar profissionalmente ilustres brasileiros,
como é o caso, por exemplo, de Luiz Carlos Prestes, que antes de fun‑
dar a Coluna Prestes havia pedido demissão do Exército e trabalhava
para uma empresa civil que instalava luz elétrica no município de San‑
to Ângelo, interior do Rio Grande do Sul, é caracterizado como uma
longa tramitação, no Congresso Nacional, do projeto de lei que viria a
ser o Código de Águas, somente aprovado em 1934.
Segundo Waltemberg,8 constam nos anais do Congresso Nacional
manifestações contra a existência de uma lei federal tratando de ener‑
gia elétrica, na medida em que era considerado assunto de interesse
local e que devia ser deixada aos cuidados dos Municípios. Logo, o
regime jurídico originário da indústria de energia no Brasil, notada‑
mente a elétrica, deve ser identificado nos contratos municipais. A
energia nascia como componente essencial da necessidade de se cria‑
rem melhoramentos urbanos, tais como distribuição de água, coleta
de esgoto e arruamento para bondes de tração animal, todos movidos
a eletricidade.
Não é difícil perceber o porquê de a energia elétrica ter nascido
como uma atividade de interesse local. A geração e distribuição de

7
LEITE, Antonio Leite. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 53.
8
WALTEMBERG, David. O direito da energia elétrica e a Aneel: direito
administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 354.

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energia elétrica não era uma finalidade que tinha sua circunscrição den‑
tro dos limites setoriais. Ela consistia em uma atividade­‑meio, geral‑
mente atrelada à iluminação pública ou empregada com a finalidade de
servir de insumo para transporte, no que concerne à eletricidade en‑
quanto força motriz dos bondes do início do século XX.
Pelo fato de a energia ser considerada de interesse municipal, como
atividade­‑meio do exercício da competência para regulamentar o trans‑
porte urbano e a iluminação pública, não havia critérios homogêneos
para regulamentar a atividade. Nesse cenário de precariedade na com‑
preensão dos elementos jurídicos que deveriam nortear o nascente se‑
tor elétrico, foi primordial para o desenvolvimento da eletricidade no
Brasil o aporte de conhecimento da Light no início do século XX, de‑
corrente das experiências das práticas regulatórias dos Estados Unidos
e de suas excursões mundo afora.
Os contratos municipais eram formados, invariavelmente, pela
provocação dos empresários interessados em explorar a atividade, de
forma que o objeto contratado era a cessão de uso do solo municipal
em caráter de exclusividade, haja vista o conceito de monopólio de
área. Logo, a natureza jurídica era de regime civil e contratual, de for‑
ma a dificultar a intervenção estatal para o alcance de objetivos como
a universalização do atendimento ou a modicidade tarifária, pois os
investidores não estavam obrigados a investir na rede sem que hou‑
vessem assegurado o retorno do capital a ser aportado. Todavia, a im‑
portância da atividade energética começava a se acentuar,
demonstrando a relevância de se ter uma maior intervenção do Estado
na atividade.
Importante registrar que, além da Light, outros grupos de inves‑
timentos internacionais em energia elétrica se interessaram em apor‑
tar capitais no Brasil. Como exemplo, em 1924 a American Foreign
Power Company – Amforp, de propriedade do grupo americano
Bond and Share Co., adquiriu várias concessões no interior do Estado
de São Paulo, integrando o fornecimento de energia elétrica à pro‑

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dução cafeeira naquela região, de forma a se denominar Companhia


Paulista de Força e Luz – CPFL. Posteriormente, com a transferên‑
cia da Amforp para a Ebasco International Co., houve a criação da
holding Companhia Auxiliar de Empresas Elétricas Brasileiras –
Caeeb, que passou a atuar na maioria das capitais do país9 e em grandes
cidades.10
Era um período de excesso de capitais no mercado internacional,
situação vigente até a quebra da bolsa de valores de Nova York, em
1929. As decisões governamentais, de caráter local, eram voltadas aos
interesses da burocracia, sem planejamento centralizado, que obedecia
a lógica da oportunidade financeira e dos lucros imediatos. Nesse ce‑
nário, o café muito contribuiu para o desenvolvimento da infraestrutu‑
ra brasileira. Ele criou mercado interno e permitiu que os cafeicultores
fossem investidores nesse segmento. Durante a 1a Grande Guerra
(1914­‑1918), o país teve um considerável incremento industrial devido
ao “processo de substituição de importações”. E essa indústria precisa‑
va de energia. Sob a ótica científica, o setor de energia utilizava a Geo‑
grafia como o ramo que alinhava tecnologia e desenvolvimento como
instrumentos para controlar a natureza.

Vista no conjunto histórico e geográfico, a energia elétrica no


Brasil constitui um dos capítulos do desenvolvimento nacional em que
mais se revela a capacidade coletiva de aproveitamento dos avanços
tecnológicos para dominar a natureza. A princípio, e na ausência de
carvão, confinado ao Sul, e em condições de exploração precárias, de‑
pois desarticuladas, sem entretanto, atingir as grandes esperanças ini‑
ciais, fez­‑se a utilização dos cursos d’água em medida que bastava para
corresponder às necessidades de iluminação e transporte. A partir da
década de vinte, torna­‑se mais fácil usar a força hidráulica.11

9
Natal, Maceió, Recife, Salvador, Vitória, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre.
10
Niterói, São Gonçalo, Pelotas e interior do Estado de São Paulo.
11
EXÉRCITO. Energia elétrica no Brasil: da primeira lâmpada à Eletrobras. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977. p. 46.

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Em um momento de industrialização do país, decorrente do inte‑


resse da União em garantir o emprego da energia elétrica nos serviços
públicos federais, bem como a alta dependência das águas para a pro‑
dução elétrica nacional, que além de gerar energia deveria, igualmente,
garantir as atividades agrícolas, notadamente a irrigação da lavoura
cafeeira, concluiu­‑se que a energia elétrica deveria ser interesse nacio‑
nal, sobretudo pela necessidade de se otimizar a exploração do poten‑
cial hidráulico. Para Loureiro, é pelo título para o uso da água que se
introduz a regulação federal, bem como pelo interesse centralizador
da União, que progressivamente abrange os sistemas energéticos
municipais.12

Para a doutrina da época, o uso das águas em geral e das públicas


em particular, sempre que fosse diferente daquele para o qual elas estão
naturalmente afeitas, deveria ser precedido de um título específico le‑
gitimador, de modo que o aproveitamento do potencial hidráulico para
fins de geração de energia elétrica será visto, inicialmente, como mais
um caso desta regra geral de há muito conhecida.

Mas a transição de competência do sistema elétrico não foi rea‑


lizada sem rupturas. Todavia, ao vislumbrarmos a transição do siste‑
ma de interesse local à federalização, imperativo se faz observar
alguns desenvolvimentos principiológicos, sociais e culturais obser‑
vados nesse período, qual seja a contribuição ao Direito da Energia
conferida por Rui Barbosa, o aporte de capital e de conhecimento
realizado pela Light, a descentralização do sistema, o regime de for‑
necimento de energia elétrica público e privado, o regime jurídico e
a instituição do horário de verão em 1931. Todos esses fatores, em
maior ou menor intensidade, iniciaram­‑se na gestão do presidente
Rodrigues Alves.

12
LOUREIRO, L. G. K. A indústria elétrica e o Código de Águas. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 2007. p. 46.

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Curso de Direito da Energia

2.1 Energia no governo Rodrigues Alves


No governo do presidente Rodrigues Alves (1902­‑1906) houve
uma grande preocupação com a infraestrutura do país, principal‑
mente a urbana. Foi um período de desenvolvimento e de conflitos
entre o interesse público e os direitos individuais. Pelas mãos de
Francisco Pereira Passos, engenheiro nomeado prefeito do Rio de Ja‑
neiro, entusiasmado reformador urbano, favelas foram removidas
do centro da cidade para criar uma realidade cosmopolita, digna do
que se desejava para a recém­‑estabelecida República brasileira. Foi
um grande fomentador de instalações sanitárias e propôs a fixação
de normas edilícias.
Por obra do Barão do Rio Branco, foi firmado o Tratado de Petró‑
polis em 1903, no qual o Brasil comprou o atual Estado do Acre por
2 milhões de libras. Era o ciclo da borracha que encontrava seu apogeu
no país, de forma que esse recurso natural teria grande aplicação no
setor de energia, principalmente com a finalidade de isolamento. Por
sua vez, em 1904 houve a Campanha de Saneamento do Rio de Janeiro,
dirigida por Oswaldo Cruz, que visava à erradicação da febre amarela
e da raiva e culminou na Revolta da Vacina, pela insatisfação de parcela
da população pelos métodos aplicados pelo governo, que impunha a
vacinação compulsória.
No setor energético, esse período não foi menos pujante. Em 31 de
dezembro de 1903 foi publicada a Lei n. 1.145, que fixa a “despesa
geral” para o exercício de 1904 da República dos Estados Unidos do
Brazil. O art. 23 dessa norma, em que pese a atividade de prestação de
serviço de energia elétrica ter­‑se iniciado como um serviço de interesse
local, com alto grau de dispersão e sem um sistema integrado nacional‑
mente, fato que viabilizou a existência de unidades geradoras de pe‑
queno porte localizadas próximas às áreas urbanas, pode ser
considerado o primeiro dispositivo a versar, em abstrato, sobre energia
elétrica no Brasil.

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Art. 23. O Governo promoverá o aproveitamento da força


hydraulica para transformação em energia electrica applicada a servi‑
ços federaes, podendo autorizar o emprego do excesso da força no de‑
senvolvimento da lavoura, das industrias e outros quaesquer fins, e
conceder favores ás emprezas que se propuzerem a fazer esse serviço.
Essas concessões serão livres, como determina a Constituição, de
quaesquer onus estadoaes ou municipaes.

Importante destacar que, em que pese esse dispositivo ser o primei‑


ro ato normativo abstrato da União voltado para energia elétrica, não
havia ausência de regulação setorial. Nas palavras de McDowall,13

Seria um erro pressupor que a companhia (Light) funcionava den‑


tro de um hiato regulatório. Na esfera federal, mesmo na virada do sé‑
culo (XX), os capitalistas estrangeiros eram obrigados a se submeter a
centenas de regulamentações estaduais, desde a necessidade de obter
permissão para funcionar no Brasil até regras controladoras do número
de empregados brasileiros a integrar o quadro de funcionários. Ainda
assim, havia uma sensível falta de controle estatutário sobre as ativida‑
des dos produtores de eletricidade que utilizavam a energia gerada por
águas brasileiras, falta essa atribuída à defasagem inevitável entre a ino‑
vação tecnológica e a consciência da necessidade de uma regulamenta‑
ção estatutária. Somente após 1903 o governo federal brasileiro fez uma
primeira tentativa de regulamentar a indústria elétrica em termos nacio‑
nais. Quando essa legislação se mostrou ineficaz, a proposta para um
código de águas nacional foi apresentada ao Congresso, em 1907.

A Lei n. 1.145, de 1903, ainda reservava outra fundamental inovação


na matriz energética nacional. Muito antes das iniciativas do Proálcool
da década de 1970, já havia a preocupação em substituir o emprego da
gasolina por álcool, de forma a favorecer a balança comercial do país,
que naquele período não produzia petróleo em escala comercial.14

13
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro, Ediouro, 2008. p. 148-149.
14
A mesma preocupação pode ser percebida, por exemplo, no art. 15, II, da Lei n.
1.453, de 30 de dezembro de 1905, que “fixa a despeza geral da Republica dos
Estados Unidos do Brazil para o exercicio de 1906, e dá outras providencias”.

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Curso de Direito da Energia

Art. 17. É o Poder Executivo autorizado:


[...]
X. A mandar proceder, na vigencia desta lei, á substituição nas
estradas de ferro federaes dos motores a gazolina ou a petroleo por
motores a alcool.

Em 3 de janeiro de 1905 foi publicado o Decreto n. 5.407, de 27 de


dezembro de 1904, que objetivava regulamentar o disposto no art. 23
da Lei n. 1.145, de 1903, que autorizava o Governo a promover, admi‑
nistrativamente ou por concessão, o aproveitamento da força hidráuli‑
ca para transformação em energia elétrica aplicada a serviços federais.
As concessões seriam feitas sem privilégio, respeitados os direitos de
terceiros, nos quais os contratos determinariam o trecho do rio a ser
utilizado para o fornecimento da energia elétrica; o mínimo de energia
elétrica a produzir desde a primeira instalação; e o máximo de energia elé‑
trica a ser produzido, de forma gradual e nos prazos que forem estabele‑
cidos em contrato.
O Decreto n. 5.407, de 1904, foi fundamental para estipular crité‑
rios nos quais os contratos deveriam estar adstritos. Como exemplo, a
norma fixava que não se poderia fazer obras, à montante ou à jusante
do trecho do rio onde fosse aproveitada a força hidráulica, que dimi‑
nuíssem o volume da água necessário para a obtenção da energia elé‑
trica fixada em contrato, ou que prejudicasse as instalações aprovadas.

Art. 15. É o Presidente da Republica autorizado:


II. A entrar em accordo, na vigencia desta lei:
a) com os arrendatarios das estradas de ferro federaes, para o fim de ser substi‑
tuida nellas a illuminação a petroleo pelas lampadas a alcool.
Para facilitar esse accordo, poderá o Presidente da Republica admittir que figure
a compra dessas lampadas nas contas do custeio;
b) com as emprezas de estradas de ferro, concedidas pela União, e que gozem de
favores pecuniarios, para o fim de promover a substituição do petroleo pelo
alcool, na illuminação das estações, depositos, officinas e dependencias.
Para facilitar esse accordo poderá o Presidente da Republica admittir que figure
a compra das lampadas nas contas do custeio.

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Logo, garantia ao concessionário que haveria água suficiente para su‑


portar o investimento realizado, em que pese a determinação de um
trecho de rio não impedir outra concessão para aproveitar novo tre‑
cho do mesmo rio.
O prazo da concessão era fixado para cada caso, limitado a 90
anos. Findo esse prazo, ficariam pertencendo à União, sem indeniza‑
ção alguma, todas as obras, benfeitorias, máquinas, instalações, trans‑
missões, terrenos e materiais do concessionário. No prazo máximo de
dois anos, os concessionários deveriam submeter a aprovação do Go‑
verno, dentre outros, memorial do projeto determinando a quantidade
de energia elétrica mínima a ser aproveitada. Interessante notar que,
para o Decreto, na parte urbana das cidades indicadas pelo Governo,
ou onde este julgasse conveniente, só seria permitido o emprego de
condutores elétricos subterrâneos.
Foram estipulados critérios de fixação de tarifa e respectivas revi‑
sões. Cada contrato deveria fixar sua respectiva remuneração para o
fornecimento da energia elétrica ao Governo e aos particulares, sendo
revista no fim do terceiro ano de fornecimento de energia e, após essa
revisão, a cada cinco anos, com a obrigatoriedade de haver redução
tarifária sempre que os lucros líquidos da concessionária excedessem
12% ao ano sobre o capital.15 Além de as concessões serem livres de
quaisquer ônus estaduais ou municipais, a legislação das linhas telegrá‑
ficas ou telefônicas, concedidas pelo Governo Federal, seria aplicada
no que coubesse para os condutores elétricos.
No que concerne a desapropriação por utilidade pública, o art. 9o
previa que os concessionários poderiam desapropriar, nos termos da
legislação que vigorar, os terrenos, prédios e benfeitorias que fossem
necessários, as instalações elétricas, colocação dos cabos, e mudança do
regime dos cursos de água, de acordo com as plantas aprovadas pelo

15
Art. 5o O capital do concessionario será fixado mediante a approvação do Go‑
verno e não poderá ser aumentado nem diminuido sem sua autorização.

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Governo. Os concessionários gozariam da isenção de direitos para o


material que importassem, reservando­‑se ao Governo o direito de res‑
gatar16 as propriedades da companhia em qualquer tempo, depois dos
primeiros 20 anos contados da data do contrato.
No tocante a fiscalização, a União se reservava o direito, de for‑
ma que o custeio das obras para assegurar o fiel cumprimento dos
contratos correria por conta dos concessionários, que estariam sub‑
metidos aos prazos para a conclusão das mesmas obras, bem como a
multa e caducidade. Por fim, o art. 14 do Decreto já demonstrava o
início da centralização de poderes federados que ocorreria na década
de 1930, quando dispõe que somente a União poderá fazer conces‑
sões de utilização para fins industriais da força hidráulica dos rios do
domínio da União.
Os avanços alcançados pelo Decreto n. 5.407, de 1904, foram ainda
sucedidos pelo Decreto n. 5.646, de 1905, que aprimorou a regulamenta‑
ção do sistema de outorgas a concessionárias de energia elétrica, a saber.

Decreto n. 5.646, de 22 de agosto de 1905


Regula a concessão de favores ás emprezas de electricidade gerada
por força hydraulica, que se constituirem para fins de utilidade ou con-
veniencia publica.
O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil, usando
da autorização constante da Lei n. 1.316, de 31 de dezembro de 1904,
art. 18,
Decreta:
Art. 1o Fica o Governo autorizado a conceder isenção de direitos
aduaneiros, direito de desapropriação de terrenos e bemfeitorias e os
demais favores comprehendidos no art. 23 da lei n. 1145, de 31 de

16
O preço do resgate será fixado de modo que, reduzido a apolices da divida
publica, produza uma renda equivalente a 7% do capital fixado pelo Governo,
deduzida a amortização correspondente ao numero de annos completos que já
houverem decorrido da data da inauguração do primeiro fornecimento de
energia electrica.

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dezembro de 1904, ás emprezas de electricidade gerada por força hydrau‑


lica, que se constituirem para fins de utilidade ou conveniencia publica.
Paragrapho unico. A desapropriação versará sobre os terrenos e
bemfeitorias indispensaveis ás installações e execução dos serviços a
cargo das mesmas emprezas.
Art. 2o Na concessão de taes favores, além da legislação federal
que lhes é applicavel, observar­‑se­‑hão mais as seguintes regras:
1a, os concessionarios requererão isenção de direitos aduaneiros
para cada partida de material que receberem e que, a juizo do Governo,
for necessario aos trabalhos em execução, seguindo­‑se o ulterior pro‑
cesso estabelecido para taes casos na legislação em vigor;
2a, a desapropriação de terrenos e bemfeitorias para os fins declara‑
dos no art. 1o, paragrapho unico, será feita mediante decreto especial, ex‑
pedido de accordo com plantas previamente approvadas pelo Governo;
3a, os demais favores comprehendidos no art. 23 da lei n. 1145, de
31 de dezembro de 1903, serão concedidos de conformidade com as
disposições do decreto n. 5407, de 27 de dezembro de 1904.
Art. 3o Revogam­‑se as disposições em contrario.

Importante salientar que o ingresso da Light no Brasil, bem como


os principais pareceres de Rui Barbosa sobre energia, datam do perío‑
do histórico no qual Rodrigues Alves era presidente da República. To‑
davia, esses pontos serão tratados a seguir, em apartado.

2.2 Rui Barbosa e o Direito da Energia


Enquanto uma das maiores personalidades da história do país, faz­
‑se necessário estudar o pródigo jurista, político, jornalista, diplomata
e escritor baiano Rui Barbosa de Oliveira enquanto primeiro grande
jurisconsulto em energia. Rápida é a percepção da relevância de seus
estudos e dos temas abordados, que envolveram alguns dos maiores
contenciosos em energia até então, bem como pelo relacionamento ín‑
timo com autoridades do governo e representantes da iniciativa priva‑
da, tais como Barão do Rio Branco, Pereira Passos, Alexander
Mackenzie, Rodrigues Alves, dentre outros. Sua erudição contrastava

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Curso de Direito da Energia

com a precariedade técnica dos contratos municipais de energia e com


a ausência de arcabouço legal que pudesse ser referenciado.
Todavia, esse conhecimento estava longe de não ser questionado.
Ou até mesmo de ser contraposto pelo tempo, seja por um novo con‑
vencimento, seja pela realidade de fatos supervenientes, seja naqueles
em que as palavras do jurista soaram como verdadeiras profecias. Ten‑
taremos apontar essas três características na obra de Rui Barbosa.
A primeira característica, e talvez a mais controversa da relação do
autor perante o Direito da Energia, refere­‑se à situação de monopólio
da distribuição de energia elétrica. Ainda no século XIX, Rui Barbosa
manifestava­‑se ardorosamente contrário aos monopólios, por enten‑
der que tais privilégios, quando não são ligados à essência das coisas,
ou ditados por necessidades inevitáveis, violavam o direito constitu‑
cional. Em pronunciamento no Parlamento, frequentes em sua ativida‑
de legislativa, Rui manifestou o seguinte entendimento:

Portanto, Sr. Presidente, não tem absolutamente nada de comum


o monopólio das loterias com o monopólio da fôrça elétrica.
O monopólio das loterias existe naturalmente enquanto existirem
as loterias; é propriedade do Estado, senhor absoluto desta faculdade,
que ele criou a benefício seu.
Agora, a faculdade de distribuir fôrça elétrica, esta é coisa muito
diversa, esta evidentemente é uma manifestação da nossa atividade in‑
dividual em um dos ramos ordinários do comércio em toda a parte.17

Em outra passagem, Rui Barbosa, alinhado com os conceitos de


competição na transmissão e distribuição de eletricidade fomentados
por Samuel Insull em Chicago a partir do final do século XIX, em que
empresas competiam com linhas diversas no fornecimento residencial
e comercial, dá mostras de que o monopólio poderia viger dependendo
da matriz energética que estivesse sendo usada.

17
As armas do monopólio. In: BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares. Rio de
Janeiro: Editora Casa de Rui Barbosa, 1985. p. 177.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Comparar a situação de uma linha de tramways com a de um


cabo transmissor de eletricidade não tem senso comum. Tôda gente
compreende que a ferrovia monopoliza de fato a rua. Aí o monopólio
é materialmente inevitável. Mas ainda ninguém ousou dizer que no
mesmo caso esteja a transmissão de eletricidade. E a própria defesa de
William Reid & C. confessa a possibilidade normal de se estenderem
pelas mesmas zonas e pelas mesmas ruas diferentes cabos, pertencentes
a emprêsas diversas, quando ao lado do sua, admite outras, com a re‑
serva apenas de que não seja de origem hidráulica a sua eletricidade.18

Assim, a fundamentação do monopólio em Rui Barbosa não pas‑


sava pelo conceito do fio que conduziria a eletricidade, mas pelo uso
do solo urbano pelo posteamento, que poderia ser duplicado. Na ten‑
tativa de exemplificar o monopólio na distribuição, Rui Barbosa bus‑
cava explicação na natureza jurídica do elétron, ou seja, se este provinha
de uma fonte hídrica – logo, de interesse público –, ou de uma fonte
térmica, na qual estaria adstrita às regras de direito privado. Todavia,
pelo fato de o elétron não ser tecnicamente identificado, mas apenas
perceptível, a crescente interconexão de sistemas de distribuição que
misturavam elétrons de diferentes matrizes demonstrou de fato a fra‑
gilidade dessa construção jurídica. Rui Barbosa pôde em vida rever sua
posição, como demonstram seus estudos a partir de 1904.19 A passa‑
gem a seguir reflete com precisão a mudança de entendimento:

A distribuição de luz e eletricidade, bem como o serviço de viação


férrea nos distritos urbanos constituem monopólios inevitáveis pela na‑
tureza das coisas. Basta refletir um momento, para ver como seria incon‑
cebível a concorrência livre das linhas de transvias, canalizações de fôrça
e fluido iluminante pelo subsolo ou à superfície das ruas. O espaço aéreo

18
As armas do monopólio, in BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares. Rio de
Janeiro: Editora Casa de Rui Barbosa, 1985. p. 181
19
Vide Vol. XXXI, Tomo II, opúsc. X das Obras Completas de Rui Barbosa,
p. 201 a 247, concernente a pleito que, no Supremo Tribunal Federal, se conver‑
teu na Apelação Cível n. 1.049.

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Curso de Direito da Energia

e subterrâneo destas, limitado como se acha pela sua estreiteza e já difi‑


cilmente repartido, entre tantos, tão importantes e sempre crescentes
serviços, como o d’água, o de esgotos, o da telegrafia, o do telefono, o
dos bondes, e do gás e o da energia elétrica, bem a custo oferece campo
bastante para todos eles, ainda concentrados cada qual no seu monopó‑
lio exclusivo. Por isso todos eles estão, hoje em dia, monopolizados, de
fato, ou de direito, nos países mais livres do mundo. São, portanto, mo‑
nopólios naturais, necessários e úteis. Não contravêm às exigências da
liberdade. Não incorrem absolutamente na proibição constitucional.20

Ao compulsar as fundamentações para a mudança de posiciona‑


mento de Rui Barbosa, fica evidenciado que essa alteração não decor‑
reu de uma nova interpretação constitucional do jurista, que
continuava com forte viés liberal. Esse entendimento era fruto do am‑
plo estudo de direito comparado que realizou. O monopólio de fato
estava praticamente consagrado em todas as nações então desenvolvi‑
das, e residia na rede de transmissão e de distribuição, e não no produ‑
to elétron. Concluiu­‑se ser economicamente ineficaz duplicar
estruturas para repartir receita, sendo vantajoso e eficaz conceber o
monopólio a um único distribuidor de energia elétrica, de forma a em‑
pregar o capital que teria destinação liberal para expandir o sistema em
uma nova estrutura monopolista.
Assim, nesse período de forte ingresso de capital estrangeiro no
país, Rui Barbosa defendeu após 1904 que a livre concorrência era ab‑
solutamente impossível no nascente setor elétrico por razões técnicas e
econômicas. A referida exploração só poderia funcionar conforme o
interesse público, mediante “monopólios de fato”. Era a criação dou‑
trinária do que viria a ser o monopólio natural,21 enquanto reserva de

20
Parecer de 19 de fevereiro de 1905, p. 80-81.
21
O prefeito de São Paulo em 1931, professor Luiz Anhaia Melo, dividia o mono‑
pólio natural em duas vertentes: o primeiro era denominado “monopólio priva‑
do odioso”, que precisa ser destruído para o bem da humanidade, e o segundo
“monopólio público”, que terá tarifa mediante a prestação de serviços eficientes.

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mercado de cunho geográfico para as distribuidoras que em determi‑


nada área atuassem. Existe um monopólio natural quando os custos de
produção são tais que, para os demandantes do mercado, fica mais ba‑
rato obter a produção de uma única empresa, ao invés de muitas.
A novação do entendimento de monopólio fez com que Rui Bar‑
bosa fosse contratado pela Light, de forma a advogar pelo monopólio
das áreas de concessão da empresa canadense.

Apesar das denúncias que fizera anteriormente sobre a questão


do monopólio, Rui estava, em 1906, dando à companhia canadense
aconselhamento jurídico, sustentado pela opinião de que monopólios
em serviços públicos seriam um fenômeno “natural”. Como estudioso
jurídico, político federal, diplomata e franco patrocinador do liberalis‑
mo no Brasil, Rui Barbosa exercia imensa influência entre seus compa‑
triotas. Uma vez convencido de que as concessões da companhia eram
legalmente incontestáveis, Rui tornou­‑se um obstinado defensor do
direito de operarem no Brasil. Foi Rui Barbosa, disse Mackenzie a
Pearson no final de 1907, que assegurou a ele que os Guinle “não ti‑
nham direito de trazer energia para o Rio”. Rui não provia apenas acon‑
selhamento jurídico. Por meio de seus préstimos, a companhia foi capaz
de levar sua causa perante as mais altas autoridades políticas. Mackenzie
frequentemente concluía seus relatórios do Rio com o codicilo: “Estou
agora especialmente confiante em nossas relações com Rui Barbosa.”22

Em outras questões importantes, Rui Barbosa manteve posiciona‑


mentos menos avançados, talvez pela falta de clareza da importância
que a energia elétrica constituiria nas décadas e séculos vindouros, tal‑
vez pela ótica liberal que seus entendimentos depreendiam da Consti‑
tuição após séculos de vivência colonial e monárquica. Como exemplo
dessa visão liberal, Rui Barbosa admitia o direito adquirido da conces‑
são, com caráter irrevogável. Logo, a construção jurídica de que há
interesse público envolvido nos serviços de distribuição de energia elé‑
trica, e que o poder concedente pode retomar a concessão quando bem

22
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 190.

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entender, garantindo o direito adquirido apenas a justa indenização,


não era algo posto na primeira década do século XX.

Essa faculdade representa hoje, para os seus concessionários, um


direito definitivamente adquirido, visto como nasce de um contrato
legal, celebrado entre pessoas competentes. Nem a municipalidade,
pois, nem a União o poderiam revogar, ou derrogar, ainda que esse
arbítrio assumisse a forma de lei; porquanto a constituição da repúbli‑
ca [sic], art. 11. n. 3, solenemente veda às nossas leis fôrça retroativa.23

Outra característica importante na obra de Rui Barbosa é a inter‑


pretação de que a atividade exercida por um ente privado, mesmo que
seja de fornecimento de energia elétrica, não seria considerado “serviço
federal”.

Mas não se pode considerar como serviço federal o suprimento


por uma companhia particular como a Sociedade Anônima do Gás às
casas e estabelecimentos particulares. Se, portanto, os concessioná‑
rios da organização planejada no decr. n. 5.407, de 1904, tiverem,
como se supõe na consulta, a incumbência de ministrar energia elétri‑
ca à Sociedade Anônima do Gás, para que esta a converta em luz, de
que abasteça as residências e instituições particulares, não se poderá
dizer que desempenha por esse modo um serviço federal. Exercerá,
sim, a sua indústria, a que se não pode atribuir caráter de serviço fe‑
deral, pelo fato de que uma parte, aliás relativamente exígua, dos seus
produtos tem por consumidores as repartições e institutos da União,
nem pela consideração de assentar em leis desta o privilégio que a
empresa usufrui.24

Inevitável, porém, reconhecer a audácia do Águia de Haia, no que


concerne a sua coluna no periódico A Imprensa de janeiro de 1899. O
tema escolhido nada mais era do que “Lixo, Fôrça e Luz”, tema caro às
sociedades contemporâneas do século XXI. Após escrever a matéria e

23
Parecer de 19 de fevereiro de 1905, p. 82.
24
Parecer de 19 de fevereiro de 1905, p. 83-84.

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receber uma enxurrada de críticas e questionamentos dos leitores, Rui


saiu­‑se com o seguinte texto publicado em 18 de janeiro:

Fêz sorrir e encolher os ombros a muita gente desconfiada e prá‑


tica o nosso editorial de há três dias sobre a transformação do lixo em
calor, energia e luz. Não há nada que se compare a credulidade da cria‑
tura humana, como a sua incredulidade. Fácil de aceitar as extravagân‑
cias do sobrenatural, difícil de admitir os portentos da natureza, eis o
comum de nossa espécie, a tendência geral da massa, o pendor ordiná‑
rio da nossa índole ainda entre os espíritos superiores. Em quantos dos
mais nobres espécimens do talento e do gênio se não alia singularmen‑
te o instinto, acentuado, ou vago, da superstição, dominando à vezes o
homem nos mais sérios da sua vida, ao desdém, à prevenção, à repulsa
ante as grandes revelações e as grandes criações da ciência aplicada?
[...]
Não agitamos uma quimera. Não. Estamos simplesmente no
terra­‑a­‑terra de um fato industrial. Mais depressa nos acudiu a prova
do que poderíamos imaginar. [...] Pedimos licença, para dar ao público
esse documento [...]
É evidente, pois, que todas as imundícies nocivas à saúde pública se
podem transformar em ENERGIA, satisfazendo, ao mesmo tempo, a
higiene pública por uma destruição racional desses elementos daninhos.
O signatário deste papel é um engenheiro eletricista, membro da
Sociedade dos Engenheiros Sanitários de França.
Já estão vendo que não é poesia d’A Imprensa.

Rico em contradições, polêmicas e contribuições, Rui Barbosa foi o


primeiro jurista a defender o Direito da Energia na doutrina, no Con‑
gresso Nacional, no Poder Judiciário e na imprensa, traçando entendi‑
mentos e jurisprudências que moldaram as origens do que entendemos
atualmente como regulação jurídica da energia, notadamente a elétrica.

2.3 A Light e o desenvolvimento do eixo Rio-São Paulo


Poucas empresas provocaram, ao longo da história, tanta admiração
e questionamentos quanto a vinda da Light ao Brasil. Para alguns, o “im‑

88

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Curso de Direito da Energia

perialismo canadense dos serviços públicos”25 propiciou aos investido‑


res brasileiros, naquele tempo acostumados com a monocultura e
práticas escravagistas, acesso a um modelo de administração moderno,
possibilitando o aprimoramento da gestão de empreendimentos de gran‑
de porte no Brasil, estimulando assim a prática capitalista. Mas a atuação
da Light não recebeu apenas menções honrosas. Frequentemente era
acusada de ordenar os serviços concedidos em prol de seus interesses
privados. Alguns discursos foram contundentes nesse sentido.
No tocante a dogmática jurídica, o Decreto n. 3.349, de 17 de julho
de 1899,26 constitui­‑se no ato jurídico que marca a entrada do grupo
empresarial canadense conhecido como Light no mercado de infraes‑
trutura do Brasil. Em 7 de maio de 1900 houve o início de operação de
bondes elétricos na cidade de São Paulo.27 O jornal O Estado de S.

25
Expressão orgulhosamente empregada pela jornalista canadense Beverley Owen
em 1927 para justificar os investimentos canadenses no Brasil, México, Espanha
e em todo o Caribe. Os investimentos no Brasil foram os únicos que perduraram
após a Segunda Grande Guerra.
26
Artigo unico. E’ concedida autorização á The S. Paulo Railway Light and Power
Company, limited para funccionar na Republica, com os estatutos que apresen‑
tou, sob as clausulas que com este baixam assignadas pelo Ministro da Industria,
Viação e Obras Publicas, e ficando obrigada ao cumprimento das formalidades
exigidas pela legislação em vigor.
27
“Às primeiras horas da madrugada do dia 7 de maio de 1900, um som inusitado
ecoou pelas estreitas ruas de São Paulo. Da rua Barão de Limeira em direção ao
largo de São Bento, pequena praça no centro da então segunda maior cidade do
Brasil, vinha um ruidoso bonde elétrico, de laterais abertas, uma lanterna à fren‑
te, rompendo a escuridão. Enquanto isso, cidadãos curiosos pulavam da cama
para apreciar, amontoados nas calçadas, o espetáculo que se descortinava. No
controle das alavancas estava Robert Calthrop Brown, engenheiro americano de
35 anos que havia pouco mais de um ano fora gerente da companhia de bondes
da distante Halifax, na Nova Escócia. Brown se aventurara a fazer, à 1 h da ma‑
nhã, uma inspeção surpresa de última hora na linha recém-concluída, a ser inau‑
gurada mais tarde, ainda naquele dia. O bonde elétrico que conduzia (um bonde
com nove bancos, chassis e carroceria Brill e motor General Electric) fora cons‑
truído na América do Norte e era o primeiro a circular na próspera cidade, em
franca expansão, com 240 mil habitantes. Após um percurso sem problemas,

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Paulo, no dia seguinte, reportava a comemoração da população com a


novidade, que lotava os bondes. No final de 1901, já havia 33 bondes
elétricos na cidade, cobrindo extensão de 56 quilômetros. A grande
meta dos canadenses era obter energia elétrica suficiente para viabilizar
todos os negócios do grupo.

A meta inicial e mais urgente era implantar os serviços de geração


de energia e de linhas de bondes. Sem eletricidade farta, a companhia
não teria condições de explorar os direitos concessionários nem de su‑
perar a concorrência ainda existente. Por outro lado, se o intuito era

Brown inverteu o bonde e trouxe-o de volta a garagem, na rua Barão de Limeira,


seguro de que tudo estava pronto para as festividades daquele dia. Acima dos
portões da garagem de bondes, um letreiro indicava a propriedade da nova em‑
presa. A São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited, incorporada
segundo as leis de Ontário (Canadá), com escritório central em Toronto, viera
fazer negócios no Brasil.
Por volta do meio-dia, a inauguração teve início de forma solene. As autoridades
convidadas, dentre as quais políticos das esferas federal, estadual e municipal, reu‑
niram-se na usina geradora da companhia na rua São Caetano e se prepararam para
inaugurar o serviço de eletricidade gerada a partir de caldeiras a carvão e geradores
a vapor. A usina era uma instalação temporária, conseguida através da aquisição de
uma companhia local de fornecimento de água e gás. A companhia recém-formada
esperava substituir rapidamente as então ineficientes instalações por uma nova e
grande usina de energia hidrelétrica de concepção própria, que vinha sendo cons‑
truída, em ritmo acelerado, por mais de 1.200 operários, em determinado ponto do
rio Tietê, a 36 quilômetros da cidade. Cumprindo um cronograma preciso, as au‑
toridades foram encaminhadas por T. W. Bevan, o superintendente americano da
usina, a fim de colocar as máquinas em funcionamento. Primeiramente, Domingos
de Moraes, vice-presidente do estado de São Paulo, desligou a chave de campo; em
seguida, Antônio Prado, prefeito da cidade, fechou o disjuntor, e, por último, Ro‑
drigues Alves, presidente do estado, deu a partida no gerador. Durante os procedi‑
mentos, Prudente de Morais, presidente do Brasil de 1894 a 1898, a tudo
observava com ar de satisfação. Bevan, a postos nos bastidores, vigiava os políticos
convidados, receoso de que algum deles viesse a mexer, por engano, em alguma
peça do maquinário, dando, assim, um fim prematuro aos convivas e a ele próprio.
Às 13:28h a energia estava ligada, pronta para impulsionar os bondes. A comitiva,
então, dirigiu-se para a garagem de bondes próxima dali.” MCDOWALL, Dun‑
can. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 15-16.

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excluir de vez os serviços de bondes puxados por mulas, a companhia


deveria poder, o mais rápido possível, oferecer um serviço de bondes
elétricos eficiente e barato. Essas duas realizações, somadas à comer‑
cialização agressiva de energia elétrica à indústria local, colocariam São
Paulo na direção do monopólio absoluto sobre os serviços de energia
e transporte eletrificado na cidade de crescimento mais acelerado do
Brasil.28

Mesmo com a inauguração, no Estado de São Paulo, da usina hi‑


drelétrica de Parnaíba (1901), a geração de energia não era um fim por
si só, mas o meio pelo qual a Light realizaria suas principais atividades
em São Paulo na primeira década do século XX – o transporte urbano
por bondes elétricos.

A capacidade plena da usina só seria vantajosa se rapidamente


aplicada ao serviço de bondes elétricos, que, desde o início, deveria ser
o ponto central das operações da companhia. Para cumprir esse objeti‑
vo, o primeiro ajuste a ser feito pela companhia era mudar de nome [...]
para São Paulo Tramway, Light and Power Co. Ltd. Depois de estar
claramente definida aos olhos do público como empresa de serviços de
bondes, a companhia tratou de cumprir a promessa de fornecer um
transporte eficiente e barato.29

Com a aquisição da empresa Viação Paulista, consolidada via judi‑


ciária em 1906, a Light obteve um monopólio de fato dos serviços de
bondes em São Paulo, pela inviabilidade econômica de haver novos
concorrentes nesse nicho de mercado. Com essa aquisição, a empresa
passou a transportar não apenas passageiros, mas também fretes, cor‑
respondência, água, entulho e carne, que eram transportados fora do
horário de pico, fato que proporcionou à Light otimizar a infraestru‑
tura disponível e se tornar uma ator imprescindível da industrialização
da cidade.

28
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 110.
29
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 115-116.

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Havia o interesse da Light em explorar o mercado paulistano de


iluminação pública e do emprego industrial da energia elétrica de for‑
ma residual, ou seja, aquela que não fosse utilizada pelo sistema de
bondes. Para isso, foi necessário quebrar paradigmas da prefeitura
de São Paulo, que desejava fixar um sistema de monopólios naturais,
dividindo a cidade em quatro áreas de concessão para investidores dis‑
tintos, bem como convencer a população de que a iluminação pública
de matriz elétrica é mais eficiente que aquela realizada a gás. Em 1916,
a Light firmou contrato com o Município de São Paulo e a energia
elétrica foi recebida pelos particulares como um símbolo de status, no
qual somente os mais afortunados puderam usufruir dessa benesse
no início do século XX. Sem reservas de carvão, a eletricidade foi o
grande elemento que formou o crescimento industrial paulista.

Com frequência, os brasileiros costumavam pilheriar, com certo


grau de inveja, comparando São Paulo, ‘com seu grande poderio cafe‑
eiro e progresso industrial precoce’, a uma locomotiva ‘puxando vinte
ou mais vagões vazios representativos dos demais estados brasileiros’.
Sendo assim, com certeza a locomotiva era movida a eletricidade.30

São Paulo vivia um período de ampla disponibilidade de crédito,


lucros elevados decorrente do preço do café estar superior à desvalori‑
zação cambial, concomitante a baixa elevação do custo de mão de obra,
fato que consubstanciou em investimentos na indústria.31 O forte fluxo
imigratório ainda trouxe a São Paulo um significativo aumento de
demanda por trabalho, serviços diversos e necessidade de ampliar a
oferta de imóveis residenciais. Nesse cenário, a Light demonstrou von‑
tade institucional para arcar com importantes demandas judiciais32
para expandir seus interesses de mercado.

30
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 134.
31
CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 4. ed. Campi‑
nas: I.E.,Unicamp, 1998. p. 158 e segs.
32
Para aprofundamento da questão, SEGATTO, José Antonio. A república e a

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Curso de Direito da Energia

Por sua vez, o Rio de Janeiro, então Capital federal e maior cidade
do país, fez com que a Light enxergasse a energia como uma atividade­
‑fim. Essa era a principal diferença perante a atividade em São Paulo,
na qual a energia foi utilizada como meio para a obtenção de lucros no
setor de transportes e imobiliário. Em que pese o bonde ter viabilizado
os subúrbios, expandindo os limites urbanos e valorizando imóveis
distantes da praia, a substituição do carvão como energético na região
portuária da cidade, bem como o mercado consumidor de 750 mil pes‑
soas, tornaram­‑se atrativos naturais aos executivos da Light no início
do século XX.
A alta dependência do carvão importado e ausência de possibilida‑
des, até então identificadas, com a eletricidade faziam com que o Rio de
Janeiro não observasse um desenvolvimento diretamente proporcional
à sua condição demográfica e de capital da República. Assim, em 1899
o Conselho Municipal do Rio de Janeiro concedeu a William Reid pri‑
vilégio para gerar e distribuir energia elétrica. Em 1904, Reid transferiu
seus direitos para o Banco Nacional Brasileiro e, após intricado arranjo
societário, a Light ingressou no mercado carioca, obtendo empresas de
transportes por bondes, sistema esse difuso e pulverizado no mercado
carioca, a ponto de sequer as bitolas dos trilhos entre concessões distin‑
tas estarem padronizadas. E a Capital passou a rapidamente se transfor‑
mar. Em consonância com os planos de modernização urbana do

Light. In: Memória. São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico da Ele‑


tropaulo, Jan.-Mar. de 1989, ano II, n. 2. SAES, Flavio A. M. Café, indústria e
eletricidade em São Paulo. In: História & energia. São Paulo: Departamento de
Patrimônio Histórico da Eletropaulo/Eletropaulo, maio de 1986. SAES, Ale‑
xandre Macchione. Light versus Docas de Santos: conflitos em torno do Porto
de Santos e da sacaria de juta na economia paulista (1892-1915). In: Anais do II
Encontro de Pós-graduandos em História Econômica. Niterói: Associação Brasi‑
leira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE), 2004. BEIGUEL‑
MAN, Giselle; FARIA, Nivia. A empresa política. In: História & energia. São
Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo/Eletropaulo,
maio de 1986.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

presidente Rodrigues Alves, capitaneadas por Pereira Passos e por Os‑


valdo Cruz, o Rio de Janeiro passou a contar com o início da industria‑
lização na região portuária, habitações operárias e vias públicas
compatíveis com a necessidade de expansão urbanística.
Há, igualmente, importantes contenciosos perante a família Guin‑
le.33 A passagem a seguir reflete com precisão como os canadenses viam
a necessidade de afastar eventuais concorrentes do mercado e a neces‑
sidade de contar com advogados de prestígio.34

Considero que o maior perigo será os Guinle tentarem entrar na


cidade [...], Pearson advertiu Mackenzie em 1907, “e, a menos que você
tenha um bom advogado, que seja agressivo, para defender nossas deter‑
minações e reagir a esses ataques, estaremos sujeitos a sério comprome‑
timento”. Mackenzie não recrutou apenas um “forte” advogado;
contratou os serviços de Rui Barbosa, provavelmente, então, o maior
advogado do Brasil. Apesar das denúncias que fi­zera anteriormente so‑
bre a questão do monopólio, Rui estava, em 1906, dando à companhia
canadense aconselhamento jurídico, sustentado pela opinião de que mo‑
nopólios em serviços públicos seriam um fenômeno “natural”. Como
estu­dioso jurídico, político federal, diplomata e franco patrocinador do
liberalismo no Brasil, Rui Barbosa exercia imensa influência entre seus
compatriotas. Uma vez convencido de que as concessões da companhia
eram legalmente incontes­táveis, Rui tornou­‑se um obstinado defensor
do direito de operarem no Brasil. Foi Rui Barbosa, disse Mackenzie a
Pearson no final de 1907, que assegurou a ele que os Guinle “não tinham
direito de trazer energia para o Rio”. Rui não provia apenas aconselha‑
mento jurídico. Por meio de seus préstimos, a companhia foi capaz de
levar sua causa perante as mais altas autoridades políticas. Mackenzie
frequentemente concluía seus relatórios do Rio com o codicilo: “Estou
agora especialmente confiante em nossas relações com Rui Barbosa”.

33
Sobre o tema, pormenorizamos no capítulo sobre Rui Barbosa o litígio. Ver ain‑
da SAES, Alexandre Macchione. Conflitos do capital: Light versus CBEE na for‑
mação do capitalismo brasileiro (1898-1927). 2008. Tese (Doutoramento) – IE,
Unicamp, Campinas.
34
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 190.

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Pode­‑se afirmar que a ligação de Rui Barbosa com a causa da com‑


panhia se dava por força de estudos de direito comparado que o Águia
de Haia promoveram a partir de 1904. O liberalismo de Rui Barbosa
gerou nele uma forte afinidade com os ideais das economias inglesa e
america­na. Atento ao surpreendente sucesso da São Paulo Light, Rui
viu em Mackenzie a personificação desses ideais. “Nosso grupo”, Ma‑
ckenzie lembrou a Rui em 1905, “é um dos primeiros que, em uma
larga escala, conseguiu fazer com que o capital americano se interessas‑
se por este país, e tem feito algo no sentido de tornar o Brasil mais co‑
nhecido nos Estados Unidos”.
A principal marca da Light, no Rio de Janeiro, foi a energia e os
transportes, com forte repercussão cultural. Os primeiros contratos
fechados pela usina de Ribeirão das Lajes foram com indústrias locais.
Os investimentos em gás pretendiam reverter alguns costumes cariocas
e introduzir o uso de fogão e aquecedores a gás. A influência cultural
da Light no Rio de Janeiro transpassava a infraestrutura. Funcionários
norte­‑americanos que vieram ao Brasil para construir a usina Ribeirão
das Lajes criaram time de beisebol em 1907. O tênis se expandia como
esporte de elite.35 Para o poeta Olavo Bilac, os bondes eram considera‑
dos um “operário da democracia”, pois neles as sedas das grandes da‑
mas roçavam com as vestimentas desbotadas das empregadas
domésticas. A importância da empresa era tamanha, que, em 1912, foi
inaugurada a nova sede da empresa na Rua Larga (atual Avenida Mare‑
chal Floriano), propriedade esta que faz limite com o Palácio do Itama‑
raty, que chegou a ser a primeira sede do Governo Republicano
brasileiro, entre 1889 e 1898.
Incursões fora do eixo Rio-São Paulo também começavam a fazer
parte da estratégia de expansão da Light, que chegou a enviar equipe

35
Para mais informações culturais, CABRAL, Ligia Maria Martins (Coord.). Light:
um século de muita energia: 1905-2005. Rio de Janeiro: Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 2005.

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para inspecionar a cachoeira de Paulo Afonso em 1911, localizada na


divisa entre os Estados da Bahia e de Alagoas. Mesmo com o fascínio
do potencial hidrelétrico, a tecnologia de transmissão de energia na‑
quela época não era suficientemente desenvolvida para justificar esse
investimento em um aproveitamento distante do centro de carga – no
caso, Salvador.

Enquanto a revolução e a negligência financeira rondavam os


empreen­dimentos de Pearson no México e na Espanha, a suposta des‑
lealdade dos políticos locais no nordeste do Brasil provocou a ruína da
Bahia Tramway, Light and Power Company Limited. Organizada em
1905, sob os auspícios de William Mackenzie, Percival Farquhar e Fred
Pearson a Bahia Light possuía uma carta­‑patente do Maine e desenvol‑
veu seus serviços em torno de conces­sões compradas de grupos belgas
e alemães. Como no Rio, para se estabelecer, a Bahia Light teve que
lutar contra a poderosa família Guinle. Depois do que Alexander Ma‑
ckenzie descreveu como “a mais amarga espécie de hostilidade” com
os Guinle, os tribunais brasileiros reconheceram a primazia da conces‑
são da companhia americana na cidade da Bahia [sic]. Apesar disso, as
relações com os políticos locais nunca foram boas, e, após um longo
período de atritos, pontuado por agitações contra a empresa pelas ruas
da Bahia, a municipalidade propôs a compra da companhia em 1913.
Ao perceber que não dispunham de nenhum mecanismo confiável de
autodefesa política, Pearson e Farquhar acei­taram a oferta, auferindo
1,2 milhão de libras em títulos de dívida municipal como forma de
pagamento por seus ativos. Para constrangimento de todos os investi‑
dores estrangeiros no Brasil, a Bahia não honrou o pagamento de seus
títulos de dívida. “Ela deliberadamente descumpriu suas obrigações e
desconsi­derou seus compromissos financeiros”, informou o The Ti-
mes, “e comportou­‑se de forma vergonhosa para qualquer comunida‑
de civilizada”.36

Mas o acontecimento jurídico­‑setorial mais relevante da década de


1910 decorreu do primeiro grande rearranjo societário percebido na

36
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 268-269.

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indústria. Em 1912, a Rio Light e a São Paulo Light foram adquiridas


pela Brazilian Traction, Light and Power Company, mediante troca de
ações. Assim, Rio de Janeiro e São Paulo teriam o controle unificado
em um único acionista. O conselho permanente assumiu em abril de
1913, em uma empresa financeiramente saneada e com excelentes pers‑
pectivas. Essa operação financeira permitiu a construção da então
maior usina hidrelétrica da América Latina em Ribeirão das Lajes, no
Município fluminense de Piraí. No tocante a distribuição de energia
elétrica, houve a unificação dos contratos de concessão da Capital, que
afastou a família Guinle dos negócios de energia. Essa operação era
fundamental para as pretensões do grupo no Brasil, pois o Rio de Ja‑
neiro, que tinha um pouco mais que o dobro da população de São Pau‑
lo, já tinha sido considerado em 1910 a cidade com melhor iluminação
do mundo, por força dos trabalhos advindos da Light.37
Vale destacar que, nessa década, também ocorreu rearranjo societário
no setor de telecomunicações em 1916 por força das investidas da Light,
que, por sua vez, promoveu a mudança de busca de valores da praça de
Londres para Nova York. Como contratempo, a proliferação da gripe
espanhola em 1918 dificultou substancialmente a manutenção das ati‑
vidades de infraestrutura.
Por sua vez, a Primeira Grande Guerra (1914­‑1918) fez com que
o setor de infraestrutura passasse por uma compulsória substituição
de importações, despertasse forças sociais que desencadearam a mili‑
tância trabalhista e possibilitou, pelo crescimento de sua importância
enquanto interesse público no início da década de 1920, a criação do
arcabouço jurídico que originou o imposto de consumo de energia
elétrica.
Diferentemente da década anterior, os anos 1920 foram de cres‑
cente desequilíbrio das contas externas, de decadência do modelo de
gestão política denominada “café com leite”, que fundava toda a pros‑

37
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 197.

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peridade nacional em cima da exportação do café, bem como de insur‑


gências revolucionárias, como foi o caso dos “Dezoito do Forte” no
Rio em 1922, e do movimento tenentista de São Paulo em 1924.
No que concerne à crise cambial, essa não se refletia no consumo
interno de energia, que mais que dobrou no eixo Rio-São Paulo nessa
década e contava com soluções paliativas no segmento de geração de
energia. Com a ausência de expansão significativa dos projetos hidre‑
létricos nos anos de 1910, o engenheiro hidrelétrico norte­‑americano
Asa White Kenney Billings foi contratado em 1922 para planejar e
construir a primeira expansão significativa do sistema elétrico, então
diagnosticado como no limite de produção.
A notável capacidade técnica de Billings em muito trespassou o
setor energético. Em que pesem movimentações financeiras globais já
serem comuns naquele período, a usina hidrelétrica na Ilha dos Pom‑
bos, seu primeiro projeto estruturante no Brasil, anteveio o que se de‑
nominou “globalização” na segunda metade do século XX e contou
com equipamentos de geração suíços e norte­‑americanos, cimento sue‑
co e comportas inglesas em um local então considerado “selvagem”
pelas civilizações europeias. E com a escassez energética de São Paulo
no início dos anos 1920, Billings discorria sobre a necessidade de resta‑
belecer o excedente energético na cidade. Começava, assim, a se dese‑
nhar o maior projeto energético, urbanístico e ambiental ocorrido no
Brasil até então, que selaria o futuro da cidade de São Paulo como
maior centro econômico do hemisfério sul.
A forte industrialização paulistana impunha a necessidade de
uma oferta de energia que as usinas hidrelétricas de Parnaíba, Ras‑
gão e Sorocaba não supririam isoladamente. Ao mesmo tempo, se
quisesse evitar a entrada de concorrentes, ou mesmo de uma inter‑
venção estatal, a Light deveria criar uma rápida solução energética
ao Município de São Paulo. E havia um grande obstáculo a ser ven‑
cido. Um desafio geográfico que se transformava em oportunidade
técnica e econômica.

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O problema residia na peculiaridade da geografia física brasileira.


Praticamente todas as concessões de fontes de energia hídrica e de usinas
geradoras mantidas no Brasil situavam­­‑se em rios que fluíam em um
gradiente gradual para o interior do país, onde acabavam por integrar o
sistema da enorme bacia hidrográfica dos rios Paraná e Paraguai. O inte‑
rior do Brasil poderia ser comparado a uma bacia enorme e rasa, para
cujo centro fluía uma imensa rede de rios que, por sua vez, conver­giam
para sistemas hidrográficos maiores tais como o do rio Amazonas, o São
Francisco e o Paraná. A borda dessa bacia gigantesca era formada pela
Serra do Mar, a cadeia acidentada e contínua de montanhas que se erguia
abruptamente da planície costeira, inclinando todo o volume de terra
brasileira para dentro. Em consequência, os rios do sul do Brasil, como
o Tietê, onde fica São Paulo, fluíam frequentemente longe da costa. “O
talude desses rios”, observara Billings certa feita, “é quase imperceptível.
Os vales são rasos e amplos, e o país se pa­rece com uma imensa planície
ondulada. O resultado é que as pesadas chuvas que caem sobre esse pla‑
tô, mesmo a poucos quilômetros do aclive escarpado da Serra do Mar,
correm sob a forma de rios lentos em direção ao sul.” As gran­des catara‑
tas existentes nessa confluência inclinada de rios, como as enormes cata‑
ratas do Iguaçu próximas à fronteira paraguaia, ficavam muito distantes
dos centros urbanos brasileiros para serem exploradas economicamente
com a tecnologia existente no final da década de 1920.
Por se concentrarem nos rios vagarosos que fluíam para o interior
do Brasil, os engenheiros da São Paulo Light haviam subestimado a
tremenda oportu­nidade para o desenvolvimento de energia hidrelétri‑
ca existente no topo da Serra do Mar. A pouca distância da costa de
Santos, o porto da cidade de São Paulo, a Serra do Mar se elevava a uma
altitude de pouco mais de 700 metros. Entre o sopé e o cimo dessa es‑
carpa, a precipitação das chuvas diferia de forma impressionante. Na
planície costeira ao pé da serra, com temperaturas eleva­das, o índice
pluviométrico ficava entre 1,8 metro e 2,4 metros por ano, mas, à pro‑
porção que o ar quente e úmido esfriava na subida da Serra, a precipi‑
tação atingia até 6,8 metros anualmente, antes de diminuir de forma
gradativa, à me­dida que as nuvens menos carregadas se dirigiam para o
interior. Esse notável padrão pluviométrico significava que a estreita
faixa de terra ao longo do topo da Serra recebia uma das maiores pre‑
cipitações pluviais do mundo. A constan­te inundação, tão perto de São

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Paulo, oferecia aos engenheiros hidrelétricos um volume de água ini‑


gualável que poderia ser utilizado na geração de energia. “É rara, nesta
parte do Brasil”, comentou Billings mais tarde, “a combinação entre
índice pluviométrico médio elevado, quedas altas, topografia favorá‑
vel, pontos esparsos para a formação de reservatórios e a proximidade
do mar e de um mercado em crescimento acelerado”.38

A presença da Light em São Paulo foi notadamente estrutural, sendo


de tamanha relevância, que se mistura ao próprio processo de indus‑
trialização e planejamento urbano, chegando ao extremo de reverter o
fluxo de rios em regiões atualmente abrangidas pela zona urbana me‑
tropolitana, obtendo assim forte característica imobiliária e de sanea‑
mento, na qual essa vanguarda chegou a deixar alguns integrantes da
elite paulista estupefata.

O projeto de Cubatão destinava­‑se, porém, a trazer muito mais


fama a Billings, aos olhos dos brasileiros, do que a qualquer de seus
antecessores. Ao inverter o fluxo dos rios e fazer com que suas águas
fluíssem sobre o rebordo da Serra, Billings não só desafiara a natureza
como também ganhara o respeito definitivo dos brasileiros, que (nas
palavras do jornalista Assis Chateaubriand) o admiravam como o
“Moisés americano”.39

Cabe destacar o Decreto n. 16.844, de 1925, que possibilitou essa


ação da Light, selou o destino da cidade que se tornaria, em duas gera‑
ções, o maior centro econômico e industrial da América Latina e do
hemisfério sul. O texto dessa norma é autoexplicativo e demonstra a
preocupação com os usos múltiplos das águas do rio Pinheiros.

Decreto n. 16.844, de 27 de março de 1925


Approva o plano das obras que The São Paulo Tramway, Ligth &
Power Company, Limited pretende executar nos municipios de Sallesopo-
lis, Santos, Mogy das Cruzes, São Bernardo, Santo Amaro e Itapecerica,

38
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 318-319.
39
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 322.

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no Estado de São Paulo, para aproveitamento da força hydraulica do rio


Tieté e de alguns de seus affluentes, e declara a urgencia da desapropriação
dos terrenos e bemfeitorias comprehendidos nas respectivas plantas.
O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil, atten‑
dendo ao que requereu a The São Paulo Tramway, Light & Power Com‑
pany, Limited, concessionaria, nos termos do decreto n. 6.192, de 23 de
outubro de 1906, dos favores constantes do decreto n. 5.646, de 22 de
agosto de 1905, para o aproveitamento de força hydraulica, e tendo em
vista o disposto no art. 1o e alinea 2a do art. 2o do citado decreto n. 5.646,
e as informações prestadas pela Inspectoria Federal das Estradas,
Decreta:
Art. 1o Fica approvado o plano nas obras que “The São Paulo
Tramway, Light & Power Company, Limited” pretende executar nos
municipios de Sallesopolis, Santos, Mogy das Cruzes, São Bernardo,
Santo Amaro e Itapecerica, no Estado de São Paulo, de accôrdo com as
plantas e o memorial que com este baixam, rubricados pelo director
geral de Expediente da Secretaria de Estado dos Negocios da Viação e
Obras Publicas, para aproveitamento da força hydraulica do rio Tieté
e de seus affluentes Beritiba, Jundiahy, Tayassupeba­‑Assú, Balainho,
Tayassupeba­‑Mirim, Grande, Paralheiros e M’Boy­‑Guassú.
Paragrapho unico. Na execução das obras comprehendidas no
plano ora approvado, – The São Paulo Tramway, Light & Power Com‑
pany, Limited – fica obrigada a observar as seguintes condições:
a) não prejudicar o abastecimento de agua das populações que
seriam naturalmente servidas pelo mananciaes a captar;
b) executar as obras que opportunamente forem julgadas necessa‑
rias para que o aumento de descarga do rio Cubatão não venha a per‑
turbar o regimem das aguas nas proximidades da cidade de Santos;
c) substituir ou reconstituir de accôrdo com as exigencias dos
poderes publicos, todas as obras de interesse publico, inclusive estra‑
das de rodagem, caminhos e linhas telegraphicas, que ficarem inutili‑
zadas ou prejudicadas em consequencia das obras previstas no plano
ora approvado.
Art. 2o Os terrenos e bemfeitorias comprehendidos nas plantas
ora approvadas ficam desapropriados, na conformidade do disposto
no art. 1o do decreto n. 5.646, de 22 de agosto de 1905, e de accôrdo

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com o art. 590, § 2o n. III, do Codigo Civil e art. 8o do regulamento


approvado pelo decreto n. 4.956, de 9 de setembro de 1903.
Art. 3o Nos termos e para os fins do art. 2o, § 3o, do decreto n.
1.021, de 26 de agosto de 1903, e do art. 41 do decreto n. 4.956, de 9 de
setembro do mesmo anno, fica declarada a urgencia da desapropriação
dos terrenos e bemfeitorias a que se refere o art. 2o do presente decreto.
Rio de Janeiro, 27 de março de 1925, 104o da Independencia e 37o
da Republica.
Arthur da Silva Bernardes.
Francisco Sá.

O desdobramento de tais ações teve repercussão decisiva no avan‑


ço epistemológico do Direito da Energia, do Ambiental e do Urbanís‑
tico brasileiro inversamente proporcional à profundidade dos estudos
jurídicos até então realizados. Além da farta oferta energética que São
Paulo obteve após esse empreendimento, que reconfigurou a dinâmica
econômica nacional, a canalização e inserção do curso do rio Pinheiros
possibilitou enormes vantagens financeiras à Light.
A “The São Paulo Tramway Light and Power Company Ltd” foi
autorizada pela Lei do Estado de São Paulo n. 2.249, de 27 de novem‑
bro de 1927, promulgada pelo governador Júlio Prestes, a canalizar,
alargar, retificar e aprofundar o leito do rio Pinheiros e de alguns dos
seus afluentes, de forma a inverter seu curso, utilizar as águas exce‑
dentes do rio Tietê e explorar o sistema de transporte.40 Com isso, a
companhia pôde se apropriar de áreas então consideradas “alagadi‑
ças”, com os limites da concessão sendo delimitado pela área a ser
inundada com base na linha perimétrica de enchente. Nessa previsão
contratual, nascia a reorientação urbanística ocorrida em São Paulo,
que provocou um forte adensamento populacional às margens dos
rios canalizados.

40
PONTES, José Alfredo O. V. Pinheiros: do rio ao canal. In: História & energia.
São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo/Eletropaulo,
n. 5, 1995, p. 26 e segs.

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Para Seabra,41 a Light teria estabelecido um quadro especulativo,


decorrente de acordos privados para fornecimento de serviços de
transporte junto a companhias imobiliárias, bem como a influência
exercida para a alteração do projeto de retificação do rio Tietê e da ca‑
nalização do rio Pinheiros para geração de energia. Para Fix,

Os arredores do rio Pinheiros foram alvo de estratégias imobi‑


liárias desde a incorporação de suas várzeas à cidade, por meio das
obras de retificação do rio, nos anos 1930, que tornaram a empresa
canadense Light & Power detentora do monopólio de produção e
distribuição de energia, proprietária de 21 milhões de metros quadra‑
dos na cidade [...]. A transformação de uma região pantanosa, entre o
espigão da Avenida Paulista e o rio Pinheiros, na região mais valori‑
zada da cidade – o chamado quadrante sudoeste – se deu por meio de
uma articulação entre capital financeiro internacional, mercado de ter‑
ras, legislação urbanística e redes de infraestrutura, para a produção
dos loteamentos residenciais da Cia. City, empresa criada por um
banqueiro belga e um arquiteto francês. ‘A racionalidade do capital
monopolista já se manifesta nessas grandes concessionárias de servi‑
ços públicos, na incorporação de novas tecnologias importadas do
exterior (iluminação, bondes elétricos) e nas grandes companhias lo‑
teadoras’, em um período no qual São Paulo se afirma como principal
núcleo industrial do país.42

No mesmo sentido, Paschkes fortalece o entendimento de que a


Light tinha em São Paulo, como grande atividade econômica, senão a
principal, a exploração imobiliária.

Além do transporte urbano, a expansão dos negócios da Light


foi marcante no setor de geração e distribuição de energia elétrica.

41
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Os meandros do rio nos meandros do po-
der: Tietê e Pinheiros, valorização dos rios e das várzeas na Cidade de São Paulo.
1987. Tese (Doutorado) – Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia,
Universidade de São Paulo.
42
FIX, Mariana. Uma ponte para a especulação – ou a arte da renda na montagem
de uma “cidade global”. Cad. CRH. v. 22, n. 55, Salvador, jan./abr. 2009.

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Somada ao primeiro, os dois negócios tiveram importante papel na


ocupação do solo urbano, atuando intensamente no processo de va‑
lorização dos espaços da cidade e na delimitação do lugar de cada um
na cidade. A simples possibilidade do empreendimento de novas li‑
nhas de bondes numa dada região, ligando­‑a ao conjunto da cidade e,
consequentemente, levando infraestrutura para o fornecimento de
energia elétrica, já era fator preponderante para a valorização das ter‑
ras adjacentes a elas. Assim sendo, pela lógica da expansão dos bon‑
des a empresa valorizava suas áreas e dos outros agentes a ela
associados. O processo se dava em vários níveis, num primeiro mo‑
mento ocorria o assentamento de pequenos trechos, dando margem
ao início de uma demanda por imóveis enquanto a área se valorizava.
Logo em seguida, a Light completava a linha. Os terrenos da Light
valiam muito mais.43

Essa preocupação imobiliária serviu para fomentar na sociedade


paulistana um dos maiores questionamentos sobre a atuação da Light
no Brasil, por conta da grande enchente ocorrida no verão de 1928­‑1929.44
O fato foi que havia inundações na cidade mesmo sem chuvas. O jornal
O Estado de S. Paulo, por exemplo, no dia 15 de fevereiro de 1929, des‑
creveu que os rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros inundavam vastas
áreas, várzeas e ruas inteiras dos bairros que atravessavam. As ruas mar‑
ginais estavam cobertas pelas águas e, no dia seguinte, chegou a enun‑

43
PASCHKES, Maria Luisa N. de Almeida. Bondes, terrenos e especulação. In:
História & energia. São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico da Ele‑
tropaulo/Eletropaulo, maio de 1986, p. 41 e segs. Para aprofundamento da
questão, LORENZO, Helena Carvalho de. Eletricidade em São Paulo na dé‑
cada de 1920. In: LORENZO, Helena Carvalho de; COSTA, Wilma Peres
(orgs.). A década de 20 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Edunesp,
1997. p. 177-178.
44
Interessante notar que a alegação ocorreu sete meses após a saída de Alexander
Mackenzie da presidência da Light, ocupada então por Miller Lash que, diferen‑
temente de seu antecessor, que tinha quase 30 anos de experiência no Brasil, não
residia no país, não falava português e muito pouco conhecia as peculiaridades
nacionais tão bem geridas pelo antecessor.

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ciar que, mesmo diante da trégua das chuvas, os rios continuavam a ter
seus níveis elevados. Para Santos,45

O episódio que deu origem à incorporação das terras pela Light


aconteceu em decorrência das fortes chuvas que assolaram a região no
verão de 1928­‑1929, quando o mês de janeiro registrou os maiores ín‑
dices pluviométricos, contudo, a grande enchente registrada se deu em
18 de fevereiro de 1929. Os índices pluviométricos registrados nos dias
6, 7 e 8 de fevereiro foram altos, cerca de 142 milímetros (mm), na Luz,
provocando inundações em determinadas regiões, mas sem gravidades;
nos dias 9, 10 e 11 choveu menos, mas retomando a força nos dias 12 e
13, quando o índice pluviométrico chegou em torno de 91,4 mm na
região da Luz. Já no dia 14 a chuva diminuiu e do dia 15 ao 20 seguiu­‑se
uma fase de estiagem. Curiosamente, a maior inundação registrada nos
rios Tietê e Pinheiros, durante estes dias, ocorreu no quarto dia seco,
passados cinco dias após as últimas chuvas intensas, nas cabeceiras dos
dois rios. Outro episódio curioso foi o fato “comprovado” de que a
Light abriu as comportas dos reservatórios Billings e Guarapiranga
desde o dia 14, enquanto a barragem à jusante da usina de Paranaíba
provavelmente tinha sido fechada, motivando, assim, a inundação.46

Em suma, com o significativo aumento demográfico paulistano,


aliado à ausência de recursos internacionais que ocorreria em 1929,
com o afastamento definitivo de Alexander Mackenzie da gestão do
Grupo Light e a fragilidade institucional do planejamento urbano da
cidade de São Paulo, acabou por fazer com que a expansão urbana
da cidade fosse caracterizada por agentes privados e heterogêneos, sem

45
SANTOS, Fabio Alexandre dos. Domando as águas: salubridade e ocupação do
espaço na cidade de São Paulo, 1875-1930. 2006. Tese (Doutorado) – Instituto de
Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006, p. 289.
46
No mesmo sentido, SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Os meandros dos rios
nos meandros do poder. Tietê e Pinheiros: valorização das várzeas na cidade de
São Paulo. 1987. Tese (Doutoramento) – FFLCH, USP, São Paulo; e Enchentes
em São Paulo. Culpa da Light? In: Memória. São Paulo: Departamento de Patri‑
mônio Histórico da Eletropaulo, ano 1, n. 1; Janes Jorge, 2005.

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definir uma centralidade de fato e em consonância com interesses de


segmentos imobiliários, preço este que as gerações paulistanas futuras
continuam a pagar pela ausência de parques, caótico sistema viário e
baixo investimento metroviário. Ao mesmo tempo, a Light começava
a se deparar com uma concorrência estruturada.

Em 1927, a Electric Bond and Share Company, subsidiária inte‑


gralmente pertencente à General Electric Corporation, comprou as pro­
priedades das Empresas Elétricas Brasileiras, a companhia elétrica da
família Guinle, e de forma surpreendente adquiriu mais 17 pequenas
empresas de ele­tricidade em Recife, Bahia, Vitória, Petrópolis, Niterói,
Curitiba, Porto Alegre e área do estado de São Paulo. Repentinamente,
a Brazilian Traction passou a ter um grande concorrente com as finanças
bem administradas e agressivo. Embora as empresas controladoras da
Electric Bond and Share não estivessem claramente concentradas numa
só área compacta como as da Brazilian Trac­tion, a rapidez da chegada da
Electric Bond and Share ao cenário brasileiro causou bastante alarme.”47

No tocante à parte carioca da Light pós­‑unificação societária, os


grandes projetos de geração estruturantes (Ilha dos Pombos e Fontes)
somente foram concluídos após a publicação do Código de Águas, res‑
pectivamente em 1937 e 1947, momento em que a União federalizou o
interesse público em energia e a Light começou a perceber um gradual
esvaziamento de suas funções de planejadora da expansão do sistema
elétrico. Todavia, antes da existência desse Código, a necessidade de
transporte eletrificado ganhou contornos de indispensabilidade na via‑
bilização industrial da Baixada Fluminense e de suas vilas operárias, no
adensamento demográfico da faixa litorânea entre o Leme e o Leblon e
no novo planejamento urbano do centro da Capital, que teve como
marco a derrubada do Morro do Castelo.
Nesse cenário de alta mobilidade urbana, houve uma crescente
mistificação do uso do bonde e no decorrente choque cultural que ele

47
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 353.

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proporcionava ao juntar cidadãos de todas as classes. O bonde tem um


capítulo cultural especial no imaginário carioca. Descarrilar um bonde
era considerado um ato de protesto social nas duas primeiras décadas
do século XX, uma forma de demonstrar insatisfação social perante as
grandes mudanças urbanas e econômicas e em face do capital estran‑
geiro. Há significativos reflexos culturais do bonde na música, desde as
inúmeras marchinhas de carnaval, passando pela bossa­‑nova e culmi‑
nando nos movimentos suburbanos do funk no início do século XXI.
A Light, no auge, chegou a empregar 50 mil funcionários no final
da década de 1940 atuando em energia, transportes urbanos e telefone,
momento no qual o Brasil passou a estatizar as empresas de serviços
públicos no intuito de comandar seu próprio crescimento. A Light,
enquanto empresa canadense, foi estatizada em 1979, por intermédio
de venda dos acionistas ao Estado brasileiro.48

2.4 Da Inspetoria Geral de Iluminação – IGI


O Decreto n. 9.032­‑A, de 17 de novembro de 1911, conferiu regu‑
lamento a “Inspectoria Geral de Illuminação”.49 A norma, aprovada
pelo presidente Hermes da Fonseca por força da autorização confe‑
rida pelo art. 32, n. XXXV, da Lei n. 2.356, de 31 de dezembro de 1910,
pode ser considerado o primeiro regulamento republicano sobre ener‑
gia. Mais do que isso, é o primeiro registro jurídico de um agente go‑
vernamental instituído de poderes para fiscalizar a prestação de serviços
e mediar os interesses entre prestadores e consumidores. Em seus 77
artigos, regulamenta o serviço de iluminação pública e particular, a gás
e a eletricidade, no Rio de Janeiro, então Capital Federal brasileira.

48
Para mais informações sobre a venda da Light à União: VEIGA FIALHO, A
compra da Light: o que todo brasileiro deve saber. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979.
49
Importante lembrar, conforme exposto no item 1.1.3, que em 1861, por força do
Decreto n. 2.809, foram aprovadas as instruções para a fiscalização e regime do ser‑
viço da iluminação a gás no então Império Brasileiro.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Havia, principalmente, uma relação monopolista, na qual apenas a


“Société Anonyme du Gaz”50 estava habilitada a fornecer gás e eletri‑
cidade à Capital Federal. Todavia, com o rápido crescimento da emer‑
gente metrópole, o presidente Wenceslau Braz, por meio do Decreto
n. 12.020, de 5 de abril de 1916, conferiu novo regulamento à Inspeto‑
ria, à qual competia o estudo e solução das questões que se relacionas‑
sem com o serviço de iluminação pública e particular no Rio de Janeiro.
O Decreto n. 12.020, de 1916, consolidava a experiência da relação an‑
terior em 44 artigos e possibilitava a entrada de novos ofertantes de
serviço público de iluminação.
A Inspetoria estava incumbida de fiscalizar a execução dos contra‑
tos relativos à iluminação pública e particular, bem como agir enquan‑
to representante do Governo, zelar e acautelar os interesses do Estado
e dos particulares, no que entender com os serviços a seu cargo, deci‑
dindo em casos de divergência, como intermediário oficial entre os
particulares e os contratantes da iluminação. Havia ainda a responsabi‑
lidade de proceder a experiências, análises e estudos que se tornassem
necessários para verificação da qualidade da luz e do gás, de forma a
fiscalizar a produção e distribuição do gás e da energia elétrica destina‑
dos à iluminação, com o fim de verificar que o serviço se fizesse, quan‑
to possível, ao abrigo de interrupções e acidentes. Importante manter
na íntegra o registro das competências da Inspetoria, como forma de
demonstrar que os princípios da regulação setorial já estavam contem‑
plados na legislação brasileira do início do século XX.

50
O Governo já havia decidido, em outras épocas, rever o aludido contrato, cf. mos‑
tra a Lei n. 490, de 16 de dezembro de 1897, que “fixa a despeza geral da Republi‑
ca dos Estados Unidos do Brazil para o exercicio de 1898, e dá outras providencias”,
na qual no art. 10 autorizou o Governo a “9) a rever o contracto com a Sociedade
Anonyma do Gaz do Rio de Janeiro, afim de ser melhorada, sem prejuizo do ser‑
viço existente, a illuminação da Capital por meio da electricidade ou outro proces‑
so aperfeiçoado, podendo reduzir ou transformar os encargos impostos á
companhia, assim como os favores daquelle contracto, os quaes poderá ampliar,
comtanto que dahi não resulte onus para o Thesouro nem para os consumidores”.

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Curso de Direito da Energia

Art. 2o No desempenho dos encargos que pelo presente regula‑


mento lhe são confiados, deverá esta repartição:
§ 1o Fiscalizar a execução dos contractos relativos á illuminação
publica e particular da Capital Federal, agindo como representantes
do Governo.
§ 2o Zelar e acautelar os interesses do Estado e dos particulares,
no que entender com os serviços a seu cargo, decidindo em casos de
divergencia, como intermediario official entre os particulares e os con‑
tractantes da illuminação.
§ 3o Proceder a experiencias, analyses e estudos que se torna‑
rem necessarios para verificação da qualidade da luz e do gaz distri‑
buindo para illuminação ou outro qualquer mister, tendo em vista as
prescripções contractuaes e quaesquer disposições legaes que regu‑
lem o assumpto.
§ 4o Fiscalizar a producção e distribuição do gaz e da energia elec‑
trica destinados á illuminação, com o fim de verificar que o serviço se
faça, quanto possivel, ao abrigo de interrupções e accidentes.
§ 5o Aferir os medidores antes de serem collocados, e em qual‑
quer tempo verificar, sendo necessario, a exactidão de suas indicações,
providenciando como convier para acautelar os interesses em jogo, no
caso de haver erro de marcação excedente ao limite de tolerancia que
fôr convencionado.
§ 6o Ministrar aos consumidores, ou a quaesquer interessados,
instrucções ou informações que lhe sejam solicitadas quanto ás obriga‑
ções reciprocas dos contractantes da illuminação e dos particulares.
§ 7o Tomar conhecimento das reclamações dos particulares,
dando­‑lhes, quando na sua alçada, solução.
§ 8o Inspeccionar as installações de luz, de accôrdo com um codi‑
go cuja organização lhe incumbirá e que pelo menos de tres em tres
annos será revisto.
§ 9o Examinar e conferir titulo de habilitação aos que se propuze‑
rem a fazer installações de gaz ou de electricidade, regulamentando o
respectivo exame e o exercicio dessa profissão.
§ 10. Acompanhar os progressos que se forem realizando na in‑
dustria da illuminação, a gaz e electricidade, e propôr ao Governo os
melhoramentos que devam ser adoptados.

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O presente Decreto, além de instituir a Inspetoria, cria o regime


jurídico no qual seus servidores prestarão seus serviços,51 incluindo pe‑
nalidades para eventuais faltas perante o dever de cumprir suas obriga‑
ções junto à Inspetoria, bem como elenca a qualificação dos profissionais
que exercerão as atividades mencionadas.
Como exemplo de maior representante da regulamentação, fisca‑
lização e mediação da prestação de serviço de iluminação, cabia ao
Inspetor: (i) prescrever normas; (ii) dirigir e inspecionar toda a pres‑
tação do serviço; (iii) propor melhorias ao ministro da Viação, ao
qual estava vinculado; (iv) fiscalizar o trabalho, a assiduidade e o pro‑
cedimento dos seus subordinados; (v) fazer as nomeações de sua
competência; (vi) impor penas disciplinares; (vii) assinar certificados
de aferição dos medidores; (viii) estabelecer instruções regulamenta‑
res; (ix) providenciar para que sejam cumpridas pelos contratantes as
estipulações dos seus contratos com o Governo; (x) intervir em todos
os serviços a cargo dos contratados, multando­‑os nos casos previstos
nos respectivos contratos; (xi) dirimir as dúvidas ou divergências que
se suscitem entre os particulares e a empresa contratante; (xii) orga‑
nizar código em que sejam compendiadas as condições a que devam
satisfazer as instalações elétricas, de gás e o respectivo material; den‑
tre outros.
Por sua vez, ficava a cargo dos engenheiros ajudantes: (i) inspecio‑
nar a rede de distribuição da eletricidade, as subestações e todas as ins‑
talações, dando conta ao Inspetor do Estado em que as encontrar, das
medidas de segurança ou dos melhoramentos que se tornarem necessá‑
rios; (ii) fiscalizar o serviço de assentamento, substituição ou modifica‑
ção das canalizações elétricas e de gás; (iii) orçar, de acordo com as

51
Os serviços que cabem à Inspetoria Geral de Iluminação serão desempenhados
por 1 inspetor; 3 engenheiros ajudantes; 1 engenheiro eletricista; 1 chefe de labo‑
ratório; 8 fiscais de 1a classe; 1 auxiliar de laboratório; 1 auxiliar técnico; 4 fiscais
de 2a classe; 3 aferidores eletricistas; 1 aferidor de gás; 1 oficial; 2 escriturários;
1 amanuense; 1 contínuo; e 1 servente.

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Curso de Direito da Energia

tarifas que vigorarem, os trabalhos feitos pelos contratantes nas redes


de gás e de iluminação pública elétrica por conta de primeiro estabele‑
cimento, e verificar o orçamento dos trabalhos já executados; (iv) indi‑
car melhoramentos; (v) organizar novos projetos ou modificar aqueles
já existentes, de acordo com as determinações emanadas do Inspetor;
(vi) proceder anualmente ao exame da tarifa ou tabela de preços para a
execução de serviços de iluminação pública e particular que constituam
privilégio dos contratantes da iluminação, a qual dependerá da aprova‑
ção do Inspetor; (vii) informar ao Inspetor sobre as reclamações de
consumidores, dentre outros.
No tocante às competências técnicas, competia ao engenheiro ele‑
tricista: (i) dirigir o serviço de exame, aferição e reaferição dos medido‑
res elétricos; (ii) inspecionar as instalações elétricas dos edifícios
públicos, teatros, casas de diversões e demais unidades de consumo;
(iii) examinar o material elétrico destinado a iluminação pública ou
particular; (iv) estudar novas tecnologias; (v) verificar a voltagem na
rede de distribuição etc.
Ao auxiliar do Inspetor cabia, dentre outras atividades, a de apre‑
sentar mensalmente um relatório completo dos serviços a seu cargo
durante o mês anterior. Ao chefe do laboratório competia: (i) analisar
a qualidade do gás distribuído para iluminação; (ii) dirigir o serviço de
aferição dos medidores de gás, para esclarecer o direito do consumidor
ou dos contratantes; (iii) proceder ao estudo dos combustíveis e equi‑
pamentos; e (iv) examinar e dar parecer sobre novos tipos de medido‑
res ou quaisquer aparelhos subsidiários da distribuição do gás.
Naquilo que concerne às atividades de fiscalização, constava no
rol das principais atividades dos fiscais: (i) inspecionar a iluminação
pública, de acordo com as instruções conferidas pelo Inspetor; (ii) ins‑
crever diariamente, em um livro especial de registro, as observações
que tiverem feito na inspeção da véspera, dando ao Inspetor comuni‑
cação das irregularidades encontradas; (iii) verificar o funcionamento
dos medidores de gás e de eletricidade nos casos de reclamações sobre

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o consumo por eles indicado; (iv) proceder às vistorias nos casos de


denúncias de fraude contra qualquer consumidor, ou queixa dos parti‑
culares contra os contratantes do serviço; (v) proceder às inspeções das
instalações domiciliárias que lhes forem distribuídas pelo Inspetor; e
(vi) apresentar mensalmente ao Inspetor um resumo dos serviços feitos
durante o mês anterior. Por fim, ao Oficial cabia o expediente, a escri‑
turação, a contabilidade e o arquivo da repartição, sendo função dos
escriturários e dos amanuenses auxiliar o Oficial nos diversos serviços
que por este regulamento lhe são confiados, de acordo com a distribui‑
ção feita pelo Inspetor.
Com essa regulamentação, que envolvia a atividade de distribuição
de gás e energia elétrica, concomitante e em paralelo à finalidade públi‑
ca e privada da prestação do serviço, cabe expor como tais institutos
proporcionaram o desenvolvimento do Brasil, bem como qual foi o
sistema normativo que levou à codificação setorial em 1934.

2.5 Da instituição do horário de verão


A apropriação do tempo pelo homem foi uma das maiores revolu‑
ções ocorridas na história. Com a instituição do relógio mecânico, a
humanidade se libertou da dependência dos astros, do Sol, de forma a
ordenar sua produtividade e bem­‑estar sob uma medição antropocên‑
trica. Com isso, pôde­‑se ordenar o trabalho e, mais, conhecer quanto
esse vale. Assim, foi possível medir o custo do trabalho, estabelecer o
número de horas que eram gastas em um projeto. Para Zakaria, antes
do relógio o tempo não tinha valor mensurável.52
Uma das grandes contribuições do setor elétrico pré­‑Código de
Águas foi prever o conceito de horário de verão em 1931. Esse institu‑
to consiste no adiantamento artificial do tempo em uma hora, de forma
a criar uma defasagem em relação ao horário previsto no Tempo Uni‑

52
Para aprofundamento dos estudos, ZAKARIA, Farred. O mundo pós-america-
no. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

112

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versal Coordenado.53 Esse procedimento permite um melhor aprovei‑


tamento da luz natural no solstício de verão, quando os dias são mais
longos que as noites, ou seja, alvorece mais cedo e anoitece mais tarde.
Como o Brasil é um país majoritariamente tropical, com a maior
parte do território entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio, a
aplicação do horário de verão é significativa nas regiões mais próximas
aos polos do que aquelas dispostas próximas à linha do Equador, pois
estas não sofrem alterações significativas de insolação ao longo do ano.
De forma reversa, as regiões mais ao sul do país, notadamente aquelas
mais próximas do Trópico de Capricórnio do que da linha do Equador,
apresentam substancial diferença entre a luminosidade solar do verão e
do inverno.
A hora da penumbra ao amanhecer é considerada o aspecto deter‑
minante para a escolha do período de duração do horário de verão. Se
considerarmos o setor elétrico em apartado do sistema jurídico nacio‑
nal, a duração do horário de verão em regra deveria abranger do mês
de outubro ao mês de fevereiro, de forma a diminuir o consumo ener‑
gético, que nesse período é elevado graças à necessidade de refrigera‑
ção de ambientes.
Todavia, é um equívoco pensar que a única função do horário de
verão é a economia de energia. Sequer podemos considerar essa carac‑
terística como a mais importante. Seu principal objetivo é reduzir a
demanda máxima durante a hora de ponta de carga do sistema elétrico
interligado. Em outras palavras, se considerarmos às 19h o horário de

53
O Tempo Universal Coordenado, derivado do inglês Universal Time Coordina-
ted – UTC, também conhecido como tempo civil, é o fuso horário de referência
a partir do qual se calculam todas as outras zonas horárias do mundo. Esse ins‑
tituto sucedeu o Tempo Médio de Greenwich, de forma a eliminar a inclusão de
uma localização específica num padrão internacional. Assim, se tomarmos como
exemplo o horário de Brasília, o Tempo Universal Coordenado está três horas
adiantado. Isto é, se são 19 h em Brasília, são 22 h no padrão UTC. Mas se for em
período de horário de verão, se são 19 h em Brasília, são 21 h no padrão UTC.

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maior consumo de energia elétrica no país no mês de novembro, pelo


emprego concomitante de chuveiros elétricos, televisores, ares­‑condicio­
nados, o sistema elétrico teria que ser dimensionado de forma mais robus‑
ta para atender uma pequena fração de tempo. Com o horário de verão,
esse investimento não é necessário, tornando o sistema mais racional,
econômico, seguro e confiável.
Com essa distribuição da carga no tempo, por meio do melhor
aproveitamento da iluminação natural, reduz­‑se o risco de blecautes.
Importante lembrar que, com a tecnologia atual implementada em lar‑
ga escala, o elétron não é estocável em escala industrial. Não há condi‑
ções de, fazendo uma mal­‑alinhavada comparação com outro serviço
público, haver “congestionamento de elétrons”, como ocorre nos lo‑
gradouros públicos das grandes cidades brasileiras. Qualquer tipo de
“engarrafamento” ocasionaria blecaute e, por conseguinte, necessidade
de aumentar as tarifas para recompor o custo para consertar ou repor
os equipamentos elétricos que as concessionárias de energia teriam.
Atualmente, é falso compreender o horário de verão como benéfico
apenas ao setor elétrico. Com o maior aproveitamento da luminância so‑
lar, há a possibilidade de se aumentar as horas de lazer da população, haja
vista escurecer mais tarde. Há também a preservação do meio ambiente,
por se evitar a poluição que seria produzida pela queima de combustível
fóssil na geração térmica de energia elétrica, bem como a contribuição
para a eficiência energética. O horário de verão ocorre à meia­‑noite dos
domingos, de maneira a facilitar a adaptação da população ao desloca‑
mento do horário, bem como dar ampla publicidade ao ato.
Logo, se a Geografia, que alguns autores denominam como Física,
pode ser compreendida como o estudo das características naturais exis‑
tentes na superfície terrestre, ela está devidamente prevista em norma
para a finalidade de produzir efeitos temporais (ordenação de fusos
horários) mediante critério espacial (território). Logo, o Decreto
n. 20.466, de 1° de outubro de 1931 criava um novo paradigma na ges‑
tão pública brasileira, devidamente justificada em seu preâmbulo.

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Decreto n. 20.466, de 1 de outubro de 1931


Estabelece a hora de economia de luz no verão em todo o territo‑
rio brasileiro
O Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados
Unidos do Brasil:
Considerando que a hora de economia de luz no verão póde ser
adotada com grande proveito para o erario publico;
Considerando que a pratica dessa medida, já universal, trás igual‑
mente grandes beneficios ao publico, em consequencia da natural eco‑
nomia da luz artificial;
Considerando que a execução dessa providencia consiste apenas
em avançar de uma hora os ponteiros dos relogios;
Decreta:
Artigo unico. Fica adotada, em todo o territorio nacional, a hora
de economia de luz no periodo de 3 de outubro a 31 de março.
Paragrafo unico. Todos os relogios no Brasil deverão ser avança‑
dos, de uma hora, ás 11 horas (hora legal) do dia 3 de outubro, e assim
devem ser mantidos até ás 24 horas do dia 31 de março, quando volta‑
rá a prevalecer a hora legal.
Rio de Janeiro, 1 de outubro de 1931, 110º da Independencia e 43º
da Republica.
Getulio Vargas.

2.6 As Geociências na República Velha: primeiro o solo,


depois o subsolo.54
Com a abolição da escravatura em 1888 e o advento da República
em 1889, não se concebia explorar o subsolo sem organizar as proprie‑
dades do solo. O Brasil obteve a regulamentação do serviço cartorial
em 1890, denominado à época de “geográfico”. A concepção de Geo‑

54
Capítulo retirado de UGEDA SANCHES, Luiz Antonio. O geodireito enquan-
to identificação do conteúdo da geografia no direito: o caso do setor de energia
como propulsor de desenvolvimento regional. 2010. Dissertação (Mestrado em
Geografia) – PUC/SP, São Paulo.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

grafia se transformava na República, que passava, assim, como era a


Cartografia, a ser uma especialização da atividade do engenheiro. Inte‑
ressante notar que essa atividade ficaria sob a responsabilidade de mi‑
nistério militar – da Guerra –, demonstrando o caráter estratégico que
o ordenamento territorial adquiria na República Velha. O preâmbulo
da normativa afeita à questão pormenoriza o interesse público em tela.

Decreto n. 451 A – de 31 de maio de 1890


Reorganiza o Observatorio do Rio de Janeiro, creando o serviço
geographico, que lhe ficará annexo, e transfere­‑o para o Ministério da
Guerra.
O Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos
do Brazil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação,
considerando:
Que é de urgente necessidade reorganizar­‑se o Observatorio do
Rio de Janeiro, pondo­‑o em pé de satisfazer os fins a que é naturalmen‑
te destinado;
Que convem aproveitar tão util instituição de sorte que nella
completem seus estudos os engenheiros geographos e officiaes do
estado­‑maior, adquirindo os conhecimentos praticos indispensaveis
para o bom desempenho das commissões, que ser­‑lhes­‑hão confiadas,
commissões entre as quaes salientam­‑se as que visam a fixação dos li‑
mites do territorio da Republica:
Resolve reorganizar o Observatorio do Rio de Janeiro, pelo regu‑
lamento que baixa com o presente decreto, creando ao mesmo tempo
o serviço geographico, que lhe ficará annexo, e transferil­‑o para o Mi‑
nistério da Guerra.
O Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Instrucção
Publica, Correios e Telegraphos assim o faça executar.
Palacio do Governo Provisorio, 31 de maio de 1890, 2o da Republica.
Manoel Deodoro da Fonseca

A justificativa desse Decreto foi elaborada por Rui Barbosa, que


fundamentava perante o então presidente, general Deodoro da Fonse‑
ca, a criação do Serviço Geográfico, com o objetivo de satisfazer um
anseio econômico e jurídico.

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Generalissimo. – A instituição consagrada no projecto que temos


a honra de submetter­‑vos, representa a mais adeantada phase das idéas
contemporaneas quanto á propriedade territorial, o mais bemfazejo de
todos os regimens para o seu desenvolvimento e fructificação nas so‑
ciedades hodiernas. Consiste o seu fim em estabelecer um systema effi‑
caz de publicidade immobiliaria, e commercializar a circulação dos
titulos relativos ao dominio sobre a terra.
O ideal dos economistas e jurisconsultos seria, no dizer de um
publicista italiano, “constituir registros publicos, onde fosse facil e ex‑
pedita a demonstração da propriedade territorial, bem como a investi‑
gação dos direitos reaes incidentes á propriedade immovel, e reunir em
um só os varios institutos de publicidade existentes entre nós, a saber:
cadastro, registro, hypotheca e transcripções”. Só por esse meio se lo‑
graria constituir uma especie de estado civil da propriedade immobilia‑
ria, correspondente ao estado civil das pessoas, e um bom systema de
mobilização da propriedade estavel, sem o qual baldado será esperar
organização perfeita do credito territorial.

As províncias também começavam a se organizar administrati‑


vamente. O geólogo norte­‑americano Orville Derby se afastou do
Museu Nacional em 1890 para assumir o órgão geológico paulista.
Na esfera federal, o Decreto n. 859, de 13 de outubro de 1890,
criou no observatório do Rio de Janeiro uma escola de Astronomia
e de Engenharia Geográfica, e o Decreto n. 1.294, de 17 de janeiro
de 1891, criou no Instituto Nacional dos Cegos a cadeira de Geografia
Universal.
A partir da Constituição de 1891, o conceito jurídico de descentrali‑
zação administrativa passa a ser descrito em norma. Mesmo que omitindo
a expressão “local” para atribuí­‑la aos Estados ou aos Municípios, o art. 68
da Constituição Federal de 1891 conferia autonomia às municipa‑
lidades adstrita ao que se denominou “peculiar interesse”.55 A ex‑

55
Art. 68. Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia
dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.

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ceção ficava a cargo do que se denominou “despesas de caráter local”56


do Distrito Federal. Outra grande inovação dessa Constituição Fede‑
ral foi prever a existência dos Estados, que por sua vez estavam dota‑
dos de territórios, bem como a transferência da capital federal para a
região denominada “planalto central da República”.

Art 1o A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o


regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de no‑
vembro de 1889, e constitui­‑se, por união perpétua e indissolúvel das
suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.
Art 2o Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o
antigo Município Neutro constituirá o Distrito Federal, continuando
a ser a Capital da União, enquanto não se der execução ao disposto no
artigo seguinte.
Art 3o Fica pertencendo à União, no planalto central da Repúbli‑
ca, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportuna‑
mente demarcada para nela estabelecer­‑se a futura Capital federal.
Parágrafo único – Efetuada a mudança da Capital, o atual Distri‑
to Federal passará a constituir um Estado.

Na década seguinte, o ano de 1902 foi de grande relevância para as


Geociências. Fruto da reportagem da guerra de Canudos de 1896, Eu‑
clides da Cunha publicou, após receber as opiniões de Derby, sua obra
magna Os Sertões, de grande e consistente significado geocientífico. O
Decreto n. 908­‑A, de 13 de novembro de 1902,57 regulava a colação do

56
Art. 67. Salvas as restrições especificadas na Constituição e nas leis federais, o
Distrito Federal é administrado pelas autoridades municipais. Parágrafo único
– As despesas de caráter local, na Capital da República, incumbem exclusiva‑
mente à autoridade municipal.
57
Decreto n. 908-A, de 13 de novembro de 1902
Regula a collação do titulo de engenheiro geographo a alumnos da Escola Polyte-
chnica da Capital Federal e da Escola de Minas de Ouro Preto.
Francisco de Assis Rosa e Silva, Presidente do Senado:
Faço saber aos que o presente virem que o Congresso Nacional decreta e pro‑
mulga a seguinte lei:

118

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Curso de Direito da Energia

título de Engenheiro Geógrafo aos alunos da Escola Politécnica da Ca‑


pital Federal e da Escola de Minas de Ouro Preto.
Em 1906, foi criado o Ministério dos Negócios da Agricultura,
Indústria e Comércio, por força do Decreto n. 1.606, de 29 de dezem‑
bro de 1906. O Ministério tinha sob sua responsabilidade setores como
agronomia, questões indígenas, questões atinentes à fauna e à flora,
astronomia, meteorologia, cartografia, irrigação e drenagem, minera‑
ção e legislação respectiva, explorações e serviço geológico, estabeleci‑
mentos metalúrgicos e escolas de minas, dentre outras. A mineração e
a Geologia se profissionalizavam, permitindo criar a base, ainda que
incipiente, da exploração de hidrocarbonetos e minerais energéticos do
Brasil, tais como o urânio, tório, dentre outros. Assim, em 1910 o De‑
creto n. 8.359, de 9 de novembro, reorganizava o serviço Geológico e
Mineralógico do Brasil.58
Esse regime jurídico, no qual as Geociências integravam rol enorme
e desarticulado de competências, vigeu por mais de 25 anos. Enquanto a

Art. 1o Aos alumnos da Escola Polytechnica da Capital Federal, que terminarem


os estudos do curso geral, de accordo com o regulamento de 1896, será mantido
o titulo de engenheiro geographo.
Art. 2o Igual titulo será tambem conferido aos alumnos da Escola de Minas de
Ouro Preto, que terminarem os estudos do curso fundamental, de accordo com
o actual regulamento da mesma escola.
Art. 3o Revogam-se as disposições em contrario.
Senado Federal, 13 de novembro de 1902, 14o da Republica.
Dr. Francisco de Assis Rosa e Silva.
58
7o, fazer por todos os meios ao seu alcance propaganda systematica das riquezas
mineraes do paiz;
8o, fornecer dados e informações sobre questões de propriedades de terras e mi‑
nas, concernentes á industria de mineração e aos demais fins do Serviço, sempre
que forem requisitados pelo Governo Federal ou, com autorização deste, pelos
governos dos Estados ou por particulares;
9o, fazer imprimir e publicar regularmente relatorios, memorias, mappas e ou‑
tros trabalhos destinados a divulgar os estudos scientificos e industriaes, acerca
dos assumptos já mencionados.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Geologia se profissionalizava, a Geografia iniciava seu distanciamento


das ciências exatas. Ao deixar de ser mera especialização da Engenharia, a
Geografia desenvolveu sua epistemologia de forma a se aproximar das
Ciências Sociais e do Direito. Capitaneada por Jaguaribe, esse momento
pode ser caracterizado pela corrente geográfica denominada “social”, que
pregava a reforma da justiça e o aprimoramento tributário nacional.59
Enquanto havia essa discussão doutrinária com enfoque tributá‑
rio, típica de um país que começa a exercer as prerrogativas do pacto
federativo, o sistema jurídico, ainda distante da realidade acadêmica,
continuava a prever a Geografia como uma especialização da Engenha‑
ria. O Decreto n. 2.835, de 24 de dezembro de 1913, concedia o título
de Engenheiro Geógrafo aos alunos que concluíssem os cursos de
Estado­‑Maior do Exército e da Escola Naval. Os anos seguintes foram
de constante capitalização do Serviço Geográfico Militar,60 fato que se
prolongou por toda a República Velha.
A década de 1920 foi de extrema relevância para a carreira de En‑
genheiro Geógrafo, bem como aqueles afeitos às demais áreas das Geo‑
ciências. A Lei n. 4.265, de 15 de janeiro de 1921, mais conhecida como
“Lei Simões Lopes”, pode ser considerada uma espécie de primeiro
Código de Mineração no Brasil por regulamentar “todos os aspectos
referentes à exploração mineral, contribuindo para a distinção entre
solo e subsolo quando envolvesse venda, arrendamento e hipoteca. A
reforma constitucional de 1926 retomou a concepção de propriedade
indistinta do solo”,61 uma vez que fixou, com fundamento no conceito

59
JAGUARIBE, Domingos. Geographia social: memoria apresentada ao 1o Con‑
gresso de Geographia. São Paulo: Typ. Espindola & C., 1909.
60
Para mais informações, principalmente sobre os montantes financeiros aporta‑
dos, ver Decreto n. 12.945, de 3 de abril de 1918; Decreto n. 13.481, de 19 de fe‑
vereiro de 1919; Decreto n. 15.125, de 18 de novembro de 1921; e Decreto
n. 4.367, de 18 de novembro de 1921.
61
ALMEIDA, Humberto Mariano de. Mineração e meio ambiente na Constitui-
ção Federal. São Paulo: LTR, 1999. p. 36.

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Curso de Direito da Energia

de segurança nacional, a proibição de transferência de minas, jazidas


e terras.
Posteriormente, o título de Engenheiro Geógrafo passou a ser con‑
ferido aos estudantes aprovados na 1a série do curso de Engenharia Civil,
de acordo com o Decreto n. 19.150, de 27 de março de 1930. Somente no
então provisório governo Vargas houve uma preocupação em reorgani‑
zar as instituições nacionais em geral e segregar as funções da Geologia e
Geografia da Engenharia em específico. A presente iniciativa culminou:
(i) na suspensão de todos os atos de alienação ou one‑
ração ou promessa de alienação ou oneração de
qualquer jazida mineral, estabelecendo restrições
na sua aplicação, por força do Decreto n. 20.223, de
17 de julho de 1931;
(ii) na proibição de quaisquer negócios jurídicos que
envolvessem, direta ou indiretamente, a transferên‑
cia de direitos sob quedas d’água, águas correntes
ou a respectiva energia elétrica, salvo autorização
expressa da União, por força do Decreto n. 20.395,
de 1931, que objetivava coibir manobras contratuais
perante empresas e municípios para a iminente
aplicação do futuro Código de Águas;
(iii) na expedição do Decreto n. 20.799, de 16 de dezem‑
bro de 1931, que retifica o Decreto n. 20.223, de 1931,
e dispõe em preâmbulo o entendimento de que as
operações sobre jazidas minerais que o Decreto
20.223 procurou sustar, “reais ou propositadamen‑
te simuladas, poderiam ocorrer, dificultando a apli‑
cação das novas leis em elaboração e frustrando a
salvaguarda do interesse do país”;
(iv) na criação do regulamento do Serviço Geográfico,
que passava a ser delegado ao Exército, por força do
Decreto n. 21.883, de 29 de setembro de 1932;

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

(v) na extinção da possibilidade de se vincularem paga‑


mentos estabelecidos em quaisquer negócios jurídi‑
cos ao ouro ou à moeda estrangeira, por força do
Decreto n. 23.501, de 1933. Esse foi passo fundamen‑
tal para a fixação de política tarifária com premissas
uniformes, fundada no custo do serviço, com base no
subsequente Decreto­‑Lei n. 24.336, de 1934;
(vi) na criação do Instituto Geológico e Mineralógico
do Brasil;62 do Instituto Biológico Federal; do Insti‑
tuto de Meteorologia, Hidrometria e Ecologia
Agrícola; e do Instituto de Química, todos por for‑
ça do Decreto n. 22.508, de 27 de fevereiro de 1933;
(vii) na suspensão do registro de manifestos de minas
constante na Lei Simões Lopes, por força do Decre‑
to n. 23.266, de 24 de outubro de 1933;
(viii) na criação do Departamento Nacional de Produção
Mineral – DNPM, vinculado ao Ministério da Agri‑
cultura; por força do Decreto n. 24.648, de 10 de ju‑
lho de 1934;
(ix) na criação do Instituto Nacional de Estatística –
INE, por força do Decreto n. 24.609, de 6 de julho
de 1934. Interessante notar que o serviço censitário,
o demográfico e o econômico do INE estariam sob
responsabilidade do Ministério da Justiça e Negó‑
cios Interiores (art. 3o, § 2o, I); e
(x) na criação do Serviço de Fronteiras, por força do
Decreto n. 24.305, de 29 de maio de 1934, que apro‑
vou o regulamento para o serviço de fronteira, parte
integrante do Serviço dos Limites e Atos Interna‑
cionais da Secretaria de Estado das Relações Exte‑

62
Substituiu o Serviço Geológico e Mineralógico.

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Curso de Direito da Energia

riores, com o objetivo de demarcar as fronteiras, a


fim de se assegurar a inviolabilidade do território
nacional. Essa iniciativa ainda criou três regiões de
fronteira no país: (i) Setor Norte: Guiana francesa,
Guiana holandesa, Guiana britânica e Venezuela;
(ii) Setor Oeste: Colômbia, Peru e Bolívia; e (iii) Se‑
tor Sul: Paraguai, Argentina e Uruguai.
Assim, o Brasil se sofisticava e impunha a necessidade de novos
instrumentos de gestão pública do território em geral e das Geociências
em especial, que em última análise culminou no sistema cartorial para
ordenamento do solo, na criação do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE em 1938 enquanto instrumento para nortear as polí‑
ticas públicas, incluindo o planejamento energético, bem como no Có‑
digo de Minas, destinado a regulamentar a exploração do subsolo.

2.7 O carvão e o álcool­‑motor: a EECM, o INT e o IAA


Assim como os demais segmentos da indústria energética, os bio‑
combustíveis no Brasil encontram uma aplicação e regulação secular e
peculiar. Considerando que a história do Brasil é fortemente marcada
pela agroindústria canavieira desde o século XVI, quando a Capitania
de Pernambuco, pertencente a Duarte Coelho, implantou o primeiro
centro açucareiro do Brasil, em vantagem comparativa perante a Ca‑
pitania de São Vicente pela proximidade da Europa, as experiências
com etanol, enquanto combustível automotor, foram introduzidas no
final do século XIX, de forma a suprir as dificuldades na industriali‑
zação e no transporte no Brasil, principalmente no tocante à importa‑
ção de hidrocarbonetos, que não eram produzidos no país em escala
industrial.63

63
No início do século XX, o açúcar perfilhava como uma das principais commodi-
ties a manutenir a balança comercial brasileira. Chegou a representar 30,1% das
exportações brasileiras entre 1821 e 1830, amargando 1,2% no limiar do século
XX, entre 1900 e 1910.

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Alguns exemplos dessas iniciativas alternativas à gasolina são em‑


blemáticos. Henrique Santos­‑Dummont, irmão mais velho de Alber‑
to, transitou em 1893 pela Rua Direita, na capital de São Paulo,
dirigindo um automóvel Daimler movido a vapor. Indispôs­‑se poste‑
riormente com o prefeito paulistano, Antônio Prado, por não receber
isenção da taxa sobre o veículo. Henrique entendia que a taxa não era
devida, uma vez que alegava má conservação das vias públicas. A relu‑
tância em não pagá­‑la resultou na suspensão da licença de Henrique
para dirigir na cidade, bem como na perda do cobiçado número de
emplacamento “P­‑1”.
Eram comuns experiências com o emprego do álcool como com‑
bustível no final do século XIX, intensificadas nas duas primeiras déca‑
das do século XX. O presidente Rodrigues Alves chegou a propor em
lei a substituição dos combustíveis dos trens por álcool.64 Por sua vez,
os veículos automotores eram um símbolo de modernidade, e a ausên‑
cia de combustíveis fósseis proporcionava que a sociedade buscasse
alternativas energéticas. Alguns Municípios, como foi o caso do Rio de
Janeiro e de São Paulo, chegaram a promover legislações locais sobre o
emprego do álcool­‑motor. Essa iniciativa não passou despercebida do
Governo Federal.
Em mensagem presidencial dirigida ao Congresso Nacional em
1920, o Presidente Epitácio Pessoa demonstrava a preocupação em pro‑
mover uma sistemática pesquisa de combustíveis e minérios, implemen‑
tando métodos eficazes para o enriquecimento do insumo, bem como
dos tipos de fornalha a serem empregados. O objeto de estudo eram as
duas alternativas à dependência da importação de combustíveis então
existente: o carvão do sul do país e o álcool.
Essa vontade política possibilitou a publicação do Decreto n. 15.209,
de 28 de dezembro de 1921, que criou a Estação Experimental de Com‑
bustíveis e Minérios – EECM, anexa ao Serviço Geológico e Mineralógico

64
Ver art. 17, X, da Lei n. 1.145, de 1903, ou o item 2.1 já mencionado.

124

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Curso de Direito da Energia

do Brasil, e aprovou o respectivo regulamento. A EECM tinha como


objetivo principal desenvolver tecnologia nacional voltada à indústria de
base, notadamente os combustíveis e os minérios. No que tange aos com‑
bustíveis, que até então eram 100% importados, competia à Estação Ex‑
perimental estudar os melhores processos de enriquecimento dos
combustíveis, divulgando os melhores métodos de queima e de aprovei‑
tamento dos combustíveis sólidos, líquidos ou gasosos, bem como apro‑
fundar os conhecimentos sobre os melhores processos de destilação do
xisto betuminoso, para produção de combustíveis líquidos e gasosos.
O processo de desenvolvimento tecnológico e treinamento de mão
de obra era intenso naquela realidade. Como exemplo, a EECM tinha
como uma de suas responsabilidades manter um curso de foguistas
com o objetivo de ensinar e divulgar os processos de queima mais
adaptáveis aos combustíveis nacionais, que poderiam concorrer em
concursos específicos de foguistas, terrestres e marítimos, a prêmios
em dinheiro e diploma de habilitação.

Para a EECM a questão técnica era viabilizar a mistura do álcool


produzido no país com a gasolina importada, e não a substituição des‑
ta última. Nessa época já vigoravam, inclusive, algumas leis (estaduais
e municipais) que obrigavam ‘o emprego de 10% de álcool, pelos con‑
sumidores de gasolina’. O Brasil produzia cerca de 150 mil litros de
álcool por ano, mas tratava­‑se de um álcool de baixa concentração, fa‑
bricado em pequenas destilarias de aguardente. O recurso desenvolvi‑
do pela Estação Experimental para que a mistura explosiva fosse
perfeitamente homogênea – o que requeria uma temperatura mínima
– foi o de aquecimento do ar, obtido pelo calor dos gases do escapa‑
mento do motor.65

Como qualquer processo tecnológico, muitas vezes o propósito


inicial acaba sendo descaracterizado ao longo do tempo por novas des‑

65
Castro, Maria Helena Magalhães; Schwartzman, Simon. Tecnologia para
a indústria: a história do instituto nacional de tecnologia. Disponível em: <http://
www.schwartzman.org.br/simon/int/int1.htm#N_22>. Acesso em: 22 nov. 2010.

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cobertas, que por sua vez abrem novas perspectivas. Assim, a EECM,
que originariamente tinha como objetivo central identificar formas de
implementar o carvão na matriz energética nacional, teve seu desempe‑
nho tecnológico ofuscado pelo crescente uso do álcool­‑motor nos veí‑
culos. O Governo Provisório do presidente Vargas outorgou o
Decreto n. 19.717, de 20 de fevereiro de 1931, que estabeleceu a aquisi‑
ção obrigatória de álcool, na proporção de 5% da gasolina importada.
Era a primeira tentativa institucionalizada de mitigar a dependência
nacional aos hidrocarbonetos importados.
Importante notar que o Poder Executivo tinha como prerroga‑
tiva (art. 6o) alterar a percentagem sempre que se verificasse o au‑
mento ou diminuição da produção de álcool no país, podendo
inclusive cessar, em caráter provisório, a obrigatoriedade da respec‑
tiva aquisição, se os mercados locais se encontrarem completamente
desprovidos do produto.
A centralização das decisões energéticas na esfera federal já podia
ser percebida no art. 8o, que vedava aos governos estaduais e munici‑
pais sujeitar os postos de venda exclusiva de álcool, e, bem assim, os
veículos que somente se utilizem de álcool ou de carburante nacional,
a taxa, emolumento, contribuição ou imposto superior a 30% do esta‑
belecido para os que empregarem a gasolina. Essa limitação também
foi estendida às estradas de ferro e às companhias de navegação nacio‑
nais, que passaram a ficar proibidas de estabelecer, para o álcool desna‑
turado, frete superior a 50% do estabelecido para a gasolina.
O sucesso da EECM na identificação do álcool­‑motor enquanto
produto próprio ao comércio provocou um grande paradoxo. Como
sua função inicial era a otimização da pesquisa com o carvão, notada‑
mente o xisto, mas a principal descoberta foi o álcool­‑motor em larga
escala, o governo Vargas buscou criar uma estrutura mais condizente
com essa finalidade, fato que culminou com a criação do Instituto de
Tecnologia e a extinção da EECM. O preâmbulo do Decreto n. 22.750,
de 24 de maio de 1933, coloca com clareza os propósitos federais:

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Decreto n. 22.750 – de 24 de maio de 1933


Crêa no Ministerio da Agricultura o Instituto de Técnologia, su-
bordinado á Diretoria Geral, de Pesquisas Cientificas, com o fim de es-
tudar o melhor aproveitamento das materias primas nacionais e de
promover cursos de especializações para técnicos brasileiros.
O Chefe do Govêrno Provisório da República dos Estados Unidos
do Brasil, usando das atribuições que lhe confere o art. 1o, do Decreto
n. 19.398, de 11 de novembro de 1930, e
Considerando que o Decreto n. 22.338, de 11 de janeiro de 1933,
dando nova organização aos serviços do Ministerio da Agricultura,
apenas lhe fixou as linhas gerais, ficando na dependencia de átos poste‑
riores a regulamentação e a creação dos departamentos técnicos desti‑
nados a realizar o plano da nova organização;
Considerando que o desenvolvimento de que necessita a indús‑
tria nacional exige o prévio e acurado estudo do aproveitamento mais
racional das materias primas do país;
Considerando que a assistencia técnica assegurada pelo Ministe‑
rio da Agricultura ao Instituto do Assucar e do Alcool exige um orgão
especializado capaz de satisfazer a seus objetivos;
Considerando que é mistér instituir quanto antes cursos para es‑
pecialização aos técnicos brasileiros;
Considerando que o Ministerio da Agricultura possue instala‑
ções técnicas capazes de levar a cabo semelhantes fins, cujas atividades
precisam apenas ser coordenadas nêsse sentido;
Considerando que, portanto, essa iniciativa póde desde jà, ser execu‑
tada, sem aumento de despesas e dentro das atuais dotações orçamentarias;
Decreta:
Art. 1o Fica creado, no Ministerio da Agricultura, como fim de estu‑
dar o melhor aproveitamento das materias primas nacionais e de promover
cursos de especializações para técnicos brasileiros, o Instituto de Técnolo‑
gia, subordinado diretamente á Diretoria Geral de Pesquizas Cientificas.
Paragrafo unico. A séde ao Instituto de Técnologia serà a da ex‑
tinta Estação Experimental de Combustiveis e Minerios.

Por outro lado, havia um grande desafio que era manter o forneci‑
mento regular de álcool para que pudesse cumprir a função de dimi‑

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

nuir a dependência energética brasileira ao petróleo internacional,


diminuir o déficit na balança comercial e encontrar uma alternativa
econômica à então monocultura cafeeira. Logo, mais do que se preocu‑
par com a ponta do consumo, fazia­‑se imprescindível dizer como seria
realizada a produção do álcool. Nesse sentido, foi idealizado e conce‑
bido o Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA, criado com base em
anteprojeto que buscava neutralizar os efeitos da superprodução do
açúcar. Nessa perspectiva, a produção de álcool era uma alternativa
ideal para combater os efeitos macroeconômicos da oferta muito supe‑
rior do que a procura. O preâmbulo do Decreto n. 22.789, de 1o de
junho de 1933, pormenoriza essa situação.

Decreto n. 22.789 – de 1 de junho de 1933


Crea o Instituto do Assucar e do Alcool e dá outras providências
O Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos
do Brasil, usando das atribuições que lhe confere o art. 1o do decreto
n. 19.398, de 11 de novembro de 1930, e,
Considerando que as medidas estabelecidas nos decretos ns. 20.761,
de 7 de dezembro de 1931, e 21.010, de 1 de fevereiro de 1932, em defesa
da produção do assucar, tendo produzido os efeitos, devem ser manti‑
das, mas precisam ser completadas, pois constituiam, apenas, solução
de emergencia e preparatoria;
Considerando que a produção de assucar no territorio nacional
excede ás necessidades do consumo interno e que o fenonemo da
superprodução assucareira é mundial, tendo levado os países gran‑
des produtores a limitar, por acôrdos internacionais, a respectiva
produção;
Considerando a necessidade de assegurar o equilibrio do mercado
de assucar conciliando, do melhor modo, os interesses de produtores e
consumidores;
Considerando que, desde as medidas iniciais, de emergencia e
preparatorias, sempre se consideram que a solução integral e a mais
conveniente á economia nacional, para as dificuldades da industria as‑
sucareira, está em derivar para o fabrico do alcool industrial uma parte
crescente das materias primas utilizadas para a produção de assucar;

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Considerando que o consumo de alcool industrial oferece um


mercado cada vez maior, com possibilidades quasi ilimitadas;
Considerando, á vista do que precede, as vantagens de se fundi‑
rem em um só orgão, a Comissão de Defesa da Produção do Assucar
creada pelo decreto n. 20.761, de 7 de dezembro de 1931, e a Comissão
de Estudos sobre o alcool­‑Motor, instituida por portaria do Ministerio
da Agricultura, de 4 de agosto de 1932,
Decreta:
Disposições permanentes
Art. 1o Fica creado o Instituto do Assucar e do Alcool. Compos‑
to de um delegado do Ministerio da Fazenda, um do Ministerio da
Agricultura, um do Ministerio do Trabalho, Industria e Comercio, um
do banco ou consorcio bancario, de que trata o presente decreto, e um
de cada Estado cuja produção de assucar seja superior a 200.000 sacos,
eleito pelos respectivos produtores.

Assim, era incumbido ao IAA, dentre outras atividades: (i) asse‑


gurar o equilíbrio interno entre as safras anuais de cana e o consumo
de açúcar; (ii) fomentar a fabricação do álcool anidro, da cana­‑de­
‑açúcar ou de quaisquer outras matérias­‑primas, mediante a instala‑
ção de destilarias centrais; (iii) estudar a situação estatística e
comercial do açúcar e do álcool, bem como os preços correntes nos
mercados brasileiros, organizando e mantendo um serviço estatísti‑
co voltado à lavoura de cana e à industria do açúcar e do álcool; (iv)
formular as bases dos contratos a serem celebrados com os sindica‑
tos, cooperativas, empresas e particulares para a fundação de usinas;
(v) determinar, periodicamente, a proporção de álcool a ser desnatu‑
rado em cada usina; (vi) estipular a produção de álcool anidro que os
importadores de gasolina deverão comprar por seu intermédio, bem
como adquirir a totalidade de álcool para fornecimento às compa‑
nhias importadoras de gasolina; e (vii) instalar e manter bombas para
fornecimento de álcool­‑motor ao público. Era a federalização da
produção do álcool­‑motor, anterior à da energia elétrica, que ocor‑
reria apenas no ano seguinte.

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Os efeitos dessa iniciativa foram imediatos. A produção alcooleira


nacional aumentou, sobretudo com a instalação de destilarias anexas às
usinas açucareiras, criando uma verdadeira indústria sucroalcooleira.
Mas a Segunda Grande Guerra criaria oscilação significativa na cotação
do produto no exterior, fato que teve importantes reflexos na indústria
nacional.66

66
Considerando a riqueza de detalhes ocorrida com a produção de álcool na Se‑
gunda Grande Guerra, bem como o intuito de privilegiar o regime jurídico da
energia no Brasil em detrimento dos aspectos políticos que permearam – e pecu‑
liarizaram – as decisões governamentais realizadas, por opção metodológica o
tema será abordado no item “4.8. O ‘Sol líquido’: os biocombustíveis e o Proál‑
cool”, por compreender que tais oscilações estão na origem da nova sistematiza‑
ção regulatória que o álcool encontrou no II Plano Nacional de
Desenvolvimento – PND do governo Geisel.

130

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3
Federalização e uniformização
normativa (1934­‑1945)

O período caracterizado pela gestão do presidente Getú‑


lio Vargas, em que pese ter sido curto sob a ótica cronológica,
foi rico em produção normativa e de lançamento de inúmeras
premissas jurídicas que são vigentes até os dias atuais. Nesse
período de 12 anos houve a vigência de duas constituições fe‑
derais (1934 e 1937), sendo uma outorgada (1937), que por sua
vez foi interrompida por uma terceira (1946), promulgada.
Na origem desse período reside a disposição constitucio‑
nal que distingue a propriedade do solo da do subsolo, cons‑
tante no art. 118 da Constituição Federal de 1934,1 bem como
destinar privativamente à União a competência para legislar
sobre o subsolo, a energia hidrelétrica e a flora.2 Interessante

1
Art 118. As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas
d’água, constituem propriedade distinta da do solo para o efeito de
exploração ou aproveitamento industrial.
2
Art 5o Compete privativamente à União:
[...]
XIX – legislar sobre:
[...]
j) bens do domínio federal, riquezas do subsolo, mineração, metalurgia,
águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca e a sua exploração.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

notar como essa Carta Magna destinava a função supletiva aos Estados
para os temas minerais, energéticos e ambientais no exaustivo art. 5o:

§ 3o A competência federal para legislar sobre as matérias dos nú‑


meros XIV e XIX, letras c e i, in fine, e sobre registros públicos, desa‑
propriações, arbitragem comercial, juntas comerciais e respectivos
processos; requisições civis e militares, radiocomunicação, emigração,
imigração e caixas econômicas; riquezas do subsolo, mineração, meta‑
lurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca, e a sua explo‑
ração não exclui a legislação estadual supletiva ou complementar sobre
as mesmas matérias. As leis estaduais, nestes casos, poderão, atenden‑
do às peculiaridades locais, suprir as lacunas ou deficiências da legisla‑
ção federal, sem dispensar as exigências desta.

Dois anos depois, a Constituição Federal de 1937, que inaugura o


período denominado Estado Novo (1937­‑1945), consagrou no art. 135
o princípio da intervenção estatal no domínio econômico,3 fortalecen‑
do a posição do Estado perante os interesses privados. Com a criação
do Departamento Administrativo do Serviço Público – Dasp, pelo
Decreto­‑Lei n. 579, de 1938, o Estado passava a criar condições mate‑
riais para cumprir os desígnios da Carta Magna de intervenção estatal,
de forma a prover os quadros públicos de uma estrutura burocrática e
tecnicamente qualificada.
Esse período, que coincide com o início da Segunda Grande Guer‑
ra (1939­‑1945), na qual o Brasil participou ativamente, foi marcado: (i)
pela estagnação de novos investimentos, dada a escassez financeira no

3
Art 135. Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de inven‑
ção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a
prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se
legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores
da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no
jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, repre‑
sentados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata
e imediata, revestindo a forma do controle, do estímulo ou da gestão direta.

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Curso de Direito da Energia

mundo, orientado para a indústria bélica; (ii) por grande improvisação


jurídica, com reiteradas prorrogações de prazos para a revisão dos con‑
tratos municipais de iluminação em vigor, procrastinando sua federali‑
zação; e (iii) por intensos movimentos para repotencializar e interligar
sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica.
Tentaremos a seguir expor a complexa sobreposição normativa
deste período que demonstra, basicamente, três movimentações: (i) a
transformação da energia, de fato e de direito, em interesse público
federal, (ii) os preparativos para que o Estado pudesse exercer uma
posição econômica dominante no setor (estatização), verticalizando a
cadeia energética sob o comando de empresas públicas; e (iii) a indução
da industrialização do país, que pressupõe abundância energética.

3.1 O Código de Águas e a regulação do setor elétrico


A crescente força da Light e da Amforp, a necessidade de se estru‑
turar uma malha de transmissão e de distribuição mais complexa e,
principalmente, a necessidade de intervenção pública no mercado de
energia fez com que houvesse um crescente movimento político para
federalizar o serviço, padronizar o atendimento e permitir que o inte‑
resse público permeasse as atividades setoriais, até então conduzidas
exclusivamente sob a égide da livre iniciativa.
O Código de Águas, em última análise, foi um produto da capaci‑
dade técnica do jurista Alfredo Valladão,4 que em 1907 militava em
“Direito das Águas”, sua propriedade e o uso pela indústria elétrica,

4
O mineiro Alfredo de Vilhena Valladão, filho do Senador Gomes Valladão e de
D. Maria Amália de Vilhena Valladão, nascido em Campanha em 1873, foi mi‑
nistro do Tribunal de Contas da União, Professor da Faculdade de Direito de
Minas Gerais e da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, no Rio
de Janeiro. Interessante notar a interdisciplinaridade no jurista, que foi 1o Vice­
‑Presidente do IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que o home‑
nageou com o título de Grande Benemérito, fato que reforça a grande influência
que as geotecnologias produziram na República Velha.

133

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

bem como da vontade política de Getúlio Vargas em federalizar o sis‑


tema elétrico, conferindo interesse público à atividade hidrelétrica.
Essa iniciativa ficou clara no preâmbulo do Decreto n. 20.395, de 1931,5
que suspendeu quaisquer transferências de aproveitamento hidráulico

5
Decreto n. 20.395, de 15 de setembro de 1931
Suspende, até ulterior deliberação, todos os atos de alienação, oneração, promessa
ou começo de alienação ou transferencia de qualquer curso perene ou quéda da-
gua, e dá outras providencias
O Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brasil:
Considerando que o problema do aproveitamento e propriedade das quedas da‑
gua esteve sempre, no Brasil, envolvido em dificuldades várias, oriundas, princi‑
palmente, de uma legislação obsoleta e deficiente que, tolhendo a exploração
eficente das nossas forças hidraulicas, se opunha ao interesse da coletividade;
Considerando que, só pela reforma constitucional a realizar-se e pelo “Codigo
das Aguas”, já em estudo, será possivel dar ao problema a solução reclamada
pelos altos interesses nacionais;
Considerando que, na fase atual, na iminencia dessa reformas, podem ocorrer
operações, reais ou propositadamente simuladas, que dificultem, oportunamen‑
te, a aplicação das novas leis ou frustrem a salvaguarda do interesse do país;
Considerando que o Governo Provisorio, inspirado em razões similares, já sus‑
pendeu, por decreto sob o n. 20.223, de 17 de julho ultimo, os atos de alienação
e outros, relativos a jazidas minerais;
DECRETA:
Art. 1o Os atos de alienação, de oneração, de promessa ou começo de alienação
ou transferência, inclusive para formar capital de sociedade comercial, de curso
perene ou queda dagua, da respectiva energia hidraulica, ou de terra circunja‑
cente, praticados da data da publicação deste decreto em diante, nenhum efeito
produzirão quanto ao aproveitamento ou utilização da referida energia, que
ficará sempre reservado, nas condições juridicas atuais, exclusivamente aos
atuais proprietarios, ou usufrutuarios e seus herdeiros, cabendo a estes toda a
responsabilidade pela observancia das normas legais que vierem a ser dotadas
sobre a materia.
Parágrafo único. Mediante prévia e expressa autorização do Governo Provi‑
sorio, o ato poderá ser praticado sem as restrições estabelecidas no dispositi‑
vo supra.
Art. 2o Revogam-se as disposições em contrario.
Rio do Janeiro, 15 de setembro de 1931, 110o da Independencia e 43o da Republica.

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até a consecução do Código de Águas. Em que pese ser de grande inte‑


resse nacional, a iniciativa privada receava ter seu direito adquirido
comprometido por essa decisão. Nos dizeres de McDowall,6

Quando, já em 1921, o Congresso Nacional brasileiro fez nova e


infeliz tentativa para legislar um “código de águas” nacional, Alexan‑
der Mackenzie reagiu alarmado. “É um documento monstruoso, e, se
aprovado, colocará um ponto final no desenvolvimento da energia
aqui por muitos anos, já que limita as concessões em 25 anos e regula‑
menta tantas coisas diferentes, inclusive preços, que jamais pensaría‑
mos em desenvolver energia hídrica sob suas cláusulas”.

O projeto do Código de Águas, antes de mais nada, consagrava


amplamente o sistema das concessões e ampliava o domínio federal
sobre as forças hidráulicas e sobre as margens das correntes. Buscava­
‑se um caminho para a socialização por meio da produção da energia
hidrelétrica pelo Estado. Valladão enunciou que, como o Estado cede
a água para a irrigação, poderia, da mesma forma, dar a força elétrica
para as máquinas.7 Assim, com o advento do instituto da concessão, no
seu término os empreendimentos passariam para o domínio do Estado
após prazo máximo de 30 anos.
Na Introdução ao Código de Águas, instrumento fundamental
para a compreensão do pensamento setorial no início do século XX,
Valladão expôs sobre a necessidade de nacionalização do controle acio‑
nário das empresas hidrelétricas, propondo que ao menos um terço do
capital fosse nacional.

Com referência ao pessoal, ficou estatuído que concessão alguma


pode ser conferida, cessão alguma ou transmissão de concessão pode
ser feita senão a brasileiros. Se o concessionário é uma sociedade deve
esta ter sua sede no Brasil e ser regida por leis brasileiras. O gerente ou
gerentes, sejam sócios ou não, bem como os sócios que podem usar da

6
MCDOWALL, Duncan. Light. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 227.
7
Introdução ao Código de Águas.

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firma social; os administradores ou diretores que representam a socie‑


dade; devem ser brasileiros. Além disso devem ser brasileiros dois ter‑
ços dos sócios em nome coletivo, dos administradores ou diretores e
dos membros do conselho fiscal.
Em tal sentido dispõe, na França, a lei de 16 de outubro de 1919.
E, não obstante outras as condições de Portugal, não teve dúvi‑
da Guilherme Moreira em aconselhar no seu trabalho – “As Aguas
do Direito Civil Português”, que nesse país se seguisse a mesma
orienta­ção, conceituando: “Trata­‑se não só do aproveitamento de
uma riqueza pública, mas da exploração de um serviço público,
tornando­‑se assim não só conveniente, mas necessário até, afastar
cautelosamente quais­quer conflitos de caráter internacional entre o
Estado e os con­cessionários”.
Com referência ao capital, ficou estatuído que um terço pelo me­
nos do mesmo, deve pertencer a brasileiros aqui domiciliados.
Neste ponto, adotei o critério já seguido pelo Decreto n. 20.914,
de 6 de janeiro do corrente ano, regulando a execução dos nossos ser­
viços aeronáuticos civis.8

Assim, a nacionalização se justificava para afastar as decisões seto‑


riais das questões políticas locais, bem como pela impossibilidade ma‑
terial das municipalidades em manter as despesas que acarretavam a
constituição de um corpo qualificado de técnicos para supervisionar as
atividades elétricas. Também contribuía para a nacionalização o pro‑
gresso técnico da transmissão a longa distância da eletricidade, que
passaria a interconectar cidades até então com sistemas distintos. Hou‑
ve então, de forma expressa, a opção por um sistema de regulamenta‑
ção por meio de Comissões de Serviços Públicos, modelo este adotado
em larga escala nos Estados Unidos.
Nesse escopo, Valladão propôs que houvesse regulamentação do
Código de Águas por meio de Comissão Administrativa, que seria im‑
posta a todas as concessões; a centralização do controle da indústria

8
Introdução ao Código de Águas.

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Curso de Direito da Energia

hidrelétrica na Comissão Federal de Forças Hidráulicas, o controle das


holdings companies; bem como a organização da Comissão Adminis‑
trativa, seus processos e recursos, com a finalidade de obter o controle
sobre a contabilidade das empresas.
Para tanto, a função da Comissão Administrativa deveria ser fixar
tarifas razoáveis, assegurar serviço adequado e garantir a estabilidade
financeira. A regulamentação objetivava obter tarifas razoáveis, que
devem ser calculadas com base na remuneração do capital de forma a
alcançar a estabilidade financeira das concessionárias, o controle das
emissões de títulos (securities issues) e a garantia de lucros suficientes.
Nas palavras de Valladão,

Como diz Anhaia Mello, no seu trabalho Problemas do Urbanis-


mo, na fixação das tarifas deve a mesma regulamentação propor­cionar
“tarifas razoáveis” sob os pontos de vista:
1o) do consumidor ou do cliente que compra o produto ou o ser‑
viço fornecido pelas empresas, e que procura evidentemente menor
preço;
2o) do capitalista que tem o seu dinheiro empregado na empresa,
e que procura, evidentemente também, o maior lucro.
“Serão antagônicos”, continuou ele, “estes dois pontos de vista?
Não o são.”
“Os serviços de utilidade pública, já o dissemos envolvem uma
estranha mistura de volição e compulsão.”
“Ninguém é obrigado a se meter neles, mas uma vez que os em‑
preende, com pleno conhecimento de causa, é porque está no propó‑
sito de se conformar com as obrigações e restrições que lhes são
peculiares.”
“Uma das restrições é esta: o lucro há de ser o menor possível, e
apenas suficiente para atrair capitais.”
“É, portanto, justa a aspiração do público de procurar o menor
preço; não o é absolutamente a do capitalista, se procurar o maior
lucro.”
“Um monopólio e um contrato nas mãos de uma empresa de uti‑
lidade pública não são instrumentos legítimos, para grandes lucros: os

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que assim procedem estão abusando de uma situação privilegiada que


o próprio público lhes concedeu, para não ser espoliado mas para ser
servido – ‘Publie servants’, servidores do público”.

O serviço adequado, por sua vez, deveria ser definido enquanto


conceito básico (standards) de serviço, com base na qualidade e quan‑
tidade do serviço; nas extensões do sistema de distribuição de energia
elétrica e nos melhoramentos e renovação das instalações e processos
mais econômicos de operação.
Após densa exposição de motivos, que resultou em grande esforço
de direito comparado, notadamente do direito francês e do norte­
‑americano, o Decreto­‑Lei n. 24.643, de 10 de julho de 1934, norma
que criou o Código de Águas, foi sancionado apenas uma semana antes
da promulgação da Carta Magna da República de 1934, de 16 de julho
de 1934, que por sua vez enunciava ser de competência privativa da
União legislar sobre energia hidrelétrica.9 Prevaleceu, assim, o entendi‑
mento de que os mecanismos de outorga, as diretrizes políticas e a
competência para legislar sobre essa matéria deveriam ser da União,
premissa existente até os dias atuais.

9
Art 5o Compete privativamente à União:
[...]
XIX – legislar sobre:
[...]
j) bens do domínio federal, riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas,
energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca e a sua exploração;
[...]
§ 3o A competência federal para legislar sobre as matérias dos números XIV e
XIX, letras c e i, in fine, e sobre registros públicos, desapropriações, arbitragem
comercial, juntas comerciais e respectivos processos; requisições civis e milita‑
res, radiocomunicação, emigração, imigração e caixas econômicas; riquezas do
subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pes‑
ca, e a sua exploração não exclui a legislação estadual supletiva ou complementar
sobre as mesmas matérias. As leis estaduais, nestes casos, poderão, atendendo às
peculiaridades locais, suprir as lacunas ou deficiências da legislação federal, sem
dispensar as exigências desta.

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Curso de Direito da Energia

Com o Código de Águas de 1934, pode­‑se afirmar que se federali‑


za o serviço de energia elétrica, centralizado no sistema de outorga das
águas, para ganho de escala econômica, com o objetivo de atender a
forte urbanização que ocorria no país, na qual o Estado assumia a res‑
ponsabilidade pela sua consecução. Como havia escassez de investi‑
mentos privados, por ser um período entre guerras, há o aumento
considerável da atuação do Estado como empresário. Com a publica‑
ção do Código, o art. 178, dispositivo­‑chave na determinação do regi‑
me jurídico do serviço de energia elétrica, prescreve a forma na qual
a União pretende se relacionar com o setor ou, em outras palavras,
fixa como serão uniformizados os critérios de remuneração e adequa‑
ção do serviço.10

Art. 178. No desempenho das atribuições que lhe são conferidas,


a Divisão de Águas do Departamento Nacional da Produção Mineral
fiscalizará a produção, a transmissão, a transformação e a distribuição
de energia hidro­‑elétrica, com o tríplice objetivo de:
a) assegurar serviço adequado;11

10
Redação atual dada pelo Decreto-lei n. 3.763, de 25 de outubro de 1941.
11
Art. 179. Quanto ao serviço adequado a que se refere a alínea “a” do artigo pre‑
cedente, resolverá a administração, sobre:
a) qualidade e quantidade do serviço;
b) extensões;
c) melhoramentos e renovação das instalações;
d) processos mais econômicos de operação;
§ 1o A divisão de Águas representará ao Conselho Nacional de Águas e Energia
Elétrica sobre a necessidade de troca de serviços – interconexão – entre duas ou
mais empresas, sempre que o interesse público o exigir. (Redação dada pelo De‑
creto-lei n. 3.763, de 25.10.1941)
§ 2o Compete ao C.N.A.E.E., mediante a representação de que trata o parágrafo
anterior ou por iniciativa própria: (Redação dada pelo Decreto-lei n. 3.763, de
25.10.1941)
a) resolver sobre interconexão; (Redação dada pelo Decreto-lei n. 3.763, de
25.10.1941)

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b) fixar tarifas razoáveis;12


c) garantir a estabilidade financeira das empresas.13
Parágrafo único. Para a realização de tais fins, exercerá a fiscaliza‑
ção da contabilidade das empresas.

Assim, o instituto da concessão proposto na exposição de motivos


foi recepcionado pelo Código de Águas, que submetia ao contratado a
observância a todas as exigências legais, contratuais e regulamentares

b) determinar as condições de ordem técnica ou administrativa e a compensação


com que a mesma troca de serviços deverá ser feita. (Redação dada pelo Decreto­
‑lei n. 3.763, de 25.10.1941)
12
Art. 180. Quanto às tarifas razoáveis, alínea “b” do artigo 178, o Serviço de
Águas fixará, trienalmente, as mesmas:
I – sob a forma do serviço pelo custo, levando-se em conta:
a) todas as despesas e operações, impostos e taxas de qualquer natureza, lançados
sobre a empresa, excluídas as taxas de benefício;
b) as reservas para depreciação;
c) a remuneração do capital da empresa.
II – tendo em consideração, no avaliar a propriedade, o custo histórico, isto é, o
capital efetivamente gasto, menos a depreciação;
III – conferindo justa remuneração a esse capital;
IV – vedando estabelecer distinção entre consumidores, dentro da mesma classi‑
ficação e nas mesmas condições de utilização do serviço;
V – tendo em conta as despesas de custeio fixadas, anualmente, de modo semelhante.
13
Art. 181. Relativamente à estabilidade financeira de que cogita a alínea “c” do
art. 178, além da garantia do lucro razoável indicado no artigo anterior, aprovará
e fiscalizará especialmente a emissão de títulos.
Parágrafo único. Só é permitida essa emissão, qualquer que seja a espécie de títu‑
los para:
a) aquisição de propriedade;
b) a construção, complemento, extensão ou melhoramento das instalações, siste‑
mas de distribuição ou outras utilidades com essas condizendo;
c) o melhoramento na manutenção do serviço;
d) descarregar ou refundir obrigações legais;
e) o reembolso do dinheiro da renda efetivamente gasto para os fins acima indicados.

140

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da administração, bem como a fiscalização. Criaram­‑se, igualmente, os


institutos da reversão, da caducidade e da encampação.
O Código de Águas não foi o único instrumento jurídico a legislar
sobre energia. Em 1939, por força do Decreto­‑Lei n. 1.285 e sob orien‑
tação do art. 200 do Código de Águas, foi criado o Conselho Nacional
de Águas e Energia Elétrica – CNAEE, com o objetivo de orientar e
controlar a utilização dos recursos hidráulicos e de energia elétrica.
Interessante notar que, no tocante a energia, esse Conselho estava vin‑
culado à Presidência da República, enquanto a Divisão de Águas
manteve­‑se subordinada ao Ministério da Agricultura. O CNAEE re‑
presentava um avanço institucional em relação ao IGI, e tinha compe‑
tências que em muito se assemelham ao conceito de agências
reguladoras propagado no Brasil na segunda metade dos anos 1990:
(i) examinar as questões relativas à utilização racional da energia
hidráulica e dos recursos hidráulicos do país e propor às auto‑
ridades competentes as respectivas soluções;
(ii) examinar as questões pertinentes à exploração e utilização da
energia elétrica no país e propor às autoridades competentes as
respectivas soluções;
(iii) organizar os planos de interligação de usinas elétricas na forma
estabelecida pelo Decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934, e
demais leis que regularem a matéria;
(iv) propor ao Governo Federal e aos Governos Estaduais as medi‑
das necessárias à intensificação do uso da energia elétrica;
(v) resolver, em grau de recurso, as questões entre a administração,
os concessionários ou contratantes de serviços de eletricidade e
os consumidores desses serviços; e
(vi) organizar e submeter ao Presidente da República a regulamen‑
tação do Decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934, e demais
leis que regularem a utilização dos recursos hidráulicos e da
energia elétrica no país.

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Em 1940, o Decreto­‑Lei n. 2.281 dispôs sobre a isenção fiscal das


empresas de energia elétrica e criou regime jurídico para as usinas ter‑
melétricas, integrando, assim, as disposições do Código de Águas. O
Decreto­‑Lei n. 3.218, de 1941, também teve fundamental importância
na construção do modelo setorial, pois regulamentou a política tarifá‑
ria prevista no Código de Águas. O art. 9o previu que será de 10% o
lucro a ser permitido no investimento e a ser computado no cálculo das
tarifas das empresas que explorarem a indústria de energia elétrica, seja
de base hídrica ou térmica.
Por sua vez, o Decreto­‑Lei n. 3.763, de 1941, confere mais um
passo na centralização de competências setoriais na União em detri‑
mento dos Municípios. Esse instrumento dispõe que as atividades de
distribuição e transmissão necessitariam de autorização federal, de for‑
ma que os municípios passariam a figurar como meros consumidores,
por terem seus direitos adstritos à celebração de contratos para forne‑
cimento de energia para seus serviços públicos.
Em paralelo à reordenação do sistema elétrico nacional, que reo‑
rientava a legislação para concentrar as competências na União e ex‑
pandir a base hídrica e térmica, o governo Vargas atuou fortemente na
implementação de um parque industrial que necessitaria consumir de
forma intensiva esta energia. Como coroação de uma estratégia de po‑
lítica internacional, em que o Brasil condicionou o apoio aos Aliados
na Segunda Grande Guerra, foi obtido financiamento dos Estados
Unidos para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN,
em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, ato exposto pelo Decreto­‑Lei
n. 3.002, de 1941. No ano seguinte, o Decreto­‑Lei n. 4.352 criou a
Companhia Vale do Rio Doce – CVRD. Logo, com a geração de ener‑
gia, extração de minérios e atuação em siderurgia, o Brasil ingressava
no até então seleto grupo de países com indústria de base e, por conse‑
guinte, dos grandes produtores e dos consumidores de energia.
Merecem ainda destaque o Decreto­‑Lei n. 4.259, de 1942, que, re‑
gulamentado pelo Decreto n. 10.563, de 1942, tinha como objetivo

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reverter a crise de abastecimento energético dada pela ausência de in‑


vestimentos da iniciativa privada e pela incipiente presença de capital
estatal; bem como o Decreto­‑Lei n. 7.062, de 1944, que proibiu a alie‑
nação de bens das concessionárias de energia elétrica sem autorização
expressa dos entes competentes.
Tais avanços normativos, que impunham uma clareza de propósito
em prol de uma estatização setorial sob a competência da União e da dis‑
seminação de práticas setoriais para os demais segmentos industriais do
país, também apresentava deficiências estruturais. Quase dez anos após a
vigência do Código de Águas, o Decreto­‑Lei n. 5.764, de 1943, acabava
por criar uma espécie de disposição transitória entre a realidade contratua­
lista municipal e o sistema federalista que se impunha ao setor elétrico.

Art. 1o Enquanto não forem assinados os contratos a que se refe‑


rem os arts. 202 do Código de Águas e 18 do Decreto­‑Lei n. 852, de 11
de novembro de 1938, os direitos e as obrigações das empresas de ener‑
gia elétrica, coletivas ou individuais, continuarão a ser regidos pelos
contratos anteriormente celebrados, com as derrogações expressas na
presente lei.

Com as condições setoriais criadas pelo Estado Novo, em conjunto


com a escassez de crédito nos mercados internacionais decorrente de
duas grandes guerras, a estatização de toda a cadeia produtiva acabou
por se demonstrar uma questão de tempo. A União assumia a geração da
fonte hidráulica enquanto forma de induzir a industrialização do país,
pois era a proprietária dos grandes aproveitamentos hidrelétricos, a titu‑
lar da servidão sobre as águas estaduais e/ou municipais, bem como o
Poder Concedente das outorgas dos aproveitamentos hidráulicos.

3.2 A regulação da lenha: do serviço florestal ferroviário


ao Código Florestal
A exploração de lenha é uma atividade tão antiga quanto a própria
história do Brasil. Enquanto colônia, a exploração do pau­‑brasil, conside‑

143

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rada monopólio da Coroa portuguesa desde o século XVI, era concedida


a particulares mediante contraprestações, que iam desde o pagamento de
impostos até a assunção de compromisso de patrulhamento do litoral
brasileiro, com o objetivo de evitar invasões estrangeiras. Sua aplicação
era diversa, sendo implementado para construção de embarcações, tingi‑
mento de vestuário e geração de energia térmica em pequena escala.
Após a Proclamação da Independência, bem como o advento da Re‑
volução Industrial, iniciou­‑se a busca pela mecanização da exploração ve‑
getal. O primeiro registro nesse sentido é o Decreto n. 6.765, de 15 de
dezembro de 1877, que concedeu privilégio a Fernando de Albuquerque
para fabricar e vender o aparelho de sua invenção, destinado a rachar le‑
nha. Assim, a água e a lenha eram elementos indispensáveis para a inci‑
piente industrialização que o Brasil experimentava no final do século XIX.
Com o início do período republicano, concomitante à expansão
do sistema ferroviário brasileiro enquanto via principal para escoa‑
mento da produção canavieira e cafeeira para exportação, é possível
notar a construção de um sistema precário de regulamentação da ativi‑
dade de exploração de lenha.14 Esse sistema culminou na criação de um
“serviço florestal” para regulamentar a exploração da lenha pela Estrada
de Ferro Central do Brasil e pela Estrada de Ferro Oeste de Minas, por
força do Decreto n. 4.239, de 4 de janeiro de 1921. O governo Epitácio
Pessôa buscava, por intermédio de uma área florestal criada no interior
das companhias ferroviárias, possibilitar que as empresas adquirissem
terras para reflorestamento com finalidade energética.
A regulamentação energética para o setor ferroviário foi intensifi‑
cada no início do governo Vargas, com enfoque central na redução
dos custos com a lenha enquanto matriz energética dos trens da Cen‑
tral do Brasil.

14
Conforme demonstram o Decreto n. 2.386, de 27 de novembro de 1896, o De‑
creto n. 3.355, de 24 de julho de 1899, o Decreto n. 4.140, de 1o de outubro de
1920, o Decreto n. 4.498, de 19 de janeiro de 1922, e o Decreto n. 15.304, de 19
de janeiro de 1922.

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Curso de Direito da Energia

Decreto n. 19.882 – de 17 de abril de 1931


Estabelece regras especiais para a aquisição de lenha destinada ao
consumo da Estrada de Ferro Central do Brasil
O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos
do Brasil, tendo em vista a necessidade de reduzir o consumo de carvão,
que da Estrada de Ferro Central do Brasil representa aproximadamente
50% da despesa total de material; atendendo à conveniência de substi‑
tuir, tanto quanto possivel, esse combustível por outro de menos preço;
tendo sido examinada a possibilidade de empregar lenha nos trens de
alguns ramais da mencionada estrada, conseguindo­‑se desse modo eco‑
nomia no custeio, reduzindo a importação de materiais e proporcionan‑
do trabalho a grande número de operários nacionais,
Decreta:
Art. 1o Fica a diretoria da Estrada de Ferro Central do Brasil
autorizada:
a) a adquirir lenha, diretamente ao preço máximo de 5$0 por me‑
tro cúbico, onde seja possivel;
b) a organizar, com o próprio pessoal da estrada, comissões com‑
pradoras desse material, expedindo instruções para esse serviço;
c) a mandar pagar, pelos pagadores da estrada, no local das com‑
pras, as contas depois de regularmente processadas ou mediante adian‑
tamentos.
Art. 2o Revogam­‑se as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 17 de abril de 1931, 110o da Independência e 43o
da República.
Getúlio Vargas.
José Americo de Almeida.

A “civilização da lenha”15 impunha paradigmas à sociedade da dé‑


cada de 1930. Os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e parte de Minas

15
A expressão “civilização da lenha” pode igualmente ser identificada na obra
FRÓIS DE ABREU, S. Matérias-primas industriais, 1950, disponível em:
<www.ibge.gov.br> e no discurso do então governador de Minas Gerais, Jusce‑
lino Kubitschek, para justificar a criação da Cemig, disponível em: <www.almg.
gov.br>.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Gerais experimentavam uma forte expansão da cultura cafeeira. Essa


monocultura era movida basicamente a mão de obra imigrante e a le‑
nha, transportada geralmente no lombo dos burros até alcançar os for‑
nos das casas rurais ou urbanas, neste caso viajando longas distâncias
de trem. Era uma realidade em que a eletricidade, o gás e o diesel eram
insumos incipientes ou inexistiam.
E o processo de urbanização no Brasil começava a se acelerar. Uma
lenha cara naquela época equivaleria ao efeito nefasto do aumento da
eletricidade ou da gasolina nos tempos atuais. Com tamanha impor‑
tância desse insumo, havia a necessidade de uma regulação estatal mais
robusta e estruturada, de forma a ordenar seu plantio, sua extração e
seu transporte. Nesse cenário, o Decreto n. 23.793, de 23 de janeiro de
1934, que aprovou o Código Florestal, tinha como um de seus princi‑
pais objetivos regular e fiscalizar o fornecimento de lenha para o de‑
senvolvimento urbano.
Como a lenha era um bem com alto valor econômico, fundamen‑
tal era produzir condicionantes públicas para sua extração. Assim, o
art. 22 proibia aos proprietários de terra derrubar matas ainda exis‑
tentes às margens dos cursos d’água, lagos e estradas de qualquer na‑
tureza, em regiões de flora escassa. A vegetação de alto valor
econômico deveria ser destinada a finalidade mais nobre do que ser
transformada em lenha ou carvão. Por sua vez, o art. 25 fixava a obri‑
gatoriedade da licença de autoridade florestal para proprietários de
terras que pretenderem explorar a indústria da lenha para abasteci‑
mento dos vapores e máquinas.
O art. 26, ao antecipar o início de operação de grandes siderúrgicas
no Brasil, intensivas no consumo de energia, previa que as empresas
siderúrgicas e as de transporte,16 no gozo de concessão ou de outro

16
Importante destacar que o art. 44 previa que “quando a exploração tiver por fim
o aproveitamento industrial do lenho e determinadas essencias, que, por sua
grande abundancia no local, possam ser abatidas sem inconveniencia para as flo‑
restas, terá lugar o corte sob a fiscalização da autoridade competente, afim de

146

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Curso de Direito da Energia

favor especial, eram obrigadas a manter em cultivo as florestas indis‑


pensáveis ao suprimento regular da lenha ou do carvão de madeira, de
que necessitem, em áreas estabelecidas de acordo com a autoridade flo‑
restal, sendo esta dispensada em regiões de extensas florestas virgens.
O art. 28 enunciava que as companhias de navegação fluvial e as de
estradas de ferro que usassem carvão, coquilhos ou lenha como com‑
bustível nas embarcações ou máquinas a vapor, seriam obrigadas, a ju‑
ízo do governo, a manter, nas chaminés das fornalhas, aparelhos que
impedissem os escapamentos de fagulhas que pudessem atear incên‑
dios na vegetação marginal dos rios ou estradas.
O Decreto ainda previa um regime jurídico especial aos Estados
nordestinos. Pelo histórico hidrológico crítico, o art. 29 dispunha que
nas regiões do nordeste brasileiro assoladas pela seca era proibida a ex‑
ploração de lenha, salvo em casos de absoluta necessidade, plenamente
provada, de (i) emprego da lenha de árvores, que não tenham atingido
seu desenvolvimento natural, em construções de casas, ou cercados de
qualquer natureza; ou (ii) emprego da lenha de árvores como combus‑
tível em serviços de transporte, ressalvado o disposto no art. 26.
O aludido Código previa, ainda, que cada Município classificaria
as terras que o constituem em três categorias distintas, para o efeito
da cobrança de impostos sobre a extração da lenha e o preparo do car‑
vão (art. 35) e considerava contravenção florestal adquirir lenha ou
carvão para queimar em embarcações, máquinas de tração ou instala‑
ções industriais, sem investigar previamente se tais subprodutos eram
oriundos de florestas em que a sua obtenção não fosse proibida. A
pena era de detenção de até 15 dias e multa de até 1:000$000; (art. 87, f).
Assim, o Código Florestal de 1934, que sofreu diversas alterações ao
longo do tempo, deve ser compreendido dentro de sua perspectiva histórica.

que só recaia em arvores adultas, convenientemente situadas, e com as dimensões


a que se refere o art. 38, attendidas as determinações deste codigo, especialmente
quanto ao replantio e á defesa das paizagens e bellezas naturaes”.

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Em que pese haver uma clara preocupação ambiental,17 pode­‑se depreender


que a opção central do legislador em 1934 foi a de garantir o suprimento de
lenha regulando o uso das matas no interior dos imóveis rurais privados.
Em outras palavras, era um instrumento de intervenção do governo Vargas
na indústria cafeeira, nos transportes e na expansão industrial a ser propor‑
cionada pelas siderurgias, intensivas no uso energético. Como exemplo dos
institutos jurídicos usados para essa finalidade, estava a “Quarta Parte”,18
que restringiu o direito de uso da propriedade e preservava compulsoria‑
mente 25% de vegetação nativa nas propriedades.19
Posteriormente, no Estado Novo, o governo Vargas editou o
Decreto­‑Lei n. 1.665, de 9 de outubro de 1939, que dispôs sobre a for‑
ma de aquisição de lenha nas Estradas de Ferro da União. Ampliava­‑se,
assim, a experiência do Decreto n. 19.882, de 1931, para todas as ferro‑
vias nacionais, aprimorando a governança originada no modelo de
“serviços florestais” do governo Epitácio Pessôa. Com o advento do
aludido Decreto­‑Lei, o preço passava a ser determinado por meio de cole‑
ta, sendo facultado o pagamento no local da entrega. Importante destacar
quão relevante era o consumo de lenha naquele momento, que se refle‑
tiu em toda a década de 1940, momento em que o país experimentou
racionamento energético e a experiência do gasogênio.

17
As questões energéticas em função das necessidades ambientais serão aprofun‑
dadas no Tomo III – Da Epistemologia.
18
Art. 23. Nenhum proprietario de terras cobertas de mattas poderá abater mais de
tres quartas partes da vegetação existente, salvo o disposto nos arts. 24, 31 e 52.
§ 1o O dispositivo do artigo não se applica, a juizo das autoridades florestaes
competentes, às pequenas propriedades isoladas que estejam proximas de flores‑
tas ou situadas em zona urbana.
§ 2o Antes de iniciar a derrubada, com a antecedencia minima de 30 dias, o pro‑
prietario dará sciencia de sua intenção á autoridade competente, afim de que esta
determine a parte das mattas que será conservada.
19
Ele antecedeu o instituto da “Reserva Legal”, que adveio com a Lei n. 7.803, de
18 de julho de 1989, como critério espacial para garantir minimamente as condi‑
ções ambientais das propriedades privadas.

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Curso de Direito da Energia

Estima­‑se que, em 1948, lenha e carvão vegetal representavam


79% de toda a energia consumida no Brasil [...]. No sudeste, a queima
de lenha e carvão por certo não era menor que 50% do consumo de
combustível, apesar de volume significativo na geração de energia hi‑
drelétrica e do aumento da capacidade da região importar combustí‑
veis fósseis.20

Interessante notar que a substituição da lenha como matriz ener‑


gética pode ser identificada como elemento central da fundamentação
para se criarem empresas públicas estaduais de energia elétrica, bem
como a intensificação do emprego do modelo hidrelétrico no país. É
emblemático o esforço mineiro nesse sentido.

Quando assumiu o Governo de Minas, em 1951, Juscelino enten‑


dia que o Estado, do ponto de vista econômico, se encontrava numa
fase que ele chamou de “Civilização da Lenha”. Com o objetivo de
modernizar e impulsionar a economia estadual, ele estabeleceu um
programa de reestruturação baseado no binômio energia­‑transportes.
Essas seriam para ele as condições fundamentais para Minas
industrializar­‑se e promover a integração entre suas regiões e com os
demais Estados brasileiros.
O passo fundamental para dar início a esse projeto foi a cria‑
ção da CEMIG, destinada a construir e explorar os sistemas de
produção, transmissão e distribuição de energia elétrica. Os resul‑
tados não demoraram a aparecer. A implantação da Companhia
Siderúrgica Mannesmann, na Cidade Industrial, foi a primeira de‑
monstração concreta de que o Estado estava se estruturando para
receber grandes projetos industriais. Foi também o começo de uma
série de grandes investimentos que transformariam Minas em polo
siderúrgico.21

20
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica
brasileira. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
p. 268- 269.
21
Disponível em: <http://www.almg.gov.br/dia/A_2002/10/L121002.htm>. Acesso
em: nov. 2010.

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Assim, o Código Florestal de 1934,22 em que pese o amplo destaque


que os doutrinadores ambientalistas conferem para os aspectos refe‑
rentes à preservação da flora, pode ser apontado como um instrumento
jurídico central para consolidar a regulação do consumo da lenha no
Brasil com finalidade energética. Todavia, como se reforçará adiante, a
matriz energética nacional se transformava rapidamente, o petróleo já
era uma realidade no país desde 1939 e o parque de geração hidrelétrica
estava em vias de consolidação por meio dos sistemas estaduais a partir
da década de 1950.
A extração de lenha, grande motivadora das preocupações que cul‑
minaram no Código Florestal de 1934, deixava progressivamente de
ser uma preocupação energética, fato que permitiu a dissociação, pelo
menos no que tange ao emprego da madeira das florestas, dos interes‑
ses energéticos daqueles ambientais.

3.3 O Código de Minas e a regulação minerária:


o petróleo e o CNP
Em que pese haver outorgas para exploração de petróleo desde o
Período Monárquico, foi apenas no Estado Novo que a questão come‑
çou a ganhar a densidade necessária e, por conseguinte, legislação com‑
patível com o desafio para inserir o país nessa matriz energética. No
centro das discussões, o abrupto déficit cambial ocasionado pela im‑
portação de 100% dos combustíveis fósseis utilizados no Brasil.
Fundamental se torna identificar a importância do petróleo ao Direi‑
to da Energia. Para alguns doutrinadores, o Direito do Petróleo seria um
ramo autônomo do Direito, por ter repercussão econômica e especifici‑
dades que justificam uma epistemologia própria. O petróleo encontra
diversas aplicações na sociedade, na indústria química, nos alimentos, na
construção civil, dentre outros. Todavia, o que importa para o Direito da

22
Esse instituto foi superado pela Lei n. 4.771, de 15 de setembro de 1965, que es‑
tabeleceu nova normativa para a matéria.

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Curso de Direito da Energia

Energia é a aplicação dos hidrocarbonetos enquanto combustíveis ener‑


géticos, aplicação econômica que transformou a sociedade contemporâ‑
nea. Em outras palavras, o Direito da Energia recepciona toda a aplicação
dos hidrocarbonetos enquanto matriz energética, restando ao Direito do
Petróleo toda a infinidade de aplicações heterogêneas, incluindo mas não
se limitando aos aspectos energéticos, que contém em seu bojo.
Sobre os aspectos energéticos constantes do emprego do petróleo,
Quintas e Quintans23 demonstram com clareza a relevância deste insu‑
mo pós­‑Revolução Industrial, que teve como aplicação inicial o quero‑
sene para iluminar as lâmpadas.

Como exposto, ter petróleo significava ter luz. Descobrir e pro‑


duzir petróleo denotava uma libertação das leis naturais que ditavam a
diferença entre claridade e escuridão. A queima de betume, cera ou
destilados de petróleo em espaços abertos proporcionava o desenvol‑
vimento de hábitos noturnos coletivos, como a organização de encon‑
tros sem depender da intensidade do luar. Vale lembrar que as velas e
tochas tinham chamas com alcance e brilho limitados, então serviam
para iluminar em escala menos coletiva e mais individual. Mesmo a
fumaça e o odor da combustão destas substâncias, inconvenientes fato‑
res, foram minimizados com o advento das lâmpadas de óleo (petróleo
ou mesmo óleo de baleia) e pela luz gerada na queima do gás de carvão.
Todavia, o que democratizaria ainda mais o acesso à luz, nas dé‑
cadas que antecederam a invenção da lâmpada de Thomas Edison (e
mesmo nas décadas seguintes), foi a lâmpada de querosene.

As primeiras sondagens brasileiras objetivando descobrir petróleo


no subsolo nacional remontam ao século XIX. Os direitos civis, fun‑
dados na liberdade, na segurança individual e na propriedade em toda
sua plenitude, recebiam garantia desde a Constituição de 1824. Decor‑
re desse entendimento que as jazidas e as minas pertenciam ao proprie‑

23
QUINTAS, Humberto; QUINTANS, Luis Cezar P. A história do petróleo: no
Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2009. p. 20.

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tário do solo.24 A garantia constitucional de uso e gozo da propriedade


em toda sua plenitude foi mantida pelo legislador constituinte de 1891,
limitando­‑a por lei somente no que concernia à exploração industrial.
Considerando as tímidas iniciativas para obter petróleo no início
do século XX, com a criação da Diretoria Geral da Produção Mineral do
Ministério da Agricultura na década de 1930, o governo federalizava a
atividade administrativa concernente à exploração do subsolo e dos po‑
tenciais de energia hidráulica.25 Era a condição necessária para que o país
entrasse na “Era dos Códigos”, que constituiu verdadeiro salto qualitati‑
vo no tocante à reformulação do aparelho estatal brasileiro. Foram cria‑
dos novos órgãos gerais e setoriais, com o escopo de estender as atividades
de regulamentação da economia, modernizando­‑a e aperfeiçoando­‑a.
Pela ordem constitucional de 1934,26 as minas e demais riquezas do
subsolo, como as quedas d’água, constituíam propriedade distinta da

24
Dispunha o art. 179 da Constituição Imperial de 1824:
A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que
tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte:
XXII. E’ garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem
publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cida‑
dão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos,
em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a inde‑
mnisação.[sic]
25
Respectivamente, Decreto n. 20.799, de 16 de dezembro de 1931, e n. 23.016, de
16 de julho de 1933.
26
Dispunha o art. 113 da Constituição de 1934:
A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a invio‑
labilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança indi‑
vidual e à propriedade, nos termos seguintes:
17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o
interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por
necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e
justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intes‑
tina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até
onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.

152

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Curso de Direito da Energia

do solo. No tocante à exploração ou aproveitamento industrial, esses


dependiam de autorização ou concessão federal, conferidos com ex‑
clusividade a brasileiros ou a empresas organizadas no Brasil. Previ‑
são mantida em parte no texto constitucional de 1937, autorizando­‑se
a exploração por brasileiros ou a empresas constituídas por acionis‑
tas brasileiros.
A indústria dos hidrocarbonetos no Brasil tem inúmeras defini‑
ções e diversas nomenclaturas expostas por diferentes doutrinadores.
Para Marinho Jr.,27 a história do petróleo no Brasil pode ser dividida
em: (i) Pré­‑história do Petróleo (1864­‑1919); (ii) fase de reconhecimen‑
tos geológicos (1919­‑1933); (iii) fase de seleção de áreas (1933­‑1939);
(iv) fase de organização do Conselho Nacional do Petróleo – CNP
(1939­‑1946); (v) fase de ampliação das atividades do CNP (1946­‑1951);
(vi) fase de integração das atividades do CNP (1951­‑1953); e (vii) fase
de criação da Petrobras (desde 1954).
Depreende­‑se da obra de Quintas e Quintans que existe uma dico‑
tomia entre o petróleo no mundo e no Brasil, de forma que, no Brasil,
existem quatro fases destacadas: (i) as primeiras concessões; (ii) o mo‑
nopólio estatal; (iii) os contratos de risco; e (iv) Reforma do Estado e
flexibilização do monopólio.28 D’Assunção expõe a divisão de forma
positivista: (i) os primeiros tempos; (ii) o Decreto­‑lei n. 395, de 1938;
(iii) a lei de criação da Petrobras, Lei n. 2.004, de 1953; (iv) as crises do
petróleo; (v) biocombustíveis – bioenergia; (vi) autossuficiência em pe‑
tróleo; e (vii) as descobertas da Bacia de Santos – pré­‑sal.
Leite,29 que, diferentemente dos autores anteriores, busca identi‑
ficar o sistema energético nacional como um modelo único e sem a

27
MARINHO JR., Ilmar Penna. Petróleo: soberania e desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Bloch, 1969.
28
QUINTAS, Humberto; QUINTANS, Luis Cezar P. A história do petróleo: no
Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2009.
29
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

dicotomia clássica energia elétrica­‑hidrocarbonetos, identifica um se‑


tor no Brasil com dez fases, a saber: (i) a Era da lenha (até 1915); (ii) a
Primeira Guerra Mundial até a crise (1915­‑1930); (iii) a Era Vargas
(1930­‑1945); (iv) o Pós­‑Guerra (1945­‑1955); (v) desenvolvimento e cri‑
se (1956­‑1964); (vi) reforma econômica (1964­‑1974); (vii) os dois cho‑
ques do Petróleo e suas sequelas (1974­‑1985); (viii) transição para uma
Nova República (1985­‑1994); (ix) reforma institucional e econômica
(1995­‑2002); e (x) partida para o Novo Século (desde 2002).
Todavia, se há a pretensão de se formar uma cronologia jurídica, se
faz necessário observar os instrumentos normativos que justificam ter‑
giversar sobre novos períodos e se, de fato, houve grandes modifica‑
ções que fundamentem um corte epistemológico, e não apenas a
existência, a priori, de um ato normativo novo.
Assim como o setor elétrico encontra seus primórdios condicio‑
nados ao sistema de propriedade intelectual do Império, bem como
aos sistemas de iluminação pública inicialmente a gás, em que pese o
Segundo Reinado ter realizado outorgas para exploração de petró‑
leo, entendemos que a matriz jurídica da exploração de hidrocarbo‑
netos encontra no sistema geológico nacional sua matriz, de forma
que há, de fato, ponto de inflexão nesta atividade: (i) após o Código
Florestal, que regulava a exploração de lenha para utilizar como
combustível fóssil; (ii) com o advento do Código de Minas, que sis‑
tematizou a exploração de petróleo no território nacional; e (iii) com
a criação do Conselho Nacional do Petróleo – CNP, conforme se
verá adiante.
Logo, iniciativas díspares e sem noção de conjunto, tomadas para
finalidades particulares, como foi o caso do presidente Rodrigues Al‑
ves ao ordenar a substituição do petróleo por álcool como combustível
para as locomotivas brasileiras com a finalidade de equilibrar a balança
comercial em 1904,30 pode ser um exemplo de como iniciativas energé‑

30
Ver art. 17, X, da Lei n. 1.145, de 1903, ou o item 2.1 já mencionado.

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ticas eram tomadas sem, todavia, podermos apontar uma sistematiza‑


ção que justifique compor um ramo autônomo do Direito.
A produção petrolífera, no período entre as Grandes Guerras,
passou a demonstrar grande dificuldade para atender às demandas dos
múltiplos usos de suas propriedades pelas sociedades contemporâneas.
As discussões sobre petróleo no Brasil ganharam impulso definitivo na
década de 1930.
Ciente do desenvolvimento internacional que o petróleo estava
ocasionando ao se tornar a fonte primária energética de maior eficiên‑
cia calórica, o Brasil contratou em 1932, no exterior, um geofísico para
buscar petróleo no país,31 haja vista que os empreendedores brasileiros
começaram a se interessar em iniciar atividades de exploração e pres‑
sionavam o governo por uma iniciativa de mapeamento do subsolo.
Como obstáculos a esse desejo estavam os parcos recursos técnicos,
financeiros e de mão de obra, bem como a alegação de que o Ministério
da Agricultura obstacularizava a pesquisa.

31
Decreto n. 21.079, de 24 de fevereiro de 1932
Autoriza o Governo a contratar um geofísico para o Serviço Geológico e Minera-
lógico do Brasil
O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil,
atendendo à necessidade de serem desenvolvidos os trabalhos de investigação do
sub-solo e sobre a exequibilidade da aplicação dos métodos geofísicos nas pes‑
quisas das estruturas adequadas à acumulação de petróleo e na prospecção de
jazidas metalíferas no país;
Atendendo ainda a que essas investigações só podem ser confiadas a técnicos que já
tenham demonstrado conhecimentos especiais sobre o assunto, razão por que foi
convidado para esse trabalho o especialista norte-americano Mark Cyril Malam‑
phy, que já vem prestando a sua colaboração ao Serviço Geológico e Mineralógico
do Brasil desde dezembro de 1931, resolve:
Art. 1o Fica autorizado o Ministério da Agricultura a contratar o geofísico Mark
Cyril Malamphy, pelo prazo de um ano, a partir de 1 de janeiro último, com a
gratificação mensal de 6:000$0 e uma ajuda de custo de primeiro estabelecimento
correspondente a um mês da dita gratificação, bem assim com direito à diária de
30$0, passagens de 1a classe e transporte de bagagem nas estradas de ferro e com‑
panhias de navegação, quando em serviço de campo fora desta Capital.

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Os cientistas do Direito não estiveram alheios a essa discussão.


Havia um bacharel em Direito e jornalista que conferiu inestimáveis
contribuições à sociedade brasileira e, em que pese Rui Barbosa tam‑
bém ter tido uma forte atuação como jornalista, pode ser considerado
o maior representante brasileiro daquilo que os norte­‑americanos de‑
nominariam como corrente do realismo jurídico do Law & Literature.
Monteiro Lobato, que tinha retornado a São Paulo em 1931 após
perder quantias significativas na quebra da Bolsa de Nova York, fundou
a Companhia Petróleos do Brasil e passara a defender que o “tripé” para
o progresso brasileiro seria o ferro, o petróleo e as estradas para escoar
os produtos. Entusiasta do desenvolvimento econômico norte­
‑americano, Lobato passou a militar no sentido de que a sociedade
brasileira deveria ter uma visão nacionalista do petróleo, com grande
ativismo político. No tocante ao petróleo, em 1935 Monteiro Lobato
começa campanha ostensiva em favor da exploração do petróleo por
brasileiros. O escritor chega a denunciar, em duas cartas notórias ao
presidente Vargas, as manobras da Standard Oil para se apropriar de
potenciais jazidas brasileiras.32 33

32
São Paulo, 20 de janeiro de 1935
Dr. Getúlio Vargas
Por intermédio do meu amigo Rônald de Carvalho, procurei no dia 15 do cor‑
rente, fazer chegar ao seu conhecimento uma exposição confidencial sobre o
caso do petróleo, estou na incerteza se esse escrito chegou a destino. Talvez se
perdesse no desastre do dia 20. E como se trata de documento de muita impor‑
tância pelas revelações que faz, seria de toda conveniência que eu fosse informa‑
do a respeito. Nele denuncio as manobras da Standard Oil para senhorear-se das
nossas melhores terras potencialmente petrolíferas, confissão feita em carta pelo
próprio diretor dos serviços geológicos da Standard Oil of Argentina, que é o
tentáculo do polvo que manipula o Brasil. E isso com a cooperação efetiva do sr.
Victor Oppenheim e Mark Malamphy, elementos seus que essa companhia insi‑
nuou ou no Serviço Geológico e agora dirigem tudo lá, sob o olho palerma e
inocentíssimo do dr. Fleuri da Rocha. É de tal valor a confissão, que se eu der a
público com os respectivos comentários o público ficará seriamente abalado.
Acabo agora de obter mais uma prova da duplicidade desse Oppenheim, cornaca

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do Fleuri. Em comunicação reservada que ele enviou para a Argentina ele diz
justamente o contrário, quanto às possibilidades petrolíferas do Sul do Brasil, do
que faz aqui o Fleuri pelos jornais, com o objetivo de embaraçar a marcha dos
trabalhos da Companhia Petróleos.
O assunto é extremamente sério e faz jus ao exame sereno do Presidente da Re‑
pública, pois que as nossas melhores jazidas de minérios já caíram em mãos es‑
trangeiras e no passo em que as coisas vão o mesmo se dará com as terras
potencialmente petrolíferas. E já hoje ninguém poderá negar isso visto que tenho
uma carta em que o chefe dos serviços geológicos da Standard ingenuamente
confessa tudo, e declara que a intenção dessa companhia é manter o Brasil em
estado de “escravização petrolífera”.
Aproveito o ensejo para lembrar que ainda não recebi os papéis, ou estudos
preliminares do serviço que V. Excia. tinha em vista organizar, por ocasião do
encontro que tivemos em fins do ano passado, no Palácio Guanabara.
Respeitosamente,
J. B. Monteiro Lobato
33
São Paulo, 19 de agosto de 1935
Dr. Getúlio Vargas
Rio de Janeiro
Excelentíssimo Senhor:
Conforme previ na última audiência que me foi concedida a 15 do corrente, há
alguém interessado em embaraçar a ação da Cia Petróleos do Brasil, dificultando
a obtenção da autorização para que ela siga seu curso natural, fora das restrições
do Decreto nº 20.799, que, em requerimento ao Ministério da Agricultura, foi
pedida. E como V. Excia., me autorizou, neste caso, a recorrer diretamente a V.
Excia., como guardião que é dos verdadeiros interesses nacionais, sou forçado a
lançar mão desse recurso.
Negam-nos a autorização pedida, dificultando, retardando, protelando o neces‑
sário decreto. Isso vem impossibilitar a atividade da Cia Petróleos do Brasil. Os
homens contratados à custa de tanto sacrifício monetário para procederem em
nosso território quatro meses de provas, nada poderão fazer já que a companhia
que os contratou não pode fazer contratos de opção nos terrenos a serem exami‑
nados. E desse modo terão de regressar para a América do Norte sem que o
Brasil se beneficie das vantagens incomensuráveis da série de provas previstas e
para as quais a nossa empresa se formou.
Isso constitui um crime imperdoável, além de denunciar de modo esmagador
que há gente paga por estrangeiros para que o Brasil não tenha nunca o seu pe‑

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Em sua obra publicada em 1936, O Escândalo do Petróleo e Ferro,


o escritor chega a acusar o governo de não perfurar e não deixar que se
perfure o solo atribuindo a responsabilidade, com textos de linguagem
direta e irônica, a uma norma no qual, segundo Monteiro Lobato, os
interesses internacionais fizeram valer seus interesses: a Lei de Minas.

Mas como não abrir poços nos terrenos que compra é mais fácil
do que impedir que outros os abram perto, ocorreu ao trust uma ideia
dum maquiavelismo genial. Habilissimos, traquejadissimos, com uma
velha sabedoria vulpina de lidar com a humanidade, manobraram os
nossos homens públicos e fizeram que por suas mãos inocentes fosse
desferido no Brasil o grande golpe. O trust gestou a Lei de Minas; o
nacionalismo patriotico o pariu.
Como não babaria de gozo Maquiavel, se ressuscitasse!
Os homens públicos que assinaram essa lei fizeram­‑no convictos
de estarem defendendo da melhor maneira os nossos tesouros subter‑
râneos. Leis como essas são técnicas; presidentes e ministros apenas as
subscrevem – não as leem. Há o pavor de meter os dentes em ‘matéria
técnica’. É tabu lá dos técnicos. Mas se acaso hoje aqueles homens ti‑
vessem a curiosidade de ler o que assinaram e com o seu natural bom­
‑senso refletissem sobre o texto, haviam de ficar de cabelos arrepiados.
Porque a Lei de Minas tranca de maneira mais absoluta qualquer inves‑
tigação do subsolo. Cria mais embaraços que só um doido varrido irá
perder tempo em cavocar a terra.
A coisa é clara. Já que o trust interessado no petróleo do Brasil
não pretendia explorá­‑lo, e sim apenas acaparar as terras petrolíferas

tróleo. Em vez de, pelas funções de seus cargos, esses homens tudo fazerem para
que tenhamos petróleo, quanto antes, tudo fazem para que não o tenhamos nun‑
ca. O caso é, pois, desses que pede a imediata intervenção de homens que, como
V. Excia., só têm em vista os altos interesses do País.
Assim, de acordo com a promessa que V. Excia. Me fez, venho denunciar a ma‑
nobra da sabotagem burocrática e pedir o remédio urgente.
Respeitosamente subscrevo-me
De V. Excia. Atento servidor
Monteiro Lobato.

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Curso de Direito da Energia

para reforço das suas reservas potenciais, nada melhor do que o apare‑
cimento de uma lei que, trancando as pesquisas em geral, só favorece a
política secreta do trust em particular. E para obter uma lei dessas nada
melhor do que pegar o indígena num dos seus acessos de febre nacio‑
nalista. Desse modo o trust afastaria os concorrentes para, com todo o
sossego, ir acaparando as zonas geofisicamente estudadas.
O plano surtiu efeito completo.
A nova lei constitue o mais lindo trabalho ainda feito no mundo
para manter o subsolo dum país em rigoroso estado de virgindade até
o momento em que o espírito santo de orelha entenda de explorá­‑lo.
Por essa época, então, e já dono de todos os pontos estratégicos, nada
mais fácil do que mobilizar a opinião pública e denunciar o absurdo da
lei, fazendo­‑a substituir. Quantas vezes esse trust já não manipulou,
fez e desfez, leis de minas por este mundo de Cristo afora?
A Lei de Minas, anunciada pelos seus promulgadores como o Seza‑
mo, abre­‑te das nossas riquezas minerais, saiu um Sezamo, fecha­‑te!...
Fecha­‑te, até que todos os estudos geofísicos do trust estejam completos;
todas as estruturas petrolíferas que lhe convenham estejam adquiridas; a
atual superprodução do petróleo esteja passada; e haja para o trust inte‑
resse em abrir aqui novas fontes. Só então a bacoquice indígena percebe‑
rá a esparrela em que caiu, e virá o clássico “Ora veja!”34

Em que pese a vasta literatura voltada para a indústria do petróleo,


algumas obras são centrais para compreender sua relevância global. Es‑
say Bey, para muitos pseudônimo utilizado por Lev Nussimbaum, jor‑
nalista ucraniano judeu, teria escrito em pleno regime soviético a obra
A luta do petróleo, publicada em 1936. Essa foi a primeira obra que
demonstrou de forma objetiva os expedientes que as grandes nações se
utilizavam para obter petróleo e, por conseguinte, vantagens no pro‑
cesso civilizatório. A edição brasileira foi prefaciada por Monteiro Lo‑
bato, que com seu idealismo brada que a América do Sul tem um
verdadeiro lago de petróleo no subterrâneo, e que a Lei de Minas é uma

34
LOBATO, Monteiro. O escândalo do petróleo e ferro. Obras completas. São
Paulo: Brasiliense, 1950. v. 7, p. 46-48.

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grande lei­‑cipó, por criar todos os tipos de embaraços aos Estados­


‑membros, legítimos donos das reservas em seu subsolo.
Em 1938, dois atos normativos demonstram o início da regula‑
mentação da atividade de petróleo e gás no Brasil: (i) o Decreto­‑Lei n.
366, que acrescentou novo título ao Código de Minas, de forma a ins‑
tituir o regime legal de jazidas de petróleo e gases naturais; e (ii) o
Decreto­‑Lei n. 395, que criou o Conselho Nacional de Petróleo – CNP
em momento de grande disputa energética entre aqueles que desejavam
nacionalizar a exploração do petróleo e empresários interessados em
que essa atividade se mantivesse privada. A criação do CNP demonstra
claramente a adoção governamental das premissas defendidas pela cor‑
rente nacionalista,35 por dispor sobre a regulação da produção, impor‑
tação e exportação, a nacionalização das refinarias de petróleo e a
reserva da direção e da propriedade da indústria petrolífera apenas a
brasileiros natos.36

35
Ou seja, federalista e estatizante, haja vista a atuação do general Júlio Caetano
Horta Barbosa.
36
Importante destacar, como típico dos instrumentos jurídicos expedidos no go‑
verno Vargas, a clareza do preâmbulo do Decreto-Lei n. 395, de 1938, que criou
o CNP e regulou a atividade do petróleo no país:
O presidente da República, ouvido o Conselho Federal de Comércio Exterior,
tendo em vista os elevados interesses da segurança do país e da economia nacio‑
nal, e usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da Constituição Federal, e,
outrossim:
Considerando que o Código de Minas, promulgado pelo decreto n. 24.642, de 10
de julho de 1934, impôs ao proprietário das minas e jazidas conhecidas a obriga‑
ção de manifestá-las ao poder público, dentro de prazos determinados, e que
nenhuma jazida de hidrocarbureto, líquido ou gasoso, de valor industrial, foi
manifestada e mandada registrar na vigência dos mesmos prazos, resultando em
consequência que todas essas jazidas, porventura existentes no território nacio‑
nal, foram incorporadas ao patrimônio da Nação (decreto-lei n. 66, de 14 de
dezembro de 1937 e 366, de 11 de abril de 1938);
Considerando que o petróleo refinado constitue a fonte principal de energia
para a realização do transporte, especialmente aéreo e rodoviário, serviço de uti‑
lidade pública nacional, indispensavel á defesa militar e econômica do país;

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Curso de Direito da Energia

A principal mudança consistia no fato de que as jazidas, mesmo


que ainda não descobertas, passariam a constituir bem da União. A
responsabilidade do CNP, por sua vez, consistia em avaliar os pedi‑
dos de pesquisa e lavra, além de fiscalizar as atividades de importa‑
ção, exportação, transporte, distribuição e comércio de petróleo. Há,
com esse instrumento, uma indicação de início de processo de equa‑
lização tarifária.
A insatisfação demonstrada por Monteiro Lobato também pode
ser identificada no texto de Leite, que descreve com riqueza de dados
jurídicos, políticos e regulatórios o momento da identificação de pe‑
tróleo no Brasil em escala comercial. Por uma interessante coincidên‑
cia, talvez uma espécie de “homenagem divina”, o petróleo foi
identificado em um bairro de Salvador, defronte à Baía de Todos os
Santos, em local de mesmo nome do escritor.

Depois de pareceres técnicos contraditórios de reconhecidos


profissionais e de anos de debates exaltados, e graças à insistência de
Oscar Cordeiro, o governo, por meio do DNPM, então sob a dire‑
ção de Avelino de Oliveira, decidiu­‑se por perfurar na região de Lo‑
bato. O poço, localizado por Irnack Amaral, recebeu o número 163
e resultou produtivo. O petróleo jorrou em 21 de janeiro de 1939 e
logo a seguir foi estabelecida, por proposta do recém­‑criado Conse‑
lho Nacional de Petróleo, a constituição de uma reserva petrolífera
nacional delimitada por uma circunferência de 60km de raio em tor‑
no do famoso poço de Lobato (Decreto n. 3.071/1939). Iniciava­‑se,

Considerando a conveniência de ordem econômica de prover à distribuição em


todo o território nacional do petróleo e seus derivados em condições de preço
tão uniformes quanto possivel:
Decreta:
Art. 1o Fica declarado de utilidade pública o abastecimento nacional de petróleo.
Parágrafo único. Entende-se por abastecimento nacional de petróleo a produ‑
ção, a importação, o transporte, a distribuição e o comércio de petróleo bruto e
seus derivados, e bem assim a refinação de petróleo importado ou de produção
nacional, qualquer que seja neste caso a sua fonte de extração.

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então, embora em escala diminuta, a produção de petróleo em terri‑


tório nacional.
No campo prático, da descoberta e produção, tornava­‑se claro,
independentemente de questões ideológicas, que a questão do petróleo
não evoluía de modo satisfatório.37

Leite continua a análise de tão fértil momento histórico, ao mos‑


trar o caráter da legislação da época, que chama de nacionalista, mas
não estatizante.

Cerca de seis meses depois da Constituição de 1937, foi incorpo‑


rado ao Código de Minas extenso capítulo, quase regulamentar, rela‑
tivo às condições especiais da pesquisa e lavra das jazidas da classe X,
que compreendia o petróleo e os gases naturais (Decreto­‑Lei n.
366/1939). Tratava­‑se de regular a concessão e a fiscalização da pes‑
quisa e da lavra do petróleo, a ser realizada por brasileiros ou empresa
constituída por brasileiros, já que assim determinava a Constituição.
O documento era nacionalista mas não estatizante. Admitia apenas
que a União pudesse reservar zonas presumidamente petrolíferas,
dentro das quais não se outorgassem autorizações de pesquisa nem
concessões de lavra, e que a União pudesse pesquisar e lavrar jazidas
de petróleo, industrializar, comercializar e transportar os respectivos
produtos. O parágrafo único desse artigo era um embrião dos contro‑
vertidos contratos de risco: a União poderia “[...] outrossim contratar
com empresas especialistas, de reconhecida idoneidade técnica e fi‑
nanceira, nacionais ou estrangeiras, a perfuração de poços para pes‑
quisa e extração de petróleo, correndo por conta e risco das empresas
contratantes todas as despesas a serem efetuadas, contra uma partici‑
pação, que for convencionada, nos produtos da exploração”. Esse ins‑
trumento legal teve curta duração e nenhum efeito prático, sendo
revogado, três anos depois, por novo código de mineração (Decreto­
‑Lei n. 1.985/1940).38

37
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 80.
38
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 81.

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Logo, os hidrocarbonetos em geral, e o petróleo em específico,


somente podem ser compreendidos de forma juridicamente sistemati‑
zada após a criação do Conselho Federal de Comércio Exterior, por
força da Constituição Federal de 1937. A exploração do petróleo pas‑
sava a ser estudada em um foro interdisciplinar, decorrente da mesma
angústia que atormentou o presidente Rodrigues Alves: o enorme
desequilíbrio na balança comercial que a importação de 100% do pe‑
tróleo consumido no Brasil ocasionava, criando uma evasão de divisas
do território brasileiro somente comparável ao envio dos minerais do
período colonial a Portugal.
Outra coincidência digna de menção foi a institucionalização das
Geociências no Brasil, principalmente com a criação do Instituto Bra‑
sileiro de Geografia e Estatística – IBGE em 1938, que culminou com
a institucionalização da Geografia, e a descoberta de petróleo no Bra‑
sil, momento de enorme valorização das Geociências em geral e da
Geologia em específico.

Sob bons signos aparece a Revista Brasileira de Geografia: ao ser


ultimada a sua impressão, uma notícia sensacional espalhou­‑se pelo
país inteiro, rapidamente, provocando as mais intensas vibrações – jor‑
rou petróleo em Lobato, na Baía! O 21 de Janeiro de 1939, dia em que
se deu o jato de tão largas repercussões na geografia econômica nacio‑
nal, está fadado a figurar com destaque no quadro das principais datas
da história da nossa economia. É, pois, com o maior prazer que a Re‑
vista Brasileira de Geografia, ao nascer, se congratula entusiasticamen‑
te com os seus leitores brasileiros.39

O elo entre Geografia e energia seria aprofundado nos anos se‑


guintes. O Decreto­‑Lei n. 366, de 1939, criou o conceito de região pe‑
trolífera, ao permitir que a União criasse zonas para extração deste
bem. Da mesma forma, ao pormenorizar a construção da ferrovia Bra‑
sil – Bolívia para escoar o petróleo do país vizinho, o petróleo adquiria

39
Petróleo na Baía. Revista Brasileira de Geografia, n. 1, jan. 1939.

163

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um caráter estratégico, geopolítico e geojurídico.40 Em que pese os tra‑


balhos bilaterais não terem frutificado de imediato, o conceito de re‑
gião passava a integrar o conceito de petróleo.

O governo da Bolívia procurou a cooperação do Brasil para o


desenvolvimento de seu potencial de petróleo. Os presidentes German
Bush e Getúlio Vargas decidiram por um ponto final em antigas diver‑
gências, que vinham desde o Acre, e abrir nova época de colaboração.
Em fevereiro de 1938, os ministros Pimentel Brandão e Alberto Ostia
Gutierrez assinaram dois tratados, respectivamente sobre vinculação
ferroviária e saída e aproveitamento do petróleo boliviano. O primeiro
deu origem à construção da Estrada de Ferro Brasil­‑Bolívia, entre Co‑
rumbá e Santa Cruz de La Sierra. O segundo estabeleceu área reserva‑
da a trabalhos conjuntos dos dois países, de pesquisa de petróleo,
trabalhos esses que não viriam a ser realizados.41

Assim, o governo Vargas, após o início da Segunda Grande Guerra


(1939­‑1945), foi obrigado a tomar quatro grandes iniciativas para com‑
bater a total dependência brasileira de petróleo:
(i) publicar o Código de Minas, por força do Decreto­‑Lei n. 1.985,
de 29 de janeiro de 1940, que definiu os direitos sobre as jazidas
e minas, estabeleceu o regime do seu aproveitamento, regulou a
intervenção do Estado na indústria de mineração e a forma de
fiscalização das empresas que utilizam matéria­‑prima mineral;
(ii) declarar o racionamento de 1941, concomitante à política de
gasogênio;
(iii) incentivar a pesquisa e a exploração, por meio do incentivo à
indústria nacional, priorizando­‑se a produção de aço;42 e

40
A expressão “geojurídico” é empregada no sentido de demonstrar a interdisci‑
plinaridade entre Geociências e Direito, ou seja, o emprego de conceitos geográ‑
ficos – como é o caso de “região”, pelo direito posto.
41
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 121.
42
O Decreto n. 6.519, de 12 de novembro de 1940, autorizava, a título provisório,
o cidadão brasileiro Francisco Matarazzo Júnior a pesquisar jazidas de petróleo

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(iv) outorgar concessões no setor petrolífero, como o ocorrido em


1943 nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, política
essa que culminou com a constituição da Refinaria Nacional de
Petróleo S.A. em 1946, já no governo Dutra,43 ano de Consti‑
tuição promulgada.
Importante notar que o temor de Monteiro Lobato, que era a pos‑
sibilidade de empresas internacionais investirem no Brasil, encontrava
respaldo jurídico no Código de Minas vigente. Há a definição de jazida
de petróleo e gás natural na Classe X (art. 3o), de forma que delega ao
Conselho Nacional do Petróleo a execução desse Código no que se
refere às jazidas das classes X. Essa legislação permitiu que empresas
internacionais, como a Standard Oil, se interessassem pelo mercado
brasileiro. Todavia, a produção brasileira até 1945 foi insignificante,
principalmente pela ausência de capitais no pós­‑1929, bem como pela
tímida exploração petrolífera brasileira verificada no período da Se‑
gunda Grande Guerra.

3.4 A regulação do gás: os dirigíveis, o carvão e o DNIG


A origem do emprego do gás no Brasil está intimamente ligada à
história de dois setores de infraestrutura, que coincidem no fato de ter
identificado uma matriz energética mais eficaz para substituir este in‑
sumo: (i) iluminação pública, que teve no período imperial a base ener‑

e gases naturais, em terrenos situados no município paulista de Rio Claro; o


Decreto n. 6.523, de 12 de novembro de 1940, autorizava, a título provisório, a
Companhia Itatig a pesquisar jazidas de petróleo e gases naturais nos municípios
sergipanos de Sobrado e Laranjeiras; o Decreto n. 7.716, de 26 de agosto de 1941,
autorizava o cidadão brasileiro Orlando Laurito Priolli a pesquisar jazidas de
petróleo e gases naturais nos municípios sergipanos de Sobrado e Socorro; o
Decreto n. 13.000, de 27 de julho de 1943, autorizava o cidadão brasileiro Luiz
Rodrigues Bica a pesquisar jazidas de petróleo e gases naturais da classe x em
terras de domínio privado, no município catarinense de Orleans.
43
Decreto-Lei n. 9.881, de 16 de setembro de 1946, autorizou a criação e a consti‑
tuição da Refinaria.

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gética realizada a gás,44 na qual essa tecnologia foi amplamente utilizada


até o advento da eletricidade, que tornou obsoleto o sistema de ilumi‑
nação pública a gás;45 e (ii) o setor aeronáutico, que desde a experiência
do balão Passarola, de 1709, realizada pelo padre jesuíta brasileiro Bar‑
tolomeu de Gusmão, tem desenvolvido o conceito de uma aeronave
mais leve que o ar que possa ser controlada, empregando como insumo
inicial o gás hidrogênio e, posteriormente, o gás hélio.
Algumas passagens históricas do desenvolvimento dos dirigíveis
são dignas de nota, principalmente por se tratar de cientistas brasilei‑
ros. O pai da Aviação, Alberto Santos­‑Dumont, venceu o Prêmio

44
Mais informações em 1.4, “Iluminação pública: do gás à energia elétrica”.
45
Algumas exceções à aplicação do gás podem ser encontradas no Império, como
é o caso do Decreto n. 4.997 de 3/07/1872, que “Concede a Gustavo Adolpho
Wurffbain e Theodoro Just, privilégio para introdução e venda no império de
aparelhos destinados a fabricação de gás hidro-carbônico; Decreto n. 5.804, de
25/11/1874, que concede privilegio a William Denny Ruck para introduzir no
Imperio o apparelho de sua invenção destinado ao fabrico de gaz; Decreto n.
2.694, de 2/05/1877, que approva o Decreto n. 4597 de 15 de Setembro de 1870,
que concede privilegio a Claudio Guigon para introduzir no Imperio os tubos
fabricados por Vecque Jne. & Comp., e destinados ao encanamento d’agua, gaz
e outros fluidos; Decreto n. 6.905, de 18/05/1878, que concede privilegio a Silva
& Silva para os melhoramentos introduzidos no apparelho de fabricar gaz, de‑
nominado – Globe; Decreto n. 6.938, de 15/06/1878, que concede privilegio a
Domenico Tesouriere, Marquez Tupputi, para introduzir no Imperio combusto‑
res de gaz aperfeiçoados; Decreto n. 7.529, de 25/10/1879, que concede privile‑
gio a João Cerbasi e Luiz Lange para introduzirem no Imperio o apparelho de
purificar gaz de sua invenção denominado ‘Generador Cerbasi’; Decreto
n.7.759, de 14/06/1880, que concede privilegio a Henrique Brianthe para o appa‑
relho denominado – Carborador, destinado a produzir o gaz de illuminação por
meio do ar e da naphta e para a carboração do gaz carbônico; Decreto n. 7.983,
de 5/02/1881, que concede privilegio a Joaquim Alves de Souza para o apparelho
de sua invenção, destinado a produzir o gaz extrahido da turfa; Decreto n. 8.409,
de 11/02/1882, que ‘concede privilegio a Henrique Brianthe para o Avisador de
escapamento de gaz, de sua invenção’; Decreto n. 3.278, de 26/06/1886, que ap‑
prova o contracto celebrado entre o Governo Imperial e o cidadão francez Hen‑
rique Brianthe para a iluminação da cidade do Rio de Janeiro por gaz corrente;
dentre outro”.

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Deutsch em 19 de outubro de 1901, por ter desenvolvido dirigível que


circundou a torre Eiffel em 30 minutos, por meios próprios, com par‑
tida e retorno ao campo de Saint­‑Cloud sem tocar o solo ao longo do
percurso. Por sua vez, o deputado federal potiguar Augusto Severo,
que em 1887 projetou o dirigível Potyguarania e em 1892 desenvolveu
o Bartholomeu de Gusmão, que por contingenciamentos orçamentá‑
rios tinha partes compostas em bambu que não resistiram aos experi‑
mentos, em 1899 projetou o balão dirigível Pax. Em que pese Severo
ter falecido em 1902 em uma abrupta explosão do Pax no momento de
sua apresentação em Paris, o conceito implementado pelo dirigível se‑
mirrígido foi considerado revolucionário e pautou o desenvolvimento
de uma nova geração de aeronaves.
Enquanto os brasileiros demonstravam eficácia nos projetos apre‑
sentados na França, a Alemanha contava com um pioneiro que teria
seu nome considerado sinônimo de dirigíveis. O conde alemão Ferdi‑
nand von Zeppelin não poupou esforços para criar dirigíveis com es‑
trutura rígida para transporte de passageiros. Sua vanguarda estava,
principalmente, na forma empresarial que desenvolveu seus negócios
aeronáuticos, algo que não era assimilado pelos congêneres brasileiros.
Além de desenvolver projetos próprios de dirigíveis, batizados de
“Zeppelin”, o conde criou em 1909 a primeira companhia aérea do
mundo, a Delag.46
Com a nascente indústria aeronáutica sendo movida a gás, natural
era que essa aplicação também fosse implementada na indústria militar.
A marinha alemã criou, em 1913, a Divisão Naval de Dirigíveis, de
forma que, com o advento da Primeira Grande Guerra em 1914, os
dirigíveis alemães mostraram sua força no bombardeio a Londres, em
9 de agosto de 1915, ao viabilizar o transporte de grande quantidade de
bombas a longas distâncias. As dimensões dos dirigíveis, por si só, já

46
Delag é a abreviação, em alemão, de “Deutsche Luftschiffahrt-Aktiengesells‑
chaft”, traduzido livremente para Sociedade Alemã de Transporte Dirigível.

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eram capazes de causar alvoroço no imaginário da sociedade civil, seja


dos alemães, que financiavam o projeto como forma de impor o expan‑
sionismo territorial pretendido, seja dos ingleses, que quando avista‑
vam sua presença nos céus não sabiam como reagir.
Com o rápido avanço tecnológico aeronáutico, os dirigíveis se
mostravam ineficazes para o combate. Lentos e vulneráveis se compa‑
rados aos caças desenvolvidos na segunda metade da guerra,47 ainda de‑
monstravam eficácia na enorme capacidade para transporte de carga e
de passageiros. A era dos grandes dirigíveis encerrou­‑se abruptamente
às vésperas da Segunda Grande Guerra,48 em 6 de maio de 1937, quando
o Zeppelin Hindenburg49 caiu em chamas durante o pouso em Nova
Jersey, nos EUA.50 Ficava evidenciada a ausência de segurança em voar
sob um combustível altamente inflamável, como é o caso do gás hidro‑
gênio, que em contato com o oxigênio da atmosfera fazia com que os
dirigíveis se transformassem em uma espécie de maçarico gigante.
O Brasil, que havia sido uma nação pioneira na navegação aero‑
náutica e tinha até então se preocupado, enquanto Império, na preser‑
vação de patentes com aplicações do gás e na expansão da iluminação
pública, sem que houvesse um tratamento jurídico específico à matéria
enquanto República, começava a se preparar para a então nova realida‑
de internacional.

47
Os próprios alemães rapidamente abandonariam a tecnologia dos dirigíveis para
o emprego de caças. O caso mais exemplar foram os esforços de guerra com caça
do alemão Barão Manfred von Richthofen, apelidado de “Barão Vermelho”.
48
A indústria Zeppelin tinha dificuldades para manter sua tradição de integrar po‑
vos a partir da Alemanha no período entre as Grandes Guerras. Como exemplo,
por pedido expresso de Hitler, os dirigíveis eram obrigados a realizar suas rotas
internacionais com a suástica nazista estampada na traseira.
49
Para muitos, um verdadeiro “Titanic do ar”, dada a suntuosidade do empreendi‑
mento e o trágico fim.
50
Existem teorias que buscam explicar que o acidente, na verdade, foi uma sabota‑
gem. Todavia, o tema foge ao escopo da presente obra, que busca identificar a
importância da matriz energética na sociedade.

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De imediato, houve dois desmembramentos da catástrofe de Nova


Jersey. A primeira consequência foi que, a partir da queda do Hindenburg,
houve rápida substituição tecnológica do emprego do gás na indústria de
transporte, que passava do inflamável hidrogênio para o seguro hélio.
Nesse sentido, o presidente Vargas, no auge do Estado Novo, outorgou o
Decreto­‑Lei n. 366, de 11 de abril de 1938, que incorporava ao Código de
Minas o título “Das jazidas de petróleo e gases naturais”. Era o primeiro
instituto jurídico republicano que conferia um tratamento abstrato e gené‑
rico exclusivo ao gás, que passava a ser codificado junto às demais ques‑
tões minerárias e petrolíferas e não como um objeto de iluminação pública,
como ocorrera por meio da atuação da IGI na década de 1910.
O presente Decreto­‑Lei reforçava a propriedade pública do petró‑
leo e do gás, enunciando que as jazidas pertenceriam aos Estados ou à
União, sob a rubrica de domínio privado imprescritível (art. 97), na
seguinte conformidade: (i) pertenceriam aos Estados as jazidas que se
achassem em terras do seu domínio privado, ou em terras que, tendo
sido do seu domínio privado, foram alienadas com reserva expressa, ou
tácita por força de lei da propriedade mineral; e (ii) pertenceriam à
União todos os demais casos. O gás hélio ganhava um tratamento jurí‑
dico em apartado, expressado no art. 98 a seguir reproduzido.

Art. 98. O hélio ou outros gases raros que se encontrem puros, ou


de mistura com os demais gases naturais, constituem reserva da Nação.
§ 1o Quando durante a pesquiza ou lavra de um depósito, por
entidades particulares, se encontrar hélio ou outros gases raros, puros
ou misturados com hidrocarburetos gazosos, o concessionário será
obrigado a separá­‑los e a entregar os primeiros em sua totalidade ao
Govêrno Federal.
§ 2o O Govêrno Federal pagará ao concessionário o custo da se‑
paração, mediante prévia comprovação do mesmo, e ao Govêrno Esta‑
dual, quando for o caso, a quota de participação atribuida por êste
Código ao proprietário das jazidas de que trata êste Título.
§ 3o No caso de se encontrarem puras o hélio ou outros gazes
raros, o Govêrno Federal adquirirá o poço que os produza, pelo custo,

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com o acréscimo de quinze por cento (15%); e terá o direito do instalar


por sua conta, dentro dos terrenos concedidos, todo o aparelhamento
necessário ao tratamento dos gazes, sob a condição de não perturbar os
trabalhos do concessionário.

O segundo desmembramento foi a intensificação do uso do gás


nas indústrias e no varejo. A Light, então no auge de sua relevância
para o desenvolvimento da infraestrutura brasileira, anunciava em
1930, em revista própria, as vantagens que o gás trazia ao processo
produtivo. Era a senha necessária para o desenvolvimento dessa matriz
na nascente indústria metalúrgica e siderúrgica nacional.

O gás oferece vantagens excepcionais. A completa supressão do


estoque para manutenção do combustível, traz como resultado econo‑
mia de espaço e de mão de obra. A facilidade de manobra dos apare‑
lhos empregados, da possibilidade de realizar à vontade uma atmosfera
redutora ou oxidante para tratamento de diversos dos metais sensíveis
à ação dos produtos de combustão. Temos, assim, segurança completa
para um bom funcionamento dos aparelhos de aquecimento que po‑
dem trabalhar em condições de rendimento ótimo com supressão qua‑
se total de perdas de fabricação, e tendo como consequência uma
diminuição apreciável no preço de custo, principalmente na pequena e
média metalurgia.51

Com o deliberado interesse em criar um parque siderúrgico no


Brasil, fato que culminou na criação da Companhia Siderúrgica Nacio‑
nal em 9 de abril de 1941, o presidente Vargas, que já havia criado mer‑
cado compulsório ao carvão brasileiro,52 firmou o Decreto n. 4.880, de
14 de novembro de 1939, de forma a incentivar a produção de carvão
nacional destinado à fabricação de gás. A norma atendia a experimen‑

51
LIGHT. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro Tramway, Light & Power Co. LTD.,
1928-1929. Mensal.
52
Decreto n. 20.089, de 9 de junho de 1931, fixava em 10% o emprego de carvão
nacional.

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tação procedida pelos orgãos técnicos do Governo, que verificou não


ser possível obter um gás convenientemente depurado sem misturar o
carvão nacional ao estrangeiro.53
A história do carvão nacional, por mais que tenha relevância na
região de lavra nos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
assumiu ao longo do tempo papel marginal na matriz energética brasi‑
leira.54 Podemos apontar como as principais causas dessa característica:
(i) a existência de fartas florestas que serviam de combustíveis aos cen‑
tros urbanos, sendo de fácil exploração, fato que desestimulava a pros‑
pecção do carvão; (ii) a ausência de legislação ambiental, até a
promulgação do Código Florestal de 1934, que desestimulasse a preda‑
tória extração vegetal; (iii) as quedas d’água abundantes, que possibili‑
tavam a exploração hídrica como fonte energética eficiente; (iv) as
dúvidas sobre a real qualidade de coqueificação do carvão catarinense,
demonstrado tecnicamente apenas em 1920, mas sem escala de produ‑
ção suficiente para justificar um amplo programa focado no carvão; e
(v) as dificuldades logísticas de exploração e de transporte do carvão
para as demais regiões do Brasil.
Quando o carvão poderia ter assumido um papel mais ativo na
matriz energética brasileira, para a produção de gás, em 1936 o país
entrava no período da liquefação do petróleo.55 Com a queda do
Hindenburg no ano seguinte, fato que proporcionou imediata que­da
do preço do gás, houve uma imediata alocação dos excedentes da produ‑
ção de gás no varejo. Era o início da indústria de Gás Liquefeito de
Petróleo – GLP, que ficou historicamente conhecida como “gás de

53
Posteriormente, o Decreto n. 29.084, de 4 de janeiro de 1951, criou subsídio
direto por tonelada de carvão, de modo a não onerar demasiado o custo do aço
da CSN.
54
Para mais informações, ver item 2.7.
55
Importante destacar que foi constituída em 1920, no Rio de Janeiro, a primeira
empresa importadora de produtos como fogões e aquecedores para uso com gás
encanado.

171

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cozinha”, devido a sua principal aplicação como cocção de alimen‑


tos, estimada atualmente em mais de 90% da demanda brasileira.
A inserção do GLP no Brasil iniciou­‑se, em escala industrial, para
atendimento dos estabelecimentos localizados no Recôncavo Baiano,
decorrente da proximidade às jazidas de Sergipe e Alagoas. No que
tange ao varejo,56 o GLP produziu uma enorme mudança cultural nas
grandes cidades. Havia uma intensa campanha publicitária para de‑
monstrar que o fogão a gás era um símbolo de modernidade e, confor‑
me propalado à época, de independência da mulher enquanto dona de
casa. Para Magnani e Segawa,57

A caricatura de J. Carlos, abaixo, publicada em outubro de 1932


na revista Light, expressava a nova condição da dona­‑de­‑casa superan‑
do o arcaísmo da sujeira trazida pelo carvão e pela lenha, diante da
limpeza proporcionada pelo gás no espaço da cozinha.
Na página ao lado, as três propagandas [...] exortavam um novo
papel para a mulher em relação a um espaço serviçal. Em um dos recla‑
mes, a cozinha deixava a condição de dependência aviltada para ganhar
a categoria de um lugar de prestígio. Tentava­‑se atenuar o cozinhar
como atividade indigna para uma dona­‑de­‑casa – tarefa para criados,
serviçais. Na terceira década do século 20, os apelos publicitários re‑
corriam a um possível novo status que o fogão a gás proporcionaria a
um espaço doméstico, qualificando a culinária como uma tarefa re‑
quintada, enobrecendo um ambiente da casa.

Com a realocação do excedente de gás para as cozinhas brasilei‑


ras, concomitante à vigorosa mudança de costumes, cabia ao governo
preservar as residências do mesmo fim trágico que o Zeppelin havia
experimentado. Todavia, a iniciativa privada havia se antecipado a este
movimento ao realizar em 1937 a 1a Reunião de Laboratórios de En‑

56
A forma de comercialização mais comum é a de engarrafamento em botijões de
13 kg de gás.
57
MAGNANI, Luís Antonio; SEGAWA, Hugo. Complexo do gasômetro: a ener‑
gia de São Paulo. São Paulo: Via das Artes, 2007. p. 63.

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Curso de Direito da Energia

saios de Materiais, com o objetivo de aprimorar pesquisas e consolidar


novas tecnologias. Esse movimento desencadeou a criação, em 1940,
da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, entidade priva‑
da, sem fins lucrativos e de utilidade pública. Importante destacar que,
por força do Decreto­‑Lei n. 7.103, de 30 de novembro de 1944, nos
termos do art. 5o, as normas, especificações e métodos de ensaio, apro‑
vados pela ABNT, passavam a ser adotados nos serviços públicos civis
da União, a juízo do Departamento Administrativo do Serviço Público
– Dasp, que, para este fim, publicaria portarias.
Assim, a década de 1940, com o início das normatizações nacionais,
fez com que o Brasil produzisse os primeiros fogões a gás encanado, que
até então eram importados, com especificações técnicas próprias. As tu‑
bulações de gás começaram a ser implementadas nos bairros centrais do
Rio de Janeiro e de São Paulo. Para as populações de outras localidades,
o método energético a ser utilizado ainda era a lenha, o carvão ou o que‑
rosene. A definitiva regulamentação dessa atividade somente ocorreu
por força do Decreto­‑Lei n. 8.482, de 28 de dezembro de 1945, que dis‑
pôs sobre a reorganização da Inspetoria Geral de Iluminação – IGI,58
que passou a denominar­‑se Departamento Nacional de Iluminação e
Gás – DNIG e ter a finalidade de promover, orientar e instruir todas as
questões relativas a iluminação, pública e particular, produção e distri‑
buição do gás combustível. O regulamento foi publicado no mesmo dia,
por força do Decreto n. 20.283, que criava a Divisão de Gás do DNIG
com duas seções: (i) Seção de Aferição de Medidores – SAM, com a
competência de Proceder à aferição e selagem dos medidores de gás
combustível a serem colocados nas residências dos consumidores; e (ii)
Seção de Instalações Particulares – SIP, com poderes de:

a) Fiscalizar a execução dos contratos relativos aos serviços de


produção e distribuição do gás no Distrito Federal.

58
Vide item 2.4.

173

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

b) Estudar e projetar, em colaboração com as repartições públicas


federais, estaduais ou municipais, tôdas as questões relativas a instala‑
ções domiciliares e industriais de gás combustível.
c) Examinar instalações, aparelhos e material de utilização do gás,
cuja solução, ficará dependendo de sua aprovação, mediante certifica‑
dos que serão conferidos depois de pagas as taxas estabelecidas.
d) Fazer cumprir os códigos e regulamentos aprovados para os
diferentes serviços de instalações e ligações às redes de canalização.
e) Estudar as tarifas e orçamentos relativos aos serviços contra­
tuais de gás, emitindo parecer para julgamento do Diretor Geral.
f) Fixar trimestralmente o preço do metro cúbico de gás combus‑
tível fornecido aos consumidores do Distrito Federal, emitindo pare‑
cer para julgamento do Diretor Geral.
g) Proceder a vistoria no caso de denúncia de fraude contra qual‑
quer consumidor, ou queixa dêste contra a emprêsa contratante dos
serviços de gás no Distrito Federal.
h) Manter um serviço de estatística relativo às questões do consu‑
mo do gás combustível, não só no Distrito Federal, como em todo o
território nacional, destinado à orientação do Departamento e do pú‑
blico em geral.
i) Organizar e manter um museu com finalidade educativa para
orientação do público, relativamente às aplicações domiciliares do gás
combustível.
j) Organizar instruções para vulgarização dos melhores preceitos
práticos de utilizar o gás com economia e segurança.
k) Aplicar multas em casos de transgressões das disposições con‑
tratuais ou regulamentares e expedir guias para cobrança de taxas esta‑
belecidas para aferição e exame de materiais, aparelhos e instalações.

Essa legislação foi outorgada em momento de eclosão da Segunda


Grande Guerra, que impôs ao país enormes desafios no contingencia‑
mento energético, conforme veremos adiante.

3.5 O racionamento de 1941: a experiência do gasogênio


A Segunda Grande Guerra (1939­‑1945) repercutiu na economia
brasileira, sobretudo no setor de energia e no de transportes, forte‑

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mente dependentes da importação de combustíveis fósseis e de seus


derivados. Havia uma busca permanente por encontrar um substituto
para os hidrocarbonetos, seja por razões financeiras, pois a importa‑
ção crescente de combustíveis tornava a balança comercial altamente
desfavorável ao Brasil, seja por segurança nacional, uma vez que, com
a guerra ocorrendo na Europa, a importação de combustíveis havia
ficado comprometida.
Nesse contexto, o governo Vargas instituiu, por força do Decreto­
‑Lei n. 468, de 4 de junho de 1938, concurso de veículos movidos a
gasogênio, ou “gás pobre”, como era conhecido. O governo instituía
legalmente uma forma de contornar a escassez energética, de forma a
despertar a criatividade da população para fabricar tanques de combus‑
tíveis veiculares capazes de queimar carvão ou lenha, sendo esta corta‑
da em pedaços de 50 cm de comprimento, condensada em um tanque
coberto com grossa camada de terra ou de barro úmido. Inevitável re‑
memorar que o Brasil, a contragosto, persistia em um modelo econô‑
mico e social que foi designado como “civilização da lenha”, tão
marcante no Período Monárquico e na República Velha, que o presi‑
dente Vargas havia tentado equacionar com as restrições impostas ao
corte da lenha por força do Código Florestal.
As justificativas para a organização do certame davam a dimensão
exata dos impactos da guerra na economia nacional. O Governo neces‑
sitava expandir as forças de produção agrícola, para o aumento das ex‑
portações, de forma a viabilizar o transporte das safras com o menor
custo possível. Logo, o Ministério da Agricultura selecionaria proposta
que atendesse aos critérios de: (i) menor custo de veículo a gasogênio
por tonelada de carga útil transportada; (ii) menor necessidade de calo‑
rias (gasto de carvão ou lenha) no percurso total; (iii) menor tempo
gasto no percurso total; (iv) necessidade de limpeza do filtro em maior
percurso; (v) necessidade de limpeza do gasogênio de maior percurso;
(vi) melhor estado do motor no fim do percurso e melhor regularidade
de funcionamento; (vii) maior velocidade média do veículo no percurso

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de Belo Horizonte ao Rio de Janeiro; (viii) melhor estado do óleo e


menor gasto; (ix) menor peso do veículo por tonelada de carga útil; e (x)
menor tempo gasto para acender o gasogênio e início da marcha. Para
tanto, abriu­‑se crédito especial para custear estudos de adaptação de
motores à combustão ao sistema de gasogênio.59
O presidente Vargas criou a Comissão Nacional do Gasogênio –
CNG, no âmbito do Ministério da Agricultura, por força do Decreto­
‑Lei n. 1.125, de 28 de fevereiro de 1939. Dentre suas atribuições estava
a de: (i) promover o uso do gasogênio nos tratores agrícolas, cami‑
nhões e instalações fixas; (ii) incrementar a fabricação de gasogênios no
Brasil; (iii) incentivar o replantio das florestas; (iv) fomentar a produ‑
ção e distribuição do combustível apropriado ao gasogênio; (v) pro‑
mover o uso dos métodos mais econômicos de produção de carvão de
madeira com o aproveitamento dos subprodutos; e (vi) fazer a propa‑
ganda nos meios produtores da utilidade da construção de estradas ou
caminhos com rampa homogênea, para permitir o tráfego fácil do veí‑
culo automotor a gasogênio.
O mesmo decreto que criou o CNG teve a preocupação de propi‑
ciar treinamento para aplicação dessa tecnologia, formas de registro de
veículos, e obrigou proprietários com mais de dez veículos a ter um
movido a gasogênio. Transcrevem­‑se, a seguir, as justificativas dispos‑
tas no mencionado instrumento normativo.

Considerando que os combustiveis, como fontes principais da


energia utilizada na circulação dos valores, possuem, na economia dos
povos, um valor inestimavel;
Considerando que os países que importam tais produtos tem o
dever, quer sob o ponto de vista econômico, quer sob o ponto de vis‑
ta militar, de cuidar com todo empenho da produção e desenvolvi‑

59
Decreto-Lei n. 879, de 23 de novembro de 1938, que tornou sem aplicação a
importância de 20:000$000, na verba que especificou, do Ministério da Agricul‑
tura e abriu o crédito especial de igual quantia para estudos de adaptação de
motores a explosão ao sistema de gasogênio.

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Curso de Direito da Energia

mento dos mesmos, quando possivel, ou de utilizar toda e qualquer


fonte energética que possa substituir os combutiveis universalmente
conhecidos;
Considerando que, dada a grande extensão territorial do Brasil,
com uma rede de comunicações internas ainda rudimentar e, portanto,
de transportes carissimos, aparece como sendo de interêsse primordial
a utilização, in loco, de qualquer sucedâneo dos óleos combustiveis;
Considerando que o carvão de lenha, encontrado em qualquer
ponto do território nacional, constitue um combustivel ideal nas con‑
dições indicadas;
Considerando, finalmente, que qualquer processo que possa
utilizá­‑lo no fornecimento de energia deve ser estudado pelos poderes
públicos, com o máximo cuidado e boa vontade.

Duas empresas, a Gasogênio Ferta Ltda., do Rio de Janeiro, e a


A. Bittencourt e Cia., estabelecida no Estado do Paraná, mereceram des‑
taque pela premiação recebida, nos termos do Decreto­‑Lei n. 2.403, de 12
de julho de 1940. A primeira recebeu o prêmio de 20:000$0 (vinte contos
de réis) pelo pioneirismo na fabricação de aparelhos gasógenos a lenha
no Brasil, sendo que a paranaense foi premiada pela vanguarda na fabri‑
cação de equipamentos de gasogênio movidos a carvão. Em 1941, a cida‑
de de São Paulo começou a ter ônibus movidos a gasogênio e o país
passava a enfrentar racionamento de combustíveis líquidos minerais.60

60
Decreto-lei n. 3.534, de 21 de agosto de 1941
Abre, pelo Conselho Nacional de Petróleo, o crédito especial de 300:000$0 para
atender às medidas de emergência com o racionamento de combustíveis líquidos
minerais
O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da
Constituição,
Decreta:
Artigo único. Fica aberto, pelo Conselho Nacional do Petróleo, o crédito espe‑
cial de 300:000$0 (trezentos contos de réis), para atender às despesas (Serviços e
Encargos) com a execução e fiscalização das medidas de emergência, que se tor‑
naram necessárias para o racionamento de combustíveis líquidos minerais.
Parágrafo único. O crédito de que trata este artigo será distribuído ao Tesouro

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Em 1942, auge da Segunda Grande Guerra, e consequentemente da


escassez de hidrocarbonetos no mercado, destacam­‑se cinco importan‑
tes regulações jurídicas sobre a matéria, que ocorreram no período em
que o presidente Vargas reconheceu a situação de beligerância do Brasil
perante a Alemanha e a Itália, que foram consideradas nações agressoras
nos termos da Declaração do Estado de Guerra de 31 de agosto de 1942:
(i) o Decreto­‑Lei n. 4.272, de 17 de abril, que estabeleceu o raciona‑
mento de venda de automóveis e caminhões;
(ii) o Decreto­‑Lei n. 4.292, de 7 de maio de 1942, que delegou
competência ao Conselho Nacional do Petróleo para tomar as
providências destinadas a assegurar, em todo o território na‑
cional, o abastecimento e o racionamento do consumo do pe‑
tróleo e seus derivados;
(iii) o Decreto­‑Lei n. 4.499, de 20 de julho de 1942, que dispôs
sobre matérias­‑primas necessárias à fabricação de gasogênios;
(iv) o Decreto­‑Lei n. 4.521, de 24 de julho de 1942, que reorgani‑
zou a Comissão Nacional do Gasogênio, estabeleceu compe‑
tências ao órgão, e definiu sua composição; e
(v) o Decreto n. 10.563, de 2 de outubro de 1942,61 que regula‑
mentou o racionamento de energia elétrica, que poderia ser
procedido de forma preventiva ou corretiva.62

Nacional e entregue, por adiantamento, ao presidente do Conselho Nacional do


Petróleo, de conformidade com o art. 1o do Decreto-Lei n. 1.143, de 9 de março
de 1939.
Rio de Janeiro, 21 de agosto de 1941, 120o da Independência e 53o da República.
GETÚLIO VARGAS.
A. de Souza Costa
61
A competência estava instituída ao Presidente da República por força do artigo
74, alínea a, da Constituição e nos termos do art. 2o do Decreto-Lei n. 4.295, de
13 de maio de 1942.
62
Para mais informações, ver capítulo sobre o racionamento de energia elétrica
de 2001.

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Por sua vez, o Decreto n. 13.333, de 3 de setembro de 1943,63 apro‑


vou o Regimento da CNG com dez membros, compostos nos seguin‑
tes termos: (i) Ministério da Guerra; (ii) Instituto Nacional de
Tecnologia; (iii) Departamento Nacional de Estradas e Rodagem; (iv)
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas; (v) Escola Nacional
de Agronomia; (vi) Serviço Florestal Federal; (vii) Sociedade Nacio‑
nal da Agricultura; (viii) Automóvel Clube do Brasil; (ix) empresas de
transportes; e (x) fabricantes de gasogênio.
A CNG tinha competências bastante amplas, proporcionais à im‑
portância que adquiria com a escassez de fornecimento observada em
período de guerra. O CNG poderia, dentre outas competências: (i)
promover, incrementar e facilitar o uso do gasogênio nos motores de
explosão, tratores agrícolas, veículos automóveis e instalações fixas e
semifixas; (ii) incrementar o estudo e fabricação de gasogênios no Bra‑
sil; (iii) incentivar o plantio de essências florestais mais convenientes ao
preparo de lenha e carvão apropriados à produção do gasogênio; (iv)
fomentar a produção, distribuição e o consumo econômicos de com‑
bustível apropriado ao gasogênio; (v) promover a formação de pessoal
técnico competente no manejo de motores a gasogênio; (vi) manter em
dia estatística referente à importação, fabricação e emprego do gasogê‑
nio no país; (vii) fiscalizar a execução do Decreto­‑Lei n. 4.521, de 1942;
e (ix) certificar e aprovar os tipos de gasogênio, acessórios e aparelhos
de carbonização.
Com o arrefecimento da Segunda Grande Guerra, principalmente
após o desembarque das tropas aliadas na Normandia (Dia D) em 6 de
junho de 1944, o Decreto­‑Lei n. 6.562, de 7 de julho de 1944, revogou
disposição sobre aquisição de aparelhos de gasogênio pelo Ministério
da Agricultura. Era o comércio internacional que ressurgia por força

63
Importante notar que, no mesmo dia, o Decreto-Lei n. 5.796, de 3 de setembro
de 1943, alterara disposições do Decreto-Lei n. 4.521, de 24 de julho de 1942,
referentes à reorganização da Comissão Nacional de Gasogênio.

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do transporte internacional de commodities, principalmente alimentos


e combustíveis.
Na vigência do Estado de Guerra e enquanto perduraram os efei‑
tos dele decorrente, coube à CNG: (i) fixar ou alterar a quantidade
mínima obrigatória dos veículos licenciados em cada região do país a
serem equipados com aparelhos de gasogênio; (ii) estabelecer o prazo
ou os prazos máximos em que essas quantidades deverão ser atingi‑
das; (iii) regular as penalidades que poderão ser aplicadas aos infrato‑
res, podendo estas constar de multas até de Cr$ 10.000,00 da proibição
de transitar, da supressão parcial ou total de cotas de combustíveis lí‑
quidos e até da apreensão dos veículos de propriedade de cada infra‑
tor; e (iv) expedir todos os atos necessários à execução do disposto
neste artigo, tal como dispôs o Decreto­‑Lei n. 7.026, de 7 de novem‑
bro de 1944.
Em 1945, o Decreto­‑Lei n. 8.085, de 12 de outubro, alterou nova‑
mente a competência da CNG, atribuindo à Comissão determinar as
regiões do país em que devia haver obrigatoriedade do uso de veículos
a gasogênio, fixando­‑se as porcentagens respectivas. O fornecimento
energético estava se normalizando e um fato novo começava a ganhar
enorme importância na pauta energética nacional: a 6 de agosto a
bomba atômica “Little Boy” foi lançada sobre Hiroshima pelo B­‑29
“Enola Gay”, fato que causou a morte instantânea de 75 mil pessoas.
Cumulado com o ataque a Nagasaki, três dias depois, pela bomba
“Fat Man”, lançada pelo B­‑29 “Bock’s Car”, o Japão se rendia ao po‑
derio atômico dos Estados Unidos, a Segunda Grande Guerra cessava
e uma corrida pelo domínio do ciclo nuclear se iniciava pelas nações,
inclusive no Brasil.
A Comissão Nacional de Gasogênio foi extinta pelo governo Du‑
tra, por meio da Lei n. 405, de 24 de setembro de 1948. Enquanto isso,
o Congresso Nacional pós­‑Estado Novo se debatia em compreender
quais seriam os melhores métodos para promover o conhecimento nu‑
clear no país.

180

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Da estatização
4
e o desenvolvimento
regional (1946­‑1990)

A Constituição Federal de 1946 pode ser considerada um


momento de inflexão da infraestrutura nacional, haja vista a
sinalização de atuação estatal direta nos setores de capital in‑
tensivo, notadamente o energético. É a primeira Carta que
enuncia expressamente a competência da União para legislar
sobre energia, em especial a elétrica, bem como as riquezas do
subsolo.1 Ao prever competência para legislar sobre energia
elétrica, a Constituição Federal de 1946 emancipou o conceito
de eletricidade do aproveitamento hídrico, de forma a reco‑
nhecer juridicamente a existência tecnológica de outras matri‑
zes pela separação entre energia elétrica e água.
A estatização do setor de energia ocorreu em um período
de grande turbulência política no país. Com o fim do Estado
Novo, ocorrido com a queda de Getúlio Vargas, toma posse o
jurista cearense José Linhares, que exerceu a Presidência por

1
Art 5o Compete à União:
[...]
XV – legislar sobre:
[...]
l) riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia elétrica,
floresta, caça e pesca.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

convocação das Forças Armadas, por ser Presidente do Supremo Tri‑


bunal Federal – STF. Ficou no cargo por quase 100 dias, quando toma
posse o Marechal matogrossense Gaspar Dutra, por intermédio de
eleições diretas, nas quais apoiou sua campanha com base no Plano
SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia). Em que pese ter
grande enfoque na infraestrutura, notadamente a energia, sua gestão
obteve pouca eficácia nesse setor, de forma que sua principal obra foi
ter iniciado a ligação rodoviária entre as cidades do Rio de Janeiro e
São Paulo, que atualmente leva seu nome.
Em dezembro de 1950 foi firmado acordo junto ao governo dos
Estados Unidos denominado Comissão Mista Brasil – Estados Unidos
para o Desenvolvimento Econômico. Em 1951, com o retorno pela via
democrática de Getúlio Vargas ao poder, a Comissão iniciou suas ati‑
vidades. A principal conclusão dos estudos da Comissão, que jamais
chegou a ser formalmente aprovada, foi identificar que a escassez de
eletricidade inviabilizava a industrialização. Os estudos técnicos apon‑
tavam como solução a necessidade de se “criar condições para eliminar
obstáculos ao fluxo de investimentos, públicos e particulares, estran‑
geiros e nacionais, necessários para promover o desenvolvimento
econômico”.2 No que concerne ao setor de energia, três instrumentos
jurídicos podem ser considerados determinantes para moldar o cresci‑
mento econômico que o Brasil tanto ambicionava:
(i) a Lei n. 1.628, de 20 de junho de 1952, que criou o Banco Na‑
cional de Desenvolvimento Econômico – BNDE, e permitiu
ao país contar com uma estrutura formuladora e executora da
política nacional de desenvolvimento econômico, imprescindí‑
vel para possibilitar a industrialização por viabilizar recursos
financeiros em longo prazo em um momento no qual o sistema
financeiro nacional apenas operava com empréstimos em curto

2
BAER, Werner. A industrialização e o desenvolvimento econômico do Brasil. 6.
ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1985. p. 54.

182

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Curso de Direito da Energia

prazo. Logo, equacionava­‑se como o país teria indústria, mas


não como obteria energia para tanto;
(ii) o Decreto n. 30.363, que dispunha sobre o retorno de capital
estrangeiro, limitando­‑o a 8% do total dos lucros de empresas
estrangeiras para o país de origem. Esse instrumento normativo
possibilitou que a base fiscal fosse o grande motor da expansão
que o setor elétrico experimentou nas décadas seguintes, de for‑
ma que a tarifa foi deixada de lado, fato que tornou precária a
situação da iniciativa privada frente a uma intervenção pública
cada vez mais estruturada; e
(iii) a Lei n. 2.004, de 3 de outubro de 1953, que dispôs sobre a Po‑
lítica Nacional do Petróleo, definiu as atribuições do Conselho
Nacional do Petróleo e instituiu a sociedade por ações Petróleo
Brasileiro S.A., doravante denominada Petrobras, empresa pela
qual a União passaria a exercer o monopólio estatal do petróleo
previsto na Lei, abrangendo exploração, produção, refino e
transporte do petróleo no Brasil.
O início da década de 1950 foi um período de grandes discussões
políticas, que de certa forma refletiam o ambiente de Guerra Fria que
se disseminava mundo afora com a polarização entre o bloco democra‑
ta e o bloco comunista. Com o notório, e trágico, desfecho do governo
Vargas em 23 de agosto de 1954, é fundamental pontuar a importância
do setor energético em sua carta­‑testamento, principalmente em seu
segundo parágrafo, fato que denota as dificuldades para se instrumen‑
talizar o modelo setorial fundado nas estatais.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio


e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz­
‑me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e
instaurei um regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao
governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos in‑
ternacionais aliou­‑se à dos grupos nacionais revoltados contra o regi‑
me de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida

183

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desen‑


cadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização
das nossas riquezas através da Petrobras e, mal começa esta a funcio‑
nar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobras foi obstaculada até o
desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.3

Com o falecimento do presidente Vargas, sucede­‑se período de gran‑


de turbulência política. Assume o Vice­‑Presidente, o advogado potiguar
Café Filho, que fica quatorze meses no poder, sendo afastado em 8 de
novembro de 1955. Assume então o presidente da Câmara, o advogado
mineiro Carlos Luz, por apenas três dias, quando queda deposto por um
dispositivo militar que o considerava impedido de exercer o cargo de Pre‑
sidente da República pelo Congresso Nacional. Assume, então, enquanto
Presidente do Senado e nos 80 dias que restavam do mandato de Vargas,
o advogado catarinense Nereu Ramos. Foram quase 30 meses em que não
houve qualquer novação jurídica referente a energia.
Assume em 1956, por eleições diretas, o médico mineiro Juscelino
Kubitschek, que apresenta o Plano de Metas, que se constituía em
30 metas divididas em cinco setores: energia, transportes, alimentos,
indústrias de base e a construção de Brasília. Havia a manifestação de
se crescer “50 anos em 5”. Em 1957, é inaugurada a Rodovia Rio­‑Belo
Horizonte. As companhias automobilísticas Ford e General Motors pas‑
sam a produzir veículos no Brasil, na região metropolitana­de São Paulo,
especificamente no ABC paulista. Assim, se consolidava o eixo Rio-São
Paulo-Belo Horizonte como o berço da industrialização brasileira.
E essa região precisava de energia, que mesmo antes da implemen‑
tação do parque industrial já demonstrava situação de crise energética.
O Decreto n. 41.066, de 28 de fevereiro de 1957, veio para sanar essa
necessidade, ao criar a Central Elétrica de Furnas, com o objetivo de
construir e operar no rio Grande (divisa entre São Paulo e Minas Ge‑

3
Carta-testamento de Getúlio Vargas, 2o parágrafo. Disponível em: http://cpdoc.
fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/artigos/AlemDaVida/CartaTestamento.
Acesso em: 05 set. 2011.

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rais, ao norte do Estado de São Paulo) um conjunto de usinas, sendo a


primeira a Usina Hidrelétrica de Furnas, com capacidade de 1.216 MW
– a primeira considerada de grande porte no país, que começou a fun‑
cionar efetivamente em 1963, em Passos (MG).
Em 1959, foi inaugurada a primeira fábrica automobilística da
Volkswagen, em São Bernardo do Campo, a primeira instalada fora da Ale‑
manha. Foi o grande marco do modelo nacional­‑desenvolvimentista, em
oposição ao nacionalista, contrário ao capital externo. No mesmo ano, o
presidente Kubitschek cria a Superintendência para o Desenvolvimento
do Nordeste – Sudene, e inaugura em 1960 a nova capital do país, Brasí‑
lia. A principal consequência de tamanho esforço de desenvolvimento
foi a inflação, que dobrou para 40% ao ano durante o mandato.
No tocante à área de energia, a Lei n. 3.782, de 22 de julho de 1960,
criou o Ministério de Minas e Energia – MME, com competência para
estudar e despachar todos os assuntos relativos à produção mineral e
energia. Tais funções eram anteriormente de competência do Ministé‑
rio da Agricultura. Foram incorporados ao MME os seguintes órgãos
e repartições da Administração Federal: (i) Departamento Nacional da
Produção Mineral; (ii) Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica;
(iii) Conselho Nacional de Minas e Metalurgia; (iv) Conselho Nacio‑
nal de Petróleo; e (v) Comissão de Exportação de Materiais Estratégi‑
cos. Por sua vez, foram incluídas na jurisdição do Ministério das Minas
e Energia as seguintes entidades: (i) Companhia Vale do Rio Doce S.A.;
(ii) Companhia Hidrelétrica do São Francisco – Chesf; (iii) Petrobras;
(iv) Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN; e (v) Comissão
Executiva do Plano do Carvão Nacional.
Em 1961, na breve passagem do advogado matogrossense Jânio
Quadros na presidência da República, foi publicada a Lei n. 3.890­‑A,
que autorizou a União a constituir sociedade por ações denominada
Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras, com o objetivo de rea‑
lizar estudos, projetos, construção e operação de usinas produtoras e
linhas de transmissão e distribuição de energia elétrica. Em 25 de agos‑

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to daquele ano, Jânio Quadros submeteu sua renúncia ao mandato pre‑


sidencial, que foi prontamente aceita pelo Congresso Nacional. O
advogado gaúcho João Goulart, então Vice­‑Presidente, não assumiu,
pois estava em viagem à República Popular da China. O Presidente da
Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu o poder, como
substituto legal, no dia subsequente à renúncia. Iniciava outro período
de instabilidade institucional no Brasil.
Em 8 de setembro de 1961, por meio de sessão conjunta do Congres‑
so Nacional, Goulart toma efetivamente posse na Presidência da Repú‑
blica. Sua principal meta econômica foi o Plano Trienal, proposto pelo
então Ministro do Planejamento Celso Furtado, que objetivava conter a
disparada inflacionária e o desequilíbrio crescente na balança comercial.
Como parte desta iniciativa, a Lei n. 4.156, de 28 de novembro de 1962,
reforçava o nível de intervenção do Estado no sistema econômico nacio‑
nal. Mais do que criar um imposto ou fixar novos encargos, a norma
produziu um empréstimo compulsório sobre o consumo de energia elé‑
trica, de forma a financiar a expansão do sistema. Como contrapartida, o
consumidor receberia obrigações da Eletrobrás, resgatáveis em dez anos,
com juros de 12% ao ano, tendo como garantia de pagamento a respon‑
sabilidade solidária da União, conforme o art. 4o a seguir descrito.

Art. 4o Durante 5 (cinco) exercícios a partir de 1964, o consumi‑


dor de energia elétrica tomará obrigações da ELETROBRÁS, resgatá‑
veis em 10 (dez) anos, a juros de 12% (doze por cento) ao ano,
correspondente a 15% (quinze por cento) no primeiro exercício e 20%
(vinte por cento) nos demais, sôbre o valor de suas contas.
§ 1o O distribuidor de energia fará cobrar ao consumidor, conjun‑
tamente com as suas contas, o empréstimo de que trata êste artigo e o
recolherá com o impôsto único.
§ 2o O consumidor apresentará as suas contas a ELETROBRÁS
e receberá os títulos correspondentes ao valor das obrigações,
acumulando­‑se as frações até totalizarem o valor de um título.
§ 3o É assegurada a responsabilidade solidária da União, em qual‑
quer hipótese, pelo valor nominal dos títulos de que trata êste artigo.

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Curso de Direito da Energia

O plano não logrou o êxito esperado e seu planejamento, que se


baseava no aumento dos impostos e tarifas, teve reflexo no setor ener‑
gético, sentida principalmente pelos consumidores no preço da gasoli‑
na e da energia elétrica. O nível de endividamento da União acompanhou
o governo Goulart até 31 de março de 1964, quando o movimento mi‑
litar depôs o presidente, que forçosamente deixou o país de imediato.
No dia 2 de abril de 1964, o Congresso Nacional declarou a vacância
da Presidência da República.
Assumiu, então, o marechal cearense Castello Branco, eleito de
forma indireta. A Emenda Constitucional n. 9, de 22 de julho de 1964,
prorrogou os mandatos do Presidente e do Vice­‑Presidente até 15 de
março de 1967. No plano econômico, acentuou­‑se a internacionaliza‑
ção da economia para a entrada de capitais estrangeiros no país para
construção de obras rodoviárias, liberação e financiamento governa‑
mental de facilidades tributárias para fabricantes de equipamentos e
insumos rodoviários. Por outro lado, o Estado centralizava o controle
e a distribuição dos ativos financeiros, por meio da intervenção direta
no mercado de capitais.4

[...] um dos exemplos mais representativos dessa política o início


da emissão dos títulos da dívida pública denominados Obrigações Rea‑
justáveis do Tesouro Nacional (ORTN).
A reorganização do sistema financeiro incluiu a Reforma Bancá‑
ria, em 1964, a Lei do Mercado de Capitais, em 1965, e a obrigatorie‑
dade da reavaliação dos ativos das empresas. O conjunto de medidas
estimulou o crescimento do setor financeiro nacional, que passou a ter
como ponto de partida o próprio Estado, destacando­‑se, nesse sentido,
a criação de mecanismos de poupança compulsória, como o Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), de 1966.
A retomada dos investimentos foi facilitada com a promoção da
Reforma Tributária, no mesmo ano, com o restabelecimento de um

4
CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. Energia Elé‑
trica no Brasil: breve histórico: 1880 – 2001. Rio de Janeiro. p. 114.

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padrão ostensivo de endividamento externo e com a transformação das


estatais em empresas lucrativas.

Com a criação do Ministério de Minas e Energia, em 1960, o


CNAEE passou a subordinar­‑se àquele órgão até a sua extinção e con‑
sequente absorção das atividades pelo Departamento Nacional de
Águas e Energia Elétrica – DNAEE, por intermédio da Lei n. 4.904,
de 1965.5 De acordo com a disposição do art. 19 da Lei n. 4.904, de
17 de dezembro de 1965, o então DNAE (sem o segundo “E”) foi ins‑
tituído com subordinação direta ao Ministro de Estado e como órgão
incumbido de promover e desenvolver a produção de energia elétrica,
bem como assegurar a execução do Código de Águas e leis posteriores.
O presidente subsequente, o general gaúcho Costa e Silva, tam‑
bém eleito de forma indireta, teve como um dos grandes destaques de
sua gestão a implementação, em 1967, do Projeto Jari, no Amapá. Esse
projeto tinha como objetivo produzir celulose no interior da Amazô‑
nia e ocupar a região, de forma a fortalecer a fronteira norte brasileira
e fomentar atividade econômica perene na região. Foram construídas
duas plataformas flutuantes, a primeira com uma unidade produtora
de celulose, sendo a segunda destinada à produção de energia em
55MW, alimentada a diesel, com opção de consumo de cavacos de ma‑
deira. Em 1969, por motivos de saúde, Costa e Silva se afastou da pre‑
sidência e uma Junta Militar assumiu o Governo, com sua investidura
no cargo prevista em Ato Institucional e não em um Termo de Posse.
Seguindo os princípios da então Reforma Administrativa do Estado
(Decreto­‑Lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967), foi aprovada a estru‑
tura básica do Ministério de Minas e Energia, pelo Decreto n. 63.951,
de 31 de dezembro de 1968.
Em 1969, assumiu a presidência o general gaúcho Emílio Gar‑
rastazu Médici, eleito de forma indireta. Em seu governo, o Brasil

5
Estão correlacionados os Decretos ns. 63.951, de 1968, 73.620, de 1974, 75.468,
de 1975 e Decreto-lei n. 689, de 1969.

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teve um crescimento anual superior a 10% do Produto Interno Bru‑


to – PIB. Em 1970, o presidente Médici convidou os homens sem
terra do Brasil a ocuparem as terras sem homens da Amazônia, dan‑
do início aos projetos rodoviários da Transamazônica, Cuiabá – San‑
tarém (BR­‑163), Manaus – Porto Velho (BR­‑319) e a Perimetral
Norte (que deveria ligar Macapá com Manaus e que não foi termina‑
da). Em 1972, por força da Lei n. 5.792, criou a Telecomunicações
Brasileiras S/A – Telebrás.
A área de energia também contou com fatos relevantes. A Lei
n. 5.655, de 20 de maio de 1971, dispôs sobre a remuneração legal do
investimento dos concessionários de serviços públicos de energia elé‑
trica, conhecida então como Conta de Resultados a Compensar –
CRC. Assim, a remuneração legal do investimento a ser computada no
custo do serviço dos concessionários de serviços públicos de energia
elétrica deveria ficar entre 10% e 12%, a critério do Poder Conceden‑
te. Eventual diferença entre a remuneração resultante da aplicação do
valor percentual aprovado pelo Poder Concedente e a efetivamente ve‑
rificada no resultado do exercício passaria a ser registrada na CRC do
concessionário, para fins de compensação dos excessos e insuficiência
de remuneração. Iniciava­‑se período de remuneração pelo custo do
serviço, no qual não havia margem para lucros e que em última análi‑
se tornou o setor elétrico insolvente no final da década de 1980.
Em 1973 foi firmado em Brasília o Tratado de Itaipu com o Para‑
guai, que foi recepcionado pelo Congresso brasileiro por força da Lei
n. 5.899 do mesmo ano. Esse marco jurídico possibilitou a construção
daquela que era a maior hidrelétrica do mundo no rio Paraná, e previa
a obrigatoriedade de os guaranis venderem o excedente energético ao
Brasil até 2023. Ainda em 1973 houve a crise do petróleo, momento em
que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo – Opep tripli‑
cou o preço do barril em represália aos governos ocidentais que ha‑
viam apoiado Israel contra os árabes na guerra do Yom Kippur. Era a
recessão global que freava o período conhecido como “milagre econô‑

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mico” brasileiro, e, ao mesmo tempo, incentivava cada vez mais o país


a buscar a autossuficiência energética.
Em 1974, tomava posse decorrente de eleição indireta o general
gaúcho Ernesto Geisel. Seu governo, que enfrentava uma recessão eco‑
nômica global por causa da crise do petróleo, ficou caracterizado pelo
Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento. Se o plano de JK visava
à indústria de consumo, o de Geisel objetivava alcançar à indústria de
base, tais como fertilizantes, produtos petroquímicos e à geração de
energia. Mais uma vez, o país passaria por um ciclo de substituição
de importações, dessa vez de maior envergadura e buscando soluções
alternativas ao binômio hidreletricidade­‑petróleo.
Além de inaugurar a ponte Rio­‑Niterói em março de 1974, no ano
seguinte o presidente Geisel, que havia sido presidente da Petrobras
(1969­‑1973) firmou o Tratado Nuclear Brasil­‑Alemanha e criou, por
meio do Decreto n. 76.593, de 1975, o Programa Nacional do Álcool
– Proálcool, visando ao atendimento das necessidades do mercado in‑
terno e externo e da política de combustíveis automotivos, fundada no
incentivo por meio de expansão da oferta do álcool oriundo da cana­
‑de­‑açúcar, da mandioca ou de qualquer outro insumo, bem como a
modernização e ampliação das destilarias existentes e da instalação de
novas unidades produtoras, anexas a usinas ou autônomas, e de unida‑
des armazenadoras. Houve, igualmente, a busca de novas fontes de
energia, criando os contratos de risco com a Petrobras.
Em 1979, o general carioca João Figueiredo tomou posse mediante
eleições indiretas, momento em que prometeu tornar o Brasil uma de‑
mocracia. Concedeu anistia ampla, geral e irrestrita aos políticos cassa‑
dos com base em atos instituicionais e teve enfoque econômico na
agricultura e na habitação. No mesmo ano, iniciou as atividades do
Projeto Grande Carajás, a maior jazida de ferro do mundo, intensiva no
uso de energia, no Estado do Pará. Um empreendimento dessa enverga‑
dura necessitava de um estrutura energética compatível com suas necessi‑
dades de consumo. Assim, em 22 de novembro de 1984 foi inaugurada a
primeira etapa da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, também no Pará.

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A gestão do presidente Figueiredo encerrou­‑se com a eleição indi‑


reta do advogado mineiro Tancredo Neves,6 que não chegou a assumir
por ter adoecido e falecido. Assumiu, então, o advogado e jornalista
maranhense José Sarney, na condição de vice­‑presidente, em 1986. O
Plano Cruzado e a moratória marcaram seu governo, que, com hipe‑
rinflação e descapitalização, muito pouco pôde fazer para a infraestru‑
tura brasileira.
Importante destacar que, sob a ótica epistemológica, Caldas7 en‑
tende que esse período de estatização e desenvolvimento regional
pode ser subdividido em (i) fase da estruturação empresarial (1946­
‑1964), momento em que há uma consolidação da governança setorial;
(ii) fase da expansão (1964­‑1981), período em que há grandes projetos
estruturantes, como é o caso de Itaipu, Tucuruí e Angra; e (iii) a crise
institucional (1981­‑1993), época em que faltou liquidez para a conse‑
cução do modelo estatal. Em que pese a segmentação ter uma lógica
econômica, compreendemos que esse raciocínio não está acompanhado
de novações epistemológicas no regime jurídico. Logo, o presente pe‑
ríodo se caracteriza pelo paralelismo dos regimes jurídicos dicotômicos
da energia elétrica – petróleo, gás e biocombustíveis, pela propriedade
eminentemente estatal e pelo interesse de empregar a energia para a
finalidade de desenvolvimento regional.

4.1 O Sistema Elétrico Nacional: a inserção dos Estados


e a origem dos sistemas interligados
Em 1945, a União passa a atuar diretamente na atividade energé‑
tica por meio de empresas públicas e sociedades de economia mista,

6
A Lei n. 7.465 de 21 de abril de 1986, no art. 1o, determinou que o cidadão Tan‑
credo de Almeida Neves, mineiro, advogado, eleito e não empossado, por moti‑
vo de seu falecimento, figurará na galeria dos que foram ungidos pela Nação
brasileira para a Suprema Magistratura, para todos os efeitos legais.
7
CALDAS, Geraldo Pereira. As concessões de serviço público de energia elétrica.
2. ed. Curitiba: Juruá. 2006. p. 45 e ss.

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regimes jurídicos administrativistas aptos a conferirem à sociedade de


então as soluções necessárias para a expansão do sistema. A criação da
Companhia Hidro­‑Elétrica do Rio São Francisco – Chesf, por força
do Decreto­‑Lei n. 8.031, de 1945, pressupunha desenvolvimento re‑
gional com produção energética. Além de inaugurar a atuação direta
do Estado na geração de eletricidade, passou­‑se a verificar a constru‑
ção de usinas de grande porte e à dissociação entre a geração e a distri‑
buição de energia elétrica. Assim, a expansão do parque elétrico
brasileiro na década de 1950 obedeceria em larga medida ao modelo
implementado na Chesf, ou seja, concentrar a produção em grandes
usinas e suprir de energia os sistemas distribuidores regionais a cargo
dos governos estaduais.8
Havia a ideia de se criar um Código de Eletricidade, substituindo
o Código de Águas, de forma a conferir segurança jurídica aos investi‑
dores privados, com clareza regulatória e política tarifária estável. An‑
drade, da então nascente corrente mineira de Direito da Energia,
enunciou em 1949 seu ceticismo em relação ao arcabouço jurídico pro‑
porcionado pelo Código de Águas:

Depois do Código de Águas, foram promulgadas, sobre eletrici‑


dade, várias leis, que o autor reproduz, no fim do livro; uma delas, o
decreto­‑lei n. 5.764, de 1943, substituiu todos os poderes concedentes
do país pela União, e transferiu­‑lhe a fiscalização dos contratos, que
ela não cuidou de exercer; daí um paradoxo que, provavelmente, só
ocorre no Brasil, isto é, a legislação sobre eletricidade deu, precisa‑
mente, o contrário do resultado querido, colocando as empresas intei‑
ramente à vontade, num regime paradisíaco, de revisão prevista que
não se faz e de contrato que não se cumpre porque tem que ser revisto
e não é fiscalizado.9

8
PANORAMA do Setor de Energia Elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988. p. 69.
9
ANDRADE, Odilon. In: ESPÍRITO SANTO, Humberto da Silveira. Regime
fiscal e administrativo da eletricidade. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1949. p. 22.

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Em 1956, Gama e Silva10 manifestara o entendimento de que o Códi‑


go de Águas era inconstitucional por ter sido assinado alguns dias antes
da promulgação da carta constitucional de 1934. Para Gama e Silva, então
professor catedrático da Faculdade de Direito da USP, o presidente Var‑
gas não tinha naquela data as prerrogativas exorbitantes para decretar o
Código, portanto este era ilegítimo, apesar da decisão de sua constitucio‑
nalidade, proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 1938. Gama e Sil‑
va pleiteava a proteção dos investimentos da inflação e da variação
cambial, a garantia da justa e adequada remuneração do capital, que as
revisões tarifárias ocorressem em atenção ao princípio da razoabilidade e
da semelhança, a celeridade nas decisões dos processos administrativos
submetidos à Divisão de Águas, a promoção de ambiente propício para
os investimentos privados, bem como o questionamento da limitação dos
lucros em 10% da receita, além de propagar a necessidade imediata de
nova lei para substituir o Código de Águas. Uma cautelosa análise do
pronunciamento de Gama e Silva, com a segurança que a distância tem‑
poral confere, em muito pouco difere dos atuais questionamentos da ini‑
ciativa privada perante as atuais decisões governamentais.
Independentemente da real relevância do sistema adotado pelo
Código de Águas, fato é que, após diversas tentativas malogradas de
desenvolver o setor elétrico nacional na década de 1950,11 fruto de uma
necessidade de aporte de capitais em um momento em que a iniciativa
privada pós­‑guerra não o detinha, houve um deslocamento do eixo
econômico do setor, da tarifa para o imposto (Imposto Único para a
Energia Elétrica – Iuee), com raiz constitucional no inciso III do

10
GAMA E SILVA, Luiz Antonio. Causas fundamentais da crise – problema da
legislação – Estudo do Código de Águas e suas consequências sobre a aplicação de
capitais particulares e desestímulo à iniciativa privada – Modificações necessárias.
Apresentação exposta na II Sessão da Semana de 1956 realizada em 10 de abril.
INSTITUTO DE ENGENHARIA, Trabalhos publicados na Semana de Deba-
tes de energia Elétrica. São Paulo: Instituto de Engenharia, 1956.
11
Por exemplo, as Missões Cooke, Plano Salte e Comissão Mista Brasil – Estados
Unidos (CMBEU).

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art. 15.12 Logo, o Iuee foi instituído por meio da Lei n. 2.308, de 31
de agosto de 1954, que também criou o Fundo Federal de Eletrificação
– FFE e alterou a legislação do imposto de consumo.
Tão relevante quanto a arrecadação setorial foi a promulgação do
Decreto n. 41.019, de 26 de fevereiro de 1957, que regulamentou os
serviços de energia elétrica. Ainda vigente, esse instrumento
democrático,13 raro em um setor então acostumado a ser regido por

12
Art 15. Compete à União decretar impostos sobre:
[...]
III – produção, comércio, distribuição e consumo, e bem assim importação e
exportação de lubrificantes e de combustíveis líquidos ou gasosos de qualquer
origem ou natureza, estendendo-se esse regime, no que for aplicável, aos mine‑
rais do País e à energia elétrica.
13
Interessante notar a construção de seu Preâmbulo, que demonstra o espírito des‑
te instrumento: “O Presidente da República, usando da atribuição que lhe con‑
fere o artigo 87, inciso I, da Constituição, e
Considerando que o Decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934 (Código de
Águas) em seu art. 178, previu a regulamentação dos serviços de energia elétrica
pela Divisão de Águas;
Considerando que várias leis posteriores, que alteraram e complementaram o
Código de Águas, deixaram à regulamentação os detalhes de execução de vários
de seus dispositivos;
Considerando que o Decreto n. 1.699, de 24 de outubro de 1939, incluiu entre as
atribuições do Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (art. 2o, inciso
VI), a de “elaborar e submeter ao Presidente da República a regulamentação do
Código de Águas e das demais leis, que regem ou venham a reger a utilização dos
recursos hidráulicos e da energia elétrica;
Considerando que, no desempenho destas atribuições, o referido Conselho, pela
Exposição de Motivos n. 411, de 1951, submeteu à Presidência da República o
projeto de regulamento dos serviços de energia elétrica que foi publicado, para
receber sugestões, no Diário Oficial de 23 de novembro de 1951;
Considerando que o Conselho, depois de rever e atualizar o referido projeto de
regulamentação, propõe novamente a sua decretação, pela Exposição de Motivos
n. 133, de 29 de janeiro de 1957;
Considerando a necessidade de regulamentar a legislação vigente sobre energia
elétrica, fixando normas precisas que facilitem a ação fiscalizadora da adminis‑
tração, decreta o seguinte.

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Decretos­‑Lei e atos de exceção, possibilitou a tão aguardada regula‑


mentação do Código de Águas, principalmente no tocante à definição
da cadeia produtiva em produção, transmissão e distribuição, aos ins‑
titutos da reversão, encampação e caducidade, aos direitos dos conces‑
sionários, à composição da tarifa, ao custeio da expansão do sistema
elétrico, dentre outros. Havia, então, a previsão do regime jurídico no
qual o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica – CNAEE
exerceria o poder de fiscalização das atividades para as quais havia sido
criado em 1939. Esse Decreto pode ser considerado uma espécie de
“Código da indústria elétrica”, em que pese apenas regulamentar o art.
178 do Código de Águas, pois confere organicidade ao sistema jurídico
do setor elétrico, tais como a separação entre concessão e autorização,
exigências de continuidade, regularidade e eficiência na prestação do
serviço, bem como o conceito de razoabilidade tarifária.
Toda essa complexidade normativa, aliada a reformas estatizantes
iniciadas por Getúlio Vargas, forçavam a coexistência de regimes jurí‑
dicos concebidos em momentos históricos distintos, com previsões
jurídicas que denotavam visões econômicas diversificadas, aliado a
uma disfunção de como o setor energético deveria interagir com a so‑
ciedade. Em muito pouco os avanços do Decreto n. 41.019, de 1957,
que regulamenta o Código de Águas, possibilitou a tão esperada esta‑
bilidade setorial, com um regime jurídico claro e linear.
Por sua vez, os sistemas elétricos estaduais compunham, até o final
dos anos 1950, um grande mosaico, caracterizado pela baixa integração
e, por conseguinte, constante escassez no fornecimento de energia.14 A
federalização de energia elétrica, por força do Código de Águas, ali‑
nhado à subsequente estatização do sistema provocou um forte inves‑
timento setorial entre 1936 e 1950. A capacidade de geração havia
aumentado 107%, mas a demanda havia crescido 185%.

14
Sobre os programas de racionamento de energia elétrica, ver item 5.1.1 (c) “Pro‑
grama de racionamento de energia elétrica de 2001”.

195

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Os sistemas elétricos brasileiros, que nas décadas seguintes inicia‑


riam um contínuo processo de interligação, no sentido de conferir se‑
gurança e confiabilidade ao fornecimento elétrico, possibilitaria a
construção de projetos hidrotérmicos cada vez mais distantes dos cen‑
tros de consumo. Era o início do que conhecemos atualmente como
Sistema Interligado Nacional – SIN, e que tem origem no art. 12 e se‑
guintes da Lei de Itaipu (5.899, de 5 de julho de 1973), que forçou a
interligação da região Sul com a Sudeste, de forma a alocar os exceden‑
tes energéticos de Itaipu no eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Assim,
pode­‑se afirmar que o Brasil contava, no final dos anos 1950, com sete
grandes sistemas elétricos, a saber:15
(i) “Companhias Associadas Light” com 1.488.000 kW, com área
geográfica compreendida pela região metropolitana de São Pau‑
lo, cidade do Rio de Janeiro e parte do Estado do Rio de Janeiro;
(ii) “Empresas Elétricas Brasileiras”, com 310.000 kW, compreen‑
dendo os Estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco, Ala‑
goas, Bahia, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São
Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul;
(iii) “Companhia Hidrelétrica do São Francisco”, com 120.000 kW,
compreendendo Pernambuco e Bahia e com plano de expansão
para Alagoas, Sergipe, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte;
(iv) “Comissão Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do
Sul”, com 50.000 kW, envolvendo parte do Estado do Rio
Grande do Sul;
(v) “Centrais Elétricas de Minas Gerais – Cemig”, com 28.000
kW, envolvendo parte do Estado de Minas Gerais;
(vi) “Grupo Sul­‑Mineiro de Eletricidade”, com 25.000 kW, envol‑
vendo parte do Estado de Minas Gerais; e

15
Informações extraídas de PEIXOTO, João Baptista; PEIXOTO, Walter. Produ-
ção, transporte e energia no Brasil. Biblioteca do Exército, 1957. v. 238-239,
p. 377-378.

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Curso de Direito da Energia

(vii) “Empresa Fluminense de Energia Elétrica”, com 19.000 kW, en‑


volvendo parte do Estado do Rio de Janeiro e parte do Espírito
Santo, na divisa com Minas Gerais.
Mesmo com esse perfil de investimentos, elevados para a época,
o país não conseguia atender plenamente suas potencialidades eco‑
nômicas, uma vez que o desenvolvimento econômico e social depende
da energia elétrica. Na região Sul, o entrave energético atrasava a
produção agrícola no Rio Grande do Sul. Por sua vez, a produção
carbonífera em Santa Catarina não desenvolvia todas as suas poten‑
cialidades, pois o beneficiamento do carvão era efetuado em Tuba‑
rão, com um terço destinado à atividade portuária, um terço
enquanto combustível de locomotivas e caldeiras e um terço para a
produção de energia elétrica, destinada basicamente às cidades lito‑
râneas do Estado. Por fim, o Paraná, que vivia uma explosão demo‑
gráfica no norte do Estado por conta da produção de café e que tinha
todo o potencial de Itaipu por ser implementado, tinha naquele pe‑
ríodo uma produção elétrica total inferior a uma turbina de Cuba‑
tão, em São Paulo.
O Estado de São Paulo tinha o sistema elétrico mais robusto do
país. Com capacidade instalada de 860.000 kW em 1952, com 95% de
base hidráulica, tinha seu aproveitamento dividido em três grandes re‑
giões: (i) a área da Light, de pequena extensão geográfica e alta densi‑
dade demográfica, que abrangia de Santos a Jundiaí, de Sorocaba ao
Vale do Paraíba, e englobava o maior parque industrial da América do
Sul; (ii) a área da Companhia Paulista de Força e Luz, então subsidiária
da Empresas Elétricas Brasileiras, que envolvia 40% da extensão terri‑
torial e importantes centros urbanos, tais como Campinas, Ribeirão
Preto, Bauru e Piracicaba; e (iii) as demais regiões do Estado, com alta
dispersão geográfica e societária, pois estava repartido em 22 compa‑
nhias elétricas locais. Havia como plano a criação de uma nova usina
em Cubatão, que acrescentaria 260.000 kW ao sistema. Esse empreen‑
dimento jamais chegou a ser viabilizado.

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O Estado de Minas Gerais, por sua vez, contemplava uma rara


combinação de recursos minerais, sólidos centros urbanos e produ‑
ção agrícola diversificada. Mas a escassez energética e as deficiências
de transporte dificultavam a exploração de todas essas potencialida‑
des, mesmo contando com empreendimentos de consumo energéti‑
co intensivo, como a Acesita, a Companhia Eletroquímica Brasileira
e a Companhia Siderúrgica Belgo­‑Mineira. Diferente de São Paulo,
que reforçava sua crença no papel da iniciativa privada no setor elé‑
trico, os governantes de Minas Gerais passavam a demonstrar sua
preocupação com o crescimento setorial aquém das necessidades da
economia local. Em 1951, o então governador mineiro Juscelino Ku‑
bitschek enviou mensagem à Assembleia Legislativa de Minas Ge‑
rais, mencionando sua preocupação que culminaria na intervenção
na esfera da indústria de energia, com o objetivo de incrementar de
forma rápida e racional o setor. Para o governador Kubitschek, “o
dever do Govêrno é estimular a iniciativa privada; sempre que esta
fôr insuficiente ou não existente, tem o Govêrno o dever de
suplementá­‑la ou substituí­‑la.”16 Estava dada a fundamentação polí‑
tica para justificar a criação, no ano seguinte, da Centrais Elétricas
de Minas Gerais – Cemig.17
O Distrito Federal18 e o Estado do Rio de Janeiro eram fundados
basicamente no fornecimento hidrelétrico de suas usinas: Fontes, no
complexo de Lages, e Ilha dos Pombos, ambas em trechos distintos do
rio Paraíba do Sul. Havia, igualmente, o desvio do curso dos rios
Paraíba­‑Piraí, que culminou com a hidrelétrica de Nilo Peçanha e ame‑
nizava os constantes racionamentos energéticos na capital, Baixada
Fluminense e noroeste do Estado do Rio de Janeiro.

16
Apud PEIXOTO, João Baptista; PEIXOTO, Walter. Produção, transporte e
energia no Brasil. Biblioteca do Exército, 1957. v. 238-239, p. 399.
17
Atualmente a Cemig tem a denominação de “Companhia Energética de Minas
Gerais S/A”.
18
Destaca-se que nesse período a capital do país era o Rio de Janeiro.

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A região Nordeste, por sua vez, vivia a expectativa da viabilização do


projeto hidrelétrico de Paulo Afonso, no rio São Francisco, a seguir por‑
menorizada em apartado, uma vez que significa uma importante mudança
de paradigma jurídico: o setor de energia elétrica passaria a ser utilizado
para justificar o desenvolvimento de uma dada região: a bacia hidrográfica.

4.2 Criação da Chesf e o modelo de desenvolvimento


regional
A criação da Companhia Hidro­‑Elétrica do Rio São Francisco – Chesf,
por força do Decreto­‑Lei n. 8.031, de 1945, que vinculava o conceito de
desenvolvimento regional com produção energética, aliado à promulgação
da Constituição Federal de 1946, iniciavam um novo período na história
setorial brasileira. Todavia, a famosa queda d’água do rio São Francisco,
posteriormente denominada cachoeira de Paulo Afonso, situada em muni‑
cípio que lhe confere o nome, no Estado da Bahia, já permeava o imaginá‑
rio das sociedades portuguesa e brasileira desde as origens do Brasil.
Existem registros da passagem do navegador Américo Vespúcio,
que conferiu seu nome ao continente, pelo rio São Francisco em 1501.
Em 1576, Pero de Magalhães Gândavo, ao explorar o rio, descrevia suas
virtudes até o encontro deste acidente geográfico.19 Em 1587, Gabriel
Soares de Souza,20 empresário português que procurava riquezas nos
sertões nordestinos em período de União Ibérica, descrevia que era pos‑
sível navegar o rio em caravelas até essa cachoeira, que “é de pedra viva”
e tinha muito pau­‑brasil, que com pouco trabalho se poderia carregar.
Existem outros marcos históricos. Em 1649, a cachoeira foi retrata‑
da pelo pintor holandês Frans Post. D. Pedro II foi a primeira autorida‑
de a visitar o local, em 20 de outubro de 1859, momento este que foi

19
Essa referência encontra-se em GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da
Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Essa obra narra a
conquista e o estabelecimento de Portugal na América, sendo o primeiro livro
publicado por um português inteiramente dedicado ao Brasil.
20
SOARES DE SOUZA, Gabriel. Noticia do Brasil. Domínio público, 1587.

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relatado por Castro Alves.21 O poeta e advogado baiano chegou a escre‑


ver diversos poemas sobre a cachoeira, sendo o mais famoso “A Cachoe­
ira de Paulo Afonso”, parte integrante da obra Os escravos, em 1876.22

A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!


A briga colossal dos elementos!
As garras do Centauro em paroxismo
Raspando os flancos dos parceis sangrentos.
Relutantes na dor do cataclismo
Os braços do gigante suarentos
Aguentando a ranger (espanto! assombro!)
O rio inteiro, que lhe cai no ombro!

21
“Depois de quatorze léguas de viagem, desde a foz do Rio S. Francisco, chega-se
a esta cachoeira, de que se contam tantas grandezas fabulosas.
Para bem descrevê-la, imaginai uma colossal figura de homem sentado com os
joelhos e os braços levantados, e o rio de S. Francisco caindo com toda sua força
sobre as costas. Não podereis ver sem estar trepado em um dos braços, ou em
qualquer parte que lhe fique ao nível ou a cavaleiro sobre a cabeça.
Parece arrebentar de debaixo dos pés, como a formosa cascata de Tivoli junto a
Roma. Um mugir surdo e continuado, como os preparos para um terremoto,
serve de acompanhamento à música estrondosa de variados e diversos sons, pro‑
duzidos pelos choques das águas. Quer elas venham correndo velocíssimas ou
saltando por cima das cristas de montanhas; quer indo em grandes massas de
encontro a elas, e delas retrocedendo: caindo em borbotão nos abismos e deles se
erguendo em úmida poeira, quer torcendo-se nas vascas do desespero, ou levan‑
tando-se em espumantes escarcéus; quer estourando como uma bomba; quer
chegando-se aos vaivéns, e brandamente e com espandanas ou em flocos de es‑
cuma alvíssima como arminhos – é um espetáculo assombroso e admirável.
A altura da grande queda foi calculada em 362 palmos. Há 17 cachoeiras, que são ver‑
dadeiros degraus do alto trono, onde assentou-se o gigante de nome Paulo Afonso.
Muitas grutas apresentam os rochedos deste lugar, sombrias, arejadas, arruadas
de cristalinas areias, banhadas de frígidas linfas.
S.M, o imperador visitou esta cachoeira na manhã de 20 de outubro de 1859. O
presidente, Dr. Manuel Pinto de Souza Dantas, teve a ideia de erigir um monu‑
mento à visita imperial.” (Transcrita do Diário da Bahia).
22
ALVES, Castro. Introdução a Os escravos. In: PEIXOTO, Afrânio (Org.).Obras
completas de Castro Alves. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. v. II, p. 219.

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Teodoro Sampaio, engenheiro geógrafo23 baiano, filho de escrava e


alforriado pela Lei do Ventre Livre, fez parte em 1879 da “Comissão
Hidráulica”, que investigou, dentre outras coisas, o curso superior da
cachoeira do Paulo Afonso até a de Pirapora, em Minas Gerais. Para
Sampaio, “Paulo Afonso vê­‑se, sente­‑se, não se descreve”.24 Já na Re‑
pública Velha, em 1913, Delmiro Gouveia instalou uma pequena usina
com três turbinas. Assassinado em 1917, sua empresa foi comprada por
companhia inglesa que inutilizou as máquinas. Seu pioneirismo até
hoje é exaltado como exemplo do empreendedorismo nordestino.

Na mesma época, o legendário industrial Delmiro Gouveia já so‑


nhava em aproveitar a força das águas da cachoeira de Paulo Afonso,
para construir uma usina hidrelétrica. Com tal objetivo, ele encabeçou a
criação de uma empresa de capital misto, juntamente com um milionário
e um engenheiro norte­‑americanos, e o seu primeiro passo foi comprar
as terras que se localizavam nas margens da cachoeira, do lado alagoano,
e incorporá­‑las ao domínio particular. Em seguida, conseguiu obter vá‑
rios privilégios: o direito de exploração sobre as terras improdutivas em
Água Branca; a concessão para captar o potencial hidrelétrico da cachoei­
ra de Paulo Afonso e produzir eletricidade; e a isenção de impostos para
a sua fábrica de linhas para costura. Entre 1910 e 1911, todas essas con‑
cessões foram transformadas em decretos­‑lei pelo Estado de Alagoas.
Desse modo, o industrial criava a usina de Angiquinho, a primeira hi‑
drelétrica aproveitando a força das águas do chamado “Velho Chico”.25

23
Importante destacar que, no Império, a Geografia era concebida como uma es‑
pecialização da Engenharia.
24
Apud EXÉRCITO. Energia elétrica no Brasil: da primeira lâmpada à Eletrobras.
Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977. p. 43. Teodoro Sampaio atuou poste‑
riormente na Campanha de Canudos pelo Governo Federal. O geógrafo reviu, a
pedido do amigo Euclides da Cunha, todas as descrições geográficas e de paisagem
da obra “Os Sertões”, que surpreende pela riqueza de detalhe. A partir de então foi
inspetor na The São Paulo Tramway Light and Power Company até 1900.
25
VAINSENCHER, Semira Adler. Chesf (Companhia Hidroelétrica do São
Francisco). Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://www.
fundaj.gov.br>. Acesso em: 1o jul. 2010.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Em 1921, durante o governo do presidente Epitácio Pessoa, a Ins‑


petoria Federal dos Portos, Rios e Canais criou a Comissão de Estudos
da Cachoeira de Paulo Afonso e realizou o primeiro levantamento to‑
pográfico da região. Após essa análise, passaram­‑se mais de 20 anos
sem grandes movimentações sobre o tema. Somente em 1944, o minis‑
tro da Agricultura do presidente Vargas, Apolônio Sales, propôs a cria‑
ção de uma companhia hidrelétrica no rio São Francisco. Na semana
anterior ao seu afastamento do governo, e consequente fim do Estado
Novo, Vargas outorgou três decretos­‑lei, que delinearam aquela que
seria Companhia Nacional Hidrelétrica do São Francisco – Chesf.
(i) Decreto­‑Lei n. 8.031, de 3 de outubro de 1945: autoriza a cria‑
ção da Chesf, com sede no Rio de Janeiro;
(ii) Decreto­‑Lei n. 8.032, de 3 de outubro de 1945, que abre crédi‑
to especial, junto ao Ministério da Fazenda, para subscrever as
suas ações ordinárias; e
(iii) Decreto n. 19.706, de 3 de outubro de 1945, que outorga con‑
cessão, de 50 anos, da força hidráulica do rio São Francisco
entre Juazeiro, Estado da Bahia, e Piranhas, Estado de Ala­
goas.26 Importante destacar que o art. 11, parágrafo único,
criava direito de preferência à Chesf para explorar os apro­
veitamentos de energia hidráulica que fossem requeridos na
bacia do rio São Francisco.
O vale do rio São Francisco e o desenvolvimento regional teriam
seus destinos selados pela Constituição Federal de 1946, que no art. 29
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias obrigava a União a
traçar e executar, dentro de 20 anos, um plano de aproveitamento total
das possibilidades econômicas do rio São Francisco e seus afluentes.

26
O art. 2o previa que o aproveitamento da energia elétrica produzida destinava-se
ao fornecimento de energia elétrica, em alta tensão aos concessionários de servi‑
ço púbico na zona compreendida dentro de uma circunferência de quatrocentos
e cinquenta (450 km) de raio, tendo como centro a usina a ser construída para o
aproveitamento inicial.

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Curso de Direito da Energia

Assim, pela Lei n. 541, de 15 de dezembro de 1948, instituiu a Comissão


do Vale do São Francisco – CVSF, de forma a realizar um plano geral de
aproveitamento do vale do aludido rio para: (i) regularização do curso
de seus rios; (ii) melhor distribuição de suas águas; (iii) utilização de seu
potencial hidroelétrico; (iv) fomento da indústria e da agricultura; (v)
desenvolvimento da irrigação; (vi) modernização dos seus transportes;
(vii) incremento da imigração e da colonização; e (viii) assistência à ex‑
ploração de suas riquezas. Assim, o desenvolvimento energético deveria
caminhar em paralelo ao regional, permitindo que esta âncora econômi‑
ca e financeira viabilizasse a diversificação das atividades da sociedade.
O art. 11, por sua vez, criou a possibilidade de a CVSF gerar ener‑
gia elétrica e obrigou a Chesf a coordenar seus projetos com a CVSF.
Com a instabilidade política daquele período, que culminou no afasta‑
mento de Vargas da presidência da República, a primeira assembleia
geral de acionistas se realizou somente em 15 de março de 1948. Era
gritante o cenário de desigualdade econômica e social constante no Bra‑
sil àquela época, refletida na distribuição da carga da energia elétrica.

O engenheiro Alves de Souza, que em 1921 visitara Paulo Afonso


para tentar as primeiras locações, volta, em 1948, já na presidência da
Companhia Hidro Elétrica do São Francisco – CHESF, para a primeira
arrancada no domínio das grandes cachoeiras; e inicia­‑se o trabalho de
equipe que a tornará vitoriosa. Em dezembro de 1952, entretanto, se
feito novo corte na realidade brasileira, aquele desequilíbrio regional já
acentuado continua manifesto. Do total nacional de 1.975.000 kW de
potência instalada, 1.320.900 kW ficam no Rio e em São Paulo e 255.870
em Minas Gerais, elevando­‑se, portanto, o total dessas três unidades
territoriais a 1.576.770. Sobravam, para todo o restante do país, apenas
398.230 kW, por sua vez desproporcionalmente repartidos: 104.000 no
Rio Grande do Sul, 276.780 para o Norte, o Nordeste, o Leste, o
Centro­‑Oeste, e ainda o Paraná e Santa Catarina.27

27
EXÉRCITO. Energia elétrica no Brasil: da primeira lâmpada à Eletrobras. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977. p. 38.

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O primeiro presidente da Chesf, o engenheiro Antônio Alves de


Souza, chegou a escrever a obra Paulo Afonso, na qual pregava energia
elétrica mais barata para os moradores daquela região, que não teriam
que arcar com os custos elevados das linhas de transmissão.28 Com o
regime militar pós­‑1964, foi dado novo tratamento à Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene, pela Lei n. 4.869, de 1o de
dezembro de 1965. Na sequência, o Decreto­‑Lei n. 292, de 28 de feve‑
reiro de 1967, criou a Superintendência do Vale do São Francisco – Su‑
vale, enquanto autarquia ligada ao Ministério da Integração Nacional,
extinguiu a CVSF e distanciou essa estrutura do setor elétrico. Não se
previa mais o aproveitamento energético, mas dos recursos naturais em
sentido amplo e a disciplina do uso das águas do Rio São Francisco e
seus afluentes em específico, devendo observar as diretrizes da Sudene.
As décadas seguintes proporcionaram o realinhamento das ativi‑
dades e a expansão do parque hidrelétrico da Chesf, bem como a res‑
truturação das empresas de fomento regionais. A Lei n. 6.088, de 16 de
julho de 1974, criou a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São
Francisco – Codevasf, sucedendo a Suvale e sob regime jurídico de
empresa pública. Sem guardar mais correlação com sua origem na
CVSF e com o aproveitamento hidrelétrico do rio São Francisco, pas‑
sou a ter suas atividades fundadas nas questões agrícolas, agropecuárias
e agroindustriais. A maior inovação de suas funções, ao longo do tem‑
po, foi a expansão de sua área de atuação. A Lei n. 9.954, de 2000, pos‑
sibilitou à Codevasf atuar no rio Parnaíba, na divisa dos Estados do
Piauí e do Maranhão, e a Lei n. 12.196, de 14 de janeiro de 2010, fez
com que esta agência passasse a atuar também nos vales dos rios Itape‑
curu e Mearim, no Estado do Maranhão.
A Chesf, por sua vez, ficou cada vez mais encarregada de explorar
o potencial hidrelétrico do rio São Francisco. São vastos os estudos que

28
Essa referência encontra-se no Capítulo XII – Paulo Afonso e o Desenvolvi‑
mento do Nordeste.

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demonstram, sob a ótica tecnológica e econômica, a importância da


construção das usinas de Paulo Afonso I, II, III, IV e de Xingó, bem
como dos 18 mil quilômetros de linhas de transmissão.
Sob a premissa de desenvolvimento regional, a sede da Chesf foi
transferida do Rio de Janeiro para Recife em 1974, depois de acirrada
disputa com Salvador. Em 2010, sob o argumento de reorganização
societária e fortalecimento do sistema Eletrobras, o comando da em‑
presa deveria fazer o caminho inverso, voltando a se centralizar no Rio
de Janeiro.

4.3 Ministério de Minas e Energia, estrutura regulatória


e equalização tarifária
O Ministério de Minas e Energia – MME foi criado pela Lei
n. 3.782, de 22 de julho de 1960. Anteriormente, os assuntos de minas
e energia eram de competência do Ministério da Agricultura.29 Pode­‑se
apontar que essa segregação, do ponto de vista histórico­‑institucional,
representa a emancipação do aproveitamento energético da água e da
terra, deixando de ser uma atividade­‑meio para se constituir em um fim
em si. O Decreto n. 57.810, de 14 de fevereiro de 1966, que aprova o re‑
gulamento do Ministério das Minas e Energia, mostra com clareza o
papel de intervenção nas questões minerais e energéticas.

Art. 2o Compete ao Ministério das Minas e Energia:


I – o estudo e a proposição da solução dos problemas minerais e
energéticos;
II – a elaboração, direção, coordenação e contrôle dos programas
do Govêrno nos setores dos recursos minerais e energéticos;
III – o fomento, amparo, orientação e fiscalização da prospec‑
ção e produção de minerais e minérios, de seu beneficiamento e pro‑

29
Em 1990, a Lei n. 8.028 extinguiu o MME e transferiu suas atribuições ao Minis‑
tério da Infraestrutura, criado pela mesma lei, que também passou a ser respon‑
sável pelos setores de transportes e comunicações. O Ministério de Minas e
Energia voltou a ser criado em 1992, por meio da Lei n. 8.422.

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cessamento básico, bem como da produção, transmissão e distribuição


de energia;
IV – o estudo da geologia do território nacional e de seus recursos
minerais e energéticos;
V – o estudo dos cursos dágua, tendo em vista o aproveitamento
da sua energia e, em articulação com outros órgãos da administração, o
seu aproveitamento integral, bem como o estudo e aproveitamento das
águas subterrâneas;
VI – o levantamento, processamento de dados de análise da esta‑
tística relacionada com o estudo e aproveitamento dos recursos hídri‑
cos e minerais;
VII – o fomento, execução, coordenação e divulgação de pesqui‑
sas científicas e tecnológicas relacionadas com o aproveitamento dos
recursos hídricos, minerais e energéticos do País;
VIII – a colaboração na formação e aperfeiçoamento do pessoal
necessário ao fomento da produção mineral e energética;
IX – a aplicação da legislação relativa aos recursos hídricos, mine‑
rais e energéticos, bem como a proposição oportuna de sua atualização.

Eram tempos de grandes mudanças na governança setorial, princi‑


palmente com o advento do regime militar de 1964. O Conselho Na‑
cional de Águas e Energia Elétrica – CNAEE, criado em 1939, foi
extinto pelo Decreto­‑Lei n. 689, de 18 de julho de 1969, momento em
que teve suas funções absorvidas pelo Departamento Nacional de
Águas e Energia – DNAE, que por seu turno foi criado pela Lei n.
4.904, de 17 de dezembro de 1965, e teve seu regimento estabelecido
pelo Decreto n. 58.076, de 24 de março de 1966. Ao DNAE cabia o
estudo do regime dos cursos d’água e o das fontes de energia hidráuli‑
ca, a aplicação, no território nacional, do Código de Águas e leis sub‑
sequentes, bem como a fiscalização das empresas concessionárias dos
serviços de energia elétrica.
Por intermédio do Decreto n. 63.951, de 31 de dezembro de 1968,
o DNAE mudou de nome para Departamento Nacional de Águas e
Energia Elétrica – DNAEE, de forma a completar a reestruturação na

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Curso de Direito da Energia

governança setorial, consolidando competências e recursos humanos


para regulamentar os serviços de águas e energia elétrica em apenas
uma estrutura. Mister destacar que o Regimento Interno do DNAEE
somente foi aprovado quase oito anos após sua criação, por força da
Portaria MME n. 234, de 17 de fevereiro de 1977.
Essa morosidade não foi despropositada. Havia questões de fato
que não podiam esperar e consumiam as preocupações das instâncias
políticas competentes. A década de 1970 foi de grande turbulência para
o setor de energia. Diferentemente da década anterior, marcada pelas
mudanças estruturais e políticas, o fator de instabilidade agora era ma‑
croeconômico. A crise do petróleo ocorrida em 1973, concomitante à
necessidade de equilíbrio da política econômica oficial, fez com que as
estruturas financeiras do Brasil passassem a captar recursos no exterior
para pagar projetos estratégicos, tais como a implementação das hidre‑
létricas de Itaipu e Tucuruí, bem como o programa de energia nuclear.
A partir de 1971, instrumentos legais como a Lei n. 5.655, de 1971,
bem como o Decreto­‑Lei n. 1.383, de 1973, foram adotados com o ob‑
jetivo de gerar, prioritariamente, recursos para os empreendimentos das
concessionárias federais. Foram instituídos encargos, como o caso da
Reserva Global de Reversão – RGR,30 bem como a equalização tarifária,
ou seja, a obtenção de tarifas iguais em todo território nacional. A RGR
foi criada de forma a constituir um fundo para garantir ao poder conce‑
dente os recursos necessários para a hipótese de indenização do conces‑
sionário quando da reversão dos bens e instalações do serviço ao fim do
prazo de concessão. A gestão desse recurso estava a cargo da Eletrobras,

30
A Reserva Global de Reversão – RGR, instituída pela Lei n. 5.655, de 20 de maio
de 1971, foi regulamentada inicialmente pelo Decreto n. 69.721, de 9 de dezem‑
bro de 1971. A RGR sofreu diversas alterações no decorrer de sua longa existên‑
cia, com destaque para os Decretos-lei n. 1.383, de 1974, n. 1.506, de 1976 e n.
1.849, de 1981, sendo que, em função do Decreto-lei n. 1.383, de 1974, o Minis‑
tério de Minas e Energia publicou as Portarias n. 365, de 1975, n. 1.032, de 1977,
n. 355, de 1980 e n. 1.408, de 1986.

207

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

que empregaria essa receita para expandir e melhorar os serviços conce‑


didos de energia elétrica. Por sua vez, a equalização da tarifa foi um
instrumento produzido para contribuir para a descentralização indus‑
trial do país, que pressuporia estancar os fortes fluxos migratórios então
existentes para o eixo Rio­‑São Paulo. Para tanto, foi criada a Conta de
Resultados a Compensar – CRC, nos termos abaixo expostos.

Lei n. 5.655, de 20 de maio de 1971.


Dispõe sôbre a remuneração legal do investimento dos concessio-
nários de serviços públicos de energia elétrica, e dá outras providências.
Art. 1o A remuneração legal do investimento, a ser computada no
custo do serviço dos concessionários de serviços públicos de energia
elétrica, será de 10% (dez por cento) a 12% (doze por cento), a critério
do poder concedente.
§ 1o A diferença entre a remuneração resultante da aplicação do
valor percentual aprovado pelo Poder concedente e a efetivamente ve‑
rificada no resultado do exercício será registrada na Conta de Resulta‑
dos a Compensar, do concessionário, para fins de compensação dos
excessos e insuficiências de remuneração.
§ 2o As importâncias correspondente aos saldos credores da Con‑
ta de Resultados a Compensar serão depositados pelo concessionário,
a débito do Fundo de Compensação de Resultados, até 30 de abril de
cada exercício, em conta vinculada no Banco do Brasil S.A., na sede da
emprêsa, que só poderá ser movimentada, para a sua finalidade, a juízo
do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica.

O objetivo dessa medida era nobre. Como a energia elétrica está


na base da sociedade contemporânea, ao eliminar suas assimetrias em
nível nacional, seria possível descentralizar a produção industrial no
país, combatendo, assim, as desigualdades regionais. Todavia, as trans‑
ferências de recursos entre concessionárias, sem encargos e obrigações,
e muitas vezes com interesses federativos distintos, pois diversas con‑
cessões estavam atreladas ao controle de Estados federados, resulta‑
riam em consequências que passariam longe da boa intenção de eliminar
diferenças regionais por artifícios regulatórios de energia elétrica. Alia‑

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do ao fracasso dessa iniciativa, as estatais estaduais eram frequente‑


mente utilizadas por grupos políticos para fins eleitorais, seja para
financiar campanhas, seja para sensibilizar o eleitorado aos argumentos
das tarifas subsidiadas (ou sociais).
A forte centralização de poderes e de receita teve grande repercus‑
são nas aspirações dos Estados de descentralizarem decisões setoriais,
bem como em se criarem mecanismos menos artificiais de financia‑
mento da expansão setorial.

No caso brasileiro, portanto, dentro do atual quadro conjuntural,


uma intenção de autossuficiência que, antes de admiti­‑la setorialmente,
se manifeste dentro das próprias concessionárias estaduais, poderá ex‑
primir uma saudável aspiração de soberania regional. Tal aspiração, en‑
tretanto, não pertence apenas a seus dirigentes mas, principalmente, às
populações que delas dependem. Possivelmente, essa opinião não possa
ser generalizada, mas, por certo, ela será tanto mais verdadeira quanto
mais valiosa considerar­‑se a participação dessas empresas nos esforços
de desenvolvimento desses Estados. Melhor dizendo: pelo melhor cum‑
primento de seus destinos e compromissos com o desenvolvimento eco‑
nômico e social dentro de suas áreas de concessão. Como tal, julga­‑se,
portanto, que essa intenção será tanto melhor recebida pelo Poder Cen‑
tral na medida em que se consiga demonstrar que uma eficiente política
centralizadora, em primeiro lugar deve reconhecer que as diferenciações
regionais possam ser diagnosticadas e tratadas pelas próprias empresas.
Portanto, tratando­‑se de programas de expansão em empresas de
eletricidade, os recursos, quando norteados sob propósitos de uma au‑
tossuficiência administrativa e financeira para as empresas, duas hipó‑
teses de equilíbrio dinâmico podem configurar­‑se:
a) completa autossuficiência (só utilizaria de recursos próprios); e
b) relativa autossuficiência, ou misto (utilizaria de recursos pró‑
prios e de terceiros).31

31
DUARTE, Antônio Fernando de Menezes. Pressupostos sobre equilíbrio de re‑
cursos nas expansões de sistema elétrico. Revista do Instituto de Direito da
Energia, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Minas Gerais, n. 19,
p. 18-19, set. 1977.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

A elevação dos juros, decorrente da crise do sistema financeiro


internacional de 1981, que sucedeu o choque do petróleo de 1979, bem
como o caráter peculiar do setor elétrico, de perfil financeiro intensivo
que recai em grandes valores econômicos imobilizados, fez com que o
Ministério da Fazenda utilizasse o setor como instrumento de captação
de recursos externos, via contratação antecipada dos equipamentos,
antes mesmo de iniciados os projetos.
Em que pese essa medida ter garantido certo fôlego financeiro ao
setor – e ao país –, ela não foi uma estratégia isolada e tampouco vito‑
riosa. Na verdade, a contenção tarifária de energia elétrica era tomada
como uma das principais, senão a principal, medida de combate à infla‑
ção, com efeitos nefastos para a economia. A partir de 1980 passou a
ser comum que concessionárias ineficientes tivessem remuneração
maior e positiva enquanto outras, mais eficientes, tivessem remunera‑
ção inferior, por vezes até negativas, fato que inaugurou fase de gene‑
ralização das inadimplências intrassetoriais.
Os anos de 1980 estavam fadados a um incessante reformismo
setorial. Dentre as principais iniciativas, houve: (i) o movimento de
dez concessionárias estaduais do Sul e Sudeste, em 1982, que não con‑
cordavam com os sistemas de compensações de créditos; (ii) as comis‑
sões do MME, principalmente a de 1983 e de 1984, que buscaram
equacionar a liquidez financeira setorial; (iii) o Plano de Recuperação
Setorial da Eletrobras – PRS, de 1985; (iv) o trabalho de Revisão Ins‑
titucional do Setor Elétrico – Revise, de 1987; e (v) o propalado finan‑
ciamento de US$ 500 milhões do Banco Interamericano de
Desenvolvimento – BIRD, que jamais chegou a ser realizado. Tais ini‑
ciativas não foram bem­‑sucedidas, o que acentuava o dilema exposto
por Waltemberg:

Para mencionar rapidamente alguns componentes dessa crise se‑


torial, podem ser citados, como elementos deletérios adicionais da es‑
trutura estatal, o alto grau de ingerência política nas empresas estatais,
levando­‑as a desvios de suas funções; políticas de contenção tarifária

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praticadas continuamente pelo Governo Federal, a título de combate a


inflação, mas que, ao longo do tempo, provaram não surtir esse efeito;
e o consequente processo de inadimplência generalizada intra­‑setorial,
que acabou por formar uma grande rede de “calotes”, em que ninguém
pagava a ninguém.
O Governo Federal não dava tarifas para as concessionárias, que,
por sua vez, já que não recebiam tarifas, não pagavam os encargos se‑
toriais devidos ao Governo Federal, encargos que eram necessários
para a sustentação do modelo – o que acarretou o acúmulo de obras
paralisadas ou atrasadas. Um levantamento feito em 1995 indicava um
total de mais de 20 usinas hidrelétricas com obras paralisadas ou atra‑
sadas, e mais de 30 usinas hidrelétricas, cujas concessões haviam sido
outorgadas de longa data, que não tinham tido suas obras iniciadas. Ou
seja, uma crise generalizada, indicando a necessidade de uma reestrutu‑
ração setorial.32

O último ato desse modelo pretensamente corretivo foi a institui‑


ção da Reserva Nacional de Compensação de Remuneração – Rencor,
realizada do Decreto­‑Lei n. 2.432, de 17 de maio de 1988, que estabe‑
leceu normas relativas ao equilíbrio econômico­‑financeiro das conces‑
sionárias de serviços públicos de energia elétrica. Com esta iniciativa,
foram regulamentados diversos procedimentos relacionados com a
Conta de Resultados a Compensar – CRC, a Reserva Global de Rever‑
são – RGR e a Reserva Global de Garantia – RGG.

4.4 Criação da Eletrobras e o Plano Nacional de


Eletrificação: o FFE e o Iuee
A mensagem ao Congresso de 10 de abril de 1954, que propunha o
Plano Nacional de Eletrificação e a criação da Eletrobras, foi o coroa‑
mento final dos esforços despendidos pelo governo Vargas na área ener‑
gética. Em que pese a Eletrobras ter sido criada no governo Jânio Quadros,

32
WALTEMBERG, David. O direito da energia elétrica e a Aneel: direito admi‑
nistrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 357.

211

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os grandes debates jurídicos sobre sua viabilidade, bem como a legalidade


da base normativa setorial, ocorreram no governo Kubitschek.
A década de 1950 foi de rica discussão setorial, tanto no Poder Exe‑
cutivo quanto no Poder Legislativo. Pode­‑se afirmar que o programa
energético para a eletricidade no segundo governo Vargas foi realizado
pela Assessoria Econômica do governo e a Comissão Mista Brasil –
Estados Unidos – CMBEU, ambas continuadas posteriormente pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE. A estraté‑
gia utilizada pode ser resumida da seguinte forma: (i) a Assessoria Eco‑
nômica desenvolveu as atividades de planejamento da política setorial;
(ii) o Iuee e o FFE foram os instrumentos que o BNDE se utilizou
para captar recursos para a expansão da matriz energética; (iii) a estra‑
tégia legislativa adotada para aprovação desse plano foi de enviar pe‑
quenos projetos, de forma a evitar conferir uma visão global que
pudesse representar ação em bloco da oposição; e (iv) o Iuee e o FFE
seriam geridos pelo BNDE até a criação da Eletrobras.
O Brasil, assim, passava a contar com sua primeira geração de téc‑
nicos capacitados para reestruturar a realidade setorial, de forma a não
depender exclusivamente das contribuições das empresas estrangeiras
Light e AMFORP. Profissionais como Lucas Lopes, John Cotrim, Be‑
nedito Dutra, Mário Thibau, começaram a contribuir decisivamente
para o aprimoramento setorial naquele período. Leopoldi33 explana
com riqueza de detalhes os interesses postos naquele intrincado mo‑
mento, que demonstra a contraposição de interesses do BNDE, o
“banco da eletricidade”, perante a constituição da Eletrobras.

O setor de energia elétrica do BNDE, coordenado por Lucas


Lopes (criador da Cemig), passou a pressionar o Congresso para evi‑

33
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Estado, burguesia industrial e industrialização
no segundo governo Vargas. In: SZMRECSÁNYI, Tamás; SUZIGAN, Wilson
(Org.). História econômica do Brasil contemporâneo. São Paulo: Edusp, Impren‑
sa Oficial de São Paulo e Editora Hucitec, 2002. p. 59-60.

212

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Curso de Direito da Energia

tar a aprovação do plano de eletrificação da Assessoria Econômica.


Também não interessava às companhias estaduais de eletricidade per‑
derem o seu poder para um organismo federal. Assim, o governo
Vargas terminou sem qualquer decisão parlamentar a respeito, e o
projeto, que ainda tramitou no Congresso no período JK, acabou
não sendo aprovado. A despeito de contar então com a simpatia do
ministro Lúcio Meira, de cuja equipe fazia parte Jesus Soares Pereira,
ex­‑assessor de Vargas e autor do Plano, a força opositora do BNDE,
o “banco da eletricidade” inviabilizou de uma vez por todas o Plano
Nacional de Eletrificação.
O projeto propondo a criação da Eletrobrás, uma companhia
holding que reuniria os projetos do governo federal e dos Estados, e
que seria a responsável pela formulação da política energética do País,
também seguiu para o Congresso em 1954, já sob intenso bombardeio,
vindo da imprensa, do próprio Congresso, e das companhias estran‑
geiras que atuavam no setor. A Light, por deter maior capacidade de
geração e distribuição, e por atuar nas duas maiores cidades do país,
contava com um corpo de advogados e de lobbistas que penetravam
nos partidos políticos e na imprensa. Para os “nacionalistas”, ela era
símbolo da ação nociva dos interesses estrangeiros no País. Jesus Soa‑
res Pereira assinalou que nem o novo ministro da Fazenda, Osvaldo
Aranha, nem o presidente do Banco do Brasil, Marcos de Souza Dan‑
tas, aprovavam a ideia da criação da Eletrobrás. O Sindicato das Indús‑
trias de Energia Elétrica do Estado de São Paulo, no qual a Light tinha
grande influência, sugeriu, quando da criação da Eletrobrás em 1961,
que ela fosse atuar no interior do País, não competindo nas áreas já
concedidas a Light e a Amforp – na verdade, as áreas mais importantes
em termos de concentração industrial e urbana. A grande imprensa,
em especial os Diários Associados, que detinham cadeia de TV, rádio e
jornais, fez campanha contra o monopólio estatal da eletricidade.
O último projeto da Assessoria nessa área regulava o regime de
concessões e tarifas na área de energia elétrica. Ele havia sido concluído
e estava para ser encaminhado ao Congresso quando sobreveio a mor‑
te de Vargas, e a Assessoria Econômica teve que dissolver­‑se.

Logo, as bases financeiras que culminaram na criação da Eletrobras


estavam dispostas desde o governo Vargas, por meio do Iuee e do FFE.

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A frustração de Vargas em não ter criado a Eletrobras pode ser identi‑


ficada em sua Carta­‑Testamento.34 Logo, foi apenas a Lei n. 3.890­‑A,
de 25 de abril de 1961, que autorizou a União a criar a Eletrobras com
o objetivo de realizar estudos, projetos, construção e operação de usi‑
nas produtoras e linhas de transmissão e distribuição de energia elétri‑
ca, bem como a celebrar todos os atos de comércio decorrentes dessas
atividades. Havia ainda uma função transitória, na qual enquanto não
fosse aprovado o Plano Nacional de Eletrificação, a empresa poderia
executar empreendimentos com o objetivo de reduzir a falta de energia
elétrica nas regiões em que a demanda efetiva ultrapasse as disponibili‑
dades da capacidade firme dos sistemas existentes, ou seja, em vias de
ultrapassá­‑la.
A Eletrobras, em que pese ter sido criada legalmente em 1961, ganha
apenas em 1964 os contornos que a caracterizariam como o braço
empresarial de nacionalização e estatização do setor elétrico. Ela passa
a atuar como: (i) holding das concessionárias federais de serviço público
de energia elétrica; (ii) planejadora da expansão do sistema, notada‑
mente o de transmissão; (iii) responsável pela construção e operação de
parques de geração; e (iv) administradora dos recursos financeiros
(inclusive o empréstimo compulsório vigente a partir de 1964) destinados
às obras de expansão da base produtiva do setor, papel esse antes de‑
sempenhado pelo BNDE. Em outras palavras, a Eletrobras passou a ser
competente, enquanto órgão de coordenação técnica, financeira e ad‑
ministrativa do setor de energia elétrica, a promover a construção e a
respectiva operação, através de subsidiárias de âmbito regional, de centrais
elétricas de interesse supraestadual e de sistemas de transmissão em alta
e extra­‑alta tensões, que objetivavam a integração interestadual dos sis‑
temas elétricos, bem como dos sistemas de transmissão destinados ao
transporte da energia elétrica produzida em aproveitamentos energéticos
binacionais.

34
Mais detalhes no item 4.

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Curso de Direito da Energia

Foi, então, constituído o sistema de empresas controladas atuan‑


tes em âmbito regional, responsável pela geração em grosso e pela ope‑
ração do sistema elétrico e hídrico interligado, fazendo parte dele as já
existentes Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) e Cen‑
tral Elétrica de Furnas S.A. (Furnas), a Centrais Elétricas do Sul do
Brasil S.A. (Eletrosul), organizada em 1968, e a Centrais Elétricas do
Norte do Brasil (Eletronorte), organizada em 1972.
A nacionalização do setor de energia elétrica foi acelerada com a
aquisição, pelo governo federal, dos ativos das empresas do Grupo
Amforp, sancionada pela Lei n. 4.428, de outubro de 1964.35

Além da regionalização, que dividiu a capacidade de geração do


país em grupos empresariais distintos, mas sob um mesmo controle,
houve igualmente uma estruturação da governança técnica.36 Como
exemplo, pode­‑se citar o Grupo Coordenador para operação Interliga‑
da – GCOI, constituído pelo art. 12 da Lei n. 5.899, de 5 de julho de
1973, para operacionalizar a coordenação dos sistemas interligados das
regiões Sudeste e Sul. O Grupo Coordenador do Planejamento dos
Sistemas Elétricos – GCPS, por sua vez, era o responsável pelo progra‑
ma de geração do setor, sendo coordenado pela Eletrobras e com par‑
ticipação das concessionárias do setor. O GCPS iniciou suas atividades
em 1981, tendo sido efetivamente formalizado pela Portaria MME
n. 1.617, de 23 de novembro de 1982. Em cada ciclo anual de planeja‑
mento, o GCPS fazia previsões decenais de mercado e propunha um
programa de obras de geração e transmissão para supri­‑lo. Até o final
dos anos 1990, esse programa era determinativo.
Para o desenvolvimento tecnológico do setor, foi criado em 1974
o Centro de Pesquisa de Energia Elétrica – Cepel, para desenvolver

35
CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. Energia Elé‑
trica no Brasil. Breve Histórico 1880 – 2001. Rio de Janeiro, 2001. p. 117-119.
36
Importante destacar que em 30 de maio de 1962 foi criada a Comissão de Nacio‑
nalização das Empresas Concessionárias de Serviços Públicos (Conesp), para,
fundamentalmente, tratar da nacionalização das empresas do Grupo Amforp.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

produtos e serviços e viabilizar seu fornecimento pela indústria nacio‑


nal. Os sócios fundadores do Cepel foram a Eletrobras e suas contro‑
ladas Chesf, Eletronorte, Eletrosul e Furnas. O Comitê de Meio
Ambiente do Setor Elétrico – Comase, por sua vez, era o responsável
pela relação entre a energia elétrica e as esferas ambientais. Por fim, o
Comitê de Gestão Empresarial – Coge, criado pela Portaria n. 1.078,
de 4 de agosto de 1981, tinha por finalidade aperfeiçoar as atividades
de administração dos serviços de apoio, promovendo intercâmbio en‑
tre problemas comuns.
Diferentemente do ocorrido nas décadas anteriores, quando o
Instituto de Direito da Eletricidade, fundado e capitaneado por Wal‑
ter Tolentino Álvares, conduziu a epistemologia jurídico­‑setorial, o
Coge37 pode ser considerado o celeiro da então nova geração de juris‑
tas, concomitante às iniciativas do Sindicato da Indústria da Energia
Hidroelétrica no Estado de São Paulo – Sihesp e da Associação Brasi‑
leira de Concessionárias de Energia Elétrica – ABCE, que em conjun‑
to com o Centro de Estudos Jurídicos da Guanabara realizaram
relevantes seminários sobre o que denominavam Direito da Eletrici‑
dade. Pode­‑se afirmar que, a partir da década de 1980, houve uma
construção colegiada do que viria a ser o Direito da Energia no Brasil,
com enfoque prático e financiado pelas concessionárias de energia,
que precisavam trocar suas experiências e uniformizar os respectivos
procedimentos. Dentre os estudos, mencionam­‑se aqueles voltados à
identificação da forma de apuração do ICMS nas contas de forneci‑
mento de energia elétrica, à forma de estruturação da área jurídica de
empresas do setor elétrico, às medidas contra invasão de faixas de ser‑
vidão, à informática dos departamentos jurídicos, ao leasing para
aquisição de equipamentos, dentre outros.

37
A Fundação Coge veio suceder o Comitê de Gestão Empresarial – Coge a partir
de 5 de novembro de 1998, com sede na cidade do Rio de Janeiro e era composta
por 26 empresas do setor de energia elétrica brasileiro.

216

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Curso de Direito da Energia

Outra função da Eletrobras, primordial para o crescimento que o


Brasil experimentava, era a condução do Plano Nacional de Eletrifica‑
ção. Esse programa delineava uma profunda reestruturação setorial,
prevendo a expansão da geração hidrelétrica e a intervenção direta do
Estado nas áreas de geração e transmissão. A propriedade das novas
instalações geradoras passaria a concentrar­‑se em empresas controla‑
das pelo Governo Federal e pelos governos estaduais, as quais, por sua
vez, tornar­‑se­‑iam responsáveis pelo suprimento às empresas atuantes
no segmento de distribuição, que tinham configurações societárias das
mais distintas, algumas sendo até privadas, resquício do período pré­
‑governo Vargas.
O Plano Nacional de Eletrificação era subsidiado pelo Fundo Fe‑
deral de Eletrificação e sobre a distribuição e aplicação do Imposto
Único sobre Energia Elétrica – Iuee, previsto basicamente nas Leis
n. 2.308, de 31 de agosto de 1954, n. 2.944, de 8 de novembro de 1956,
n. 4.156, de 28 de novembro de 1962, n. 4.364, de 22 de junho de 1964,
e n. 4.676, de 16 de junho de 1965. Para efeito de entrega das obrigações
da Eletrobras, considera­‑se consumidor aquele que estiver na posse
das respectivas contas de energia elétrica.
Havia excludentes de incidência do Iuee. Eram isentos do paga‑
mento do imposto os consumidores servidos por concessionários dis‑
tribuidores de energia elétrica cujo sistema gerador seja exclusivamente
constituído de usinas termelétricas utilizando, como combustível, deri‑
vados de petróleo ou lenha. Por sua vez, o consumidor industrial, assim
qualificado pelas respectivas contas de fornecimento de energia elétrica,
que comprovasse perante o Conselho Nacional de Águas e Energia Elé‑
trica – CNAEE, do Ministério das Minas e Energia, despesa com ener‑
gia elétrica igual ou superior a 3% do valor de suas vendas, em cada um
dos dois anos civis imediatamente anteriores ao pedido, faria jus a uma
redução percentual do Iuee.
Havia uma forte centralização de poderes na figura da Eletrobras.
A empresa deveria aplicar, anualmente, até 5% dos recursos do Fundo

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Federal de Eletrificação, a seu cargo, em financiamento de programas


de eletrificação rural no país. Com vistas à coordenação da política
nacional de energia elétrica, os Estados deveriam submeter, anualmen‑
te, os respectivos planos de eletrificação devidamente atualizados, à
apreciação do Ministro das Minas e Energia, por meio do Conselho
Nacional de Águas e Energia Elétrica – CNAEE, bem como a com‑
provação da aplicação de recursos próprios e privados em serviço de
energia elétrica em seu território, sob pena de transferência, a favor da
Eletrobras, da parcela da cota do Estado no Iuee. Logo,

[...] o modelo setorial pautado na organização do sistema Ele‑


trobrás garantiu a expansão expressiva dos segmentos de geração e
transmissão de energia elétrica ao longo dos anos 1960 e 1970, ten‑
dência que viria a ser revertida, na década de 1980, tanto como refle‑
xo das mudanças nas regras dos mercados financeiros internacionais,
como dos obstáculos então existentes à continuidade da captação in‑
terna de recursos.38

Assim, o modelo vertical de atividades da Eletrobras, que detinha


todos os segmentos do setor elétrico – Geração, Transmissão e Distri‑
buição –, arrecadava fundos, operava, planejava, financiava, treinava,
protegia o meio ambiente e ainda buscava expandir seus sistemas, não
respondia satisfatoriamente à explosão demográfica que o Brasil passa‑
va, tampouco a necessidade de investimentos setoriais para atendimen‑
to da população na década de 1980, fato que impunha uma reorganização
setorial para fazer frente aos desafios hodiernos.

4.5 Criação de Itaipu enquanto hidrelétrica binacional


Itaipu, mais do que um projeto de geração de energia elétrica, é
fruto de uma ousadia geopolítica. Sua origem remete à Guerra do

38
CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL. Energia Elé‑
trica no Brasil. Breve Histórico 1880 – 2001. Rio de Janeiro, 2001, p. 147-148.

218

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Curso de Direito da Energia

Paraguai (1864­‑1870), que foi o maior conflito armado internacional


da América do Sul, em específico o problema geocientífico de demar‑
cação de fronteiras posterior ao conflito.39

Os trabalhos de demarcação iniciaram­‑se no mesmo ano da assi‑


natura do Tratado de Limites (1872) e foram concluídos em 1874, sen‑
do Comissário brasileiro o Barão de Maracaju (Coronel Rufino Eneas
Gustavo Galvão) e o paraguaio D. Domingo Antonio Ortiz. Nesse
período, foram construídos seis marcos (principais) ao longo da fron‑
teira (um na foz do Apa, outros dois no galho e na nascente do Estrela
e três marcos no divisor de águas das serras de Amambaí e Maracaju).
Deixou de ser construído marco no final da linha seca, região do Salto
Grande das Sete Quedas, no rio Paraná, por ser este, um acidente de
fronteira, considerado ‘imutável’, conforme afirmam as instruções aos
demarcadores da época. Circunstância superveniente – o fechamento
da barragem de Itaipu – fez desaparecer exatamente esse acidente geo‑
gráfico, submerso agora sob as águas do atual lago.40

O primeiro registro de expedição enviada pelo governo brasileiro a


Foz do Iguaçu após a Guerra do Paraguai foi em julho de 1889, capitaneada
pelo Engenheiro e Tenente José Joaquim Firmino. A incipiente população
local era constituída majoritariamente de paraguaios e argentinos que ex‑
ploravam erva­‑mate e madeira, transportando as matérias­‑primas via rio
Paraná. A Colônia Militar, a primeira iniciativa de ocupação brasileira da
fronteira, foi criada em 22 de novembro do mesmo ano, apenas uma sema‑
na após a proclamação da República. Era como se a mudança de regime
tivesse efeito imediato na demarcação de fronteira. Os militares passaram a
ter competência para distribuir terrenos a colonos interessados.

39
Os principais instrumentos jurídicos bilaterais entre Brasil e Paraguai são: (i)
Tratado de Limites (9/1/1872); (ii) Tratado Complementar ao de 1872
(21/5/1927); (iii) Protocolo de Instruções (9/5/1930); (iv) Tratado de Itaipu
(26/4/1973); (v) Protocolo Adicional ao Tratado de 1927 (4/12/1975); e (vi) No‑
tas aprovando a adjudicação das ilhas do rio Paraguai (15/2/1978).
40
Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/daa/histparg.htm>. Acesso em: 22
jul. 2011.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Em 1910, a Colônia Militar passou à condição de “Vila Iguassu”,


com natureza jurídica de distrito do Município de Guarapuava. Qua‑
tro anos depois, por força da Lei n. 1.383, 14 de março de 1914, o dis‑
trito se emancipava e se transformava em município de Vila Iguaçu,
tendo seu nome alterado para Foz do Iguaçu em 1918.
Com a instituição do município de Foz do Iguaçu, ele somente
ganhou projeção nacional e regional a partir da década de 1960.41 A Ata
de Iguaçu,42 de 22 de junho de 1966, demonstra um verdadeiro projeto

41
Importante destacar que, com a inauguração da Ponte Internacional da Amizade
(Brasil – Paraguai) em 1965, bem como a inauguração em 1969 da BR-277, que
ligaria Foz do Iguaçu ao porto de Paranaguá, o comércio da região foi significa‑
tivamente acelerado.
42
Ata de Iguaçu de 22 de junho de 1966 firmada entre Brasil e Paraguai
Aos vinte e dois de junho de 1966, o Ministro de Estado das Relações Exteriores
dos Estados Unidos do Brasil, Embaixador Juracy Magalhães e o Ministro das
Relações Exteriores do Paraguai, Doutor Raúl Sapena Pastor assinaram uma Ata
Final e trocaram Memorandos.
ATA FINAL
Aos vinte e um e vinte e dois dias do mês de junho de mil novecentos e sessen‑
ta e seis, reuniram-se nas cidades de Foz do Iguaçu e de Porto Presidente Stro‑
essner, o Ministro das Relações Exteriores dos Estados Unidos do Brasil,
Embaixador Juracy Magalhães, e o Ministro das Relações Exteriores da Repú‑
blica do Paraguai, Doutor Raúl Sapena Pastor, com o objetivo de passar em
revista os vários aspectos das relações entre os dois países, inclusive aqueles
pontos em torno dos quais têm surgido ultimamente divergências entre as duas
Chancelarias.
Após terem mantido várias entrevistas de caráter pessoal e outras com a presen‑
ça de suas comitivas, os Ministros das Relações Exteriores dos Estados Unidos
do Brasil e da República do Paraguai chegaram às seguintes conclusões, que fa‑
zem constar da presente Ata:
I — MANIFESTARAM-SE acordes os dois Chanceleres em reafirmar a tradi‑
cional amizade entre os dois Povos irmãos, amizade fundada no respeito mútuo
e que constitui a base indestrutível das relações entre os dois países;
II — EXPRIMIRAM o vivo desejo de superar, dentro de um mesmo espirito de
boa-vontade e de concórdia, quaisquer dificuldades ou problemas, achando-lhes
solução compatível com os interesses de ambas as Nações;

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Curso de Direito da Energia

III — PROCLAMARAM a disposição de seus respectivos governos de proce‑


der, de comum acordo, ao estudo e levantamento das possibilidades econômicas,
em particular os recursos hidráulicos pertencentes em condomínio aos dois paí‑
ses, do Salto Grande de Sete Quedas ou Salto de Guaira;
IV — CONCORDARAM em estabelecer, desde já, que a energia elétrica even‑
tualmente produzida pelos desníveis do rio Paraná, desde e inclusive o Salto
Grande de Sete Quedas ou Salto do Guaira até a foz do rio Iguaçu, será dividida
em partes iguais entre os dois países, sendo reconhecido a cada um deles o direi‑
to de preferência para a aquisição desta mesma energia a justo preço, que será
oportunamente fixado por especialistas dos dois países, de qualquer quantidade
que não venha a ser utilizada para o suprimento das necessidades do consumo do
outro pais;
V — CONVIERAM, ainda, os Chanceleres em participar da reunião dos Minis‑
tros das Relações Exteriores dos Estados ribeirinhos da Bacia do Prata, a reali‑
zar-se em Buenos Aires a convite do Governo argentino, a fim de estudar os
problemas comuns da área, com vistas a promover o pleno aproveitamento dos
recursos naturais da região e o seu desenvolvimento econômico, em beneficio da
prosperidade e bem-estar das populações; bem como a rever e resolver os pro‑
blemas jurídicos relativos à navegação, balizamento, dragagem, pilotagem e pra‑
ticagem dos rios pertencentes ao sistema hidrográfico do Prata, a exploração do
potencial energético dos mesmos, e à canalização, represamento ou captação de
suas águas, quer para fins de irrigação, quer para os de regularização das respec‑
tivas descargas, de proteção das margens ou facilitação do tráfego fluvial;
VI — CONCORDARAM em que as Marinhas respectivas dos dois países pro‑
cederão, sem demora à destruição ou remoção dos cascos soçobrados que ofere‑
cem atualmente riscos à navegação internacional em águas do Rio Paraguai;
VII — EM RELAÇÃO aos trabalhos da Comissão Mista de Limites e Caracte‑
rização da Fronteira Brasil-Paraguai, convieram os dois Chanceleres em que tais
trabalhos prosseguirão na data que ambos os Governos estimarem conveniente;
VIII — CONGRATULARAM-SE enfim, os dois Chanceleres, pelo espírito
construtivo que prevaleceu durante as conversações e formularam votos pela
sempre crescente e fraternal união entre o Brasil e o Paraguai, comprometendo-
se ainda a não poupar esforços para estreitar cada vez mais os laços de amizade
que unem os dois países.
A presente Ata, feita em duas cópias nos idiomas português e espanhol, depois
de lida e aprovada, foi firmada em Foz do Iguaçu, pelos Ministros das Relações
Exteriores dos Estados Unidos do Brasil e da República do Paraguai, em vinte e
dois de junho de mil novecentos e sessenta e seis.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

de desenvolvimento regional da bacia do Prata, que fazia a opção de


utilizar dos recursos hidrelétricos como principal agente de geração de
renda naquela localidade. O embaixador Juracy Magalhães, enquanto
ministro das Relações Exteriores que negociou o Tratado de Iguaçu,
com a experiência e a autoridade setorial de quem havia sido o primeiro
presidente da Petrobras, demonstra a truculência das negociações bila‑
terais em seu livro de memórias.

As conversas não eram fáceis. Pastor43 insistia na tese da inde‑


finição da nossa fronteira no trecho das Sete Quedas, e eu não podia
abrir mão da plena vigência do tratado que definia os limites consa‑
grados na demarcação. Houve um momento de quase ruptura
quando o chanceler paraguaio chegou a insinuar em nome de um
suposto direito histórico, que nosso tratado tinha de ser revisto.
Nessa hora observei, com o máximo de calma, que um tratado entre
dois países só poderia ser revisto por outro tratado. Ou por uma
guerra. E como o Brasil não estava disposto a aceitar novo tratado,
perguntei­‑lhe se o Paraguai se considerava em condições de promo‑
ver uma guerra.
Visivelmente surpreso e assustado, o chanceler paraguaio me per‑
guntou se eu lhe estava fazendo uma ameaça, ao que lhe respondi di‑
zendo que apenas pretendia trazer nossa discussão para uma base mais
realista. Suspenso nosso encontro nesse clima tenso, quando voltamos
a nos reunir já o chanceler mudara por completo sua atitude, graças a
isso, pudemos chegar, no dia 22 de junho, em Foz do Iguaçu, a celebrar
o acordo, que se chamou Ata das Cataratas.44

Juracy Magalhães, Ministro de Estado das Relações Exteriores dos Estados Unidos
do Brasil, – Raúl Sapena Pastor, Ministro das Relações Exteriores da República
do Paraguai.
(Publicado no Diário Oficial da União de 8 de agosto de 1966, p. 9.061/62)
43
Referência ao Ministro das Relações Exteriores da República do Paraguai, Dou‑
tor Raúl Sapena Pastor.
44
MAGALHÃES, Juracy. GUEIROS, José Alberto. O último tenente. São Paulo:
Record, 1996. p. 349.

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Curso de Direito da Energia

Após a assinatura da Ata de Iguaçu (ou Ata das Cataratas), foi


criada uma comissão técnica mista, formada por representantes brasi‑
leiros e paraguaios, com a incumbência de elaborar e cumprir um plano
de ação que levasse à formulação de um projeto técnico.45 Havia a ne‑
cessidade de se atribuírem responsabilidades para os dois países. Para
tanto, foi firmado convênio entre a aludida comissão e as empresas
Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras e Administración Na‑
cional de Electricidad – Ande, do Paraguai.46
À primeira vista, o Paraguai, país mediterrâneo e de economia
agrícola, assumia dívida para construção de Itaipu correspondente a
dois anos de produção econômica e a 5% de seu PIB.47 Todavia, o mo‑
delo escolhido para a consecução financeira da obra fez com que o
Brasil, por intermédio do Banco do Brasil, fizesse empréstimo para
que o Paraguai pudesse arcar com seus 50% na sociedade. A Ementa
do parecer da Consultoria­‑Geral da República L­‑208, de 22 de setem‑
bro de 1978,48 pormenoriza essa situação e conceitua a natureza jurídi‑
ca daquela que seria a maior hidrelétrica do mundo.

I) A entidade binacional denominada Itaipu, criada diretamente


pelo Tratado entre Brasil e Paraguai, de 26 de abril de 1973, constitui

45
Documento histórico denominado “Criação de Comissão Mista Técnica Brasi‑
leiro – Paraguaia – Acordo entre o Brasil e o Paraguai”, firmado em Assunção
(PGY), em 12/02/1967, publicado no Diário Oficial de 31 mar. 1967, p. 3.877-78.
46
“Convênio de cooperação entre a Comissão Mista Técnica Brasileiro – Para‑
guaia, por uma parte, e, pela outra, a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletro‑
bras), do Brasil, e Administración Nacional de Electricidad (Ande), do Paraguai,
para o estudo em conjunto do trecho do rio Paraná desde e inclusive o Salto de
Guaíra ou Salto Grande de Sete Quedas, até a foz do rio Iguaçu”, firmado em
10/04/1970, em Assunção (PY). Itaipu Binacional (Brasil). Atos oficiais da Itaipu
binacional. Curitiba: Itaipu Binacional, 2005. p. 21-33.
47
WEBER, Wagner Enis. Itaipu e o Paraguai: o renascer de uma nação. Assunción
(PY): Enfoque Económico, 2008. p. 28.
48
Aprovado pelo Presidente da República em 17 de outubro de 1978 e constante
do Processo n. 033/C/77 – PR. 3 635/77.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

uma empresa juridicamente internacional, consistente em uma pessoa


jurídica emergente no campo do direito internacional público, por ser
decorrente de um Tratado, com a vocação e a finalidade específica de
desempenho de atividade industrial, como concessionária de serviço
público internacional, comum a dois Estados.
II) Submetida, primordialmente, ao regime de direito internacio‑
nal, nos termos em que estabelecido no competente ato de sua criação,
Itaipu somente está sujeita aos procedimentos de tutela representados
em controles administrativos ou financeiros, de ordem externa ou in‑
terna, constantes das disposições pertinentes dos atos internacionais
que a regem, não se lhe aplicando as normas de direito interno, consti‑
tucionais ou administrativas, incidentes sobre agentes, entidades ou
responsabilidades estritamente compreendidas no âmbito da jurisdi‑
ção nacional.
Atendendo à solicitação do Ministério das Minas e Energia, cons‑
tante da Exposição de Motivos no 423/77, o Excelentíssimo Senhor
Presidente da República determina a audiência desta Consultoria Ge‑
ral a fim de dirimir dúvidas quanto à natureza jurídica da entidade bi‑
nacional ITAIPU, bem assim quanto ao cabimento dos controles
financeiros, interno e externo, estabelecidos na legislação pátria (Aviso
n. 1.237/77, do Senhor Ministro Chefe do Gabinete Civil).
Realça, a referida Exposição de Motivos, que a caracterização
jurídica de Itaipu já ensejou a “manifestação de renomados juristas
sobre a sua identificação dentre as espécies existentes no âmbito do
direito público ou privado, pátrio ou internacional”, dentre eles, os
eminentes Miguel Reale, Paulo Salvador Frontini e Celso Antônio
Bandeira de Mello.
Em que pese o alto ensinamento dos ilustres jurisconsultos, a
proposição acima tem como justificada a solicitação de parecer da
Consultoria Geral da República, em que se firme, por sua razão nor‑
mativa, o entendimento e a conduta a serem observados, no âmbito
daquele Ministério e da Administração Pública Federal, com relação à
entidade binacional.
São dados à consideração os estudos elaborados pelos preclaros
mestres, acima mencionados, cujas lições convém recolher, desde logo,
como inestimável roteiro e contribuição decisiva ao equacionamento
do problema.

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Curso de Direito da Energia

O eminente Miguel Reale, que colaborou na feitura do antepro‑


jeto dos atos internacionais, tem­‑na como “empresa pública binacio‑
nal”, em referência ao correntio conceito de empresa pública,
parecendo­‑lhe que “o que se deu em primeiro lugar, foi a trasladação
de um modelo jurídico, elaborado na tela do Direito Administrativo
Interno, para o âmbito do Direito Internacional, com todas as conse‑
quências inerentes a essa transposição...”
Após afirmar que surge, assim, “uma entidade internacional de
natureza empresária, tanto ou mais que uma empresa de natureza in‑
ternacional”, o consagrado mestre vai ao núcleo da questão, concei­
tuando a personalidade jurídica atribuída a Itaipu:
“Como essa personalidade jurídica, dotada de amplo espectro de
poderes, se destina à exploração de um bem público, outorgado con‑
juntamente pelos dois Estados “condôminos”, resulta mais do que ca‑
racterizada a existência de uma pessoa jurídica pública de direito
internacional” (fls.).
Na mesma linha de indagação teórica, o ilustre jurista, Paulo Sal‑
vador Frontini, põe­‑na no quadro dos “organismos internacionais pú‑
blicos”, com plena capacidade de direito internacional, asseverando:
“Tendo tais peculiaridades, forçoso convir que se trata de organis‑
mo internacional, surgido de um tratado binacional, ou seja, sua origem
é bilateral (e não multilateral como outros organismos). Mas a singeleza
dessa bilateralidade em nada a diminui perante outras organizações de
origem multilateral, pois todas se nivelam num mesmo plano de igual‑
dade, quanto à capacidade jurídica de direito internacional.

Nos anos 1970, auge da Guerra Fria, Brasil e Paraguai contavam


com regimes militares. Foz do Iguaçu tinha cerca de 40 mil habitan‑
tes, e Ciudad Del Este, no lado paraguaio, era um mero povoado.49
Somente a construção da hidrelétrica abrangeria toda a população da
cidade brasileira: era o “maior canteiro de obras do mundo”.50 Toda
essa movimentação levaria a uma verdadeira transmutação da paisa‑

49
WEBER, Wagner Enis. Itaipu e o Paraguai: o renascer de uma nação. Assunción
(PY): Enfoque Económico, 2008. p. 29.
50
WEBER, Wagner Enis. Idem, ibidem.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

gem regional, que recebeu milhares de imigrantes. Por fim, o advento


do tratado binacional, com incremento de algumas indústrias e a
crescente exportação de produtos mais baratos, possibilitou a acele‑
ração do desenvolvimento paraguaio, que chega a ser chamado de
“emirado hidrelétrico”, tamanha a pujança econômica que o empre‑
endimento acarretava.
O regime jurídico de Itaipu, circunscrito e estruturado pelas nor‑
mas do Tratado e de seus anexos, somente pode ser modificado, de
comum acordo, pelos Governos (art. III, §§ 1o e 2o, art. VI, do
Tratado).51 O documento, que demonstra a preocupação dos países
com as “questões de âmbito mundial e regional”,52 naturais em uma
realidade geopolítica bipolar, demonstra que a constituição de uma em‑
presa pública binacional, por meio de um tratado, além de ser conside‑
rada de vanguarda, dirimiria diversos problemas jurídicos que se
demonstravam intransponíveis naquele momento. A principal caracte‑
rística desse instrumento é, sem dúvida, tratar­‑se da constituição de
uma obra em condomínio que, por um lado, mantém preservadas as
respectivas soberanias nacionais e, por outro, adquire dinamismo em‑
presarial. Nas palavras de REALE,

[...] uma vez aprovado por Decreto Legislativo do Congresso


Nacional, adquire força de lei, prevalecendo as suas normas especiais
sobre quaisquer outras anteriores pertinentes à matéria.53

Essa estrutura permitiu a criação de uma empresa pública similar


ao conceito do inciso II, do art. 5o do Decreto­‑Lei n. 200, de 25 de feve‑

51
Tratado entre a República Federativa do Brasil e a República do Paraguai para o
Aproveitamento Hidrelétrico dos Recursos Hídricos do Rio Paraná, pertencen‑
tes em Condomínio aos dois países, desde e inclusive o Salto Grande de Sete
Quedas, firmado em 26/04/1973.
52
Itaipu Binacional (Brasil). Atos oficiais da Itaipu binacional. Curitiba: Itaipu Bi‑
nacional, 2005. p. 39-43.
53
Idem, ibidem.

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Curso de Direito da Energia

reiro de 1967, com a redação dada pelo Decreto­‑Lei n. 900, de 29 de


setembro de 1969, que seria.

[...] a entidade dotada de personalidade jurídica de direito priva‑


do, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criada por lei
para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a
exercer por força de contingência ou de conve­niência administrativa,
podendo revestir­‑se de qualquer das formas admitidas em direito.

Em verdadeira aula de Direito Internacional aplicado ao Direito da


Energia, em que aponta o Direito Societário como verdadeira matriz do
Direito Tecnológico, e da Energia por conseguinte, Álvares54 explana
sobre as peculiaridades jurídicas de Itaipu.55

54
ÁLVARES, Walter T. Natureza jurídica de Itaipu. Parecer de agosto de 1975.
Item sobre Ordenamento Jurídico Positivo.
55
Importante destacar a profundidade do parecer de Walter T. Álvares, pela quali‑
dade e densidade de sua obra. O presente parecer remonta as seguintes passa‑
gens: I. Introdução temática – 1. Adequação fenomênica jurídico-econômica – 2.
Translação do fenenômeno jurídico – 3. Ultrapassagem do convencional – 4. Li‑
nha genética – 5. Fórmulas para novos efeitos – 6. Afinidade conceitual – 7. Emba‑
samento funcional. II. Retrospectiva histórica – 8. Agrupar para alcançar – 9.
Traços romanos 10. Resquícios helênicos – 11. Contribuição medieval e renascentista.
III. Natureza jurídica do consórcio – 12. Motivação criadora – 13. Grupamento
e coordenação – 14. Coordenadas jurídicas do dimensionamento consorcial – 15.
Fenômeno associativo (consórcio de 1o grau) – 16. Consórcio como negócio jurí‑
dico – 17. Relações internas e externas do negócio jurídico (consórcio de 2o grau) –
18. Contrato de consórcio – 19. Inserção societária (consórcio de 3o grau) – 20. O
Direito Positivo brasileiro (n. 36) – 21. Personalidade e coisismo – 22. Piramidação
e consórcio – 23. Sociedades coligadas e consórcio – 24. Grupo econômico e
consórcio – 25. A contribuição americana pela “joint-venture” – 26. Coordenadas do
funcionamento – 27. “Trade associations” inglesas – 28. Um quadro panorâmico –
29. O instrumento ou pacto consorcial – 30. Relação entre consorciados e ter‑
ceiros – 31. O instituto falimentar – 32. Juízo competente e delibação – 33.
Estabelecimentos públicos – 34. Posição dos consorciados – 35. Participação do
Direito Internacional. IV. Consórcio no Direito Brasileiro – 36. Penetração da fi‑
gura (n. 20) – 37. Consórcio administrativo – 38. Comunidade de Direito Público –
39. Distritos municipais – 40. Consórcio no Código de Águas – 41. Embasamento

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67) 0 Tratado foi assinado em Brasília, em 26 de abril de 1973 e


aprovado, no Brasil, pelo Decreto Legislativo 23, de 30 de maio de 1973,
havendo troca de instrumentos de ratificação a 13 de agosto de 1973, pelo
que, pelo Decreto Federal n. 72.707, de 28 de agosto de 1973, foi publi‑
cado a íntegra do Tratado e os Estatutos de Itaipu, para que fossem
executados e cumpridos inteiramente no território nacional. Vários
atos posteriores já se seguiram, como o instrumento sobre efetivação
do regime trabalhista e de previdência social, o regime tributário pre‑
visto pelo artigo XII, do Tratado e repetido por Portaria do Ministério
da Fazenda, para os fins legais, bem como decreto que autoriza a Ele‑
trobrás a promover desapropriação para as obras de Itaipu.
Ora, pelo exame do Tratado e seus Anexos efetivamente verifica­
‑se que é possível considerar Itaipu como uma sociedade internacional,
pois criada por Tratado, mas, só limitadamente de Direito Comunitá‑
rio, pois o Tratado é expresso em que se aplicarão as legislações de cada
país, com relação às pessoas jurídicas ou físicas, brasileiras e para‑
guaias, com toda a extensão e alcance dos artigos 19 e 21 do Tratado.
Assim, não há um ordenamento jurídico internacional, criado pelo
Tratado, mas, por esta via, regulou­‑se o princípio estatutário do Direi‑
to Nacional, em cada jurisdição específica, a seus nacionais.
Com esta mecânica, de algum modo aflora a teoria dos estatutos,
dos inícios do Direito Internacional e só muito limitadamente se pode

doutrinário – 42. Consórcio de mineração. V. Consórcio no Direito Econômico e


no Direito Comunitário – 43. Nova Estruturação – 44. Sociedade de consórcio –
45. Formas de atividades econômicas – 46. Cooperação e consórcio – 47. Posição
norte-americana – 48. Concentracionismo – 49. Sociedades e ordenamento jurídi‑
co – 50. Sociedade e nacionalidade – 51. Empresa pública – 52. Modelo positivo
brasileiro – 53. Sociedade comercial pública – 54. Novos rumos – 55. Consórcio
ou cooperação internacional – 56. A sociedade europeia – 57. Empresas comuns –
58. Contrato de participação – 59. Direito Comunitário. VI. Constituição de consór‑
cio – 60. Consórcio Nacional – 61. Consórcio Internacional – 62. Modelo de
constituição de consórcio de 3o grau. VII. Itaipu e a cooperação internacional. 63.
Variações sobre tratados – 64. Tratados-leis e tratados-contratos – 65. Posiciona‑
mento de Itaipu – 66. Território e moeda comuns – 67. Ordenamento jurídico po‑
sitivo – 68. Controle bipartido – 69. Afinidades comparativas – 70. Intensidade de
extraterritorialidade – 71. Jurisdição e imunidade – 72. Imanência consorcial.

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Curso de Direito da Energia

falar em Direito Comunitário, que se tem entendido como uma suavi‑


zação das soberanias, dentro de um Direito novo, enquanto que em
Itaipu, o Direito Nacional soberano permanece resistente e intocável.
É certo que Itaipu pode ser considerada como empresa pública,
num conceito lato, de vez que constituída por entidades jurisdiciona‑
das aos Governos contratantes, ainda que possa oferecer forma de so‑
ciedade comercial, como é o caso da Eletrobrás. Não se afina, em toda
a extensão, com o modelo federal brasileiro dos Decretos­‑leis nos 200
e 900, mas a Itaipu seria, por consequência do Tratado que a constituiu,
exatamente aquela empresa que irrompe de lei e nenhuma melhor lei
que um Tratado ratificado.

Grau56 reforça a tese de singularidade de Itaipu, ao explanar sobre


a localização do empreendimento em águas internacionais, sem que
pertença ao Brasil ou ao Paraguai isoladamente.

Essa definição, note­‑se bem, ilumina o debate travado em torno


do caráter jurídico da ITAIPU Binacional: o Brasil, no pleno exercício
de sua soberania, afirmou o entendimento – aliás inafetável – de que as
águas do Rio Paraná, águas internacionais porque transfronteiriças,
são condominiais, enquanto bem público brasileiro e paraguaio, no tre‑
cho no qual implantado o empreendimento de que cogitamos.

Em síntese, trata­‑se de uma empresa pública dotada de territoriali‑


dade sui generis, pois é dotada de personalidade jurídica autônoma,
com gestão própria financeira e administrativa, bem como dotada de
responsabilidade técnica para estudar, projetar, dirigir e executar as
obras que tem por objeto.57 Para Reale, embora a atuação de Itaipu
tenha caráter regional, assim como a Organização dos Estados Ameri‑
canos – OEA ou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço – Ceca,
o empreendimento binacional deveria ser considerado pessoa jurídica

56
GRAU, Eros. Itaipu binacional: seu caráter jurídico e seu ordenamento jurídico.
Revista de Direito Administrativo, v. 231, p. 389-433, jan./mar. 2003.
57
Idem, ibidem.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

de Direito Internacional, da espécie dos organismos internacionais,


dotada de inequívoca natureza empresarial.58
A questão tributária foi uma preocupação apartada da estrutura‑
ção societária binacional. Afinal, a dupla tributação precisava ser evita‑
da. Para tanto, Reale conferiu contribuição ímpar ao conceber Itaipu
enquanto sociedade de economia mista, limitando a empresa às leis de
sociedade por ações.

Essa participação crescente do Estado nas atividades produtivas é


resultante da própria conjuntura tecnológica. Na realidade, certas ati‑
vidades fundamentais não estão mais em condições de serem desempe‑
nhadas por particulares, tal a soma de recursos e de conhecimentos
técnicos exigidos.59

O processo de desapropriação exigiu grande habilidade política


dos órgãos envolvidos. Além da questão econômico­‑financeira, havia
questões culturais que não poderiam escapar dos debates. A área lin‑
deira60 ao reservatório estava ocupada, e trouxe à empresa binacional
problemas que implicaram no ressarcimento a milhares de proprietá‑
rios rurais.61 A região deixou de produzir mais de 200 mil toneladas de
produtos agrícolas e afastou grupos autóctones itinerantes.62 Por sua

58
Idem, ibidem.
59
Parecer de Miguel Reale sobre a estrutura jurídica de Itaipu, publicado na revis‑
ta Problemas Brasileiros, n. 132, de agosto de 1974. Itaipu Binacional. Natureza
Jurídica da Itaipu. Curitiba: Itaipu Binacional, 2004. p. 51-61.
60
Refere-se à área atingida pela formação do lago de Itaipu e que o margeia, na
fronteira com o Paraguai, com cerca de 200 km ao longo do rio Paraná, entre Foz
do Iguaçu e Guaíra, e 1.460 km2 de área inundada.
61
Adquiridas mais de 6.913 propriedades, perfazendo o total de 100.607.7325 ha
de terras. LIMA, Ivone Teresinha Carletto de. Itaipu: as faces de um mega pro-
jeto de desenvolvimento. Niterói: Germânica, 2004. p. 306.
62
Dentre esses, destacamos o grupo indígena denominado Awá-Guarani, que vivia
numa área de, aproximadamente, 1500 hectares. Com a desapropriação das ter‑
ras do reservatório, indígenas dessa etnia foram transferidos, primeiro, para o

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Curso de Direito da Energia

vez, os cemitérios precisaram ser transferidos para locais estabelecidos


pelos munícipes ou de acordo com o desejo das famílias.63
Logo, podemos concluir que a área de influência de Itaipu
caracteriza­‑se por espaço territorial passível de aplicação de um poder
coercitivo binacional, considerado que não havia, naquele momento
histórico, instância comunitária para recepcionar o empreendimento
como se de sua competência fosse. Logo, considerando a escala geo‑
gráfica regional, conferida por instrumento jurídico próprio e binacio‑
nal, a competência para decidir sobre os atos de Itaipu caberia ao Brasil,
enquanto República Federativa, e ao Paraguai, na qualidade de Estado
unitário, que exerceriam seus poderes de forma soberana.
A Lei n. 5.899, de 5 de julho de 1973, foi editada pouco mais de dois
meses após Brasil e Paraguai firmarem o Tratado. Passaram, então, a ter
força cogente os mecanismos institucionais que viabilizavam a venda da
energia produzida pela usina binacional de Itaipu por meio de sistema de
cotas, que seriam repassadas para as concessionárias de serviço público. A
mesma lei, no art. 4o, designa as subsidiárias da Eletrobras, Furnas e Ele‑
trosul, para a aquisição da totalidade dos mencionados serviços de eletri‑
cidade de Itaipu. Esse percentual de repasse, antes variável anualmente,
tornou­‑se fixo a partir de 1994, em função do disposto na Lei n. 8.631, de
4 de março de 1993, bem como de sua regulamentação realizada pelo
Decreto n. 774, de 18 de março de 1993. Dessa forma, os volumes de po‑
tência e energia repassados aos concessionários são também denomina‑
dos quotas­‑parte da potência contratada da Itaipu e de energia vinculada.
A quota­‑parte da potência contratada da Itaipu é, por exemplo,
um dos recursos considerados nos balanços mensais dos concessioná‑
rios, para cálculo de novas necessidades de contratação de potência.

município de São Miguel do Iguaçu e depois, em 1997, parte deles para o muni‑
cípio de Diamante do Oeste, com grande área de matas e batizada pelos ocupan‑
tes de Tekoha-Añetete (aldeia verdadeira).
63
LIMA, Ivone Teresinha Carletto de. Itaipu: as faces de um mega projeto de de‑
senvolvimento. Niterói: Germânica, 2004. p. 334.

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Nesse sentido, a aquisição, pelos concessionários, da quota­‑parte da


potência contratada da Itaipu é considerada como uma modalidade de
suprimento contratual, utilizado pelos concessionários para atendi‑
mento aos seus compromissos de demanda e energia de carga própria.
Posteriormente, por meio do Decreto n. 4.550, de 27 de dezembro
de 2002, em seu art. 8o, que objetivou regulamentar o art. 19 da Lei n.
10.438, de 26 de abril de 2002, que altera o art. 4o da Lei n. 5.899, de
1973, estipulou que a Eletrobras é o agente responsável pela comercia‑
lização da energia elétrica de Itaipu consumida no Brasil, exercendo,
assim, a função de ser o Agente Comercializador de Energia de Itaipu,
se encarregando de realizar a comercialização da totalidade dos mencio‑
nados serviços de eletricidade, nos termos da regulamentação da Aneel.
Desde a década de 2000 o Paraguai tem buscado desenvolver o país
sob a ótica energética de forma bifrontal: por intermédio da revisão do
Tratado de Itaipu e na busca do desenvolvimento de outras hidrelétri‑
cas nas quedas d’água no interior do país. É forte o sentimento para‑
guaio contra o atual arranjo de Itaipu. Como exemplo, em maio de
2007 o jornal ABC Color, o de maior circulação no Paraguai, recepcio‑
nou a ida do presidente Lula a Assunção com editorial que ocupava
toda a primeira página intitulado “Brasil, um país imperialista e explo‑
rador”. O artigo relacionava a crescente violência contra os imigrantes
brasileiros, estimados em 500 mil à época e basicamente focados na
agroindústria (denominados “brasiguaios”), se as “injustiças” contra o
Paraguai, referentes a Itaipu, não fossem sanadas. Na visão paraguaia
daquela época, o exemplo boliviano, que havia conseguido forçar o
Brasil a rever para cima o preço do gás exportado, bem como a reesta‑
tização da refinaria da Petrobras mediante ocupação militar, devia ser‑
vir como referência e símbolo de resistência “imperialista” para as
negociações do preço da energia elétrica produzida por Itaipu Binacio‑
nal. Naquele momento histórico, o então candidato paraguaio a presi‑
dência Fernando Lugo prometia levar o Brasil à Corte de Haia, para
“recuperar a soberania energética” do país.

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Curso de Direito da Energia

Após a posse de Lugo no Paraguai, eleito com a revisão do Tratado


de Itaipu como uma de suas plataformas políticas, buscou­‑se a renego‑
ciação, que culminou, em 25 de julho de 2009, em acordo bilateral que
resultou nos seguintes pontos: (i) a liberação gradual da venda da ener‑
gia excedente do Paraguai para o mercado livre brasileiro; (ii) a tripli‑
cação do preço (de US$ 120 milhões para US$ 360 milhões) do preço
da energia elétrica vendida pelo Paraguai exclusivamente à Eletrobras;
(iii) financiamento, por Itaipu, de obras civis e eletromecânicas que fi‑
caram pendentes do lado paraguaio da usina, como seccionamento de
linhas de transmissão e uma torre turística com mirante e teleférico,
estimadas em US$ 90 milhões; (iv) Itaipu terá a dívida paraguaia audi‑
tada pela Contraloría General de la República del Paraguay; e (v) Itai‑
pu construirá, sem custo ao Paraguai, uma linha de transmissão de
500 kV ligando Itaipu à subestação de Villa Hayes, de forma a permitir
que o Paraguai consuma mais energia de Itaipu, alcançando, assim,
15% do consumo da usina.
Os recursos para construção serão desembolsados pelo Brasil por
meio do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul. Essa revisão
do Tratado ainda necessita ser regulamentada pelo Congresso Nacio‑
nal brasileiro, principalmente no que concerne à forma de venda da
energia paraguaia no mercado brasileiro.

4.6 A questão nuclear: da bomba à eletricidade.


O CNPq e a CNEN
Energia nuclear é a energia liberada numa reação nuclear, ou seja,
em processos de transformação de núcleos atômicos. Sua descoberta
está longe de ser algo recente. No século V a.C., Demócrito afirmou
que o Universo é composto por de uma constituição elementar única,
que é o átomo, que seria uma partícula indivisível, invisível, impenetrá‑
vel e animada por movimentos próprios.
A grande revolução científica que a Física constituiria, por sua vez,
veio com a descoberta de instrumentos capazes de modificar o núcleo

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

interno do átomo, bem como sua aceleração artificial, em grande número


e velocidade. Em outras palavras, foi a fissão e a fusão nuclear que viabi‑
lizou o emprego da energia atômica em todas as suas potencialidades.
O equacionamento dessas duas potencialidades pôde ser efetivado
em 2 de dezembro de 1942, com a utilização de barras de cádmio no
reator de Chicago, criando um reator nuclear com reação em cadeia
autossustentável. Esse momento histórico foi um ponto de inflexão
que muitos, corroborados pela aplicação militar deste invento, nos ar‑
tefatos empregados nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, chegam a
vislumbrar o início histórico da Era Nuclear, que teria sucedido a Era
Contemporânea, iniciada na queda da Bastilha em 1789 e finalizada
com o experimento de Chicago.
Com tamanha importância dessa repercussão tecnológica na so‑
ciedade atual, bem como na segurança de Estados, o Brasil não poderia
estar à margem da discussão. Para tanto, o momento em que a energia
nuclear se institucionaliza no país ocorre por intermédio da Lei
n. 1.310, de 15 de janeiro de 1951, de criação do Conselho Nacional de
Pesquisas – CNPq. Em que pese seu art. 1o prever que ele teria por fi‑
nalidade promover e estimular o desenvolvimento da investigação
científica e tecnológica em qualquer domínio do conhecimento, era
evidente a ênfase no interesse em desenvolver em especial o conheci‑
mento da tecnologia nuclear.
O § 3o do art. 3o prevê que o CNPq incentivaria, em cooperação
com órgãos técnicos oficiais, a pesquisa e a prospecção das reservas
existentes no país de materiais apropriados ao aproveitamento da ener‑
gia atômica, submetendo, por conseguinte, os minérios de urânio, tório,
cádmio, lítio, berílio, boro e os produtos resultantes de seu tratamento,
bem como a grafita e outros materiais discriminados pelo CNPq, a um
regime jurídico distinto aos demais minérios. É o Direito da Energia
que criava um discrímen epistemológico no Direito Minerário, que pas‑
sava a ser seccionado pelo interesse público adstrito a determinados ele‑
mentos químicos, haja vista sua repercussão tecnológica.

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Curso de Direito da Energia

O regime jurídico de comercialização dos minérios afetos à ativida‑


de nuclear encontrava fundamentação nos arts. 4o e 5o da presente Lei
que, em regra geral, submetia ao controle do Estado, por intermédio do
CNPq ou, quando necessário, do Estado Maior das Forças Armadas,
todas as atividades referentes ao aproveitamento da energia atômica,
submetendo a competência privativa do Presidente da República “orien‑
tar a política geral da energia atômica em todas as suas fases e aspectos”.
A criação do CNPq era uma vitória da corrente nacionalista, que
defendia que o Brasil deveria deter o conhecimento da produção da
energia nuclear, em face da internacionalista, que defendia que a políti‑
ca nuclear devia ter tratamento análogo às demais políticas de Estado
e, por conseguinte, um produto como outro qualquer em nossa balan‑
ça comercial. Para tanto, o presidente Getúlio Vargas nomeou o almi‑
rante Álvaro Alberto da Mota e Silva, que posteriormente conferiria
seu nome à usina de Angra I, como o primeiro presidente do CNPq.
Em que pese a fixação de uma política que buscava uma política
nuclear autônoma, regulamentada pelo Decreto n. 30.230, de 1o de
dezembro de 1951, o Decreto n. 30.583, de 21 de fevereiro de 1952,
criava a Comissão de Exportação de Materiais Estratégicos – Ceme,
que estava atrelada ao Ministério de Relações Exteriores e se encarre‑
garia de: (i) efetuar as vendas de urânio e tório e seus compostos e
minérios, na forma autorizada pelo art. 4o da Lei n. 1.310, de 1951;
(ii) aprovar e modificar os planos de exportação de quaisquer mate‑
riais estratégicos, de origem mineral ou vegetal, que tenham sido ou
venham a ser assim qualificados pelo Conselho de Segurança Nacio‑
nal; e (iii) dar o seu visto às faturas de exportação de materiais estra‑
tégicos, depois de desembaraçadas pelo Departamento Nacional de
Produção Mineral ou pelo Departamento Nacional da Produção Ve‑
getal, conforme sua origem. Era a corrente internacionalista que pos‑
sibilitava instrumentos jurídicos para a exportação de monazita aos
Estados Unidos, conforme demonstraria o Segundo Acordo Atômi‑
co Brasil – Estados Unidos.

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Para Brandão,64 Getúlio Vargas pretendia empregar sua habilidade


para alcançar seus interesses no bojo do conflito entre nacionalistas e
internacionalistas:

Contudo, em 3 de julho de 1952, o Presidente Getúlio Vargas


aprovaria as diretrizes propostas pelo Conselho de Segurança Nacional
(CSN) relativas à questão nuclear. Essas diretrizes reforçariam a exigên‑
cia de compensações específicas em termos de auxílio técnico e provisão
de materiais ao Brasil. Nestes mesmos termos, deve­‑se entender a apro‑
vação da Exposição de Motivos n. 32 do CNPq, de caráter secreto, que
seria assinada pelo Presidente Getúlio Vargas e pelo Conselho de Segu‑
rança Nacional. Este documento, datado de 12 de outubro de 1952,
reafirmaria toda uma linha de proposta autonomista para o desenvolvi‑
mento nuclear brasileiro. Entre as suas propostas estavam: realização de
pesquisa, prospecções, mineração, separação e concentração de miné‑
rios; tratamento químico de minérios atômicos; metalurgia do urânio
nuclearmente puro para uso em reatores atômicos; produção de urânio
enriquecido para uso em reatores atômicos; reatores atômicos, quer
para a produção de energia, quer para fins experimentais e de pesquisa;
ampliação das nossas equipes de cientistas e tecnologistas, com recurso
à ciência e à tecnologia dos EUA, França, Itália, Inglaterra, Alemanha,
Suíça, Escandinávia, Holanda, Canadá e, possivelmente, Índia e Japão.

Essa dialética entre nacionalistas e internacionalistas não pode ser


dissociada de três fatores fundamentais para a revisão do modelo bra‑
sileiro até então vigente:
(i) mudança da política nuclear dos EUA: O presidente Dwight
Eisenhower, dos EUA, discursa na ONU em 1953 sobre a
nova política nuclear americana, a “Átomos para a Paz”, em
que apresenta os conceitos da ampla disseminação sobre ener‑
gia atômica e o restrito controle da produção nuclear;

64
BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. O negócio do século: o acordo de cooperação
nuclear Brasil – Alemanha. 2002. Dissertação (Mestrado em História) – Univer‑
sidade Federal Fluminense, Niterói, 2002. p. 13.

236

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Curso de Direito da Energia

(ii) decisões do governo Café Filho: a Exposição de Motivos do


CSN n. 1.017, de 25 de novembro de 1954, continha projeto
sobre Diretrizes para um Programa Nacional de Energia Atô‑
mica, que conferia tratamento privilegiado aos EUA;65 e
(iii) a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, instituída pela Re‑
solução da Câmara dos Deputados n. 49, de 10 de fevereiro de
1956, para investigar o problema da energia atômica no Brasil.
Ante esses desafios, Juscelino Kubitschek, enquanto candidato à
presidência, propôs no Plano de Metas (n. 2) a fabricação nacional de
combustível nuclear, a instalação de usinas termonucleares e a forma‑
ção de técnicos especializados. Após sua eleição, o presidente Kubits‑
chek criou as condições para alcançar os objetivos propostos em
campanha, por meio da instituição de dois órgãos, a saber:
(i) o Instituto de Energia Atômica, por meio do Decreto n. 39.872,
de 31 de agosto de 1956, nos moldes do convênio firmado en‑
tre o Conselho Nacional de Pesquisas e a Universidade de São
Paulo – USP;66 e
(ii) a Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN, que, su‑
bordinada à Presidência da República, estava encarregada de

65
Para Brandão, esse entendimento produziu alguns documentos, dentre eles
uma minuta de Tratado de Pesquisas Minerais para a elaboração de um progra‑
ma conjunto entre o Brasil e os Estados Unidos para a prospecção de minérios
atômicos, datado de 9 de março de 1954, e que seria válido por dois anos; o
Segundo Documento era uma nota da Embaixada norte-americana, demons‑
trando o interesse dos Estados Unidos na prospecção de urânio do solo brasi‑
leiro, com a participação de técnicos dos dois países, com data de 22 de março
de 1954.
66
Seu objetivo era desenvolver pesquisas sobre a energia atômica para fins pacífi‑
cos; produzir radioisótopos para estudos e experiência em qualquer ponto do
país; contribuir para a formação em ciência e tecnologia nucleares, de cientistas
e técnicos provenientes das várias unidades da Federação; estabelecer bases, da‑
dos construtivos e protótipos de reatores destinados ao aproveitamento da ener‑
gia atômica, para fins industriais, de acordo com as necessidades do país.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

propor as medidas julgadas necessárias à orientação da políti‑


ca geral da energia nuclear.
A Lei n. 4.118, de 27 de agosto de 1962, além de transformar a
CNEN em uma autarquia, buscava concretizar o Plano Trienal do pre‑
sidente João Goulart, que vislumbrava um esgotamento progressivo
do potencial hidráulico, a necessidade de colaboração entre governo e
iniciativa privada, a política de independência externa de suprimento
energético e o emprego das matérias­‑primas nucleares do Brasil. Em 23
de novembro de 1962 foram firmados tratados de acordo de coopera‑
ção de uso pacífico da energia nuclear perante a Itália (Decreto Legis‑
lativo n. 13) e com o Paraguai (Decreto Legislativo n. 14). Por sua vez,
o Decreto n. 51.621, de 14 de dezembro de 1962, tornou públicas todas
as ratificações e adesões por parte de diversos países ao Estatuto da
Agência Internacional de Energia Atômica, adotado em Nova York, a
26 de outubro de 1956.
Interessante notar ainda que, 18 dias antes de ser deposto pelo re‑
gime militar, o presidente João Goulart autorizou a CNEN, pelo De‑
creto n. 53.735, de 18 de março de 1964, a organizar subsidiária sob o
nome Companhia de Materiais Nucleares do Brasil – Comanbra, que
tinha como finalidade lavra, beneficiamento, refino, tratamento quími‑
co e comércio dos minérios nucleares de interesse para a produção de
energia nuclear, bem como a produção e o comércio de materiais liga‑
dos à utilização da energia nuclear.
No início do regime militar, o governo Castello Branco firmou
tratados de acordo de cooperação de uso pacífico da energia nuclear,
que culminou no acerto perante Portugal, Suíça, Estados Unidos, Bo‑
lívia, Peru e Israel, bem como buscou a adesão do Brasil ao Tratado de
Proscrição de Armas Nucleares na América Latina (Tratado de Tlate‑
lolco). Por sua vez, o Tratado de Não Proliferação (TNP) não contou
com adesão imediata do país, uma vez que o governo considerou, den‑
tre outros argumentos, que ele criava uma discriminação tecnológica
entre Estados soberanos.

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Curso de Direito da Energia

Ato contínuo, a CNEN firmaria, em abril de 1968, convênio


com a Eletrobras para a instalação, em Angra dos Reis,67 da primeira
usina nucleotérmica do Brasil. Leite68 expõe com precisão aquela cir‑
cunstância.

A questão de uma primeira usina nuclear foi discutida no âmbi‑


to de um grupo de trabalho sobre reatores de potência, o Comitê de
Estudos de Reatores de Potência, criado pela CNEN em janeiro de
1965 e extinto em julho do mesmo ano. Foi ao tempo do governo
Costa e Silva que o empreendimento tomou consistência. Por meio
de dois decretos, subordinava a CNEN ao Ministério de Minas e
Energia (Decreto n. 60.900/1967) e constituía grupo de trabalho es‑
pecial, com o objetivo de propor mecanismo de cooperação entre a
CNEN e a Eletrobrás.
O correspondente relatório, em setembro de 1967, sugeria as di‑
retrizes para a cooperação CNEN­‑Eletrobrás e continha anexo com os
fundamentos essenciais para a implantação de centrais nucleares, sua
inter­‑relação com o quadro de energia elétrica, além de apresentar, so‑
bre esse mesmo tema, um panorama internacional.

A governança da CNEN sofreu alteração por força do Decreto


n. 66.235, de 19 de fevereiro de 1970. No intuito de adequar a CNEN
à Reforma Administrativa, a gestão passa a ser conduzida por uma
Comissão Deliberativa, integrada pelos cinco Membros, e por órgãos
técnicos e de administração. Dezoito meses depois, a Lei n. 5.740, de
1o de dezembro de 1971, autoriza a CNEN a constituir a sociedade
por ações Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear – CBTN,
com o objetivo de: (i) realizar a pesquisa e a lavra de jazidas de miné‑

67
Nos termos do Decreto n. 66.932, de 21 de julho de 1970, que declarou de utili‑
dade pública, para fins de desapropriação, áreas de terra destinadas à instalação
de uma central nuclear de energia elétrica no Município de Angra dos Reis, no
Estado do Rio de Janeiro.
68
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 182.

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rios nucleares e associados; (ii) promover o desenvolvimento da tec‑


nologia nuclear mediante a realização de pesquisas, estudos e projetos;
(iii) promover a gradual assimilação da tecnologia nuclear pela indús‑
tria privada nacional; e (iv) construir e operar instalações de trata‑
mento de minérios nucleares. Leite, então ministro de Minas e
Energia do presidente Médici e signatário da presente Lei, expõe a
seguinte justificativa:

[...] antes das decisões sobre a primeira usina nuclear e no do‑


mínio da pesquisa mineral em torno de minerais atômicos, pareceu­
‑me, em 1971, que a solução já adotada para ativação da pesquisa e
da tecnologia mineral em geral, por meio do estabelecimento da
Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, poderia servir de
modelo para o desenvolvimento tanto da pesquisa científica e tecno‑
lógica como na parte geológica no domínio nuclear. Propus então ao
presidente Emílio Médici a criação da Companhia Brasileira de Tec‑
nologia Nuclear – CBTC, à qual se incorporavam dois dos grandes
laboratórios de pesquisa vinculados ao governo federal: um no cam‑
pus universitário de Belo Horizonte, Instituto de Pesquisas Radioa‑
tivas – IPR, e outro no Rio de Janeiro, Instituto de Energia Nu­clear – IEN,
além do laboratório de dosimetria.69 O IEA, da Universidade de São
Paulo, já havia sido formalmente desligado da administração federal
em setembro de 1970.70 O laboratório de Piracicaba, localizado na
Escola Superior de Agricultura Luis de Queirós – Esalq, nunca esti‑
vera vinculado à Comissão de Energia Nuclear. Na formação da
CBTN, a ela se incorporava a bem treinada equipe de pesquisa geo‑
lógica existente da CNEN, além dos equipamentos especificamente
ligados à sua atividade.

69
Essa realidade somente foi consubstanciada pelo Decreto n. 70.855, de 21 de ju‑
lho de 1972.
70
Importante destacar que essa formalização somente ocorre por força do Decreto
n. 67.620, de 19 de novembro de 1970, que extingue o Instituto de Energia Atô‑
mica – IEA, como Órgão Integrante da Comissão Nacional de Energia Nu­
clear – CNEN nos termos do art. 114 do Regulamento aprovado pelo Decreto
n. 51.726, de 19 de fevereiro de 1963, e dá outras providências.

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Curso de Direito da Energia

A década de 1970 ainda reservava algumas das mais importantes


alterações legislativas. Dentre elas, o art. 15 da Lei n. 5.740, de 1o de
dezembro de 1971, que fazia com que a União destinasse à CNEN, a
título de contribuição para o desenvolvimento da tecnologia nuclear,
0,5% dos dividendos que lhe coubessem dos respectivos capitais da
Petrobras e na Eletrobras; já, o Decreto n. 70.855, de 21 de julho de
1972, dizia que a mesma parcela seria calculada sobre os respectivos
capitais sociais acusados no balanço do último exercício.
Por sua vez, 1974 representava um ano de inflexão. Em um perío‑
do pós­‑crise do petróleo, com parcos recursos externos, o setor nucle‑
ar não poderia quedar em apartado. Nesse sentido, a Lei n. 6.189, de 16
de dezembro de 1974, alterou a composição da CNEN e criou a Em‑
presas Nucleares Brasileiras Sociedade Anônima – Nuclebrás, que su‑
cedeu a CBTN. Era a produção normativa de um sistema societário
que visava ao domínio nacional da cadeia produtiva da energia nuclear
e que, nas palavras de Leite, produziram o mais desastrado investimen‑
to público de toda história do Brasil.71 A veemência dessa afirmativa
não é injustificada. Inicialmente, o governo entendia que havia um es‑
gotamento da capacidade de geração hidrelétrica. Igualmente, havia a
compreensão de que o país poderia garantir uma capacidade mínima de
expansão da indústria local de equipamentos nucleares. Todavia, a
energia cresceu muito menos do que apontavam as projeções, houve
uma descontinuidade administrativa na gestão de Furnas, principal‑
mente no momento de construção de Angra I, a engenharia de novos
projetos estava a cargo do então neófito Nuclen e, como se não fosse
suficiente, os Estados Unidos impediram o fornecimento de urânio en‑
riquecido às nações que não tivessem firmado o TNP.
Em que pese o Brasil ter iniciado a construção de sua primeira
usina nucleotérmica nos anos 1970, em Angra dos Reis, no Rio de Ja‑

71
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 221.

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neiro, em local com suspeitas de instabilidade geológica, ela foi inaugu‑


rada apenas na década seguinte, em 1982. E as dificuldades do programa
observadas desde a criação da CNEN, em 1970, continuavam a se de‑
monstrar em diversas frentes. Na questão tecnológica, a empresa alemã
fabricante (Westinghouse) recusara­‑se a transferir a tecnologia ao Bra‑
sil. O principal pretexto era de que a tecnologia pudesse ser empregada
para fins não pacíficos.
Sob a ótica jurídica, houve a edição de três normas antes da
Constituição Federal de 1988 que remodelaram a relação da socieda‑
de em função da matriz nuclear. Inicialmente, o Decreto­‑Lei n.
1.809, de 7 de outubro de 1980, instituiu o Sistema de Proteção ao
Programa Nuclear Brasileiro – Sipron. O objetivo dessa iniciativa
era conferir uma organicidade mínima ao projeto nuclear brasileiro,
assegurando o planejamento integrado, conciliando a necessidade de
treinamento de mão de obra e a observância do quesito segurança do
Programa Nuclear Brasileiro, de seus técnicos, da população e do meio
ambiente.
Por sua vez, alguns dias depois, o Decreto­‑Lei n. 1.810, de 23 de
outubro de 1980, dispôs sobre a construção de usinas nucleoelétricas e
conferiu exclusividade dos estudos, projetos e da construção a Empre‑
sas Nucleares Brasileiras S.A. – Nuclebrás. O relacionamento da Nu‑
clebrás com concessionárias de serviço público de energia elétrica seria
realizado mediante os termos do art. 3o do Decreto­‑Lei, que previa que
a autorização para a construção e operação de usina nucleoelétrica de
que trata o art. 10 da Lei n. 6.189, de 16 de dezembro de 1974, estará
condicionada à contratação de forma global pela concessionária, com a
Nuclebrás ou sua controlada, do fornecimento de todos os serviços de
engenharia, equipamentos e materiais necessários à construção, à mon‑
tagem e ao comissionamento da usina.
Por fim, o Decreto­‑Lei n. 1.982, de 28 de dezembro de 1982, dis‑
pôs sobre o exercício das atividades nucleares incluídas no monopólio
da União e o controle do desenvolvimento de pesquisas no campo da

242

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energia nuclear. Essa norma delegou à CNEN e à Nuclebrás o mono‑


pólio, de forma que o desenvolvimento de pesquisas no campo da
energia nuclear ficaria sob o controle exclusivo da União, podendo ser
realizados convênios perante terceiros.
Tal arcabouço jurídico não pode ser analisado em apartado de duas
situações de fato ocorridas naquela década. A primeira foi o acidente
no reator da usina nucleotérmica de Chernobil,72 na então União Sovié‑
tica e atual Ucrânia, ocorrida em 26 de abril de 1986, e que contaminou
radioativamente uma área equivalente a três vezes o tamanho do Esta‑
do do Rio de Janeiro, com determinadas áreas sendo consideradas ina‑
bitáveis por tempo indeterminado. Esse evento provocou uma comoção
mundial em torno da necessidade de aprimorar a segurança de tais ins‑
talações. No ano seguinte, em setembro, foi encontrado por catadores
de lixo um aparelho utilizado em radioterapias na zona central de Goi‑
ânia, Estado de Goiás. Sob pretexto de reaproveitar o chumbo, a cáp‑
sula de césio foi aberta, de forma que ficou exposto o cloreto de
césio­‑137, um sal que emite brilho azulado. Com o desmonte e repasse
de suas partes a terceiros, houve contaminação em cadeia, afetando a
saúde de centenas de pessoas.
Os legisladores, atentos aos eventos e ao clamor popular, e em
processo constituinte, fizeram com que a Constituição Federal de 1988
fosse a primeira a tratar de forma explícita o uso e emprego da energia
nuclear. O inciso XXIII do art. 21 descreve claramente como compe‑
tência da União a exploração dos serviços e das instalações nucleares
de qualquer natureza, bem como o exercício do monopólio estatal so‑
bre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a indus‑
trialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados,

72
A usina de Chernobil localiza-se na Ucrânia, a 18 quilômetros a noroeste da ci‑
dade de Chernobil e a 16 quilômetros da fronteira com a Bielorrússia. A usina, a
110 quilômetros ao norte de Kiev, era composta por quatro reatores, cada um
capaz de produzir um gigawatt de energia elétrica. A usina de Chernobil foi
desativada em 12 de dezembro de 2000.

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atendido o seu uso pacífico e mediante aprovação do Congresso Na‑


cional, nos termos do inciso XIV do art. 49.
Das oito usinas nucleares inicialmente previstas nos anos 1970,
apenas Angra I e II foram concluídas, depois de construções marcadas
por problemas técnicos e atrasos de cronograma. Segundo dados ofi‑
ciais, cerca de US$ 750 milhões já foram gastos para a compra e arma‑
zenamento de equipamentos de Angra III. Todavia, esses pontos serão
posteriormente tratados enquanto geração de energia elétrica, a ser in‑
serida no Tomo II – Do Modelo Institucional.

4.7 O “Ouro negro”: o sistema internacional e a Petrobras


Com o término da Segunda Grande Guerra em 1945, o sistema
internacional do petróleo passava por grandes transformações, que po‑
dem ser sintetizadas pela franca inserção de novos agentes econômicos
– e por conseguinte, de países –, com interesse no setor, considerado
seu caráter estratégico em face da soberania nacional. Segundo Mari‑
nho Jr.,73 podem­‑se identificar três períodos que, adaptados à lógica
jurídica, constituem o exercício do Direito Internacional associado às
prerrogativas societárias de cada época.
a) período da Standard Oil (1870­‑1911): estrutura societária
personalíssima, centralizada na figura de John D. Rockefel‑
ler, que valorizava o refino e o transporte do petróleo em
detrimento da lavra, considerada uma “loteria geológica”.
Valorizou as companhias de estrada de ferro para transportar
este insumo e se valeu da condição de monopolista para im‑
por tarifas exorbitantes de transporte aos produtores de pe‑
tróleo, fato que possibilitou a quebra de concorrentes e a
unificação societária horizontal de suas empresas em 1878. A
partir de então, Rockefeller conseguiu criar uma elite con‑

73
MARINHO JR., Ilmar Penna. Petróleo: soberania & desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Bloch, 1970. p. 71.

244

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Curso de Direito da Energia

troladora da sociedade, integrar horizontalmente o refino,


monopolizar o transporte e exercer grande controle na dis‑
tribuição nos Estados Unidos e no exterior, até que a Supre‑
ma Corte americana dissolveu a Standard Oil em 1911 sob o
argumento de prática econômica abusiva;
b) período da formação do cartel internacional (1911­‑1939): im‑
portante inflexão na indústria do petróleo pôde ser percebida
em 1911, pois: (i) a Standard Oil foi fragmentada, fato que
impôs o conceito de “fair competition” à sociedade; (ii) Henry
Ford desenvolvera método de produção automobilístico que
permitiu sua indústria passar de 800 carros produzidos em
1896 para 600.000 em 1911, fato que abria forte demanda para
a indústria de petróleo suprir os combustíveis necessários a
toda essa frota veicular; (iii) Henri Deterding criou o conceito
de “distribuição geográfica” da produção petrolífera por in‑
termédio da Shell, criando nova forma a mitigar os riscos po‑
líticos (e jurídicos) como o imposto à Standard Oil pela
Suprema Corte americana, fato que culminou na descoberta
de petróleo na Indonésia, no México e na Venezuela; (iv) a
inserção da indústria russa de petróleo no mercado europeu,
principalmente na região da volga­‑caspiana e do Mar do Nor‑
te; e (v) a importância do petróleo nos exercícios militares da
Primeira Grande Guerra.
O conjunto dessas variáveis culminou no “Acordo de Achnacar‑
ry”, firmado em 17 de setembro de 1928 por três empresas petrolífe‑
ras74 que, fundamentadas em critérios geográficos,75 preservavam as
posições originais de cada empresa e ofertavam garantias de que uma
empresa não interferiria na região geográfica de outra. Estava estabele‑

74
Royal Dutch Shell, Standard Oil of New Jersey e a Anglo-Persian.
75
Que nas palavras de Deterding, “let us keep the position as it is”.

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cido o cartel. Marinho Jr.76 expõe de forma sintética como esse Acor‑
do se transformou ao longo do tempo, nas palavras de Enrico Mattei,
no “Cartel das Sete Irmãs”, bem como sua importância para unir em‑
presas com práticas comerciais hostis a competição com um objetivo
comum.

Mas, retomando o fio de nosso argumento, posteriormente ao


“Acôrdo de Achnacarry”, houve quatro convenções, realizadas em
novembro de 1929, janeiro de 1930, dezembro de 1932 e junho de
1934, respectivamente. Tôdas tendo como objetivo a regularização dos
mercados de consumo e o fortalecimento do cartel. Nas duas primeiras
convenções realizadas em Nova York, delas só participariam os “3
Grandes”, prèviamente identificados.
Na convenção de 1929 foi criado um organismo central compos‑
to por representantes credenciados das companhias signatárias do
Acôrdo, a fim de executarem as medidas previstas no as is principles.
Na convenção de 1930, através do Memorandum for European
Market, foram estabelecidas as cotas para cada mercado e fixado o pre‑
ço dos produtos petrolíferos de acordo com a situação de cada merca‑
do. O documento de 1930 foi revisto em 1932 pelo comitê de Londres
e foi substituído por um novo acordo: The Head of Agreements, subs‑
crito não somente pelo grupo de Achnacarry, mas pela Gulf Oil Com‑
pany, a Texas Company,77 a Socony Vacuum78 e a Standard Oil of
California. Êsse último documento precisava certos pontos do acordo
as­‑is, tendo aplicação em todos os mercados fora dos Estados Unidos
para a produção, refinação, exportação e distribuição. Além disso, pre‑
via a existência de um comitê incumbido da produção, sediado em
Nova York, e outro, sediado em Londres, encarregado da distribuição.
Como os problemas de aplicação do The Head of Agreements se
tornaram cada vez mais difíceis de equacionar, numa reunião convoca‑
da em Londres em 1934, convencionou­‑se um novo acordo: o Draft

76
MARINHO JR., Ilmar Penna. Petróleo: soberania & desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Bloch, 1970. p. 102-103.
77
Posteriormente, se transformou em Texaco Inc.
78
Posteriormente, se transformou em Socony Mobil Oil Co.

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Curso de Direito da Energia

Memorandum of Principles. O acordo, considerado como “ultra­


‑secreto” pelas companhias pactuantes, devia aplicar­‑se em todos os
países do mundo, exceto nos Estados Unidos. Previa uma revisão das
cotas em diversas circunstâncias e estipulava que “os preços seriam
mantidos em todos os mercados numa base que rendesse um lucro
conveniente sobre um investimento razoável, levando­‑se em conta a
necessidade de incentivar o consumo do petróleo”.

c) período do intervencionismo do Estado (1938­‑1960):79 deter‑


minadas características causaram uma nova geografia energé‑
tica mundial, quais sejam: (i) a iminência da Segunda Grande
Guerra e a valorização dos nacionalismos; (ii) a alta pulveriza‑
ção geográfica da produção petrolífera; (iii) a instituição do
monopólio estatal do petróleo no México, fato que criou a
Petroleos Mexicanos – Pemex em 1938; (iv) a reestruturação,
na Itália, da Ente Nazionale Idrocarburi – ENI, promovida a
partir de 1945 por Enrico Mattei; (v) a instituição da fórmula
de participação de mercado “50­‑50” na Venezuela em 1948;
(vi) a nacionalização do petróleo no Irã a partir de 1951; e (vii)
a criação da Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras em 1953 no
Brasil, concomitante à fixação do monopólio estatal.
Em que pese haver buscas de petróleo no Brasil desde a segunda
metade do século XIX, somente em 1953, em um período caracteriza‑
do mundialmente de intervencionismo estatal na economia petrolífera,
pôde­‑se afirmar que o Brasil inseriu­‑se no mercado de hidrocarbone‑
tos. Convém pormenorizar como as discussões internas se procederam
até chegarmos a esse modelo microeconômico.
Em 1945, o Brasil, que havia integrado o grupo de países vencedo‑
res da Segunda Grande Guerra, encerrava quase que concomitante‑

79
Importante destacar que Winston Churchill já havia defendido, em julho de
1914 no Parlamento inglês, a instituição de mecanismos de intervenção estatal na
economia do petróleo, principalmente para garantir a soberania marítima inglesa
na Primeira Grande Guerra.

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mente o ciclo do governo do presidente Vargas. Afinal, não havia


sustentação política para manter um governo outorgado que havia apoia‑
do guerra na Europa, inclusive com o envio de tropas, para defender os
regimes democráticos.
Com a queda do presidente Vargas e a promulgação da Constitui‑
ção de 1946, houve a manutenção da propriedade da superfície distinta
da do subsolo, autorizando, contudo, concessões de pesquisa e explo‑
ração de petróleo a brasileiros e a sociedades empresárias organizadas
no país.80 A partir de então, foi travado um grande debate em relação à
política que o petróleo deveria adquirir no país.
Havia basicamente dois grupos políticos que pleiteavam interesses
opostos. O primeiro defendia a necessidade de uma política internacio‑
nalista, que admitia a necessidade de empresas estrangeiras investirem
no Brasil, por entender que o país não tinha capital, técnica nem tecno‑
logia para essa empreitada, de forma que “o petróleo ia ficar debaixo da
terra”, caso não se admitisse a atuação de empresas internacionais.
Por seu turno, os nacionalistas, que empregavam o bordão “O pe‑
tróleo é nosso!”, tiveram o ano de 1948 como ponto de inflexão. Na‑
quele ano, que culminou na morte de Monteiro Lobato, na criação da
Comissão Estudantil de Defesa do Petróleo pela União Nacional dos
Estudantes – UNE, e na criação do Centro de Estudos e Defesa do
Petróleo do Clube Militar, estavam lançadas as bases do discurso na‑
cionalista. Assim, havia a defesa do monopólio estatal do petróleo por

80
Dispunha o art. 141 da Constituição de 1946:
A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança indivi‑
dual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa
indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção
intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se
assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indeniza‑
ção ulterior.

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meio da criação de mecanismos eficazes do Estado, que incluiria a cria‑


ção de uma empresa nacional para a exploração do “ouro negro”.

Pelo que se vê nas ruas, há um grupo numeroso e barulhento que


pede licença para discordar. O lançamento oficial do Centro Nacional
de Estudos e Defesa do Petróleo mobiliza entusiasmados participan‑
tes de norte a sul do país, que começam a se articular regionalmente a
fim de promover manifestações e eventos. Com apoio do Partido Co‑
munista do Brasil, os diretórios do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio
Grande do Sul já estão com sua estrutura praticamente montada. Estão
previstos para junho mais de uma dúzia de comícios e conferências.
Figuras de destaque na vida política e cultural brasileira, como o artis‑
ta Emiliano Di Cavalcanti e o arquiteto Oscar Niemeyer, já manifesta‑
ram seu apoio ao movimento. Face ao clamor popular, a tramitação do
estatuto no Congresso deve ser atribulada. Os votos favoráveis à me‑
dida podem escorrer das mãos do governo como um punhado de pe‑
tróleo cru.81

O centro militar, que posteriormente alterou o nome para Centro


de Estudos e Defesa do Petróleo – Cedpen, identificou o general Feli‑
císsimo Cardoso,82 que o presidiu, como o maior interlocutor dos na‑
cionalistas e elemento indispensável para a criação da Petrobras,
chegando a ser denominado “General do Petróleo”. A campanha de
“O petróleo é nosso!” chegou a ter a intensidade de suas discussões na
sociedade comparada com aquelas destinadas a buscar a abolição da
escravatura na segunda metade do século XIX.
O segundo governo do presidente Vargas (1951­‑1954) reservava
grandes inovações na matriz industrial do país. Em 15 de março de 1953

81
Combustível na fogueira. Campanha ‘O Petróleo é Nosso’ ganha força e organi‑
zação com criação de um novo órgão. Meta é derrubar o estatuto de Dutra e criar
estatal para cuidar das reservas brasileiras. Veja, maio de 1948.
82
Era filho do marechal Manuel Joaquim Ignácio Cardoso, irmão do general Leô‑
nidas Cardoso, pai do tenente-coronel Joaquim Ignácio Baptista Cardoso, avô
do contabilista e escritor Felicíssimo Cardoso Neto e tio do sociólogo e ex-
presidente da República do Brasil, Fernando Henrique Cardoso.

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é inaugurada a primeira montadora de automóveis do Brasil. A Volkswa‑


gen se instalava no então periférico bairro paulistano do Ipiranga. Essa
simbologia não passara despercebida por Vargas, que enunciara que o
feito correspondia a uma verdadeira “independência” tecnológica do
Brasil. Mas os veículos automotores a serem produzidos no Brasil pre‑
cisavam ser movidos por uma energia igualmente nacional.
Assim, industrializar o país impunha a necessidade de buscar no‑
vas fontes energéticas. O modelo encontrado, após intensas discus‑
sões na sociedade, foi a de se explorar sistematicamente o petróleo por
meio de uma sociedade de economia mista, monopolista, com capital
majoritário da União. Nessa linha foi publicada a Lei n. 2.004, de 3 de
setembro de 1953, bem como o Decreto n. 35. 308, de 2 de abril de 1954,
que criavam a Petrobras com duas atividades distintas: pesquisa de
petróleo e as operações de produção, transporte, refino e comerciali‑
zação de petróleo e seus derivados.83 Nesse cenário, coube ao Conse‑
lho Nacional do Petróleo – CNP o controle e a fiscalização do
monopólio exercido pela estatal, bem como a fixação de preços e o
repasse de recursos. Leite84 pormenoriza como a Petrobras passara a
exercer suas atividades.

Ao ser constituída, a Petrobras ficou com responsabilidade sob


dois grupos distintos de atividade: de um lado a pesquisa do petróleo
e, de outro, todas as operações de produção, transporte, refino e co‑
mércio do petróleo e seus derivados.
No primeiro grupo de atividades, passou a Petrobras a exercer
algumas funções que caberiam normalmente ao próprio Estado, como
a da atividade geológica geral do País, quase inexistente. As iniciativas

83
Exceções ao monopólio da sociedade de economia mista foram concedi‑
das apenas às refinarias de Petróleo de Manguinhos S.A. e Ipiranga S.A.,
que já estavam em operação quando se instituiu o regime de monopólio
da União.
84
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 106-107.

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de alto risco no domínio da pesquisa tinham, além do mais, caráter


pioneiro, sendo justificável a atribuição de recursos públicos, a fundo
perdido, para essas finalidades, pelo menos nos primeiros anos, já que
se havia decidido pelo monopólio. Para o segundo grupo de atividades,
desde logo com caráter empresarial potencialmente rentável e sem
grande risco, seria adequado prever o emprego de recursos de capital,
e dos resultados da própria atividade empresarial, além de financia‑
mento às taxas e condições do mercado.

A década de 1950 ainda pode ser destacada para o setor de petró‑


leo como momento em que: (i) se inicia a operação da Refinaria Presi‑
dente Bernardes – RPBC, em Cubatão, Estado de São Paulo, em 1955;
(ii) se descobre petróleo em Nova Olinda, no Estado do Amazonas,
euforia que posteriormente se transformou em frustração pelo fato de
a exploração ter sido considerada insatisfatória para exploração co‑
mercial; e (iii) se inicia, em 1956, a operação portuária do Terminal de
Madre de Deus, na Bahia, fato que viabilizou o transporte do petróleo
para refino em Cubatão. Como resultados mais relevantes deste perío‑
do, houve um significativo aumento das pesquisas geocientíficas e um
consistente processo de substituição de importações, exemplificado
no fato de que a RPBC passara a adquirir no país quase 80% de seus
suprimentos.
Os anos 1960 reservavam novos embates rumo à soberania energé‑
tica dos Estados nacionais. Em setembro de 1960, os maiores países
exportadores de petróleo de então (Arábia Saudita, Venezuela, Kuait,
Iraque e Irã, sendo que o Catar encontrava­‑se na qualidade de obser‑
vador) se reuniram em Bagdá e anunciaram a criação de uma entidade
para enfrentar as companhias internacionais de petróleo, que passou a
ser denominada Organização dos Países Exportadores de Petróleo –
Opep. Nas palavras de Fadhil Al­‑Chalabi, que passaria a ser o secretário­
‑geral adjunto da Opep, a entidade representava “o primeiro ato
coletivo de afirmação da soberania por parte dos exportadores de pe‑
tróleo e o primeiro momento decisivo nas relações econômicas inter‑

251

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nacionais em direção ao controle dos Estados sobre os recursos


naturais”.85 O Cartel das Sete Irmãs encontrava um contraponto fun‑
dado em Estados soberanos, considerados então de “terceiro mundo”86,
que, dentro de suas limitações, começavam a fazer valer seus interesses
no mercado internacional de petróleo.
No Brasil, a Petrobras começava a definir os novos caminhos da
lavra. Na década de 1960, as universidades brasileiras começaram a for‑
mar regularmente turmas de geólogos. Em 1961, a Petrobras construiu
sua primeira refinaria, no município fluminense de Duque de Caxias
(Reduc), que passava a produzir óleos básicos para lubrificantes, die‑
sel, gasolina, dentre outros. O primeiro posto de gasolina da Petrobras
era inaugurado em Brasília.
No mesmo ano, a difusão do controvertido Relatório Link, reali‑
zado pelo geólogo norte­‑americano Walter K. Link, ex­‑funcionário da
Standard Oil e contratado pelo governo brasileiro para apontar as pos‑
síveis regiões com óleo, realizou algumas conclusões que podem ser
resumidas da seguinte forma: (i) as bacias sedimentares terrestres, de
formação paleozoica (Marajó, Acre, Baixo Amazonas, Médio Amazo‑
nas, Paraná e Parnaíba) não deveriam ter prioridade para perfurações
com a tecnologia então disponível; (ii) a plataforma marítima foi apon‑
tada como a grande fonte de petróleo e de gás natural do Brasil; (iii) a
Petrobras deveria investir na prospecção e lavra no exterior, respeitada
a necessidade de haver condições políticas e geológicas favoráveis; (iv)
a bacia terrestre do Estado de Sergipe deveria ser prospectada após

85
YERGIN, Daniel. O Petróleo. Uma história mundial de conquistas, poder e di-
nheiro. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 590.
86
Terceiro Mundo é um termo da Teoria dos Mundos, cunhado pelo demógrafo
francês Alfred Sauvy em 1952, que propunha a ideia inspirado na proposição do
Terceiro Estado usada na Revolução Francesa. Originado no período de Guerra
Fria para descrever os países que se posicionaram como neutros, não se aliando
aos países que defendiam o capitalismo, polarizado pelos Estados Unidos, tam‑
pouco aqueles que propagavam o socialismo, representado pela União Soviética.

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1961; e (v) no tocante às bacias sedimentares terrestres, apenas a do


Alto Amazonas mereceria apreço, após aperfeiçoamentos na geofísica.
O engenheiro Marcos Assayag, gerente geral de Engenharia Básica do
Centro de Pesquisas da Petrobras – Cenpes,87 expõe com franqueza e
clareza o pensamento nacionalista em relação ao Relatório Link.

Meu pai, já falecido, um nacionalista, não se conformava com isto


(Relatório Link). Quem fazia a afirmação era um geólogo americano
chamado Walter Link. A Petrobras não tinha geólogo próprio. Me in‑
teressei pelo assunto e hoje tenho o relatório, de umas quarenta pági‑
nas. O famoso “Relatório Link”, na década de sessenta, dizia que a
possibilidade de ter petróleo em terra era muito reduzida. Que se hou‑
vesse petróleo, seria no mar, e a profundidades nas quais não podería‑
mos produzir. Eu nasci com raiva de alguém que eu não conheci, mas
ele era um visionário. O que ele falou, está acontecendo hoje.

Em que pese a existência de questionamentos iniciais, como o


ocorrido em 1963 com a descoberta do campo de Carmópolis (nos
Estados de Sergipe e de Alagoas), então o maior campo terrestre bra‑
sileiro, o Relatório Link demonstrou sua lógica com o tempo. Em
1967, a Petrobras inicia o setor petroquímico, com a implantação da
Petroquisa, de forma a possibilitar a transformação de nafta em ete‑
no. Em 1968, ano em que foi criado o Centro de Pesquisa e Desen‑
volvimento da Petrobras – Cenpes, a Petrobras comprovou a
existência de petróleo na plataforma continental. Jorrava petróleo no
Campo de Guaricema, a 80 metros de profundidade, no Estado de
Sergipe. Iniciava­‑se a tradição de batizar as descobertas marítimas
com nomes de animais aquáticos. No mesmo ano, foi construída no
Brasil a primeira plataforma de perfuração, denominada P­‑1. Em
1971, foi criada a Petrobras Distribuidora, impulsionada pelo Produ‑
to Interno Bruto que crescia a taxas superiores a 10% ao ano, bem

87
Matéria produzida pelo Clube de Engenharia do Rio de Janeiro em agosto
de 2010.

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como pela necessidade de expandir rapidamente a distribuição de


derivados de petróleo.
Em 1972, foi criada a Braspetro, subsidiária da Petrobras para ex‑
ploração petrolífera no exterior, que após atividades em diversos países
teve como principal descoberta o gigantesco campo de Majnoon, no
Iraque, com reservas acima de um bilhão de metros cúbicos. No mes‑
mo ano, inicia a extração de óleo de xisto, em São Mateus do Sul, Estado
do Paraná, bem como é inaugurada a Refinaria do Planalto, em Paulí‑
nia, no Estado de São Paulo.
No entanto, havia uma conjuntura internacional que faria o Brasil
rever abruptamente o próspero modelo econômico então vigente, que
muitos denominavam como “milagre”. Com alta dependência do país
ao preço internacional dos hidrocarbonetos, o primeiro Choque do
Petróleo em 1973, decorrente da percepção dos países do Oriente Mé‑
dio membros da Opep de que o petróleo é um bem escasso, não reno‑
vável e que permite grande poder de barganha econômica por quem o
oferta, desequilibrou de imediato a balança comercial brasileira. A di‑
minuição unilateral da produção pela Opep, fato que elevou o preço
do barril de US$ 2,90 para US$ 11,65 em apenas três meses, aliado ao
interesse árabe em embargar a venda de petróleo aos Estados Unidos e
à Europa, haja vista o apoio dado a Israel na Guerra do Yom Kippur,
impunha rápidas ações do regime militar brasileiro, que experimentava
a transição de poder para o presidente Geisel.
O ano de 1974 selaria a sentença do Relatório Link de que o
petróleo brasileiro se encontrava em alto­‑mar. Nesse ano, foi desco‑
berta a Bacia de Campos. Com a produção sendo iniciada no campo
de Enchova, e as subsequentes descobertas dos campos de Garoupa,
Pargo, Namorado, Badejo, Bonito, Cherne e Pampo, a Bacia de
Campos chegou a ser responsável por 80% da produção de petróleo
nacional.
Em outubro de 1975, a exploração de petróleo no Brasil é aberta à
iniciativa privada. O instrumento utilizado para tanto eram os contra‑

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tos de serviço com cláusula de risco. A ironia dessa iniciativa é que o


presidente Geisel havia condenado essa possibilidade em 1972, quando
exercia a presidência da Petrobras. A ideia central era possibilitar que a
Petrobras firmasse contratos com empresas privadas para intensificar a
pesquisa de novas jazidas em regiões não prioritárias à Petrobras. O
saldo dessa iniciativa foram 103 contratos com 32 empresas, sendo 30
estrangeiras, bem como a iniciativa do Estado de São Paulo de criar sua
própria empresa de pesquisa de petróleo, a Paulipetro. Digno de desta‑
que na segunda metade da década de 1970, houve ainda o mapeamento
geológico da costa nacional em 1978, referência cartográfica no país,
bem como o Segundo Choque do Petróleo, ocorrido em 1979 e desen‑
cadeado pela Revolução Islâmica no Irã, que antecedeu a guerra Irã­
‑Iraque iniciada em 1980.
Leite88 pormenoriza a década de 1970, que em síntese tornou­‑se
a matriz energética nacional mais heterogênea e culminou nos desa‑
fios econômicos enfrentados na década seguinte, momento em que a
dívida externa foi multiplicada por seis e a inflação, literalmente,
explodiu.

No campo econômico, o novo governo assume quando, diante da


crise mundial decorrente do primeiro choque dos preços do petróleo,
a maioria dos países industrializados procurou adaptar­‑se, tão rapida‑
mente quanto possível, aos novos preços relativos a energia, com os
seus reflexos sobre a economia interna de cada um e suas relações com
o exterior. O Brasil adota a tese de prosseguir no esforço de desenvol‑
vimento acelerado com ênfase na substituição de importações. O forte
desequilíbrio da balança de pagamentos, provocado em grande parte
pelas importações do petróleo, seria compensado por operações de
crédito externo, a taxas de juros flexíveis, com o sistema bancário pri‑
vado que, por sua vez, se baseava em recursos propiciados pela recicla‑
gem das receitas provenientes do petróleo. [...]

88
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 197-198.

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O Brasil [...] não restringiu, de forma eficaz, o consumo de deri‑


vados de petróleo nem conservou energia, de modo geral. No entanto,
a perturbação econômica causada pelo choque do petróleo tinha uma
trajetória de difícil previsão, e recomendava­‑se prudência nas proje‑
ções, inclusive no campo interno, quanto à evolução da demanda de
energia elétrica. Mesmo assim, lançou o governo, simultaneamente,
não só as grandes usinas de Itaipu e Tucuruí, duas das maiores do mun‑
do, mas também gigantesco programa nuclear.

Com a crise econômica instalada no Brasil na década de 1980, bem


como a necessidade de redemocratização do país, que culminou com a
Constituição Federal de 1988, os resultados alcançados foram tímidos,
se comparados com a década anterior: (i) foi inaugurada a Refinaria
Henrique Lage, em São José dos Campos, Estado de São Paulo (1980);
(ii) foi inaugurado o terceiro polo petroquímico do Brasil, em Triunfo,
Estado do Rio Grande do Sul (1982); (iii) foi descoberto o campo de Al‑
bacora, na bacia de Campos (1984); (iv) foi descoberto o campo de Marlim
(1985); (v) foi descoberto petróleo no campo de Marlin Leste (1987);
e (vi) entra em produção o campo de Rio Urucu, no Alto Amazonas
(1988), exatamente a região apontada pelo Relatório Link como passí‑
vel de se identificar hidrocarbonetos na Amazônia.

4.8 O “Sol líquido”: os biocombustíveis e o Proálcool


Em que pese a bem­‑sucedida criação do binômio institucional
INT – IAA para lidar com as questões do álcool­‑motor, a realidade dos
fatos se sobrepôs à inovadora estrutura técnica e regulatória, com re‑
flexos no setor energético. Considerando o término, em 1945, da Se‑
gunda Grande Guerra, momento em que o abastecimento do petróleo
retornava aos níveis de normalidade; bem como o declínio da produ‑
ção açucareira no Brasil, que começava a ensaiar uma policultura, fato
que contribuiu para que o açúcar estivesse em sexto lugar na pauta de
exportações do país no final da década de 1950, novos paradigmas pas‑
saram a se impor no mercado, em que pesem tentativas pontuais de

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incentivo à fabricação de álcool para uso em motores de combustão,89


como era o caso do Decreto­‑Lei n. 25.174­‑A, de 1948.
A agroindústria sucroalcooleira iniciava movimentos para intro‑
duzir o álcool­‑motor (ou etanol) como carburante sem adição de ga‑
solina em qualquer percentual. Concomitante a esse empenho, houve
a crise internacional do petróleo, forçada pela Organização dos Paí‑
ses Exportadores de Petróleo – Opep, que conseguira nos anos 1970
quadruplicar o preço do barril do petróleo. O perfil econômico do
Brasil, altamente dependente do petróleo internacional e com eleva‑
do endividamento, que necessitava aumentar os juros e amortizar a
dívida externa.
Os resultados dessa correlação de forças pôde ser sentido na polí‑
tica brasileira. Concomitante ao fato de que as maiores reservas de pe‑
tróleo do mundo estavam, naquele período, em terras árabes, a
diplomacia brasileira abandonara a tese da equidistância na década de
1970 e reconhecia plenamente as pretensões dos árabes no território da
Palestina, por intermédio do apoio expresso do Itamaraty à versão ára‑
be da Resolução 242 da ONU.90
O Regime Militar de 1964 também se preparava para enfrentar
essa realidade. Para tanto, o quarto titular do Regime foi um militar
afeito às questões energéticas. O general gaúcho Ernesto Geisel, em‑
possado em março de 1974, carregava em suas credenciais a chefia da
Casa Militar no governo Castelo Branco, cargos gerenciais na refinaria
de Cubatão na década de 1950, bem como a presidência da Petrobras

89
ALMEIDA, Cezar Menezes; PIRES, Mônica de Moura; ALMEIDA NETO,
José Adolfo de; CRUZ, Rosenira Serpa da. Apropriação dos recursos naturais e
o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel. Bahia Análise & Dados,
Salvador, v. 16, n. 1, p. 79-88, jun. 2006.
90
Para aprofundamento da questão, recomenda-se a leitura do discurso proferido
pelo chanceler Gibson Barbosa no jantar oferecido pelo Itamaraty ao chanceler
da Liga dos Estados Árabes, apud Primeira página: Folha de S.Paulo. 6. ed. São
Paulo: Publifolha, 2006. p. 126.

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desde 1969. Logo após a posse, o presidente Geisel promoveu três fun‑
damentais intervenções no setor energético brasileiro, todos devida‑
mente enquadrados em um projeto maior denominado II Plano
Nacional de Desenvolvimento – PND: (i) firmou com a então Ale‑
manha Ocidental o acordo nuclear para transferência tecnológica;91
(ii) flexibilizou o monopólio da Petrobras ao permitir que empresas
estrangeiras pudessem explorar petróleo em território nacional (vulgo
contrato de risco), algo que o general, enquanto presidente da Petro‑
bras, manifestava­‑se contra;92 e (iii) criou o Programa Nacional do Ál‑
cool – Proálcool, objeto de estudo do presente capítulo.
Assim, o Proálcool, enquanto programa governamental, pôde ser
assim considerado após a publicação do Decreto n 76.593, de 14 de
novembro de 1975, que instituiu o Programa Nacional do Álcool. O
objetivo central era o atendimento das necessidades do mercado inter‑
no e externo e da política de combustíveis automotivos por intermédio
desta matriz energética. A produção do álcool oriundo da cana­‑de­
‑açúcar, da mandioca ou de qualquer outro insumo passava a ser incen‑
tivada por meio da expansão da oferta de matérias­‑primas, com especial
ênfase no aumento da produção agrícola, da modernização e ampliação
das destilarias existentes e da instalação de novas unidades produtoras,
anexas a usinas ou autônomas, e de unidades armazenadoras.
Todavia, o decreto do Proálcool, que se institucionalizava na vés‑
pera do aniversário da República, não pode ser tomado como uma me‑
dida isolada. Para se compreender a amplitude que o Proálcool adquiria
naquele momento, é importante analisá­‑lo em conjunto com os se‑
guintes instrumentos normativos:
a) Decreto n. 73.690, de 22 de fevereiro de 1974, que reordenou a
estrutura básica do Instituto do Açúcar e do Álcool, dentre elas
instituindo a possibilidade de criação de unidades regionais;

91
Ver item 4.6.
92
Ver item 4.7.

258

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Curso de Direito da Energia

b) Decreto n. 75.613, de 15 de abril de 1975, que dispôs sobre a


estrutura básica do Instituto do Açúcar e do Álcool;
c) Decreto­‑Lei n. 1.409, de 11 de julho de 1975, que dispôs sobre
a incidência do Imposto Único sobre Lubrificantes e Com‑
bustíveis Líquidos e Gasosos no álcool anidro originário da
cana­‑de­‑açúcar, destinado a adição à gasolina, no qual a alí‑
quota aplicável passa a ser de 5% e incidirá sobre o preço fixa‑
do para a venda do produto ao Instituto do Açúcar e do
Álcool, bem como haverá isenção, até 1979, à produção, im‑
portação, circulação ou consumo do álcool;
d) Decreto n. 75.966, de 11 de julho de 1975, que dispôs sobre a
produção e a comercialização do álcool anidro carburante,
medida que assegurava a paridade entre os preços do açúcar
cristal “standart” e do álcool anidro carburante, de forma a
evitar práticas comerciais anticompetitivas (“gaming”) do
produtor de açúcar e álcool;
e) Decreto n. 76.537, de 3 de novembro de 1975, que dispôs so‑
bre a classificação e transformação de cargos em comissão,
função gratificada e encargos de gabinete do Instituto do Açú‑
car e do Álcool; e
f) Decreto n. 76.911, de 26 de dezembro de 1975, que dispôs
sobre a criação de funções para composição das Categorias
Direção Intermediária e Assistência Intermediária, do Grupo
Direção e Assistência Intermediárias, do Quadro Permanente
do Instituto do Açúcar e do Álcool.
Importante notar o reforço da função regulatória que o Proálcool
destinou ao IAA. O Decreto n. 76.593, de 14 de novembro de 1975, con‑
feriu ao IAA a competência de expedir parecer técnico sobre as
propostas para modernização, ampliação ou implantação de desti‑
larias de álcool, anexas ou autônomas (art. 4 o), bem como a com‑
petência para estabelecer as especificações técnicas para os elementos
residuais e ao álcool de quaisquer tipos e origens (art. 11), a compul‑

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soriedade do registro das destilarias de álcool de qualquer tipo,


oriundo de cana­‑de­‑açúcar, da mandioca ou de qualquer outra
matéria­‑prima (art. 12), bem como a adequação da estrutura de pes‑
soal ao Proálcool (art. 13).
Contundentes críticas foram feitas ao Regime Militar no tocante à
expansão do setor sucroalcooleiro. Por ser um período de reconheci‑
das experiências em infraestrutura, há a alegação de que o Regime Mi‑
litar incentivou a grilagem de terras para o cultivo da cana, teria feito
tábula rasa a violações de direitos trabalhistas, proporcionou expansão
agrícola na recém­‑criada rodovia Transamazônica por intermédio do
Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia – Po‑
lamazônia, dentre outras.
Importante notar que, com as consecutivas alterações normativas
no Proálcool, bem como na estrutura do IAA, o Decreto n. 80.762, de
18 de novembro de 1977, acabou por consolidar as disposições de am‑
bos. A legislação, que antes estimulava a mistura do álcool à gasolina,
radicalizava em seus propósitos tecnológicos, econômicos e sociais:
passava a conceber o uso de etanol hidratado puro como combustível
automotivo. Havia uma grande pretensão política em 1977, não previs‑
ta em lei mas baseada em indicadores técnicos,93 de que era possível
trabalhar para se constituir uma frota veicular 100% movida a etanol.
Para Lima,94 essa foi a única iniciativa de substituição de combustíveis
derivados do petróleo que se mostrou viável em algum mercado do mun‑
do. Enquanto pré­‑requisito para esse sucesso, estava o aumento do
preço do petróleo e a baixa do preço do açúcar no mercado internacional.
Importantes medidas foram tomadas desde então, inclusive no período

93
No Centro Técnico Aeroespacial – CTA, engenheiros aeronáuticos do Instituto
de Tecnologia Aeroespacial – ITA, liderados pelo Professor Urbano Ernesto
Stumpf, realizaram entre 1973 e 1976 diversas experiências com o álcool-motor
que fundamentavam tecnicamente as decisões de Brasília.
94
LIMA, Haroldo. Petróleo no Brasil: a situação, o modelo e a política atual. Rio
de Janeiro: Synergia, 2008. p. 107.

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Curso de Direito da Energia

que envolve os governos Figueiredo e Sarney, implicando na regulação


jurídica do álcool enquanto combustível até a redemocratização:
(i) Decreto n. 81.774, de 8 de junho de 1978, que conferiu
nova redação ao art. 6o e seus parágrafos do Decreto n.
80.762, de 18 de novembro de 1977, e consolidou as dispo‑
sições sobre o Programa Nacional do Álcool;
(ii) Decreto n. 81.849, de 27 de junho de 1978, que incluiu na
composição do Conselho Deliberativo do Instituto do
Açúcar e do Álcool um representante do Ministério das
Minas e Energia;
(iii) Decreto­‑Lei n. 1.631, de 2 de agosto de 1978, que dispôs
sobre a incidência do Imposto Único sobre Lubrificantes e
Combustíveis Líquidos e Gasosos nos alcoóis etílico e me‑
tílico, para fins carburantes, fixando em 5% a alíquota rela‑
tiva aos alcoóis a ser aplicada sobre os preços de venda dos
produtos, conforme se dispuser em regulamento, de forma
que esse entendimento foi aprovado pelo Decreto Legisla‑
tivo n. 62, de 1978;
(iv) Decreto n. 82.476, de 23 de outubro de 1978, que estabele­
ceu normas para o escoamento e a comercialização do álcool
para fins carburantes, que serão faturados pelos produtores
diretamente às companhias;
(v) Decreto n. 83.519, de 29 de maio de 1979, que reconheceu
o curso de Tecnólogo de Produção de Açúcar e Álcool da
Universidade Metodista, de Piracicaba, São Paulo;
(vi) Decreto n. 83.700, de 5 de julho de 1979, que dispôs sobre
a execução do Programa Nacional do Álcool, cria o Con‑
selho Nacional do Álcool – CNAL, com as competências,
dentre outras, de: (i) compatibilizar as participações pro‑
gramáticas dos órgãos, direta ou indiretamente, vinculados
ao Proálcool, objetivando a expansão da produção e da uti‑
lização do álcool; (ii) apreciar, acompanhar e homologar a

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ação dos órgãos e entidades da administração pública, rela‑


cionada com a execução do Proálcool; (iii) definir a produ‑
ção anual dos diversos tipos de álcool, especificando o seu
uso, bem como seus critérios gerais; e (iv) propor ou defe‑
rir, quando for o caso, a concessão de incentivos para o
desenvolvimento do Proálcool;
(vii) Decreto­‑Lei n. 1.712, de 14 de novembro de 1979, que dis‑
pôs sobre a arrecadação das contribuições ao Instituto do
Açúcar e do Álcool e dá outras providências;
(viii) Lei n. 6.768, de 20 de dezembro de 1979, que dispôs sobre a
criação da sociedade de economia mista Coque e Álcool da
Madeira S/A. – Coalbra, vinculada ao Ministério da Agricul‑
tura, com a finalidade de (i) incentivar a produção e utilização
de combustíveis líquidos derivados da madeira e dos subpro‑
dutos desta; (ii) produzir diretamente tais combustíveis e
subprodutos, e comercializá­‑los; (iii) prestar assistência técni‑
ca às empresas privadas interessadas na pesquisa e produção
de combustíveis líquidos derivados da madeira e dos subpro‑
dutos desta; e (iv) realizar pesquisas visando ao aperfeiçoa‑
mento tecnológico correspondente às suas atividades;
(ix) Decreto n. 84.465, de 7 de fevereiro de 1980, que aprovou a
constituição da Coque e Álcool da Madeira S/A – Coalbra;
(x) Decreto n. 84.575, de 18 de março de 1980, que modificou
a redação do art. 12 do Decreto n. 83.700, de 5 de julho de
1979, incluindo os bancos comerciais privados, os bancos
de investimento e as caixas econômicas entre os agentes fi‑
nanceiros da linha de crédito industrial do Programa Na‑
cional do Álcool – Proálcool;
(xi) Decreto n. 85.698, de 4 de fevereiro de 1981, que estabe‑
leceu critérios para registro de unidades produtoras de
álcool hidratado, com capacidade de produção de até
5.000 litros/dia;

262

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Curso de Direito da Energia

(xii) Decreto n. 86.156, de 25 de junho de 1981, que conferiu


nova redação ao art. 2o do Decreto n. 82.476, de 23 de ou‑
tubro de 1978, e estabeleceu normas para o escoamento e a
comercialização do álcool para fins carburantes;
(xiii) Decreto n. 86.340, de 2 de setembro de 1981, que reduziu a
zero a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializa‑
dos incidente sobre álcool etílico hidratado “in natura’’;
(xiv) Lei n. 6.984, de 13 de abril de 1982, que dispôs sobre a
transferência das ações da Coque e Álcool da Madeira
S/A – Coalbra, de propriedade do Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal – IBDF, para a União Federal;
(xv) Decreto n. 87.159, de 10 de maio de 1982, que estabeleceu
normas para o escoamento e a comercialização do álcool,
para fins combustíveis, incluindo o faturamento dos pro‑
dutores diretamente às Companhias Distribuidoras de
Derivados de Petróleo e/ou à Petrobras;
(xvi) Decreto n. 87.253, de 7 de junho de 1982, que atribuiu
competência ao Conselho Nacional do Petróleo, para ates‑
tar a qualidade de aditivos ou de produtos a serem introdu‑
zidos nos combustíveis derivados de petróleo e em álcool
etílico hidratado combustível;
(xvii) Decreto­‑Lei n. 1.944, de 15 de junho de 1982, que conce‑
deu isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados
para táxis com motor a álcool;
(xviii) Decreto­‑Lei n. 1.952, de 15 de julho de 1982, que institutiu
adicional às contribuições incidentes sobre açúcar e álcool,
fixando em até 20% sobre os preços oficiais do açúcar e do
álcool fixados pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, para
fazer face aos dispêndios provocados por situações excep‑
cionalmente desfavoráveis do mercado internacional de
açúcar e para a formação de estoques da produção expor‑
tável e complementação de recursos destinados a progra‑
mas oficiais de equalização de custos;

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(xix) Lei n. 7.029, de 13 de setembro de 1982, que dispôs sobre o


transporte dutoviário de álcool e dá outras providências;
(xx) Decreto n. 87.813, de 16 de novembro de 1982, que modi‑
ficou as disposições do Decreto n. 83.700, de 5 de julho de
1979, relativamente aos preços de referência do álcool des‑
tinado à indústria alcoolquímica;
(xxi) Decreto n. 88.626, de 16 de agosto de 1983, que estabeleceu
normas para o escoamento, comercialização e estocagem
de álcool para fins energéticos;
(xxii) Decreto­‑Lei n. 2.081, de 22 de dezembro de 1983, que dis‑
pôs sobre a adoção de medidas de incentivo à arrecadação
do Instituto do Açúcar e do Álcool;
(xxiii) Decreto n. 91.615, de 4 de setembro de 1985, que dispôs
sobre o funcionamento de Postos Revendedores de deriva‑
dos de petróleo e de álcool etílico hidratado combustível;
(xxiv) Decreto n. 93.603, de 21 de novembro de 1986, que extin‑
guiu a Coque e Álcool da Madeira S/A – Coalbra;
(xxv) Decreto n. 93.605, de 21 de novembro de 1986, que criou a
Comissão Interministerial para a Recuperação Financeira
do Setor Sucroalcooleiro;
(xxvi) Decreto n. 93.706, de 11 de dezembro de 1986, que dispôs
sobre medidas especiais de racionalização do consumo de
derivados do petróleo e de álcool etílico combustível, e dá
outras providências;
(xxvii) Decreto n. 94.541, de 1o de julho de 1987, que estabeleceu
normas para o escoamento, comercialização e estocagem
de álcool para fins combustíveis, e dá outras providências;
(xxviii) Decreto n. 94.179, de 3 de abril de 1987, que dispôs sobre o
abastecimento nacional de derivados de petróleo e álcool
etílico combustível, e dá outras providências;
(xxix) Decreto‑Lei n. 2.459, de 25 de agosto de 1988, que conce‑
deu isenção do IPI para a aguardente de cana e de melaço,

264

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Curso de Direito da Energia

destinada à fabricação de álcool etílico para fins combustí‑


veis, e dá outras providências.
Importante destacar que o Proálcool foi um programa que se de‑
senvolveu em seu auge, enquanto elemento de sustentabilidade am‑
biental, no interregno entre a Convenção Quadro sobre Mudanças
Climáticas de 1972, ocorrida em Estocolmo, na qual o Brasil foi sig‑
natário, e a Política Nacional do Meio Ambiente, promulgada pela
Lei n. 6.938, de 1981. A partir de 1986, a iniciativa entrou em crise,
principalmente pela queda do valor do barril do petróleo no mercado
internacional, fato que desestimulava economicamente a busca por
combustíveis alternativos a gasolina, concomitante à ausência de ca‑
pital público para investimento no projeto, dado principalmente ao
cenário inflacionário.
Em que pesem as críticas ao modelo adotado, são contundentes os
resultados alcançados. A produção de álcool no Brasil no biênio 1975­
‑1976 foi de 600 milhões de litros, chegando a 3,4 bilhões de litros no
biênio 1979­‑1980 e a 12,3 bilhões de litros no biênio 1986­‑1987, auge
da produção, que chegou a reduzir em 10 milhões de automóveis a
frota de veículos movidos a gasolina no Brasil. Todavia, foi inevitável
atrelar o Proálcool ao preço internacional do petróleo, que baixou no
final dos anos 1980 e tornou o álcool combustível pouco vantajoso nas
duas pontas: na produção, no qual o usineiro preferia produzir açúcar,
que remunerava melhor, bem como no consumo, que não encontrava
o álcool com preço competitivo – quando o encontrava nos postos de
abastecimento –, e acabava por preferir os carros a gasolina. Promul‑
gar, nesse cenário, medidas de racionamento de combustíveis, foi ape‑
nas uma consequência natural da conjuntura econômica posta.
Com toda essa repercussão tecnológica, a redemocratização e a
Constituição Federal de 1988 trouxeram novos paradigmas setoriais
logo no primeiro dia da gestão Collor de Mello, em 1990, que intensi‑
ficou o uso de política pública liberal para, de uma forma ou de outra,
avançar na epistemologia do Direito da Energia.

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5
Da regulação e competição
(desde 1990)

A realidade do Brasil de Getúlio, de 50 milhões de habi‑


tantes, que havia fundamentado a criação da Chesf em 1945
enquanto projeto de desenvolvimento regional, era radical‑
mente outra em 1990. No centro das alterações estava a forte
pressão demográfica e o alto nível migratório. O Brasil em
1990 tinha 130 milhões de habitantes. A industrialização na
região Sudeste provocou um forte fluxo migratório e a con‑
vergência de mão de obra, fato que ocasionou, dentre outros,
significativa perda de qualidade dos serviços públicos presta‑
dos nas cidades, em paralelo ao alto nível de endividamento
dos poderes públicos e de inflação descontrolada. Como con‑
sequência houve um déficit habitacional histórico que produ‑
ziu a conhecida proliferação de favelas nos grandes centros
urbanos do país. A pós­‑modernidade se avizinhava, com o Es‑
tado enfraquecido ante a pluralidade de demandas sociais, que
acabavam por pregar soluções como a desregulamentação, o
exercício de interesses públicos por intermédio de organiza‑
ções não governamentais e as privatizações.
O processo de redemocratização, que devolveu à esfera
civil o processo decisório direto dos assuntos nacionais por
meio da elaboração e promulgação da Constituição Federal

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de 1988, consubstanciou diversos direitos fundamentais e reorgani‑


zou as atividades econômicas. Em que pese ser possível abstrair dife‑
rentes visões políticas e sociais, a implementação imediata das
premissas da Carta Magna veio acompanhada de uma visão liberal da
economia. Alguns movimentos nesse sentido podem ser historica‑
mente identificados.
Na seara econômica internacional, o economista inglês John
Williamson, em 1990, denominou “Consenso de Washington” o míni‑
mo denominador comum de recomendações de políticas econômicas
que estavam sendo cogitadas pelo Fundo Monetário Internacional –
FMI, pelo Banco Mundial e pelo Departamento do Tesouro dos Esta‑
dos Unidos, todas instituições financeiras com sede em Washington
D.C., que por sua vez exercia um claro unilateralismo enquanto potên‑
cia que havia ganho a Guerra Fria após a queda do muro de Berlim em
1989 e a respectiva desintegração da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas – URSS. Era propalado que os governos da América Latina,
então na quase totalidade com situação financeira deteriorada e com
cenário hiperinflacionário, deveriam observá­‑las como paradigma para
seu desenvolvimento.
O Brasil passava por transformações políticas, que culminaram
com as primeiras eleições democráticas em 25 anos. Com a posse em
1990, o presidente Collor de Mello, jornalista carioca, logo em seu pri‑
meiro mês de governo promulgou duas leis de alta relevância para o
setor de energia.1 A Lei n. 8.028 extinguiu o MME e transferiu suas
atribuições ao Ministério da Infraestrutura, criado pela mesma lei, que
também passou a ser responsável pelos setores de transportes e comu‑
nicações. O Ministério de Minas e Energia voltaria a ser criado em
1992, por meio da Lei n. 8.422.

1
Não abordaremos aqui, por opção metodológica, a abrangência do Plano Collor,
que dentre outras consequências limitou o acesso a poupança que também teve
repercussões no setor energético.

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O governo Collor promoveu importantes avanços na legislação do


país.2 No que tange ao setor energético, cabe destacar a Lei n. 8.176, de
8 de fevereiro de 1991, que definiu crimes contra a ordem econômica e
criou o Sistema de Estoques de Combustíveis. Assim, passou a ser cri‑
me comercializar derivados de petróleo e de gás natural fora das espe‑
cificações, empregar gás liquefeito de petróleo em motores de qualquer
espécie, bem como comercializar, produzir bens ou explorar matéria­
‑prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo
com as obrigações impostas pelo título autorizativo.
Com o impedimento do presidente Collor, assumiu a presidência
seu vice, o engenheiro mineiro Itamar Franco. Em que pese seu gover‑
no ter ocorrido em momento de crise política, importantes medidas le‑
gislativas podem ser verificadas em sua gestão. Como exemplo, a
exploração marítima de hidrocarbonetos no local que se convencionou
denominar pré­‑sal não seria possível sem a Lei n. 8.617, de 4 de janeiro
de 1993, que dispõe sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona
econômica exclusiva e a plataforma continental brasileiros, bem como a
Lei n. 8.630, de 25 de fevereiro de 1993, conhecida como Lei dos Portos.
Pode­‑se ainda afirmar que a gestão Franco não se debruçou apenas
com as questões afeitas ao espaço marítimo, mas também ao sideral,
ao criar a Agência Espacial Brasileira, por força da Lei n. 8.854, de 10
de fevereiro de 1994, e possibilitar nas décadas seguintes a existência de
regime jurídico para implementar políticas públicas para o georrefe‑
renciamento espacial, bem como o Sistema de Informações Geográfi‑
cas – SIG, com importantes repercussões no setor energético.

2
É o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho
de 1990); do Código do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990);
do Imposto de Importação (Lei n. 8.085, de 23 de outubro de 1990); do regime
jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações
públicas federais (Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990); da Lei de Defesa da
Concorrência (Lei n. 8.158, de 8 de janeiro de 1991); e da Política Agrícola (Lei
n. 8.171, de 17 de janeiro de 1991).

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O governo Franco ainda logrou êxito ao: (i) criar o Imposto sobre
a Propriedade Territorial Rural – ITR pela Lei n. 8.847, de 28 de janei‑
ro de 1994, com base no art. 236 da Constituição Federal; (ii) criar a Lei
dos Cartórios (n. 8.935, de 18 de novembro de 1994); (iii) publicar a
Lei de Licitações;3 (iv) publicar o Plano Real; e (v) buscar o combate às
desigualdades regionais, ao instituir o Plano Diretor para o Desenvol‑
vimento do Vale do São Francisco – Planvasf pela Lei n. 8.851, de 31 de
janeiro de 1994. Franco ainda criou o Ministério do Meio Ambiente e
da Amazônia Legal, vinculando assim poder coercitivo a uma dimen‑
são geográfica (Amazônia Legal), por força da Lei n. 8.746, de 9 de
dezembro de 1993.
Sob a ótica jurídica, chegava com força ao Brasil a corrente do
Realismo Jurídico anglo­‑saxão, que propunha uma leitura econômica
da norma jurídica, denominada Law and Economics, que foi traduzida
pela doutrina majoritária como Direito Administrativo Econômico.
Sundfeld4 traduz, sob o prisma do realismo jurídico, esse momento em
que o Direito se aproxima da Economia.

Os economistas têm uma fascinante qualidade: sabem avaliar os


problemas por equações e unidades mensuráveis, objetivas. Mas pon‑
derar os transtornos e as facilidades em uma precisa relação de núme‑
ros é algo muito estranho para um homem do Direito. Somos peritos
em contrapor valores de outra espécie, imateriais. Quando a Consti‑
tuição diz que as pessoas têm direito à igualdade e, como advogados de
uma empresa, reclamamos do Estado contra o privilégio dado à con‑
corrente, somos incapazes de transpor a briga para um gráfico. É ver‑
dade que o símbolo da Justiça é uma deusa com a balança, o que parece
remeter a uma equação matemática (X=Y). Só que seus olhos estão

3
Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, que regulamentou o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal e instituiu normas para licitações e contratos da Adminis‑
tração Pública.
4
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo econômico In: _____. (Co‑
ord.). Serviços públicos e regulação estatal. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 17-18.

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Curso de Direito da Energia

vedados e, por isso, ela não vê os pratos se movendo, nem o peso que
carregam: ela sente o movimento e, por meio desse meio, busca uma
relação de equilíbrio, que nada tem de matemática. [...]
Pouco a pouco, nós nos acostumamos com os raciocínios econô‑
micos. Por inspiração de estudos norte­‑americanos, difunde­‑se a aná‑
lise econômica do Direito, que ganha espaço e adeptos. Em paralelo, o
Estado aprofunda, modifica e sofistica suas ações de regulação econô‑
mica, concebendo novos mecanismos e criando órgãos e instituições
específicos. No Brasil não é diferente.

Ao mesmo tempo em que se buscava trazer uma sinalização econô‑


mica para o Direito, importante frisar que a visão regulatória não foi
obra originária dessa geração de juristas que enveredava por este cami‑
nho na década de 1990. Rui Barbosa, em 1904, já advertira sobre os mo-
nopólios de fato e a inviabilidade de concorrência em setores como o de
distribuição de energia elétrica por intermédio de direito comparado,
principalmente princípios norte­‑americanos. Estruturas em rede cono‑
tam uma sinalização econômica no Direito muito clara. Ao controlar
segmentos monopolistas, que tendem a abusar de seu poder econômico
em prol de seus interesses, o governo necessita criar uma estrutura jurí‑
dica que possa exercer uma concorrência econômica artificial.
A Inspetoria Geral de Iluminação – IGI, que pode ser apontada
como a primeira estrutura regulatória do Brasil, foi o primeiro órgão
que buscava realizar uma espécie de “concorrência econômica artifi‑
cial” no país. A IGI foi criada pelo Decreto n. 9.032, de 17 de novem‑
bro de 1911, pelo presidente Hermes da Fonseca.5 Alfredo Valladão,
em 1907, ao iniciar seus trabalhos de construção do que se tornaria em

5
Fundamentamos essa afirmação no entendimento de Justen Filho, Marçal: “O
Estado Regulador é, antes de tudo, uma organização institucional que se relacio‑
na às concepções do Estado de Direito. Essa figura pressupõe não apenas o mo‑
nopólio do Direito por parte do Estado, mas também a submissão deste àquele.
Para compreender o conceito de Estado Regulador, é necessário reconhecer a
supremacia da ordem jurídica sobre a atuação política.” O direito das agências
reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. p. 16.

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1934 o Código de Águas brasileiro, já previa a regulamentação por


meio de Comissões de Serviços Públicos, conceito esse trazido de seu
homônimo anglo­‑saxão.
Logo, as discussões sobre regulação energética já se tornaram cen‑
tenárias. O histórico normativo e doutrinário, principalmente nos se‑
tores de recursos hídricos e de energia elétrica, os primeiros a terem
uma estrutura regulatória no Brasil, sugerem que a morosidade da im‑
plementação do Código de Águas, que teve sua regulamentação finali‑
zada somente em 1957, diluiu este debate ao longo do tempo, perdendo
intensidade e organicidade. O que pode ser apontado como verdadei‑
ramente novo, a partir da década de 1990, é a aceitação, por relevante
corrente jurídica, das premissas econômicas postas, advindas de um
realismo que, sob a ótica científica, certamente muito ainda descortina‑
rá sobre o discrímen entre os limites jurídicos da atuação do Estado e
da iniciativa privada.
Assim, pode­‑se afirmar que a atuação estatal na primeira metade
da década de 1990 estava pautada em um viés liberal após décadas de
regime de exceção, em que o Estado buscava reposicionar suas fun‑
ções, bem como indicar com maior clareza o que era esperado da ini‑
ciativa privada. Buscaremos identificar a seguir como essa dialética se
procedeu no setor energético.

5.1 O Primeiro Modelo Energético (1990­‑2002)


O Primeiro Modelo Energético, do período de Regulação e Com‑
petição, deveria se compatibilizar com a então recente Ordem Consti‑
tucional Econômica (art. 170 e seguintes, CF), e não fugia à regra
daquele momento histórico, de observância aos ditames do Consenso
de Washington e da efetividade de uma abordagem econômica do Di‑
reito. Assim, esse modelo perseguia três princípios básicos no nortea‑
mento de sua condução, com forte viés do Direito Administrativo
Econômico: (i) desestatização; (ii) desverticalização; e (iii) eficientiza‑
ção. Ao aliar epistemologicamente o Direito e a Economia, havia a

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busca de uma alternativa à tônica política estatizante que o setor ener‑


gético experimentara desde o Código de Águas. Assim, buscava­‑se
criar um ambiente favorável para atrair a iniciativa privada, por inter‑
médio do regime jurídico das concessões.
Pode­‑se dizer que o modelo regulatório nacional, desde então,
vincula­‑se à tradição contemporânea de organização social, de inspira‑
ção anglo­‑saxã. Isso porque,

[...] no Brasil, a origem das discussões acerca do real significado


do vocábulo regulação advém da adaptação do conceito de “regula-
tion” para o português, importado da doutrina jurídica e econômica
norte­‑americana, que pode ser traduzido tanto como regulação, quan‑
to como regulamentação.
[...]. Entendido no sentido amplo, regulation significa interven‑
ção do governo em toda a atividade econômica e social, por meio dos
mais diversos ramos do direito (civil, trabalhista, tributário, penal, am‑
biental, antitruste, etc...). No sentido restrito, porém, regulation deve
ser entendido como intervenção do governo na atividade econômica
de forma mais intensa. 6

Importante notar que essa sequência tinha uma lógica intrínseca de


desenvolvimento, bem como uma clareza epistemológica. A ideia cen‑
tral era diminuir a estrutura do Estado, por intermédio de concessão e
privatização de ativos, de forma a possibilitar que ele se concentrasse em
atividades que envolvessem mais diretamente o interesse público (como,
por exemplo, seria o caso da saúde, educação e segurança). Ao privatizar,
o segundo ato seria dividir as empresas por segmentos de atuação, não
apenas setoriais, mas intrassetoriais, com o objetivo de conferir clareza
de propósito aos acionistas dos ativos, de forma a possibilitar um retor‑
no financeiro com a mesma transparência. Assim, haveria uma segrega‑
ção entre produtores e distribuidores (de atacado, caso das transmissoras

6
LOSS, Giovani Ribeiro. A regulação setorial do gás natural. Belo Horizonte:
Fórum, 2007. p. 21.

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de energia elétrica, ou de varejo, as distribuidoras de energia elétrica),


bem como a criação de segmento de comercialização.
Com tais divisões, restaria ao “Estado mínimo”, sob o manto do
princípio da eficiência, fiscalizar as atividades e cobrar por resultados,
estipulando, por meio de concorrência artificial a ser exercida pelas
agências reguladoras, desempenhos crescentes dessas atividades. Iden‑
tificaremos os principais instrumentos produzidos pelo Estado brasi‑
leiro para alcançar esses objetivos perseguidos desde 1979.

5.1.1. Plano Nacional de Desestatização – PND e a


Lei Eliseu Resende
O regime jurídico da privatização, enquanto venda de ativos pú‑
blicos à iniciativa privada, foi introduzido no Brasil em 1979. A pri‑
meira iniciativa atendia pela denominação “Programa Nacional de
Desburocratização” e foi fixada pelo Decreto n. 83.740, de 18 de julho
de 1979. Os objetivos norteadores, expressos em norma, apontavam
claramente os serviços públicos como um foco de ineficiência adminis‑
trativa, quais sejam: (i) construir a melhoria do atendimento dos usuá‑
rios do serviço público; (ii) reduzir a interferência do Governo na
atividade do cidadão e do empresário; (iii) descentralizar as decisões;
(iv) simplificar o trabalho administrativo; (v) eliminar formalidades
e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco;
(vi) agilizar a execução dos programas federais para assegurar o cum‑
primento dos objetivos prioritários do Governo; (vii) substituir, sem‑
pre que praticável, o controle prévio pelo eficiente acompanhamento
da execução e pelo reforço da fiscalização dirigida, para a identificação
e correção dos eventuais desvios, fraudes e abusos; dentre outros.
Por força do Decreto n. 86.215, de 15 de julho de 1981, o governo
Figueiredo criava as condições formais para efetivar os desígnios do
Programa Nacional de Desburocratização. Fixaram­‑se normas para a
transferência, transformação e desativação de empresas sob o controle
do Governo Federal. O preâmbulo do Decreto enuncia exatamente o
espírito à época:

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Considerando:
a) que, de acordo com o artigo 170 da Constituição, compete,
preferencialmente, às empresas privadas, com o estímulo e apoio do
Estado, organizar e explorar as atividades econômicas;
b) que são objetivos prioritários do Governo, enunciados no De‑
creto n. 83.740, de 18 de julho de 1979, que instituiu o Programa Na‑
cional de Desburocratização, o fortalecimento do sistema de livre
empresa, a consolidação da grande empresa privada nacional, a conten‑
ção da criação indiscriminada de empresas estatais e, quando recomen‑
dável, a transferência do seu controle para o setor privado;
c) o firme propósito do Governo de promover a privatização do
controle de empresas estatais, nos casos em que a manutenção desse
controle se tenha tornado desnecessária ou injustificável;
d) que essa transferência não se vem operando com a rapidez de‑
sejada, pela ausência de uma clara definição das empresas enquadráveis
e de normas que definam os mecanismos e procedimentos de transfe‑
rência, transformação ou desativação;
e) que a política de privatização não deve alcançar nem enfraque‑
cer as empresas públicas cujo controle se considere intransferível, seja
por motivo de segurança nacional, seja pela necessidade de viabilizar o
desenvolvimento do próprio setor privado nacional, seja para assegu‑
rar o controle nacional do processo de desenvolvimento.
Decreta:
Art. 1o Fica atribuído ao Ministro Chefe da Secretaria de Planeja‑
mento da Presidência da República (SEPLAN), ao Ministro da Fazenda
e ao Ministro Extraordinário para a Desburocratização o encargo de, sob
a coordenação do primeiro, dirigir, supervisionar e acelerar o processo de
transferência de controle, transformação ou desativação de empresas
controladas pelo Governo Federal, observada as diretrizes, procedimen‑
tos e critérios de enquadramento estabelecidos neste Decreto.

O Decreto n. 86.215, de 1981,7 ainda previa no art. 5o que a


transferência de controle de empresas para o setor privado deveria

7
Importante destacar, ainda, o Decreto n. 86.214, que instituiu o “Programa de
Melhoria do Atendimento ao Público”.

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observar o seguinte sistema principiológico: (i) ampla divulgação;


(ii) os adquirentes deveriam ser cidadãos brasileiros residentes no
país ou empresas ou grupos de empresas sob controle nacional;
(iii) o “compromisso irrevogável” dos adquirentes em manter sob
controle nacional o capital e a administração das empresas adquiri‑
das; (iv) a celeridade e eficácia do processo de privatização; e (v) a
função da Comissão Especial, no tocante à fixação das condições e
dos valores. Os resultados dessas iniciativas foram muito aquém do
desejado, de forma que o governo Figueiredo não conseguiu realizar
qualquer privatização.
O governo Sarney também realizou iniciativas nessa frente. O
Decreto n. 95.886, de 29 de março de 1988, dispôs sobre o Programa
Federal de Desestatização, a ser executado por meio de projetos de
privatização e de desregulamentação, e com menção expressa ao regi‑
me de concessão e de permissão de serviços públicos, com os objeti‑
vos expressos de: (i) transferir para a iniciativa privada atividades
econômicas exploradas pelo setor público; (ii) concorrer para dimi‑
nuição do deficit público; (iii) propiciar a conversão de parte da dívida
externa do setor público federal em investimentos de risco, resguarda‑
do o interesse nacional; (iv) dinamizar o mercado de títulos e valores
mobiliários; (v) promover a disseminação da propriedade do capital
das empresas; (vi) estimular os mecanismos competitivos de mercado
mediante a desregulamentação da atividade econômica; (vii) proceder
à execução indireta de serviços públicos por meio de concessão ou
permissão; e (viii) promover a privatização de atividades econômicas
exploradas, com exclusividade, por empresas estatais, ressalvados os
monopólios constitucionais. Todavia, o regime de concessões não de‑
monstrara eficácia em um ambiente financeiro conduzido por uma
moeda monetariamente fraca8 e em ambiente hiperinflacionário.

8
Durante a década de 1980, as maiores empresas privatizadas eram da área de
celulose: Riocell e Aracruz.

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Em 1989, durante a primeira campanha presidencial em 25 anos,


o então candidato Fernando Collor de Mello fez da privatização um
importante argumento para a obtenção de votos. Após sua posse, o
tema foi sistematizado, transformou­‑se em um verdadeiro princípio
reformador, com base na necessidade de revitalizar a estrutura finan‑
ceira do Estado, acabar com a corrupção e reduzir drasticamente o
deficit público.
A Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990, publicada no primeiro mês
do governo Collor, criou o Programa Nacional de Desestatização
com o intuito de reordenar as atividades do Estado na economia. A
ideia central era vender ativos públicos à iniciativa privada de 18 em‑
presas nos setores de siderurgia, fertilizantes e petroquímica. As jus‑
tificativas eram eminentemente econômicas, e estavam pautadas na
falta de capital público para investir, bem como na necessidade de
obter um maior envolvimento da iniciativa privada no desenvolvi‑
mento do país:
(i) reordenar a posição estratégica do Estado na economia, trans‑
ferindo à iniciativa privada atividades subexploradas pelo setor
público;
(ii) contribuir para reestruturar economicamente o setor público,
por meio de melhoria do perfil e da redução da dívida pública
líquida;
(iii) permitir a retomada de investimentos pelas empresas privadas,
bem como sua efetiva reestruturação;
(iv) permitir a concentração de esforços da administração pública
em atividades mais fundamentais; e
(v) contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais.
A grande dificuldade na privatização no governo Collor foi o las‑
tro utilizado na aquisição das empresas. Os títulos representativos da
dívida pública federal foram majoritariamente utilizados, de forma a
corresponder a mais de 98% dos valores utilizados, fato que quitava a
dívida pública mas não possibilitava liquidez nas finanças federais.

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O governo Franco, por sua vez, buscou corrigir essa distorção e valo‑
rizar o uso de moeda corrente, dentre outas medidas.9
Importante notar que o PND somente lograria êxito em ambiente
de estabilidade monetária, graças ao advento do Plano Real no gover‑
no Franco. No governo Cardoso houve uma continuidade do PND
com mudanças centrais e estruturais, que viabilizaram a aplicação des‑
se instituto nos serviços públicos em geral e no energético em especí‑
fico. O instrumento jurídico escolhido para a promoção dessas
mudanças foi um intenso reformismo constitucional, por meio de
emendas que possibilitaram importantes alterações estruturais no se‑
tor energético.
(i) Emenda Constitucional n. 5, de 15 de agosto de 1995, que fi‑
xou caber aos Estados explorar diretamente, ou mediante con‑
cessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei;
(ii) Emenda Constitucional n. 6, de 15 de agosto de 1995, ao per‑
mitir que a pesquisa e a lavra de recursos minerais, bem como
o aproveitamento desses potenciais, pudessem ser efetuados
mediante autorização ou concessão da União;
(iii) Emenda Constitucional n. 7, de 15 de agosto de 1995, ao dele‑
gar à lei a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre;

9
Interessante notar que o governo Franco, nos últimos dias de gestão, publicou o
Decreto de 27 de dezembro de 1994 e criou o Programa de Desenvolvimento
Energético dos Estados e Municípios – Prodeem com a finalidade de: (i) viabili‑
zar a instalação de microssistemas energéticos de produção e uso locais, em co‑
munidades carentes isoladas não servidas por rede elétrica, destinados a apoiar o
atendimento das demandas sociais básicas; (ii) promover o aproveitamento das
fontes de energia descentralizadas no suprimento de energéticos aos pequenos
produtores, aos núcleos de colonização e às populações isoladas; (iii) comple‑
mentar a oferta de energia dos sistemas convencionais com a utilização de fontes
de energia renováveis descentralizadas; e (iv) promover a capacitação de recursos
humanos e o desenvolvimento da tecnologia e da indústria nacionais, imprescin‑
díveis à implantação e à continuidade operacional dos sistemas a serem implan‑
tados. Não há registro de continuidade do programa na gestão Cardoso.

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(iv) Emenda Constitucional n. 8, de 15 de agosto de 1995, que


quebrou o monopólio das telecomunicações;
(v) Emenda Constitucional n. 9, de 9 de novembro de 1995, que
quebrou o monopólio da Petrobras ao permitir que a União
pudesse contratar com empresas estatais ou privadas atividades
com hidrocarbonetos; e
(vi) Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, que alte‑
rou princípios e normas da Administração Pública, internali‑
zando conceitos oriundos do Direito Administrativo
Econômico (por exemplo, eficiência);
Ao aliar estabilidade monetária, por força do Plano Real em geral,
que permitiu a existência de uma clara sinalização de custos e receitas,
e pela Lei Eliseu Resende em específico, que promoveu uma alteração
na estrutura tarifária do setor elétrico, bem como uma expressa funda‑
mentação jurídica, decorrente de ampla reforma constitucional, os de‑
sígnios de privatização existentes na legislação brasileira desde 1979
finalmente puderam alcançar o setor energético, por intermédio dos
institutos da concessão, da permissão e da autorização, expostos na Lei
Geral de Concessões, bem como pela alteração promovida pela Lei n.
9.491, de 9 de setembro de 1997, que alterou procedimentos do Pro‑
grama Nacional de Desestatização – PND.
Importante destacar o ato de conceder promovido no então gover‑
no Cardoso. Essa iniciativa não era considerada uma alternativa pelo
governo, mas uma “ausência de escolha”, dada a insolvência estatal e o
inchaço da máquina pública. Em A arte da política, seu livro de memó‑
rias, Fernando Henrique Cardoso defende o programa de desestatização
como uma “inovação na busca do interesse público”. O ex­‑presidente
cita a criação das agências reguladoras, que justifica como o instrumento
necessário para imunizar áreas importantes de ingerências políticas,
como um complemento das privatizações, consideradas economicamen‑
te inevitáveis. Para tanto, seus integrantes não poderiam ser demitidos,
como na tradição anglo­‑saxã que serviu de molde para as agências.

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O PND, que foi regulamentado pelo Decreto n. 2.594, de 15 de


maio de 1998 e teve diversas alterações, tanto inclusões quanto exclu‑
sões de ativos, ao longo do tempo,10 não alcançaria a eficácia obtida se
a estrutura tarifária mantivesse, no bojo de sua lógica, a remuneração
pelo custo. Era imperativo possibilitar que as atividades em energia
pudessem aferir lucro, sem a qual não há que se falar em atração da
iniciativa privada para esse segmento da indústria.
Conforme os termos da Exposição de Motivos n. 091/MME, de 23
de dezembro de 1992, foi submetido ao Presidente da República Pro‑
jeto de Lei que reformulava o modelo econômico­‑financeiro vigente
para os serviços públicos de energia elétrica, introduzindo alterações
fundamentais para a reestruturação do denominado setor elétrico bra‑
sileiro. O então presidente da Eletrobras, e posteriormente Ministro da
Fazenda, Eliseu Resende,11 um dos signatários dessa Exposição de Mo‑
tivos, desejava realizar um grande encontro de contas, cessando os cré‑
ditos cambiados no setor elétrico, de forma a conferir novamente
liquidez ao fluxo de caixa dessas empresas. As preocupações centrais
consistiam na eliminação dos subsídios às tarifas elétricas industriais e
no aumento percentual da tarifa de distribuição, por décadas subsidia‑
das por terem sido instrumento de políticas públicas clientelistas, e não
como segmento econômico autossustentável.
Ao atuar dessa forma, o ministro esperava possibilitar a retomada
dos investimentos públicos e privados, estabelecendo a competição se‑
torial, de forma a iniciar um novo ciclo de outorgas que, por si só,
evitariam o anunciado colapso financeiro e, subsequentemente, técni‑
co. Assim, foi extinto o regime de remuneração garantida, por meio do

10
Podem-se mencionar como exemplos os Decretos n. 6.026, de 2007; Decreto
n. 6.380, de 2008; Decreto n. 6.502, de 2008; Decreto de 16 de julho de 2008;
Decreto n. 7.267, de 2010; dentre outros.
11
Foi Ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco de 1o de março a 24 de
maio de 1993, quando foi substituído por Fernando Henrique Cardoso, que por
seu turno implantaria o Plano Real no país.

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encerramento progressivo12 da Conta de Resultados a Compensar –


CRC e imediato da Reserva Nacional de Remuneração – Rencor. Mais
do que resolver a insolvência setorial, a Lei Eliseu Resende, como ficou
conhecida a Lei n. 8.631, de 1993: (i) permitiu atender ao princípio da
isonomia, uma vez que cada concessão seria tratada de forma individua‑
lizada e com sua respectiva composição tarifária fundada na alocação
dos custos reais, possibilitando a percepção de lucro e extinguindo o
sistema de remuneração garantida e a equalização tarifária; (ii) promo‑
veu um grande acerto de contas por meio da Conta de Recursos a
Compensar – CRC; (iii) tornou obrigatório o estabelecimento de con‑
tratos para reger as relações entre geradores e distribuidores.
A promulgação da Lei Eliseu Resende, anterior à Lei do Real (Lei
n. 9.069, de 1995), estancou a escalada hiperinflacionária na tarifa de
energia elétrica e no preço dos combustíveis, de forma a criar condi‑
ções de reverter a insolvência setorial e, por conseguinte, possibilitar a
reestruturação das empresas em busca da regulação e competição. To‑
davia, os atos governamentais eram movidos por uma necessidade de
resolver os problemas de curto prazo, que não eram poucos. Caldas13
aponta com precisão os principais pontos abordados pela legislação,
bem como correlaciona os quesitos alteração legal – expansão da ma‑
triz com repercussão econômica, de forma a aderir ao discurso de lei‑
tura econômica da norma em voga naquele momento histórico.

A Lei 8.631, promulgada em março de 1993, estabeleceu as se‑


guintes medidas:
a) Extinção da equalização tarifária e das transferências entre
concessionárias;

12
Essa progressividade se deu por meio da aprovação da Lei n. 8.724, de 1993, que
alterou a Lei n. 8.631, de 1993, e estabeleceu novos procedimentos nas compen‑
sações de CRC ao instituir redutor de 25% sobre os saldos credores da CRC das
concessionárias de energia elétrica.
13
CALDAS, Geraldo Pereira. As concessões de serviço público de energia elétrica.
2. ed. Curitiba: Juruá, 2006. p. 49-50.

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b) Recuperação tarifária em oito meses (elevou a tarifa de cerca de


US$ 34 por MWh para US$ 62 por MWh);
c) Supressão do regime de remuneração garantida e da CRC;
d) Compensação dos saldos das CRC existentes, através dos en‑
contros de contas das empresas estaduais com as do grupo Eletrobras
e a União;
e) Obrigação da formalização de contratos de compra e venda de
energia entre supridoras e supridas;
f) Abrangência nacional da Conta de Consumo de Combustíveis
Fósseis (CCC).
Essas medidas valorizaram as empresas, cujas ações passaram a ter
liquidez no mercado, lançando os fundamentos para a nova modelagem
e marco regulatório do setor elétrico brasileiro que se avizinhava.
Mesmo com a crise que atingiu o setor, no período entre 1981 e
1993 houve um crescimento da potência instalada no país de 35.600 MW
para 52.700 MW.

Nos dois anos seguintes, que culminaram com o sucesso do Plano


Real e na eleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, seu con‑
dutor enquanto Ministro da Fazenda, desejou­‑se um novo funciona‑
mento do mercado energético que, de forma reducionista, consistiria
em privatizar o setor elétrico e abrir o setor de petróleo aos investi‑
mentos privados, por meio da quebra do monopólio da Petrobras.

5.1.2. Lei Geral de Concessões e as agências


reguladoras setoriais
O conceito de serviço público, presente no art. 175 da Constitui‑
ção Federal, origina­‑se em uma relação jurídica complexa. O Poder
Concedente, por meio de ato regulamentar, fixa unilateralmente as
condições de funcionamento, de organização e modo de prestação do
serviço que será oferecida aos usuários, no qual o concessionário vo‑
luntariamente se insere abaixo dessa situação jurídica, com a garantia
de que será preservada a equação econômico­‑financeira dessa relação.
Como consequência, a prestação dessa atividade está fundada em um

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contrato que tem características exorbitantes do direito comum, como


o caso da possibilidade de alteração unilateral do contrato, conforme
exposto no § 2o do mesmo artigo,14 decorrente do princípio da supre‑
macia do interesse público sobre o privado.
Hely Lopes Meirelles, ao expor sobre serviço público, ensinou que
será todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob
normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou se‑
cundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado.15

[...] o Estado deve ter sempre em vista que o serviço público ou


de entidade pública são serviços para o público e que os concessioná‑
rios ou quaisquer outros prestadores de tais serviços são, na feliz ex‑
pressão de Brandeis, public servants, isto é, criados, servidores do
público. O fim precípuo do serviço público, ou de utilidade pública,
como o próprio nome está a indicar, é servir ao público, e, secunda‑
riamente, produzir renda a quem o explora. Daí, decorre o dever in‑
declinável de o concedente regulamentar, fiscalizar e intervir no
serviço concedido sempre que não estiver sendo prestado a contendo
do público a que é destinado.16

Em consonância com os conceitos acima, o instituto da concessão


não transfere propriedade alguma do ente concedente à concessionária,
tampouco se despoja de qualquer direito ou prerrogativa pública. A
concessionária passa a ser um ente delegado do Poder Concedente para
executar o serviço que lhe é concedido, nos limites e condições legais e
contratuais, sempre sujeito à regulamentação e fiscalização deste últi‑
mo. Celso Antônio Bandeira de Mello demonstra, por meio de uma
relação de meios e fins invertida, a forma em que a relação Poder Con‑
cedente e concessionário se trava.

14
“Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas, a fim de man‑
ter-se o equilíbrio econômico-financeiro.”
15
Direito administrativo brasileiro. 22. ed. p. 297.
16
Idem, p. 301-302.

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Para o concessionário, a prestação do serviço é um meio através


do qual obtém o fim que almeja: o lucro. Reversamente, para o Estado,
o lucro que propicia ao concessionário é meio por cuja via busca sua
finalidade, que é a boa prestação do serviço.17

Justen Filho pormenoriza essa relação, identificando o elo que


mantém o vínculo entre as partes: o instituto da concessão.

A democratização do exercício do poder estatal conduz o Estado


a realizar acordos com os particulares, travando relações em níveis de
colaboração. Em contrapartida, a natureza pública dos interesses assu‑
midos constrange os particulares a vincular seus intentos egoísticos à
satisfação da função social da propriedade e do lucro privado. A con‑
sequência reside em que o relacionamento entre Administração Públi‑
ca e iniciativa privada adquire contornos de equivalência entre si, todos
assumindo a subordinação em face do interesse público.
O instituto da concessão é instrumento jurídico adequado para
formalizar essa via de colaboração entre Estado e iniciativa privada. O
modelo político prevalente exclui a viabilidade de recursos públicos
serem utilizados para financiamento de grandes obras. Os investimen‑
tos relacionados com a enorme demanda por serviços públicos terão
de ser arcados diretamente pela iniciativa privada.18

Nesse sentido, o Estado mantém os mecanismos para a obtenção


de seu dever perante os cidadãos, que é a boa prestação do serviço.
Uma vez que esse serviço é prestado por um terceiro (concessionário),
por mera conveniência do Estado, este mantém em seu poder a facul‑
dade de retomar do concessionário o exercício dessa atividade.
E a própria Lei n. 8.987, de 1995, denominada Lei Geral das Con‑
cessões, em seu art. 2o, II, define o instituto da concessão de serviço
público como a delegação da prestação de uma atividade, feita pelo

17
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12. ed.
São Paulo: Malheiros, 2000. p. 610.
18
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São
Paulo: Dialética, 2003. p. 59.

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Curso de Direito da Energia

Poder Concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrên‑


cia, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capaci‑
dade para seu desempenho, por sua conta e risco e prazo determinado.
A prestação dos serviços concedidos, fundamentados na Consti‑
tuição Federal, tem como desdobramento legal o disciplinado em con‑
trato de concessão, conforme exposto no art. 23 da Lei n. 8.987, de
1995, com expressa fixação dos encargos do Poder Concedente (art. 29)
bem como da concessionária (art. 31), além de a subordinação ao regi‑
me econômico­‑financeiro inscrito nos arts. 14 e 15 da Lei n. 9.427, de
26 de dezembro de 1996.
Assim, a política tarifária torna­‑se um acordo, consubstanciado via
contratual entre o Poder Concedente e o concessionário, de forma a
garantir a contraprestação pelo serviço concedido. No momento
de fixar essa tarifa, ou o preço do contrato, parte­‑se da prerrogati‑
va de que a tarifa atende a todos os princípios que fundamentam o direito
público. Uma vez fixada, pressupõe­‑se, por definição, que esta atende
aos requisitos do direito público, tornando­‑se a principal diretriz da
política tarifária, como se registrasse uma espécie de fotografia do iní‑
cio da concessão.
Sob a ótica do setor de energia, Leite19 pormenoriza a importância
da Lei de Concessões, a opção pela manutenção da dicotomia energia
elétrica – petróleo e gás, bem como a ausência de regime jurídico espe‑
cífico, naquele momento, para alguns setores energéticos.

[...] a definição das regras de concessão dos serviços de utilidade


pública e de objetivos e funções dos diversos órgãos reguladores não
resultou de diretriz única. Cada segmento da reforma foi sendo pro‑
posto e discutido separadamente.
O processo teve início com abrangente lei de concessão dos ser‑
viços públicos (Lei n. 8.987/1995), de prolongados debates no Con‑

19
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 287-288.

285

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gresso. Estabeleceram­‑se aí as regras fundamentais das concessões,


que haveriam de ser feitas mediante licitação, na modalidade concor‑
rência. Em sequência, foram instituídos os órgãos reguladores de
energia elétrica e petróleo. Apenas bem mais tarde, viria a ser consti‑
tuída a agência responsável pela água, incluindo­‑se aí os aproveita‑
mentos hidrelétricos.
Dentro do espírito da nova política e da reforma administrativa
não havia, necessariamente, o que propor quanto à estrutura dos seto‑
res do carvão e do álcool. No primeiro caso permanecia inalterado o
quadro, com a extinção dos órgãos que, antes, nele tinham ingerência.
Os empreendimentos da agroindústria sucroalcooleira sempre foram
privados e os correspondentes incentivos e benefícios fiscais também
haviam sido suprimidos.

Ante essa sistematização, a Lei das Concessões de serviços públi‑


cos e de obras públicas20 regulamentou o art. 175 da Constituição Fe‑
deral, criou a figura de permissionária e definiu serviço adequado como
aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiên‑
cia, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e
modicidade das tarifas. Importante inovação dessa norma foi criar
duas hipóteses de excludência de continuidade da prestação dos servi‑
ços, na qual poder­‑se­‑á interrompê­‑los em situação de emergência ou

20
Art. 2o Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I – poder concedente: a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município, em
cuja competência se encontre o serviço público, precedido ou não da execução
de obra pública, objeto de concessão ou permissão;
II – concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder
concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica
ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por
sua conta e risco e por prazo determinado;
[...]
IV – permissão de serviço público: a delegação, a título precário, mediante lici‑
tação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa
física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua con‑
ta e risco.

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Curso de Direito da Energia

após prévio aviso, quando: (i) motivada por razões de ordem técnica
ou de segurança das instalações; e (ii) por inadimplemento do usuário,
considerado o interesse da coletividade.
A Lei de Concessões também estabelece, de forma complementar
ao Código do Consumidor, o direito dos usuários em receber serviço
adequado, informações para a defesa de seus interesses, liberdade de
escolha e demais diretrizes perante o concedido. No tocante à política
tarifária, determina que será fixada pelo preço da proposta vencedora
da licitação, na qual os contratos poderão prever mecanismos de revi‑
são das tarifas, a fim de manter­‑se o equilíbrio econômico­‑financeiro.
Assim, alterações tributárias farão as tarifas oscilarem de forma direta‑
mente proporcional ao seu impacto, onerando ou não sua estrutura.
Os princípios da administração pública, originados no art. 37 da
Constituição Federal, estão presentes na Lei das Concessões no art. 14,
que prevê que toda concessão de serviço público será objeto de prévia
licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos prin‑
cípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamen‑
to por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório.
Em redação dada pela Lei n. 9.648, de 1998, o julgamento da licitação
deve considerar: (i) o menor valor da tarifa; (ii) a maior oferta; (iii) me‑
lhor proposta técnica, com preço fixado no edital; (iv) melhor propos‑
ta em razão da combinação dos critérios de menor valor da tarifa do
serviço público a ser prestado com o de melhor técnica; (v) melhor
proposta em razão da combinação dos critérios de maior oferta pela
outorga da concessão com o de melhor técnica; (vi) melhor oferta de
pagamento pela outorga após qualificação de propostas técnicas; ou
(vii) a combinação, dois a dois, dos itens i, ii e iii acima. A lei ainda es‑
tipula quais são as cláusulas essenciais do contrato de concessão, bem
como a possibilidade de arbitragem para resolução de disputas decor‑
rentes ou relacionadas ao contrato.
No tocante às responsabilidades, o Poder Concedente deve regu‑
lamentar, fiscalizar, intervir e extinguir, se necessário, a concessão, ob‑

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servado os princípios de Direito Administrativo. Deve, ainda, declarar


a necessidade ou utilidade pública, para fins de instituição de servidão
administrativa, estimular o aumento da qualidade, produtividade, pre‑
servação do meio ambiente e conservação; incentivar a competitivida‑
de; e estimular a formação de associações de usuários para defesa de
interesses relativos ao serviço.
As concessionárias, por sua vez, devem prestar serviço adequado,
manter em dia o inventário e o registro dos bens vinculados à conces‑
são, prestar contas da gestão, cumprir e fazer cumprir as normas do
serviço, permitir a fiscalização, promover as desapropriações, consti‑
tuir servidões autorizadas pelo poder concedente, zelar pela integrida‑
de dos bens vinculados à prestação do serviço, e captar, aplicar e gerir
os recursos financeiros necessários à prestação do serviço. A lei ainda
regulamenta a intervenção e a extinção da concessão.
Por seu turno, não há que se conceber um regime de outorgas sem
uma estrutura que possa geri­‑las. Sob esse enfoque, as agências
reguladoras,21 enquanto autarquias especiais destinadas a regular os
serviços públicos que tiveram seus monopólios quebrados por força
das Emendas Constitucionais de 1995, ganham notoriedade. Tema re‑
corrente na doutrina, quedamos com as palavras de Barroso22 de forma
a pontuar e nivelar esse entendimento.

As agências reguladoras foram introduzidas no Brasil sob a for‑


ma de autarquias e, consequentemente, com personalidade jurídica de
direito público. Estão sujeitas, assim, ao mandamento do art. 37, XIX
da Constituição, e sua criação somente poderá se dar mediante lei es‑
pecífica. O mesmo quanto à sua extinção, pois ato administrativo não
poderia destruir o que se construiu por norma de hierarquia superior.

21
A Aneel e a ANP terão tratamento específico e apartado no Tomo II – Do Mo-
delo Institucional.
22
BARROSO, Luis Roberto. Agências reguladoras: constituição, transformações
do Estado e legitimidade democrática. In: LANDAU, Elena (Coord.). Regula-
ção jurídica no setor elétrico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 40-41.

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Curso de Direito da Energia

As agências, todavia, são autarquias especiais, dotadas de prerrogati‑


vas próprias e caracterizadas por sua autonomia em relação ao Poder
Público.
A instituição de um regime jurídico especial visa preservar as
agências reguladoras de ingerências indevidas, inclusive e sobretu‑
do, como assinalado, por parte do Estado e de seus agentes.
Procurou­‑se demarcar, por esta razão, um espaço de legítima dis‑
cricionariedade, com predomínio de juízos técnicos sobre as valo‑
rações políticas. Constatada a necessidade de se resguardarem essas
autarquias especiais de injunções externas inadequadas, foram­‑lhe ou‑
torgadas autonomia político­‑administrativa e autonomia econômico­
‑financeira.
No tocante à autonomia político­‑administrativa, a legislação ins‑
tituidora de cada agência prevê um conjunto de procedimentos, garan‑
tias e cautelas, dentre as quais normalmente se incluem: (i) nomeação
dos diretores com lastro político (em âmbito federal a nomeação é feita
pelo Presidente da República, com aprovação do Senado); (ii) mandato
fixo de três ou quatro anos; e (iii) impossibilidade de demissão dos di‑
retores, salvo falta grave apurada mediante devido processo legal.

Ante esse escopo, as agências reguladoras em muito se assemelham


às Comissões de Serviços Públicos concebidas por Alfredo Valladão em
1907. Afinal, assim como previsto no Código de Águas de 1934, as
agências reguladoras continuam com as mesmas atribuições centrais
delegadas desde a Divisão de Águas do Departamento Nacional da
Produção Mineral: fiscalizar o serviço público com o tríplice objetivo
de assegurar serviço adequado, fixar tarifas razoáveis e garantir a esta‑
bilidade financeira das empresas. As inovações ocorridas na década de
1990, se não estruturais, refletem a percepção do que vem a ser serviço
público no final do século XX: controle tarifário, universalização dos
serviços públicos, combate às assimetrias de informações perante o ou‑
torgado, mediação de conflitos e outras avenças que porventura cada
autarquia especial tenha no bojo de suas competências.
Importante destacar que as características e os percalços que o se‑
tor de energia encontra no desenvolvimento estrutural de uma política

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regulatória. Diferentemente do ocorrido nas telecomunicações, não


houve no setor de energia elétrica a completa implementação do Pri‑
meiro Modelo Energético. De forma a corroborar a complexidade se‑
torial, a energia no Brasil é regida por duas estruturas distintas: a
Aneel e a ANP. Essa construção tem respaldo histórico, conforme de‑
monstra Marques Neto.23

“entre nós optou­‑se pela separação destes segmentos, submetendo­


‑lhes à regulação específica, inclusive com criação, no âmbito federal, de
agências próprias a cada setor. É bem verdade que havia razão de ser na
separação das competências regulatórias para o setor de energia elétrica
(reunidas na Aneel), de petróleo e gás (cometidas a ANP, com a exceção
da distribuição local do gás canalizado, reservado pela Constituição à
competência estadual – cf. artigo 25, § 2o) e de energia nuclear (não
atribuído a uma agência reguladora, mas mantido no âmbito do CNEN
e da Eletronuclear). Afinal, pode­‑se separar as cadeias pelo fato de que
a energia elétrica era tradicionalmente tratada como serviço público da
União (referida expressamente no artigo 21, inciso XII, b), enquanto as
atividades da cadeia de petróleo e gás e de energia nuclear foram trata‑
das como monopólio da União (cf. artigo 177). E de resto, pode­‑se en‑
contrar alguns traços distintivos entre estas atividades, pois, no setor
elétrico, tem­‑se uma indústria de rede agregada à comercialização de
uma commodity, no setor de hidrocarbonetos há o envolvimento de
recursos escassos e de bens da União cujo emprego econômico envolve
seu consumo e exaurimento (diferentemente do potencial de geração de
energia hidráulica que, malgrado ser bem da União – CF, artigo 20, VIII
–, tem seu uso independente de esgotamento).”

Todavia, conforme o próprio Marques Neto coloca na se­quên­


cia, e empregando a nomenclatura conferida por Walter Tolentino

23
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras no Setor de
Energia entre Especialidade e Eficiência. In: LANDAU, Elena (Coord.). Regu-
lação jurídica no setor elétrico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 76-77.

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Curso de Direito da Energia

Álvares,24 compreende­‑se que o aprofundamento epistemológico das


manifestações tecnológicas energéticas são convergentes, sob a ótica
econômica e societária, em um futuro próximo. Os binômios “eletrici‑
dade – hidrocarbonetos”, ou mesmo “serviço público – monopólio”
conforme acima apontado e que justificou juridicamente a criação de
agências reguladoras distintas (Aneel e ANP) para regular matérias ener‑
géticas, podem sofrer uma revisão conceitual decorrente do aprimora‑
mento institucional e das variáveis econômicas adjacentes a cada setor.
No centro dessa alteração está a sobreposição de matérias reguladas pela
Aneel e ANP, o nível de interação entre as diversas matrizes e o interesse
político de expandir a matriz nucleotérmica, fato que reclamará uma regula‑
ção condizente com a necessidade de atração de capitais para esse segmento.
Logo, a regulação setorial ainda deve sofrer um aprofundamento
epistemológico para melhor compreender os reais níveis de interação
entre energia primária (quedas d’água, regulada pela ANA enquanto
recurso hídrico, ou o petróleo e gás, regulado pela ANP enquanto hi‑
drocarburos) e a energia secundária (eletricidade), com reflexos diretos
no processo decisório de cada agência reguladora. Por exemplo, o gás,
atualmente regulado no atacado pela ANP, interfere diretamente na
produção termelétrica regulada pela Aneel.
Como frequentemente ocorre, a realidade tecnológica e econômi‑
ca se antecipa àquela jurídica. Grandes empresas já têm buscado obter
eficiência gerencial ao integrarem suas unidades de petróleo e gás com
a de energia elétrica. Como exemplo, a Petrobras, por se portar como
uma empresa de energia, já é considerada uma das cinco maiores gera‑
doras de energia elétrica do país, graças à sua atuação no sistema terme‑
létrico brasileiro. Essa é uma tendência que deve ser aprofundada a
partir do momento que empresas petrolíferas investem em energias re‑
nováveis e que encontram repercussões tecnológicas reguladas parale‑
lamente tanto pela Aneel quanto pela ANP.

24
Tema a ser explorado no Tomo III – Da Epistemologia.

291

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5.1.3 Legislação do setor de energia elétrica:


a desverticalização e a Aneel
A delegação da prestação de serviço público, decorrente de todas
as transformações políticas e econômicas ocorridas no final do século
passado, impôs profundas mudanças na sociedade como um todo e no
setor elétrico brasileiro em especial. No centro de todas essas mudan‑
ças está a premissa adotada de que os Estados modernos estavam inca‑
pacitados de arcar com os investimentos necessários para gerar o
desenvolvimento dos setores que estavam sob sua responsabilidade.
Leite25 fez um diagnóstico preciso daquele momento histórico no
Brasil, pormenorizando suas peculiaridades.

1. Sistema nacional, com 90% da capacidade hidráulica e 95% de


geração dessas usinas, é essencialmente distinto do sistema de base tér‑
mica, como o empregado na maioria dos países industrializados;
2. Muitas das grandes usinas, com os respectivos reservatórios, se
localizavam em sequência no curso de um mesmo rio;
3. O País ainda tenta alcançar (tenha ou não sucesso nessa preten‑
são) crescimento econômico em ritmo intenso, equivalente ao que já
teve em décadas anteriores, o que pode requerer fortes taxas de expan‑
são dos serviços de eletricidade;
4. As usinas hidrelétricas demandam muito mais tempo (> cinco
anos) que as usinas térmicas (< três anos), para sua construção.

A argumentação utilizada, para motivar essas mudanças, parte do


pressuposto de que o modelo estatal que foi concebido e adotado pelo
Brasil ao longo das décadas tinha barreiras que impediam tanto a eficiên­
cia financeira das empresas quanto sua respectiva competitividade. O
setor elétrico, como monopólio estatal verticalizado, criava barrei‑
ras à entrada de investimentos. Esse cenário ocasionava a ausência de
competição, na qual a remuneração pela prestação do serviço realizado
via tarifa era garantida a todas as estatais do setor elétrico, fato que

25
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 293.

292

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ocasionava uma ausência de incentivos para o desenvolvimento da rede


elétrica. Assim, o principal resultado desse modelo era a ineficiência
financeira das empresas.
Sob a ótica setorial, o racionamento de energia elétrica de 1987,
bem como o desvio de finalidade setorial das concessionárias estaduais
de energia elétrica, ocasionara significativa descapitalização da indús‑
tria energética, tornando insustentável o modelo então vigente do
ponto de vista econômico­‑financeiro, em que pesem as premissas
operacionais funcionarem de forma satisfatória. Assim, o modelo es‑
tatal demonstrava esgotamento, pois havia alto nível de ingerência
política nas empresas de serviços públicos, como, por exemplo, a
contenção de tarifas, o atraso de reajustes como prática macroeconô‑
mica de contenção da inflação, que produziu inadimplências intrasse‑
toriais generalizadas entre empresas estatais. Logo, a União não
concedia tarifas e as concessionárias, no geral estaduais ou privadas,
não pagavam encargos.
Era imperiosa uma ampla reestruturação no setor elétrico brasilei‑
ro. Landau26 ensina sobre a leitura econômica da norma e expõe com
precisão o espírito daquele momento:

Primeiro, a propriedade pública do capital das empresas trazia


implícita a ideia de que a energia podia ser vendida a um preço relati‑
vamente baixo, o que ocorreu durante décadas, ocasionando elevado
déficit setorial. Segundo, dada a conjuntura econômica favorável e o
acesso relativamente fácil ao financiamento, vários empreendimentos
foram construídos nem sempre tendo como preocupação fundamental
a busca da eficiência.
A combinação destes dois fenômenos, isto é, a pouca atenção à
eficiência e o subsídio ao usuário final, aprofundou a crise financeira
do setor quando o amplo acesso ao financiamento externo no início

26
LANDAU, Elena (Coord.). Regulação jurídica no setor elétrico. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p. 4-5.

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dos anos 80 foi interrompido, dificultando a recuperação da capacidade


de investimentos pelo Estado.
Em resumo, o subsídio estatal trouxe dificuldades adicionais no
momento em que ficou evidente que, apesar de se tratar de serviço pú‑
blico, a atividade deveria ser de forma geral autossustentável. Também
o modelo do Estado­‑empresário terminou por se mostrar ineficiente,
pela dificuldade de permanente atualização tecnológica e administrativa
decorrentes da limitação financeiro­‑orçamentária, pelas condicionantes
a que se submete a atuação empresária por parte do Estado e pela falta
de preocupação com uma gestão eficiente dos recursos públicos.

Nesse sentido, o Estado deveria conceder à iniciativa privada a


execução de algumas obras e serviços que até pouco tempo eram de sua
exclusiva função. Com o processo de privatização, houve a desvertica‑
lização das diferentes esferas do setor elétrico, que passou a se dividir
em geração, transmissão, distribuição e comercialização. A geração e a
comercialização se tornaram setores competitivos e não regulados. A
transmissão e a distribuição, por sua vez, como monopólios naturais,
estariam sob regulação e fiscalização dessa Agência. Assim, o objetivo
principal do modelo brasileiro foi separar o serviço de energia elétrica,
que trabalha com a commodity e deve ser aberta a competição, bem
como às regras de livre mercado, daqueles que trabalham com o trans‑
porte da energia mediante rede aérea ou subterrânea, que devem ser
reguladas pela administração pública. Em outras palavras, a privatiza‑
ção buscou atrair novos investimentos, além de desverticalizar as pesa‑
das estruturas estatais, segmentando as áreas da seguinte forma:
(i) Geração: atividade de natureza competitiva, não regulada eco‑
nomicamente, com garantia de livre acesso aos sistemas de
transportes (transmissão e distribuição) a todos os geradores
que podem comercializar a energia livremente. Compreende
os diferentes processos de conversão de energia primária em
energia elétrica;
(ii) Transmissão: vias de transporte de energia elétrica de alta e mé‑
dia tensão, podendo ser utilizadas por qualquer agente interes‑

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Curso de Direito da Energia

sado mediante o pagamento dos encargos correspondentes, de


forma isonômica, estabelecidos pelo agente regulador;
(iii) Distribuição: vias de transporte de energia elétrica de baixa ten‑
são, podendo ser utilizadas por qualquer consumidor inserido
no interior de área de concessão estabelecida pelo Poder Con‑
cedente mediante o pagamento dos encargos correspondentes,
de forma isonômica, estabelecidos pelo agente regulador;
(iv) Comercialização: agente setorial com capacidade jurídica para
comprar, importar, exportar e vender energia elétrica a outros
comercializadores, distribuidores, geradores ou consumidores
livres, por meio de contratos de longo prazo ou no MAE, nos
termos originais do no art. 26 da Lei n. 9.427, de 26 de dezem‑
bro de 1996, com a redação dada pelo art. 4o da Lei n. 9.648, de 27
de maio de 1998, bem como na Resolução n. 265, de 13 de
agosto de 1998;
(v) Autoprodutor: pessoa jurídica ou consórcio de empresas titu‑
lar de concessão, permissão ou autorização para produzir
energia elétrica destinada ao consumo próprio, por sua conta e
risco, podendo fornecer o excedente às concessionárias de dis‑
tribuição, desde que previamente autorizada pela Aneel. Pre‑
visto pela Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995, e regulamentado
pelo Decreto n. 2.003, de 1996;
(vi) Produtor Independente: pessoa jurídica ou consórcio de em‑
presas titular de concessão, permissão ou autorização para
produzir energia elétrica destinada ao comércio de toda ou
parte da energia produzida, por sua conta e risco. Previsto pela
Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995, e regulamentado pelo De‑
creto n. 2.003, de 1996;
(vii) Consumidores Livres: pessoa jurídica que, atendida em qual‑
quer tensão, tenha exercido a opção de compra de energia elé‑
trica, conforme definida nos arts. 15 e 16 da Lei n. 9.074, de 7
de julho de 1995.

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A Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995, pode ser considerada, para


efeitos do setor elétrico, um aprofundamento do regime de concessões
previsto na Lei n. 8.987, de 1995. Não é para menos. O Capítulo II em
diante trata especificamente do setor elétrico e se divide em seções, a
saber: (i) Das Concessões, Permissões e Autorizações; (ii) Do Produtor
Independente de Energia Elétrica; (iii) Das Opções de Compra de Ener­
gia Elétrica por parte dos Consumidores; (iv) Das Instalações de Trans‑
missão e dos Consórcios de Geração; e (v) Da Prorrogação das
Concessões Atuais.
Alguns dispositivos contêm fundamentos principiológicos que não
podem ser descartados na análise individualizada da legislação superve‑
niente. Como exemplo, destacam­‑se: (i) a necessidade de desverticaliza‑
ção da cadeia produtiva do setor de energia, notadamente a elétrica; (ii) a
garantia da continuidade na prestação dos serviços públicos, prevista no
art. 3o, que regulamenta os arts. 42, 43 e 44 da Lei n. 8.987, de 1995; (iii)
a prioridade para conclusão de obras paralisadas ou em atraso; (iv) o
aumento da eficiência das empresas concessionárias, visando à elevação
da competitividade global da economia nacional; (v) o atendimento
abrangente ao mercado, sem exclusão das populações de baixa renda e
das áreas de baixa densidade populacional inclusive as rurais; (vi) o uso
racional dos bens coletivos, inclusive os recursos naturais; dentre outros.
Assim, em que pese não ter havido, naquele momento histórico, previsão
legal expressa obrigando as em­presas a assim procederem, o modelo vigen‑
te pressupunha que as atividades de geração, transmissão e distribuição
de energia elétrica passassem a ser desenvolvidas de forma segregada e
integrada ou, no jargão setorial, de maneira “desverticalizada”. O intuito
era possibilitar a separação de interesses da cadeia produtiva em diferen‑
tes ativos, individualizando os custos, de forma a tornar claros os riscos
e, por conseguinte, a remuneração do capital investido. Esse era o meca‑
nismo para possibilitar o aporte de investimentos privados no setor.
Após a edição da Lei n. 9.074, de 1995, o Governo Federal vendeu
a Espírito Santo Centrais Elétricas S/A – Escelsa. E aqui começava o

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descompasso entre a vontade política, de acelerar o trinômio desestati‑


zação – desverticalização – eficientização, verdadeiro enunciado do
Direito Administrativo Econômico, perante a estrutura regulatória en‑
tão vigente naquele momento, que tinha o DNAEE como o responsá‑
vel pelo controle das atividades no setor elétrico.
Essa lacuna foi suprida apenas no final de 1996. A Lei n. 9.427, de
26 de dezembro de 1996, que instituiu a Agência Nacional de Energia
Elétrica – Aneel, criou uma autarquia especial com a competência de
regular, fiscalizar e mediar a prestação de serviços públicos de energia
elétrica, no tocante à qualidade dos serviços e ao regime econômico­
‑financeiro. A redação original do art. 3o trazia importantes novações
jurídicas, tais como a promoção de licitações, a definição de aprovei‑
tamento ótimo das hidrelétricas, a gestão das outorgas e o equaciona‑
mento administrativo dos conflitos setoriais. Por ser um dispositivo
amplamente modificado ao longo do tempo, faz­‑se importante trazê­
‑lo em seu formato original para compreender as virtudes e deficiên‑
cias daquele período.

Art. 3o Além das incumbências prescritas nos arts. 29 e 30 da Lei


n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, aplicáveis aos serviços de energia
elétrica, compete especialmente à Aneel:
I – implementar as políticas e diretrizes do governo federal para a
exploração da energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hi‑
dráulicos, expedindo os atos regulamentares necessários ao cumpri‑
mento das normas estabelecidas pela Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995;
II – promover as licitações destinadas à contratação de concessio‑
nárias de serviço público para produção, transmissão e distribuição de ener‑
gia elétrica e para a outorga de concessão para aproveitamento de
potenciais hidráulicos;
III – definir o aproveitamento ótimo de que tratam os §§ 2o e 3o
do art. 5o da Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995;
IV – celebrar e gerir os contratos de concessão ou de permissão de
serviços públicos de energia elétrica, de concessão de uso de bem pú‑
blico, expedir as autorizações, bem como fiscalizar, diretamente ou

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mediante convênios com órgãos estaduais, as concessões e a prestação


dos serviços de energia elétrica;
V – dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre con‑
cessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e
autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores;
VI – fixar os critérios para cálculo do preço de transporte de que
trata o § 6o do art. 15 da Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995, e arbitrar seus
valores nos casos de negociação frustrada entre os agentes envolvidos;
VII – articular com o órgão regulador do setor de combustíveis
fósseis e gás natural os critérios para fixação dos preços de transporte
desses combustíveis, quando destinados à geração de energia elétrica, e
para arbitramento de seus valores, nos casos de negociação frustrada
entre os agentes envolvidos.

Esses avanços não ocorreram sem questionamentos. Dentre eles,


podem ser destacados a mistura da função de Poder Concedente entre
o MME e a Aneel, a ineficácia do Contrato de Gestão, as deficiências
regulatórias nos segmentos desverticalizados, o contingenciamento
orçamentário, a falta de mão de obra sob regime estatutário, dentre
outros. Resta analisar abaixo os principais avanços deste período, de
forma a identificar os instrumentos jurídicos usados na viabilização
daquele modelo.
5.1.3.1 O RE­‑SEB: a criação do MAE e do ONS
Ciente dos riscos a que estava sujeito, decorrente das abruptas mu‑
danças setoriais promovidas, o Governo Federal precisava tomar rápi‑
das decisões para não deixar o setor no caos institucional, e, por
conseguinte, a sociedade desabastecida energeticamente. A União con‑
tratou, por intermédio da Eletrobras e com financiamento do Banco
Mundial, por meio de licitação, a consultoria Coopers & Lybrand27
para desenvolver um modelo institucional do setor elétrico junto a es‑
pecialistas nacionais, que durou entre agosto de 1996 e o final de 1997.

27
Houve colaboração da consultoria Latham & Watkins, da banca Ulhôa Canto,
Resende e Guerra Advogados, Engevix e Main Engenharia.

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Curso de Direito da Energia

A prestação de serviço recebeu o nome de Projeto de Reestruturação do


Setor Elétrico Brasileiro (Projeto RE­‑SEB) e foi gerido pelo Ministério
de Minas e Energia. Paixão,28 que coordenou o RE­‑SEB, narra com a
retórica que lhe é peculiar aquele momento histórico e demonstra com
clareza os desafios jurídicos, políticos e institucionais enfrentados.

A primeira ligação telefônica que recebi mostrou­‑me que era preciso


dar personalidade “jurídica” ao projeto. Ao ser surpreendido com a per‑
gunta padrão: “De onde fala?”, percebi que não tinha resposta. Comecei
imediatamente a procurar uma sigla que fosse simples, mas que, de uma
forma ou outra, chamasse a atenção, pois o projeto precisava, pelo menos,
ser visto, já que era desacreditado. Acabei por concentrar­‑me em RE­‑SEB,
porque era fácil de se falar e o hífen criava uma diferença em relação ao
que, convencionalmente, se usa. Levei ao secretário Peter Greiner, o qual,
com absoluta monotonia, aprovou a ideia e nunca escreveu certo, sempre
tirando o hífen e grifando “Reseb”. Estava criado o Projeto de Reestrutu‑
ração do Setor Elétrico Brasileiro – Projeto RE­‑SEB.

Com a concepção do RE­‑SEB, foram criados alguns grupos temá‑


ticos29 que envolveram profissionais de todas as regiões do país e de
amplo espectro científico, incluindo engenheiros, juristas, economis‑
tas, tradutores, dentre outros. Os grupos, iniciados entre janeiro e fe‑
vereiro de 1997, tiveram distintas repercussões e desmembramentos,
de forma que podemos destacar e sumarizar alguns que tiveram impor‑
tantes consequências:
(i) WPA1 – Modelo Comercial: objetivava assegurar um sistema
de comercialização de energia elétrica eficiente e competitivo,
de forma a encorajar investimentos privados;

28
PAIXÃO, Lindolfo Ernesto. Memórias do Projeto RE-SEB. São Paulo: Massao
Ohno Editor, 2000. p. 69-70.
29
Naquela época, eram tratados pela expressão “Working Papers – WP”, que eram
divididos em letras e números conforme o grupo que executava cada uma das
tarefas. O anglicismo era uma característica marcante no Primeiro Modelo
Energético.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

(ii) WPA2 – Estrutura do Setor: objetivava criar os mecanismos


para a desverticalização da cadeia produtiva setorial, a desori‑
zontalização de grandes grupos de geração, de forma a facilitar
a entrada de novos agentes financeiros em grupos menores, e a
definição das funções consideradas de interesse nacional, como
os serviços de transmissão, a operação do sistema e o planeja‑
mento indicativo;
(iii) WPB2 – Mapa Regulatório: objetivava elaborar as linhas gerais
da regulamentação econômica, técnica e de atendimento ao
consumidor;
(iv) WPB4 – Encargos de Transmissão e Distribuição: objetivava
pormenorizar os encargos de conexão e uso dos sistemas de
transmissão e de distribuição, bem como estabelecer a metodo‑
logia de custo marginal;
(v) WPB5 – Diretrizes para Concorrência: objetivava conceber re‑
gras para a concorrência na geração e na comercialização;
(vi) WPB6 – Regulamentação Econômica: objetivava estabelecer fór‑
mulas para a regulamentação da transmissão, da distribuição e da
comercialização no mercado cativo e nos sistemas isolados; e
(vii) WPD1 – Política de Concessões: objetivava identificar meca‑
nismos para outorgar novas concessões, seus contratos e os
respectivos subsídios.
Com a conclusão dos trabalhos do RE­‑SEB, havia a necessidade de
se promulgar instrumento capaz de novar a ordem jurídica. Paixão30
destaca as pressões e angústias ocorridas, bem como a escolha da Medi‑
da Provisória como meio para alcançar a reestruturação setorial.

Instituída pelos legisladores brasileiros em substituição aos


“decretos­‑lei”, instrumento da época do regime militar que dava ao
presidente da República poderes equivalentes ao do próprio Congres‑

30
PAIXÃO, Lindolfo Ernesto. Memórias do Projeto RE-SEB. São Paulo: Massao
Ohno Editor, 2000. p. 173.

300

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Curso de Direito da Energia

so, a “medida provisórioa” (MP) autoriza o mandatário maior a pro‑


mulgar, provisoriamente, instruções, com a força de lei. Em trinta dias,
o Congresso a valida ou não, com ou sem modificações. Um lapso da
legislação permite que o presidente, com mínimas alterações, possa
reeditá­‑la o número de vezes que quiser.
Entre outras, em início de março de 1998, estava tramitando por
esses caminhos a MP 1531­‑15 (reeditada pela 15a vez, 15o mês); ela tra‑
tava originalmente de aspectos licitatórios no serviço público.
Pois seria nessa MP que “embarcaria” a instituição do novo mo‑
delo setorial brasileiro! A pressa em disponibilizar instrumento que
possibilitasse a privatização da Eletrosul assim o exigia. Paciência. En‑
tendíamos que uma lei seria mais consistente... mas a MP se transfor‑
maria em lei, então... tudo bem!
Não há como negar: a pressão do BNDES e a urgência do gover‑
no, aflito em resolver o seu problema de “caixa” foi o fundamental.
Mas, para nós, o importante era que o novo modelo se tornava a mais
absoluta realidade!

O desmembramento dos esforços para viabilizar o RE­‑SEB pro‑


duziu os seguintes atos:
(i) Decreto n. 2.335, de 6 de outubro de 1997, que regulamentou a
Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, criada pela Lei
n. 9.427, de 1996;
(ii) Decreto n. 2.364, de 5 de novembro de 1997, que emenda o
Decreto n. 2.335, de 6 de outubro de 1997;
(iii) Lei n. 9.648, de 27 de maio de 1998, que, originada na Medida
Provisória n. 1.531­‑18, de 29 de abril de 1998, emendou as leis
n. 3.890­‑A, de 1961; n. 8.666, de 1993; n. 8.987, de 1995, n.
9.074, de 1995; e n. 9.427, de 1996, de forma a autorizar a rees‑
truturação da Eletrobras e suas subsidiárias, alterar diversos
aspectos relativos à geração, transmissão, distribuição e comer‑
cialização de energia elétrica instituídos, criar o Mercado Ata‑
cadista de Energia Elétrica – MAE, que seria gerido por meio
da Administradora de Serviços do Mercado Atacadista de

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Energia Elétrica – Asmae, bem como o Operador Nacional do


Sistema Elétrico – ONS, inovando ao obrigar a separação dos con‑
tratos de suprimento entre a parte do monopólio (uso dos sis‑
temas de transmissão ou de distribuição, bem como aqueles
relacionados à conexão) e aqueles referentes ao produto (com‑
pra e venda de energia elétrica); e
(iv) Decreto n. 2.655, de 2 de julho de 1998, que tratou da explora‑
ção dos serviços de geração, transmissão, distribuição e comer‑
cialização de energia elétrica, regulamentou o MAE e o ONS,
bem como pormenorizou as diretrizes dos contratos iniciais,
marco necessário para a instituição do mercado livre, que subs‑
tituíram os contratos de suprimento, regulados na Lei n. 8.631,
de 1993 e no Decreto n. 774, de 1993.
Importante destacar que o RE­‑SEB não foi aplicado em sua ínte‑
gra. Como exemplos mais marcantes para os juristas, estão a recomen‑
dação de se criar um “Código de Energia Elétrica”, previsto para 31 de
dezembro de 1999 e jamais realizado, bem como a criação do Instituto
de Desenvolvimento do Setor Elétrico – Idese, que deveria realizar o
planejamento indicativo, a pesquisa, o desenvolvimento e medidas de
eficiência energética.
Logo, a estrutura institucional do setor elétrico, promulgada por
um complexo sistema normativo, poderia ser dividida em: (i) estrutura
política, com competências repartidas entre os três poderes (Executi‑
vo, Legislativo e Judiciário); (ii) estrutura regulatória e fiscalizatória,
exercida pelas agências reguladoras que atuam, direta ou indiretamen‑
te, com a área energética (Aneel, ANP e ANA); (iii) estrutura de mer‑
cado, na qual compradores e vendedores de energia elétrica deveriam
contabilizar o produto no Mercado Atacadista de Energia Elétrica –
MAE após viabilizarem as conexões elétricas nos termos designados na
legislação e pelo Operador Nacional de Sistemas – ONS; e (iv) estru‑
tura de remuneração tarifária, que passava a ser arcada integralmente
pelo consumidor, ao contrário do modelo estatal que fundava a remu‑

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Curso de Direito da Energia

neração da tarifa por um complexo sistema de repasses financeiros com


base na receita do contribuinte. Em artigo publicado em 2000, a jorna‑
lista Suely Caldas expressava o sentimento da época em relação às ati‑
vidades de uma agência reguladora.

Em seminário realizado na Espanha, agências reguladoras de di‑


versos países chegaram a uma unânime conclusão: as funções de or‑
ganizar, expandir, regular e fiscalizar o mercado avançaram e entraram
numa fase madura, em que as regras estão dadas e basta acompanhar
seu cumprimento pelas empresas. As agências agora precisam con‑
centrar energia numa segunda – e talvez a mais importante – etapa de
suas funções: a relação com o consumidor, a captação de insatisfações
com o serviço prestado, a análise da procedência das reclamações, o
julgamento das indenizações ao usuário, a tarifa justa que não onere
o público nem cause desequilíbrio financeiro da empresa. E, sobretu‑
do, buscar e tornar conhecidos canais de comunicação com a popula‑
ção, que sejam rápidos e eficazes. O público precisa saber como e
onde procurar a agência, dar seu recado, obter resposta, aprender a
respeitá­‑la e reconhecer que suas ações práticas buscam preservar os
seus direitos. 31

Concomitantemente, o aprofundamento da distância entre a ini‑


ciativa política e as lacunas jurídicas culminou em algumas das expres‑
sões mais empregadas naquela época pelos agentes de mercado:
ausência de segurança jurídica, falta de um marco regulatório, planeja‑
mento inexistente, enfim, uma sensação generalizada de que havia uma
intenção de se transformar um setor estatal e monopolista em privado
e competitivo, mas os métodos escolhidos, bem como a vontade polí‑
tica, eram gradualmente minados pela contundência dos fatos.
O sistema elétrico funcionava tecnicamente de forma satisfatória.
O Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS, criado pela Lei
n. 9.648, de 1998 e regulamentado pelo Decreto n. 2.655, de 1998, foi

31
CALDAS, Suely. Dependência política das agências. O Estado de S. Paulo, São
Paulo, 3 dez. 2000.

303

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instituído com as funções de coordenar e controlar a operação dos sis‑


temas elétricos interligados. O ONS administra e coordena a prestação
dos serviços de transmissão de energia elétrica por parte das transmis‑
soras aos usuários da rede básica, de forma a definir o quantitativo de
energia elétrica que cada uma das geradoras deveria produzir em de‑
terminado momento, a carga a ser repassada pelas con­cessionárias de
transmissão, bem como o quantitativo a ser vendido no varejo pelas
distribuidoras.
O modelo escolhido para realocar a energia elétrica no mercado
foi a regionalização. O conceito de submercados obedece às profun‑
das discrepâncias na capacidade de geração e de consumo de energia
elétrica nos diferentes Estados da Federação. Como há unidades fede‑
rativas que produzem mais do que necessitam e vice­‑versa, há a neces‑
sidade de intercâmbio energético para suprir todas as demandas
nacionais, sendo o ONS o órgão competente por ordenar o fluxo de
energia elétrica no sistema.
Por sua vez, havia significativas dificuldades regulatórias na es‑
trutura de mercado. No centro destas estava o Mercado Atacadista de
Energia Elétrica – MAE, gerido pela Administradora dos Serviços do
Mercado Atacadista de Energia Elétrica – Asmae. Este agente tinha
como competência liquidar as transações de compra e venda de ener‑
gia no curto prazo e gerir o sistema de contabilização da totalidade da
energia transacionada (curto e longo prazos) dos sistemas interliga‑
dos nacionais.
Os mecanismos de contabilização foram instituídos mediante
Acordo Multilateral, com base no art. 12 da Lei n. 9.648, de 26 de maio
de 1998, firmado pelos agentes interessados, objetivando compor o
ambiente de realização das transações de compra e venda de energia
elétrica nos sistemas elétricos interligados.
Todavia, o mercado não demonstrou capacidade de se autorregu‑
lamentar por meio do Acordo Multilateral. Como o elétron, com a
tecnologia atual, não é estocável em escala industrial, a ausência de

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Curso de Direito da Energia

operação do MAE inviabilizava a competitividade preconizada na re‑


estruturação do setor elétrico brasileiro. Afinal, sem contabilizar a
energia elétrica transacionada, não havia liquidação de valores, tam‑
pouco remuneração dos investidores.
O Acordo de Mercado, que fora homologado pela Resolução
Aneel n. 18, de 28 de janeiro de 1999, constituiu­‑se em contrato de
adesão subscrito por agentes de geração, comercialização, importa‑
ção e exportação de energia elétrica, estabelecendo a configuração, as
atribuições e competências da Asmae,32 na forma de pessoa jurídica
de direito privado, sob controle administrativo dos agentes signatá‑
rios do citado acordo. Todavia, as regras do MAE, embora previstas
no Acordo de Mercado para serem elaboradas pelos agentes e pro‑
postas para homologação em até 90 dias após a primeira Assembleia
Geral do MAE, realizada em 15 de outubro de 1998, somente foram
submetidas à Aneel em abril de 2000, sendo homologadas, após pro‑
cesso de Audiência Pública, por intermédio da Resolução Aneel n.
290, de 3 de agosto de 2000, onde foram fixadas diretrizes para a im‑
plantação gradual do MAE, tendo como marcos as datas de 1o de se‑
tembro de 2000 (primeira etapa) e 1o de julho de 2001 (segunda etapa)
para consolidação de procedimentos, os quais não foram implanta‑
dos em sua totalidade.

32
A Asmae foi constituída com a missão de operar o mercado e prover todo o supor‑
te administrativo, jurídico e técnico necessários para que o ambiente do MAE
pudesse funcionar adequadamente, sendo responsável pelas seguintes atividades:
(i) operar e administrar o Mercado; (ii) registrar os Agentes e os contratos bila‑
terais; (iii) Administrar o Sistema de Contabilização e Liquidação de Energia –
Sinercom; (iv) gerenciar a mediação comercial; (v) estabelecer o preço da energia
no MAE; (vi) implantar e monitorar as Regras de Mercado; (vii) definir os
procedimentos de Mercado; (viii) promover o permanente acompanhamento le‑
gal da operação do Mercado, propondo alterações quando necessário; (ix) pro‑
ver os treinamentos necessários aos Agentes; e (x) implementar ferramentas de
serviços aos Agentes, usando alta tecnologia de informação, com recursos de
telecomunicações e Internet.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Assim, em função da falta de cumprimento dos marcos antes cita‑


dos, da ausência de contabilização das transações, da não liquidação
financeira das diferenças e do crescente número de pendências e dispu‑
tas entre agentes, a Aneel publicou as Resoluções n. 160, 161 e 162,
todas de 20 de abril de 2001, como primeira tentativa de solucionar os
impasses na contabilização da energia no MAE. Constatado o insuces‑
so da autorregulamentação, e após várias negociações junto ao Poder
Concedente dos diversos agentes de mercado e associações de classe, o
MAE passou a ser “submetido a autorização, regulamentação e fiscali‑
zação pela Aneel”, por meio da Medida Provisória n. 29, de 7 de feve‑
reiro de 2002, convertida na Lei n. 10.433, de 24 de abril de 2002.
Muitos são os argumentos que podem justificar as dificuldades se‑
toriais enfrentadas naquele período. A abrupta escassez de recursos
financeiros externos decorrentes da crise financeira dos países asiáticos
em outubro de 1997, seguida pela moratória russa decretada em 17 de
agosto de 1998, fez com que os países centrais retirassem seus recursos
de países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, que enfrentou um
forte problema cambial nos anos seguintes. Assim, conceber um mo‑
delo que pressupõe volume de crédito em um cenário de escassez fi‑
nanceira não contribuiu para o fortalecimento setorial, que em último
caso contribuiu para o racionamento de energia elétrica de 2001, que
terá um tratamento subsequente e apartado.
No que concerne ao regime jurídico que se buscava implementar,
em que pese haver uma clareza de propósitos – o setor de energia elé‑
trica seria totalmente privado e o de petróleo teria a Petrobras en‑
quanto estatal, mas com quebra de monopólio na exploração –, a
tônica era a precariedade da legislação. Diferentemente do ocorrido
em relação ao setor de telecomunicações, não houve um novo código
que reorientasse a atividade setorial, mas adaptações legislativas pon‑
tuais e, muitas vezes, incompletas, em que a realidade sempre se so‑
brepunha à norma posta. Como exemplo, pode­‑se destacar a concepção
do Self­‑Dealing e do Valor Normativo – VN, que eram concebidos

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Curso de Direito da Energia

como estímulos ao investimento e referência de preço no setor elétri‑


co. Esses conceitos migraram rapidamente de solução para identifica‑
ção de preço setorial para empecilho ao desenvolvimento do sistema.
Na síntese de Lustosa,33

[...] (i) embora o self­‑dealing e o Valor Normativo tenham sido


concebidos como instrumentos (i.1.) de estímulo à expansão do parque
gerador e à diversificação da matriz energética nacionais; e (i.2.) de tu‑
tela da livre concorrência e da modicidade tarifária, posteriormente, na
prática, na avaliação do Poder Público, a forma de implementação de
tais instrumentos foi considerada insatisfatória aos propósitos para os
quais foram criados, apresentando uma série de distorções;
(ii) apesar de o Comitê de Revitalização do Setor Elétrico ter
buscado manter e aperfeiçoar tais instrumentos no período pós­
‑racionamento, estes, gradualmente, foram perdendo sua funcionali‑
dade, quer em razão da criação de outras figuras com as mesmas
funções, como é o caso da CDE, criada com a finalidade (de) financiar
a expansão e a diversificação do parque gerador nacional, quer em
razão da postura dos órgãos reguladores setoriais (MME e Aneel) em
face de tais instrumentos, e. g., adoço das Notas Técnicas n. 23/2003
– SEM/Aneel e 81/2003 – SFF/Aneel, que fixaram novos padrões
quanto ao que seria, no entender da Aneel, tutela da modicidade tari‑
fária e da livre concorrência.
(iii) Os fatos acima, associados à mudança nas diretrizes da polí‑
tica setorial, decorrente da sucessão presidencial no início de 2003, cul‑
minaram com a extinção do self­‑dealing e do Valor Normativo a partir
da inauguração do “novíssimo” modelo do setor elétrico, com a edição
da Medida Provisória n. 144/2003, posteriormente convertida pela Lei
n. 10.848/2004.

Assim, em que pese as dificuldades encontradas, o Primeiro Mode‑


lo Energético, voltado à regulação e competição do setor elétrico, teve

33
LUSTOSA, Isabel. Valor normativo e self-dealing. Efeitos de sua adoção e con‑
sequências de sua extinção. In: LANDAU, Elena (Coord.). Regulação jurídica
no setor elétrico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 496.

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como virtudes imediatas: (i) o equacionamento da insolvência setorial;


(ii) a separação das obrigações de consumidor daquelas de contribuinte;
e (iii) a criação do conceito de agência reguladora enquanto autarquia
especial, de agente financeiro para contabilizar a energia transacionada
no atacado e a transformação do operador do sistema em autônomo.
5.1.3.2 Eficiência Energética e Pesquisa & Desenvolvimento:
a origem no Procel
Não basta haver uma política pública para gerar mais energia, é
preciso usufruí­‑la de forma mais eficiente e com novas tecnologias. To‑
davia, esses conceitos somente se evidenciam nos momentos de escas‑
sez energética. Por exemplo, os dois marcos na regulamentação da
eficiência energética no Brasil coincidiram com a véspera das duas cri‑
ses recentes de fornecimento de eletricidade: os racionamentos de 1987
e de 2001.
No último ano do Regime Militar, a escassez dos recursos natu‑
rais, bem como a necessidade de desenvolvimento tecnológico, fize‑
ram com que os ministérios de Minas e Energia e da Indústria e
Comércio expedissem a Portaria Interministerial n. 1.877, de 30 de
dezembro de 1985, para tratar do assunto. O preâmbulo reflete o in‑
tuito daquele dispositivo:

Os Ministros de Estado das Minas e Energia e da Indústria e do


Comércio, no uso das suas atribuições, e
CONSIDERANDO o elevado potencial de conservação de
energia elétrica identificado em diversos estudos e avaliações realiza‑
dos no País;
CONSIDERANDO a necessidade de integrar e articular medi‑
das que maximizem os resultados de recursos aplicados em um amplo
esforço nacional de racionalização do uso de energia elétrica;
CONSIDERANDO os benefícios decorrentes do desenvolvi‑
mento e incorporação de novas tecnologias conservadoras de energia
para os diferentes setores da vida nacional;
CONSIDERANDO os reflexos significativos da conservação de
energia elétrica num contexto mais amplo do uso racional de energia;

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Curso de Direito da Energia

CONSIDERANDO o peso da energia elétrica no balanço ener‑


gético do País – cerca de um terço do consumo total de energia – e o
caráter específico das ações e medidas sugeridas, e
CONSIDERANDO os estudos e proposições do Grupo de Tra‑
balho – GT – Conservação, criado pela Portaria Interministerial n.
973, de 11 de julho de 1985, resolvem:
I – Instituir o Programa Nacional de Conservação de Energia
Elétrica – Procel, com a finalidade de integrar as ações visando a con‑
servação de energia elétrica no País, dentro de uma visão abrangente e
coordenada, maximizando seus resultados e promovendo um amplo
espectro de novas iniciativas, avaliadas à luz de um rigoroso teste de
oportunidade, prioridade e economicidade.

O êxito do projeto do Procel proporcionou a expansão dessa ini‑


ciativa, de forma a ser instituído, por força do Decreto n. 99.250, de 11
de maio de 1990, o Programa Nacional de Racionalização da Produção
e do Uso de Energia, com a finalidade de promover, articular e desen‑
volver ações visando à racionalização e maior eficiência na produção e
no uso de insumos energéticos no país.
Para tanto, foi criado o Grupo Executivo do Programa Nacio‑
nal de Racionalização da Produção e do Uso de Energia, com as
atribuições de: (i) propor os princípios e metas para a conservação
de energia do país; (ii) propor ações que resultem em conservação e
racionalização na produção e uso das diferentes formas de energia;
(iii) articular entre os programas de conservação de energia existen‑
tes na União, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios;
(iv) propor medidas de estímulos, adoção de normas e padrões mí‑
nimos à conservação de energia; (v) promover a difusão do conceito
de conservação em todos os níveis do sistema educacional brasilei‑
ro; e (vi) acompanhar, avaliar e promover a divulgação dos resulta‑
dos obtidos.
A década de 1990 pôde observar um desenvolvimento do Procel
enquanto programa governamental. Os principais instrumentos nor‑
mativos foram:

309

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

(i) o Decreto n. 99.656, de 26 de outubro de 1990, que dispôs


sobre a criação da Comissão Interna de Conservação de
Energia (Cice) em cada estabelecimento pertencente a órgão
ou entidade da Administração Federal seja intensivo em
energia;34
(ii) o Decreto de 18 de julho de 1991, que fixou o Programa Na‑
cional de Conservação de Energia Elétrica – Procel em conso‑
nância com as diretrizes do Programa Nacional de
Racionalização da Produção e do Uso da Energia, instituído
pelo Decreto n. 99.250, de 11 de maio de 1990;
(iii) o Decreto s/n, de 8 de dezembro de 1993, que dispôs sobre a
criação do Selo Verde de eficiência energética para identificar
os equipamentos que apresentem níveis ótimos de eficiência
energética;
(iv) o Decreto s/n, de 8 de dezembro de 1993, que dispôs sobre a
instituição do Prêmio Nacional de Conservação e Uso Racio‑
nal da Energia;
(v) o Decreto n. 1.040, de 11 de janeiro de 1994, que determi‑
nou que os agentes financeiros oficiais de fomento deverão
incluir, em suas linhas prioritárias de crédito e financiamen‑
to, os projetos destinados à conservação e uso racional da
energia e ao aumento da eficiência energética, inclusive os
projetos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico nestes
campos; e
(vi) o Decreto n. 3.330, de 6 de janeiro de 2000, que dispõs so‑
bre a redução do consumo de energia elétrica em prédios
públicos da Administração Pública Federal e dá outras pro‑
vidências.

34
Apresente consumo anual de energia elétrica superior a 600.000 KWH (seiscen‑
tos mil quilowatts/hora) ou consumo anual de combustível superior a 15 tep’s
(quinze toneladas equivalentes de petróleo).

310

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Curso de Direito da Energia

Outro ponto de inflexão legislativa sobre eficiência energética foi


a publicação da Lei n. 9.991, de 24 de julho de 2000.35 Em que pese os
contratos de concessão até então expedidos pelo Poder Concedente
conterem destinação de receita para essa finalidade, a hipótese em abs‑
trato somente veio com a presente lei, que obrigava as concessionárias
e permissionárias de serviços públicos de distribuição de energia elétri‑
ca a aplicar, anualmente, o montante de, no mínimo, 0,75% de sua re‑
ceita operacional líquida em pesquisa e desenvolvimento do setor
elétrico e 0,25% em programas de eficiência energética no uso final.
As questões ambientais foram internalizadas por meio da Lei n.
10.295, de 17 de outubro de 2001, que dispôs sobre a Política Nacional
de Conservação e Uso Racional de Energia, por intermédio da aloca‑
ção eficiente de recursos energéticos e a preservação do meio ambiente.
Por sua vez, a Lei n. 10.334, de 19 de dezembro de 2001, dispôs sobre
a obrigatoriedade de fabricação e comercialização de lâmpadas incan‑
descentes para uso em tensões de valor igual ou superior ao da tensão
nominal da rede de distribuição.
Com esse arcabouço jurídico vigente, bem como a previsão ex‑
pressa nos contratos de concessão setoriais, foi possível obter resulta‑
dos animadores. Todavia, esse mercado ainda não ganhou os contornos

35
Existiram ao longo da vigência da lei três regulamentos: Decreto n. 3.867, de 16
de julho de 2001, Decreto n. 5.879, de 22 de agosto de 2006, e Decreto n. 7.204,
de 8 de junho de 2010. Na redação atual, deve ocorrer até 31 de dezembro de
2015, os percentuais mínimos definidos no caput deste artigo serão de 0,50%
tanto para pesquisa e desenvolvimento como para programas de eficiência ener‑
gética na oferta e no uso final da energia.
Importante notar que o Decreto n. 7.204, de 8 de junho de 2010, expõe que a
verba de eficiência energética e pesquisa e desenvolvimento será empregada para
custear o ressarcimento de Estados e Municípios que tiverem perda de receita,
decorrente da arrecadação de Imposto sobre Operações relativas à Circulação de
Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunici‑
pal e de Comunicação – ICMS incidente sobre combustíveis fósseis utilizados
para geração de energia elétrica, nos 24 meses seguintes à interligação dos respec‑
tivos Sistemas Isolados ao Sistema Interligado Nacional – SIN.

311

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observados em outros países. Na boa síntese de Kelman,36 pronunciada


na função de Diretor­‑Geral da Aneel, o setor elétrico brasileiro aplica
em P&D 20% do que investe o setor elétrico norte­‑americano, o que
justificaria a compulsoriedade de investimento, para fomentar a ciência
e a tecnologia no país.
5.1.3.3 Programa de racionamento de energia elétrica de 2001:
História, a GCE, o Relatório Kelman, a CBEE e o Anexo V
Considerando a tecnologia atual implementada no setor elétrico,
a energia elétrica não é estocável em escala industrial. Toda a lógica
setorial impõe que determinado elétron seja produzido e consumido
quase que simultaneamente. Assim, pode­‑se afirmar que existe uma
íntima relação entre intensidade do racionamento e nível de integra‑
ção energética.
O racionamento de 2001 não foi o único momento em que o Brasil
sofreu com o contingenciamento energético. Em rápida digressão, é
importante lembrar momentos históricos em que faltou energia no
país; ou, em linguagem econômica, períodos em que a demanda foi
maior do que a oferta. A primeira situação foi a que culminou com a
vinda do engenheiro Billings a São Paulo na década de 1920, pela Light,
em que havia o claro interesse em estruturar um modelo técnico que
possibilitasse a expansão energética contra a escassez. Todavia, esse
planejamento foi quase que integralmente feito por uma empresa pri‑
vada (Light), com a estrita finalidade de garantir a expansão da oferta
em sua área de concessão. A estiagem de 1924­‑1925 em São Paulo obri‑
gou o Governo do Estado a adotar medidas severas para conter o con‑
sumo, bem como apressou a construção da usina de Rasgão, no rio
Tietê, entre os municípios de Pirapora e Cabreúva.
Após a federalização de 1934, com o advento da Segunda Grande
Guerra em 1939 e a posição brasileira de aderir aos Aliados, o país, de

36
KELMAN, Jerson. Revista P&D. Disponível em: <http://www.Aneel.gov.br/
arquivos/PDF/Revista_PD.pdf.>, p. 5. Acesso em: 22 jul. 2011

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alta dependência tecnológica externa, se viu obrigado a adotar determi‑


nadas medidas emergenciais que refletiam claramente a opção política
e militar realizada. Como exemplo, o Decreto­‑Lei n. 3.534, de 21 de
agosto de 1941, abriu crédito especial ao Conselho Nacional de Petróleo
para atender às medidas de emergência com o racionamento de com‑
bustíveis líquidos minerais. Por sua vez, o Decreto­‑Lei n. 4.272, de 17
de abril de 1942, estabeleceu o racionamento de automóveis e cami‑
nhões com grandes vantagens aos produtos norte­‑americanos, incluin‑
do ampla isenção de impostos. Havia uma evidente dificuldade em se
importarem os equipamentos necessários para a manutenção dos siste‑
mas elétricos, decorrente da guerra.
O primeiro instrumento jurídico a tratar de hipóteses de raciona‑
mento de energia elétrica foi o Decreto­‑Lei n. 4.295, de 13 de maio de
1942, que estabeleceu medidas de emergência e transitórias, relativas à
indústria da energia elétrica. Em um momento em que se buscava in‑
dustrializar o país, far­‑se­‑ia necessário indicar as medidas que o gover‑
no tomaria na hipótese de faltar energia. Interessante notar que no ano
da edição do Decreto­‑Lei era criada a indústria que seria até então o
maior consumidor de energia elétrica do país, a Companhia Siderúrgi‑
ca Nacional – CSN.
O Decreto­‑Lei inovava ao delegar, ao Conselho Nacional de
Águas e Energia Elétrica – CNAEE, competência para regular a
energia elétrica de forma racional e econômica, apontando o melhor
aproveitamento da energia produzida, mediante mudanças de horá‑
rios de consumidores ou por seu agrupamento em condições mais
favoráveis, bem como o fornecimento a novos consumidores. Era o
conceito de eficiência energética que surgia como instrumento de
combate à escassez.
O CNAEE também teria competência de obrigar o estabeleci‑
mento de novas instalações de produção de energia elétrica e das com‑
plementares, de transmissão, transformação e distribuição, para evitar
deficiências nas zonas de operação atribuídas às empresas. Esse institu‑

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to se justificava pela ausência de interligação entre os diversos sistemas


elétricos existentes no Brasil. Como não havia a possibilidade de enviar
energia elétrica de um sistema em que houvesse sobras para outro com
déficit, a solução legal foi obrigar as concessionárias em situação de
escassez técnica a prover sua concessão de novos ativos. Enquanto não
fosse possível, em certas áreas de concessão, atender a todas as necessi‑
dades do consumo de energia elétrica, o fornecimento seria racionado
segundo determinada hierarquia – ou na linguagem do Decreto­‑Lei,
uma seriação preferencial – estabelecida pelo CNAEE.
Esse instrumento ainda inova por dispor, em lei, de mecanismos de
financiamento público para subsidiar a constituição de tais ativos. Es‑
tariam à disposição das concessionárias linhas de crédito do Banco do
Brasil, da Previdência Social. Não era para menos. Essa atividade, se‑
gundo a norma, deveria ter tratamento análogo ao conferido às indús‑
trias de defesa nacional. Lembramos que em 1942, ano do Decreto­‑Lei,
o mundo se encontrava na Segunda Grande Guerra.
Como não existia uma indústria nacional de materiais elétricos
consolidada, a norma previa os mecanismos de importação desses
equipamentos, nas quais teriam prioridade na pauta de importações.
Os materiais elétricos estavam imediatamente após aqueles referentes à
defesa na hierarquia das importações, quais sejam, as centrais gerado‑
ras de potência igual ou superior a 2.000 kv e a linhas de transmissão
de tensão igual ou superior a 25 kv. Esse Decreto­‑Lei ainda dispunha
de mandamento de nacionalização de ativos, na hipótese de empresas
possuírem capitais pertencentes a cidadãos de países com os quais o
Brasil haja rompido relações diplomáticas ou comerciais. A presente
iniciativa seria do Poder Executivo, mediante Decreto, de forma a ca‑
racterizar o confisco.
De forma a regulamentar a norma, o Decreto n. 10.563, de 2 de
outubro de 1942, enunciou a classificação do racionamento. Consta
do § 1o do art. 1o a previsão de como a insuficiência de energia elétrica
deveria ser caracterizada: (i) à potência, caso que acarreta o raciona‑

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mento de demanda ou do kW, de forma que, quando preventivo, será


aplicável após a diversificação da demanda, obtidas pelo rodízio do
descanso semanal das indústrias e pelos deslocamentos de horários de
consumidores ou grupos de consumidores; e (ii) à quantidade de ener‑
gia, hipótese de que decorre o racionamento de consumo ou do kWh,
que buscará a eliminação das utilizações prescindíveis a juízo do
CNAEE, tais como aquelas de caráter ornamental, recreativo, espor‑
tivo e de propaganda, bem como usinas termoelétricas sujeitas a racio‑
namento em consequência de escassez de combustível. Nas palavras
de Álvares,37

O racionamento de demanda, isto é, de kW, por eventual deficiên­


cia de potência, deverá tirar o maior partido da diversificação de
demanda, obtida pelo rodízio do descanso semanal das indústrias e
deslocamentos de horários de consumidores, de modo a utilizar de
maneira mais racional e economicamente possível as instalações dispo‑
níveis, na forma do decreto­‑lei 4.295, de 1943. [sic]
Já o racionamento de consumo, que se refere a kWh, está inteira‑
mente ligado ao estágio de distribuição, conquanto substancialmente
seja um problema típico de produção de energia elétrica, e procura
eliminar todo consumo dispensável, inclusive chegando a suspender
novas ligações.

A norma ainda divide o racionamento em preventivo e corretivo,


sendo o primeiro quando objetivar impedir os efeitos nocivos de futuras
deficiências de energia elétrica, e o segundo para eliminar os efeitos pre‑
judiciais de deficiências de energia elétrica existentes. Em ambas as situa‑
ções, o CNAEE tinha um papel central na condução de seu desenlace. As
novas ligações estariam suspensas em caso de racionamento, entendida
esta premissa como o atendimento a quaisquer consumidores das regiões
em que a energia elétrica já esteja racionada, assim como a determinados

37
ÁLVARES, Walter Tolentino. Direito da energia. Belo Horizonte: Instituto de
Direito da Eletricidade, 1974. v. 2, p. 391.

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consumidores de zonas em que o CNAEE estiver estudando o raciona‑


mento, podendo definir por zona ou por classe de consumidores.
Em que pese não haver previsão na legislação, Álvares ainda men‑
ciona o blecaute como uma característica próxima ao conceito de racio‑
namento, que em sua linguagem foi denominada deslastre de carga.

Uma figura que a tecnologia moderna contribui para o serviço de


energia é a do deslastre de carga, que tangencia a temática do raciona‑
mento. Com efeito, o deslastre de carga é uma suspensão automática
do fornecimento de energia, mediante o corte rápido de carga, toda vez
que possa ocorrer uma perturbação de vulto no sistema, de sorte a não
só limitar os efeitos do distúrbio, bem como restabelecer com rapidez
as condições normais do fornecimento de energia a todo o sistema.
Dentro deste conceito supra, a nova figura constitui uma denominação
mais sofisticada de um racionamento corretivo e de urgência.38

Tal legislação demonstrou relativa eficácia por 40 anos, momento


em que houve racionamentos no interior de diversos Estados, como o
ocorrido em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1952.39 A região Sudes‑
te enfrentava uma forte estiagem, que durou de 1950 a 1955, mas não
era a única atingida pelo contingenciamento energético.

Além do Rio e de São Paulo, como se disse, também se verifica‑


ram racionamento nos sistemas das EEB (AMFORP): o da Compa‑
nhia Força e Luz de Minas Gerais, em Belo Horizonte (1959/60), o da
Companhia Força e Luz do Paraná, em Curitiba (1962), e o da Com‑
panhia Central Brasileira de Força Elétrica, em Vitória e Cachoeiro do
Itapemirim, Espírito Santo (1962).40

38
ÁLVARES, Walter Tolentino. Direito da energia. Belo Horizonte: Instituto de
Direito da Eletricidade, 1974. v. 2, p. 393.
39
Conforme exposto na Resolução n. 177, de 29 de julho de 1952, da Câmara dos
Deputados.
40
EXÉRCITO. Energia elétrica no Brasil (da primeira lâmpada à Eletrobras). Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977. p. 68.

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Com o aumento progressivo da conexão dos sistemas elétricos,


intensificadas com a criação de Itaipu, cuja Lei n. 5.899, de 1973, que
prevê mecanismos de interligação entre os mercados das regiões Sul e
Sudeste, o suprimento no sistema tendia a se tornar mais seguro. Toda‑
via, quando falhavam, os racionamentos no interior desses sistemas se
mostravam proporcionalmente mais agressivos, afetando um número
maior de consumidores. Como exemplo, em 1967, a ausência de ener‑
gia foi tamanha que justificou a intervenção da União nas relações tra‑
balhistas. Por meio do Decreto­‑Lei n. 133, de 1o de fevereiro de 1967,
foi permitido o trabalho até às 23 horas, em caráter excepcional e
enquanto perdurasse o racionamento de energia elétrica nos Estados
da Guanabara e do Rio de Janeiro. Era uma tentativa de se deslocar o
consumo de energia, diminuindo a carga no horário de pico do siste‑
ma. Assim, logo que fosse assegurado um fornecimento de energia
contínuo entre 12 e 18 horas, as empresas poderiam compensar, inde‑
pendentemente de pagamento de adicional, as duas horas restantes do
período normal da jornada de trabalho.41
Entre janeiro e março de 1986 ocorreu na região Sul breve raciona‑
mento, fato que, do ponto de vista normativo, fez a União perceber
que a legislação correlata não atendia mais às necessidades atuais. An‑
tevendo a possibilidade de novos racionamentos, foi editado o Decreto
n. 93.901, de 9 de janeiro de 1987, que, ao enunciar que contingências
poderiam afetar a qualidade e a continuidade do fornecimento de ener‑
gia elétrica aos consumidores, previu que esta seria racionada quando
os meios existentes de produção, transmissão, transformação ou distri‑
buição fossem insuficientes para atendimento da potência (kW) ou
energia (kWh) requeridas. Mais simples e objetiva do que a legislação
da década de 1940, que previa formas de financiamento e importação

41
Segundo o art. 4o, as empresas devem comunicar às Delegacias Regionais do
Trabalho da respectiva jurisdição, dentro do prazo de 10 dias, o novo horário de
trabalho que adotarem para aplicação dos critérios previstos neste decreto-lei.

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de equipamentos, o Decreto n. 93.901, de 1987, demonstrava que o


país tinha outro perfil. Afinal, o Sistema Interligado Nacional – SIN
permitia o intercâmbio de energia elétrica entre regiões distintas.
De forma a confirmar todas as previsões, dois meses depois da
publicação do Decreto n. 93.901 houve racionamento de energia elétri‑
ca na região Nordeste, que perdurou quase um ano. Amplos debates
ocorreram no Congresso Nacional. Região com grande bancada parla‑
mentar, a Resolução do Senado Federal n. 8, de 6 de abril de 1987, criou
Comissão de Inquérito destinada a investigar: (i) as consequências eco‑
nômicas e sociais, para parte da região Norte, toda a região Nordeste e
o Estado de Goiás, do racionamento de energia elétrica, determinado
na Portaria MME n. 94, de 27 de janeiro de 1987; (ii) as soluções, de
curto prazo, que impeçam a manutenção desse racionamento e sua am‑
pliação a outras regiões do país; (iii) a política vigente para o setor elé‑
trico; e (iv) as soluções, de curto, médio e longo prazos, para a
retomada do crescimento do setor, implicando toda uma revisão dessa
política. Algumas conclusões foram tiradas desse evento, dentre as
quais a de que a escassez de recursos para investimento na década de
1980 foi a grande culpada pela ausência de energia, fato que culminou
no atraso de obras prioritárias da Chesf, aliado às condições hidrológi‑
cas desfavoráveis do verão de 1986­‑1987.
Todavia, nada se compara em magnitude, velocidade de informa‑
ção e alcance nacional ao racionamento de 2001. Com a maturidade da
sociedade brasileira, inúmeros trabalhos científicos foram produzidos
sobre o tema. Com o advento da Internet, informações sobre os im‑
pactos em cada região eram rapidamente proliferadas. Os apagões e
blecautes entravam na lista das grandes ameaças contra a humanidade,
dada a inviabilidade de se garantir a segurança pública em tais situa‑
ções. Sem falar na incompatibilidade dessa contingência com a socieda‑
de contemporânea. Veículos colidem nas ruas, caixas eletrônicos não
funcionam, elevadores ficam desligados e aparelhos queimam. Há risco­
de vida para pessoas em hospitais que necessitam de ajuda de apare‑

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lhos, o ar­­‑condicionado de herméticos shopping centeres para e a água


não alcança o topo dos edifícios para as atividades de saneamento.
Importante notar que o racionamento energético não é um privi‑
légio brasileiro. Rosa42 descreve, por exemplo, os motivos que causa‑
ram o racionamento de 2001 na Califórnia:

Na Califórnia, a crise se deve a uma desregulamentação malfeita,


baseada na crença de ser o puro mercado suficiente para estimular os
geradores independentes de energia elétrica a competir, reduzindo o
preço.
Isso não ocorreu. As duas concessionárias, a Edison e a Pacific,
estão atravessando dificuldades por causa do elevado preço da energia
elétrica gerada. E isso a ponto de tornar economicamente inviável a
própria operação. Essas empresas alegam prejuízos. O Estado e a po‑
pulação ficaram à mercê da crise. Entre outros fatores, contribuíram
para isso a alta do preço do gás, arrastado pelo petróleo, e a preferência
pelo mercado “spot”, em lugar de contratos de longo prazo. Isso acon‑
teceu nos EUA, que tem um modelo semelhante ao do Brasil.

O cenário hidrológico brasileiro estava caótico. Decorrido quase


todo o período úmido, de novembro de 2000 a abril de 2001, os reser‑
vatórios encontravam­‑se em níveis muito abaixo do comum e eram
insuficientes para atender a demanda no restante do ano. Assim, far­‑se­
‑ia necessário conter a demanda, com uma redução compulsória do
consumo.
A linha que separa a vertente política daquela técnica quando se
trata de energia é extremamente tênue, fato que se acentua em situações
de escassez energética. O impacto normativo do racionamento pode
ser percebido por força da Medida Provisória n. 2.147, de 15 de maio
de 2001, que criou e instalou a Câmara de Gestão da Crise de Energia
Elétrica – GCE, do Conselho de Governo, e estabeleceu diretrizes

42
ROSA, Luiz Pinguelli. A Califórnia é aqui; vivemos uma crise disfarçada. Folha
de S.Paulo, São Paulo, 1o fev. 2001.

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para programas de enfrentamento da crise de energia elétrica. No dia


seguinte, a GCE emitia suas primeiras resoluções, que produziram
grande impacto nas atividades da sociedade naquele momento. Dada
sua importância, reproduz­‑se abaixo a Resolução n. 1, de 16 de maio de
2001, que demonstra com clareza o nível de intervenção estatal nas
atividades em energia elétrica.

CÂMARA DE GESTÃO DA CRISE DE ENERGIA ELÉTRICA


Resolução n. 1, de 16 de maio de 2001.
O PRESIDENTE DA CÂMARA DE GESTÃO DA CRISE
DE ENERGIA ELÉTRICA, no uso de suas atribuições, por decisão
ad referendum, ouvidos previamente os membros do núcleo executivo
na forma do § 5o do art. 3o da Medida Provisória n. 2.147, de 15 de maio
de 2001, e
Considerando a necessidade de racionalização do uso de energia
elétrica em função das previsões de disponibilidade energética para os
próximos meses;
Considerando a necessidade de implementação de medidas ime‑
diatas de redução do consumo de energia elétrica; e
Considerando a necessidade de estabelecer as diretrizes iniciais
para subsidiar as ações das empresas concessionárias de distribuição de
energia elétrica,
Resolve:
Art. 1o Determinar que as concessionárias, permissionárias e au‑
torizadas de serviços públicos de distribuição de energia elétrica, loca‑
lizadas nas Regiões Sudeste, Centro­‑Oeste e Nordeste, adotem a
redução de fornecimento de energia elétrica às unidades consumidoras
por elas atendidas iniciando pelas medidas imediatas de racionamento
a seguir enumeradas:
I – suspender:
a) o atendimento a novas cargas, exceto aquelas já contratadas
até a data de publicação desta Resolução e as ligações residenciais e
rurais;
b) os atendimentos a pedidos de aumentos de carga, exceto aque‑
les já contratados até a data de publicação desta Resolução;

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c) o atendimento a pedidos de fornecimento provisório, tais


como: festividades, circos, parques de diversões, exposições e shows
em recintos abertos e similares;
d) o fornecimento de eletricidade para realização de eventos es‑
portivos noturnos, tais como jogos de futebol, voleibol, basquetebol e
similares;
e) o fornecimento de energia elétrica para fins ornamentais e de
propaganda, tais como em monumentos, chafarizes, outdoors, facha‑
das de prédios da Administração Pública Federal;
II – reduzir o fornecimento de eletricidade para o atendimento da
carga de iluminação pública em pelo menos trinta e cinco por cento,
até 30 de junho de 2001, observando condições aceitáveis de segurança
da população.
Art. 2o Ficam suspensas as disposições constantes de outras regu‑
lamentações em vigor, que contrariem o estabelecido nesta Resolução.
Art. 3o As dúvidas e os casos não previstos nesta Resolução serão
resolvidos e decididos pela Câmara de Gestão da Crise de Energia Elé‑
trica – GCE.
Art. 4o Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação
PEDRO PARENTE

Rolim43 pormenoriza e reforça a precariedade jurídica na qual a


legislação tratou a questão do racionamento de 2001.

A emergência da situação foi deflagrada com a divulgação de um


Programa de Enfrentamento da Crise de Energia Elétrica, feita inicial‑
mente por intermédio da publicação da Medida Provisória n. 2.147, de 15
de maio de 2001, e, atualmente, disposto na Medida Provisória n. 2.198­‑5,
de 24 de agosto de 2001, que vem sendo reeditada sucessivamente. A le‑
gislação referente criou e instalou a Câmara de Gestão da Crise de Ener‑
gia Elétrica (GCE) como órgão gestor do referido programa.

Com a Medida Provisória n. 2.147 e suas reedições, bem como a


atuação normativa da GCE, buscou­‑se conferir uma política pública

43
ROLIM, Maria João C. Pereira. Direito econômico da energia elétrica. Rio de
Janeiro: Forense, 2002. p. 221.

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para enfrentar aquele desafio contingencial. Foi o meio escolhido para


implementar medidas de natureza emergencial, com o objetivo de
compatibilizar a demanda e a oferta de energia elétrica. Não se desejava
a suspensão compulsória do fornecimento, todavia, havia uma impos‑
sibilidade real de atender ao consumo. Ao viabilizar a criação da GCE,
o Governo Federal, em última análise, demonstrava total descrença do
governo nos órgãos setoriais anteriormente constituídos. Nas palavras
de Jabur,44

Interpretações à parte, o fato é que só a partir da criação da GCE


a luz começou a surgir no final do túnel. Como diz o jornalista Maurí‑
cio Corrêa, “do ponto de vista institucional, a criação da Câmara foi
uma violência, pois cassou a autonomia da Aneel e transformou o Mi‑
nas e Energia em um ministério de segunda categoria”. Já do ponto de
vista prático, “a GCE foi um sucesso absoluto”, completa ele. “A Câ‑
mara conseguiu estabilizar a situação e reverter o quadro de desastre na
região mais rica do País, que é o Sudeste”. Como conta Mauro Arce,
secretário de Energia de São Paulo e membro da GCE, com o tempo
ela “se transformou no órgão centralizador para onde são encaminha‑
das todas as dúvidas e problemas relacionados ao setor elétrico e não
só à crise de oferta”.
A princípio, a GCE concentrou­‑se nos programas de redução do
consumo e expansão da oferta de eletricidade. Pouco depois, assumiu
a responsabilidade de reequilibrar o Mercado Atacadista de Energia –
MAE, que passava por uma de suas fases mais difíceis. Finalmente,
criou a comissão de revitalização do setor elétrico, com o objetivo es‑
pecífico de buscar soluções para os problemas estruturais que impe‑
diam a transição.

No bojo da Medida Provisória n. 2.147 e suas reedições, dentre


outras determinações, constava a adoção de tarifas diferenciadas con‑
forme a faixa de consumo de energia elétrica, que eram majoradas em

44
JABUR, Maria Angela. Racionamento: do susto a consciência. São Paulo: Terra
das Artes Editora, 2001. p. 53.

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função da classe de consumo, instituía metas, fixadas em percentuais,


com o objetivo de forçar a redução de consumo, bem como a suspensão
do fornecimento de energia para os consumidores que não alcançassem
as metas. Grande responsabilidade foi colocada sobre as distribuidoras
de energia elétrica, que deveriam operacionalizar o contingenciamento
de carga na sua área de concessão e relacionar­‑se com seus consumido‑
res, analisando as metas e conferindo tratamento isonômico para as
unidades consumidoras de uma mesma classe, ressalvadas as políticas
macroeconômicas definidas pelo Governo Federal.
No tocante a prioridade, todos os consumidores deveriam partici‑
par do esforço de redução de carga. Todavia, haja vista critérios isonô‑
micos, na medida em que os consumos de energia elétrica destinados
ao lazer e ornamentação estariam submetidos a condições severas de
redução de carga, em benefício das atividades produtivas, os segmentos
teriam tratamento menos restritivo, respeitada a seguinte ordem de‑
crescente: poder público administrativo; residencial; comércio e servi‑
ços; industrial e rural; instalações militares; e serviços essenciais, sendo
estes últimos caracterizados, sem hierarquia, pelo abastecimento
d’água e saneamento; hospitais; segurança pública; bombeiros; trans‑
porte coletivo e comunicação.
Assim, vigeu o contingenciamento por cotas de consumo que,
caso não observadas, passariam a consubstanciar a suspensão do for‑
necimento. Eventuais necessidades de aumento de carga no curto
prazo, segundo a Resolução GCE n. 14, de 2001, deveriam ser sub‑
metidas ao Comitê Técnico de Aumento da Oferta de Energia a Cur‑
to Prazo. No exercício de suas atividades, foi identificada a
necessidade de contratar energia com características emergenciais,
desde que houvesse o menor custo possível aos consumidores. Dian‑
te da urgência, do volume de energia a ser contratado, bem como pela
diversidade de sua natureza jurídica, oriunda de geradores públicos,
privados, sob concessão, autorização, hidrelétricos e térmicos, fazia­
‑se imperativo que fosse centralizada em apenas uma entidade a con‑

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tratação dessa energia. O agente, de caráter excepcional e sem fins


lucrativos, estaria responsável: (i) pela assinatura dos contratos de
compra de energia elétrica; (ii) pela capacidade de energia contratada
junto aos geradores caracterizados como Produtores Independentes,
nos termos da lei; e (iii) pelo repasse financeiro às concessionárias
distribuidoras.
Importante notar que a GCE, que teve uma produção normativa
de pouco mais de uma centena de resoluções em menos de um ano,
chegou a ter um nível de interferência na sociedade tamanho, que
sequer jogos noturnos da seleção brasileira de futebol para as elimi‑
natórias da Copa do Mundo de 2002 puderam ocorrer no Brasil sem
que houvesse autorização expressa da GCE possibilitando acender
os holofotes.
Em paralelo ao desenrolar normativo imposto pelo racionamento,
para clarificar a situação sob a ótica técnica, foi produzido o Relatório
da Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico de Energia Elétrica,
finalizado em julho de 2001 e que se notabilizou como “Relatório Kel‑
man”, por ter sido coordenado por Jerson Kelman, então recém­
‑empossado Diretor­‑Presidente da Agência Nacional de Águas – ANA.
Kelman avaliou e identificou as causas estruturais e conjunturais do
desequilíbrio entre oferta e demanda de energia, de forma a concluir
que houve falhas no processo de transição do modelo anterior que
identificou a necessidade de novos investimentos nos estudos de pla‑
nejamento de expansão para o novo modelo setorial, ineficácia da ges‑
tão intragovernamental que culminaram na inobservância da gravidade
do problema, a ausência de arcabouço legal estabelecendo a responsa‑
bilidade pelo planejamento de expansão do setor elétrico e a instabili‑
dade regulatória generalizada.
Ao produzir esse relatório, expressamente mencionado e refe‑
rendado posteriormente na sabatina do Senado para posse na
diretoria­‑geral da Aneel em janeiro de 2005, Kelman rompia com a
lógica daquele momento histórico, de grande riqueza de fatos e per‑

324

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cepções, mas de frágil organicidade e sistematização do que preci‑


sava ser realizado. No tocante à legislação vigente, Kelman foi
enfático no relatório.45

Legislação incompleta e insuficiente


48. O Governo gere o Setor Elétrico utilizando três instrumentos
bem distintos e complementares: políticas públicas, planejamento e re‑
gulação. Através de políticas públicas, o governo sinaliza à sociedade
as suas prioridades e diretrizes para o desenvolvimento do Setor Elé‑
trico. O planejamento permite que se proponham metas de desenvol‑
vimento para o Setor alinhadas com as políticas energéticas vigentes. A
regulação é o elo entre a legislação setorial vigente e os mecanismos de
mercado. Estes três instrumentos devem ser desenvolvidos de forma
autônoma entre si, mas fortemente complementar. Isto não tem ocor‑
rido, sendo uma grande causa institucional da presente crise setorial.
A legislação existente algumas vezes é vaga e conflitante. Nem
sempre define com clareza as atribuições de cada instituição e nem
aloca responsabilidades específicas na gestão do Setor.46

Identificada a necessidade e as competências para equacionar as


questões políticas, econômicas, técnicas e jurídicas atinentes ao raciona‑
mento, o primeiro passo para resolver a situação foi a edição da Medida
Provisória n. 2.209, de 2001, que criou a Comercializadora Brasileira de
Energia Emergencial – CBEE. Na qualidade de empresa pública fede‑
ral, tinha natureza não financeira e estava vinculada ao Ministério de
Minas e Energia – MME. Com sede e foro no Município do Rio de Ja‑
neiro, tinha por objetivo adquirir, arrendar, alienar, contratar, viabilizar
o aumento da capacidade de geração e da oferta de energia elétrica de
qualquer fonte em curto prazo e superar a crise de energia elétrica, por
meio do reequilíbrio de oferta e demanda de energia elétrica.

45
KELMAN, Jerson. Relatório da Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico
de Energia Elétrica. Domínio público, p. 9.
46
Grifos do autor.

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A CBEE atuou com pessoal cedido de órgãos e entidades da Ad‑


ministração Pública Federal, assim como naquela época atuava a Agên‑
cia Nacional de Energia Elétrica – Aneel, e deveria ser extinta em 30 de
junho de 2006, após alcançar os objetivos previstos em sua criação e já
descritos. Sua governança foi instituída pelo Decreto n. 3.900, de 29 de
agosto de 2001. Começou­‑se, assim, uma verdadeira batalha conten‑
ciosa nos tribunais daqueles que se sentiram lesados em seus direitos.
Jabur resume aquele momento:

Dois ou três dias após o anúncio do programa, por exemplo, a


primeira liminar estava na Justiça. A ATN Internet, provedora na cidade
de Taubaté (estado de São Paulo), pedia ressarcimento por dados que
viesse a sofrer pela interrupção do fornecimento de energia. [...] a As‑
sociação das Donas de Casa de Minas Gerais, aliada ao Procon (Servi‑
ço de Proteção ao Consumidor) local, entrava com uma ação civil
pública na Justiça Federal, contra o governo federal e a Cemig (Cen‑
trais Elétricas de Minas Gerais) [...].
Do Rio de Janeiro e de Brasília saíram as primeiras liminares con‑
tra o racionamento. A primeira proibiu, provisoriamente, que a Light
e a Cerj47 (distribuidoras locais de eletricidade) cobrassem sobretaxa
dos consumidores. A segunda ordenou que a CEB (Centrais Elétricas
de Brasília) voltasse a fornecer eletricidade para os painéis luminosos
da empresa Look Papéis entre as 18 horas e meia­‑noite.
E assim, por meio de ações, liminares e protestos verbais – sem‑
pre registrados pela imprensa – a pressão da opinião pública foi tão
grande nos primeiros 10 ou 15 dias após a divulgação do plano, que o
governo foi obrigado a recuar em muitas de suas decisões. Mas não
sem antes mantê­‑lo intacto. Zylbersztajn48 chegou a dizer em público
que a única alternativa ao plano seria os “apagões”. No rol de medidas
práticas, a Advocacia Geral da União (AGU) organizou um batalhão
de 600 advogados apenas para combater as ações de racionamento. Na
linha do corpo a corpo, Gilmar Mendes, advogado­‑geral da União, e o

47
Logo após o término do período de racionamento, a Cerj mudou seu nome para
Ampla.
48
Diretor-Geral da Agência Nacional de Petróleo – ANP naquele momento.

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ministro Pedro Parente,49 coordenador da GCE, (realizaram) um ver‑


dadeiro périplo no STF e na OAB para argumentar a favor do plano.”50

No rol dos maiores questionamentos à legalidade do ordenamento


jurídico do racionamento, estava uma obscura tentativa de sobrepor a
legislação do racionamento ao Código do Consumidor. A malfadada
iniciativa foi refutada pelo próprio governo, na republicação da Medi‑
da Provisória.51
Mas, além de todos os problemas que também envolviam o cum‑
primento das cotas, havia a necessidade de se reequacionar financeira‑
mente o setor. No cumprimento de suas funções, a CBEE firmou
contratos de reserva de geração, de forma a garantir a oferta de energia
elétrica em situações emergenciais. Essa decisão ganhou o jargão de
“seguro antiapagão” ou, de forma reducionista, “seguro apagão”. Essa
disposição estava prevista no art. 28 da reeditada Medida Provisória
n. 2.198­‑5, de 24 de agosto de 2001, que elencava, nas disposições tran‑
sitórias, que eventual e futura necessidade de recomposição do equilí‑
brio econômico­‑financeiro de contratos de concessão, devidamente
comprovada na forma da legislação, far­‑se­‑ia nos termos do disposto
no art. 20, na forma do § 2o do art. 9o da Lei de Concessões, mediante
reconhecimento da Aneel, ressalvadas as hipóteses de casos fortuitos,
força maior e riscos inerentes à atividade econômica e ao respectivo
mercado.

49
Casa Civil.
50
JABUR, Maria Angela. Racionamento: do susto a consciência. São Paulo: Terra
das Artes Editora, 2001. p. 62-63.
51
Medida Provisória n. 2.148-1, de 22 de maio de 2001.
Cria e instala a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, do Conselho de
Governo, estabelece diretrizes para programas de enfrentamento da crise de
energia elétrica e dá outras providências.
Art. 25. Não se aplica a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, em especial os
seus arts. 12, 14, 22 e 42, às situações decorrentes ou à execução do disposto
nesta Medida Provisória e das normas e decisões da GCE.

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Em que pese haver relativo equacionamento de grandes questões


com a legislação acima disposta, havia dois outros pontos centrais a
serem resolvidos. O primeiro era viabilizar a contabilidade e a liqui‑
dação dos créditos pelo mercado atacadista de energia. Entretanto,
por questões metodológicas, este ponto será abordado no momento
em que versarmos sobre a Câmara de Comercialização da Energia
Elétrica – CCEE.
O segundo ponto, e não menos importante, era a necessidade de
enquadrar os contratos iniciais52 à realidade do racionamento, notada‑
mente a parte que tratava sobre a redução da energia contratada em
situação hidrológica crítica, que se popularizou à época como as dis‑
cussões sobre o “Anexo V”. A questão central pode ser resumida
como qual deveria ser o volume correto de venda de energia das gera‑
doras às distribuidoras.
O Anexo V estabelecia, em cenários de escassez, o limite máximo
de contingenciamento de 15%. Todavia, o racionamento de 2001 tinha
sido de 20%. Logo, a discussão era em cima dos 5% de diferença entre
as duas realidades, que não tinham sido regulados. Como o preço da
energia no mercado livre estava congelado em R$ 684,00 por MWh,
para as geradoras a aplicação das regras vigentes seria benéfica se elas
tivessem a energia para entregar, pois com esse preço elas conseguiriam
compensar grande parte de suas perdas totais. Todavia, elas ficaram
sem lastro. Para as distribuidoras, significaria uma quebra imediata do
equilíbrio econômico­‑financeiro, uma vez que esse preço, elevadíssi‑

52
Os contratos iniciais podem ser definidos como instrumentos jurídicos transi‑
tórios, que garantiriam as relações entre geradores e distribuidores de energia
elétrica enquanto estivesse alterando o modelo setorial de estatal para de merca‑
do, de forma a introduzir gradualmente a competição setorial, bem como pos‑
sibilitar a proteção dos agentes de mercado contra as oscilações de preços de
mercado de curto prazo, considerados voláteis e de preços baixos. Para apro‑
fundamento do tema, ver Nota Técnica n. 85/2003-SEM/Aneel e Parecer n.
313/2003-PF/Aneel.

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mo, seria repassado aos consumidores finais como um custo não ge‑
renciável, fato que oneraria desproporcionalmente o setor produtivo e
elevaria significativamente os níveis de furto, fraude e inadimplência
das faturas de energia elétrica. Tais fatos tinham potencial para tornar
ainda mais agudo o repasse dos custos, no qual os principais perdedo‑
res seriam os consumidores, que pagariam a conta, e o Governo Fede‑
ral, que contabilizaria em sua conta mais um revés em não equacionar
o problema. Logo, tornou­‑se claro que a questão não se resumia a
quem arcaria com os 5% da diferença, mas como tais interesses seto‑
riais seriam compostos e equacionados.
Em dezembro de 2001, momento em que o instituto da Medida
Provisória havia sido novamente regulamentado e sua reedição havia
sido proibida, foi publicada a Medida Provisória n. 14, que dispôs so‑
bre a expansão da oferta de energia emergencial, incluindo a instituição
do seguro­‑apagão (art. 1o), criação do Programa de Incentivo às Fontes
Alternativas de Energia Elétrica – Proinfa (art. 3o), os percentuais e
mecanismos de aplicação da recomposição tarifária extraordinária, que
fariam o acerto de contas resultante do Anexo V (art. 4o) e a instituição
de mecanismos financeiros e societários de compatibilização setorial a
essa nova realidade (art. 5o e seguintes).
Em seus arts. 2o e 3o, a Resolução Aneel n. 249, de 2002,53 traz a
descrição do Encargo de Capacidade Emergencial – ECE (seguro­
‑apagão) enquanto custos operacionais, tributários e administrativos,
incorridos pela Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial –
CBEE na contratação de capacidade de geração ou de potência. O
ônus seria rateado pelos consumidores finais de energia elétrica atendi‑
dos pelo Sistema Elétrico Interligado Nacional,54 de forma proporcio‑
nal ao consumo individual verificado. O ECE era fixado em R$/kWh

53
Que havia revogado a Resolução Aneel n. 71, de 2002.
54
Estavam excluídos dessa metodologia os consumidores da classe residencial clas‑
sificados como baixa renda.

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e deveria ser individualizado e identificado na fatura de energia elétrica


do consumidor. Por sua vez, a Medida Provisória n. 14, de 2001, foi
convertida na Lei n. 10.438, de 26 de abril de 2002, em que seu relator,
o deputado federal José Carlos Aleluia (PFL­‑BA), incluiu em seu bojo
outros aspectos que constavam do Projeto de Lei n. 2.905, de 2000, e
de sua autoria. Matéria da Agência CanalEnergia, que entrevistara Ale‑
luia naquele período, já demonstrava um discurso alinhado com os de‑
safios que pautariam o setor nos anos seguintes:

Entre os avanços, porém, Aleluia destaca a obrigatoriedade da


universalização dos serviços de eletricidade pelas empresas de distri‑
buição. “A desverticalização do setor tem que ser feita, é uma premissa
para as medidas. Outro ponto fundamental é a elaboração de um pro‑
grama de financiamento para Belo Monte, que não pode esperar so‑
mente pelos investimentos privados”, ressalva o deputado, referindo­‑se
ao projeto de construção da mega­‑usina da Eletronorte, com capacida‑
de instalada de 11.182 MW e investimentos estimados de US$ 3.7 bi.55

Por fim, é importante destacar que a CBEE foi liquidada por força
do Decreto n. 5.826, de 29 de junho de 2006, que estipulou competên‑
cia ao Ministério de Minas e Energia para coordenar e supervisionar os
procedimentos administrativos relativos ao inventário dos bens, direi‑
tos e obrigações da CBEE. Era o fim do ciclo do racionamento de
2001, que tantos efeitos jurídicos, sociais, políticos e econômicos cau‑
sou ao país.
A regulamentação sobre racionamento posterior a 2001 encontra
respaldo no art. 22 da Lei n. 10.848, de 2004, e emprega critério geográ‑
fico (região) para estipular proporcionalidade na obtenção de quotas.
A redação do dispositivo estipula que, ocorrendo a decretação de ra‑
cionamento de energia elétrica pelo Poder Concedente em uma região,

55
CanalEnergia. Disponível em: <www.canalenergia.com.br>. Acesso em: 10 de
out. 2008.

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todos os contratos por quantidade de energia do ambiente de contrata‑


ção regulada, registrados na CCEE, cujos compradores estejam locali‑
zados nessa região, deverão ter seus volumes ajustados na mesma
proporção da redução de consumo verificado. Resta às regras de con‑
tabilização da CCEE a faculdade de prever tratamento específico para
situações de restrição compulsória de consumo, visando a limitar seus
impactos sobre as regiões não submetidas ao racionamento.

5.1.4 Legislação do setor de petróleo: o CNPE e a ANP


O setor de combustíveis no Brasil teve, em 1990, uma primeira
tentativa de reestruturação. Considerando que o monopólio da União
sobre o petróleo e seus derivados estava assegurado na Constituição
Federal de 1988, o Programa Federal de Desregulamentação – PFD,
expedido no primeiro dia do governo Collor, por meio do Decreto
n. 99.179, de 15 de março de 1990, trouxe em seu bojo forte viés liberal,
como pode ser percebido logo em seu primeiro artigo:

Art. 1o Fica criado o Programa Federal de Desregulamentação,


fundamentado no princípio constitucional da liberdade individual,
com a finalidade de fortalecer a iniciativa privada, em todos os seus
campos de atuação, reduzir a interferência do Estado na vida e nas
atividades do indivíduo, contribuir para a maior eficiência e o me‑
nor custo dos serviços prestados pela Administração Pública Fede‑
ral e sejam satisfatoriamente atendidos os usuários desses serviços.

Quase dois meses depois, o Decreto n. 99.244, de 10 de maio de


1990, dispunha sobre a reorganização e o funcionamento dos órgãos
da Presidência da República e dos Ministérios. Dentre as alterações
estava a criação do Ministério de Infraestrutura (art. 1o, XI), a criação
do Departamento Nacional de Combustíveis – DNC (art. 222) com
um rol exaustivo de competências regulatórias, fato que possibilitou a
concomitante extinção do Conselho Nacional do Petróleo – CNP. Era
o Estado brasileiro novamente adquirindo ares liberais, que foi a tôni‑
ca daquela década. Importante ainda destacar que a Lei n. 8.176, de 8

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de fevereiro de 1991, definiu crimes contra a ordem econômica e criou


o Sistema de Estoques de Combustíveis, com o claro objetivo de evitar
desabastecimento do mercado nacional.
Dois anos depois, já na gestão do presidente Franco, foi promul‑
gada a Lei n. 8.723, de 1993, que dispôs sobre a redução da emissão de
poluentes por veículos automotores. Ao ser fundamentada na Resolu‑
ção n. 18, de 1986, do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Cona‑
ma, que criou o Programa Nacional de Controle de Poluição do Ar
por Veículos Automotores – Proconve, indicava a discricionaridade do
Poder Executivo em fixar entre 20% a 25% de álcool etílico anidro à
gasolina (art. 9o). As interfaces ambientais e energéticas começavam a
ser incorporadas na legislação setorial após a Conferência Mundial so‑
bre o Meio Ambiente Humano, realizada pelas Nações Unidas em Es‑
tocolmo, em 1972.
Outro marco fundamental para o desenvolvimento energético foi
a Emenda Constitucional n. 9, de 9 de novembro de 1995. Ao modifi‑
car o § 1o do art. 177 da Constituição Federal e facultar a contratação,
pela União, de empresas estatais ou privadas para atividades voltadas a
petróleo e gás, houve na prática o fim do monopólio da Petrobras em
hidrocarbonetos no Brasil. Celso Antônio Bandeira de Mello descreve
com peculiaridade o episódio.

Aqui não se trata de serviço público, mas de atividade sob regime


de monopólio estatal (art. 177, I­‑IV), flexibilizado por emenda consti‑
tucional patrocinada pelo Governo do Sr. Fernando Henrique Cardo‑
so: a de n. 9, de 9.11.1995, que inclui um § 1o ao art. 177, o qual veio
permitir que a União contrate com empresas privadas as atividades
previstas nos incisos I a IV do mesmo artigo.56

No tocante ao petróleo, Bucheb realiza oportuna intervenção,


sugerindo que a atividade de exploração de hidrocarbonetos no Brasil

56
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo.
21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 163.

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constitui intervenção estatal no domínio econômico em vez de ser


serviço público.

No Brasil, o constituinte originário, de 1988, e o derivado, de


1995, tinham visões opostas em relação ao monopólio do petróleo.
Não obstante, convergiram quanto a necessidade de incluir as ativida‑
des da indústria do petróleo – recurso natural não renovável e de rele‑
vante interesse estratégico – dentre aquelas que merecem uma
disciplina especial, equiparando­‑as, na prática, às atividades de presta‑
ção de serviço público, em face de sua relevância para o país, ainda que
em nenhum momento a lei ou a Constituição Federal denominem tais
atividades como sendo de serviço público.57

Essa situação trouxe de imediato dois efeitos: (i) uma política mo‑
nopsônica58 de gás, atrelada ao Direito Internacional, viabilizada pelo
Tratado de Brasília (firmado entre Brasil e Bolívia em 5 de agosto de
1996), que resultou em um Acordo para Isenção de Impostos Relativos
à Implementação do Projeto do Gasoduto Brasil­‑Bolívia, aprovado
pelo Decreto Legislativo n. 128, de 13 de dezembro de 1996, com vi‑
gência a partir de 1o março de 1997, com forte cunho de integração
regional;59 e (ii) a criação de uma política energética associada à estru‑

57
BUCHEB, José Alberto. Direito do petróleo: a regulação das atividades de ex‑
ploração e produção de petróleo e gás natural no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007. p. 21-22.
58
Ao buscar instituir um único comprador para o gás boliviano, havia uma orienta‑
ção do Itamaraty em promover com a Bolívia os mesmos efeitos que Itaipu havia
provocado nas relações entre Brasil e Paraguai, com forte dependência financeira
causada pela venda de commodity a um único comprador possível – o Brasil.
59
Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da
República da Bolívia, para Isenção de Impostos Relativos à Implementação do
Projeto do Gasoduto Brasil-Bolívia
O Governo da República Federativa do Brasil e O Governo da República da
Bolívia, (doravante denominados “Partes Contratantes”),
Considerando a elevada prioridade política atribuída pelas Partes Contratantes à
Consolidação do processo de integração econômica na América do Sul;

333

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tura regulatória, regulamentada com o advento da Lei n. 9.478, de 6 de


agosto de 1997, que dispôs sobre a política energética nacional, as ati‑
vidades relativas ao monopólio do petróleo, instituiu o Conselho Na‑
cional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo – ANP.
Esse instrumento jurídico, comumente denominado Lei do Petró‑
leo, pode ser considerado um marco epistemológico no conceito de
energia no Brasil. Pela primeira vez, a legislação reconhece a existência
de uma política energética em vez de tratar a matéria de forma transver‑
sal, como ocorrido no sistema de codificação do presidente Vargas, que
tratou a eletricidade em Código de Águas e a lenha­‑combustível no Có‑
digo Florestal, ou como um subproduto da política voltada ao petróleo
ou ao álcool. O Capítulo I – Dos Princípios e Objetivos da Política
Energética Nacional, constitui uma verdadeira carta programática do
que se pretende reconhecer juridicamente uma matriz energética brasi‑
leira. Vale destacar, na íntegra, o único artigo deste Capítulo:60

Destacando a importância da implementação da área de livre comércio entre o


MERCOSUL e a Bolívia, para a consecução do objetivo acima mencionado;
Reconhecendo o papel estratégico desempenhado pelo Projeto do Gasoduto
Brasil-Bolívia para o abastecimento energético e para a criação de oportunidades
de investimentos produtivos e geração de empregos, mediante a utilização de um
insumo de alta produtividade econômica e ecologicamente limpo;
Tendo em vista os compromissos assumidos pelas Partes Contratantes no Acordo
de Alcance Parcial sobre Promoção de Comércio entre o Brasil e a Bolívia (For‑
necimento de Gás Natural) firmado pelos Chanceleres das Partes Contratantes
em 17 de agosto de 1992, sob a égide do Tratado de Montevidéu, de 1980, assim
como os termos do parágrafo 7 do Acordo por troca de Notas Reversais, de 17
de fevereiro de 1993, estabelecendo que os Governos do Brasil e da Bolívia bus‑
cariam atender aos requisitos necessários à isenção dos impostos incidentes so‑
bre a construção do gasoduto;
Levando em conta que a isenção dos impostos sobre a implementação do Proje‑
to do gasoduto contribuirá para consolidar as condições de desenvolvimento da
produção e comercialização do gás natural.
60
O fato de o Segundo Modelo Energético ter mantido sua redação, acrescentando
apenas o inciso XII, em que institui como política incrementar, em bases econômi‑
cas, sociais e ambientais, a participação dos biocombustíveis (Redação dada pela Lei
n. 11.097, de 2005), demonstra o alinhamento nacional em torno desses valores.

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Art. 1o As políticas nacionais para o aproveitamento racional das


fontes de energia visarão aos seguintes objetivos:
I – preservar o interesse nacional;
II – promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho
e valorizar os recursos energéticos;
III – proteger os interesses do consumidor quanto a preço, quali‑
dade e oferta dos produtos;
IV – proteger o meio ambiente e promover a conservação de
energia;
V – garantir o fornecimento de derivados de petróleo em todo o
território nacional, nos termos do § 2o do art. 177 da Constituição
Federal;
VI – incrementar, em bases econômicas, a utilização do gás
natural;
VII – identificar as soluções mais adequadas para o suprimento de
energia elétrica nas diversas regiões do País;
VIII – utilizar fontes alternativas de energia, mediante o apro‑
veitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias
aplicáveis;
IX – promover a livre concorrência;
X – atrair investimentos na produção de energia;
XI – ampliar a competitividade do País no mercado internacional.

A Política Energética passou a ser confiada a um Conselho, vincu‑


lado à Presidência da República e presidido pelo Ministro de Estado de
Minas e Energia, nos termos do art. 2o da Lei e regulamentado pelo
Decreto n. 3.520, de 2000, denominado Conselho Nacional de Política
Energética – CNPE. Dentre suas atribuições, podem­‑se perceber a
obediência ao princípio da racionalidade, o desenvolvimento regional,
a heterogeneidade da matriz, o atendimento do equilíbrio entre oferta
e demanda, dentre outros. A Lei também regulamenta o exercício do
monopólio da União no que tange às atividades hidrocarboníferas,
bem como pormenoriza algumas nomenclaturas setoriais.
A criação da Agência Nacional do Petróleo – ANP passa a ser por‑
menorizada após o art. 7o da Lei. Sendo uma das duas agências original‑

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mente previstas na Constituição Federal,61 e regulamentada seis meses


depois da promulgação da Lei do Petróleo, por força do Decreto n. 2.455,
de 14 de janeiro de 1998, a ANP passava a ser uma autarquia especial fe‑
deral, responsável originalmente pela execução da política nacional para o
setor energético do petróleo. Nas palavras de D’Assunção Costa,62

Este (a ANP) é um dos temas mais inovadores desta Lei do Petró‑


leo, quer pela sua importância institucional – porque remodelou as
relações do Estado regulador com os consumidores e com os agentes
econômicos que desenvolvem as atividades da indústria do petróleo –,
quer pelo ineditismo de várias situações com que se depararam o Go‑
verno e governados na gestão dos diversos interesses públicos.

Dentre as atribuições da ANP, encontram­‑se as de: (i) regular, por


meio de portarias, instruções normativas e resoluções; (ii) contratar,
por meio de licitações e contratos em nome da União com os conces‑
sionários em atividades de exploração, desenvolvimento e produção de
petróleo; (iii) fiscalizar as atividades das indústrias reguladas, de forma
direta ou por meio de convênios com outros órgãos públicos; (iv) estu‑
dar, por meio de estudos geológicos e geofísicos para identificação de
potencial petrolífero, regular a execução desses trabalhos, organizar e
manter o acervo de informações e dados técnicos, dentre outras ativi‑
dades legalmente constituídas.
Interessante ainda notar a fixação, em lei, do método regional
constante nas atribuições da ANP, que deve empregar critério espacial
para licitar áreas, respeitadas as bacias sedimentares. Nas palavras de
Bucheb, a criação dos blocos respeita a seguinte matriz legal:

61
É pacífico na doutrina que a ANP encontra fundamento constitucional na con‑
jugação dos arts. 21, XI ao 177, § 2o, III, sendo prevista sob a expressão órgão
regulador, o mesmo ocorrendo com a Agência Nacional de Telecomunicações
– Anatel.
62
D’ASSUNÇÃO COSTA, Maria. Comentários à lei do petróleo: Lei Federal
n. 9.478, de 6-8-1997. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 145.

336

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Curso de Direito da Energia

Em relação as atribuições específicas da ANP, elencadas ao longo


do art. 8o, vale ressaltar que, com a adoção, a partir da 5a Rodada de
Licitações, da sistemática de divisão das bacias sedimentares em seto‑
res, que por sua vez são subdivididos em blocos formados por conjun‑
to de células de 3’45” de longitude por 2’30” de latitude, a atribuição
prevista no inciso II, passou, na prática, a ser a de elaborar estudos com
vistas à seleção de blocos, já delimitados, a serem oferecidos em cada
rodada de licitações. Uma vez concluída, a seleção dos blocos efetuada
pela ANP é submetida a aprovação do CNPE.63

Assim como ocorrera com o setor elétrico em 1996, pode­‑se afir‑


mar que o setor de petróleo e gás, a partir da Lei do Petróleo, buscou
efetivar: (i) a concorrência em diferentes segmentos da cadeia; (ii) o li‑
vre acesso às redes de transporte, decorrente da manutenção dos mo‑
nopólios naturais; e (iii) a criação de um agente regulador por
intermédio de autarquia especial, com capacidade de estabelecer discri‑
cionariamente as formas contratuais e as relações do mercado.
A construção institucional do setor de petróleo e gás demonstrou
um grande esforço regulatório e de mercado de intensificar a explora‑
ção e a produção, bem como o acesso à infraestrutura, antes monopo‑
lista, da Petrobras. A desverticalização das atividades pôde ser
observada apenas no transporte, por meio de unbundling contábil.
Como setor intensivo em capital, com grande componente política, a
entrada de novos agentes ocorreu majoritariamente por parcerias com
a própria Petrobras, indicando que a cooperação deve preponderar so‑
bre a competição. Logo, dois grandes movimentos puderam ser obser‑
vados: (i) a inclusão de novos competidores no setor de petróleo e gás,
fato que forçou a Petrobras a encontrar novas formas de gerir sua atua­
ção setorial; e (ii) a inserção da Petrobras no setor elétrico, principal‑
mente enquanto fornecedora de insumos para a geração térmica.

63
BUCHEB, José Alberto. Direito do petróleo: a regulação das atividades de ex‑
ploração e produção de petróleo e gás natural no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007. p. 36.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Esse realinhamento, assim como o ocorrido com o setor elétrico,


encontrou grande ponto de questionamento em 2001. O modelo seto‑
rial produzido no governo Cardoso justificava essas iniciativas como
forma de permitir a competição no mercado de hidrocarbonetos, indi‑
vidualizar interesses e facilitar a entrada das empresas setoriais no mer‑
cado de capitais.
A oposição, por sua vez, afirmava que a estratégia era parte de
um plano para privatizar a Petrobras e utilizava como argumentos
dois fatos notórios: (i) a malograda tentativa de mudar o nome da
Petrobras para Petrobrax, fundada no pretexto de dissociar o nome
da empresa da imagem do Brasil para efeitos de internacionalização,
na qual a oposição argumentava que a perda da identidade era o pri‑
meiro passo para a privatização; e (ii) o afundamento da então maior
plataforma de produção de petróleo em alto­‑mar do mundo, a P­‑36,
na Bacia de Campos, que sofrera três explosões em março de 2001.
O momento não poderia ser mais inapropriado sob a ótica energéti‑
ca. Como posteriormente se observou, era véspera do racionamento
de energia elétrica no Brasil, fixado legalmente em 15 de maio de
2001. As explosões na plataforma acabaram sendo associadas ao su‑
cateamento da Petrobras para efeito de venda, assim como se argu‑
mentava que ocorria com o setor elétrico, que era privatizado e não
se encontrava operacional, com o racionamento sendo a prova cabal
desse raciocínio.
Os dois últimos anos de gestão do presidente Cardoso, no tocante
ao setor energético, podem ser resumidos nas seguintes ações: (i) mini‑
mizar os efeitos do racionamento de energia elétrica na sociedade; (ii)
contornar as dificuldades nas relações com a Bolívia em função da
compra de gás, que tinha dificuldades para garantir o suprimento e
empregá­‑lo nas térmicas, consoante o Programa Prioritário de Terme‑
letricidade – PPT; (iii) promover reforma tributária nos combustíveis,
por meio da Emenda Constitucional n. 33, de 2001, bem como pela Lei
n. 10.336, de 19 de dezembro de 2001, que instituiu a Contribuição de

338

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Curso de Direito da Energia

Intervenção de Domínio Econômico – Cide;64 (iv) encerrar, no final de


2002, o período de transição para a liberação do mercado de gasolina e
óleo diesel, fato que possibilitou a livre formação de preços nas refina‑
rias e na importação dos produtos ; (v) minimizar os impactos do afun‑
damento da P­‑36; e (vi) compor interesses no Congresso Nacional, de
forma a aprovar as medidas necessárias para destravar o racionamento
elétrico e as iniciativas em petróleo e gás.
Cabe pormenorizar os dois aspectos que, complementarmente à
criação do CNPE e da ANP, delinearam aquele período de inserção da
iniciativa privada nas questões energéticas e intensificação das relações
internacionais por intermédio dos hidrocarbonetos.
5.1.4.1 O renascimento do gás: o PPT e o Gasoduto
Brasil­‑Bolívia – Gasbol
Não se pode compreender, em sua totalidade, o PPT e o Gasbol sem
aprofundar nas perspectivas históricas do Direito Internacional afeitas à
América do Sul. No limite, analisar o crescimento do consumo de gás no
Brasil sem pormenorizar suas relações com a Bolívia em específico, a
integração sulamericana no geral e as concepções geopolíticas no concei‑
tual teria o mesmo efeito que conceber, por exemplo, o empreendimento
de Itaipu sem identificar as questões platinas em seu conjunto.
A prospecção de hidrocarbonetos na Bolívia pode ser apontada
como uma das causas da Guerra do Chaco, ocorrida em 1928, em fun‑
ção da disputa da navegação do rio Paraguai contra a nação guarani,
bem como o crescente o assédio da Standard Oil pela exploração pe‑
trolífera em território boliviano. Esses fatos culminaram na criação, em
1936, da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos – YPFB, estatal
que passaria a centralizar as atividades no país.

64
Por ter uma finalidade constitucionalmente determinada e com alcance setorial‑
mente limitado, a ampla doutrina reconhece a Cide como um tributo, destinado
a subsidiar preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus
derivados e de derivados de petróleo; e financiar projetos ambientais relaciona‑
dos com a indústria do petróleo, do gás e da infraestrutura de transportes.

339

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

A exportação do propalado petróleo boliviano, no entorno da ci‑


dade de Santa Cruz de La Sierra, foi utilizada como instrumento de
aproximação do Brasil junto à Bolívia, relação desgastada desde o Tra‑
tado de Petrópolis em 1903, no qual o Brasil comprou o atual Estado
do Acre por 2 milhões de libras, mas que não havia equacionado todas
as questões de fronteira. O raciocínio central do Itamaraty era de
reaproximar­‑se do país andino por intermédio de uma engenhosa
construção logística.
Inicialmente, havia o interesse em possibilitar, por via férrea, o es‑
coamento do petróleo pelo porto de Santos, de forma a conferir à Bo‑
lívia alternativa ao porto de Buenos Aires, diminuindo assim a
ascendência argentina na região. Em que pesem as dificuldades na dé‑
cada de 1940 e da primeira metade da de 1950, os Acordos de Roboré,
31 instrumentos diplomáticos firmados entre Brasil e Bolívia em 1958,
conferiam equacionamento mínimo para as negociações energéticas,
incluindo o gás e o desenvolvimento petroquímico.65 Hage66 pormeno‑
riza os dilemas que, em última análise, culminaram no fracasso dos
acordos.

[...] os Acordos de Roboré alimentaram forte fluxo de contesta‑


ção nacionalista porque, em uma de suas passagens, se indicava que a
composição de capital nacional para operações nas áreas de exploração
não poderiam ser estatais, mas sim, de firmas particulares. Essa reco‑
mendação soara provocativa para a base do governo de Juscelino

65
Para aprofundamento da questão, MASCARENHAS, Anderson Oscar. Robo-
ré, um torpedo contra a Petrobras. Prefácio de Gondin da Fonseca: as ideias de
Teixeira Lott, Gabriel Passos, Gondin da Fonseca e Osny Duarte Pereira. São
Paulo: Flama, 1959; SILVEIRA, Joel. História de uma conspiração: Bolívia, Bra‑
sil e Petróleo. Rio de Janeiro: Coelho Branco, 1959; e PASSOS, Gabriel de Re‑
zende. Estudo sobre o Acôrdo de Roboré: voto proferido na Comissão de
Relações Exteriores nos dias 5 e 10 de novembro de 1959. Rio de Janeiro: Depar‑
tamento de Imprensa Nacional, 1959.
66
HAGE, José Alexandre Altahyde. Bolívia, Brasil e a guerra do gás. Curitiba:
Juruá, 2008. p. 120-121.

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Curso de Direito da Energia

Kubitschek, visto que alguns anos antes, no segundo governo Vargas,


o monopólio sobre exploração e importação do petróleo fora atribuí‑
do à Petrobras, justamente empresa criada sob forte pressão das cor‑
rentes nacionalistas civis e militares.
A ideia de que os acordos com a Bolívia pudessem sobrepujar o
monopólio da estatal brasileira fez com que a UNE, ganhasse as praças
da antiga capital federal em protestos. Paralelo a esse clima, o deputado
Gabriel Passos, da base nacionalista que apoiava o govero [sic], discor‑
dava dos motivos que levassem o Brasil aceitar os termos de Roboré,
pois o parlamentar alegava que os debates sobre tal questão deveriam
ser mais bem aproveitados pelo Congresso Nacional. Ainda nesse cli‑
ma, quem se filiava às críticas, mas por outros motivos, era o próprio
presidente do BNDE, Roberto Campos, para quem o acato ao Roboré
poderia ser prejudicial às finanças do Brasil, pois o país não tinha know
how suficiente para escapar dos altos custos de uma operação daquele
porte, por isso a necessidade de se obter apoio do capital internacional,
e não se filiar a nacionalismos.

Assim, movimentos nacionalistas, tanto no Brasil quanto na Bolí‑


via, que culminaram em políticas nacional­‑desenvolvimentistas a partir
da década de 1960, fizeram com que as relações bilaterais, no que tange
às questões energéticas, fossem retomadas apenas após a edição da Lei
n. 5.665, de 1971. Essa norma, que criava a Braspetro, possibilitou que
a Petrobras atuasse no exterior, criando prerrogativa jurídica para atua­
ção brasileira em solo boliviano. Logo, podem­‑se observar manifesta‑
ções do MME na década de 1970 apontando possíveis destinações ao
gás boliviano em São Paulo e Rio de Janeiro.
Em que pese a existência de estudos sugerindo formas de atuação
brasileira na Bolívia no Regime Militar, na prática, os projetos bilate‑
rais de gás jazeram até a década de 1990.
O secular emprego do gás no Brasil67 buscaria, por intermédio de
política pública específica, ganho de escala com o objetivo de inserir

67
Conforme referenciado nos itens 1.4, 2.4, 3.4 e 3.5 da presente obra.

341

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

essa matriz de forma complementar na eletricidade e nos combustíveis.


Nesse contexto, o governo Franco pode ser apontado como aquele que
recolocou o tema em pauta. O Decreto de 18 de julho de 1991 consti‑
tuiu Comissão para viabilização do aproveitamento do gás natural,
com o objetivo de propor diretrizes e indicar as ações a serem adota‑
das para viabilizar o aproveitamento do gás natural, de forma a contri‑
buir para o desenvolvimento do país e de suas regiões.
Todavia, foram instrumentos jurídicos promulgados na gestão
Cardoso que conferiram materialidade e embasamento normativo à
exploração do gás boliviano com a finalidade de abastecer o mercado
brasileiro, quais sejam:
(i) o Decreto n. 1.787, de 12 de janeiro de 1996, que dispôs sobre
a utilização de gás natural para fins automotivos, estabelecen‑
do rigorosa regulamentação técnica, de segurança e ambiental,
por força dos atos jurídicos a serem expedidos pelo Departa‑
mento Nacional de Combustíveis – DNC, Instituto Nacional
de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – Inmetro,
Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, Departa‑
mento Nacional de Trânsito – Denatran e Conselho Nacional
do Meio Ambiente – Conama;
(ii) a constituição da subsidiária Petrobras Gás S.A. – Gaspetro em
maio de 1998, de forma a viabilizar a oferta do gás natural des‑
de Corumbá e Uruguaiana, passando pelas principais cidades
do centro­‑sul do Brasil com uma malha de gasodutos que al‑
cançaria em 2010 mais de 7 mil quilômetros;
(iii) a constituição e capitalização da Transportadora Brasileira Ga‑
soduto Bolívia – Brasil – TBG a partir de junho de 1998, nos
termos das Resoluções do Senado Federal n. 12, 57, 58, 59 e 82;
(iv) o Decreto de 11 de fevereiro de 1999, que declarava de utilida‑
de pública, para fins de desapropriação e instituição de servi‑
dão de passagem, terrenos necessários à construção do
gasoduto Bolívia­‑Brasil – Gasbol; e

342

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Curso de Direito da Energia

(v) o Decreto n. 3.371, de 24 de fevereiro de 2000, que institui o Pro‑


grama Prioritário de Termeletricidade – PPT sob coordenação do
MME e com a prerrogativa de garantir o suprimento de gás natu‑
ral em até 20 anos, a aplicação do Valor Normativo à distribuido‑
ra de energia elétrica e o acesso ao Programa de Apoio Financeiro
a Investimentos Prioritários no Setor Elétrico.
Esses instrumentos jurídicos, compreendidos em sua totalida‑
de, podem ser apontados como aqueles que criaram as condições
para o desenvolvimento da demanda do gás boliviano – e o argenti‑
no em Uruguaiana – que, finalmente, poderiam ter uma precificação
mais condizente com as condições do mercado e cumpriria a finali‑
dade de mitigar o risco de desabastecimento elétrico a que o Brasil
se sujeitava nos períodos considerados secos.68 Leite69 identifica os
dilemas daquele momento histórico para estabelecer a viabilidade
do Gasbol.

[...] a importação do gás da Bolívia colocou em evidência a inter‑


dependência das várias formas de energia primária em um balanço
energético, que se tornava cada vez mais diversificado. Ficou nítida,
nas discussões, a multiplicidade de questões a resolver. De um lado,
havia que atingir, com rapidez, a capacidade mínima do gasoduto para
torná­‑lo economicamente viável. De outro, a introdução do gás nas
pequenas e médias indústrias de São Paulo – onde seria maior seu efei‑
to ambiental positivo – dependia da decisão de centenas de empresá‑
rios e da eficácia do sistema de distribuição. O gás veicular não era
visto como uma perspectiva ampla. Cogitava­‑se, como base de susten‑
tação da economia do gasoduto, de uma grande usina térmica a gás, em
São Paulo, a ser levantada por produtor independente.

Observado o cenário descrito, a Exposição de Motivos n. 7, de


2000, do Ministério das Minas e Energia – MME, relativa ao Decreto

68
Ou seja, de hidrologia desfavorável, sendo os meses de abril a novembro com‑
preendidos nesse período.
69
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 334.

343

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

que implantou o PPT, é repetida integralmente no preâmbulo da Por‑


taria MME n. 43, de 2000, que foi clara ao fixar o interesse público que
orienta o programa governamental.

3. A nova concepção da matriz energética brasileira recomenda a


utilização de usinas termelétricas, principalmente com utilização de gás
natural, o que propicia condições de atendimento ao mercado de curto
prazo e permite ganhos de confiabilidade e eficiência no sistema gera‑
dor de energia elétrica.
4. A geração termelétrica com o seu avanço tecnológico traz inú‑
meras vantagens, tais como: atendimento aos requisitos ambientais;
instalação próxima aos centros de carga, otimizando o carregamento e
a expansão dos sistemas de transmissão; geração estratégica para a ope‑
ração de hidrelétricas; menor prazo de construção e maior facilidade
na obtenção de financiamento. [...]
8. O Programa Prioritário de Termeletricidade, Senhor Presidente,
seguramente contribuirá para estabelecer o equilíbrio entre a oferta e a
demanda de energia elétrica, que é fundamental para a prática da livre
competição e para a qualidade do serviço, que são alicerces do novo mo‑
delo do setor elétrico, sendo prioritário desencadear ações necessárias
para sua garantia, no âmbito do Ministério das Minas e Energia, em par‑
ticular até o ano 2003, quando se inicia efetivamente a prática do livre
mercado.

Em que pesem os inegáveis avanços jurídicos e institucionais da


iniciativa que culminou com a criação do Gasbol, as dificuldades para
a inserção do gás boliviano na matriz energética brasileira tiveram duas
grandes características. Uma endógena, caracterizada pelas dificulda‑
des regulatórias que acarretaram no racionamento de 2001, nos termos
apontados pelo Relatório Kelman70 e que forçaram a publicação da
Medida Provisória n. 2.149, de 29 de maio de 2001, que autorizou a
criação de mecanismo de compensação destinado a viabilizar a manu‑
tenção de preços constantes para o gás natural.

70
Mais informações em 5.1.1, c.

344

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Curso de Direito da Energia

Por sua vez, houve outra exógena, na qual o sentimento de injus‑


tiça na população boliviana referente à remuneração e à propriedade
dos bens constantes no subsolo do país acarretaram, em última análi‑
se, na nacionalização das jazidas pelo governo daquele país. Na sínte‑
se desses dois dilemas, Ferreira expôs com precisão à questão central
que inviabilizou, naquele momento, a simbiose econômica buscada
pelo governo brasileiro perante o fornecimento de hidrocarbonetos
da Bolívia.

Quando se estima que perto de 20% da energia consumida terá


de vir de países vizinhos a situação exige providências que escapam,
sem dúvida, da alçada do Ministério de Minas e Energia. Se por um
lado essa integração econômica traz sensíveis vantagens políticas,
possibilitando um melhor entrosamento das diferentes economias,
por outro, coloca o Brasil na dependência da estabilidade de países
vizinhos.71

5.1.4.2 A Petrobras e a competição na exploração: As rodadas de


licitações e o conteúdo local
O arcabouço jurídico, afeito às questões petrolíferas no Brasil da
década de 1990, encontrou grande ponto de inflexão normativa com
a publicação da Emenda Constitucional n. 9, de 9 de novembro de
1995, que quebrou o monopólio da Petrobras ao permitir que a União
pudesse contratar perante empresas estatais ou privadas atividades
com hidrocarbonetos. Por sua vez, a Lei do Petróleo de 1996 veio
edificar todo o regime jurídico de competição fundamentado consti‑
tucionalmente, de forma a intensificar a exploração do subsolo brasi‑
leiro por meio de agentes que até então estavam proibidos de
participar desse mercado.
As consequências desse ato foram imediatas. Pode­‑se elencar
como principais pontos: (i) a perda do monopólio da Petrobras, uma

71
FERREIRA, Oliveiros. A crise na política externa: autonomia ou subordinação?
Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 40.

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vez que deixou de conduzir a política pública em hidrocarbonetos no


Brasil, já que a função regulatória foi atribuída à ANP; (ii) a Petrobras,
por força do incremento da matriz termelétrica, passou a interagir no
mercado elétrico, chegando no limite a deter a cadeia produtiva em
algumas situações, por ser proprietária do insumo (gás) e da unidade de
geração térmica; (iii) o Brasil passou a eliminar gradativamente o con‑
trole de preços nos combustíveis, possibilitando lucro ao invés de re‑
muneração garantida; (iv) o mercado passou a contar com uma
concorrência internacional estruturada; e (v) a criação da Lei da Cide
(Lei n. 10.336, de 19 de dezembro de 2001) possibilitou importação de
gasolina e diesel, nos termos regulados pela ANP.
A concorrência no setor de prospecção de hidrocarbonetos trouxe
algumas práticas que até então eram desconhecidas da realidade brasilei‑
ra. Havia a necessidade de se empregarem instrumentos jurídicos que
fomentassem o mercado e, ao mesmo tempo, respeitassem os atos jurídi‑
cos perfeitos, incluindo os contratos firmados, as remunerações previs‑
tas e a continuidade das operações da Petrobras. Nesse contexto foram
concebidas as Rodadas,72 que objetivavam: (i) atrair novos investimen‑
tos, de forma a tornar mais heterogênea a composição do fluxo financei‑
ro setorial; (ii) aumentar as oportunidades de trabalho, haja vista a
possibilidade de existirem diferentes agentes de mercado; (iii) estimular
a indústria nacional, por meio do instituto jurídico do Conteúdo Local;
(iv) promover o desenvolvimento na área de exploração e produção;
(v) ampliar o conhecimento geológico das bacias sedimentares brasileiras,
principalmente pelo empirismo da perfuração; (vi) estabilizar as reservas
nacionais, de forma a obter a autossuficiência de óleo e reduzir a depen‑
dência externa; e (vii) incrementar a arrecadação dos entes federados.
Todavia, para tornar o monopólio uma realidade jurídica histórica,
far­‑se­‑ia necessário criar regras transitórias entre o ambiente estatal e o

72
Variável dos “Rounds” empregados como prática internacional do setor de
petróleo.

346

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Curso de Direito da Energia

modelo competitivo almejado. O modelo utilizado recorreu ao institu‑


to jurídico da licitação a ser realizado em turnos, que por sua vez se‑
riam precedidos de um amplo rearranjo jurídico nas atividades da
Petrobras. Logo, a Rodada Zero foi concebida para denominar o con‑
junto de negociações realizadas após a promulgação da Lei do Petró‑
leo, de forma a ratificar os direitos da Petrobras, por meio de Contratos
de Concessão, sobre os blocos exploratórios e áreas em desenvolvi‑
mento em que a empresa houvesse realizado investimentos.
Assim, foram assinados, em 6 de agosto de 1998, contratos entre a ANP
e a Petrobras, sem processo licitatório, referentes a 282 campos, nos quais a
estatal já detinha produção ou desenvolvimento. Era a Rodada Zero, neces‑
sária para implementar o modelo competitivo nas rodadas seguintes. No
que concerne à produção, a Petrobras obteve direitos por três anos sobre
cada campo que se encontrasse em produção, contados a partir da data
de início da vigência da Lei do Petróleo. Seriam objeto de licitação pela
ANP todos os campos que já haviam produzido e que eram considerados
não comerciais pela Petrobras, ou aqueles que se encontravam na etapa de
desenvolvimento sem que tenham sido reivindicados pela Petrobras.
Após esse ajuste, as rodadas podem ser sintetizadas nos seguintes
termos:
(i) Primeira Rodada de Licitações, que foi realizada no Rio de
Janeiro nos dias 15 e 16 de junho de 1999. Dos 27 blocos ofe‑
recidos, 12 foram concedidos, resultando uma arrecadação de
R$ 321.656.637, e um comprometimento médio com aquisi‑
ção local de bens e serviços de 25% na fase de exploração e de
27% na fase de desenvolvimento;
(ii) Segunda Rodada de Licitações, que foi realizada no Rio de
Janeiro no dia 7 de junho de 2000. Dos 23 blocos ofereci‑
dos, 21 foram concedidos, resultando uma arrecadação de
R$ 468.259.069, e um comprometimento médio com aquisi‑
ção local de bens e serviços de 41% na fase de exploração e
47% na fase de desenvolvimento;

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

(iii) Terceira Rodada de Licitações, que foi realizada no Rio de


Janeiro nos dias 19 e 20 de junho de 2001. Dos 53 blocos ofe‑
recidos, 34 foram concedidos, resultando uma arrecadação de
R$ 594.944.023, e um comprometimento médio com aquisi‑
ção local de bens e serviços de 28% na fase de exploração e de
40% na fase de desenvolvimento;
(iv) Quarta Rodada de Licitações, que foi realizada nos dias 19
e 20 de junho de 2002, no Rio de Janeiro. Dos 54 blocos
oferecidos em 18 bacias sedimentares, 21 blocos foram ar‑
rematados por 14 empresas, resultando uma arrecadação de
R$ 92.377.971;
(v) Quinta Rodada de Licitações, que foi realizada nos dias 19 e
20 de agosto de 2003, no Rio de Janeiro. Dos 908 blocos ofe‑
recidos, 101 blocos foram arrematados por seis empresas, to‑
talizando 21.951 km2 de área concedida. Foram oferecidas
como programa exploratório mínimo 21.951 Unidades de
Trabalho, o que permite estimar investimentos mínimos su‑
periores a R$ 350 milhões na Fase de Exploração;
(vi) Sexta Rodada de Licitações, que foi realizada nos dias 17 e 18
de agosto de 2004, com 154 blocos concedidos (39.657 km²) a
19 empresas. Das 24 empresas habilitadas, 21 apresentaram
ofertas, totalizando o valor de R$ 665,2 milhões em bônus de
assinatura. Os compromissos relativos ao Programa Explora‑
tório Mínimo totalizaram 131 mil Unidades de Trabalho, o que
permite estimar investimentos mínimos de R$ 2 bilhões na
Fase de Exploração;
(vii) Sétima Rodada de Licitações, que foi realizada nos dias 17, 18 e
19 de outubro de 2005, com um total de 194.739 km² arremata‑
dos distribuídos da seguinte forma: (i) 251 Blocos com Risco
Exploratório (194.651 km²); e (ii) 16 Áreas Inativas com Acu‑
mulações Marginais – 88 km² em terra. Das 116 empresas habi‑
litadas, 85 apresentaram ofertas isoladamente ou em consórcio,

348

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Curso de Direito da Energia

sendo que 41 tiveram êxito e assinaram os Contratos de Con‑


cessão decorrentes. O total de Bônus de Assinatura arreca‑
dado foi de mais de um bilhão de reais;
(viii) Oitava Rodada de Licitações, que foi encerrada pela ANP em
29 de novembro de 2006, por força de liminares concedidas
sob a argumentação central de que a medida da ANP estaria
prejudicando a Petrobras por limitar o número de ofertas por
blocos. No primeiro dia do leilão, a ANP havia conseguido
conceder 38 dos 58 blocos ofertados, nas bacias de Santos e
Tucano­‑Sul, arrecadando R$ 588,1 milhões em bônus de assi‑
natura. Com a vigência das liminares, depois de intensas ne‑
gociações no MME, de forma que o CNPE chegou a constituir
comissão para encontrar solução para o impasse, a Resolução
CNPE n. 9, de 8 de dezembro de 2009, publicada no Diário
Oficial da União em 22 de janeiro de 2010, determinou que a
decisão sobre a conclusão da Oitava Rodada de Licitações de
Blocos Exploratórios de petróleo e gás natural fosse adiada
até a sanção presidencial dos Projetos de Lei que propõem o
novo modelo regulatório para exploração e produção de pe‑
tróleo e gás natural nas províncias petrolíferas do pré­‑sal;
(ix) Nona Rodada de Licitações, que ocorreu no dia 27 de setem‑
bro de 2007, próximo ao anúncio, pela Petrobras, das desco‑
bertas da camada pré­‑sal, ocorrida em novembro de 2007.
Com a previsão original de licitar 312 blocos, o Conselho Na‑
cional de Política Energética – CNPE, por meio da Resolução
n. 6, de 8 de novembro de 2007, retirou 41 blocos do leilão
com ampla exposição de motivos.73 Mesmo com essa retirada,

73
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA ENER‑
GÉTICA – CNPE, no uso das atribuições que lhe confere o art. 2o da Lei n.
9.478, de 6 de agosto de 1997, em sua 8a Reunião Extraordinária realizada no dia
8 de novembro de 2007, com a presença do Excelentíssimo Senhor Presidente da
República, e considerando que

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

a Nona Rodada de Licitações ofertou 271 blocos em nove


bacias sedimentares, sendo 117 arrematados. Em que pese ter
havido arrecadação recorde de R$ 2,1 bilhões, a ANP havia
estimado volume acima de R$ 3 bilhões e a rodada não con‑
tou com a participação de grandes empresas, como Shell,
Exxon e Chevron;
(x) Décima Rodada de Licitações, autorizada pela Resolução
CNPE n. 10, de 3 de setembro de 2008, concomitante à Ter‑
ceira Rodada de Campos Marginais, foi realizada em 18 de
dezembro de 2008 e se caracterizou por ter sido uma rodada
sem oferta de blocos marítimos, excluídos em função das dis‑

o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE foi informado dos resultados dos
testes de produção obtidos pela Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras, em áreas
exploratórias sob sua responsabilidade, que apontam para a existência de uma
nova e significativa província petrolífera no Brasil, com grandes volumes recupe‑
ráveis estimados de óleo e gás. Esses volumes, se confirmados, mudarão o pata‑
mar das reservas do País, colocando-as entre as maiores do mundo;
a Petrobras, isoladamente ou em parcerias, perfurou quinze poços e testou oito
deles numa área denominada pré-sal, entre 5 mil e 7 mil metros de profundidade.
A análise e interpretação dos dados obtidos nesses poços, integrada a um traba‑
lho de mapeamento com base em dados geofísicos e geológicos, permitiu à Pe‑
trobras situar essa área entre os Estados de Santa Catarina e Espírito Santo, nas
bacias do Espírito Santo, de Campos e de Santos;
a área delimitada possui cerca de 800 quilômetros de extensão e até 200 quilôme‑
tros de largura, em lâmina d’água entre 1,5 mil e 3 mil metros de profundidade.
Os testes indicaram a existência de grandes volumes de óleo leve de alto valor
comercial (30 graus API), com grande quantidade de gás natural associado. Par‑
celas dessa área já estão concedidas a várias companhias petrolíferas, entre elas a
Petrobras; e
a luz das novas informações, sendo competência do CNPE propor medidas que
visem preservar o interesse nacional, na promoção do aproveitamento racional
dos recursos energéticos do País, resolve:
Art. 1o Determinar à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombus‑
tíveis – ANP que exclua da 9a Rodada de Licitações os blocos situados nas bacias
do Espírito Santo, de Campos e de Santos, relacionadas às possíveis acumulações
em reservatórios do pré-sal.

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Curso de Direito da Energia

cussões sobre o regime jurídico do pré­‑sal. Com a oferta de


130 blocos terrestres, o leilão teve como diferencial ter atraí‑
do empresas de pequeno e médio porte. Foram arrematados
54 blocos numa área total de 48 mil km² e movimentou cerca
de R$ 700 milhões, dos quais R$ 89,4 milhões em arrecada‑
ção de bônus de assinatura para a União e R$ 611 milhões de
investimentos mínimos previstos para a exploração.
Importante destacar que todas as rodadas contaram com atuação
próxima do Tribunal de Contas da União, que expediu atos circuns‑
tanciados de todas as rodadas de licitações da ANP.74
Por seu turno, desde a primeira rodada de licitações ocorrida em
1999, a ANP instituiu o compromisso de que as outorgadas deveriam
adquirir no país bens e serviços, como forma de contribuir para impul‑
sionar o desenvolvimento da indústria nacional. Assim, Conteúdo Local
é o que define, nos contratos de concessão firmados pela ANP com as
empresas vencedoras nas Rodadas de Licitações, o percentual mínimo

74
Instrução Normativa n. 27, de 1998, que trata da fiscalização, pelo TCU, dos
processos de concessões.
Décima Rodada: Acórdão n. 1.671, de 14 de julho de 2010; Acórdão n. 2.124, de
25 de agosto de 2010.
Nona Rodada: Acórdão n. 1.283, de 2 de julho de 2008; Acórdão n. 15, de 21 de
janeiro de 2009.
Oitava Rodada: Acórdão n. 2.249, de 24 de outubro de 2007; Acórdão n. 1.874,
de 11 de agosto de 2010.
Sétima Rodada: Acórdão n. 1.158, de 13 de junho de 2007.
Sexta Rodada: Acórdão n. 707, de 8 de junho de 2005.
Quinta Rodada: Acórdão n. 520, de 5 de maio de 2004.
Quarta Rodada: Acórdão n. 68, de 5 de fevereiro de 2003.
Terceira Rodada: Decisão n. 232, de 20 de março de 2002; Decisão n. 585, de 5 de
junho de 2002; e Acórdão n. 498, de 14 de maio de 2003.
Segunda Rodada: Decisão n. 417, de 4 de julho de 2001.
Primeira Rodada: Decisão 351, de 10 de junho de 1999; Decisão n. 493, de 4 de
agosto de 1999.
Rodada Zero: Acórdão n. 236, de 24 de fevereiro de 2010.

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de participação das empresas brasileiras fornecedoras de bens, sistemas e


serviços nas atividades econômicas relacionadas às atividades previstas
no contrato. Esse percentual é determinado nos editais que precedem as
Rodadas de Licitação e é detalhado nos contratos de concessão.
Os contratos de concessão, por sua vez, determinam que as con‑
cessionárias devem contratar fornecedores brasileiros sempre que suas
ofertas apresentem condições de preço, prazo e qualidade equivalentes
às de outros fornecedores. Todavia, as regras foram aperfeiçoadas ao
longo das licitações. Nas Rodadas de 1 a 4 não houve exigência prévia
mínima de Conteúdo Local, mas apenas uma limitação de pontuação
fixada em 70%. As empresas ofertaram um percentual para a fase de
exploração e outro para a etapa de desenvolvimento.
Para a Quinta Rodada, o Conselho Nacional de Política Energéti‑
ca emitiu a Resolução n. 8, de 21 de julho de 2003, conferindo poderes
à ANP para fixar percentual mínimo de Conteúdo Local para o forne‑
cimento de bens e serviços utilizados na exploração e produção de pe‑
tróleo e gás natural, ajustando­‑os permanentemente à evolução da
capacidade de produção da indústria nacional e aos seus limites tecno‑
lógicos. Importante lembrar que, naquele ano, foi publicado o Decreto
n. 4.925, de 19 de dezembro de 2003, que criou o Programa de Mobili‑
zação da Indústria Nacional de Petróleo e Gás – Prominp com o obje‑
tivo de maximizar a participação da indústria nacional de bens e
serviços, em bases competitivas e sustentáveis, na implantação de pro‑
jetos de petróleo e gás no Brasil e no exterior.
Nas Rodadas 7 e 8, o Conteúdo Local passou a considerar a localização
dos blocos em critérios distintos, sendo em terra, em águas rasas com lâmina
até 100 metros, em águas rasas com lâmina entre 100 e 400 metros e em
águas profundas com lâmina acima de 400 metros. Outra novidade foi a
introdução da Cartilha de Conteúdo Local como ferramenta de medição do
conteúdo local contratual, que fixou o peso do Conteúdo Local em 20%.
A crescente exigência de Conteúdo Local fez com que a ANP
criasse o Sistema de Certificação de Conteúdo Local em novembro

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de 2007, que estabelece a metodologia para a certificação e as regras


para o credenciamento de entidades certificadoras junto à ANP. Essa
iniciativa permitiu que a aferição seja realizada por um órgão públi‑
co (ANP), uma vez que antes era baseada em atos declaratórios dos
contratantes.

5.1.5 Legislação do setor de Águas: o meio ambiente,


os comitês de bacias e a ANA
Até a década de 1990, era mandatório falar do setor de água para
entender o de energia elétrica. O Código de Águas, em que pese conter
elementos jurídicos mínimos para instrumentalizar a gestão da cobran‑
ça pelo uso da água, foi sobreposto pela realidade econômica dos fatos.
Mais de 95% da energia elétrica no Brasil advinham de turbinas movi‑
das a quedas d’água. Com o aumento da complexidade energética bra‑
sileira, o “monopólio hidrelétrico”, ou seja, a importância da força
d’água como energia primária para produção da eletricidade, começou
a ser relativizado, em que pese continuar a ser preponderante, com
significativos reflexos no ordenamento jurídico.
Por detrás do irreverente argumento, empregado naquela época,
de que se fazia necessário separar água e energia elétrica “pra não dar
choque”, a segregação do setor de águas e de energia elétrica remonta a
demandas bastante pontuadas e interesses setoriais próprios. O setor
de recursos hídricos começara a intensificar a implementação de ins‑
trumentos jurídicos para lidar com a escassez de água decorrente do
crescimento demográfico do país, da ocupação intensa do solo e da
rápida industrialização. Na síntese de Pompeu,

água é o elemento natural, descomprometido com qualquer uso


ou utilização. É o gênero. Recurso hídrico é a água como bem econô‑
mico, passível de utilização para tal fim [...].75

75
POMPEU, Cid Tomanik. Águas doces do Brasil: capital ecológico, uso e conser‑
vação. São Paulo: Escrituras, 1999. p. 602.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Os desafios da gestão dos recursos hídricos são crescentes, pois a


água adquire tratamento jurídico de recurso finito e sujeito a regula‑
ção. Em outras palavras, a água passava a ter valor econômico e preci‑
sava ter um tratamento jurídico à altura dos desafios da escassez,
principalmente no bojo do Direito Ambiental. Essa visão impõe um
controle efetivo do ciclo hidrológico, incluindo o controle das cheias e
o combate às secas, a sistematização dos usos consuntivos e não con‑
suntivos da água, bem como a assimilação das atividades poluidoras.
Por sua vez, o setor elétrico passava a experimentar, de forma mais
intensa, o emprego da matriz térmica no sistema, principalmente com
o gás oriundo da Bolívia. O fundamento econômico para essa iniciativa
era, conforme outra expressão usualmente empregada naquele perío‑
do, a “emancipação do preço da tarifa de energia elétrica dos caprichos
de São Pedro”. Ou seja, se chovia, e os reservatórios enchiam, a energia
elétrica era barata. Se não chovesse, as represas secariam e o custo da
energia aumentaria exponencialmente. Logo, em que pesem os desa‑
fios ambientais de se gerar energia elétrica por meio da termeletricida‑
de, os benefícios que a previsibidade do fornecimento de energia
elétrica traria, segundo raciocínio da época, compensaria todas as ex‑
ternalidades. Esse raciocínio era sintetizado em uma frase: “a energia
mais cara é aquela que não existe”.
Com demandas vetorialmente opostas, a separação consensual dos
setores de águas e de energia elétrica culminou na transformação do
antigo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE
em duas agências reguladoras: a Agência Nacional de Energia Elétrica
– Aneel e a Agência Nacional de Águas – ANA. A ANA, por sua vez,
passava a ser um elemento da Política Nacional de Recursos Hídricos.
Nesse sentido, ao regulamentar o inciso XIX do art. 21 da Consti‑
tuição Federal, a Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a
Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos, foi denominada “Lei das
Águas”. De consistente sistematização e complexa aplicação, essa polí‑

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tica se baseia nos seguintes fundamentos: (i) a água é um bem de domí‑


nio público; (ii) a água é um recurso natural limitado, dotado de valor
econômico; (iii) em situações de escassez, o uso prioritário dos re‑
cursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais; e
(iv) a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso
múltiplo das águas.
Por sua vez, a norma fixa a bacia hidrográfica como critério es‑
pacial da Política Nacional de Recursos Hídricos, a atuação do Sis‑
tema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, bem como
a obrigatoriedade de a gestão dos recursos hídricos ser descentrali‑
zada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e
das comunidades.
A Política Nacional de Recursos Hídricos firma uma espécie de
“pacto de gerações”, ao assegurar à atual e às futuras gerações a neces‑
sária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos
respectivos usos, bem como a utilização racional e integrada dos recur‑
sos hídricos, o desenvolvimento sustentável, e a prevenção e a defesa
contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes
do uso inadequado dos recursos naturais.
Importante ainda destacar, na íntegra, os dispositivos legais que
fixam as diretrizes de ação da Política, bem como seus instrumentos:

CAPÍTULO III
DAS DIRETRIZES GERAIS DE AÇÃO
Art. 3o Constituem diretrizes gerais de ação para implementação
da Política Nacional de Recursos Hídricos:
I – a gestão sistemática dos recursos hídricos, sem dissociação dos
aspectos de quantidade e qualidade;
II – a adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades
físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das di‑
versas regiões do País;
III – a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão
ambiental;

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IV – a articulação do planejamento de recursos hídricos com o


dos setores usuários e com os planejamentos regional, estadual e
nacional;
V – a articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso
do solo;
VI – a integração da gestão das bacias hidrográficas com a dos
sistemas estuarinos e zonas costeiras.
Art. 4o A União articular­‑se­‑á com os Estados tendo em vista o
gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum.
CAPÍTULO IV
DOS INSTRUMENTOS
Art. 5o São instrumentos da Política Nacional de Recursos
Hídricos:
I – os Planos de Recursos Hídricos;
II – o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os
usos preponderantes da água;
III – a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos;
IV – a cobrança pelo uso de recursos hídricos;
V – a compensação a municípios;
VI – o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.

A emancipação institucional entre a eletricidade e a água teve como


principal efeito de diferenciação a dialética entre centralização e des‑
centralização. Enquanto a energia elétrica, assim como o ocorrido em
1934, continuava federalizada, a Lei das Águas tem em seu bojo forte
viés descentralizatório, tanto na gestão (art. 1o, VI) quanto na obtenção
e produção de dados e informações do Sistema de Informações sobre
Recursos Hídricos (art. 26, I). Logo, a Lei n. 9.433, de 1997, constitui­
‑se em um modelo ambicioso de gestão, que deseja harmonizar os in‑
teresses de 27 unidades federadas e mais de 5.500 municípios,
observando como critério espacial a bacia hidrográfica, por intermédio
de uma gestão, realizada pelos Comitês de Bacias Hidrográficas, cons‑
tituídos em partes iguais por representantes da sociedade civil, dos Es‑
tados e dos Municípios.

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Curso de Direito da Energia

Nesse sentido, a Lei n. 9.984, de 17 de julho de 2000, criou a Agên‑


cia Nacional de Águas – ANA, autarquia sob regime especial, com
autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do
Meio Ambiente, conduzida por uma Diretoria Colegiada, competente
para: (i) implementar a Lei das Águas; (ii) promover a gestão descen‑
tralizada e participativa, em sintonia com os órgãos e entidades que
integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;
(iii) fiscalizar os usos de recursos hídricos nos corpos de água de domí‑
nio da União; (iv) implementar, em articulação com os Comitês de Ba‑
cia Hidrográfica, a cobrança pelo uso de recursos hídricos de domínio
da União; (v) organizar, implantar e gerir o Sistema Nacional de Infor‑
mações sobre Recursos Hídricos; dentre outros. Importante destacar a
observação de Granziera sobre a natureza jurídica da ANA:

A ANA, embora seja uma agência de implementação de política,


difere de outras recentemente criadas, como a Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel) ou Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel), e mesmo a Agência Nacional de Petróleo (ANP). Essas entida‑
des constituem entes reguladores de serviços públicos – energia elétrica,
telefonia – ou de atividades econômicas – como é o caso do petróleo. A
ANA possui outra natureza, à medida que o uso dos recursos hídricos
não constitui, em si, nem serviço público, nem atividade econômica.76

Logo, rico em percepções e de complexa organicidade, os recursos


hídricos passam a ter regime jurídico próprio e descentralizado, com
fundamento no pacto de gerações e no Direito Ambiental, com opera‑
cionalização centrada no Sistema de Gerenciamento de Recursos Hí‑
dricos, que por sua vez encontra nas tecnologias georreferenciadas o
principal instrumento de viabilização do que foi previsto em lei. No
que tange ao setor energético, as águas passam a ter um tratamento em
apartado, todavia, com grande interface dada à alta dependência ener‑

76
GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito das águas: disciplina jurídica das
águas doces. São Paulo: Atlas, 2001. p. 166.

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gética brasileira da matriz hídrica, com grandes consequências no regi‑


me de geração, conforme será observado no Tomo II – Do Modelo
Institucional.

5.2 O Segundo Modelo Energético (desde 2003)


A estrutura institucional do setor elétrico até 2002 era dividida em:
(i) uma esfera política, capitaneada pelo Ministério de Minas e Energia
– MME e pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE,
criado pela Lei n. 9.478, de 1997; (ii) uma esfera regulatória e fiscaliza‑
tória, na qual a Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, por for‑
ça da Lei n. 9.427, de 1996, cumpre suas atribuições; (iii) uma esfera
financeira e técnica, exercidas, respectivamente, pelo Mercado Ataca‑
dista de Energia Elétrica – MAE e pelo Operador Nacional de Siste‑
mas – ONS, mediante os preceitos dispostos na Lei n. 9.648, de 1998;
e (iv) um sistema de remuneração tarifária baseada no preço, seguindo
os ditames perfilados na Lei n. 8.631, de 1993. De forma resumida, esse
modelo foi capaz de atrair investimentos privados ao setor, permitindo
que as empresas outrora estatais modernizassem seus parques e usu‑
fruíssem o dinamismo próprio da gestão privada.
No programa de governo do Partido dos Trabalhadores, publica‑
do em 2002, pôde­‑se depreender o ânimo que o então partido de opo‑
sição viria aplicar após sua posse: a de reinvenção do modelo do setor
elétrico, com centralidade no planejamento energético, e a continuida‑
de das premissas do setor de petróleo e gás, com o fortalecimento da
Petrobras e o aprimoramento da governança da ANP. O racionamento
foi um dos pontos mais questionados na trajetória bem­‑sucedida do
partido em ocupar o poder. Seguem alguns trechos da proposta que
refletem os anseios da época.77

77
INSTITUTO CIDADANIA. Diretrizes e linhas de ação para o setor elétrico
brasileiro. In: ROSA, Luiz Pinguelli (Coord.), 2002. Disponível em: < www.
cidadania.org> Acesso em: 11 de outubro de 2008.

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Curso de Direito da Energia

Energia
26. O novo governo vai restabelecer o planejamento estratégico
que existia no setor elétrico e foi abandonado com a tentativa de im‑
plantação de um modelo de mercado. Com o desmonte do planeja‑
mento integrado, a cisão e privatização de empresas, o Brasil abriu mão
da sinergia de seu sistema e de uma de suas principais vantagens: a
produção da energia elétrica mais barata do mundo. O planejamento
integrado proposto exige uma nova estrutura institucional, envolven‑
do: hidroeletricidade, petróleo e gás natural, carvão, geração nuclear
(Angra I e II), fontes alternativas (eólica, solar e biomassa), eficiência
energética e co­‑geração e geração desconcentrados.
27. Para os objetivos definidos no planejamento, deverá ser mo‑
bilizado o setor público e incentivado o setor privado. Para isso deverá
trabalhar a partir de requisitos de qualidade e confiabilidade; modici‑
dade das tarifas; respeito à legislação ambiental, e reinvestimento de
parte dos lucros em projetos destinados a modernizar o sistema e a
expandi­‑lo proporcionalmente ao desenvolvimento econômico.
Setor Elétrico
[...]
32. A política energética do novo governo, além de garantir a
continuidade do abastecimento, sem os sobressaltos de racionamentos,
visará ao desenvolvimento sustentável. Também estará em harmonia
com o meio ambiente, considerando a diversidade na otimização do
aproveitamento das fontes de energia disponíveis localmente.
33. Deve­‑se garantir políticas que levem as empresas estrangeiras,
recém­‑chegadas ao setor com as privatizações, a realizar investimentos
no país a partir de uma perspectiva justa de ganhos. A internalização
também deverá ocorrer na forma de transferência de tecnologias, prin‑
cipalmente nos aproveitamentos do potencial de energias renováveis,
além do aproveitamento de equipamentos de produção nacional, esti‑
mulando a indústria nacional.
[...]
Setor Petróleo
45. O petróleo, seus derivados energéticos e não energéticos e o
gás natural ocupam uma posição central e estratégica para a vida mo‑
derna. Por isso mesmo, nosso governo vai aprofundar as políticas que
projetam a Petrobrás como empresa integrada de energia vocacionada

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para a atuação regional e global. A companhia tem especialidades e


competências, como a tecnologia de águas profundas, que a creden‑
ciam como um competidor global. Assim, ela deve assumir, de forma
crescente, seu papel estratégico nacional e internacionalmente.
46. É da característica intrínseca desse setor o conceito de compa‑
nhia integrada. A empresa não renunciará às atividades de pesquisa e
lavra; transporte (óleo e gasodutos, terminais e navios especiais); refino
e industrialização de produtos de transformação (petroquímica e ferti‑
lizantes) e distribuição e comercialização de derivados energéticos e
lubrificantes. Mais do que isso, a empresa deve afirmar seu caráter de
companhia integrada de energia, que trabalha com várias matrizes,
como o gás e o álcool.

Com a posse do metalúrgico pernambucano Luiz Inácio Lula da


Silva, o Ministério de Minas e Energia – MME publicou o documento
“Proposta de Modelo Institucional do Setor Elétrico” em julho de
2003. Com essa divulgação, o MME incentivou e conduziu reuniões
que produziram o embrião do que viria a ser o Segundo Modelo Ener‑
gético, instituído pelas Medidas Provisórias n. 144 e n. 145, ambas de
10 de dezembro de 2003. Várias nomenclaturas foram empregadas para
enunciar esse modelo. “Novo Modelo”, que se confundia com o mo‑
delo anterior, que igualmente se denominava “novo”. “Novíssimo
Modelo”, que demonstrava uma lógica subsequente àquele “novo”.
Sob a ótica jurídica, esse desenvolvimento normativo nos permite
denominá­‑los como etapas sucessivas de uma concepção regulatória e
competitiva que, em que pese terem suas virtudes e proporcionado de‑
senvolvimento, não são modelos acabados em si e necessitam de apri‑
moramento contínuo.
Após diversas dificuldades enfrentadas pelo modelo, tais como os
entraves para contabilizar a energia transacionada no âmbito do MAE
e o período em que o racionamento avizinhava­‑se, o modelo institu‑
cional do setor elétrico proposto pelo MME em 2003 objetivava, de
forma resumida: (i) garantir a segurança de suprimento de energia elé‑
trica; (ii) promover a modicidade tarifária, por meio da contratação

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eficiente de energia para os consumidores regulados; e (iii) promover a


inserção social no Setor Elétrico, em particular por intermédio dos
programas de universalização de atendimento e de acordo com os cri‑
térios de suprimento dos clientes de baixa renda.
Nesse cenário, com a conversão da Medida Provisória n. 144, de
2003, em Lei n. 10.848, de 2004; bem como da Medida Provisória n. 145
em Lei n. 10.487, de 2004, houve uma verdadeira reengenharia da go‑
vernança setorial. O MME e a Aneel passaram a ter uma maior clareza
em seus papéis institucionais, com a previsão em lei das competências
do Poder Concedente, bem como a descrição das formas de eventuais
delegações desses poderes à Aneel. Houve também a criação da Câma‑
ra de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, que substituiu o
MAE e se inseriu em uma realidade com ambientes distintos de comer‑
cialização de energia elétrica, sendo um denominado “regulado”, por
meio do qual os distribuidores são obrigados a comprar energia, e o
outro chamado “livre”, no qual produtores de energia e comercializa‑
dores poderão transacionar energia elétrica desde que tenham lastro
físico para tanto.
Como forma institucional de assegurar que não ocorrerá mais
contingenciamento energético no país, foi criado o Comitê de Monito‑
ramento do Setor Elétrico – CMSE, órgão permanente e interno ao
MME, sem personalidade jurídica, responsável pelo monitoramento
das condições de fornecimento de energia elétrica, primando pelo
equilíbrio entre oferta e demanda. O Comitê tem como competência,
dentre outras atividades, a análise permanente dos níveis dos reserva‑
tórios no país.
O monitoramento devia vir acompanhado de planejamento.
Logo, o Segundo Modelo almeja, com os recursos científicos, tecno‑
lógicos e humanos disponíveis, e dentro dos limites economicamente
razoáveis, mitigar ao máximo possível a variação de tensão no sistema
elétrico, diante de uma eventual interrupção ou medidas de raciona‑
mento que possam atingir parte ou todo o sistema interligado nacio‑

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nal. No atual entendimento do MME, o planejamento de longo prazo


é o instrumento fundamental para se programarem as ações necessá‑
rias à consecução das metas setoriais almejadas. Para tanto, era impe‑
rativo estabelecer um sistema de planejamento, modernizando­‑o e
dotando­‑o de recursos humanos e materiais compatíveis com suas no‑
vas responsabilidades.
Admitiu­‑se que não eram suficientes os procedimentos voltados
para a proteção e a segurança do sistema elétrico interligado sob a co‑
ordenação do Operador Nacional do Sistema – ONS. Tampouco, a
implantação do horário de verão, que tem por objetivo principal redu‑
zir o consumo de energia elétrica e demanda de ponta por meio do
deslocamento da necessidade de utilização de luz artificial ao escurecer
em pelo menos uma hora.78 Buscou­‑se aperfeiçoar o sistema de plane‑
jamento integrado – regionalizado e descentralizado – como forma de
garantir a expansão da geração, transmissão e distribuição de energia
elétrica, articulando a política do setor com outras políticas setoriais de
desenvolvimento (industrial, agrícola, habitacional, urbana, de trans‑
portes, tecnológica, ambiental etc.) e com o sistema de regulação e con‑
trole social. O sistema de planejamento deveria ter caráter de atividade
permanente e sequencial, realizando trabalhos com perspectiva de cur‑
to, médio e longo prazos.
Para este propósito criou­‑se a Empresa de Pesquisa Energética –
EPE, que tem por finalidade prestar serviços na área de estudos e pes‑
quisas destinados a subsidiar o planejamento do setor energético, tais
como energia elétrica, petróleo e gás natural e seus derivados, carvão
mineral, fontes energéticas renováveis e eficiência energética, dentre
outras, nos termos da Lei n. 10.847, de 2004. A EPE foi concebida com
a atribuição de elaborar estudos necessários para o desenvolvimento
dos planos de expansão da geração e transmissão de energia elétrica de

78
Conforme anteriormente informado, o horário de verão ocorreu pela primeira
vez no Brasil em 1931, tendo frequência anual desde 1985.

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curto, médio e longo prazos, inclusive para obter a licença prévia am‑
biental e a declaração de disponibilidade hídrica necessárias às licita‑
ções envolvendo empreendimentos de geração hidrelétrica e de
transmissão de energia elétrica. Assim, as novas outorgas de aproveita‑
mentos hídricos passariam a ser emitidas com a devida licença prévia,
fato que preserva os investidores do ônus de pleitear a licença e facilita
o desenvolvimento dos novos empreendimentos sob outorga.
O vencedor das licitações para novos projetos de geração de ener‑
gia seria a empresa ou o consórcio que oferecesse a menor tarifa a ser
cobrada do consumidor. Além disso, quando o projeto era licitado,
havia uma premissa de que todas as licenças ambientais necessárias
para a sua construção seriam cedidas concomitantemente.
O Segundo Modelo objetivava, ainda, reduzir riscos e custos no
abastecimento aos consumidores, fossem cativos ou livres. Ele se ba‑
seia na garantia de uma remuneração constante e justa, garantida por
uma média entre a energia amortizada (denominada energia velha, ou
seja, a energia que não tem em sua composição o valor do custo do
investimento inicial), mais barata, e a não amortizada (denominada
energia nova, que tem em sua composição o valor do custo do investi‑
mento inicial), mais cara, feita pelo “pool” de aquisição, que será con‑
tabilizado pelo CCEE, sucessor do MAE.
O objetivo central da criação do “pool”, ou seja, do Ambiente de
Contratação Regulada – ACR, foi o de centralizar a oferta de energia
gerada, por meio das distribuidoras de energia elétrica, com o intuito
de atingir a modicidade tarifária, ou seja, tornar a energia elétrica ven‑
dida ao consumidor final mais barata possível, por estar eliminando
riscos e eventuais lucros que determinados agentes poderiam perceber
se pudessem atuar por sua conta e risco.
Segundo o MME, três características do Segundo Modelo impedi‑
riam reajustes altos de tarifa ou até fazer com que elas caíssem. São eles:
(i) a proibição das distribuidoras de comprar energia mais cara de gera‑
doras do mesmo grupo empresarial (self dealing); (ii) a instituição do

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

critério de “menor tarifa ao consumidor” nas licitações para obras de


geração de energia; e (iii) a centralização da compra de energia pelas
distribuidoras no “pool”.
Tal legislação permitiu avanços significativos. A nova governança
do mercado, com a instituição da CCEE, conseguiu contabilizar e li‑
quidar a energia. O planejamento voltou a ser função de Estado e pos‑
sibilitou a elaboração e consecução de projetos estruturantes, como é o
caso das usinas no rio Madeira, no Estado de Rondônia, e do rio Xin‑
gu, no Estado do Pará. Sistemas de transmissão até então isolados têm
sido continuamente interligados. Houve avanços na obtenção de licen‑
ças ambientais. O Brasil fez as maiores descobertas petrolíferas de sua
história em mar territorial, fato que elevará a condição energética do
país a um novo patamar. Pormenorizaremos a seguir os principais pon‑
tos deste modelo.

5.2.1 Lei da EPE: Planejamento enquanto função


de Estado
O amanhã é uma construção, e nem sempre é como gostaríamos
que fosse. De forma a nos precavermos dos caprichos do tempo, muitos
se debruçam em simulações, de forma a antever determinadas possibili‑
dades para saber quais atos devem ser realizados hoje para obter ou re‑
chaçar evento previsto. Ante as surpresas, busca­‑se o planejamento, o
dever ser. O ato de planejar pode ser considerado um processo cíclico,
dinâmico e adaptativo, fundado no estabelecimento de um Estado futu‑
ro pautado nas decisões presentes. Podem­‑se apontar algumas fases do
planejamento setorial no Brasil antes da viabilização da EPE:
(i) Período pré­‑Canambra (1880­‑1960): caracterizado por siste‑
mas isolados, nos quais predominavam os estudos de poten‑
ciais hidrelétricos locais e o capital privado, no qual sua
participação no mercado era diminuída de forma crescente.
Culminou no planejamento privado, como o realizado pela
Light em São Paulo e no Rio de Janeiro na década de 1920, bem

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Curso de Direito da Energia

como no Plano Nacional de Eletrificação, idealizado na década


de 1950 no BNDE;
(ii) Período Canambra (1960­‑1981): caracterizado pela formação
do consórcio Canambra Engineering Consultants Limited
(Canadá – América – Brasil), iniciativa financiada pelo Banco
Mundial que fundamentou o planejamento energético do Bra‑
sil, possibilitou o levantamento dos potenciais hidrelétricos,
bem como criou condições de desenvolver a economia do país,
por meio do Programa de Ação Econômica do Governo –
Paeg, de 1964 a 1966, e do Plano Estratégico de Desenvolvi‑
mento – PED, de 1968 a 1970. Era o estabelecimento de novas
metodologias de planejamento com enfoque na expansão de
longo prazo. A Canambra possibilitou a existência de um pla‑
nejamento centralizado, de forma a criar condições de interli‑
gação de sistemas e instalar grandes reservatórios sob a
operação da Eletrobras. As interligações dos sistemas elétricos
iniciaram­‑se nesse período graças à construção de Itaipu, que
criou condições de se gerar energia na região Sul e consumi­‑la
na região Sudeste;
(iii) Período Eletrobras (1981­‑1998): caracterizado pela criação, na
Eletrobras, do Grupo Coordenador de Planejamento dos Sis‑
temas Interligados – GCPS em 1981, que tinha a incumbência
de planejar o setor elétrico de forma estruturada, introduzindo
em seu bojo as necessidades ambientais. Era um período no
qual o capital estatal já predominava no setor elétrico e que foi
possível fixar manuais de inventário e viabilidade hidrelétrica;
(iv) Período RE­‑SEB (1998­‑2003): caracterizado por uma radical
mudança no planejamento, que passou a ser indicativo na gera‑
ção e determinativo na transmissão, com horizonte de três
anos, e sob a responsabilidade do MME. Era a busca de clareza
de um marco regulatório pautado no fomento do capital pri‑
vado. O RE­‑SEB havia concebido a criação do Instituto de

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Desenvolvimento do Setor Elétrico – Idese, que deveria reali‑


zar o planejamento indicativo, a pesquisa e desenvolvimento,
bem como desenvolver medidas de eficiência energética, mas
jamais foi viabilizado.
No início dos anos 2000, a necessidade de planejar o setor elétrico
estava fundada na predominância de grandes hidrelétricas, com estru‑
turadas interligações dos sistemas de transmissão, na necessidade de
busca de capital intensivo e de longa maturação, associada às grandes
incertezas regulatórias, advindas do racionamento e na sinalização bi‑
nária dos preços, no qual, choveu, o custo da energia elétrica era módi‑
co; não choveu, os preços disparavam.
O principal instrumento jurídico que permite refletir sobre uma
inflexão entre o primeiro modelo energético e o segundo certamente é
a Lei n. 10.847, de 2004, que criou a Empresa de Pesquisa Energética
– EPE, com a finalidade de prestação de serviços na área de estudos e
pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energético.
Identificado no Relatório Kelman79 como gargalo para o desenvolvi‑
mento setorial, o Estado se preparava tecnicamente para planejar, de
forma centralizada, o setor energético brasileiro.
Logo, a matriz energética brasileira impunha a necessidade de convergir
as demais frentes de interesse nacional, tais como o meio ambiente, os
recursos hídricos e o desenvolvimento industrial e regional. Com tais
necessidades, houve o estabelecimento de indicadores de sustentabili‑
dade das matrizes energéticas, concomitante à avaliação ambiental dos
recursos naturais a serem empregados enquanto fontes energéticas. Em
paralelo, ao estabelecer um Plano Energético Nacional, houve a inten‑
ção de fixar estratégias de longo prazo para a expansão do sistema
energético nacional, haja vista os recursos nacionais então disponíveis,
consoante ao estágio tecnológico e às restrições ambientais. Por fim, o
Plano Decenal de Energia objetivou apontar projetos para expansão

79
Mais informações na alínea c do item 5.1.1.

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Curso de Direito da Energia

do sistema energético do Brasil com a menor relação custo/benefício e


ambientalmente aceita.
Dentro desse espírito normativo, a Lei n. 10.847, de 15 de março
de 2004, autorizou a criação da Empresa de Pesquisa Energética – EPE,
com a finalidade de prestar serviços na área de estudos e pesquisas des‑
tinadas a subsidiar o planejamento do setor energético, tais como ener‑
gia elétrica, petróleo e gás natural e seus derivados, carvão mineral,
fontes energéticas renováveis e eficiência energética, dentre outras. No
rol de suas competências, estão elencadas: (i) realização de estudos e
projeções da matriz energética brasileira; (ii) elaboração e publicação
do balanço energético nacional; (iii) identificação e quantificação dos
potenciais de recursos energéticos; (iv) determinação dos aproveita‑
mentos ótimos dos potenciais hidráulicos; (v) obtenção da licença pré‑
via ambiental, incluindo a declaração de disponibilidade hídrica
necessária às licitações envolvendo empreendimentos de geração hi‑
drelétrica e de transmissão de energia elétrica; (vi) elaboração dos estu‑
dos necessários para o desenvolvimento dos planos de expansão da
geração e transmissão de energia elétrica de curto, médio e longo pra‑
zos; (vii) promoção de estudos ao gerenciamento da relação reserva e
produção de hidrocarbonetos no Brasil; dentre outros, sempre volta‑
dos aos subsídios a planos e programas de desenvolvimento energético
ambientalmente sustentável, inclusive, de eficiência energética.
O Decreto n. 5.184, de 16 de agosto de 2004, regulamenta a lei de
criação da EPE e aprova seu Estatuto Social que, dentre outros aspec‑
tos, descreve que a EPE deverá: (i) promover acordo operacional com
o Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS, com a finalidade de
receber elementos e subsídios necessários ao desenvolvimento das ati‑
vidades relativas ao planejamento do setor elétrico; (ii) manter inter‑
câmbio de dados e informações com a Agência Nacional de Energia
Elétrica – Aneel, Agência Nacional de Águas – ANA, Agência Nacio‑
nal do Petróleo – ANP e com a Câmara de Comercialização de Energia
Elétrica – CCEE, observada a regulamentação específica quanto à

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guarda e ao sigilo de tais dados; (iii) participar do Comitê de Monito‑


ramento do Setor Elétrico – CMSE; (iv) calcular a garantia física dos
empreendimentos de geração; (v) submeter ao Ministério de Minas e
Energia a relação de empreendimentos de geração e correspondentes
estimativas de custos, que integrarão, a título de referência, os leilões de
energia; (vi) habilitar tecnicamente e cadastrar os empreendimentos de
geração que poderão ser incluídos nos leilões de energia elétrica prove‑
niente de energia nova; e (vii) calcular o custo marginal de referência
que constará dos leilões de compra de energia.
Por sua vez, o Decreto n. 5.163, de 30 de julho de 2004, elenca
conceitos fundamentais para o exercício do planejamento setorial, tais
como Energia assegurada (art. 4o) enquanto cálculo da garantia física
dos empreendimentos de geração para os empreendimentos que vão
participar dos leilões; expansão da oferta (art. 12) enquanto instrumen‑
to de consolidação da demanda dos leilões; e seus respectivos custeios,
justificados no conceito de custo marginal de referência dos leilões
(art. 20). Mister destacar que o critério de garantia de atendimento está
previsto no art. 2o da Resolução n. 1 do CNPE, de 18 de novembro de
2004, que define o risco de insuficiência da oferta de energia elétrica no
Sistema Interligado Nacional em cinco por cento, em cada um dos sub‑
sistemas que o compõem.

5.2.2 Legislação do setor elétrico. O CMSE


Se admitirmos que a primeira norma sobre eletricidade no Brasil
foi a concessão a Thomas Edison, em 1879, de privilégio para introdu‑
zir no Império o uso da luz elétrica, ou mesmo o Decreto de 1828, que
concedia direitos à exploração a gás da iluminação pública do Rio de
Janeiro, culminando no primeiro dispositivo energético percebido no
Brasil, pode­‑se afirmar que existe uma construção normativa do setor
energético secular, sobreposta por seis constituições federais e por um
intrincado sistema normativo que produz um sistema de difícil refle‑
xão, com revogações expressas e tácitas. Em que pese haver duas claras

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Curso de Direito da Energia

tentativas de se firmar um regime jurídico setorial, como foi a iniciativa


do governo Vargas no Código de Águas de 1934 e a Lei Geral das Con‑
cessões, editada pelo presidente Cardoso em 1995, nenhum desses pla‑
nos chegou a ser inteiramente implementado, haja vista que a sequência
dos fatos políticos e econômicos se sobrepôs à realidade normativa.
Assim, o Segundo Modelo Energético pode ser considerado uma
continuidade do primeiro Modelo no que tange à estrutura regulatória,
à manutenção dos contratos setoriais vigentes e à competição setorial.
Por outro lado, significou uma ruptura no que tange ao planejamento
setorial, bem como na estrutura de mercado, uma vez que há um forta‑
lecimento e expansão da atividade federal estatal, na qual deveria, pelo
Primeiro Modelo, inexistir.
As principais consequências dessas reorientações, no setor elétri‑
co, foram: (i) a criação do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico
– CMSE, realizada pelo art. 14 da Lei n. 10.848, de 2004, com a função
precípua de acompanhar e avaliar permanentemente a continuidade e a
segurança do suprimento eletroenergético em todo o território
nacional;80 (ii) a mudança de conceito de “modicidade tarifária”, por
meio da Lei de Contratação de Eletricidade (10.848, de 2004); (iii) a
intensificação de medidas sociais, por intermédio de programas especí‑
ficos; e (iv) o fortalecimento e a internacionalização da Eletrobras.
Em que pese haver disposições jurídicas anteriores, que conferem
tratamento legal em maior ou menor intensidade, o governo Lula pode
ser identificado como aquele que estabeleceu quatro regimes jurídicos
de grande relevância setorial:
(i) regime jurídico das cooperativas de eletrificação rural: ao
emancipar a eletrificação rural de programa de governo de uni‑

80
Posteriormente regulamentado pelo Decreto n. 5.175, de 2004, o CMSE ficou
incumbido de congregar os representantes das entidades responsáveis pelo pla‑
nejamento da expansão, da operação eletroenergética dos sistemas elétricos, da
administração da comercialização de energia elétrica e da regulação do setor elé‑
trico nacional.

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versalização de energia elétrica, marcado principalmente pela


transformação do Programa “Luz no Campo” para o “Luz
Para Todos”, o Decreto n. 6.160, de 20 de julho de 2007 regu‑
lamentou os §§ 1o e 2o do art. 23 da Lei n. 9.074, de 7 de julho
de 1995, e qualificou as cooperativas de eletrificação rural
como permissionárias de serviço público de distribuição de
energia elétrica;
(ii) regime jurídico dos sistemas isolados: a Lei n. 12.111, de 9 de
dezembro de 2009, regulamentada pelo Decreto n. 7.093, de 2
de fevereiro de 2010, e pelo Decreto n. 7.246, de 28 de julho de
2010, que dispõe sobre o serviço de energia elétrica dos Siste‑
mas Isolados, teve como grande motivador incorporar ao Sis‑
tema Interligado Nacional os Estados de Rondônia e do Acre,
possibilitando o acesso aos empreendimentos hidrelétricos no
rio Madeira. Para tanto, era preciso criar mecanismos de com‑
pensação tributária para aqueles Estados, que, por serem até
então isolados, tinham parcela significativa de suas receitas
atreladas ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação
de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte
Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS;
(iii) regime jurídico das interligações internacionais: os arts. 8o e 9o
da Lei n. 12.111, de 9 de dezembro de 2009, regulamentada
pelo Decreto n. 7.093, de 2 de fevereiro de 2010, revogado pelo
Decreto n. 7.246, de 28 de julho de 2010, também teve como
motivador a interconexão internacional do Brasil com o Peru.
No centro dessa regulamentação está a internacionalização da
Eletrobras e o interesse público de fomentar o tráfego de elé‑
trons, seja para exportação, seja para importação, tornando o
setor elétrico, mais uma vez, como um elemento central de in‑
tegração regional;
(iv) regime jurídico da atuação energética em áreas de conservação
ambiental: o Decreto n. 7.154, de 9 de abril de 2010, sistemati‑

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Curso de Direito da Energia

zou e regulamentou a atuação de órgãos públicos federais, es‑


tabelecendo procedimentos a serem observados para autorizar
e realizar estudos de aproveitamentos de potenciais de energia hi­
dráulica e sistemas de transmissão e distribuição de energia elé‑
trica no interior de unidades de conservação, bem como para
autorizar a instalação de sistemas de transmissão e distribuição
de energia elétrica em unidades de conservação de uso susten‑
tável. Assim, o Decreto regulamenta que a realização de estu‑
dos em Área de Proteção Ambiental – APA e Reserva
Particular do Patrimônio Natural – RPPN prescinde da auto‑
rização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodi‑
versidade – Instituto Chico Mendes, mediante processo
administrativo próprio, devendo o interessado comprovar que
detém registro ativo junto à Agência Nacional de Energia Elé‑
trica – Aneel.
Considerando que o CMSE, e sua forma de atribuir confiabilidade
ao sistema, será devidamente pormenorizado no Tomo II – Do Modelo
Institucional, passaremos a analisar a cronologia normativa no tocante
à eletricidade no Segundo Modelo Energético.
5.2.2.1 Lei de contratação de eletricidade (ACR e ACL). A CCEE
O segundo semestre de 2003 foi um período de grandes mudanças
na legislação do setor elétrico brasileiro. Considerando a necessidade
de honrar os mecanismos tarifários fixados nos contratos de concessão
das distribuidoras de eletricidade, a Lei n. 10.762, de 11 de novembro
de 2003, criou o Programa Emergencial e Excepcional de Apoio às
Concessionárias de Serviços Públicos de Distribuição de Energia Elé‑
trica, destinado a suprir a insuficiência de recursos decorrente do adia‑
mento da aplicação do mecanismo de compensação de que trata o art.
1o da Medida Provisória n. 2.227, de 4 de setembro de 2001, para os
reajustes e revisões tarifárias realizados entre 8 de abril de 2003 e 7 de
abril de 2004, por meio de financiamento a ser concedido pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES.

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Mas a mudança estrutural no modelo vinha por força da Medida


Provisória n. 144, de 10 de dezembro de 2003, que originou o modelo
de comercialização de energia elétrica, que também atendia pelo jargão
econômico de “pool de energia”, e que foi transformada em norma
ordinária por força da Lei n. 10.848, de 2004. Por trás dessa pretensão,
havia o interesse público de obter modicidade tarifária por meio da
centralização da comercialização dos novos contratos de compra e
venda de energia elétrica.
Nesse sentido, o art. 1o da Lei em tela já preconizava que a comer‑
cialização de energia elétrica entre concessionários, permissionários e
autorizados de serviços e instalações de energia elétrica, bem como
destes com seus consumidores, no Sistema Interligado Nacional – SIN,
dar­‑se­‑ia mediante contratação regulada ou livre. No rol de diretrizes
para o alcance desse objetivo, o inciso X pregava importante atribuição
ao Conselho Nacional de Política Energética – CNPE: fixar critérios
gerais de garantia de suprimento de energia elétrica que assegurassem
equilíbrio adequado entre confiabilidade de fornecimento e modicidade
de tarifas e preços.
A mistura de energias de origem, bem como os níveis distintos de
maturidade dos empreendimentos, foram apenas algumas das novidades
desse modelo. O projeto setorial que a Lei n. 10.848, de 2004, destina
ao Brasil é a harmonização de um modelo híbrido, no qual empresas
públicas e privadas devem conviver entre si no interior do mercado
setorial. E esse talvez seja o grande ineditismo dessa norma. Em todos
os modelos anteriores, buscou­‑se ou tornar o setor exclusivo a empre‑
sas públicas, ou completamente privado, no qual a existência de uma
situação mista, com empresas públicas e privadas atuando no mesmo
setor, era considerada uma necessidade interlocutória até se alcançar o
modelo ideal, fosse público ou privado.
No presente modelo, ao preservar as outorgas concedidas à iniciati‑
va privada, bem como possibilitar sua continuidade estatal, ao excluir do
Programa Nacional de Desestatização – PND a Eletrobras, Furnas,

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Curso de Direito da Energia

Chesf, Eletronorte, Eletrosul e a Companhia de Geração Térmica de


Energia Elétrica – CGTEE, houve, de forma indireta, a imposição de que
empresas públicas federais, estaduais, distrital e municipais deveriam es‑
tar inseridas no mesmo mercado das empresas privadas. Logo, em um
regime jurídico misto, composto por empresas públicas e privadas, que
sob a ótica econômica tornou imperativa a obrigatoriedade de haver ofer‑
ta maior que a demanda, o planejamento ganha função central.
O § 6o do art. 1o passava a delegar à Convenção de Comercialização,
a ser instituída pela Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, os
mecanismos de contratação da energia, que deverá prever: (i) as obriga‑
ções e os direitos dos agentes do setor elétrico; (ii) as garantias financeiras;
(iii) as penalidades; e (iv) as regras e procedimentos de comercialização,
inclusive os relativos ao intercâmbio internacional de energia elétrica. A
hipótese de incidência de essa energia não existir passava a contar com
uma severa sanção para o caso concreto. Montantes significativos passa‑
vam a ser impostos a título de depósito de garantias.
O art. 2o, por sua vez, passava a tornar obrigatória a contratação de
toda a carga das distribuidoras de energia elétrica conectadas ao Sistema
Interligado Nacional – SIN. O regulamento ficou com algumas prerro‑
gativas, tais como dispor sobre mecanismos para incentivar a modicida‑
de tarifária, garantias, condições e limites para repasse do custo de
aquisição de energia elétrica para os consumidores finais, dentre outros.
A contratação seria formalizada por meio de contratos bilaterais deno‑
minados Contrato de Comercialização de Energia no Ambiente Regu‑
lado – CCEAR, celebrados entre as geradoras perante as distribuidoras.
O nascedouro da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica
– CCEE adveio no art. 4o. Sua natureza jurídica era a mesma da época
do MAE, uma vez que foram mantidas as características de pessoa ju‑
rídica de direito privado, sem fins lucrativos, sob autorização do Poder
Concedente e regulação e fiscalização pela Agência Nacional de Ener‑
gia Elétrica – Aneel, com a finalidade de viabilizar a comercialização de
energia elétrica. Era a substituição da expressão “mercado” pela “co‑

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mercialização”, ou seja, a busca da reafirmação da energia elétrica en‑


quanto serviço público, e não como um produto.
Logo, havia uma consolidação dos mecanismos de comercialização de
energia elétrica iniciada por força da Lei n. 10.433, de 24 de abril de 2002,
revogada pela Lei n. 10.848, de 15 de março de 2004, e que culminou: (i) na
instituição da arbitragem setorial, incluindo a possibilidade legal de partici‑
pação das estatais, uma vez que os direitos relativos a créditos e débitos
decorrentes das operações realizadas no âmbito da CCEE são considera‑
dos disponíveis; (ii) adequação da Convenção de Mercado para a Conven‑
ção de Comercialização, enfatizando o caráter de serviço público da
eletricidade; e (iii) mudança do Estatuto Social do MAE para o da CCEE.
Houve, igualmente, uma ampla reestruturação da destinação de en‑
cargos setoriais. Afinal, a atividade de planejamento passava a ser centra‑
lizada e necessitava de fonte de custeio. Logo, o Ministério de Minas e
Energia – MME passou a ter 3% dos recursos da Reserva Global de Re‑
versão – RGR para custear os estudos e pesquisas de planejamento da
expansão do sistema energético, bem como os de inventário e de viabili‑
dade necessários ao aproveitamento dos potenciais hidroelétricos, além
de parcela que anteriormente era destinada a pesquisa e desenvolvimento.
Outra inovação da Lei n. 10.848, de 2004, foi a imposição legal da
desverticalização, transcrita de forma a impedir que a atividade de dis‑
tribuição fosse misturada com quaisquer outras atividades, setoriais ou
não, salvo hipóteses de: (i) atendimento a sistemas elétricos isolados;
(ii) atendimento ao mercado próprio inferior a 500 GWh/ano; e (iii) na
captação, aplicação ou empréstimo de recursos financeiros destinados
ao próprio agente ou à sociedade coligada, controlada, controladora
ou vinculada a controladora comum, desde que destinados ao serviço
público de energia elétrica, mediante anuência prévia da Aneel.81

81
Para essa hipótese, deverá ser observado o disposto no inciso XIII do art. 3o da
Lei n. 9.427, de 26 de dezembro de 1996, com redação dada pelo art. 17 da Lei n.
10.438, de 26 de abril de 2002, garantida a modicidade tarifária e atendido o dis‑
posto na Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976.

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Curso de Direito da Energia

O desenvolvimento regional não passou despercebido do legisla‑


dor. A receita de pesquisa e desenvolvimento passou a ter, no mínimo,
30% de seus recursos destinados a projetos desenvolvidos por institui‑
ções de pesquisa sediadas nas regiões Norte, Nordeste e Centro­‑Oeste,
incluindo as respectivas áreas das Superintendências Regionais.
A Lei n. 10.848, de 2004, considerando a necessidade de alterar o
regime jurídico da energia elétrica proveniente de empreendimentos de
geração com os custos de construção amortizados, denominada “ener‑
gia velha”, daquela oriunda de usinas com os custos não amortizados,
chamada “energia nova”. Preservou­‑se a metodologia de leilões de
compra de energia, todavia, eles passavam a ser centralizados no Poder
Concedente e conter modalidades distintas. Exceção feita às distribui‑
doras que atuem nos sistemas elétricos isolados, que continuariam a
firmar contratos de compra e venda de energia elétrica por modalidade
diversa dos leilões.
Houve ainda uma reestruturação das atividades das distribuidoras
de energia elétrica. Esse segmento setorial foi: (i) obrigado a incorpo‑
rar a seus patrimônios as redes particulares que não dispusessem de
ato autorizativo do Poder Concedente até 31 de dezembro de 2005;
(ii) proibido de prorrogar prazo das concessões; (iii) proibido de au‑
mentar as quantidades ou preços contratados;82 e (iv) obrigado a con‑
dicionar a continuidade do fornecimento aos usuários inadimplentes
de mais de uma fatura mensal em um período de 12 (doze) meses ao
oferecimento de depósito­‑caução, limitado ao valor inadimplido,83 ou
à comprovação de vínculo entre o titular da unidade consumidora e o
imóvel onde ela se encontra.84

82
Estavam excluídas dessa imposição os aditamentos relativos a ampliações de pe‑
quenas centrais hidroelétricas, desde que não resultassem em aumento do preço
unitário da energia constante no contrato original.
83
Não se aplica nessa hipótese ao consumidor integrante da Classe Residencial.
84
Não se aplica nessa hipótese ao consumidor integrante da Subclasse Residencial
Baixa Renda.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

5.2.2.2 Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia


Elétrica – Proinfa
A dimensão do que é alternativo depende de uma concepção his‑
tórica dos métodos setoriais. Conceitualmente, uma fonte alternativa
deve ser entendida como uma possibilidade de opção de fornecimento
energético realizada primordialmente pelo sistema técnico estabeleci‑
do. Fontes alternativas sempre existiram. Conforme demonstrado,
D. Pedro II já havia concedido patente para equipamento de geração
de energia elétrica por matriz eólica. Rui Barbosa já havia se manifes‑
tado sobre geração de energia a partir do lixo. O que o Brasil sempre
prescindiu foi de uma política pública voltada ao desenvolvimento de
energias que pudessem se contrapor à eficiência de fornecimento con‑
ferido pela hidreletricidade. E essa discussão somente se intensificou
quando o sistema hidrelétrico demonstrou vulnerabilidades estrutu‑
rais por conta das externalidades ambientais e de abastecimento.
Pode­‑se afirmar que as discussões sobre diversificação da matriz
elétrica encontram­‑se no Congresso Nacional. O deputado José Car‑
los Aleluia (PFL­‑BA), enquanto relator do Projeto de Lei n. 2.905, de
2000, e posteriormente relator do projeto que se converteu na Lei
n. 10.438, de 2002, e que originou o Proinfa, pormenoriza as mudanças
que a legislação estava a passar como reflexo do racionamento de 2001.

II – Voto do relator
Retorna o Poder Executivo Federal a propor ao Congresso Na‑
cional reformulação de várias leis em vigor que tratam do setor elétrico
nacional, repetindo, quase em sua totalidade, o conteúdo da extinta
Medida Provisória n. 1.819­‑1, de 30 de abril de 1999, objeto de liminar
concedida pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Incons‑
titucionalidade n. 2005­‑6, de 1999.
O presente Substitutivo introduz relevantes alterações no PL ori‑
ginal. Trata da universalização do serviço público de energia elétrica,
proporcionando ao Poder Executivo instrumentos capazes de
concretizá­‑la quer pelo estabelecimento de metas quer pela contratação
de novos agentes sob regime de permissão para atuarem em áreas já

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Curso de Direito da Energia

concedidas. Incorpora mecanismo de inserção de energias alternativas


renováveis, estabelecendo objetivo e metas para a participação dessas
fontes na Matriz Energética Nacional. Atua sobre o desenvolvimento
energético nacional estabelecendo mecanismos de estímulos à geração
de energia. Finalmente, aborda em vários dispositivos mecanismos que
visam impedir a concentração empresarial no setor. 85

Nesse espírito, o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de


Energia Elétrica – Proinfa adveio no calor das discussões sobre o racio‑
namento de 2001 no Congresso Nacional. O art. 3o da Lei n. 10.438, de
2002, dispõe que o objetivo do Proinfa é o de aumentar a participação
da energia elétrica produzida por empreendimentos de Produtores In‑
dependentes, concebidos com base em fontes eólica, pequenas centrais
hidrelétricas e biomassa, no Sistema Elétrico Interligado Nacional.
No tocante à regulamentação, nos últimos dias da gestão do presi‑
dente Cardoso, foi editado o Decreto n. 4.541, de 23 de dezembro de
2002, que dispôs sobre a expansão da oferta de energia elétrica emer‑
gencial, recomposição tarifária extraordinária, cria o Programa de In‑
centivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – Proinfa, a Conta
de Desenvolvimento Energético – CDE, dentre outros. Essa normati‑
va sofreu diversas alterações, algumas pontuais, como a ocorrida por
força do Decreto n. 4.644, de 24 de março de 2003, outras estruturais,
conforme disposto pelo Decreto n. 5.025, de 30 de março de 2004, que
confere novas diretrizes ao Proinfa, em consonância com as diretrizes
que as Leis n. 10.847 e n. 10.848 confeririam ao setor.
O Programa, alterado no governo Lula pela: (i) Lei n. 10.762, de
2003, referente a prazo para alcance de metas; (ii) Lei n. 11.075, de
2004, no tocante à gestão dos contratos pela Eletrobras; e (iii) Lei
n. 12.212, de 2010, em função da excludente dos consumidores benefi‑
ciados pela Tarifa Social de Energia Elétrica, é dividido em duas etapas
que criam regimes jurídicos distintos para as energias alternativas, uti‑

85
Relatório do Projeto de Lei n. 2.905, de 2000.

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lizando como discrímen a meta de se ter 3.300 MW de capacidade ins‑


talada em fontes alternativas.
Interessante notar que a legislação cria definições setoriais especí‑
ficas para o Proinfa. Pode se notar a existência de duas espécies de ge‑
radores: (i) Produtor Independente Autônomo – PIA, definido como
pessoa jurídica não detentora de concessão ou sob controle de conces‑
sionária, regida pelo § 1o do art. 3o da Lei n. 10.438, de 2002; e (ii) Pro‑
dutor Independente de Energia Elétrica – PIE, definido como pessoa
jurídica ou empresas reunidas em consórcio que recebam concessão ou
autorização do poder concedente, para produzir energia elétrica desti‑
nada ao comércio de toda ou parte da energia produzida, por sua con‑
ta e risco, conforme o art. 11 da Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995.
Os contratos são geridos pela Eletrobras com prazo de duração
de 20 anos e preço equivalente ao valor econômico correspondente à
geração de energia competitiva. A própria Lei se encarrega de definir
esse preço (alínea b, II, art. 3o) como o custo médio ponderado de
geração de novos aproveitamentos hidráulicos com potência superior
a 30.000 kW e centrais termelétricas a gás natural, calculado pelo Po‑
der Executivo.
O Proinfa pode ser descrito com as seguintes características:
(i) contrato de compra de energia por 20 anos junto à Eletrobras, com
fixação de garantias; (ii) exigência de habilitações técnica, jurídica, fis‑
cal e econômico­‑financeira; (iii) garantia do piso de 70% da receita
contratual durante todo o período de duração do contrato de financia‑
mento do empreendimento; (iv) representação dos produtores na
CCEE; (v) comercialização, no mercado de curto prazo, das diferenças
entre a energia contratada e a energia produzida, refletida ao centro de
gravidade do sistema; (vi) subsídios pagos pelo consumidor (tarifa ga‑
rantida); e (vii) financiamentos pelo BNDES (R$ 6 bilhões, com 80%
de financiamento amortizado em até 12 anos), Banco do Brasil e Caixa
Econômica Federal (repassadores dos fundos do BNDES), e Banco do
Nordeste, Banco da Amazônia, Caixa Econômica, ADA e Adene.

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Curso de Direito da Energia

Há diversas virtudes na execução de uma política pública voltada


às energias alternativas. Esses investimentos permitem a entrada de no‑
vos agentes no setor elétrico, reduzem a emissão de gases de efeito es‑
tufa e tornam o sistema mais heterogêneo. Também pode ser
identificada uma clara valorização das características e das potenciali‑
dades regionais e locais, com a criação de empregos, capacitação e for‑
mação de mão de obra. O site institucional da Eletrobras86
pormenoriza a dimensão do Proinfa na matriz energética brasileira,
com enfoque na regionalidade.

O Proinfa prevê a operação de 144 usinas, totalizando 3.299,40


MW de capacidade instalada. As usinas do programa responderão pela
geração de aproximadamente 12.000 GWh/ano – quantidade capaz de
abastecer cerca de 6,9 milhões de residências e equivalente a 3,2% do
consumo total anual do país. Os 3.299,40 MW contratados estão divi‑
didos em 1.191,24 MW provenientes de 63 Pequenas Centrais Hidre‑
létricas (PCHs), 1.422,92 MW de 54 usinas eólicas, e 685,24 MW de 27
usinas a base de biomassa. Toda essa energia tem garantia de contrata‑
ção por 20 anos pela Eletrobras.
Além da produção de energia a partir de fontes renováveis, o
Proinfa, até a sua total implantação, deverá gerar mais de 150 mil em‑
pregos diretos e indiretos. Somente na região Nordeste, a expectativa é
de geração de mais de 40 mil empregos. Os investimentos são da or‑
dem de R$ 10,14 bilhões, com financiamentos de cerca de R$ 7 bilhões
e receita anual em torno de R$ 2 bilhões.
O Proinfa também proporciona a redução da emissão de gases de
efeito estufa da ordem de 2,8 milhões de toneladas de CO2/ano ao in‑
cluir as fontes limpas na produção de energia elétrica [...]. O programa
permite ainda a distribuição da produção de energia pelo Brasil, o que
resulta em maior distribuição de empregos e renda entre os estados,
além de propiciar a capacitação de técnicos e indústrias em novas tec‑
nologias de geração de energia elétrica.

86
Disponível em: <http://www.eletrobras.com/elb/data/Pages/LUMISABB61D26P‑
TBRIE.htm.>. Acesso em: 22 dez. 2010.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Alguns efeitos do Proinfa podem ser rapidamente identificados


nos anos 2000: (i) o desenvolvimento vertiginoso da região Nordeste,
notadamente o Ceará, na matriz eólica, haja vista a relevante incidência
de ventos naquele litoral; (ii) a industrialização brasileira no tocante
aos componentes para geração eólica, graças a imposições legais refe‑
rentes a índices de nacionalização de equipamentos; (iii) a profusão de
conexões ao Sistema Interligado Nacional de parques de geração, exi‑
gindo reforço do sistema; e (iv) o aumento de inventários de quedas
d’água, principalmente em aproveitamentos antes considerados econo‑
micamente inviáveis.
5.2.2.3 Programa Luz para Todos: a reorientação na
universalização da energia elétrica
A universalização do serviço de distribuição foi frequentemente
utilizada como política pública ao longo da história do desenvolvi‑
mento do setor elétrico brasileiro. No centro dessa premissa está o
monopólio natural87 da distribuição de energia elétrica e o descasamen‑
to entre investimento da distribuidora e a capacidade de remunerar do
usuário do serviço público. Em magistral lição de Direito Comparado
sobre o assunto, Álvares88 explana o seguinte:

Como decorrência inevitável da caracterização do serviço público,


uma empresa concessionária, no nosso direito, uma “public utility”, no
direito norte­‑americano, empenhada no exercício de suas funções, arca‑
rá com o ônus de tornar efetiva e satisfatória a atividade pública que lhe
foi confiada, submetendo­‑se às particularidades da mesma, a ponto de
não poder abandonar a prestação do serviço, mesmo em caso de even‑
tual prejuízo. Ensina Hall, nos Estados Unidos, que uma ferrovia não
tem direito de abandonar parte de suas linhas unicamente porque aque‑
le setor não apresenta lucros. E o comissário Corneille, do governo
francês, no Conselho de Estado, seria mais drástico, ao enunciar, em

87
O conceito de monopólio natural será estudado no Tomo III – Da Epistemologia.
88
ÁLVARES, Walter Tolentino. Direito da energia. Belo Horizonte: Instituto de
Direito da Eletricidade, 1974. v. 2, p. 348-349.

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Curso de Direito da Energia

1917, no affaire Astrue, que “au besoin, le concessionnaire travaillera à


part (avec l’aide du concédant) pourvu qu’il travaille”.
O Supremo Tribunal Federal, em voto de Nelson Hungria, não
era menos categórico ao estabelecer a doutrina de que o “concessioná‑
rio não pode opor à administração pública a ‘exceptio non adimpleti
contractus’ ’’.
Ainda nesta abordagem particular da adimpletio contractus me‑
rece ser indicado que mesmo o atraso do concedente em realizar pres‑
tações ou subvenções não altera sua posição na falência da
concessionária. Nesta hipótese de atraso do concedente, deve o con‑
cessionário requerer que aquele faça sua parte, realize sua prestação, e,
só depois de sua recusa ou inércia, irá aos tribunais pedir a aplicação da
sanção pertinente.

Logo, o fornecimento de energia elétrica não poderia ser recusado


nas áreas de atuação das distribuidoras, e se fossem necessárias exten‑
sões do sistema, seriam as mesmas estabelecidas à custa do concessio‑
nário, com base na redação original do art. 139 do Decreto n. 41.019,
de 195789 e no Decreto n. 1.033, de 22 de maio de 1962, que tratava
sobre cooperativismo de eletrificação rural. Afinal, o conceito de “uni‑
versalização” está historicamente ligado ao conceito de ruralidade, ou
seja, nos locais aonde os distribuidores monopolistas não expandiam
seus sistemas por inviabilidade econômica. Aranha,90 então advogado
da Eletrificação Rural de Minas Gerais – Ermig, expõe em 1966 como
era realizada a universalização de energia elétrica por intermédio de
cooperativas de eletrificação rural:

O inevitável sacrifício do ruralista que pretenda se beneficiar da


energia elétrica tanto menos doloroso será quanto mais se o puder di‑

89
ÁLVARES, Walter Tolentino. Curso de direito da energia. Rio de Janeiro: Fo‑
rense, 1978.
90
ARANHA, Luiz R. G. Aspectos do cooperativismo de eletrificação rural. In
Boletim do Instituto de Direito da Eletricidade, Belo Horizonte, n. 5, p. 22,
out. 1966.

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vidir entre os interessados da eletrificação rural. Posta a questão nestes


termos, verifica­‑se que a maneira mais justa e mais racional de levar
avante o ideal de eletrificar a comunidade rural, reunindo esforços e
economias, fazendo da união a fôrça construtiva é a organização de
uma cooperativa de eletrificação rural.
Bafejado por especialíssimas condições, especialmente pela atual
disponibilidade de seus recursos energéticos, o Estado de Minas Ge‑
rais, através da ação pioneira da Ermig, subsidiária da Cemig, tem ser‑
vido de modelar exemplo para o resto do país no campo das realizações
de eletrificação rural. Agindo como intermediária na obtenção de re‑
cursos financeiros, construindo ela própria os sistemas rurais, tem a
Ermig logrado interessar, por seus programas, um grande número de
fazendeiros que batem, diàriamente, às suas portas, buscando informa‑
ções sôbre a possibilidade de eletrificação de suas propriedades. Além
disso, captando o eco das realizações da Ermig, representantes dos
mais diferentes Estados da federação têm buscado naquela emprêsa pa‑
radigma para semelhantes empreendimentos em suas unidades.

Assim, a eletrificação rural se baseava em iniciativas pontuais, ge‑


ralmente pautadas pelas empresas estaduais, que invariavelmente atre‑
lavam seus cronogramas técnicos de expansão a interesses políticos
imediatos de cada Estado e contavam com o regime jurídico do coope‑
rativismo para exercer a expansão do sistema. Há dois Decretos que
merecem destaque no desenvolvimento da eletrificação rural no Regi‑
me Militar:
(i) Decreto n. 62.655, de 3 de maio de 1968, que regulamenta a exe‑
cução de Serviços de Eletrificação Rural mediante autorização
para uso privativo, definindo­‑a como execução de serviços de
transmissão e distribuição de energia elétrica destinada a consu‑
midores localizados em áreas fora dos perímetros urbanos e su‑
burbanos das sedes municipais e aglomerados populacionais
com mais de 2.500 habitantes, e que se dediquem a atividades
ligadas diretamente à exploração agropecuária, ou a consumido‑
res localizados naquelas áreas, dedicando­‑se a quaisquer tipos de
atividades, porém com carga ligada de até 45 kVA; e

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(ii) Decreto n. 83.269, de 12 de março de 1979, que conferiu nova


redação aos arts. 136 a 144 do Decreto n. 41.019, de 26 de feve‑
reiro de 1957, delegando ao DNAEE a competência para regu‑
lar o tema.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a visão liberal da
década de 1990 buscou tratar esse tema como uma “assimetria econô‑
mica”, ou seja, compor um sistema de custeio por subsídios para que
populações mais carentes tivessem acesso à energia elétrica sem que
houvesse comprometimento financeiro das distribuidoras. Assim,
como em diversos outros casos em que o Poder Concedente impõe a
cobrança de encargos91 para viabilizar determinados benefícios para
inclusão social de parcela significativa da população, em que pese ter
como efeito reverso o agravamento direto ou indireto das condições
tarifárias das classes econômicas mais privilegiadas, esse conceito está
alicerçado na proteção à dignidade da pessoa humana e na erradicação
da pobreza como objetivo fundamental.
Desde então, pode­‑se conceituar a universalização como o atendi‑
mento gradual e contínuo a todos os pedidos de fornecimento de
energia elétrica realizados por pessoas físicas ou jurídicas, com enfo‑
que em áreas de baixa densidade populacional, independentemente da
capacidade financeira dos potenciais clientes, por meio de subvenção
econômica.
Com essa perspectiva, Decreto s/n, de 2 de dezembro de 1999,
instituiu o Programa Nacional de Eletrificação Rural denominado
“Luz no Campo”. Custeado pela Reserva Global de Reversão – RGR

91
Pode-se citar como outros encargos a Reserva Global de Reversão – RGR, insti‑
tuída pela Lei n. 5.655, de 1971, e a Conta de Consumo de Combustível – CCC,
instituída inicialmente pela Lei n. 5.899, de 5 de julho de 1973 (regulamentada
pelo Decreto n. 73.102, de 7 de novembro de 1973), e seu rateio ampliado de
forma a abranger todos os sistemas interligados e os sistemas isolados pela Lei n.
8.631, de 4 de março de 1993, regulamentada pelo Decreto n. 774, de 18 de mar‑
ço de 1993.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

e pelo Uso de Bem Público – UBP,92 deveria ser regulado pela Aneel
com vistas ao interesse público subjetivo incidente da inclusão social.
Foi a primeira vez que se admitiu, por intermédio de política pública,
que o monopólio natural93 dos distribuidores deveria produzir igual‑
dade de oportunidades por intermédio do tratamento isonômico dado
aos clientes. Havia critério regional a ser obedecido, com expresso fa‑
vorecimento às regiões Norte, Nordeste e Centro­‑Oeste, em razão do
baixo índice de eletrificação rural.
A atual forma de subsidiar a universalização do fornecimento de
energia elétrica foi introduzida pela Lei n. 10.438, de 2002,94, 95 com a

92
Respectivamente nos termos das Leis n. 9.427, de 26 de dezembro de 1996, e
9.648, de 27 de maio de 1998.
93
Porque maiores economias de escala são obtidas apenas quando na presença de
um único “produtor”. VINHAES, E. A reestruturação da indústria de energia
elétrica brasileira: uma avaliação da possibilidade de competição através da teo‑
ria dos mercados contestáveis. 1999. Dissertação (Mestrado em Engenharia de
Produção) – UFSC, Santa Catarina, 1999.
94
O Decreto n. 4.541, de 2002, ao regulamentar a referida lei, determinou à Aneel
que publicasse, até 30 de novembro de cada ano, as informações necessárias à
gestão da CDE.
95
Alterada pela Lei n. 10.762, de 2003, impôs limites claros ao atendimento a ser
realizado “sem ônus para o solicitante”. A nova redação do art. 14 estabelece
que, para determinar as metas de universalização do uso da energia elétrica, a
Aneel fixará, para cada concessionária e permissionária de serviço público de
distribuição de energia elétrica, áreas progressivamente crescentes, em torno das
redes de distribuição, no interior das quais o atendimento em tensão inferior a
2,3 kV, ainda que necessária a extensão de rede primária de tensão inferior ou
igual a 138 kV, e carga instalada na unidade consumidora de até 50 kW, será sem
ônus de qualquer espécie para o solicitante que possuir característica de enqua‑
dramento no Grupo B, excetuado o subgrupo iluminação pública, e que ainda
não for atendido com energia elétrica pela distribuidora local.
Por sua vez, no inciso II do mesmo artigo, há a previsão de que as áreas, progres‑
sivamente decrescentes, no interior das quais o atendimento em tensão inferior a
2,3 kV, ainda que necessária a extensão de rede primária de tensão inferior ou
igual a 138 kV, e carga instalada na unidade consumidora de até 50 kW, poderá
ser diferido pela concessionária ou permissionária para horizontes temporais

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Curso de Direito da Energia

redação dada pela Lei n. 10.848, de 2004, que dispõe no art. 13 a cria‑
ção da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE, visando à pro‑
moção da universalização no sistema interligado em todo o território
nacional, bem como ao desenvolvimento energético dos Estados e a
competitividade da energia produzida a partir de fontes eólica, peque‑
nas centrais hidrelétricas, biomassa, gás natural e carvão mineral na‑
cional. De acordo com o § 1o do mesmo artigo, os recursos da CDE
serão provenientes dos pagamentos anuais realizados a título de uso
de bem público, das multas aplicadas pela Aneel a concessionários,
permissionários e autorizados e, a partir do ano de 2003, das quotas
anuais pagas por todos os agentes que comercializem energia com o
consumidor final.96
No governo Lula, houve a criação do Programa Nacional de Uni‑
versalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica – Luz Para Todos,
por força do Decreto n. 4.873, de 11 de novembro de 2003. O principal
objetivo do programa era o de universalizar a energia elétrica no meio
rural até 2010.97 O custeio98 advém de subvenção econômica pela CDE,
da RGR, de agentes do setor elétrico, da participação dos Estados, Mu‑
nicípios e outros destinados ao Programa.
A Lei n. 10.933, de 11 de agosto de 2004, que dispôs sobre o Plano
Plurianual para o período 2004/2007 e cria o Programa Energia

preestabelecidos pela Aneel, quando o solicitante do serviço, que possuir carac‑


terística de enquadramento no Grupo B, excetuado o subgrupo iluminação pú‑
blica, e que ainda não for atendido com energia elétrica pela distribuidora local,
será atendido sem ônus de qualquer espécie.
96
Para aprofundamento das peculiaridades regulatórias, ver BEGO, Daniel José
Justi. Universalização dos serviços de energia elétrica: evolução histórica e ne‑
cessidades de regulação. In: CASTRO, Marcus Faro de; LOUREIRO, Luiz
Gustavo Kaercher (Orgs.). Direito da energia elétrica no Brasil: aspectos institu‑
cionais, regulatórios e socioambientais. Brasília: Aneel, 2010. p. 235.
97
A redação original dizia que a universalização deveria ocorrer até 2008. A reda‑
ção atual foi dada pelo Decreto n. 6.442, de 2008.
98
Por força do art. 2o do Decreto n. 4.873, de 2003.

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Cidadã,99 descreve explicitamente sobre a necessidade de se universali‑


zar a energia elétrica no Brasil, bem como a visão do governo Lula sobre
o assunto.

A implantação de um modelo de mercado para o setor energéti‑


co nos anos 90 desestruturou o planejamento setorial e culminou na
crise de abastecimento e racionamento de 2001. Ainda recai sobre o
setor uma grande dívida social a ser equacionada: a universalização
do acesso à energia elétrica. Esta é uma das fontes primordiais para o
desenvolvimento econômico e para a melhoria da qualidade de vida
da população, podendo se transformar num poderoso instrumento
de inclusão social para cerca de 20 milhões de pessoas. O objetivo é
ampliar as linhas de transmissão, efetivando a conexão dos principais
sistemas isolados no sistema integrado, e expandir a geração de ener‑
gia elétrica.

A metodologia de aferição do Luz para Todos tem cunho estatísti‑


co e geográfico. Como prioridade, devem ser atendidos os Municípios
com atendimento inferior a 85%, com base no Censo de 2000 do
IBGE, com enfoque nas populações atingidas por barragens, escolas
públicas, postos de saúde, poços de abastecimento d’água, assentamen‑
tos rurais, agricultura familiar, entre outros.
O Decreto n. 4.873, de 2003, ainda institui uma Comissão Na‑
cional de Universalização com representantes de diversos ministé‑
rios. A metodologia para aplicação do Luz para Todos parte do
usuário sem acesso à rede, que se dirige à distribuidora local para
fazer seu pedido de instalação. Essa solicitação passa a ser incluída
no programa de obras das distribuidoras e atendida de acordo com
as prioridades estabelecidas no manual de operacionalização do
Programa.

99
O Programa Energia Cidadã, proposto no bojo do “Megaobjetivo I – Inclusão
Social e Redução das Desigualdades Sociais” do Anexo I da Lei n. 10.933, de 11
de agosto de 2004, não encontrou eficácia frente ao Programa Luz para Todos.

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Curso de Direito da Energia

Logo, a universalização dos serviços públicos, que não é um privi‑


légio exclusivo do setor elétrico,100 se comunica diretamente com o que
GARCIA chama de “direitos fundamentais básicos” – vida, liberdade,
segurança e propriedade –, uma vez que se rege por uma necessidade
ativa, ou seja, “uma força eficaz e determinante que atua sobre tudo o
que nela se baseia”.101
5.2.2.4 Reestruturação e internacionalização da Eletrobras102
A transformação da Eletrobras na “Petrobras do setor elétrico”,
mais do que uma reestruturação societária, é uma significativa mudan‑
ça política entre o primeiro e o segundo modelo energético regulatório
e competitivo. No primeiro modelo, havia o consenso de encerrar as
atividades da Eletrobras, assim como ocorrido com a Telebrás no setor
de telecomunicações, privatizando e concedendo seus ativos, com foco

100
No tocante à telefonia fixa, o Fundo de Universalização dos Serviços de Teleco‑
municações – Fust, criado pela Lei n. 9.998, de 2000, possibilita diminuir as de‑
sigualdades sociais por meio da criação de facilidades de comunicação via
Internet para escolas e bibliotecas, sendo empregado pela Agência Nacional de
Telecomunicações – Anatel.
A Lei n. 11.445, de 2007, por sua vez, estabelece diretrizes nacionais para o sanea­
mento básico, de forma a prever, no art. 2o, inciso I, a universalização do acesso
como um princípio fundamental. O art. 49 desta lei ainda reforça o caráter social
do saneamento básico ao fixar como objetivo da Política Federal de Saneamento
Básico contribuir para o desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades
regionais, a geração de emprego e de renda e a inclusão social.
101
GARCIA, Maria. Mas, quais são os direitos fundamentais? Revista de Direito
Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 39, p. 122, 2002.
102
Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras, sociedade anônima de economia
mista federal e de capital aberto, constituída em 11 de junho de 1962, em confor‑
midade com a autorização contida na Lei n. 3.890-A, de 25 de abril de 1961,
inscrita no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica do Ministério da Fazenda
(CNPJ/MF) sob o n. 00.001.180/0001-26, com seus atos constitutivos devida‑
mente arquivados na Junta Comercial do Distrito Federal sob o NIRE n.
53300000859, e registrada como companhia aberta perante a Comissão de Valo‑
res Mobiliários (“CVM”) em 28 de janeiro de 1971, sob o n. 2.437.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

na delegação à iniciativa privada da atividade de energia elétrica. Com


o segundo modelo, houve a consolidação de uma atividade híbrida,
com empresas públicas e privadas disputando mercado, e o fortaleci‑
mento da Eletrobras como uma importante empresa setorial.
Mais do que consolidar sua atuação no mercado interno, o Gover‑
no Federal decidiu expandir suas atividades. A internacionalização da
estatal foi juridicamente possibilitada pela Lei n. 11.651, de 7 de abril de
2008,103 que permitiu a atuação da Eletrobras no Brasil ou no exterior,104
em atividades que se destinem direta ou indiretamente à exploração da
produção ou transmissão de energia elétrica sob regime de concessão
ou autorização. Aqui resta, de forma reversa, a impossibilidade de a
Eletrobras investir em distribuição de energia elétrica no exterior, pela
ausência de previsão legal. A missão dessa empresa, com plano de negó‑
cios definido e agora global, tem a objetividade da linguagem empresa‑
rial: ser o maior sistema empresarial de energia limpa do planeta, com
rentabilidade comparável à das melhores empresas do setor elétrico. So‑
mente para o período 2009­‑2012, a Eletrobras tem investimentos pre‑
vistos de R$ 30 bilhões. Para tanto, houve a identificação de quatro
macroetapas no projeto de internacionalização da Eletrobras:
(i) Benchmarking de internacionalização: necessidade de foco no
negócio onde possui maior conhecimento de forma a garantir
sucesso no processo, obtendo equilíbrio na cadeia de valor
como meio de balancear naturalmente os riscos de compra e
venda de energia;
(ii) Estratégia e Modelo de Negócio: explorar a proximidade cul‑
tural como forma de reduzir complexidade de gestão; entender

103
Importante destacar que a reestruturação societária da Eletrobras já contava com
aporte financeiro internacional. Desde 1995, a Eletrobras possui dois Programas
de American Depositary Receipts – ADR, nível 1, de ações ordinárias e prefe‑
renciais.
104
Era a conversão da Medida Provisória n. 396, de 2007, que não versava sobre dita
internacionalização.

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a dinâmica do mercado e do país como forma de reduzir riscos;


e mapear tendências de liberalização e políticas de incentivos
para orientar a estratégia;
(iii) Modelo Organizacional: flexibilizar a forma de entrada para
permitir abandonar ou aprofundar posições no futuro; e iden‑
tificar o tamanho mínimo de investimento de entrada para jus‑
tificar os custos de entrada em novo mercado;
(iv) Macroplano de implementação: obter posição relevante em
todos os mercados onde atuar para ter escala competitiva;
balancear a ambição e os recursos disponíveis para acelerar o
crescimento sem risco financeiro; e adequar a estratégia para
se adaptar rapidamente a eventuais mudanças de cenário (risco
político).
A Eletrobras, que na estratégia de internacionalização abdicou da
acentuação no nome e modificou a logomarca, encontra como desafios
centrais no processo de internacionalização a redução do volume de
recursos disponíveis para financiar investimentos em países de alto ris‑
co político, forçando a empresa a identificar alternativas de financia‑
mento que sejam similares àquelas que empresas de mesma finalidade
obtiveram em países desenvolvidos, bem como a indefinição de regras
e tratados relativos à integração regional da América Latina.
Por seu turno, a internacionalização da Eletrobras encontra como
virtudes os seguintes pontos: (i) fortalecimento da posição estratégica,
de forma a buscar novos mercados e integrar mercados regionais;
(ii) foco na América Latina e lusofonia, com prioridade ao atendimen‑
to ao mercado brasileiro; e (iii) prioridade para Venezuela, Colômbia,
Peru e Argentina, países nos quais a interconexão pode trazer mais
benefícios, proporcionais às peculiaridades de cada país e as caracterís‑
ticas fronteiriças perante o Brasil.
A estratégia inicial da Eletrobras é a de interligar novas fontes de
energia da América Latina com o sistema elétrico brasileiro, promoven‑
do a integração energética do Brasil no continente, de forma a gerar no‑

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vos mercados para o segmento de fornecedores de bens e serviços e


atuar em outros países em projetos específicos de interesse dos acionistas
da Eletrobras. Nesse sentido, a Companhia Hidro­‑Elétrica do São Fran‑
cisco – Chesf se comprometeu em março de 2010 a fiscalizar as obras, a
operação e a manutenção da hidrelétrica de Tumarín, na Nicarágua.
No tocante à Governança Corporativa, há o intuito de melhorar o
atendimento a requisitos de sustentabilidade do Sistema Eletrobras, de
forma a elevar o grau de pontuação no ISE Bovespa; ser listado no
Dow Jones Sustainability Index até 2012; e ascender ao Nível 2 de Go‑
vernança Corporativa da Bovespa até 2012, tudo com foco na geração
e transmissão de energia elétrica e na obtenção do equilíbrio econômico­
‑financeiro das distribuidoras atualmente sob gestão da Eletrobras.
5.2.2.5 Comitê Interministerial de Cadastramento
Socioeconômico: a questão dos atingidos pelas barragens
O governo Lula, por meio do Decreto n. 7.342, de 26 de outubro
de 2010, criou o Comitê Interministerial de Cadastramento Socioeco‑
nômico, no âmbito do Ministério de Minas e Energia, de forma a rea‑
lizar cadastro socioeconômico para identificação, qualificação e
registro público da população atingida por empreendimentos de gera‑
ção de energia hidrelétrica.
Pleito antigo de movimentos sociais, o cadastro deverá contemplar
os integrantes de populações sujeitos, dentre outros, aos seguintes im‑
pactos: (i) perda de propriedade ou da posse de imóvel localizado no
polígono do empreendimento; (ii) perda da capacidade produtiva das
terras de parcela remanescente de imóvel que faça limite com o po‑
lígono do empreendimento e por ele tenha sido parcialmente atingido;
(iii) perda de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos
pesqueiros, inviabilizando a atividade extrativa ou produtiva; (iv) per‑
da de fontes de renda e trabalho das quais os atingidos dependam eco‑
nomicamente, em virtude da ruptura de vínculo com áreas do polígono
do empreendimento; e (v) prejuízos comprovados às atividades produ‑
tivas locais, com inviabilização de estabelecimento.

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Curso de Direito da Energia

O Comitê Interministerial do Cadastro Socioeconômico, com‑


posto pelos ministérios do Meio Ambiente, da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, do Desenvolvimento Agrário, da Pesca e Aquicultura
e da Secretaria­‑Geral da Presidência da República, por sua vez, tem
como competências: (i) apresentar, no âmbito do processo de licencia‑
mento ambiental, os requisitos para que o responsável pelo empreen‑
dimento elabore o cadastro socioeconômico da população atingida por
empreendimentos de geração de energia hidrelétrica; e (ii) acompanhar
a elaboração do cadastro socioeconômico, a ser realizada pelo respon‑
sável pelo empreendimento, e manifestar­‑se sobre sua adequação.
O cadastro socioeconômico e o funcionamento do Comitê serão
disciplinados em ato conjunto pelos ministérios envolvidos, de forma
que a Aneel deverá incluir, nos contratos de concessão de uso do bem
público e nos editais de leilão, cláusula específica sobre responsabilida‑
des do concessionário, frente ao cadastro socioeconômico da popula‑
ção atingida por empreendimentos de geração de energia hidrelétrica.

5.2.3 Legislação do petróleo, gás e biocombustíveis


O Segundo Modelo Energético, no que tange ao petróleo, iniciou
com uma grande crise internacional. Em 20 de março de 2003, os Esta‑
dos Unidos invadiram o Iraque, naquilo que pode ser chamado de “Se‑
gunda Guerra do Golfo”. O argumento central seria uma eventual
produção iraquiana de armas de destruição em massa. A expectativa
americana, bem como as consequências dos atos, são pormenorizadas
por Yergin:105

A suposição evidente entre os que eram a favor da guerra era de


que ela seria rápida – uma “vitória relâmpago”. A guerra propriamente
dita, de fato, ocorreu bem de acordo com o planejado e foi bem rápida.
Já em 9 de abril de 2003, os civis iraquianos e os fuzileiros navais ame‑

105
YERGIN, Daniel. O petróleo: uma história mundial de conquistas, poder e di‑
nheiro. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 891.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

ricanos estavam reunidos para juntos derrubarem a gigantesca estátua


de Saddam Hussein no centro de Bagdá. Mas virtualmente nada do que
se seguiu foi conforme o planejado. Saddam desapareceu, em um es‑
conderijo. Nenhuma arma de destruição em massa jamais foi encontra‑
da. Múltiplas rebeliões ocorreram por todo o país, à medida que uma
guerra civil extensa instaurava­‑se entre os Sunnis e os Shias. Mais de
meia década depois do início da guerra, as tropas americanas ainda es‑
tavam no Iraque, políticos iraquianos ainda discutiam a respeito da
responsabilidade sobre os recursos do petróleo entre o governo central
e cada região, e a indústria petrolífera iraquiana, com escassez de tec‑
nologia, qualificação e segurança, ainda lutava para recuperar os níveis
de produção que precederam a guerra.

Mudanças estruturais ocorriam no mundo globalizado por força


do comércio internacional do petróleo. A Líbia renunciava, em 2003, à
produção de armas nucleares, retornando assim à comunidade interna‑
cional. Os emirados de Abu Dhabi, Catar e Dubai emergiram como
importantes centros mundiais, inclusive financiando instituições oci‑
dentais, nas crises de 2007 e 2008, da Europa e dos Estados Unidos. Na
América Latina, os grandes centros petrolíferos apresentavam dificul‑
dades de expansão da oferta. Conforme exposto por Yergin, o contro‑
le político na Venezuela sobre a indústria nacional, bem como as
limitações mexicanas para o investimento, encabeçaram as razões de
desaquecimento setorial.
O Brasil, nesse cenário, enfrentava alguns desafios estruturais.
Com o início do governo Lula, encerrava­‑se um ciclo de grandes mu‑
danças estruturais no setor de petróleo. Leite pormenoriza essa fase,
em que aponta uma “crise de identidade” da Petrobras com a quebra
do monopólio, e contrapõe as diferenças no setor hidrocarbonífero aos
acontecimentos com o setor elétrico.

Ao contrário do que aconteceu com o setor de energia elétrica, no


qual a Eletrobrás foi desmontada na reforma e o sistema elétrico desar‑
ticulado com a crise de desabastecimento de 2001, no domínio do Pe‑
tróleo as mudanças institucionais promovidas pelo governo FHC não

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afetaram a essência do monopólio exercido, de fato, pela Petrobras,


mas criou, para ela, uma crise de identidade.
A Petrobras sempre se identificou com o monopólio do petró‑
leo e a missão de tornar o país autossuficiente. Com o advento da
política de abertura econômica e das reformas institucionais direcio‑
nadas para o fortalecimento de mercados competitivos, procurou o
governo FHC, na medida do possível, adaptar a empresa ao novo
ambiente.106

A Petrobras não buscava mais a autossuficiência do petróleo no


Brasil, mas uma forte presença global, bem como a liderança setorial na
América Latina. Assim, houve uma significativa transformação em
suas atividades: o exercício de função pública de interesse nacional
para grande competidor no mercado de petróleo, desde a produção até
a distribuição, no Brasil e no exterior.
Os reflexos no Brasil foram imediatos. Nas licitações de exploração
de blocos ocorridas desde 1995, a presença estrangeira de empresas na
plataforma continental foi significativa, com importante dispersão geo‑
gráfica, ocorrendo desde as Alagoas até Santa Catarina, fato que culmi‑
nou com a descoberta de petróleo no pré­‑sal. No exterior, a Petrobras
intensificava sua atuação, que, nas palavras de Leite, caminha na linha
tênue entre “braço de governo” e “concorrente de multinacionais”.

Segundo diretrizes políticas de integração sul­‑americana, as ope‑


rações na América envolvem, além da exploração, a produção, refino,
distribuição e até petroquímica. Realizam­‑se grandes operações nos
Estados Unidos, inclusive a participação em uma refinaria destinada à
colocação mais favorável, naquele mercado, do nosso óleo pesado, sob
a forma de derivados.
No contexto das relações delicadas com alguns países sul­
‑americanos, em função do receio, neles existente, de um presumido
objetivo de hegemonia da parte do Brasil, não pareceu prudente, para

106
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 396.

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muitos observadores, que a Petrobras, por iniciativa própria ou por


instrução do governo, se expusesse, com tanta desenvoltura, a reações
locais negativas, da forma que fez, especialmente ao entrar na distri‑
buição de seis países do nosso continente.
Comprou grande empresa privada na Argentina, a Perez­
‑Companc, sob a justificativa de adquirir reservas de óleo leve que
contrabalançassem o óleo pesado de nossa própria produção. Mas
comprou também a rede de distribuição dessa empresa e de outra me‑
nor, colocando a sua bandeira em exposição pública.107

No tocante ao regime jurídico de petróleo no Brasil, foi criado,


por força do Decreto n. 4.925, de 19 de dezembro de 2003, o Programa
de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural –
Prominp, com o objetivo de fomentar a participação da indústria na‑
cional de bens e serviços, de forma competitiva e sustentável, na
implantação de projetos de petróleo e gás no Brasil e no exterior. O
Prominp adquiriu relevante importância na formação de mão de obra
setorial desde o nível básico até o superior. A então ministra de Minas
e Energia, Dilma Rousseff, expôs à época de forma sintética a função
do programa.

O Prominp, concebido no âmbito do MME, tem por objetivo o


fortalecimento da indústria nacional de bens e serviços e está centrado
na área de petróleo e gás natural. As metas do Programa, elaboradas
em conjunto com as empresas do setor, levarão à maximização da par‑
ticipação da indústria nacional no fornecimento de bens e serviços, em
bases competitivas e sustentáveis, atendendo demandas nacionais e in‑
ternacionais. Trata­‑se de gerar emprego e renda no País, ao agregar
valor na cadeia produtiva local.
O Prominp inicia suas atividades já com uma significativa carteira
de 47 projetos, aprovada pelo Comitê Diretivo do Programa, no qual
estão representados o governo, as empresas e as entidades de classe que

107
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 407-408.

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atuam nestas atividades. O desafio consiste em desenvolver projetos de


aumento do conteúdo nacional nas áreas específicas de Exploração &
Produção, Transporte Marítimo, Abastecimento e Gás & Energia. As‑
sim, a indústria estará gradativamente e, de forma planejada,
aprimorando­‑se para atender as demandas, na ordem de U$ 41 bilhões,
oriundas dos investimentos que estarão sendo realizados nos setores
de petróleo e gás, no período de 2003­‑2007.
O dia a dia das atividades do Prominp dá­‑se sob a influência da
competência e dinamismo dos técnicos da Petrobras e do BNDES,
das empresas associadas ao IBP, ONIP e das Associações de classe
ABEMI, ABCE, ABDIB, ABIMAQ, ABINEE, ABRAPET, ABEAM,
ABITAM, SINAVAL, SEBRAE assim como da FINEP, CNI e Fede‑
rações das Indústrias. Essas entidades têm o desafio de transformar
obstáculos em oportunidades, quantificando demanda e oferta de
equipamentos, bens e serviços, propiciando, à indústria fornecedora
nacional, a conquista do reconhecimento internacional como indústria
líder, nas áreas de petróleo e gás natural.
Em outras palavras, o Prominp representa o compromisso do
Governo Federal e das empresas do setor em atuarem integrados, prio‑
rizando a participação da indústria nacional de bens e serviços nos ne‑
gócios de petróleo e gás natural, criando empregos e competências,
gerando oportunidades e riquezas para o Brasil.108

O governo Lula investiu importantes montantes no desenvolvi‑


mento de programas governamentais que pudessem produzir demanda
na área energética, notadamente em hidrocarbonetos. Como exemplo,
a Lei n. 11.015, de 21 de dezembro de 2004, alterava os Programas
Oferta de Petróleo e Gás Natural e o Brasil com Todo Gás. Houve,
ainda, a criação do Programa Indústria Petroquímica. Todos enquanto
instrumentos para expansão da atividade em petróleo e gás no Brasil,
neste caso específico associados ao Plano Plurianual do quadriênio
2004­‑2007. Em 2006, o Decreto n. 5.987, de 19 de dezembro de 2006,
dispôs sobre a compensação da Cide­‑Combustíveis por pessoas jurídi‑

108
Disponível em: <http://www.prominp.com.br>. Acesso em: 21 dez. 2010.

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cas importadoras ou adquirentes de hidrocarbonetos líquidos não des‑


tinados à formulação de gasolina ou diesel.
Todavia, em que pese a relevância dessas medidas, o governo Lula
certamente deve ser reconhecido por ter promovido e sistematizado
cinco linhas de ação em hidrocarbonetos, quais sejam: (i) inserção do
biodiesel na matriz energética brasileira; (ii) reestruturação da ANP
para atender os setores de gás e biocombustíveis; (iii) a Lei do Gás;
(iv) transformação do álcool em commodity global; e (v) pré­‑sal.
Analisaremos em apartado cada uma dessas iniciativas.
5.2.3.1 Lei do Biodiesel: o “combustível social”
O biodiesel, em que pese ser uma novidade enquanto política pú‑
blica, não o é quando se observa o desenvolvimento tecnológico. O
Instituto Nacional de Tecnologia – INT chegou a realizar experiências
análogas na década de 1920.109 O conde Francisco Matarazzo, em seu
processo industrial, obteve biodiesel a partir do café.110 O professor
Expedito Parente, da Universidade Federal do Ceará, registrou a pri‑
meira patente brasileira de biodiesel em 1980.
O governo Lula, historicamente de forte viés social, identificou no
setor de energia uma importante força de ascensão.111 Havia um con‑

109
SILVA, Daiane Tessaro da; TRENTINI, Flávia. Biodiesel x sustentabilidade: um
binômio possível? In: BENJAMIN, Antônio Herman; LECEY, Eládio;
CAPPELLI, Silvia (Org.). Direito ambiental, mudanças climáticas e desastres: impac‑
tos nas cidades e no patrimônio cultural. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. v. 2, p. 28.
110
LIMA, Haroldo. Petróleo no Brasil: a situação, o modelo e a política atual. Rio
de Janeiro: Synergia, 2008. p. 108.
111
Em 2 de julho de 2003, a Presidência da República instituiu por meio de Decreto
um Grupo de Trabalho Interministerial encarregado de apresentar estudos sobre
a viabilidade de utilização de biodiesel como fonte alternativa de energia. Cabe
registrar que, no governo Cardoso, o Ministério da Ciência e Tecnologia expe‑
diu a Portaria MCT n. 702, de 2002, que criou o Programa Brasileiro de Desen‑
volvimento Tecnológico de Biodiesel (Probiodiesel), com o objetivo de promover
o desenvolvimento científico e tecnológico de biodiesel. Todavia, essa iniciativa
era tímida e se situava em final de gestão.

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Curso de Direito da Energia

senso no governo de unir: (i) a experiência agrícola acumulada com o


emprego da cana­‑de­‑açúcar enquanto produto energético, seja na pro‑
dução de álcool, seja no aproveitamento dos resíduos para geração elé‑
trica; (ii) criar uma política pública para desenvolver o processo de
produção de combustível de oleaginosas; (iii) o envolvimento das po‑
pulações de menor poder aquisitivo no setor energético por meio da
atividade agrícola; (iv) o reforço internacional da liderança brasileira
em biocombustíveis; e (v) a diminuição da emissão de dióxido de car‑
bono na atmosfera, atendendo assim às demandas ambientais.
O biodiesel é um combustível originado em fontes renováveis a
partir de gorduras animais ou de óleos vegetais, que pode ser obtido
pelos processos de craqueamento, esterificação ou transesterificação
de produtos como a mamona, o dendê de palma, o girassol, o babaçu,
o amendoim, dentre outros. Sua aplicação é de amplo espectro, po‑
dendo ser um substituto total ou parcial do óleo diesel. O biodiesel,
enquanto instrumento de política pública brasileira, acentua signifi‑
cativamente a importância da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro‑
pecuária – Embrapa na matriz energética brasileira, enquanto
promotora da base tecnológica necessária para o aperfeiçoamento des­
se insumo.
Sob essa ótica, o governo Lula criou, de forma interministerial,112
o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel – PNPB, com o
objetivo de implementar, de forma técnica e economicamente sustentá‑
vel, a produção e uso do biodiesel, com enfoque na inclusão social e no
desenvolvimento regional, via geração de emprego e renda. Adotaram­‑se­

112
Sob essa iniciativa, ver Decreto de 2 de julho de 2003, que institui o Grupo de
Trabalho Interministerial encarregado de apresentar estudos sobre a viabilidade
de utilização de óleo vegetal – biodiesel – como fonte alternativa de energia,
propondo, caso necessário, as ações necessárias para o uso do biodiesel; bem
como o Decreto de 23 de dezembro de 2003, que institui a Comissão Executiva
Interministerial encarregada da implantação das ações direcionadas à produção e
ao uso de óleo vegetal – biodiesel – como fonte alternativa de energia.

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como princípios a inclusão social, a garantia de preços competitivos,


qualidade e suprimento, bem como a exploração descentralizada de
fontes oleaginosas.
No que se refere ao modelo institucional, a Medida Provisória
n. 214, de 13 de setembro de 2004, atribuiu competência à ANP para
regular cadeia de produção e uso do biodiesel, estabeleceu os percen‑
tuais de mistura de 2 a 5% ao diesel convencional e delegou ao CNPE
o monitoramento da inserção do biodiesel no mercado. O modelo ain‑
da previa a instituição de um modelo tributário, de certificação social e
de aproveitamento dos créditos de carbono.
Por seu turno, a ANP, por intermédio de resolução, deveria espe‑
cificar as regras de comercialização, sendo que o BNDES deveria criar
um Programa de Financiamento do Biodiesel.113 Havia a previsão de
destinar, nos anos de 2004 e 2005, R$ 100 milhões do Programa Nacional
da Agricultura Familiar – Pronaf114 para o biodiesel com taxa de juros
especiais, de forma a colocar a agricultura familiar em posição de com‑
petitividade energética.
Nessa concepção, foi editada a Lei n. 11.097, de 13 de janeiro de
2005, que converteu a Medida Provisória n. 214, de 2004, e dispôs so‑
bre a introdução do biodiesel na matriz energética brasileira. A lei tra‑
tou de emendar sistemas jurídicos postos, de forma a produzir
alterações nas Leis n. 9.478, de 6 de agosto de 1997, n. 9.847, de 26 de
outubro de 1999, e n. 10.636, de 30 de dezembro de 2002. Interessante
notar a definição legal de biocombustível e de biodiesel que o sistema
normativo passou a contemplar. Biocombustível passa a ser definido
como “combustível derivado de biomassa renovável para uso em mo‑
tores a combustão interna ou, conforme regulamento, para outro tipo

113
O BNDES lançou o Programa de Apoio Financeiro a Investimentos em Biodie‑
sel em 3 de dezembro de 2004, bem como fundo para aquisição de máquinas e
equipamentos (veículos de transporte de passageiros e carga, tratores, colheita‑
deiras e geradores) e redução de garantias reais para o valor a ser financiado.
114
Atrelado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA.

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de geração de energia, que possa substituir parcial ou totalmente com‑


bustíveis de origem fóssil”. Da mesma forma, Biodiesel passa a ser:

[...] biocombustível derivado de biomassa renovável para uso em


motores a combustão interna com ignição por compressão ou, confor‑
me regulamento, para geração de outro tipo de energia, que possa
substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil.

O sistema normativo, que introduz o biodiesel, é o seguinte:


(i) Lei n. 11.097, de 13 de janeiro de 2005, que dispôs sobre a in‑
trodução do biodiesel na matriz energética brasileira;
(ii) Lei n. 11.116, de 18 de maio de 2005, que dispôs sobre o Re‑
gistro Especial, na Secretaria da Receita Federal do Ministé‑
rio da Fazenda, de produtor ou importador de biodiesel e
sobre a incidência da Contribuição para o PIS/Pasep e da
Cofins sobre as receitas decorrentes da venda desse produto;
(iii) Decreto n. 5.297, de 6 de dezembro de 2004, que dispôs sobre
os coeficientes de redução das alíquotas de contribuição para o
PIS/Pasep e da Cofins, incidentes na produção e na comercia‑
lização de biodiesel e sobre os termos e as condições para a
utilização das alíquotas diferenciadas;
(iv) Decreto n. 5.298, de 6 de dezembro de 2004, que altera a alí‑
quota do Imposto sobre Produtos Industrializados;
(v) Decreto n. 5.448, de 20 de maio de 2005, que regulamenta a
introdução do biodiesel na matriz energética brasileira; e
(vi) Decreto n. 5.457, de 6 de junho de 2005, que reduz as alíquotas
da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins incidentes sobre
a importação e a comercialização de biodiesel.
Os efeitos práticos desse arcabouço jurídico podem ser mensura‑
dos pelas palavras de Leite:115

115
LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
p. 427.

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A fim de provocar o início de negociações de compra e venda de


biodiesel, foi lançado, em novembro de 2005, pela ANP, edital de leilão
para venda de 70 milhões de litros para entrega de janeiro a dezembro
de 2006, que foram totalmente adquiridos ao preço de R$1,91/litro
F.O.B., sem ICMS. Os contratos com o comprador, Petrobras e asso‑
ciada Refinaria Pasqualini, foram assinados em fevereiro com os qua‑
tro primeiros produtores. Seguiram­‑se outros leilões: o II para entrega
de julho a dezembro de 2006, e os III e IV para entrega em 2007.
No conjunto dos quatro leilões, a participação das regiões Nor‑
deste e Norte, baseada em mamona, pinhão manso, palma e algodão,
alcançaram 49% das vendas. [...]
Em 2006 a Petrobras entrou diretamente na parte industrial do pro‑
grama e se decidiu a construir várias usinas de preparação do biodiesel.

O programa, por sua vez, encontra ao menos três grandes obstácu‑


los para a consolidação de suas metas: (i) a expansão e a segurança de
fornecimento do biodiesel sem comprometer a segurança alimentar; (ii)
o desenvolvimento tecnológico que permita a otimização do biodiesel
na cadeia produtiva; e (iii) o foco brasileiro na exploração do pré­‑sal,
fato que retira recursos de energias alternativas para comprometê­‑los
com tecnologias já consolidadas e de retorno financeiro mais garantido.
Por outro lado, essa medida teve um efeito imediato, ainda pouco
estudado no meio acadêmico em geral e nos foros jurídicos em específico,
mas já iniciado enquanto política pública desde o álcool­‑motor de 1931:
reforçou a demanda energética do solo nas empresas acostumadas em
subsolo, que por sua vez têm regimes jurídicos completamente distintos.
Em outras palavras, fez com que a indústria petrolífera, que passou déca‑
das buscando valor na Geologia, agregasse valor à sua atividade­‑fim na
Agricultura. Criou mecanismos para que empresas de energia, como a
Petrobras, passem a estudar e se aprofundar, por exemplo, sobre questões
afeitas a agricultura familiar e movimentos campesinos. Esse efeito, que já
é uma realidade no setor elétrico, acostumado com frequentes remoções
de populações decorrentes da construção de barragens, deverá promover
ricas interlocuções entre essas realidades nas próximas décadas.

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Curso de Direito da Energia

5.2.3.2 A reestruturação da ANP: a regulação do gás


e dos biocombustíveis
Uma vez criadas as condições para o desenvolvimento dos bio‑
combustíveis em geral, e do biodiesel em específico, era preciso dotar
o Estado de condições materiais para regular e fiscalizar essa atividade.
Considerando que a Lei n. 11.097, de 13 de janeiro de 2005, fez com
que o CNPE passasse a ter competência para incrementar, em bases
econômicas, sociais e ambientais, a participação dos biocombustíveis
na matriz energética nacional, o meio regulatório escolhido para a ma‑
téria pela lei foi expandir as atribuições da ANP.
Originariamente criada para as atividades de petróleo, a agência
reguladora passou a ter como seu escopo o gás natural, seus derivados
e os biocombustíveis. Assim o governo Lula atendia, de imediato, às
condições regulatórias para desenvolver o biodiesel, e aproveitava a
oportunidade legislativa para preparar a ANP para a subsequente Lei
do Gás.
As consequências dessa transformação foram imediatas. O Estado
brasileiro passava a ter mecanismos de intervenção regulatória nos bio‑
combustíveis, a ANP se fortalecia no tocante às suas competências e
pressões econômicas passavam a fortalecer o setor de biocombustíveis,
quais sejam: (i) a adoção da política dos motores bicombustíveis no
Brasil, intensificada após a criação do primeiro veículo em março de
2003,116 que passava ao consumidor o direito de escolher qual matriz
energética abasteceria seus veículos;117 e (ii) a política do biodiesel, que

116
Primeiro automóvel flex fuel foi lançado pela Volkswagen, com um sistema de‑
senvolvido pela Bosch.
117
Importante registrar que o Decreto n. 3.546, de 2000, criou o Conselho Intermi‑
nisterial do Açúcar e do Álcool com o objetivo de deliberar sobre as políticas
relacionadas com as atividades do setor sucroalcooleiro, considerando a adequa‑
da participação dos produtos da cana-de-açúcar na Matriz Energética Nacional,
os mecanismos econômicos necessários à autossustentação setorial e o desenvol‑
vimento científico e tecnológico.

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passava ao agricultor familiar poder de barganha para participar do


mercado energético.
Algumas situações de intervenção começaram a se tornar comuns no
setor. A ANP começou a ser um importante instrumento governamental,
tanto para garantir os estoques de biodiesel quanto para fiscalizar se os
produtores de biodiesel possuem o selo “Combustível Social”, estão cadas‑
trados na ANP e têm o Registro Especial da Secretaria da Receita Federal
para transacionarem o insumo. Por outro lado, a regulação dos biocom‑
bustíveis resgatou, mesmo que de modo parcial, atribuições que anterior‑
mente eram realizadas pelo Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA, quais
sejam: regular a produção, os estoques, o fornecimento de álcool no mer‑
cado e suas especificações. Um exemplo dessa nova competência é a Re‑
solução ANP n. 23, de 6 de julho de 2010, que estipula as condições
técnicas do etanol combustível consoante a política ambiental brasileira.
No tocante ao gás, a ANP, por força da emenda de 2005 à Lei do
Petróleo, aparece como sucessora regulatória do antigo Departamento
Nacional de Iluminação e Gás – DNIG no que tange a produção e
transporte do gás combustível nos termos a seguir mencionados.
5.2.3.3 Lei do Gás: o modelo elétrico como referência
O emprego do gás no Brasil é centenário118 e passou por cruciais
mudanças em um curto espaço de tempo, forçada em geral por tecno‑
logias que se demonstraram mais eficazes para específicas atividades­
‑fim. Inicialmente empregado no século XIX para iluminação pública,
inclusive pelo Barão de Mauá, foi substituído pelo advento da eletrici‑
dade. Posteriormente, foi empregado como combustível aeronáutico
para os dirigíveis, substituído por outros componentes hidrocarburan‑
tes após a tragédia com o Zeppelin Hindenburg.
Desde a edição do Decreto­‑lei n. 366, de 11 de abril de 1938, que
incorporava ao Código de Minas o título “Das jazidas de petróleo e

118
Para mais informações, ver item 3.4, “A regulação do gás: os dirigíveis, o carvão
e o DNIG”.

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Curso de Direito da Energia

gases naturais”, fato que introduziu em norma um tratamento abstrato


e genérico ao gás, bem como pela incipiente criação do Departamento
Nacional de Iluminação e Gás – DNIG em 1945, esse insumo passou
várias décadas com um papel importante, mas reduzido ante suas po‑
tencialidades, de aplicação na indústria petroquímica, hospitalar e de
atendimento domiciliar, seja de forma canalizada por meio de mono‑
pólios naturais de distribuição nas grandes cidades, seja pelo forneci‑
mento em botijões, geralmente com legislações estaduais regulando
suas atividades.
Esse cenário se alterou com a Constituição Federal de 1988,
que fez referência expressa ao gás natural como monopólio da
União sobre a pesquisa e a lavra no art. 177. Importante mencionar
a Emenda Constitucional n. 9, que retirou o monopólio da Petro‑
bras também nas atividades de gás. A intensificação do uso do gás
no Brasil na década de 1990 se deve a uma estratégia internacional
de se desenvolver uma relação monopsônica com a Bolívia.119 Pires
e Schechtman sumarizam a transição daquele momento para o
século XXI.120

O gás natural foi a fonte primária de energia cuja participação mais


cresceu na matriz energética brasileira durante esta década, de 3,7% em
2000 passou para 10% em 2008. O início deste crescimento ocorreu gra‑
ças principalmente à inauguração, no governo FHC, do gasoduto Brasil­
‑Bolívia (Gasbol), com uma capacidade diária de transporte de 30
milhões de metros cúbicos, e à privatização das distribuidoras estaduais
também naquele governo. Para criar uma âncora para o gás boliviano
importado, o governo FHC criou o Programa Prioritário de Termelétri‑
cas (PPT) que também possibilitaria diversificar a matriz elétrica brasi‑
leira. Porém, com a maxidesvalorização, em 1999, e a queda de consumo

119
Tema pormenorizado no item 5.1.2, “Legislação do setor de petróleo: o CNPE
e a ANP”.
120
PIRES, Adriano; SCHECHTMAN, Rafael. Uma breve história sobre o gás na‑
tural. Valor Econômico, São Paulo, 9 jul. 2009.

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de eletricidade derivada do racionamento, em 2001, o programa não


prosperou como se imaginava e o Gasbol tornou­‑se ocioso.
Em 2003, já no governo Lula, a Petrobras criou o Programa de
Massificação do Gás Natural para incentivar o consumo do energético.
O principal elemento do programa foi o congelamento dos preços do gás
nacional e do boliviano, que a essa altura já representava 50% do total
de gás ofertado no país. Diante deste sinal de preço, as distribuidoras
estaduais, em particular a Comgás e a CEG, investiram maciçamente
na expansão de suas redes para atender novos clientes. A demanda de
gás na indústria cresceu a altas taxas e difundiu­‑se o uso veicular do gás
natural.

Assim, o governo Lula criou em 2003, por intermédio da Petro‑


bras, o Programa de Massificação do Gás Natural, que consistia em: (i)
acelerar a autossuficiência energética nacional e diversificar o supri‑
mento de energia; (ii) gerar divisas pela redução das importações de
GLP e óleo diesel e pela exportação dos derivados substituídos; (iii)
melhorar a qualidade dos processos nas indústrias, conferindo maior
competitividade da indústria nacional; (iv) fomentar novos segmentos
industriais ligados à indústria do gás natural; (v) permitir o acesso da
população de baixa renda ao gás natural residencial; (vi) gerar emprego
e renda; (vii) reduzir os índices de poluição nos grandes centros urba‑
nos; (viii) desenvolver novas tecnologias; (ix) capacitar pessoal; e (x)
monetizar as reservas de gás do país.
O programa foi um ato que criou uma oferta de gás sem preceden‑
tes na história do Brasil. Diversos veículos foram convertidos a gás na
década de 2000, atraídos pelas vantagens proporcionadas pela relação
custo­‑benefício do insumo. Redes de distribuição de gás veicular ga‑
nharam volume e adeptos. Todavia, não tardou para aparecerem as li‑
mitações de fornecimento, referentes à estrutura logística do país, que
não contava com número suficiente de gasodutos.
O problema central que culminou com o desestímulo ao consumo
de gás natural no Brasil foi o ato soberano e unilateral do governo da

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Bolívia, que nacionalizou o setor de gás e petróleo, pela terceira vez,121


no dia 1o de maio de 2006.122 O ato, que se utilizou de ocupação militar
em todas as refinarias do país, inclusive da Petrobras, decorreu do De‑
creto boliviano n. 28.701, de 2006, que dentre outras medidas123 au‑
mentou o imposto de exportação do gás, que passou de 50% para 82%.
Alinhado aos relevantes impactos produzidos nas relações interna‑
cionais pela decisão boliviana, o preço do insumo no Brasil sofreu um
imediato reajuste. Como exemplo, cerca da metade do gás contratado
pela distribuidora de gás da cidade de São Paulo – a Comgás, e por con‑
seguinte de grande parte da indústria paulista, estava atrelado naquele
momento ao suprimento da Bolívia. Com a decisão posta, restava ao
Brasil definir sua estratégia futura, visando a quatro premissas: (i) con‑
tornar, da melhor forma possível, a relação monopsônica perante a Bo‑
lívia; (ii) identificar novos fornecedores no mundo; (iii) buscar novas
jazidas em território nacional; e (iv) criar um marco regulatório para
destinar o gás na matriz energética. Com o Itamaraty a cargo da primei‑
ra função, o mercado da segunda e o MME e a ANP da terceira, cabia a
discussão no Congresso Nacional para regulamentar o gás no Brasil.
Sob esse cenário, incluindo a descoberta de hidrocarbonetos no
campo de Tupi em 2007, fato que desencadeou a intensificação das

121
A primeira ocorreu em 1937 com os ativos da Standard Oil, por meio do coronel
David Toro – um ano antes de o presidente Vargas fazer o mesmo no Brasil –, e
em 1969, sobre os ativos da Gulf, pelo general Alfredo Ovando.
122
Nessa data o presidente era Evo Morales.
123
O decreto mencionava expressamente que: (i) a Bolívia recupera a propriedade,
posse e o controle total e absoluto dos recursos hidrocarboníferos; (ii) as empre‑
sas operadoras ficam obrigadas a entregar toda a sua produção à YPFB (estatal
petrolífera boliviana); (iii) a YPFB assumia a comercialização dos combustí‑
veis, definindo condições, volumes e preços para o mercado interno e externo;
(iv) somente empresas que acatassem de imediato estes dispositivos poderiam
continuar a operar na Bolívia; (v) imposição unilateral de novos contratos entre
as partes em 180 dias; e (vi) transferência compulsória de 51% de todas as refina‑
rias, incluindo aquelas sob controle da Petrobras.

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prospecções na camada pré­‑sal, foi promulgada a Lei n. 11.909, de 4 de


março de 2009, que dispôs sobre as atividades relativas ao transporte
de gás natural, de que trata o art. 177 da Constituição Federal, bem
como sobre as ações de tratamento, processamento, estocagem, lique‑
fação, regaseificação e comercialização de gás natural. Pode­‑se afirmar
que ela obedeceu à estrutura principiológica enunciada por Loss,124
qual seja:

I – a promoção da conservação energética e do uso eficiente do gás


natural – o que tem relação com a promoção do meio ambiente e da
conservação da energia e com a valorização dos recursos energéticos;
II – a obtenção e a aplicação eficiente dos benefícios provenientes
da exploração desse recurso à coletividade – o que está ligado à preser‑
vação do interesse nacional, ao desenvolvimento nacional e à redução
das desigualdades sociais e regionais;
III – a atração de investimentos e, consequentemente, a introdu-
ção de maior concorrência na indústria do gás – o que está relacionado
à ampliação do mercado de trabalho, à promoção de um mercado com‑
petitivo, à competitividade do país e à expansão da produção e da in‑
fraestrutura nesse setor; e
IV – a eficiência na prestação dos serviços aos usuários – o que é
conexo à promoção do bem de todos e à proteção do consumidor.

No rol de seus 60 artigos, estão elencadas 33 definições (art. 2o), o


uso dos institutos jurídicos da Parceria Público­‑Privada – PPP e da
concessão para a expansão dos gasodutos, podendo ser empregados
recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico –
Cide e da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE,125 bem como
os instrumentos para licitação dos projetos e dos ativos. A lei cria ainda
regras para importação, exportação, estocagem, contingências no su‑

124
LOSS, Giovani Ribeiro. A regulação setorial do gás natural. Belo Horizonte:
Fórum, 2007. p. 87.
125
Ver art. 13 da Lei n. 10.438, de 26 de abril de 2002.

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Curso de Direito da Energia

primento, dentre outros. A formulação de políticas públicas para o se‑


tor de gás será determinada a partir do Plano Decenal de Expansão da
Malha de Gasodutos – Pemat, a ser publicado pelo Ministério de Mi‑
nas e Energia. O regulamento foi publicado por força do Decreto
n. 7.382, de 2 de dezembro de 2010.
Em que pese o regime jurídico do gás ser ainda recente, é possível
notar que houve avanços no tocante à estrutura de dutos, possibilitan‑
do maiores garantias para a construção. Há uma clara aproximação
com a legislação do setor elétrico, ao fixar o sistema de concessões para
o transporte de longa distância, que sob regime de monopólio natural
passa a ter suas tarifas fixadas pela ANP. Foi também consagrado o
princípio do livre acesso, adjacente à estrutura monopolista, na qual
um detentor de outorga de dutos não poderá negar acesso à sua rede a
um interessado que esteja adimplente com suas obrigações e cumpra as
especificações técnicas para se conectar ao sistema. Há a expectativa de
ganho de escala para a geração térmica de energia elétrica, haja vista o
aumento de competitividade no setor frente à clareza de regras e à re‑
dução de custos no transporte de gás.
5.2.3.4 O álcool se chama etanol: a busca da commodity global
Consoante à bem­‑sucedida experiência brasileira com biocombustí‑
veis, outras partes do mundo começam a despertar e/ou intensificar os
esforços para obter os benefícios desse insumo. Os Estados Unidos têm
uma cultura de cana em biocombustíveis, detêm uma tecnologia específi‑
ca relevante, mas não alcançam os mesmos índices brasileiros de produti‑
vidade, mesmo custeando o setor com altos níveis de subsídios. A China,
no auge de seu desenvolvimento na década de 2000, já alcançou o posto
de terceira maior produtora de etanol do mundo e tem progressivamente
intensificado políticas públicas para adicionar o etanol à gasolina.
Ante a eficiência brasileira, algumas conclusões, muitas vezes dia‑
metralmente opostas, começaram a surgir pulverizadas mundo afora
sobre o “sol líquido”, movendo opiniões com diferentes estágios de
informação, pontos de vista e interesses:

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(i) o etanol brasileiro representa uma vitória ambiental, pois cor‑


responde a uma alternativa real e eficaz para substituir o petró‑
leo na matriz energética sem emitir, dentre outros elementos,
dióxido de carbono na atmosfera, melhorando substancial‑
mente a qualidade do ar nas regiões que o adotaram;
(ii) o etanol brasileiro representa uma derrota ambiental, pois ele
contribui indiretamente para a devastação da Amazônia, uma
vez que ocupa o lugar da pecuária, que por sua vez tem ocupa‑
do o local da floresta;
(iii) o etanol representa uma ameaça à segurança alimentar, uma
vez que, em um mundo com enormes populações passando
fome, diminuirá consideravelmente as áreas agriculturáveis,
já em diminuição graças ao aquecimento global, para “plantar
energia”;
(iv) o etanol brasileiro representa uma alternativa real, e economi‑
camente sustentável, de hegemonia internacional no cenário
sul­‑americano, podendo, no limite, substituir a cultura cocalei‑
ra, e, por conseguinte, contribuir no combate ao narcoterroris‑
mo nos países andinos;
(v) o etanol brasileiro é obtido em condições de trabalho sub­
‑humanas, fruto de crônico descumprimento das obrigações
trabalhistas e tributárias dos proprietários das terras e/ou
dos produtores, fato esse que justifica os baixos custos de
produção.
Independentemente da pertinência de cada uma dessas afirmativas,
fato é que o Brasil detém a melhor tecnologia mundial para produção
de etanol nos trópicos, região esta que, pelos níveis de insolação, per‑
mite ao menos a colheita de duas safras ao ano, condição que não en‑
contra alternativa em nenhum país subtropical, mesmo que detenham
tecnologias de ponta. Logo, o Brasil, maior país tropical do planeta,
soube desenvolver tecnologia para liquefazer o sol onde ele existe em
abundância: entre os trópicos.

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Outro fator central é que a maioria da produção de etanol de cana


brasileira ocorre a grandes distâncias da floresta amazônica126 e não
afeta a segurança alimentar.127 Todavia, é notório que o etanol de milho,
empregado principalmente pelos Estados Unidos com altos níveis de
subsídios, afeta. Logo, se há a pretensão de alcançar um produto global
de forma a significar uma força real, e não alternativa, ao suprimento
energético, como a comunidade internacional deve enfrentar esses pa‑
radigmas?
Há um esforço concentrado internacional no meio acadêmico para
desvendar esse caminho. A iniciativa, livremente traduzida como Pro‑
jeto de Bioenergia Sustentável em Escala Global,128 conta com especia‑
listas de todos os continentes, sendo que o Brasil está representado
pelos pesquisadores Carlos Henrique de Brito Cruz, Diretor Cientí‑
fico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
Fapesp, e José Goldemberg, pesquisador do Centro Nacional de
Referência em Biomassa, vinculado ao do Instituto de Eletrotécnica e
Energia, da Universidade de São Paulo – USP.
No que tange à política pública brasileira voltada ao assunto, há
uma busca de se concretizar, institucional e politicamente, o que a tec‑
nologia nacional obteve: a liderança mundial em biocombustíveis. O
primeiro passo foi dado pela ANP, ao adotar internamente a nomen‑

126
Sobre o tema, JANK, Marcos afirma que “mais de 85% da cana-de-açúcar bra‑
sileira cresce no Centro-Sul do país a mais de 2 mil quilômetros da floresta Ama‑
zônica, distância equivalente à que separa Paris de Moscou. Condições climáticas
inadequadas ao cultivo da cana e ausência de logística para escoamento da pro‑
dução inviabilizam essa região para produção do etanol. Os outros 15% são
produzidos em Estados da região Nordeste a igual distância da floresta”. JANK,
Marcos. Etanol de cana-de-açúcar: uma solução energética global sob ataque.
Biocombustíveis, a energia da controvérsia. São Paulo: Senac, 2009. p. 23.
127
A alternativa à produção de etanol, pela cana-de-açúcar, é a própria produção do
açúcar, que não pode ser considerado alimento.
128
Global Sustainable Bioenergy. Disponível em: <http://engineering.dartmouth.
edu/gsbproject/>.

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clatura “etanol” para designar o álcool. O preâmbulo da Resolução


ANP n. 9, de 1o de abril de 2009, enfoca exatamente o alinhamento do
mercado nacional perante o internacional.

O DIRETOR­‑GERAL da AGÊNCIA NACIONAL DO PE‑


TRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS – ANP, no
uso de suas atribuições, considerando o disposto no inciso I, art. 8o da
Lei n. 9.478, de 6 de agosto de 1997, alterada pela Lei n. 11.097, de 13
de janeiro de 2005 e com base na Resolução de Diretoria n. 276, de 31 de
março de 2009,
Considerando o interesse para o país em incrementar a participa‑
ção dos biocombustíveis na matriz energética nacional;
Considerando o interesse do país em promover os biocombustí‑
veis brasileiros no mercado internacional;
Considerando a necessidade de uniformização das nomenclatu‑
ras internacionalmente utilizadas para designar os biocombustíveis; e
Considerando que álcool etílico combustível e etanol combustí‑
vel são expressões tecnicamente sinônimas,
Resolve:
Art. 1o Fica estabelecida, por meio da presente Resolução, que o
álcool etílico combustível também poderá ser chamado, para efeito de
regulamentação da ANP, de etanol combustível.

O Itamaraty tem, igualmente, empenhado esforços para abrir mer‑


cado ao etanol brasileiro. São exemplos dessas iniciativas: (i) o Decreto
n. 5.816, de 26 de junho de 2006, promulgou o Memorando de Enten‑
dimento entre o Brasil e a Índia referente à Cooperação Tecnológica na
Área de Mistura de Etanol em Combustíveis para Transportes, cele‑
brado em Nova Delhi, em 8 de abril de 2002; (ii) o Decreto n. 6.897, de
14 de julho de 2009, promulgou o Memorando de Entendimento entre
Brasil e Moçambique na área de biocombustíveis, firmado em Brasília,
em 6 de setembro de 2007; (iii) o Decreto n. 6.965, de 29 de setembro
de 2009, que promulga o Memorando de Entendimento entre os Mem‑
bros do Fórum de Diálogo Índia­‑Brasil­‑África do Sul para estabelecer
Força­‑Tarefa Trilateral sobre biocombustíveis, assinado em Brasília,

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em 13 de setembro de 2006; e (iv) o Decreto n. 7.224, de 30 de junho de


2010, que promulga o Memorando de Entendimento entre o Brasil e a
Dinamarca sobre Cooperação nas Áreas de Energias Renováveis e Efi‑
ciência Energética, firmado em Copenhague, em 13 de setembro de
2007. No centro dessas iniciativas, nas palavras de Jank,129

A produção de biocombustíveis representa uma oportunidade


para países em desenvolvimento. Mais de cem países em regiões tropi‑
cais e subtropicais do planeta são produtores de cana­‑de­‑açúcar, em
alguma medida, e possuem o potencial para reproduzir a experiência
brasileira na produção de etanol e bioeletricidade. Adotar o etanol de
cana como alternativa e complemento à gasolina aumentaria a inde‑
pendência energética desses países em relação ao petróleo importado e
reforçaria suas agriculturas, gerando emprego e renda. Isso representa‑
ria uma revolução no fornecimento de combustíveis, no qual quase
uma centena de países poderia suprir o mundo com biocombustíveis,
no lugar dos atuais vinte países produtores de petróleo.

Importante notar que mesmo países de forte cultura petrolífera


têm adotado políticas de biocombustíveis. Angola, por exemplo, teve
aprovada pelo parlamento no final de março de 2010 a lei dos biocom‑
bustíveis. Nas palavras do ministro dos Petróleos e patrono do Projeto
de Lei, Botelho de Vasconcelos, a produção de biocombustíveis obje‑
tiva colmatar as necessidades energéticas nacionais, preservando o am‑
biente e atendendo a diversificação da economia.
Esses movimentos permitem reafirmar que, independentemente da
real dimensão que os biocombustíveis obterão no século XXI, já é um
fato que a indústria petrolífera se reposiciona, naquilo que especialistas
afirmam como “período pós­‑petróleo”, como um setor de “energia”.
Os efeitos imediatos que podem ser aferidos são: (i) o realinhamento
do desenvolvimento tecnológico, que, além de envolver a geologia, passa

129
JANK, Marcos. Etanol de cana-de-açúcar: uma solução energética global sob
ataque. Biocombustíveis, a energia da controvérsia. São Paulo: Senac, 2009. p. 23.

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a compreender a agricultura; (ii) a simbiose com a indústria elétrica,


sendo esta compreendida como detentora do conhecimento da cadeia
produtiva do elétron, ou “energia secundária”; (iii) a inserção de cama‑
das até então excluídas na geração de energia, aproximando o setor de
petróleo, antes afeito às questões do subsolo, das questões sociais que
ocorrem no solo, como é o caso da pressão por alimentos, moradias e
trabalho; e (iv) a reformulação da “diplomacia do petróleo”, de forma a
alterar, no longo prazo, a geopolítica energética mundial com um cená‑
rio mais heterogêneo de agentes ofertando energia no mercado.
5.2.3.5 Pré­‑sal e o modelo de partilha. Criação da Pré­‑sal Petróleo
S.A. – PPSA
A primeira menção à existência de petróleo na plataforma conti‑
nental brasileira deve ser creditada ao geólogo norte­‑americano Walter
K. Link.130 Econômico nas estimativas, frequentemente criticado à
época pela corrente nacionalista, que via o pessimismo da exploração
de petróleo no continente manifestado nos memorandos como uma
manobra orquestrada pela indústria internacional para bloquear as ini‑
ciativas setoriais brasileiras,131 expôs em avaliação de agosto de 1960 a
possibilidade de haver quantias significativas de petróleo em alto­‑mar.

130
Para mais informações, ver item 4.7, “O ‘Ouro negro’: o sistema internacional e
a Petrobras”.
131
Importante ponturar que a doutrina geológica internacional é majoritária ao
afirmar que o Brasil perdeu muitas oportunidades por não conferir aos estudos
de Link a devida credibilidade. Como exemplo, “In 1954 Walter made a major
career change. He accepted an invitation to establish an exploration program for
the new Brazilian petroleum monopoly, Petrobras, with a budget of over $100
million per year. This led to a detailed evaluation of the petroleum potential of
all of onshore Brazil, but at the end of his six-year contract, Walter recommen­
ded that Petrobras look offshore instead. His advice was ignored and he was
vilified mercilessly as the messenger with bad news in spite of having discovered
500 million barrels of new onshore oil for Brazil. The company proceeded to
waste seven years and a billion dollars before finally taking his advice.” DOTT
JR., Robert H. “Linkages”. Disponível em: <http://www.geology.wisc.edu/
outcrop/01/01pdfs/Linkages_R_Dott.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2010.

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Curso de Direito da Energia

Bacia do Sul da Bahia e Espírito Santo


Os dados que possuímos dos sedimentos desta Planície Costal
foram obtidos por perfurações em Caravelas, Conceição da Barra e
Belém, e mais alguns dados de um afloramento na Ilha de Santa Bárba‑
ra, no Arquipélago de Abrolhos.
Todos os poços atingiram um embasamento e grande parte da
secção consta de sedimentos do Terciário e Cretáceo. Nos poços de
Conceição da Barra e Belém encontrou­‑se uma secção de anidrito e
calcário Cretáceo cobrindo o embasamento Pré­‑Cambriano com im‑
pregnações de material asfáltico. A área da Planície Costal não tem
valor sob o ponto de vista petrolífero, mas acredita­‑se que mar adentro
a secção cretácea seja mais espessa e marinha, e contenha óleo.
A área terrestre pode ser denominada como ‘D’, mas a área ma‑
rítima pode ter uma classificação melhor. Somente a perfuração de
poços estratigráficos poderá resolver o problema e contávamos com
a perfuração do poço de Santa Bárbara ainda em 1960. Dentro de al‑
guns meses será iniciado um trabalho sísmico marinho no Escudo
Continental.132

Tratado como um dos grandes nomes da geologia mundial, o con‑


turbado cenário brasileiro na década de 1960, que vivia um regime mi‑
litar de exceção no geral e atravessava um processo setorial estatal de
autoafirmação em específico, certamente impediu que o país refletisse
as palavras de Link com a mesma profundidade e tecnicidade que seu
compatriota, Asa Billings, obteve na década de 1920. Billings foi am‑
plamente festejado pelos brasileiros ao propor a reversão do rio Pi‑
nheiros para solucionar a questão da escassez de eletricidade na cidade
de São Paulo,133 situação que possibilitou criar a represa que atualmen‑
te leva seu nome, fornecendo água potável, sem a qual São Paulo não
teria se viabilizado como a maior cidade do hemisfério Sul.

132
LINK, Walter K. Avaliação das possibilidades petrolíferas das bacias sedimenta‑
res do Brasil. Anexo Depex-1.032, de 9 de agosto de 1960.
133
Para mais informações, ver item 2.3, “A Light e o desenvolvimento do eixo Rio­
‑São Paulo”.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

A década de 1960 foi um período de ideologias afloradas em cená‑


rio de Guerra Fria, de forma que o tempo está se encarregando de co‑
locar as proposições de Link em seu devido lugar. Nas palavras de
Bacoccoli,134 a ausência de documentos mais aprofundados sobre Link
dificultam identificar a real importância do geólogo para o país.

Em um Brasil de 1961, de tendências políticas de esquerda, o Re‑


latório Link causou grande celeuma e manchetes de primeira página,
nos principais veículos de mídia. Sob fortes acusações de estar a serviço
dos trustes internacionais, acabou praticamente expulso do país, encer‑
rando, temporariamente, o até hoje controvertido episódio.
Até a sua morte, Walter Link teria tido profunda mágoa pelos
acontecimentos finais da sua atuação no Brasil.

Em que pese o aspecto ideológico ter interferido nas decisões go‑


vernamentais à época, certamente o principal motivo que impedia uma
prospecção imediata na plataforma continental foi a variável tecnológi‑
ca. As primeiras descobertas offshore no Brasil, ocorridas em 1968 no
campo de Guaricema, Estado de Sergipe, e de Garoupa, no Rio de Ja‑
neiro, que contaram com importante participação do Centro de Pes‑
quisas e Desenvolvimento Leopoldo A. Miguez de Mello – Cenpes, da
Petrobras, criado em 1963, empregaram relevantes técnicas de explora‑
ção, mas ainda estavam aquém das necessidades nacionais.
Mesmo sem a doutrina ser clara sobre o tema, pode­‑se concluir
que a noção de soberania, decorrente de um regime militar que neces‑
sitava controlar os recursos naturais do país, aliada a uma ausência no
mercado internacional de pronta tecnologia offshore para exploração
de poços com profundidade média de 1.000 metros,135 levou o governo

134
BACOCCOLI, Giuseppe. O dia do dragão: ciência, arte e realidade no mundo
do petróleo. Rio de Janeiro: Synergia, 2009. p. 13.
135
Em que pese haver experiências offshore desde a década de 1930 na Venezuela e no
México, bem como no Mar do Norte, não havia um agente em específico que do‑
minasse toda a cadeia e que pudesse ser aplicada de imediato à realidade brasileira.

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Curso de Direito da Energia

brasileiro a decidir pelo desenvolvimento tecnológico próprio para


prospecção de petróleo.
O momento de inflexão tecnológica foi a criação, em 1986, do
Programa de Capacitação Tecnológica em Águas Profundas – Procap.
A Petrobras, que até então comprava tecnologia e a adaptava à realida‑
de local, passava a desenvolvê­‑la para produção de petróleo em águas
profundas. O sucesso do programa tornaria a Petrobras líder mundial
na área em poucos anos, fato que culminou em profícuo desenvolvi‑
mento de técnicas de soldagem, de robótica, dentre outros.
A década de 1990 foi encorajadora no tocante às descobertas de re‑
servatórios. Em 1996, véspera da abertura de mercado e da criação da
ANP – fatos que criaram novos paradigmas jurídico­‑setoriais –136 foi desco­
berto o campo de Roncador, na bacia de Campos (RJ), que possibilitou à
Petrobras iniciar o desenvolvimento de tecnologia para uma profundidade
de 2 mil metros de lâmina d’água, criando novos paradigmas tecnológi‑
cos. Na década de 2000 houve uma busca pela viabilização da produção
de Marlim Leste e Albacora Leste, ambos na bacia de Campos (RJ), bem
como possibilitar a extração com 3 mil metros de profundidade.
Nesse panorama, e graças à tecnologia de sísmica 3D e 4D, foi pos‑
sível descobrir as reservas gigantes de petróleo no campo de Tupi, na
bacia de Santos, em 8 de novembro de 2007, abaixo de profunda camada
de sal no subsolo marítimo. Os testes iniciais realizados pela Petrobras
indicavam um volume recuperável de 5 bilhões a 8 bilhões de barris de
óleo e gás natural, níveis inéditos no Brasil e que correspondiam à me‑
tade de todo o petróleo descoberto pelo país nos últimos 50 anos.
Pode­‑se compreender que a descoberta do pré­‑sal137 foi um im‑
portante ponto de inflexão da exploração do petróleo no Brasil em

136
Para mais informações, ver em 5.1.2, “Legislação do setor de petróleo: o CNPE
e a ANP”.
137
Para compreender a expressão “pré-sal”, devemos tomar como referência o centro
da Terra, ou seja, o petróleo se encontra antes da camada de sal. Para quem toma
como referência a superfície da Terra, o petróleo encontra-se após a camada de sal.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

geral e nas premissas jurídicas setoriais em específico. A primeira ini‑


ciativa do governo Lula foi retirar 41 blocos da 9a Rodada de Licita‑
ções da ANP que estavam situados em regiões de influência da
descoberta de Tupi. Fundado no conceito de soberania nacional, era
preciso aprofundar os estudos para conhecer a real estrutura geológi‑
ca daquela localidade.
Com tamanha riqueza descoberta no subsolo marítimo, natural que
a sociedade iniciasse uma contundente discussão sobre a destinação des‑
se bem. O governo Lula, detentor das informações pormenorizadas so‑
bre o pré­‑sal, se antecipou e propôs no dia 31 de agosto de 2009 quatro
Projetos de Lei para lidar com a questão: (i) a criação de um Fundo So‑
cial; (ii) a capitalização da Petrobras; (iii) a criação de uma estatal para
lidar especificamente com a questão do pré­‑sal; e (iv) a instituição do
contrato de partilha de produção. Por sua vez, iniciou­‑se uma segunda
discussão na esfera estadual, não menos intensa, referente à distribui‑
ção dos royalties. Esse tema encontrou clara polarização entre os Esta‑
dos que defendiam a manutenção do atual sistema,138 uma vez que as
jazidas estão em seus territórios, e as demais unidades da federação,
que identificaram uma possibilidade de aprovar uma regra que fosse
mais distributiva. Nesse sentido, o final do governo Lula se caracteri‑
zou pela aprovação, e regulamentação, do petróleo por intermédio do
seguinte sistema normativo:
(i) Lei n. 12.249, de 11 de junho de 2010, que instituiu o Regime
Especial de Incentivos para o Desenvolvimento de Infraestru‑
tura da Indústria Petrolífera nas Regiões Norte, Nordeste e
Centro­‑Oeste – Repenec, beneficiando­‑se pessoa jurídica que
tenha projeto aprovado para implantação de obras de infraes‑
trutura nas aludidas regiões nos setores petroquímico, de refi‑

138
Principalmente RJ e ES, em maior escala por ter alta dependência dessa indústria,
e SP em menor intensidade, por depender menos dessa receita por ter um parque
industrial mais heterogêneo e uma cultura petrolífera menos desenvolvida.

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Curso de Direito da Energia

no de petróleo e de produção de amônia e ureia a partir do gás


natural, tendo regulamentada a forma de habilitação e co­
‑habilitação pelo Decreto n. 7.320, de 28 de setembro de 2010;
(ii) Lei n. 12.276, de 30 de junho de 2010, que autorizou a União a
ceder onerosamente à Petrobras o exercício das atividades de
pesquisa e lavra de petróleo, de gás natural e de outros hidro‑
carbonetos fluidos de que trata o inciso I do art. 177 da Cons‑
tituição Federal;
(iii) Lei n. 12.304, de 2 de agosto de 2010, que criou a Empresa
Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. –
Pré­‑sal Petróleo S.A. (PPSA);
(iv) Lei n. 12.351, de 22 de dezembro de 2010, que dispôs sobre o
regime de partilha de produção, em áreas do pré­‑sal e em áreas
estratégicas, bem como criou o Fundo Social – FS; e
(v) Decreto n. 7.403, de 23 de dezembro de 2010, que estabeleceu
regra de transição para destinação das parcelas de royalties e de
participação especial devidas à administração direta da União
em função da produção de petróleo, gás natural e outros hidro‑
carbonetos fluidos em áreas do pré­‑sal contratadas sob o regi‑
me de concessão, de que trata o § 2o do art. 49 da Lei n. 12.351,
de 22 de dezembro de 2010.
Em que pese as importantes novações jurídicas postas necessita‑
rem de uma aprofundada discussão de seus instrumentos junto à co‑
munidade jurídica, bem como a estrutura setorial vir a ser discutida no
Tomo II – Do Modelo Institucional, é possível extrair algumas conclu‑
sões, quais sejam: (i) o aprofundamento da pesquisa tecnológica volta‑
da à indústria de hidrocarbonetos, prevista no art. 49, § 2o, do Decreto
n. 7.403, de 23 de dezembro de 2010; (ii) a criação da Pré­‑sal Petróleo
S.A. – PPSA, na qualidade de gestora de contratos de hidrocarbonetos
do pré­‑sal, sob modelo de partilha, que costuma ser adotado em siste‑
mas jurídicos que desejam conferir alto nível de discricionaridade ao
Poder Concedente para contratar bens e serviços a posteriori; (iii) o

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

caráter descentralizador do modelo, seja em criar programa específico


(Repenec) para as regiões menos providas de tecnologia, bem como
pela regra de royalties fixada; e (iv) a cessão à Petrobras, com dispensa
de licitação, de pesquisa e lavra de petróleo, de gás natural e de outros
hidrocarbonetos fluidos do pré­‑sal, com teto fixado em 5 bilhões de
barris, que cria uma situação sui generis na legislação por diferenciá­‑la,
enquanto sociedade de economia mista, do regime jurídico a que estão
submetidas as empresas públicas e privadas.
Logo, a discussão do pré­‑sal foca na destinação e repartição da
receita advinda a 300 km da costa, a 7 mil metros de profundidade, com
amplo incentivo à tecnologia nacional e com a necessidade de aporte de
capital de aproximadamente 600 bilhões de dólares. Resta aguardar
como serão realizados os ajustes a esse modelo no governo Rousseff,
como será efetivada a regulação sobre o tema, como se portará a Petro‑
bras nessa nova guinada em suas competências, qual será o ânimo da
iniciativa privada em aceitar as regras postas para a remuneração possí‑
vel e como a comunidade jurídica, principalmente os tribunais supe‑
riores, se manifestará sobre o tema que certamente estará no centro da
pauta nacional nas próximas décadas.

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6
Perspectivas do mercado
energético brasileiro

Há uma sensação generalizada de que o Brasil, parafra­


seando Monteiro Lobato, está prestes a alcançar seu berço de
ufanias. Maior país latino, e tropical, do mundo, será a quinta
maior economia em dez anos. A base dessa pujança será a pro‑
dução agrícola e energética, com a realização de grandes even‑
tos esportivos – sendo a Copa do Mundo de futebol de 2014 e
as Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016 as principais –, de
forma que justificou sua inclusão no neologismo BRIC,1 que
inclui as grandes potências emergentes do início do século
XXI (Brasil – Rússia – Índia – China). O jornal londrino Fi-
nancial Times declarou em 26 de maio de 2009 que o “Brasil é
o futuro do petróleo latino­‑americano”. Por sua vez, o madri‑
lenho El País destacou, em 22 de novembro de 2009, que o
“petróleo desperta o gigante Brasil”.
Todavia, nossos desafios são diretamente proporcionais
ao tamanho do alarde que o crescimento brasileiro causa. Há a

1
O acrônimo foi cunhado em 2001 pelo economista Jim O’Neill, chefe
de pesquisa em economia global do grupo financeiro Goldman Sachs,
para conferir um sentido único ao grupo de países em rápido desen‑
volvimento econômico na década de 2000, que juntos totalizam mais
de 25% do território global e 40% da população mundial.

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necessidade de equacionar como o país explorará recursos naturais


preservando a flora, a oferta de água, a soberania e sem explodir o cus‑
to dos alimentos. A infraestrutura nacional precisa receber investimen‑
tos que ainda não foram percebidos de forma a justificar o despertar de
Monteiro Lobato. O setor minerário ainda discute um novo marco
regulatório, pois o atual data de 1934, ano de criação do DNPM. Em
transportes, as rodovias estão, na maioria, em situação precária, o país
ainda não entrou na era das ferrovias de alta velocidade, os aeroportos
estão saturados e a navegação de cabotagem é insuficiente. No sanea‑
mento, há a necessidade de se estabelecer uma espécie de regime jurídi‑
co para levar “água para todos”. No tocante à gestão do território, o
Brasil ainda não conseguiu criar regime jurídico para sistematizar seu
ordenamento espacial por meio de um Sistema de Informações Geo‑
gráficas – SIG de forma eficaz. Há enorme déficit na regularização ur‑
bana e fundiária da propriedade e as questões ambientais permeiam
todas essas realidades, estabelecendo o pacto de gerações para preser‑
var as presentes e futuras gerações, conforme manda o art. 225, CF.
O futuro imediato destina uma importância central para essa potên‑
cia energética que será o Brasil. A franca expansão da produção, capitanea­
da pelas descobertas de petróleo após a camada do pré­‑sal, a transformação
do álcool em commodity internacional (etanol), a expansão das eólicas,
das termonucleares em um país rico em urânio e que domina o ciclo com‑
pleto da produção desse minério, o aproveitamento hidrelétrico na Ama‑
zônia, a exploração da energia solar no país que tem a maior superfície
tropical, imporá o desenvolvimento de regime jurídico que proporcione
essa expansão, atrelada à integração energética regional e ao aumento
constante da segurança energética, de forma a evitar oscilações no supri‑
mento. Logo, como o país está abordando esses temas?

6.1 Projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras e o


PRO­‑REG
Em que pese a regulação em energia no Brasil ser secular, a cons‑
trução de sua atual governança é algo recente. O Projeto de Lei Geral

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das Agências Reguladoras deve ser compreendido dentro de uma con‑


cepção de aprimoramento da governança regulatória no Brasil. O
tema, incluído no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC
como prioridade do governo Lula, ao se conceber a regulação como
um dos temas inseridos na gestão pública, faz­‑se necessário analisar
todos os seus aspectos e os conflitos resultantes de suas ações. Tais
pretensões resistidas passam pela necessidade de se produzir acesso às
informações, por intermédio da transparência, em detrimento da cul‑
tura do segredo, típica nos argumentos que buscam se legitimar pela
alta especificidade de cada ramo regulado.
A consolidação normativa também é uma necessidade premente
nos dias atuais, haja vista a fragmentação atualmente existente. Como
exemplo, somente no que concerne às agências reguladoras de energia,2
a Aneel já publicou 8.300 resoluções e 18.600 portarias, sendo que a
ANP editou 400 resoluções e 3.300 portarias. Tais informações des‑
consideram toda a legislação afeitas à matéria ambiental, tributária e
àquela referente à Agência Nacional de Águas – ANA, que, se compu‑
tada, agrega mais 5.650 resoluções. Ante esse cenário, há uma necessi‑
dade crescente de se aprimorarem as instituições regulatórias,
conferindo mecanismos mínimos para que se inter­‑relacionem com
qualidade e harmonização normativa.
Em um período marcado pela descentralização das atribuições da
União, a participação da sociedade se torna um imperativo, de forma
que instrumentos de consulta e audiências públicas devem ser estendi‑
dos para todas as agências reguladoras. A figura do ouvidor passa,
igualmente, a ter grande relevância no sentido de conferir poder à so‑
ciedade civil, no sentido de ser um instrumento de recepção de infor‑
mações, um catalisador de como determinada regulação está sendo
recepcionada pela sociedade. Como nem sempre as notícias serão bem
aceitas pelos gestores, a ideia é que o cargo de ouvidor seja indepen‑

2
Valores até junho de 2010.

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dente, ou seja, haja mandato fixo. Sob esse enfoque, torna­‑se imperati‑
vo ampliar mecanismos de controle social e de prestação de contas das
agências, bem como criar condições para que elas tenham quadros pró‑
prios de pessoal.
As Agências reguladoras autônomas são necessárias para regular e
fiscalizar falhas de mercado, conferindo às concessionárias, permissio‑
nárias e autorizadas estabilidade regulatória, de forma a garantir a atra‑
tividade de fluxo de investimentos privados. Logo, cabe às entidades
governamentais, tais como os ministérios e os conselhos nacionais,
formular as políticas públicas setoriais, restando às agências a função
de regular e fiscalizar os mercados regulados.
Os desafios na busca de uma padronização regulatória são de di‑
versas matrizes e proporções. Dentre eles, está: (i) a precariedade de
instrumentos, na qual as regulamentações são feitas, dependendo das
agências envolvidas, por portarias, resoluções e subespécies; (ii) mode‑
los setoriais incompletos, com legislações difusas e concebidas em mo‑
mentos históricos distintos; (iii) níveis heterogêneos de transparência
da gestão pública; (iv) baixo nível de autonomia das agências, com es‑
trutura funcional incompleta e inadequação dos quadros de pessoal
nas Agências e Ministérios; (v) insuficiência de instrumentos de con‑
trole social e de gestão; (vi) processo administrativo heterogêneo e com
baixo nível de formalismo, dentre outros.
Outra característica importante, principalmente em um setor mar‑
cado pela intensividade de capital necessário ao desenvolvimento de
estruturas energéticas, é a existência de uma cooperação incipiente en‑
tre órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC e
as agências reguladoras setoriais. Há a necessidade de a regulação subs‑
tituir os mecanismos de mercado de forma prévia, monitorando e
acompanhando as práticas de mercado dos agentes dos setores regula‑
dos, em consonância com as premissas fixadas na Lei n. 8.884, de 1993,
que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem
econômica. Por outro lado, a função dos órgãos concorrenciais é de

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defender os mecanismos de mercado de forma posterior. Na análise e


instrução de atos de concentração e processos administrativos, os ór‑
gãos de defesa da concorrência poderão solicitar às agências regulado‑
ras pareceres técnicos relacionados aos seus setores de atuação, os quais
serão utilizados como subsídio à instrução e análise dos atos de con‑
centração e processos administrativos.
Ao partir do pressuposto de que as decisões do Conselho Admi‑
nistrativo de Defesa Econômica – Cade não comportam revisão no
âmbito do Poder Executivo (art. 50 da Lei n. 8.884, de 1994), e de que
a Lei Geral de Processo Administrativo (Lei n. 9.784, de 1999) prevê
no máximo três instâncias administrativas, há a necessidade de se apro‑
fundar o estudo para compatibilizar o processo administrativo das
agências reguladoras e suas inter­‑relações com agências descentraliza‑
das e órgãos de defesa da concorrência. Não basta dizer que as agências
são tema exaustivo na doutrina brasileira nas últimas décadas, mas
também é fundamental dizer como elas funcionarão.
Sob essa concepção, houve a busca de revisão do modelo regulató‑
rio por meio de reestruturação e revisão do papel das agências, com o
objetivo central de uniformizar suas diretrizes, procedimentos e go‑
vernança. Nesse sentido, o Projeto de Lei n. 3.337, de 2004, enviado ao
Congresso no mesmo mês da conversão em Lei do Segundo Modelo
Energético, baseou­‑se em conceitos que buscavam organicidade a este
sistema, tais como: (i) o estabelecimento de conjunto de regras para
orientar a gestão e a atuação das Agências Reguladoras (que passará a
se denominar “Lei Geral das Agências Reguladoras”); (ii) assegurar a
autonomia técnica no exercício das funções de regulação e fiscalização
às Agências Reguladoras; (iii) ampliar a todas as agências o uso de con‑
sultas públicas e audiências públicas, com a criação de ouvidorias inde‑
pendentes da Diretoria em todas as Agências; (iv) uniformizar e ampliar
regras de transparência e prestação de contas, implementando meca‑
nismos de prestação de contas ao Poder Legislativo, dentre outros.
Muitas dessas premissas já estavam contempladas na Aneel, por força

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da Lei n. 10.848, de 2004, de forma que a ideia central era utilizar as


premissas implementadas no Segundo Modelo Energético para as de‑
mais agências.
O Projeto de Lei, desde sua concepção, teve diversas contribui‑
ções e produziu inúmeras manifestações na Câmara dos Deputados.
Ao longo de quase 120 emendas registradas até julho de 2010, houve:
(i) a busca de melhor caracterização da natureza “especial” das Agên‑
cias, enquanto autarquias especiais; (ii) a criação da obrigatoriedade de
que as reuniões deliberativas dos Conselhos das Agências sejam públicas
e gravadas em meio eletrônico; (iii) a uniformização dos procedi­
mentos das agências aos princípios administrativistas da propor­
cionalidade, razoabilidade e motivação; (iv) a substituição da
obrigatoriedade de as agências firmarem contratos de gestão, de forma
a criar a obrigação de incluir no Relatório Anual o cumprimento dos
Planos de Trabalho, que passaria a ser obrigatória sua apresentação,
compatíveis com o Plano Pluri­‑Anual – PPA e a legislação orçamentá‑
ria; e (v) o aperfeiçoamento da transparência do processo decisório as‑
segurando que críticas e sugestões à consulta oferecidas pelo público e
pelo órgão de defesa da concorrência, bem como o posicionamento das
agências sobre essas contribuições sejam disponibilizados nas respecti‑
vas sedes e sítios na Internet.
No que concerne à articulação das agências perante a sociedade e
demais órgãos de gestão pública, o Projeto de Lei: (i) prevê que as
Agências devem se articular com os órgãos e entidades de defesa do
consumidor, de meio ambiente, entre as agências, de forma a evitar
sobreposição regulatória; (ii) autoriza as agências a constituir comitês
de intercâmbio de experiências e informações entre si e perante o Mi‑
nistério da Fazenda; (iii) obriga a articulação de suas atividades com as
das agências reguladoras dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni‑
cípios, nas respectivas áreas de competência; e (iv) impede o Tribunal
de Contas de se pronunciar sobre a discricionariedade das escolhas re‑
gulatórias das Agências Reguladoras.

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No que tange a gestão, os mandatos, não coincidentes, devem ser


preenchidos de modo que a cada ano haja, em cada agência, sempre que
possível, o vencimento de um mandato e consequente nova indicação.
Da mesma forma, incorpora, aos requisitos para o exercício do cargo de
diretor e Presidente de Agências, a experiência comprovada, além da
nacionalidade, reputação ilibada e elevado conceito no campo de espe‑
cialidade dos cargos. A recondução fica vedada, salvo no caso de va‑
cância em prazo inferior a dois anos do término do mandato; dentre
outras disposições.
O Senado Federal, por sua vez, não está alheio a essa discussão e
tem seu próprio projeto. A Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) n. 81, de 2003, que acrescenta o art. 174­‑A à Constituição Fe‑
deral para fixar os princípios da atividade regulatória, busca introdu‑
zir no sistema jurídico brasileiro um conceito principiológico ao
exercício das atividades das agências reguladoras. A proposta objetiva
conferir homogeneidade às diversas agências reguladoras, bem como
fixar premissas comuns para sua atuação, de forma que o Estado cum‑
pra sua função. Os princípios atendem ao que se espera de uma agên‑
cia reguladora.
Importante ainda destacar que o Decreto n. 6.062, de 16 de março
de 2007, instituiu o Programa de Fortalecimento da Capacidade Insti‑
tucional para Gestão em Regulação – PRO­‑REG. O programa objeti‑
va o desenvolvimento de ações que promovam o fortalecimento dos
mecanismos institucionais para gestão em regulação, propiciando con‑
dições para a melhoria da qualidade da regulação, a consolidação da
autonomia decisória das Agências Reguladoras federais e o aperfeiçoa‑
mento dos instrumentos de supervisão e de controle social. Com o
apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, da Casa
Civil da Presidência da República, ministérios, agências reguladoras e
instituições da sociedade civil de defesa do consumidor, o Relatório
Final sobre a governança regulatória no Brasil foi realizado em 2007 e
publicado em maio de 2008, com ênfase nos setores de energia elétrica,

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telecomunicações, transportes terrestres e saúde suplementar. Como


produto da inovação do grupo, pode­‑se observar a criação da Análise
do Impacto Regulatório – AIR enquanto unidade de supervisão da
qualidade regulatória junto ao governo federal.

6.2 Setor elétrico: a prorrogação das concessões e a


consolidação da legislação
O tema da prorrogação das concessões ganha contornos de gran‑
de relevância em um período no qual 20 hidrelétricas, que totalizam
20 mil MW, 74 mil km de linhas de transmissão e 41 distribuidoras
observarão o termo de seus prazos de concessão até 2017, com a maio‑
ria findando em 2015. Diversos doutrinadores têm se debruçado sobre
o tema, que sob os diversos interesses intrassetoriais tem obtido con‑
tornos jurídicos dos mais distintos. Como o objetivo do presente tra‑
balho é apresentar a síntese da discussão, nos resta sistematizar o tema
e demonstrar os pontos de divergência doutrinária.
A relevância do tema é crescente, pois, lembramos, ao se caracterizar
como um setor intensivo em capital, os empréstimos a concessionárias
não ultrapassam os limites temporais da outorga. Com a aproximação do
prazo final, cumulado com as indefinições do regime jurídico da outorga
no que concerne a continuidade – se haverá a atividade direta pelo Poder
Concedente, a prorrogação das concessões ou nova licitação –, esta lacu‑
na legal poderá ser apontada como a antessala do sucateamento do siste‑
ma e, por conseguinte, da queda dos níveis de segurança do sistema.
Nesse sentido, o trabalho de Batista3 é bastante oportuno para o
delineamento do assunto. O autor demonstra algumas situações em
que o tema estaria contextualizado, quais sejam:

3
BATISTA, Romário de Oliveira. Debate sobre uma segunda prorrogação de
concessões no setor elétrico (sem licitação): verdades, meias-verdades e pontos
para reflexão”. Direito Regulatório da Energia Elétrica – UnB – janeiro de 2009.
Disponível em: <www.aneel.gov.br> Acesso em: 23 jun. 2010. p. 27.

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Curso de Direito da Energia

(i) licitação de outorga dessas concessões já prorrogadas, na qual


incide o art. 175 da Constituição Federal e o parágrafo único
do art. 42 da Lei n. 8.987, de 1995, no qual a nova licitação de‑
pende do interesse público do Poder Concedente;
(ii) privatização de empresas federais ou estaduais, sob nova con‑
cessão, na qual incidem os arts. 27 e seguintes da Lei n. 9.074,
de 1995, e cujos contratos contenham cláusula de prorroga‑
ção, hipótese em que há a possibilidade de prorrogação;4
(iii) concessões de geração licitadas e contratadas no período entre a
promulgação da Constituição Federal de 1988 e a edição da Lei
n. 8.987, de 1995, haja vista que a cláusula de prorrogação cons‑
tante dos aludidos contratos tem amparo direto no art. 175,
parágrafo único, inciso I, da Carta Magna;
(iv) concessões de serviço público de energia elétrica existentes em
8 de julho de 1995 e ainda passíveis de prorrogação nos termos
dos arts. 17, 19 e 22 da Lei n. 9.074, de 1995.
A discussão, que tem contornos muito mais políticos do que técnico­
‑jurídico, nas palavras de Batista, conta com três correntes doutrinárias
definidas: (i) não possibilidade de prorrogação do prazo de concessão de
serviço público, exceto para cumprir o período necessário à amortização
dos investimentos previstos, considerada a equação econômica contratual;
(ii) a possibilidade de prorrogação, se prevista em lei, desde que a conces‑
são resulte de licitação, vedando­‑se a prorrogação de concessões não lici‑
tadas, defendida pela corrente majoritária; e (iii) obrigatoriedade de
prorrogação, por ter força vinculada, em qualquer hipótese, inclusive
de con­cessões não licitadas, desde que a prorrogação esteja prevista em lei.
Em que pesem variações de entendimento presente na doutrina, o
advento da Lei n. 10.848, de 2004, que alterou a redação do § 2o e acres‑
centou o § 9o ao art. 4o da Lei n. 9.074, de 1995, é central para o esclareci‑

4
Para mais informações, ver ADI n. 1.582-6-DF proposta pelo Conselho Federal
da OAB, com julgamento em 7 de agosto de 2002.

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mento da questão.5 Considerando que, salvo em hipóteses estritas como


a da manutenção do equilíbrio econômico­‑financeiro da concessão, não
existe direito adquirido em matéria de Direito Administrativo, dada a
supremacia do interesse público perante o privado, para Batista,6

À luz do atual panorama constitucional, considera a licitação, ao


final do prazo das concessões já prorrogadas, a solução de menor risco
jurídico, pois, a um só tempo, garante a isonomia na disputa pelos inte‑
ressados na nova outorga e assegura a modicidade tarifária. No entanto,
não deixa de apontar os riscos – inclusive políticos – de questionamen‑
tos a essa possível opção do Poder Concedente, dentre os quais os rela‑
tivos à ofensa ao pacto federativo, à violação de ato jurídico perfeito e
aos critérios e valores de indenização de bens reversíveis.

Para outros, poderia ser avençada uma situação intermediária, que


seria a “prorrogação condicionada”, ou seja, utilizando as palavras de
Kelman,7 seria uma espécie de “direito de preferência ao atual inquili‑
no”, com o objetivo de diminuir custos de transação. Logo, seria um
novo pacto, com novas obrigações contratuais ao concessionário, com
o objetivo de proporcionar redução tarifária.
Segundo apurado por Brandão,8 não se parte da premissa de que é
possível, hoje, a prorrogação sem nenhuma alteração normativa, sim‑

5
Para aprofundamento da questão, Parecer n. 014/2006-PF/ANEEL, de 17 de
janeiro de 2006 (Contrato de Concessão de Transmissão da CTEEP), n.
374/2007-PF/ANEEL, de 26 de julho de 2007 (Contratos de Concessão de
Transmissão ESCELSA, LIGHT e COELBA), e n. 701/2008-PF/ANEEL, de 10
de novembro de 2008 (Contrato de Concessão de Distribuição CEB).
6
BATISTA, Romário de Oliveira. Debate sobre uma segunda prorrogação de
concessões no setor elétrico (sem licitação): verdades, meias-verdades e pontos
para reflexão”. Direito Regulatório da Energia Elétrica – UnB – janeiro de 2009.
Disponível em: <www.aneel.gov.br>. Acesso em: 23 jun. 2010. p. 27.
7
KELMAN, Jerson. Apud BATISTA, Ob. cit., p. 31.
8
BRANDÃO, Ricardo. III JURE – SIMPÓSIO JURÍDICO DO SETOR ELÉ‑
TRICO. Anais... – Funcoge, maio 2009, Rio de Janeiro.

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Curso de Direito da Energia

plesmente a partir do contrato de concessão. Sob esse entendimento, o


advogado da União entende que a base da discussão é o art. 175 da
Constituição Federal. Logo, qualquer mudança relativa à questão das
prorrogações, que deve ter uma solução legislativa, passa pela necessi‑
dade da promulgação de uma Emenda Constitucional específica, que
poderia aproveitar o ensejo e unificar o regime jurídico de concessões.
Importante salientar, no plano infraconstitucional, a existência do Pro‑
jeto de Lei n. 4.154, de 2008, de autoria do Deputado Federal Eduardo
Valverde (PT­‑SP), que prorroga os prazos das concessões de geração e
distribuição de energia elétrica.
Importante notar a ausência de consenso no tocante à renovação
das concessões anteriormente anotada. Em Audiência Pública no Sena‑
do Federal, datada de 23 de junho de 2010, o senador Delcídio Amaral
(PT­‑MS) manifestou preocupação com o vencimento, a partir de 2015,
de concessões no setor elétrico. Em resposta à arguição, o diretor da
Aneel, Romeu Donizete Rufino, manifestou que os segmentos de ge‑
ração e transmissão de energia deveriam permanecer como concessão
com prazos fixos, de forma que aqueles referentes a distribuição deve‑
riam ser firmados de forma continuada, com permanentes revisões de
tarifas e fiscalização constante da qualidade do serviço.
Assim, a ausência de um regime jurídico estruturado para o setor
elétrico encontra na questão da prorrogação das concessões mais um
capítulo que demonstra que o amontoado de soluções jurídicas pon­
tuais, muitas delas paliativas e fruto de concepções ideológicas em mo‑
mentos políticos e econômicos diferentes, não constituem um sistema
normativo integrado, quando analisadas em sua totalidade.
A linearidade normativa também é necessária para que os cida‑
dãos, de fato, conheçam as leis. A Câmara dos Deputados,9 sob o argu‑

9
O Deputado Cândido Vacarezza (PT-SP), então presidente do grupo encarrega‑
do de avaliar as 180 mil leis brasileiras, tem a missão de consolidar as leis em vi‑
gor, nas quais, acredita, seja possível transformá-las em até mil, eliminando as
revogadas, caducadas, as repetidas e as colidentes.

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mento de conferir segurança jurídica e regulatória às normas brasileiras


referentes ao setor elétrico, aceitou o desafio de consolidar todas as
normas setoriais hoje vigentes, entre leis, decretos­‑lei e medidas provi‑
sórias, bem como artigos espalhados pelo sistema normativo, realiza‑
dos em quatro modelos econômicos distintos e em seis constituições
federais diferentes. Nesse sentido, foi desenvolvido o Projeto de Lei
n. 4.035, de 2008, apresentado pelo Deputado Federal Arnaldo Jardim
(PPS­‑SP), que se fundamentou basicamente no estudo de consolidação
de Vilson Christofari, advogado e ex­‑presidente da Companhia de
Energia de São Paulo – Cesp.
A consolidação da legislação da energia parte do pressuposto de
que, no cenário político atual, não é possível obter consenso na socie‑
dade para se criar um código. A consolidação tem a grande virtude de
não inovar o que existe, mas apenas harmonizar os princípios e as ter‑
minologias adotadas em momentos políticos distintos. E isso não é
pouco. Como exemplo, qual será a conceituação a ser padronizada, a
Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel “regula” ou “regula‑
menta”? Atuamos no setor “elétrico” ou de “energia elétrica”? As dis‑
tribuidoras têm “consumidores” ou “usuários”, como conceitua a
Constituição Federal? São discussões que não passarão despercebidas
pelos doutrinadores e magistrados, com efeitos diversos nesse setor
que atua na base da cadeia produtiva brasileira.

6.3 Smart Grid, Smart City: as cidades produzem


energia renovável
O setor elétrico tem discutido, de forma intensiva, as questões ati‑
nentes ao desenvolvimento das “redes inteligentes”, ou smart grid,
como são denominadas. A Aneel realizou um primeiro passo nesse
sentido ao publicar a Resolução Normativa n. 375, de 25 de agosto de
2009, que estabelece as condições de compartilhamento da infraestru‑
tura das distribuidoras com a finalidade de transmissão de dados, voz
e imagem e acesso à Internet em alta velocidade por meio da tecnologia

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Curso de Direito da Energia

Power Line Communications – PLC. Estima­‑se que essa iniciativa per‑


mita significativos avanços sociais, econômicos e tecnológicos ao Bra‑
sil, uma vez que haverá importante estímulo à inclusão digital. Seria a
universalização da banda larga por meio da distribuição de energia elé‑
trica em vias de estar universalizada.
Em que pese haver iniciativas isoladas e em caráter experimental,
espera­‑se que em breve seja aprovada a adoção da medição eletrônica
como uma política pública. Essa possibilidade traria grande desenvol‑
vimento tecnológico do setor elétrico. A medição eletrônica imporia
ao país a substituição de mais de 60 milhões de relógios instalados por
toda a rede de baixa tensão, que no limite alteram toda a política de
cobrança da eletricidade, uma vez que torna factível: (i) identificar ins‑
tantaneamente o furto, a fraude e a inadimplência; (ii) efetivar a sus‑
pensão do fornecimento a distância; (iii) possibilitar tecnologicamente
o uso da concessão de distribuição elétrica para atividades extraconces‑
são, como é o caso da transmissão de dados; dentre outras possibilida‑
des. A Aneel estima que eventual substituição de todos os medidores
aconteça em até 10 anos.
Essa vantagem tecnológica pode ser utilizada ainda para revolu‑
cionar as relações das municipalidades com seus contribuintes, fato
que poderia representar uma inovação significativa das relações do po‑
der público federal, enquanto competente para legislar sobre energia
elétrica, outorgadas de distribuição de eletricidade e os municípios.
Não é para menos que a expressão empregada em outros países, “smart
grid, smart city”, envolve essa dimensão espacial.
O Brasil, em 2010, tinha 5.564 municípios, distribuídos em 27 uni‑
dades federadas, cada qual com suas competências, respectivas procu‑
radorias e interesses públicos, fato que o transforma em um grande
mosaico de competências das mais diferentes matrizes.
O principal instrumento jurídico que regulamenta a atividade mu‑
nicipal é o Estatuto da Cidade, promulgado pela Lei n. 10.257, de 10 de
julho de 2001, e que pormenoriza o capítulo sobre política urbana da

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Constituição Federal. O Estatuto atribuiu aos Municípios a competên‑


cia de fixar planos diretores, com o objetivo básico de combater a es‑
peculação imobiliária e regularizar os imóveis urbanos, sendo
obrigatório para Municípios: (i) com mais de 20 mil habitantes ou
conurbados; (ii) integrantes de “área de especial interesse turístico”;
(iii) área com significativo impacto ambiental; e (iv) que queiram utili‑
zar de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de imóvel.
Nesse sentido, a energia elétrica tem uma função central na orga‑
nicidade dos Municípios, comprovada desde o período imperial. A ilu‑
minação noturna, a sinalização para ordenação do tráfego de veículos,
a manutenção dos serviços públicos municipais, enfim, um conjunto
de atividades que torna possível afirmar que sem a energia elétrica as
cidades não teriam sua configuração atual. Atentos a essa característica,
foi criada em 1998 a Rede Cidades Eficientes em Energia Elétrica –
RCE, por força de uma parceria entre a Eletrobras e o Instituto Brasi‑
leiro de Administração Municipal – Ibam, com o objetivo de viabilizar
o intercâmbio de informações sobre eficiência energética entre os Mu‑
nicípios, notadamente aqueles temas referentes a iluminação pública,
sistemas de saneamento e prédios públicos.
Essa iniciativa permitiu aos Municípios identificarem ao menos
duas frentes de atuação com energia elétrica, a saber: (i) o Código de
Obras, que legisla de forma que as normas edilícias podem contemplar
a questão energética, com o objetivo de alcançar sua sustentabilidade; e
(ii) o Plano Diretor, que, enquanto instrumento de política urbana,
deve incorporar os interesses da população em proteger o meio am‑
biente e estabelece metas eficazes de economia energética.
Logo, o sistema jurídico enfrentará, nas próximas décadas, os limi‑
tes de competência entre o Direito da Energia e o Direito Urbanístico,
que foi constitucionalizado em 1988 e tem no seu bojo a discussão da
função social da propriedade. Garcia aponta importante correlação en‑
tre o espaço urbano e o Município, ao empregar a noção de escala,
território e região.

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Curso de Direito da Energia

O corpo político total compõe o Estado Federativo e, neste, os


órgãos de base territorial serão constituídos pelos municípios, distritos
e regiões – de amplo espectro autonômico, partindo, portanto, da so‑
ciedade e desta, ao Estado.
Nessa escala de autodeterminações coordenadas, o grupo mais
importante porque originário e primitivo: o município – a cidade.
Nisto se concentra o espaço urbano – o espaço da existência hu‑
mana, do País, do planeta, enfim.10

Exploraremos com maior afinco no Tomo III – Da Epistemologia


como os sistemas jurídicos entre Direito da Energia e o Direito Urba‑
nístico interagirão em um futuro próximo. Todavia, pode­‑se vislum‑
brar que o conceito de redes inteligentes mudará completamente o
paradigma de geração e consumo de energia elétrica, com importantes
impactos no regime jurídico dos monopólios naturais postos para a
transmissão e a distribuição. Ao ser possível gerar energia em uma re‑
sidência de qualquer cidade brasileira, deverá ser instituída política pú‑
blica para: (i) na esfera federal, disponibilizar essa energia no sistema
elétrico nacional, criando um sistema de entradas e saídas, com as res‑
pectivas medições, de forma a garantir a entrega da energia e evitar o
furto, a fraude e a inadimplência; (ii) na esfera federal, garantir que
pequenos produtores de energia elétrica possam faturar essa energia
que disponibilizam no sistema elétrico nacional junto às distribuidoras
locais; (iii) na esfera municipal, alterações nos códigos de obras para
possibilitar um amplo desenvolvimento de matriz energética, princi‑
palmente a solar, dentro das cidades, que teriam a vantagem competiti‑
va de não ter embutido em sua produção os custos de transmissão, que
serão cada vez mais crescentes no Brasil.
Logo, “smart grid” sem “smart city” somente se justifica em uma
visão endógena do setor elétrico, desvinculada de qualquer contexto de

10
GARCIA, Maria. A cidade e o Estado: políticas públicas e o espaço urbano. In:
______. (Org.). A cidade e seu estatuto. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 42-43.

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organicidade federativa, tecnológica, econômica ou social. Não há que


se falar em proliferação das redes inteligentes no Brasil sem o envolvi‑
mento dos Municípios e das distribuidoras de energia elétrica que
pressuponha uma ampla reforma urbana, de forma a promover uma
releitura dos preceitos de política urbana postos no art. 182, CF.
Essa premissa fará com que o Brasil, após universalizar a rede de dis‑
tribuição por meio do programa Luz para Todos, passe a torná­‑la eficien‑
te. Essa iniciativa cumpriria alguns desígnios já postos na República Velha,
ao ampliar o sistema de forma subterrânea, bem como traria as cidades
brasileiras a uma realidade vislumbrada para o século XXI, qual seja, criar
modelos tecnológicos que permitam a geração e o consumo elétrico con‑
comitantes sem risco de interrupção abrupta do fornecimento.
Sob tais premissas, diversos Municípios têm criado Unidade de
Gestão Energética Municipal – Ugem com o objetivo de se capacitarem
nos assuntos energéticos, de forma a promover a conservação da energia
elétrica no âmbito municipal e racionalizar seu uso, combatendo o des‑
perdício e conscientizando os administradores sobre sua importância.
Trata­‑se da consecução do Plano Municipal de Gestão de Energia Elétri‑
ca, que formula propostas e desenvolve planos, programas, projetos e
atividades que estabelecem condições de uso da energia elétrica nos vá‑
rios segmentos de consumo do Município, tais como iluminação públi‑
ca, prédios públicos e locais de uso comum da população.
Mas os Municípios também têm buscado competências além da
simples gestão da eficiência energética, de forma a buscar uma inter‑
pretação sobre energia com foco ambiental. O Município de São
Paulo,11 por exemplo, sancionou a Lei n. 14.459, de 3 de julho de 2007,
tornando obrigatória a instalação de equipamentos para captação de
energia solar nas novas edificações construídas na cidade, bem como

11
O método legislativo escolhido para essa construção normativa foi emendar a
Seção 9.3 – Instalações Prediais do Anexo I da Lei n. 11.228, de 25 de junho de
1992 (Código de Obras e Edificações).

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aquelas que sejam caracterizadas como prédios residenciais multifami‑


liares, ou edifícios comerciais que abrigam atividades de comércio, ser‑
viços públicos, privados e edificações industriais. A medida estende­‑se
também para construções novas ou não, residenciais ou não, que te‑
nham piscinas com água aquecida.
A justificativa não é fundada no setor elétrico, mas no art. 225 da
Carta Magna, que garante a todos o direito a um meio ambiente ecolo‑
gicamente equilibrado, impondo­‑se ao Poder Publico e à coletividade
o dever de defendê­‑lo e preservá­‑lo para as presentes e futuras gera‑
ções, direito esse também assegurado pela utilização de uma energia
limpa. Sob a argumentação técnica, a exposição de motivos, firmada
pelo prefeito Gilberto Kassab, do município de São Paulo, fundamen‑
ta que o uso de aquecedores solares ainda é incipiente no Brasil, regis‑
trando, em 2002, apenas 1,2 m² de área instalada de coletores, para cada
100 habitantes. Na China, são 3,2 m² e na Áustria, 17,5 m².
Essa iniciativa tem se disseminado país afora, em Municípios de
dimensões e importância econômica das mais distintas. Importante
destacar a existência de projetos de lei federais e estaduais que dispõem
sobre a obrigatoriedade de previsão para uso de aquecedores solares de
água em projetos de construção de habitações populares, bem como no
intuito de autorizar o Poder Executivo a criar políticas públicas e pro‑
gramas de incentivo para implantação e uso desses equipamentos em
instalações prediais. Assim, sob o pretexto de sustentabilidade, ou de
interesse local das normas edilícias, a competência privativa da União
em legislar sobre energia elétrica passa a obter características de Direi‑
to Ambiental e do Urbanístico, que permite que a União, os Estados e
os Municípios legislem concorrentemente sobre o assunto.

6.4 Integração regional sul­‑americana: Usinas do Rio


Madeira e interconexão com o Peru
O Brasil já percorreu o desafio de se integrar energeticamente com
os países da bacia platina. Argentina, Uruguai e Paraguai, em maior ou

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menor grau, já têm mecanismos de intercâmbio energético estabeleci‑


dos. Com a Bolívia o país compartilha um gasoduto. Há, atualmente, o
desafio de realizar novas interconexões a oeste e a norte, seja com ou‑
tros países, seja com Estados que ainda estão no sistema isolado.
Desde a prosperidade observada por Percival Farquhar na imple‑
mentação da ferrovia Madeira­‑Mamoré no início do século XX, a re‑
gião do rio Madeira não observava um crescimento econômico tão
acentuado. Com a interligação do sistema de transmissão de energia
elétrica, ocorrida em 23 de outubro de 2009, do sistema Acre – Rondô‑
nia junto ao Estado do Mato Grosso, ligando a Subestação de Vilhena
– RO a Jauru – MT, uma nova etapa de desenvolvimento se iniciou
para esses Estados da região Norte que estão mais afeitos economica‑
mente às questões do Centro­‑Oeste.
A construção das hidrelétricas do rio Madeira – Jirau e Santo An‑
tônio – permite que Rondônia experimente índices de crescimento
econômico, comparáveis aos observados na China. A interconexão das
usinas do rio Madeira estarão, sob a ótica setorial, conectadas ao siste‑
ma da região Sudeste, pois sua carga será alocada em corrente contínua
até o Município paulista de Araraquara. Logo, os benefícios desses em‑
preendimentos não são diretos, mas indiretos. As usinas implicarão na
conexão de Rondônia ao Sistema Interligado Nacional – SIN, bara­
teando, assim, o custo da energia local ao possibilitar trazer de outras
regiões energia mais barata do que aquela até então consumida, com
base no diesel.
Essa iniciativa, necessária para o desenvolvimento regional ao pro‑
porcionar energia elétrica barata, base para qualquer crescimento eco‑
nômico, não foi comemorada por todos os segmentos. O então
Secretário de Finanças do Estado de Rondônia, José Genaro, chegou a
afirmar que essa iniciativa era desastrosa para os cofres públicos esta‑
duais, pois seriam perdidos 12% da arrecadação do ICMS (cerca de
R$ 17 milhões por mês) incidentes na comercialização do diesel, ener‑
gia primária que até então era utilizada em Rondônia e no Acre. Tais

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problemas encontraram equação com a edição da Medida Provisória


466, de 2009, que prevê a compensação dos créditos de ICMS de forma
diretamente proporcional ao valor que não se arrecadou em decorrên‑
cia da diminuição do consumo de combustível para a geração térmica.
Na Exposição de Motivos Interministerial – EMI n. 00033 – MME/
MF, de 3 de julho de 2009, houve a preocupação de justificar as razões
dessa operação, os benefícios no médio e longo prazo e formas de
compensar tais perdas.

14. É importante destacar, ainda, que o estágio atual de desequilí‑


brio econômico e financeiro da atividade de energia elétrica nos Siste‑
mas Isolados é decorrente de sistema tarifário que não oferece
cobertura para todos os custos extraordinários decorrentes da operação
isolada. Sendo assim, é fundamental que a lógica de cobertura atual,
representada em parte pela CCC, seja atualizada, de modo que seus
recursos sejam destinados a cobrir a diferença entre a aquisição da ener‑
gia nesses Sistemas Isolados e aquela adquirida no SIN, no Ambiente de
Contratação Regulada – ACR, incluindo as especificidades das conces‑
sões dos Sistemas Isolados, conforme definido em regulamento.
15. Atualmente, o custo de geração de energia elétrica nos Sistemas
Isolados pode atingir valores superiores a R$ 800,00/MWh. Isto ocorre,
principalmente, em função dos seguintes fatores: utilização de óleo die‑
sel e, eventualmente, óleo combustível para produção de energia elétrica;
necessidade de investimentos não remunerados nos sistemas elétricos
para escoamento da energia; e impossibilidade de utilização de créditos
tributários do ICMS incidente sobre a aquisição de combustível para a
produção de energia elétrica. No entanto, o atual regramento da CCC,
além de não contemplar todos esses componentes de custos, inclui o
desconto da Tarifa de Equivalente Hidráulico, no valor de cerca de
R$ 73,00/MWh, fazendo com que as concessionárias encarregadas da
produção de energia elétrica nos Sistemas Isolados assumam custos não
reconhecidos nas tarifas pagas pelos consumidores locais.
16. Além disso, a consideração realista dos custos deve ser acom‑
panhada de instrumentos eficientes e transparentes de contratação e de
incentivos à utilização racional dos recursos e fontes energéticas. As‑
sim, a Medida Provisória proposta estabelece a contratação de energia

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elétrica por meio de concorrência ou de leilões regulados, nos moldes


daqueles utilizados no SIN, considerando as especificidades das con‑
cessões e a consequente transferência do subsídio às distribuidoras,
possibilitando, inclusive, a otimização tributária.
17. A alteração proposta na lógica da CCC permitirá a conver‑
gência entre o custo de aquisição de energia elétrica nos Sistemas Iso‑
lados e aquele praticado no ACR do SIN.
18. O reconhecimento dos custos pela nova metodologia da
CCC, hoje suportados pelas concessionárias que operam na região,
não deverá levar, no entanto, ao aumento das tarifas de energia elétrica,
pois será compensado pela interligação ao SIN de Sistemas Isolados
dos Estados do Acre, Amapá, Amazonas e Rondônia, fazendo com
que o SIN atinja noventa e nove vírgula seis por cento da totalidade do
mercado consumidor.
19. Para o ano de 2009, por exemplo, o orçamento da CCC, apro‑
vado por meio da Resolução Homologatória Aneel n. 792, de 31 de
março de 2009, reflete os benefícios decorrentes da entrada em opera‑
ção da linha de interligação ao SIN do Sistema Isolado do Acre e Ron‑
dônia, estimada para julho de 2009. Assim, se comparado ao
orçamento da CCC de 2008, aprovado pelas Resoluções Homologató‑
rias Aneel n. 616 e 751, de 2008, verifica­‑se que a redução orçamentária
da CCC é mais do que suficiente para absorver o reconhecimento dos
custos previstos pela metodologia de subsídio proposta. Esse mesmo
efeito positivo deverá ser percebido nos anos de 2010 e 2012, quando
da entrada em operação do gasoduto Coari­‑Manaus e da linha de inter‑
ligação da margem esquerda do Amazonas. Dessa forma, os benefícios
decorrentes da Medida Provisória, quais sejam, integração de Sistemas
Isolados ao SIN e ganhos de eficiência, são superiores aos custos que
serão reconhecidos na CCC, de modo que não haverá majoração tari‑
fária resultante deste regulamento.
20. A urgência das medidas relacionadas aos Sistemas Isolados
decorre do fato de que a evolução do sistema elétrico nacional tornou
necessária a imediata incorporação dos Sistemas Isolados dos Estados do
Acre e de Rondônia ao SIN, o que somente pode ocorrer em concomi‑
tância com o estabelecimento de normas que viabilizem essa incorpo‑
ração sem rupturas contratuais ou desequilíbrios econômicos e
assegure o fornecimento de energia elétrica regular.

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Curso de Direito da Energia

21. Sobre esse aspecto, é importante notar que a justificativa eco‑


nômica para a incorporação de Sistemas Isolados ao SIN é dada quan‑
do as curvas de custos de operação e de expansão alcançam patamares
que justifiquem os investimentos em transmissão para a interligação.
Visto de outro modo, isto significa que a prestação dos serviços de
energia elétrica nos sistemas isolados, para que ocorra a interligação,
deve atingir grau de saturação da viabilidade econômica, o que signifi‑
ca o esgotamento de alternativas locais eficientes para a manutenção e
a expansão da oferta dos serviços de energia elétrica.
22. Desse modo, a postergação da interligação significa a amplia‑
ção da capacidade instalada sobre bases ineficientes e a deterioração
das atividades econômicas relacionadas à energia elétrica e as ativida‑
des industriais e comerciais que dependem dela como insumo.

Ante a justificativa apresentada, foi publicada a Lei n. 12.111, de 9


de dezembro de 2009, que dispôs sobre o regime jurídico dos sistemas
isolados, criando o direito a reembolso por intermédio da Conta de
Consumo de Combustíveis – CCC, bem como critérios para sua res‑
pectiva interligação. Importante destacar que, em 2010, existiam cerca
de 277 Sistemas Isolados, com carga própria da ordem de 1.550 MW
médios (14.000 GWh, aproximadamente), que se encontram, na maio‑
ria, concentrados na região Norte, distribuídos ao longo de 45% do
território nacional. Essa grande dispersão de consumidores produz au‑
sência de economia de escala.
Com o equacionamento da questão financeira, a interligação dos
Estados de Rondônia e do Acre tornou o fornecimento de energia elé‑
trica àquela região mais confiável, ambientalmente sustentável decor‑
rente da diminuição do dióxido de carbono (CO2) presente na geração
térmica a diesel, e atenderá a modicidade das faturas, pois no médio e
longo prazos a conta da CCC não terá mais essa região em seu sistema
de encargos.
A interconexão de Rondônia e do Acre possibilita ao Brasil cogi‑
tar a integração regional a partir da costa oeste do continente sul­
‑americano. Para tanto, a fronteira perante o Peru, via Acre, torna­‑se

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fundamental para esse interesse, de forma a possibilitar maior inter‑


câmbio comercial entre estes dois países. A fundamentação jurídica
para essa iniciativa é vasta. O Tratado de Cooperação Amazônica, assi‑
nado em Brasília a 3 de julho de 1978, o Tratado de Amizade e Coope‑
ração, concluído em Brasília a 16 de outubro de 1979, e o interesse em
fortalecer a integração continental, por força da Associação Latino­
‑Americana de Integração – Aladi, possibilitou que, em 16 de junho de
2010, Brasil e Peru firmassem em Manaus acordos para interconexão
de suas redes elétricas, em conjunto com acordos de cooperação nas
áreas de ordenamento territorial, gestão integrada de recursos hídricos,
instalação de sistemas agroflorestais, produção aquícola no Rio Javari
e implementação de centro de capacitação industrial.
No cerne dessas iniciativas está o interesse de o Brasil investir em
hidreletricidade no Peru e importar essa energia. Para o Peru, resta o
interesse em obter desenvolvimento regional e royalties por esta explo‑
ração energética. Em uma primeira etapa, existe o interesse brasileiro de
construir seis hidrelétricas na Amazônia peruana e obter 80% da pro‑
dução de Inambari (2GW), Sumabeni (1,1GW), Paquitzapango (2GW),
Urubamba (1GW), Vizcatán (0,7GW) e Chuquipampa (0,8GW). A es‑
timativa é que a construção desses empreendimentos termine em 2015.
Há, ainda, a necessidade de se estabelecer futuramente instituições
supranacionais para regular, contabilizar, operacionalizar e dirimir con‑
flitos decorrentes da integração energética, que pode ser considerada
irreversível e está na vanguarda dos valores que o parágrafo único do
art. 4o da Constituição Federal de 1988 prevê, qual seja, a busca pela inte‑
gração econômica, política, social e cultural dos povos da América Lati‑
na, visando à formação de uma comunidade latino­‑americana de nações.

6.5 Belo Monte e a fragmentação do Estado do Pará


O Pará, segundo maior Estado do país em extensão territorial, ob‑
serva o aumento de manifestações separatistas que desejam reduzi­‑lo a
menos de 20% de sua atual área. A ideia é criar dois novos Estados:

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Tapajós, no oeste, com capital em Santarém, e Carajás, no sudeste, com


sede em Marabá. Ambos os movimentos, que já contam com hino e
bandeira, terão seus respectivos pleitos submetidos a regime de urgên‑
cia, por força do Projeto de Decreto Legislativo n. 731, de 2000, que foi
aprovado em 14 de abril de 2010 na Câmara dos Deputados, para ana‑
lisar a autorização para realizar plebiscito para ouvir a população local
sobre as respectivas pretensões separatistas.
Há fartos argumentos prós e contra. Quem apoia fundamenta que
o abandono dessas regiões pelo governo estadual é histórico, pois o
projeto de criação das províncias de Tapajós e de Carajás data da “Car‑
ta Geographica do Vice­‑Reino do Brazil de 1763”, que buscava subdi‑
vidir a Capitania do Grão­‑Pará, de forma a aprimorar a gestão dessas
regiões.12 A centralização, para essa corrente, é sinônimo de estagna‑
ção. Como exemplo, a área que seria correspondente ao Estado de Ta‑
pajós tem o mesmo PIB há 30 anos. Há uma migração do oeste do Pará
para Manaus que totaliza 300 mil cidadãos desde a década de 1980,
destinada a trabalhar na Zona Franca, fato que sugere que a região que
se intitula de Tapajós não retém sua mão de obra e necessita
descentralizar­‑se de Belém para conduzir suas próprias decisões.
Para aqueles que são contra essa dissidência, o principal argumen‑
to pauta­‑se no fato de que, atualmente, há diversos pedidos de criação
de novos Estados, inclusive nas ricas unidades federadas na região Su‑
deste, como o Triângulo Mineiro em Minas Gerais, São Paulo do Sul
em São Paulo e o retorno da Guanabara, na qualidade de Estado, no
Rio de Janeiro, de forma que qualquer criação de novos Estados for‑
çaria, obrigatoriamente, a uma reformulação geopolítica nacional.

12
O deputado Giovanni Queiroz (PDT-PA) chegou a demonstrar que o
desmembramento de Goiás, originando o Estado do Tocantins na região
Norte, proporcionou crescimento de 155% do PIB no período de 1988
a 2006 para os dois Estados, enquanto o crescimento registrado no país
foi de 58% do PIB. Essa proporção também teria sido percebida na di‑
visão entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

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Luiz Antonio Ugeda Sanches

Há relevante preocupação acerca dos gastos públicos, principalmente


com a instituição de tribunais de contas, assembleias legislativas e do
Poder Executivo estadual, que em última análise onerariam a União.
Sob a ótica financeira, os novos Estados na região Norte, somados,
ficariam com 33% do PIB e com 29% da população do Pará. O au‑
mento agregado nos gastos públicos estaduais, oriundo na nova estru‑
tura, seria de 36,7%. Boueri,13 em estudo do Ipea, analisou a
viabilidade financeira da criação dessas unidades federadas.

Esse trabalho estimou o acréscimo de gastos oriundos da criação de


novas unidades federativas no Brasil. Em particular, avaliou o incremento
nos gastos públicos estaduais associados aos projetos de criação que tra‑
mitaram ou tramitam na Câmara dos Deputados entre 1998 e 2008.
O custo fixo para a manutenção de um novo estado na federação
brasileira foi estimado em R$ 832 milhões por ano. Foi detectado tam‑
bém que os custos de manutenção dos estados, expressos pelo gasto pú‑
blico estadual, crescem com a população e com a produção econômica da
unidade. Foi estimado que cada habitante acresce R$ 564,69 ao gasto pú‑
blico estadual e que cada real de produção, ou seja, de PIB estadual, eleva
tal gasto em 7,5 centavos de real. Todos esses números foram obtidos a
partir de estimativas que levaram em conta os dados observados em 2005.
O número de municípios existentes nos estados e a área territorial
do mesmo não apresentaram correlação significativa com o total de
gastos estaduais observados. As simulações realizadas mostraram que
muitas das proposições de novos estados carecem de fundamentação
econômica, uma vez que os gastos estimados para alguns dos estados
propostos superam o próprio PIB do estado a ser criado. Sugere­‑se
que os novos projetos para a criação de novos estados incluam avalia‑
ções econômico­‑financeiras das consequências das proposições, de
forma que os legisladores possam ter ideias mais claras sobre as pro‑
postas em tramitação.

13
BOUERI, Rogério. Custos de funcionamento das unidades federativas brasilei-
ras e suas implicações sobre a criação de novos estados. Texto para Discussão
n. 1.367. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, dez.
2008. p. 25.

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Curso de Direito da Energia

A área equivalente ao Estado de Tapajós corresponde a mais da


metade do atual Estado do Pará, sendo que o Estado de Carajás, com
área geográfica um pouco maior que a Inglaterra, seria fundado com a
maior jazida de minério de ferro do mundo e com a terceira maior hi‑
drelétrica – Tucuruí. Todavia, os interesses até então locais, quando
muito regionais, encontram na questão energética razões mais que su‑
ficientes para nacionalizar seus pleitos.
Sob a ótica geojurídica, em que pese a Constituição Paraense pre‑
ver mecanismos de organização regional,14 a ausência de gestão do ter‑
ritório possibilitou perpetuar alguns Municípios com atuação, no
mínimo, excêntrica. O Município de Altamira, na região sudoeste do
Estado do Pará, integrando área que pleiteia se emancipar como Estado
de Tapajós, é considerado o maior Município do mundo em extensão

14
Capítulo IV – Da organização regional
Art. 50. A organização regional tem por objetivo:
I – o planejamento regionalizado para o desenvolvimento econômico e social;
II – a articulação, integração, desconcentração e descentralização dos diferentes
níveis de governo e das entidades da administração pública direta e indireta com
atuação na região;
III – a gestão adequada dos recursos naturais e a proteção ao meio ambiente;
IV – a integração do planejamento e da execução de funções públicas de interes‑
se comum;
V – a redução das desigualdades regionais e sociais;
VI – a participação da sociedade civil organizada no planejamento regional, bem
como na fiscalização dos serviços e funções públicas de interesse comum, na
forma da lei.
§ 1o A organização regional será regulamentada mediante lei complementar que,
dentre outras disposições, instituirá a regionalização administrativa e estabelece‑
rá seus limites, competências e sedes.
§ 2o O Estado poderá, mediante lei complementar, instituir regiões metropolita‑
nas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por grupamentos de
Municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução
de funções públicas de interesse comum.
§ 3o Os Municípios que integrarem grupamentos previstos neste artigo, não per‑
derão nem terão limitada sua autonomia política, financeira e administrativa.

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territorial. Com quase 160 mil m2, é maior que toda a Grécia e que os
Estados do Ceará e o do Acre. Esse Município, cortado pela rodovia
Transamazônica, é considerado o local onde inicia a “volta grande do
Xingu”, trecho de grande sinuosidade do rio Xingu no qual será cons‑
truída, dentre outras, a hidrelétrica de Belo Monte. Coincidentemente,
o rio Xingu é considerado a grande divisa entre o Estado de Tapajós, à
esquerda, o Estado do Pará e de Carajás, à direita.
Nessa circunstância reside a federalização do interesse público em
emancipar Santarém e Marabá, transformando­‑as em capitais estaduais.
Por passar a separar dois Estados, o aproveitamento do rio Xingu, e de
seus afluentes, dependendo dos métodos a serem fixados para demar‑
car as divisas, deixa de ser estadual e, por conseguinte, passa a atender
somente aos requisitos ambientais e tributários federais. Os plebiscitos
para emancipação devem ocorrer até 2012.

6.6 Energias alternativas e a expansão da geração:


a questão indígena e a nuclear
A geração de energia elétrica encontra no início do século XXI
alguns paradigmas sociais que, se não são exatamente novos, certa‑
mente terão suas discussões intensificadas por conta da demanda cres‑
cente por energia, que impõe a criação de instrumentos jurídicos
distintos para as respectivas políticas públicas. O desenvolvimento de
energias alternativas, fato que levará a uma crescente, e inevitável, in‑
serção da variável social no setor energético, é apenas a faceta mais
visível dessa necessidade.
Alguns efeitos produzidos pelo Proinfa15 podem ser identificados
como políticas públicas eficazes para a industrialização brasileira no
tocante aos componentes para geração eólica, graças a imposições le‑
gais referentes a índices de nacionalização de equipamentos, que cul‑
minaram no reforço do sistema e no aumento de inventários de quedas

15
Mais informações no item 5.2.2, b.

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Curso de Direito da Energia

d’água, principalmente em aproveitamentos antes considerados econo‑


micamente inviáveis. Há inúmeras discussões sobre como aproveitar as
energias tidas como alternativas, que passa pela necessidade de se de‑
senvolver política pública para proliferar a matriz fotovoltaica, bem
como para aprofundar os estudos geotérmicos no Brasil. Todavia, a
demanda por energia provoca ao menos duas intensas discussões quan‑
do projetada no território nacional: a indígena e a nuclear.
Em que pese as questões terem como fundo importantes intersec‑
ções com os princípios de Direito Ambiental, suas consequências são
distintas, uma vez que aquela trata, em geral, de questões coletivas per‑
tinentes à autodeterminação dos povos, sendo esta decorrente de direi‑
to difuso sob os impactos de uma possível falha na cadeia produtiva
que possibilite vazamento radioativo.
No que tange à questão indígena, há duas pretensões resistidas
fundamentais para se elucidar a questão: a forte ligação dos indígenas
com a terra e seus recursos naturais, que a utilizam como a matriz de
seu desenvolvimento cultural, e a impossibilidade de se criar uma hi‑
drelétrica sem que haja efeitos colaterais no conjunto da bacia hidro‑
gráfica. Para a cultura ocidental, esses danos são frequentemente
considerados marginais, pois o ganho de escala obtido com o desen‑
volvimento energético nacional compensa eventuais prejuízos locais,
que passam a ser tratados como objeto de iniciativas ambientais com‑
pensatórias altamente reguladas pelos órgãos competentes.
Por seu turno, o mesmo entendimento não costuma encontrar
respaldo nos povos indígenas inseridos naquela região. Por pressupor
uma matriz cultural distinta da ocidental, bem como conceber uma
escala diferente daquela verificada pelo setor elétrico, que observa o
suprimento energético no país enquanto uma totalidade, é comum
que povos indígenas compreendam empreendimentos hidrelétricos
como uma verdadeira violência ao meio ambiente de seu lugar de con‑
vívio e, por conseguinte, às suas culturas de valorização da terra e dos
recursos naturais.

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Essas divergências acabam por produzir assimetrias de entendi‑


mento sobre qual é o modelo que deve preponderar para aquela situa­
ção concreta. Existe uma enorme lacuna cultural entre as pretensões
ocidentais e indígenas, que muitas vezes beiram situações caricatas. É
possível encontrar registros de técnicos da Eletrobras explicando
como mitigariam o impacto na piracema de determinada hidrelétrica
por intermédio da técnica de “escada para peixe” e índios questiona‑
rem exaltados a solução apresentada, afirmando que “peixes não so‑
bem escadas”.
Nesse choque civilizatório, de uma cultura intensiva em terras na‑
turais e outra intensiva em energia e em terras agriculturadas, a Consti‑
tuição Federal e as distintas escalas acabam definindo a preponderância
do interesse público.
Em reunião plenária de 19 de março de 2009, o ministro do Supre‑
mo Tribunal Federal, Menezes Direito, declarou constitucional a de‑
marcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, no Estado de
Roraima e em faixa de fronteira. Após realizar diversos esforços inter‑
disciplinares, chegando a afirmar que a área indígena não é definida ape‑
nas pelo lugar que os índios ocupam, mas condicionada por fatores
geográficos, econômicos e ecológicos, bem como ao entender a cultura
indígena como intensiva em terras naturais. Ao utilizar o sociólogo
Darcy Ribeiro16 como base para essa fundamentação, o ministro Mene‑
zes Direito enunciou 19 pontos que apontam para a regulamentação do
§ 3o do art. 231 da Constituição Federal referentes à pesquisa e lavra
de riquezas minerais e à exploração de potenciais energéticos, além de
questões envolvendo a soberania nacional. Pela importância da decisão,
bem como pela fixação de um regime jurídico para exploração mineral
em terras indígenas via Judiciário, passamos a transcrevê­‑los a seguir:

16
Há a citação da obra A política indigenista brasileira quando o ministro Menezes
Direito explana que “o índio é ontologicamente terrâneo. É um ser de sua terra.
A posse da terra é essencial à sua sobrevivência”.

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(i) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existen‑
tes nas terras indígenas (art. 231, § 2o, da Constituição Fede‑
ral) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o
art. 231, § 6o, da Constituição, relevante interesse público da
União, na forma de lei complementar;
(ii) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de re‑
cursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá
sempre de autorização do Congresso Nacional;
(iii) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das ri‑
quezas minerais, que dependerá sempre de autorização do
Congresso Nacional, assegurando­‑se­‑lhes a participação
nos resultados da lavra, na forma da lei;
(iv) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a fais‑
cação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra
garimpeira;
(v) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da políti‑
ca de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e pos‑
tos militares e demais intervenções militares, a expansão
estratégica da malha viária, a exploração de alternativas ener‑
géticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de
cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Minis‑
tério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão im‑
plementados independentemente de consulta às comunidades
indígenas envolvidas ou à Funai;
(vi) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área
indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se
dará independentemente de consulta às comunidades indí‑
genas envolvidas ou à Funai;
(vii) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União
Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação,
estradas e vias de transporte, além das construções necessá‑
rias à prestação de serviços públicos pela União, especial‑
mente os de saúde e educação;

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(viii) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de con‑


servação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade;
(ix) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
responderá pela administração da área da unidade de conser‑
vação também afetada pela terra indígena com a participação
das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando­
‑se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, po‑
dendo para tanto contar com a consultoria da Funai;
(x) o trânsito de visitantes e pesquisadores não índios deve ser
admitido na área afetada à unidade de conservação nos horá‑
rios e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade;
(xi) devem ser admitidos o ingresso, o trânsito e a permanência
de não índios no restante da área da terra indígena, observa‑
das as condições estabelecidas pela Funai;
(xii) o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios não
pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias
de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;
(xiii) a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza tam‑
bém não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização
das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão
de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instala‑
ções colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos
expressamente da homologação, ou não;
(xiv) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento
ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno
exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade in‑
dígena ou pelos índios (art. 231, § 2o, Constituição Federal,
c/c art. 18, caput, Lei n. 6.001/1973);
(xv) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha
aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de

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caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade


agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2o, Constituição Fede‑
ral, c/c art. 18, § 1o, Lei n. 6.001/1973);
(xvi) as terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades
indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das
utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o dis‑
posto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3o, da CR/88, bem como a
renda indígena (art. 43 da Lei n. 6.001/1973), gozam de plena
imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer
impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros;
(xvii) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;
(xviii) os direitos dos índios relacionados às suas terras são impres‑
critíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4o,
CR/88); e
(xix) é assegurada a participação dos entes federados no procedi‑
mento administrativo de demarcação das terras indígenas,
encravadas em seus territórios, observada a fase em que se
encontrar o procedimento.
Essa decisão transitada em julgado contribui para clarificar a atua‑
ção do setor energético em reservas indígenas, uma vez que dissocia o
usufruto dos índios do aproveitamento de recursos hídricos, dos po‑
tenciais energéticos e da pesquisa e lavra das riquezas minerais, que
dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, que por
sua vez delegou às agências reguladoras as respectivas funções em
energia elétrica, gás e petróleo. Ainda não há registro, em abstrato, de
outorgas em reservas indígenas concedidas pela Aneel ou pela ANP,
tampouco convênio junto à Funai ou ao Instituto Chico Mendes para
discriminar como serão exploradas suas respectivas atividades em ter‑
ras indígenas.
Outra questão sensível é aquela atinente aos minerais radioativos.
Desde a edição da Lei n. 1.310, de 15 de janeiro de 1951, que criou o
Conselho Nacional de Pesquisas – CNPq com forte viés de desenvol‑

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vimento de tecnologia nuclear, inúmeras iniciativas17 foram tomadas


no sentido de conferir ao Brasil independência tecnológica na matéria.
Ao inaugurar, em Uberlândia, o Complexo Hidrelétrico Amador
Aguiar II em maio de 2007, o presidente Lula foi enfático ao defender
a expansão da matriz energética brasileira. Na ocasião, afirmou que o
país tem duas alternativas concretas: ou se fazem hidrelétricas, ou o país
entrará em uma espécie de “era da energia nuclear”. Um ano depois, com
as usinas do rio Madeira leiloadas, o governo indicava naquele mo‑
mento que a solução hidrelétrica e a nucleotérmica não são excluden‑
tes. Nesse sentido, foi criado o Comitê de Desenvolvimento do
Programa Nuclear Brasileiro, com a tarefa de delinear as atividades
nucleares no país. A energia nuclear, que em 1970 tinha uma participa‑
ção de 0,1% na produção elétrica mundial, passou a ser em meados dos
anos 1990 a terceira fonte de geração mais importante do mundo, com
17% da produção global. No Brasil, o complexo termonuclear de Angra
dos Reis representa 2,2% da capacidade instalada.
Há perspectivas para a expansão dessa matriz no Brasil, uma vez
que: (i) existe no subsolo brasileiro algumas das maiores reservas de
urânio do mundo: (ii) o país tem o domínio completo do enriqueci‑
mento desse minério; e (iii) o país é um dos poucos que vetam, consti‑
tucionalmente, o uso nuclear para fins não pacíficos.
Japão e França utilizam de forma intensiva a energia nuclear. Ar‑
gentina e Inglaterra recentemente decidiram enveredar por esse cami‑
nho. O mundo nuclear já é multipolar. Assim, o projeto nuclear
brasileiro precisa deixar de ser estritamente um anseio geopolítico para
se inserir na agenda energética.
Para tanto, o Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear
Brasileiro tem buscado promover uma verdadeira reengenharia na go‑
vernança dos órgãos do setor elétrico e da indústria nuclear. Por exem‑

17
Para mais informações, ver em 4.6, “A questão nuclear: da bomba à eletricida‑
de.” O CNPq e a CNEM.

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plo, deve ser ponderado qual é o papel que se deseja para a


Eletronuclear, empresa de sociedade mista que tem como finalidade
operar e construir as usinas termonucleares do país. Ela é controlada
pela Eletrobras e, por conseguinte, está vinculada ao Ministério de Mi‑
nas e Energia. Por outro lado, existe a Indústrias Nucleares Brasileiras
– INB, estatal controlada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Sua
função é explorar as reservas de urânio do país e produzir o combustí‑
vel usado nas usinas de Angra.
Paralelamente, é imprescindível uma harmonização de competên‑
cias entre o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, a
Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel e a Comissão Nacional
de Energia Nuclear – CNEN. Devem­‑se estipular, dentre outras coi‑
sas, os limites da fiscalização, da regulação, da criação de índices técni‑
cos de qualidade.
A forma de remuneração tarifária também precisa ser equaciona‑
da. Os empreendimentos termonucleares têm uma característica tér‑
mica, que a aproxima daquelas usinas que utilizam o gás como
energético, mesclada com um monopólio estatal do manejo do urânio,
fato que impõe um ordenamento determinativo por parte do Poder
Concedente. Essa peculiaridade acarreta uma dificuldade para fixar
preço para essa energia. Atualmente, a remuneração da energia da Ele‑
tronuclear é realizada mediante contrato de compra e venda de energia
firmado com Furnas, que está sujeito a revisão tarifária anual.
Segundo a Empresa de Energia Elétrica – EPE, o crescimento aci‑
ma da média do nordeste brasileiro impõe a busca de um parque eólico
e nucleotérmico para garantir a oferta energética. A Eletronuclear, em‑
presa responsável pela construção e operação de usinas termonucleares
no país, tem realizado estudos preliminares, que apontaram a região do
médio rio São Francisco como a melhor opção técnica para instalação
do parque nucleotérmico nordestino. Repousam a favor dessa iniciati‑
va os seguintes argumentos: (i) a possibilidade de regulação dos reser‑
vatórios do rio São Francisco; (ii) o aumento da segurança energética

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dos Estados nordestinos; (iii) a alocação de royalties diretos para o ser‑


tão nordestino da produção nucleotérmica; (iv) o estímulo ao desen‑
volvimento regional, com relevantes impactos na economia da região;
e (v) o fortalecimento do mercado de urânio no Brasil.
Por sua vez, os argumentos contrários são igualmente contunden‑
tes e podem ser resumidos nos seguintes termos: (i) a hipótese de o
Estado brasileiro ainda não ter a estrutura necessária para garantir a
segurança das atividades e instalações nucleares; (ii) o fato de a criação
de um parque nucleotérmico estar na contramão das políticas energé‑
ticas mundiais, que têm buscado desenvolver energias sustentáveis; e
(iii) a diminuta margem para erro da atividade nucleotérmica, uma vez
que qualquer vazamento radioativo provoca uma incomensurável ca‑
tástrofe ambiental.
A revisão do marco regulatório da mineração, incluindo aqueles
considerados estratégicos, como o urânio e o lítio, está prevista para
ocorrer na primeira metade do governo Rousseff e deverá trazer algu‑
mas elucidações sobre o papel do urânio em geral, incluindo seu em‑
prego na eletricidade.

6.7 Pré­‑sal e a Amazônia Azul: o petróleo em fronteira


marítima
Com o modelo de partilha posto legislativamente, bem como a
Criação da Pré­‑sal Petróleo S.A. – PPSA,18 o pré­‑sal encontra­‑se em
região de fronteira marítima. Tema ainda pouco debatido fora dos cír‑
culos militares, o mar territorial é, para alguns, uma mera criação do
direito, sem corresponder a uma noção geográfica, chegando a ser cha‑
mado de o “mar dos juristas”.19 Há impedimentos em se concordar
com essa noção, pois o limite geográfico existe e está fixado pelo en‑

18
Temas abordados no item 5.2.3, e.
19
MELLO, C. A. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. 2 v. p, 1104.

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contro do oceano com a superfície litorânea, ou seja, corresponde à


projeção geográfica mar adentro da porção territorial de determinado
Estado que se encontra acima do nível do mar.
Essa projeção ganha diferentes distâncias ao longo do tempo.
Os países costeiros, historicamente, aceitaram a existência do mar das
3 milhas (5.556 km) marítimas como espaço para o exercício de so‑
berania pelos países costeiros. Essa distância correspondia ao alcance
dos canhões no século XIX. Era consenso que, ao estar fora do alcance
armamentista dos Estados costeiros, o mar seria de todos.
Com o uso intensivo dos mares para o comércio internacional, e o
conseguinte desenvolvimento da indústria bélica com sistema de arti‑
lharia mais eficaz, expandiram­‑se as discussões sobre o tema. No que
tange aos recursos naturais marítimos, foi firmada, em 10 de dezembro
de 1982, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar –
CNUDM, que estabelece o conceito de linhas de base a partir das quais
passam a ser contados: o mar territorial (até 12 milhas náuticas), a zona
contígua (até 24 milhas náuticas), a zona econômica exclusiva (200 mi‑
lhas náuticas) e o limite exterior da plataforma continental além das
200 milhas, bem como os critérios para o delineamento do limite exte‑
rior da plataforma.

Em seu artigo 76, a CNUDM estabelece: “A plataforma conti‑


nental de um Estado costeiro compreende o leito e o subsolo das áreas
submarinas que se estendem além do seu mar territorial, em toda a
extensão do prolongamento natural do seu território terrestre, até ao
bordo exterior da margem continental, ou até uma distância de 200
milhas marítimas das linhas de base, a partir das quais se mede a largu‑
ra do mar territorial, nos casos em que o bordo exterior da margem
continental não atinja essa distância.”
[...] Entretanto, a definição para plataforma continental apresen‑
tada na CNUDM estabelece um novo conceito, revestindo­‑se de um
entendimento jurídico ou legal. Os Estados Costeiros podem apre‑
sentar suas propostas de limite exterior até 13 de maio de 2009, sendo
que o Brasil depositou sua proposta, junto ao Secretário da Organiza‑

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ção das Nações Unidas, em 17 de maio de 2004. Assim, os limites das


águas jurisdicionais brasileiras, consagrados em tratados multilaterais,
garantem direitos econômicos, porém com a contrapartida dos deve‑
res e das responsabilidades de natureza política, ambiental e de segu‑
rança pública sobre uma área de cerca de 4,4 milhões de quilômetros
quadrados, que equivalem à metade da superfície do território nacio‑
nal em terra firme. 20

O planejamento também se faz presente ao descrever o território


marítimo. O Plano de Levantamento da Plataforma Continental Bra‑
sileira – Leplac é um programa do Governo brasileiro, instituído pelo
Decreto n. 98.145, de 15 de setembro de 1989, e tem por finalidade a
determinação da área oceânica compreendida além da zona econômica
exclusiva, na qual o Brasil exercerá os direitos exclusivos de soberania
para a exploração e o aproveitamento dos recursos naturais do leito e
do subsolo de sua plataforma continental, conforme estabelecido na
CNUDM. Por sua vez, a Lei n. 8.617, de 4 de janeiro de 1993, instituiu
as larguras, contadas a partir das linhas de base, do Mar Territorial, da
Zona Contígua e da Zona Econômica Exclusiva.
Todavia, o conceito de território marítimo tem sofrido grandes
transformações nos últimos anos. Vive­‑se em uma era de fortes mani‑
festações nacionalistas e de expansão dos Estados nacionais, de uma
corrida territorial marítima. Com base na CNUDM, aliado ao aqueci‑
mento global, a Rússia fincou sua bandeira no fundo do polo Norte,
em degelo.21 O Brasil pretende aumentar seu território em torno de

20
TORRES, L. C.; FERREIRA, H. S. Amazônia azul: a fronteira brasileira no
mar. CAAML – Centro de Adestramento Almirante Marques de Leão. Dispo‑
nível em: <http://www.mar.mil.br/caaml/index.htm>. Acesso em: 25 ago. 2009.
21
Os russos lideram uma corrida no norte do planeta, como parte de uma estraté‑
gia de obter acesso a recursos naturais e manter o controle perante o Oceano
Ártico e o Polo Norte. O mais prestigiado explorador da Rússia, Artur Chilin‑
garov, afirmou que “o Ártico é russo”, com base na Convenção das Nações Uni‑
das sobre o Direito do Mar, assinada em 1982. Nesse sentido, houve a
compreensão do maior país em extensão territorial do mundo que o Polo Norte

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50%, com o conceito de “Amazônia Azul”, ou seja, obter o prolonga‑


mento de seu território em até 350 milhas marítimas por toda a costa.
Isso implica em uma premente necessidade de planejamento para mo‑
nitorar a “Amazônia azul”, pois decorre do interesse nacional, uma
vez que a vigilância desse território tem preocupado o Ministério da
Defesa e o Itamaraty,22 principalmente decorrente das manifestações
territoriais nos polos23 do globo terrestre.

nada mais é do que uma extensão da plataforma do litoral russo. A indústria está
animada com o derretimento rápido da calota polar no Ártico, pois facilitaria a
exploração das reservas de gás e petróleo, abriria ao mundo novas rotas maríti‑
mas e possibilitaria à Rússia explorar toda sua costa ártica. Isso vem aliado ao
ressurgimento do nacionalismo russo no pós-Guerra Fria.
22
Em um momento histórico em que os norte-americanos reativaram a Quarta
Frota para monitorar a região do Atlântico Sul, as questões que envolvem a An‑
tártida, a corrida armamentista venezuelana e as jazidas de petróleo e gás naturais
descobertas a trezentos quilômetros da costa do Brasil, e do maior núcleo urba‑
no da América Latina, existe o consenso de que as águas do Atlântico Sul passa‑
ram a ser um dos cenários de maior potencial conflitivo no planeta.
23
Existem duas formas de se dividirem as regiões polares. A primeira, o “método
da linha média”, dividiria as águas polares entre os países em consonância com a
extensão do litoral mais próximo da região. Se essa metodologia for aplicada ao
Ártico, o Polo Norte seria da Dinamarca, mas o Canadá teria enormes ganhos
territoriais. A segunda forma seria o “método do setor”, que fixa a centralidade
no polo, de forma a firmar fronteiras sob linhas longitudinais. Isso causaria per‑
das ao Canadá e ganhos à Noruega e à Rússia. O grande problema referente à
convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar é que os Estados Unidos
não a ratificaram, sob o fundamento de que os senadores não desejaram aceitar
restrições internacionais às ações daquele país. No lado de baixo do Equador, as
recentes crises em diversos países africanos, as incursões dos chineses na África,
a descoberta de grandes jazidas de gás e petróleo no litoral do Brasil, a questão
amazônica, a questão das ilhas Falklands e a exploração da Antártida (fato que
acarretaria na revisão do Tratado da Antártida é o documento assinado em 1o de
dezembro de 1959 pelos países que reclamavam a posse de partes do continente
da Antártica, em que se comprometem a suspender suas pretensões por período
indefinido) faz com que diversos especialistas militares exponham que existe a
possibilidade de uma guerra acontecer no Atlântico Sul no século XXI. Tais dis‑
cussões ainda estão muito incipientes na sociedade brasileira e no hemisfério sul.

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No tocante ao conceito de Amazônia Azul, expressão com origem


na marinha brasileira para designar a riqueza do território marítimo
brasileiro, Vidigal24 explana com rica síntese as preocupações atinentes
a esse rincão nacional:

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar torna a


invocar de maneira moderna o conceito de uti possidetis, que foi tão
precioso para o Brasil consolidar a sua configuração territorial além­
‑Tordesilhas. É dever sagrado para nossa geração conhecer e desenvol‑
ver as capacidades necessárias para o pleno exercício dos direitos sobre
a zona econômica exclusiva e a plataforma continental, que nos cabem
pelos tratados internacionais vigentes.
São estas áreas que caracterizam o objeto da Amazônia Azul,
uma expressão­‑código, cuja aceitação imediata identifica a determina‑
ção brasileira de festejar e acrescentar ao país as riquezas de quase
4,5 milhões de quilômetros quadrados, os quais representam um acrés‑
cimo de cerca de cinquenta por cento de sua extensão territorial.
Estamos atuando de forma competente no campo diplomático,
no desenvolvimento dos conhecimentos científicos sobre o mar e na
construção da capacidade tecnológica, necessários ao uso e à explora‑
ção do mar que nos pertence. Temos que atuar no transporte maríti‑
mo de cargas e passageiros, em turismo e lazer no mar, no uso de ilhas
e rochedos.

O sistema jurídico afeito à exploração energética no mar está, atual‑


mente, centrado nas competências da marinha brasileira. Nos termos

Importante salientar que as reivindicações argentina, britânica e chilena sobre‑


põem-se. Por sua vez, o Brasil, a Espanha, o Peru e a África do Sul são países que
participam como membros consultivos do Tratado da Antártida. Esses países
manifestaram interesse no continente antártico territorial mas não podem expôr
seus motivos e alegações durante a validade do Tratado. Por sua vez, os Estados
Unidos e a Rússia não reconhecem nenhuma reivindicação territorial no conti‑
nente gelado, de forma que se resguardam o direito de realizar suas próprias
reivindicações.
24
VIDIGAL, Armando Amorim Ferreira et al. Amazônia azul: o mar que nos
pertence. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 30-31.

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da Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999, que dispõe sobre as


normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças
Armadas, está expresso no art. 17 que cabe à Marinha, como atribui‑
ções subsidiárias particulares, dentre outras: (i) implementar e fiscali‑
zar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas
interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo,
federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competên‑
cias específicas; (ii) orientar e controlar a Marinha Mercante e suas ati‑
vidades correlatas, no que interessa à defesa nacional; (iii) prover a
segurança da navegação aquaviária; e (iv) contribuir para a formulação
e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar. A autori‑
dade competente para tanto é o Comandante da Marinha, designado
como “Autoridade Marítima”.
Logo, mais do que explorar os hidrocarbonetos submarinos, prin‑
cipalmente após as grandes descobertas do campo de Tupi, o Brasil
precisará criar um sistema de gestão do mar que concilie as premissas
militares daquelas civis, bem como indicar quais serão as previsões or‑
çamentárias para o exercício da segurança das instalações do pré­‑sal.

6.8 O Geodireito e o planejamento energético


Imaginem uma quadra poliesportiva presente em qualquer clube
ou condomínio de classe média no Brasil. Nesse espaço, estão sobre‑
postas linhas que delimitam as regras do jogo de futebol de salão, bas‑
quete, vôlei, handebol e tênis. Há uma trave e um cesto em cada uma
das duas extremidades da quadra. Coloquem­‑se os atletas para jogar
todos os esportes que têm as respectivas linhas projetadas no chão ao
mesmo tempo. Tudo isso submetido aos respectivos árbitros, cada qual
com competências distintas.
O resultado dessa catarse seria no mínimo curioso. Cada um dos
esportistas tentaria fazer prevalecer seu esporte em detrimento dos de‑
mais, valorizar seus respectivos esportes pela alta especialidade de suas
regras ou pelo simples uso da força, trombariam em quadra, trocariam

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as bolas, haveria mistura de regras, de cores dos uniformes. E os resul‑


tados seriam altamente previsíveis: jogadores contundidos, erros nas
contagens de pontos, aumento da possibilidade de ocorrência de joga‑
das irregulares, enfim, a total inviabilidade da prática concomitante dos
esportes em um mesmo espaço.
O exemplo dessa parábola mal alinhavada, se transportado para a
realidade geojurídica brasileira, ainda seria simples. Isso porque o Bra‑
sil, este enorme espaço de conflitos de interesses, tem inúmeros recor‑
tes em seu território (superfície, subterrâneo, marítimo, aéreo e
espacial), sejam geográficos (internacional, nacional, regional e local),
sejam jurídicos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), sejam
setoriais (energia, saneamento, transportes, telecomunicações, ambien‑
tal, dentre outros).
Logo, o Geodireito, compreendido como a técnica de se empregar
os conhecimentos geocientíficos formal e materialmente no Direito,
encontra respaldo constitucional nas competências da União para or‑
ganizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e
cartografia de âmbito nacional (art. 21, XV, CF), sendo privativo legis‑
lar sobre sistema estatístico, cartográfico e geológico (art. 22, XVIII,
CF) e sendo facultado articular sua ação em um mesmo complexo geo‑
econômico para reduzir desigualdades regionais (art. 43, CF).
A proposta interdisciplinar entre as Geociências e o Direito identi‑
fica Kant como o filósofo que dialoga com as duas disciplinas, estabele‑
cendo critérios mínimos de convergência, por fundamentar a opção
formalista do Direito enquanto ciência e a região como substrato da
história da humanidade. Milton Santos pode ser apontado como um
bacharel em Direito que, enquanto geógrafo, reforçou a noção de pro‑
cesso à Geografia enquanto “filosofia das técnicas”, demonstrando que
a noção de ciência é uma construção, e não algo existente a priori. Que
existe um rol de autores discutindo, de forma difusa, essa interdiscipli‑
naridade, demonstrando que há indícios de que o estabelecimento de
critérios mínimos de contato, mais do que uma possibilidade, tornou­‑se

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uma necessidade. E que há um conjunto de normas na história do


ordenamento jurídico brasileiro que, se analisadas em apartado da
devida perspectiva geocientífica, perdem sentido e eficácia. Assim, há
a busca de se identificar a divisão do trabalho projetada no espaço,
bem como o conjunto normativo que rege essas relações. Em outras
palavras, há a busca da geograficidade25 decorrente da totalidade de
relações e interesses que a demanda energética produz na cadeia pro‑
dutiva da sociedade.
Esse entendimento, cumulado à criação do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE26 em 1938, permitiu que o presidente
Getúlio Vargas, então no regime conhecido como Estado Novo, se uti‑
lizasse de conceitos geográficos para criar um novo paradigma no Bra‑
sil, de planejamento com base no modelo fordista de produção
projetado no território nacional, em um momento que teve como tôni‑
ca a estruturação da Administração Pública. Por intermédio do
Decreto­‑Lei n. 311, de 1938, concebeu uma política regional para uti‑
lizar como instrumento de manuseio de dados estatísticos, que culmi‑
nou na criação da Chesf, em 1945, como forma de desenvolver a bacia
do rio São Francisco.27
Com o advento da Constituição Federal de 1988, bem como da
Revolução Tecnológica que se consolidou na década de 1990 e em seu
limite transformou: (i) a cartografia em um complexo projeto computa‑

25
A “geograficidade” deve ser entendida enquanto a realização de ordenamento
territorial mediante conjunto de normas. A concepção empregada é de que a
Geografia pode – e deve – ser compreendida como conteúdo formal do Direito,
incluindo suas dimensões de estudo (principalmente o conceito de lugar, escala,
território e região). Para mais informações, ver UGEDA SANCHES, Luiz An‑
tonio. O geodireito enquanto identificação do conteúdo da geografia no direito:
o caso do setor de energia como propulsor de desenvolvimento regional. 2010.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – PUC/SP, São Paulo.
26
O IBGE foi criado enquanto fundação pública da administração federal brasilei‑
ra após a transformação do Instituto Nacional de Estatística, criado em 1934.
27
Para aprofundamento da questão, ver os itens 4 e 4.2.

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cional; (ii) o sensoriamento remoto em uma poderosa ferramenta de


processamento de imagens; (iii) a ciência da computação em um meio
de gerenciamento de banco de dados com um volume de informações
inimaginável antes do advento da Internet; e (iv) a Geografia como “fi‑
losofia das técnicas”, sintetizando uma verdadeira engenharia de pro‑
dução espacial; não se concebe, no século XXI, desenvolvimento
ambiental, agrícola, geológico, ecológico, em infraestrutura, urbano ou
regional sem as técnicas do Sistema de Informações Geográficas – SIG,
que por sua vez devem ser traduzidas em políticas públicas. E essa pre‑
missa ganha alta relevância em ambiente de planejamento energético.
As técnicas do SIG têm inúmeras aplicações no setor energético,
que podem servir desde instrumento de gestão dos postes das distri‑
buidoras de energia elétrica, para efeitos de contabilização do compar‑
tilhamento de infraestrutura, até o monitoramento por satélite das
reservas do pré­‑sal. Essas ações têm em comum a enorme contribuição
ao planejamento setorial, atualmente capitaneada pela Empresa de Pes‑
quisas Energéticas – EPE, e que precisam do Direito para se transfor‑
mar em políticas públicas.
O setor energético tem se utilizado, de forma crescente, dessa re‑
percussão tecnológica para a construção de políticas públicas. Como
exemplo, o setor elétrico tem se utilizado do SIG para: (i) produzir
uma renovada gestão de ativos de Geração e Transmissão, ao facilitar a
tomada de decisões para alienações, controle de invasões, pagamento
de tributos, reservas de patrimônio ambiental, definição de limites pa‑
trimoniais, cadastro de confrontantes do patrimônio e os efeitos ao
meio ambiente e à sociedade; (ii) o combate a ocupações irregulares,
contabilização de ativos, preservação de servidão administrativa, pre‑
servação do patrimônio (furto, fraude e inadimplência), dentre outros,
têm demonstrado que o controle geográfico evita que as concessioná‑
rias sejam autuadas pelos órgãos públicos; (iii) a obrigatoriedade de
georreferenciar imóveis rurais (Lei n. 10.267, de 2001) tem impacto
direto nas barragens hidrelétricas e na produção de biomassa; e (iv) a

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Aneel tem progressivamente se utilizado do SIG para promover polí‑


ticas públicas.
Neste último quesito, a Resolução Normativa Aneel n. 395, de 15 de
dezembro de 2009, que aprovou a Revisão 1 dos Procedimentos de Dis‑
tribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional – Prodist,
inclui no módulo de planejamento da expansão do sistema de distri‑
buição a obrigatoriedade de as distribuidoras manterem, em Sistema de
Informações Geográficas – SIG, as informações de parâmetros elétri‑
cos, estruturais e de topologia dos sistemas de distribuição de alta, mé‑
dia e baixa tensão, bem como as informações de todos os acessantes.
A formatação dos dados geoprocessados passou a ser usada pela
Aneel para dar suporte às atividades de regulação e fiscalização, po‑
dendo a Agência fazer uso das informações para fins do processo de
revisão e reajuste tarifário e da fiscalização técnica e econômico­
‑financeira. No tocante ao módulo de planejamento da expansão do
sistema de distribuição, a distribuidora deve realizar estudos de previ‑
são da demanda, os quais devem ser compatíveis com os planos direto‑
res municipais e os planos regionais de desenvolvimento, quando
existirem. Logo, a própria Aneel indica a necessidade de se criarem
regras para a coexistência de regimes jurídicos distintos, incluindo as
competências municipais, fato que nos remonta ao conceito que justi‑
ficou a criação do IBGE, de se ter um grande planejamento do espaço
brasileiro com sistemas jurídicos de matrizes distintas mas que convi‑
vem harmonicamente. É a metáfora da quadra poliesportiva na prática.
Em que pesem os avanços do reconhecimento do SIG enquanto
política pública no setor energético, não haverá maiores aprofunda‑
mentos nesta frente se não se perceber o IBGE enquanto agente regu‑
lador do Sistema Geodésico Brasileiro, fato que impõe formas de
interlocucção com a Aneel e a ANP. As resoluções do IBGE, incluin‑
do: (i) RPR n. 1, de 2005, que caracteriza o Sistema Geodésico Brasi‑
leiro; (ii) RPR n. 001, de 2008, que padroniza os marcos geodésicos;
(iii) RPR n. 22, de 1983, que especifica as Normas Gerais para Levan‑

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tamentos Geodésicos; (iv) RPR n. 5, de 1993, que especifica as Normas


Gerais para Levantamentos; e (v) RPR n. 23, de 1989, que cria parâme‑
tros para transformação de Sistemas Geodésicos, culminam em um
verdadeiro sistema jurídico que deve ser mais frequentado pelos pro‑
fissionais que estudam o Direito da Energia, sob pena de ficarem
alheios na revolução da gestão pública que o setor passará ao longo do
século XXI.
Pode­‑se vislumbrar, em um futuro próximo, que o SIG tenha uma
função central no planejamento energético em geral e na expansão das
energias alternativas no Brasil em específico. Não é difícil perceber que
o Geodireito, enquanto ramo jurídico que estuda a alocação espacial
das políticas públicas, terá que ser aprofundado para se criar um SIG
eólico, como muitos países já dispõem inclusive em ambiente web e o
Brasil ainda não viabilizou, bem como um SIG solar, de forma a con‑
tabilizar a localidade e carga das placas alocadas no topo das edifica‑
ções das cidades brasileiras. Essas diretrizes trarão consigo relações
jurídicas que precisarão discernir os direitos e as obrigações das unida‑
des consumidoras, que também serão geradoras, decorrência natural
do desenvolvimento do smart grid. É o futuro que se avizinha e traz
consigo novos desafios de política pública.

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Conclusão

Tudo é energia, não importa a origem. Mas nem sempre


foi assim.
Essa repercussão tecnológica, quando implementada de
forma intensiva, produz relações jurídicas de grande comple‑
xidade. Uma hidrelétrica corta determinado rio para se apro‑
priar da queda d’água, de forma a produzir energia elétrica. Há
toda a remoção de populações ribeirinhas para outras localida‑
des, forçadas pelo chamado “interesse nacional”, que enuncia
a necessidade de aumentar a autonomia energética do país.
Toda a fauna e a flora local e regional acabam por sofrer inter‑
venção para comportar esse empreendimento. Servidões ad‑
ministrativas são fixadas em propriedade de particulares para
transportar a energia elétrica da geradora até a distribuidora
(ou consumidores finais). Municípios passam a receber royal-
ties por terem partes de suas terras alagadas, proprietários são
indenizados, até a construção de ilhas fluviais é avençada para
a exploração do pré­‑sal em alto­‑mar. Passa­‑se a construir ter‑
melétricas próximas a regiões metropolitanas, de forma a di‑
minuir os custos de transmissão de energia. O gás que ela
recebe, extraído do subsolo, pertence à União, sendo que após
o city gate sua distribuição passa a ser de competência estadual.

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Municípios começam a legislar para tornar obrigatório que instalações


edilícias contemplem o conceito de sustentabilidade e gerem parte da
energia que irão consumir.
Na toada desse verdadeiro rol de pretensões resistidas, o Brasil
projeta­‑se como uma das maiores potências energéticas mundiais. País
peculiar, se se confirmarem os planejamentos federais, em 2020 o Brasil
gerará eletricidade com mais de 2 mil km de distância entre a geração e
o consumo, explorará petróleo com mais de 7 km mar abaixo e terá a
mais diversificada matriz energética do mundo. Esses elementos po‑
dem credenciar o país como o grande líder energético do século XXI,
período que vem sendo denominado “pós­‑petróleo”.
O futuro aponta para a eletricidade como a força básica do de‑
senvolvimento humano. É grande a probabilidade de a astúcia desen‑
volvida para procurar petróleo no século XIX seja substituída, no
século XXI, pela criatividade em identificar diferentes formas de
produzir eletricidade com a melhor escala possível. Sob o manto da
sustentabilidade, o espírito empreendido pelo coronel Drake estará
nos profissionais que se dispuserem a encontrar formas de produzir
eletricidade das atividades mais inusitadas. Cozinhar, abrir uma tor‑
neira, dançar em uma casa noturna, pedalar, andar na esteira, enfim,
tudo que possa ser energia mecânica convertida em elétrica e, por
conseguinte, desenvolvimento.
Essa atividade, se eivada de espírito público, tem o poder de pro‑
porcionar verdadeiras revoluções na sociedade. Em última análise, a
produção de energia elétrica pode, por exemplo, erradicar o desempre‑
go, se houver uma política pública aliando saúde, produção elétrica e
redes inteligentes, de forma a criar condições regulatórias para que a
população, por exemplo, pedale, gere eletricidade e seja remunerada
por essa atividade. O mundo está prestes a verificar uma radicalização
do fator social na energia, de certa forma iniciada com a questão dos
biocombustíveis, mas que pode perfeitamente culminar na transforma‑
ção de calorias em quilowatts.

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Outro fator a ser acentuado é a percepção de que uma matriz


energética limpa, pautada na eletricidade, talvez seja uma das únicas
forças capazes de tornar sustentável o sistema capitalista. As externa‑
lidades deste – a poluição atmosférica e o lixo, para ficar apenas em
dois exemplos – sofreriam drástica redução pelo emprego intensivo
da eletricidade: o primeiro pela redução da utilização de hidrocarbo‑
netos na matriz, o segundo pela utilização como combustível energé‑
tico. Por outro lado, as tentativas de produção de um mercado
ambiental por meio do Protocolo de Quioto podem acabar se de‑
monstrando um instrumento datado, algo concebido em uma reali‑
dade em que o petróleo tinha um papel central, as cidades não eram
sustentáveis e a eletricidade não havia sido levada aos limites de suas
características sociais. Todavia, tudo isso será legítimo apenas se for
possível obter segurança técnica no fornecimento, sem o qual o siste‑
ma não se justifica.
As consequências desse período são claras. As empresas de petróleo
começam a fazer uma transição de imagem, avocando como especiali‑
zação energia, principalmente aquelas consideradas “limpas”. Empre‑
sas sucroalcooleiras começaram a adquirir tradicionais empresas de
distribuição de combustíveis, para verticalizar sua atividade econômica
e garantir o abastecimento do mercado de biocombustíveis. A Petrobras,
por sua vez, já é uma das cinco maiores geradoras de energia elétrica do
país. A Eletrobras se reestrutura societariamente e se internacionaliza.
O Brasil, por intermédio de políticas públicas, cria uma verdadeira di‑
visão de trabalho pautada no setor energético e agrícola, fato que pro‑
move uma intensa reestruturação do ordenamento geográfico do Brasil
e eleva o país à maior potência primária do mundo, simultaneamente
ao que a China promove no setor secundário (industrial) e a Índia no
terciário (prestação de serviços).
Nesse cenário de convergência energética, de um período pós­
‑petróleo em que praticamente tudo pode produzir eletricidade ao

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transformar energia mecânica em elétrica, passa a ser imperioso identi‑


ficar o modelo institucional que proporcionará este desenvolvimento,
bem como o regime jurídico que norteará esta realidade, com uma cla‑
ra epistemologia, de forma a justificar a edificação do Direito da Ener‑
gia como sistema jurídico autônomo.

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