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O "Egito esotérico" da imaginação ocidental

APOCALIPSE NOW
1 JUN 2019
CARLOS ORSI.

Pirâmides do Egito, na visão de Athanasius Kircher

A “sabedoria esotérica das pirâmides” e do Antigo Egito é um lugar-comum


em muito do discurso New Age que a gente encontra por aí. Só existe um
problema: essa “sabedoria” toda foi quase completamente inventada por
gregos e outros europeus, milhares de anos depois de as pirâmides terem
sido construídas.

"Os egípcios não eram um povo de mentalidade esotérica", escreve o


antropólogo e arqueólogo Paul Jordan em sua contribuição para o
livro Archaeological Fantasies. "Mesmo os rituais de Osíris eram bem
menos esotéricos que os mistérios de Elêusis dos gregos (...) O Livro dos
Mortos pode ser obscuro e fantástico, mas não é uma composição
esotérica".

A ideia do Egito Antigo como uma terra de mistérios e segredos


esotéricos, escondidos por trás de uma mitologia alegórica, a ser
interpretada por iniciados, é uma invenção tardia, surgida no período
posterior à conquista do país por Alexandre Magno, amplificada na Europa
da Renascença e, depois, na Era Vitoriana.

A causa principal desse espanto místico para com o Egito Antigo não é
difícil de entender: pirâmides! múmias! E, principalmente, os hieróglifos:
indecifráveis por séculos, até a descoberta da Pedra de Roseta em 1799 e
a tradução da escrita egípcia por Champollion, em 1822.
Durante a Idade Média e a Renascença, filósofos e alquimistas europeus
sonharam que aqueles desenhos ilegíveis escondiam revelações divinas,
enigmas esotéricos ou o segredo da transmutação dos metais. Por
exemplo, no século 17 o alquimista jesuíta Athanasius Kircher “traduziu” a
inscrição de um obelisco egípcio como uma longa série de instruções
místicas, incluindo:

“... mas desde que o poder benéfico do Espírito Polimorfo pode ser
impedido, de diversas maneiras, por poderes adversos, a tábua sagrada
Mophto-Mendesiana, que adquire a força úmida e a fertilidade do Nilo,
para que o fluxo de boas coisas aconteça sem impedimento, deve ser
usada como proteção...”

Hoje em dia, no mundo pós-Champollion, sabemos que a inscrição a que


Kircher se refere não é nada além de uma placa inaugural – afirmando que
o obelisco foi construído por ordem do faraó Ramsés II, para glória do
deus Hórus. Só. Nenhum Espírito Polimorfo ou “poder adverso” ali.

De fato, Kircher chutou tanta coisa errado que uma biografia refere-se a
ele como A Man of Misconceptions (“Um Homem de Ideias Equivocadas”,
em tradução livre). Hoje em dia, ele é respeitado pelo esforço que dedicou
ao estudo da Antiguidade Egípcia (há quem o considere o Pai da
Egiptologia), ainda que suas hipóteses estivessem, no geral, bem fora da
realidade. Ele acreditava que a civilização egípcia havia servido de base
para, entre outras, a chinesa, a japonesa e a asteca (colegas jesuítas já
haviam trazido notícias do México, que do ponto de vista europeu tinha
acabado de ser descoberto).

Mas enfim, quando, de posse da chave para a tradução correta dos


hieróglifos, egiptólogos sérios mostraram que boa parte das inscrições
tinham muito mais a ver com política, economia e adulação (do faraó ou
dos deuses), houve um bocado de gente concluindo que a fantasia dos
séculos anteriores era mais divertida e tapando os ouvidos.

Astrologia das pirâmides

Há algum tempo, no Facebook vi anunciada uma palestra sobre "o


significado astrológico das pirâmides do Egito".

Mas os signos do zodíaco, tal como os conhecemos hoje, só chegaram ao


Egito após a conquista da Dádiva do Nilo por Alexandre, lá por volta de
332 AEC. O mais famoso monumento egípcio a retratar temas
astrológicos, o zodíaco de Dendera (hoje preservado no Louvre) data do
primeiro século antes da Era Comum. Formas mais antigas de astrologia,
vindas da Mesopotâmia, começaram a penetrar a cultura egípcia no oitavo
século AEC.

Já os monumentos de Gizé – as três pirâmides principais e a Esfinge –


são muito mais antigos: datam de cerca de 2.500 AEC. Seria curioso saber
como a astrologia poderia ter influenciado a construção de monumentos
egípcios 2 mil anos antes de o povo egípcio ter contato com ela. No tempo
das pirâmides, os egípcios sequer tinham constelações compatíveis com
as do tradicional zodíaco astrológico.

Claro, isso não quer dizer que não haja


influências astronômicas discerníveis nas pirâmides. Em uma série de
artigos publicada na revista Sky & Telescope nos anos 90, o astrônomo
Edwin C. Krupp cita trabalhos anteriores que sugerem que aberturas
encontradas nas faces norte e sul da pirâmide de Quéops apontavam para
as posições de estrelas importantes na religião egípcia da época, e eram
passagens para que a alma do faraó pudesse comungar com os deuses
representados por esses astros.

A Esfinge é mais ou menos da mesma época que as três pirâmides:


acredita-se que seu rosto originalmente representasse a face do faraó
Quéfren, responsável pela segunda maior pirâmide, que é superada em
tamanho apenas pela de Quéops.

Alguns autores de pseudoarqueologia (ou "arqueologia alternativa") veem


um rico simbolismo astrológico nessa escultura: ela representaria uma
fusão dos signos de Leão e Virgem. Essa tese data, pelo menos, de 1899,
tendo aparecido no livro Star Names and Their Meanings, de Richard
Hinckley Allen, um guia vitoriano popular (e não muito confiável) sobre a
mitologia por trás dos nomes das estrelas.

O segredo da Esfinge
Hoje em dia, no entanto, não só já sabemos que o Egito do tempo da
Esfinge e das pirâmides não reconhecia as constelações de Leão e
Virgem (havia uma constelação de Leão no Antigo Egito, mas ela ficava
em outra parte do céu e envolvia estrelas diferentes das que compõem o
Leão zodiacal), como existem antigos textos egípcios traduzidos que
trazem informações preciosas sobre o simbolismo original da Esfinge.
Como explica Krupp, o monumento, com sua face voltada para o leste – a
direção em que o Sol nasce – é Horemakhet, "Hórus do Horizonte", a
personificação do disco solar ascendente.

Pseudoarqueólogos, no entanto, têm outras ideias. Se não chegam a


concordar totalmente com os xenoarqueólogos (que veem influências
alienígenas nos grandes monumentos do passado), também não hesitam
em postular antigas civilizações por trás das antigas civilizações. Saem os
ETs, entram os atlantes.
Órion
Em uma série de livros publicados entre os anos 80 e 90 do século
passado, fãs da hipótese de que a Atlântida seria a mãe do Egito tentaram
vender a ideia de que as pirâmides e a Esfinge não só carregam
simbolismo astrológico, como teriam sido construídas muito antes da data
oficial, por volta de 10.500 AEC.

O argumento principal era o de que, nessa época, as pirâmides estariam


perfeitamente alinhadas com as três estrelas que formam o Cinturão de
Órion. Krupp e outro astrônomo, Anthony Fairall, demonstram, no entanto,
que essa tese do alinhamento é falsa.

Assim como as três estrelas em Órion, as três pirâmides não estão


perfeitamente alinhadas – há um pequeno desvio, numa das pontas. Krupp
chama atenção para o fato de que, para haver uma possível
correspondência entre as estrelas e as pirâmides, é preciso virar o mapa
do Egito de ponta cabeça!
A menor das pirâmides, a de Miquerinos, só corresponde a uma projeção
sobre o solo da estrela Delta de Órion, na posição que ocupava em 10.500
AEC, se o mapa do céu estiver orientado para o norte e o do Egito, para o
sul.

Já Fairall, escrevendo no periódico Astronomy & Geophysics, nota que


mesmo com a inversão o resultado não seria tão bom: segundo seus
cálculos, em 10.500 AEC, o Cinturão de Órion teria um desvio de 50º em
relação à direção norte, enquanto que a linha que passa pela primeira e
pela última das três pirâmides apresenta um desvio de 38º.
Os teóricos da Atlântida alegam ainda que em 10.500 AEC vigia a Era
Astrológica de Leão. Com isso, sua data favorita ligaria não só as
pirâmides a Órion como ainda a Esfinge ao zodíaco. Como explico em
meu Livro da Astrologia, eras astrológicas referem-se à constelação do
zodíaco que o Sol parece visitar no início da primavera do hemisfério
norte, o chamado equinócio vernal. Essa constelação muda ao longo do
tempo, por causa do deslocamento do eixo da Terra. Fairall, no entanto,
calcula que, na época sugerida, o equinócio vernal ainda estaria
solidamente em Virgem.

Um ponto interessante é que os vários anacronismos envolvidos nessas


teorias – por exemplo, atribuindo aos egípcios de 4.500, ou de 12.500
anos atrás, crenças astrológicas que só chegariam ao país milênios mais
tarde – não são novos.
A Tradição Hermética da Renascença atribuía a um sábio egípcio
chamado Hermes Trismegisto, que teria sido contemporâneo de Moisés
ou, mesmo, dos patriarcas citados no Gênese, a criação da astrologia e da
alquimia. Hoje em dia sabe-se, no entanto, que os textos atribuídos a essa
figura mítica datam dos primeiros séculos da Era Comum: são até mais
recentes que o Zodíaco de Dendera.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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