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Eugênia von der Leyen

m
edições
CAPA: As pobres almas, que após a morte permanecem no Purgatório,
sofrem e pedem orações para que sua libertação se abrevie, e sua expiação se
acabe. Do Purgatório sairão rumo à luz do Paraíso celeste, como a forte e
poderosa águia, que parece ir de encontro ao Sol.
Eugênia, princesa von der Leyen

Conversando com as
Almas do Purgatório
Prólogo de Amold Guillet
Prefácio do editor Dr. Peter Gehring
Tradução de Alphons Gilbert

JM
edições

São Paulo
1994
(D 1979 by Christiana-Verlag

ISBN: 3-7171-0748-8

Em língua portuguesa:
© 1994 by AM edições
Rua Martim Francisco, 656
01226-000 São Paulo-SP
Brasil

ISBN: 85-276-0305-5

Printed in Brazil - Impresso no Brasil


1*edição - 1994
2* edição-1996
(Tradução da 4a edição alemã -1985)
Título original: Meine Gesprãche mitArmen Seelen
Tradução: Alphons Gilbert

Créditos das fotos


As fotos das páginas J59,160el6t fotarofa&s sobencomendadaeditora,;
pelo fotógrafo Alfred Hoffmann, D-S91J Unterdiessen; direito aatorat
sobre o texto, bem como sobre as fotos das páginas 180, 182 e 1$3
reservam-se à editora, A$ demais fotos provêrrt do arquivo da princesa
Ludovica vou der Leyert, castelo dfeUntôrdiessen, Landsberg, Bayem.

Aobrft foi publicada emitaiiímo50bOtftwlO: / mki mlfoquicon tepoverç \


anime, pela editara de SilvioJDettandrea.

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FOTO/PORG

Eugênia, princesa von der Leyen, pintura a óleo (50 x 57 cm) do pintor ameri-
canQ-irlandês John Rieger, Teufen (V. a nota na p. 180). A s pinturas a óleo e seus
direitos autorais pertencem ao CHRISTIANA-VERLAG.

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Brasão da dinastia dos Selo de Nossa Senhora, usado por Simon
von der Leyen von der Leyen (f 1512), abade de Maria
Laach, Arquivo Waal U 34, muito ampliado.
Desenho de R. Menges.

Oh! Como as Almas do Purgatório sofrem tanto por causa de sua


negligência, de sua piedade comodista, de sua falta de zelo por Deus
e pela salvação do próximo. Podemos ajudá-las por meio de nossa
caridade reparadora que, por elas, oferece atos daquelas virtudes que
elas negligenciaram em vida.

Ana Catarina Emmerich

A leitura deste livro produz uma fascinação interior que não se pode
expressar por palavras.

Um leitor da cidade de Lucema, Suíça

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APRESENTAÇÃO

A princesa Eugênia, da dinastia germânica dos von der Leyen,


do lado materno, da estirpe dos Thum e Taxis, possuía um carisma
todo particular; graças a uma especial disposição da Divina Providên­
cia, teve, de 1921 a 1929, contato com Almas do Purgatório. O pároco
Sebastião Wieser, seu diretor espiritual, testemunhou:
“Conheci a vidente nos últimos doze anos de sua vida e todos os
dias eu ficava ciente dos acontecimentos que se davam com ela e das
aparições que lhe surgiam... A vidente levava uma vida santa; sua
caridade não conhecia limite^; era prestativa e sempre solícita em
ajudar a quem quer que fosse. Era querida por Deus e pelos homens.
É verdade que levei a princesa a anotar os fatos que com ela
aconteciam; declaro, porém, sob palavra de honra, que nunca, em
ocasião alguma, lhe sugeri qualquer opinião minha. Responsabilizo-
me, pela veracidade de seu diário, que é totalmente digno de fé...”
Na opinião dos especialistas, seu diário é, em comparação com
outras obras congêneres, o que há de melhor. Além disso, pela
primeira vez, esse seu diário é editado com extensas informações e
fotos de sua família, que nos fazem compreender o mundo em que
vivia. A doutrina católica nos ensina que existe não só a Igreja
militante na terra e a triunfante no céu, mas também a padecente no
purgatório. Segundo os planos salvíficos da Divina Providência, esta
precisa de nossa ajuda. No diário, este mundo sofredor da Igreja
padecente aparece-nos representado por figuras inesquecíveis, que
nos imploram com palavras comovedoras e gestos que nos cortam o
coração.
O abalo emocional que o diário provoca em nosso íntimo voltará
a sensibilizar-nos por nossa Igreja, no seu cerne católico, e nos abrirá
os olhos para o sofrimento indizível das Almas do Purgatório,
destinadas, por Deus, a ser nossas poderosas auxiliadoras, contanto
que façamos algo por elas.

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O castelo de Waal, com o parque senhorial. À esquerda, embaixo: torre da Igreja
da aldeia de Waal.
Quando um editor apresenta aos leitores um novo autor, dirige-
lhe uma das mais humanas perguntas, como o fizeram os primeiros
discípulos que se aproximaram de Jesus: “Mestre, onde moras?”
{João 1,38). Só chegaremos aconhecer alguém a fundo se soubermos
qual o país, a região, o ambiente e a época que o marcaram, onde estão
as raízes de sua força.
Meu projeto de apresentar em nova edição o célebre diário
da princesa Eugênia von der Leyen, oriunda da Suábia, começou
a tomar vulto com a visita à nossa editora do pároco Dr. Peter
Gehring, de Lindau, no ano de 1978. Por acaso chegamos a falar
de Eugênia von der Leyen e viemos a saber que o Dr. Gehring é
natural da mesma região e que se criou em Blonhofen, distante
uns poucos quilômetros do castelo de Waal. Sentimo-nos felizes
porque o Dr. Gehring, familiarizado com o genius loci, se
prontificou a comentar a obra e a acrescentar-lhe anotações, pois
só um profundo conhecedor do caso e da localidade estaria em
cortdições de fazê-lo a contento.
O alto poder explosivo, contido neste diário extraordinário e
perigoso, entrou repentinamente no campo visual de dois grandes
expoentes da época: Hitler, que chegou a proibir a sua publicação
(não o teria feito, se o livro fosse inofensivo); e Pio XII, amigo íntimo
dos von der Leyen e que, como núncio apostólico, ficara diversas
vezes no castelo de Waal e Unterdiessen, foi presenteado pela família
com o original do diário.

Eugênia, oriunda de uma velha dinastia germânica

A autora de nosso diário, a princesa Eugênia von der Leyen und


zu Hohengeroldseck, nasceu em 15 de maio de 1867, em Munique.
No livro Genealogischen Handbuch desAdels, Fuerstliche Haeuser
Band X,W encontramos a seguinte informação:

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“De religião católica. Dinastia antiqüíssima de Trier. Sua ori­
gem deriva do castelo de Gondorf sobre a Mosela, município de
Mayen. Os documentos mais antigos a apresentam como represen­
tante da estirpe Engelbertus de Cunthereve, no ano de 1158; desde
1300 a família adotou o nome von der Leyen... Foi presenteada com
o título de Hohengeroldseck, município de Offenburg, no ano de
1705. Aceitou o título de príncipes por serem seus descendentes
membros soberanos da Aliança do Reno desde 12 de julho de 1806.
Os descendentes fazem jus ao título de príncipes, princesas von der
Leyen und zu Hohengeroldseck...”
Eugênia von der Leyen era filha do terceiro príncipe da estirpe
dos von der Leyen. Chamava-se ele Philipp II Franz Erwein, nascido
em 14 de junho de 1819, em Waal, onde morreu em 24 de julho de
1882. A mãe de Eugênia era Adelheid von Thum und Taxis, falecida
em 1888. Pela linha materna, Eugênia descendia, pois, da célebre
família aristocrática dos Thum und Taxis, que durante séculos dirigiu
os serviços postais no império alemão.
O irmão de Eugênia era Erwein II Theodor, quarto príncipe dos
von der Leyen, morto aos 75 anos, em 1938. A esposa dele, cunhada
pois de Eugênia, era Marie Charlotte de Salm-Reifferscheidt-Dijk (t
1944). O sobrinho de Eugênia, príncipe Erwein EI Otto Philipp, foi
o seguinte na dinastia (Vejafoto na página 119)', casou-se com Maria
Nives Ruffo delia Scaletta, da estirpe dos Borghese, em Roma (Veja
foto na página 120). Foi ela quem, firmemente, acreditou no carisma
de Eugênia, em contraste com os outros membros da família, de idéias
liberais, e foi ela quem entregou ao papa Pio XII os originais do diário
de Eugênia. Para que esta aceitasse o seu carisma, a influência da família
dos Borghese foi decisiva. Eles eram, por assim dizer, os mecenas
espirituais de Eugênia. Para acentuar essa influência, apresentamos uma
foto da princesa Ludovica Borghese. (Vejafoto na página 181.)
Vivendo de 1859 até 1928, influiu grandemente, através de sua
filha e de sua neta, na missão de Eugênia. Sua filha, Maria Nives, que

I. Editora C.A. Starke, Limburg, Alemanha.

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casou-se com um membro do castelo de Waal, protegia Eugênia von
der Leyen de modo extraordinário, pois estava convencida de seu
carisma.
A princesa Ludovica, que nos convidara e que com muita
delicadeza nos mostrou os dois castelos, recebera seu nome de
batismo de sua famosa avó, de Roma, a princesa Ludovica Borghese.
Existe também, na esfera da graça, um sistema de coordenadas cujo
alcance, na maioria das vezes, aparece só mais tarde.
Depois de nova divisão dos domínios pelo Congresso de Viena,
o príncipe comprou os dois senhorios de Unterdiessen e de Waal. Em
1924, o interior do castelo de Unterdiessen passou por uma reforma
e, em 26 de junho de 1925, o príncipe herdeiro mudou-se para lá.
Acompanhou-o Eugênia, que lá permaneceu até sua morte, em 9 de
janeiro de 1929. Os trabalhos de reforma continuaram. Em 1923
foram descobertas pedras do tempo dos romanos; tem, pois, funda­
mento a presunção de que os romanos construíram lá uma fortaleza.

Visita ao castelo de Unterdiessen

Eugênia von der Leyen passou parte de sua vida no castelo de


Waal e, desde 1925, no castelo de Unterdiessen, distante apenas
poucos quilômetros do de Waal.
Em 31 de janeiro de 1979, o Dr. Gehring e o editor deste livro
foram convidados, pela princesa Ludovica von der Leyen, a visitar os
castelos, que ficam na parte da Suábia pertencente à Baviera. Estão
situados entre Augsburg e Garmisch-Partenkirchen, 10 km ao sul de
Landsberg, no vale superior do rio Lech, 12 km a leste de Bad
Wõrishofen, 8 km de Buchloe (atualmente estação da estrada de ferro
para aquela região) e a 25 km de Kaufbeuren.
Landsberg é uma velha cidade bávara, acima do conhecido
Lechfeld, onde o rei Otão I, em 955, derrotou os húngaros numa
vitória que passou para a História. A cidade é célebre pela igreja
barroca dos jesuítas e pelo paço municipal renascentista. Na cadeia

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de Landsberg, Hitler esteve preso em 1924, e a mesma cadeia abrigou,
desde 1945, os condenados no processo de Nurembergue, cinco dos
quais foram executados.
À nossa chegada ao castelo de Unterdiessen, havia muita neve
no parque senhorial, mas a rua de acesso e o parque de estacionamento
estavam perfeitamente limpos. Latidos fortes do canil indicavam que
o castelo estava sendo bem guardado. No amplo vão da escada, há
muitas gravuras antigas e quadros a óleo, de proprietários dos tempos
passados. A princesa Ludovica cumprimentou-nos cordialmente e
nos levou ao salão pegado ao grande refeitório. Havia muitas
perguntas a fazer, e assim viemos a conhecer novos episódios sobre
a vida de Eugênia. Aqui em família, mas também na aldeia, chama-
vam-na de “Eschi” (pronuncie-se “exe”, forma adaptada ao alemão
do nome “Eugenie”). A princesa Ludovica contou-nos que ouvira
muitas vezes a mãe dizer: “Eschi era a bondade em pessoa”.
Estávamos admirando os muitos tesouros de arte, imagens e
lembranças, quando um objeto de forma semelhante a um ostensório
nos prendeu a atenção. O Dr. Gehring o identificou como sendo o
invólucro de uma partícula da Santa Cruz, mencionada algumas
vezes no diário. Descobrimos, ao abrir a cápsula, resíduos de um selo
romano. Tratava-se de um trabalho de ourivesaria barroca, ornado de
gemas na frente. Era costume, naqueles tempos, guarnecer objetos
preciosos de devoção dessa forma; talvez, esse relicário tenha perten­
cido aos tesouros de uma igreja secularizada. No centro da custódia
há uma cruzinha branca, à qual está presa uma partícula da Santa
Cruz. Conforme informações do Dr. Gehring, trata-se, geralmente,
de partículas de madeira, que haviam sido tocadas na autêntica cruz
de Nosso Senhor e que haviam sido bentas pelo Santo Padre; passam
tais objetos por relíquias de muito valor. (Ver a foto da relíquia em
questão, na página 159.)
No refeitório admiramos um quadro autêntico de um antigo
pintor holandês, e uma grande pintura representando a condessa
Maria von Schõnbom, em tamanho natural; também ela é mencio­
nada no diário. Durante o almoço, na grande sala de jantar, nossos

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pensamentos giravam em tomo de Eugênia von der Leyen, que
passou os últimos anos de vida— três e meio —, nestes recintos e que,
há 50 anos, em 9 de janeiro de 1929 aqui morreu.
Mais alguns lembretes históricos: em 1647 nascera, em
Unterdiessen, Philipp Konstantin von Thum und Taxis. Durante a
Segunda Guerra Mundial, foi guardada em custódia, no parque do
castelo Unterdiessen, a escultura, de fama mundial, do grande artista
francês, Augusto Rodin, Os cidadãos de Calais, trazida de Colônia;
em 1946, os franceses levaram-na de volta a Calais, e dela se pode ver
uma cópia, em bronze, no museu de arte, em Basiléia.

Pio XII, amigo íntimo da família von der Leyen

Na biblioteca do salão, em Unterdiessen, há 24 volumes impo­


nentes: as obras completas do papa Pio XII, autografadas pelo próprio
Sumo Pontífice e por ele oferecidas à família dos von der Leyen. A
mãe da princesa Ludovica, Maria Nives Ruffo delia Scaletta, nascida
em 16 de agosto de 1898, aprendera, em sua mocidade, a estimar,
como professor de religião, Eugênio Pacelli, que, mais tarde, gover­
naria a Igreja como o papa Pio XII.
A primeira família por ele recebida, como Sumo Pontífice,
foi essa de sua antiga aluna Maria Nives, e, desde então, todos os
anos, ele a recebia em audiência particular. Maria Nives descendia
da célebre estirpe romana dos Borghese, que dera à Igreja o papa
Paulo V.
A vila Borghese é conhecida por todos os que visitam a Cidade
Eterna. Como já mencionamos, foi Maria Nives, mãe da princesa
Ludovica, quem entregou ao papa, pessoalmente, o diário da princesa
Eugênia, quando, depois da Segunda Guerra Mundial, foi recebida
em audiência particular.
Ela morreu em 6 de agosto de 1971, em Roma, e foi sepultada
no mausoléu familiar de Waal. Também o príncipe Otto Philipp
Erwein m von der Leyen, nascido em 31 de agosto de 1884, seu

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esposo, sobrinho de Eugênia, morreu em Roma em 13 de fevereiro
de 1970 e foi sepultado no mesmo mausoléu.

Hitler proíbe a publicação do diário

Já dissemos que Adolf Hitler esteve preso, em 1924, na forta­


leza de Landsberg e que, em dezembro do mesmo ano, foi anistiado
e posto em liberdade. Em Landsberg, visões apocalípticas de ódio o
atormentavam e fizeram com que, mais tarde, fossem sacrificados
seis milhões de judeus e que tombassem nos campos de batalha
milhões de soldados.
Enquanto o cabo Hitler escrevia na fortaleza Landsberg seu
livro-programaMe/rt kampf, Eugênia von der Leyen, distante dele 10
km, levava uma vida contemplada misticamente em Deus e escrevia
seu diário. Mais tarde, Hitler chegou a ser seu vizinho, por ocasião das
visitas no seu “Ninho de Águia”, em Berchtesgaden. Proibiu que se
editassem ou que se lessem o diário. Depois de doze anos, o reino
milenar de Hitler se esfumou. Sua luta terminou quando se suicidou
no abrigo antiaéreo da chancelaria em Berlim. O diário de Eugênia,
porém, oferece-nos novas esperanças pelo Reino de Deus, quejamais
perecerá.

A igreja da aldeia de Waal

Acompanhados da princesa Ludovica, pudemos visitar, no


decorrer da tarde, o castelo de Waal, onde Eugênia passou a maior
parte de sua vida e onde escreveu seu diário. Foi aqui, pois, que se
deram as aparições das Almas do Purgatório. O castelo de Waal,
situado na freguesia que dele recebera o nome, ergue-se numa
pequena colina, poucos quilômetros distante do castelo de
Unterdiessen. Estacionamos os carros em frente à chancelaria, onde
fica a administração do castelo, ao qual pertencem muitas proprieda­

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des em terras e florestas. Numa construção comprida ficam as
moradias para funcionários e empregados.
As terras do castelo confinam com a igreja de Waal, cuja torre
impressiona pela altura. Aliás, aquela igrejinha destaca-se entre as
mais belas que há no estilo neogótico, devido, sobretudo, ao seu
interior equilibrado e aos trabalhos artísticos de um mestre marcenei­
ro, oriundo daquela região. Eugênia costumava entrar naquela igreja
quando vinha do castelo, e nós tomamos o mesmo caminho. Por um
pequeno corredor, chegamos ao oratório da família, mencionado,
amiúde, no diário. O oratório é um recinto sossegado de oração.
Pelas janelas pode-se ver o altar-mor. Protegida de olhares
curiosos, a família podia, ali, rezar sem ser perturbada. Por sobre o
altar-mor há uma grande imagem de Nossa Senhora. Interessou-nos,
de modo particular, o altar lateral à direita, atrás do qual fica o
mausoléu da família dos von der Leyen. Encontram-se também, ali,
os restos mortais da princesa Eugênia. Após cada inumação, o
mausoléu volta a ser fechado.
Eugênia rezava muito nessa igreja, onde vira algumas aparições,
entre as quais um velho cavaleiro, mencionado, amiúde, no diário.

Visita ao castelo de Waal

Subindo uma rampa, encontramo-nos, em seguida, no castelo


de Waal. À direita, há uma cervejaria que ainda, na segunda década
do século, produzia cerveja. O castelo, notável sob muitos aspectos,
especialmente por sua larga escadaria, era visitado depois da Segunda
Guerra Mundial por muitos americanos. Ali também se encontra o
primeiro elevador da Baviera para o transporte de pessoas. Seu
contrapeso fica num estreito poço quadrado e é movimentado a
manivela.
O interior do castelo impressiona por seus objetos e peças
históricas, destacando-se, entre outros aposentos, o grande e o
pequeno refeitórios, a sala de fumar e o escritório. Comoveu-me, de

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modo especial, a grande pintura a óleo do príncipe eleitor Johann VI
von der Leyen, arcebispo de Trier (1556-1567).
O quarto de Eugênia ficava a oeste e tinha 5 m2. Não se encontra
mais no estado original, como afirmou a princesa Ludovica. Só a
estufa de ladrilhos e a posição da cama continuam como naquele
tempo.
Quem leu o diário, sabe que Eugênia sofreu muito nesse quarto
e que, freqüentemente, viu e sentiu coisas terríveis, que a levavam,
repetidas vezes, ao desmaio. No entanto, Deus dava-lhe sempre
novas forças para aceitar o sofrimento reparador em prol das Almas
do Purgatório. Pode-se afirmar sem receio de exagerar: no castelo de
Waal e no de Unterdiessen, ela foi amadurecendo até tomar-se santa.
Ao deixarmos seu quarto, deu-se um estrondo ensurdecedor,
que fez tremer o castelo todo. A princesa Ludovica disse-nos que,
bem perto da residência, ficava um campo de aviação da NATO e que
a casa sofria muito com o ruído dos aviões, sobretudo quando
rompiam a barreira do som.

A família dos von der Leyen

A estirpe dos von der Leyen deu à Igreja muitos homens e


mulheres que representaram na vida eclesiástica relevante papel,
entre os quais mencionamos:

• Georg n, bispo de Trier, 1 1533;


• Simon, abade de Maria Laach, t 1512;
• Bartholomáus II, decano de Trier, 1 1587;
• Margarethe, abadessa, t depois de 1553;
• Carl Caspar D, arcebispo e príncipe eleitor de Trier, 1 1676;
• Damian Hartard, arcebispo e príncipe eleitor de Mainz, f 1678;
• Lothar Friedrich, cônego de Trier e Worms, 1 1640;
• Anna Eleonore, prioresa de Engelpforten, 1 1698;
• Marie Agnes, abadessa de Marienberg, Boppard, 1 1731;

l(>
• Damian Friedrich, cônego de Kõln, Mainz, Würzburg, t 1817;
• Franz Erwein Sylvester, cônego de Würzburg, Bamberg, 11809/2)

Uma bem pesada vida entre dois mundos

Eugênia von der Leyen teve de levar uma vida opressiva entre
dois mundos, tão pesada que lhe comprimia o coração. Unicamente
o pequeno príncipe herdeiro Wolfram (Veja asfotos nas páginas 79
e 118.) e os animais domésticos viram algumas de suas aparições,
e mais ninguém. E com ninguém podia conversar sobre esses as­
suntos, a não ser com seu diretor espiritual. Deve ter sido para essa
mulher algo de obscuro e confuso: uma invasão do sobrenatural que
só foi possível por especial permissão de Deus. Algo tão espantoso,
que não se compara com banalidades, como, por exemplo, um pro­
grama de televisão, que também pode informar sobre mundos estra­
nhos. Tudo que se passa no âmbito terrestre fica mais ou menos na
superfície. O contato com o Além é incomparavelmente mais profun­
do, pois fica ligado, por assim dizer, a uma corrente de alta tensão,
impossível de ser suportado, até fisicamente, por qualquer criatura.
Só graças especiais de Deus podem sustentar uma tal sobrecarga
do Além, sem conseqüências letais para o ente que a recebe.

Memórias de uma velha aldeã

Para terminar nossa visita, que nos ocupou o dia inteiro, a


princesa Ludovica levou-nos a uma velha aldeã, viúva do professor
Josef Feistle, que ainda se lembrava bem de Eugênia. A senhora
Feistle contou-nos o seguinte:
“A princesa Eschi — todos a conheciam por esse nome — era
alta e imponente, muito piedosa e caritativa. Contrastando com os

(2) Wolfgang Krãmer foi agregado na história da casa dos von der Leyen no século XVI.

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homens da casa dos von der Leyen, de atitudes liberais, era ela uma
cristã fervorosa. De uma simplicidade espontânea e cativante, ajuda­
va até os camponeses a recolher o feno quando ameaçava uma
tempestade. Possuía o dom de acertar sempre com o presente que
dava. Para cada um tinha um sorriso. Trabalhava muito pelas
Missões, bordava paramentos e organizava coletas. Todos sentiam
muita simpatia e profundo respeito pela irmã celibatária do príncipe.”
A sra. Feistle lembrou-se também da hora da morte de Eugênia,
fato esse que nos interessava de modo especial. Eugênia von der
Leyen morreu em 9 de janeiro de 1929, às quatro da madrugada.
Perguntei à sra. Feistle se Eugênia empreendera viagens mais longas.
Respondeu-me lembrar de que ela viajava para visitar suas irmãs: a
baronesa Aretin(2a), em Adeldorf, e a baronesa Julie Frankenstein, em
Ulstatt, Franken. Contou-nos, ainda, pormenorizadamente, que em
Waal, de dez em dez anos, era representado um mistério da Paixão de
Nosso Senhor, como o fazem em Oberammergau, que dista apenas
80 km de Waal, e que o diretor espiritual de Eugênia, o pároco
Sebastião Wieser, montou diversas peças desse gênero: um mistério
sobre São Francisco, um outro sobre José do Egito e outros mais. E
terminou dizendo: “Os waalenses são bons atores”.
Em carta de 7 de fevereiro de 1979, a sra. Feistle nos comunicou
ainda os detalhes seguintes:
“A princesa Eugênia quis tomar-se religiosa mas, devido à sua
fraca saúde, não foi aceita. Antes de viajar para o convento que a
rejeitara, despediu-se de cada membro da família... Havia um costu­
me em Waal, segundo o qual, cada princesa, antes de morrer, deveria
doar seu vestido de noiva à matriz. A mãe da princesa Ludovica Maria
Nives Ruffo delia Scaletta, da família dos Borghese, de Roma, doou
à matriz um paramento de missa magnífico, azul-claro, bordado de
flores e de debruns prateados. O padre conselheiro Pfersich o vestia

(2a) Um filho desta baronesa, Erwein Freiherrvon Aretin,éo autor do livro FritzMichael
Gerlich. Ein Martyrer unserer Tage, Verlag Schnell & Steiner, Munique. Gerlich
escreveu a grande obra em três volumes sobre Therese von Konnersreuth.

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só em festas de Nossa Senhora. Parece que atualmente tais peças já
não combinam com a mentalidade moderna...”

A crença em aparições e em Almas do Purgatório

A região do castelo Unterdiessen é chamada de Fuchstal, vale


da raposa. Dois fatos na história local daquele vale merecem menção
especial a respeito do diário de Eugênia. Dizem que em tempos
passados reinava entre o povo uma forte crença em aparições de
espíritos. Pois bem, tal crença, antigamente, era geral em toda parte
e entre todos os povos. A parapsicologia tem demonstrado, por meio
de provas, que tal crença tem razão de ser; baseia-se em fatos reais.
No entanto, parece que os moradores daquela região possuíam uma
antena especial para o Além. Em 1694 foi fundada a Irmandade em
Socorro das Almas do Purgatório®, acontecimento que condiz com
o que acabamos de dizer. Enquanto vivermos neste mundo, podemos
contar com a Misericórdia Divina; no purgatório, porém, prevalece
a Justiça de Deus. Num velho restaurante em Oberdiessen, que era
considerado a “Casa da Justiça do Povo”, está gravada a frase:
“Olá, juiz, pronuncie sentença justa,
Deus é juiz, tu és seu servo.
Se tu me condenares embora eu seja inocente,
Deus te julgará.”
Sem dúvida, os moradores no vale da raposa possuíam um senso
bem desenvolvido de justiça e verdade.

Lorelei e von der Ley

Qual a origem do nome von der Leyen? Segundo a princesa


Ludovica, sua família se chamava antigamente “De Petra” (“da

(3) B. Hartenberger, Nossa terra em Fuchstal, 1973.

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Rocha”). Ley era uma palavra do alemão antigo e significa Fels (=
rocha). A palavra germânica “ley” ainda permanece na designação
“Loreley”. A lenda diz que “Lore” era o nome de uma das ninfas do
Reno. Lorelei significa, pois, a rocha da ninfa Lore.
A rocha da Lorelei se ergue entre St. Goarshausen e Oberwesel,
numa altura de 132 m, à margem do Reno, e produz um eco extre­
mamente forte. O poeta Clemens Brentano introduziu o nome Lorelei
na poesia; também Eichendorff e Heine celebraram a Lorelei. Quan­
do a ninfa estava sentada naquela rocha e penteava seus cabelos
dourados, os canoeiros ficavam enfeitiçados por seu canto, de tal
modo que não mais ligavam a recifes e pedras, e seu barco se
despedaçava de encontro às rochas.
Eugênia, unida à ninfa do Reno pelo mesmo semantema, “ley”,
também tem atraído pessoas, as almas de falecidos, não porém de
modo mágico e mortífero, mas como mãe compassiva das Almas do
Purgatório, com o coração aberto e dando-se a todas elas. Eugênia
perguntava, às vezes, por que vinham justamente a ela, e sempre
recebia a resposta: “O caminho que leva a ti está livre!”

Santa Catarina de Gênova

Não há nada de especial no fato de, justamente, a filha de um


príncipe ter contato com as Almas do Purgatório. Nem é novidade na
história da Igreja. Santa Catarina de Gênova (t 1510), da estirpe
aristocrática dos Fieschi, da qual descenderam os papas Inocêncio IV
e Adriano V, sofrerá muitas aparições das Almas do Purgatório.
Também ela nos deixou um escrito, intitulado Tratado sobre o
purgatório. Catarina de Gênova é considerada como “um gênio
espiritual de primeira grandeza”.
O advogado genovês Ettore Vemazza descreveu sua situação
do modo seguinte:
“Essa santa alma (Catarina de Gênova) encontrava-se, enquan­
to vivia ainda neste mundo, no purgatório do amor flamejante de

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Deus. Esse amor a devorava totalmente e a purificava de tudo que
nela ainda fosse suscetível de purificação. Isso acontecia, para
que, quando saísse deste mundo, pudesse apresentar-se aos olhos
de Deus, que era seu doce amor. Devido a esse fogo de amor que
ardia em sua própria alma, compreendia em que estado se encon­
travam os falecidos que estão no purgatório. Devem purificar-se
de toda ferrugem e de toda mancha de pecado de que, em sua vida
terrestre, não se livraram. Assim como ela estava unida ao Amor
divino — e por isso feliz — aceitando tudo o que esse Amor lhe
propiciava, assim também as Almas do Purgatório estão contentes
no purgatório^.”
Santa Catarina é considerada a ‘Teóloga do Purgatório”, e São
Francisco de Sales não se cansava de recomendar o livro dela:
Tratado sobre o purgatório.

Três irmãs espirituais

Eugênia von der Leyen tinha naquela região onde vivia duas
irmãs espirituais que, em 1721, se haviam encontrado em Muni­
que, para um colóquio sobre as coisas de Deus: a bem-aventurada
Crescência de Kaufbeuren e Maria Ana Lindmayr (1657-1726).
Como o fez Eugênia von der Leyen, assim também Maria
Ana Lindmayr escreveu um diário sobre as aparições que viu
das Almas do Purgatório®. Também Crescência tinha visões das
almas e contatos com elas, embora seu apostolado não se limitas­
se a ajudar essas pobrezinhas. Leia-se a esse respeito o livro de

(4) Citado conforme o prof. Holbõck, Fegfeuer, p. 85, Christiana-Verlag, Stein am Rhein.
É deste autor também o livro: Die Theologin des Fegfeuers, editado também pela
Christiana-Verlag, Alemanha.

(5) Sob o titulo Minhas comunicações com as Almas do Purgatório, o livro foi editado em
1978, 2a edição, pela Editora Christiana, Stein, Alemanha.

21
Arthur Maximilian Miller, Crescência de Kaufbeuren, Das Leben
einer schwàbischen Mystikerin
O parentesco espiritual entre essas três mulheres nos surpreen­
de. Eugênia von der Leyen, Crescência de Kaufbeuren e Maria Ana
Lindmayr formam uma tríade que constituem uma unidade não
apenas geográfica, mas também mental e espiritual.
Pertence ainda a essa paisagem espiritual de Waal um poeta:
PeterDõrfler, nascido em 1878. Seus romances e histórias AlsMutter
noch lebte e Der Sohn des Malefizschenk se passam naquela região.
É interessante que, em três de seus romances, descreva a sorte de três
mulheres celibatárias que se tomaram, como Eugênia, uma bênção
para toda uma comunidade: “JudithFinsterwalderin(1916),Apolônia,
filha de um moleiro e, nos companheiros da Jungfer Michline,
descreveu três vultos incomparáveis de mulher que, por sacrificarem
sua própria vida, se tomaram uma bênção para todos”/ 7)

O mestre do lago de Constança

Para chegar à residência de Eugênia von der Leyen, tive de viaj ar


ao longo do lago de Constança e por um mecanismo de associações
mnemônicas, veio-me à lembrança a figura do místico Henrique
Seuse (ou Suso), de Constança. Não sei se Eugênia leu os livros de
Henrique Seuse (1295-1366). Sabendo-o ou não, foi ele seu grande
mestre, pois o tema do purgatório e de suas Almas do Purgatório é
longamente tratado em seus escritos, e seus ensinamentos tomaram-
se patrimônio comum da Igreja. Assim é que lemos no sexto capítulo
de sua Vita:
“Naquela mesma época, ele ficou sabendo, em visões, muitas
coisas futuras e secretas. Deus permitiu que ele sentisse e, enquanto

(6) 2a edição, 1976, Editora Christiana, Stein, Alemanha.

(7) O Grande Herder, 1953.

22
fosse possível, compreendesse certas verdades relacionadas com o
céu, com o inferno e com o purgatório. Acontecia-lhe freqüentemente
que muitas almas de falecidos lhe apareciam e lhe diziam o que lhes
havia sucedido, por que sofriam no Além, como podiam ser socorri­
das ou como eram suas vidas perante Deus. Entre outros, apareceram-
lhe também o bem-aventurado mestre Eckhart e João, da família
Futerer, de Estrasburgo. O mestre comunicou-lhe que vivia numa
glória transbordante e que sua alma submergira totalmente em Deus.
Pediu-lhe então o servo que lhe explicasse duas coisas: primeiro, de
que maneira se encontravam em Deus os homens que se haviam
esforçado para agradar à Verdade Infinita, querendo, em tudo,
cumprir a vontade divina? Recebeu a resposta dé que ninguém era
capaz de expressar, com palavras humanas, algo a respeito da
submersão dessas pessoas no abismo inconcebível de Deus. E
continuou a perguntar: o que o homem devia fazer para chegar a tal
união com Deus? Veio-lhe a resposta: Que se renunciasse totalmente
a si mesmo, aceitasse todas as coisas e todos os acontecimentos como
vindos de Deus e não das criaturas e que tivesse perfeita paciência
para com homens cruéis.
O outro irmão, João, mostrou-lhe, em visão, a beleza transbor­
dante de gozo de sua alma gloriosa. Seuse pediu-lhe também que
respondesse à seguinte pergunta: O que seria mais doloroso e mais
útil aos homens? O irmão João respondeu que não havia nada de mais
doloroso e de mais útil, e que todos deveriam, com toda a paciência
diante de Deus, renunciar à própria vontade e entregar-se plenamente
à vontade de Deus.
O próprio pai, que havia levado uma vida mundana, apareceu-
lhe depois da morte e, de face dolorosa, mostrou-lhe o castigo
inimaginável que sofria no purgatório e que constituía o motivo
principal de seus sofrimentos. Disse-lhe, então, como poderia aliviá-
lo desses sofrimentos, e Seuse foi imediatamente socorrer o pai. Este
mostrou-se-lhe novamente, dizendo-lhe que, devido à sua ajuda, já
não sofria mais. Sua piedosa mãe, de quem, enquanto ainda viva,
Deus se servia para fazer milagres, apareceu-lhe, mostrando-lhe,

23
numa visão, a grande recompensa que recebera. Algo de parecido
lhe tem acontecido com muitíssimas outras almas, fato esse que lhe
dava grande consolo e o animava a continuar na sua maneira de
servir a Deus.”®
Essas quatro aparições, mencionadas expressamente pelo
bem-aventurado Seuse, não foram as únicas que lhe foram conce­
didas. Aconteceram-lhe por ocasião de sua resoluta conversão a
Deus, quando evitava qualquer encontro inútil, preferindo dedi­
car-se à .oração e a exercícios de penitência extremamente seve­
ros. As aparições fortaleciam seus bons propósitos e o consola­
vam quando tentado por desânimo ou tristeza. Enchia-se-lhe o
coração de alegria e júbilo quando via entrar uma alma no céu.
Despertavam em sua mente delicada compaixão e vontade de
ajudar quando via no purgatório a alma de pessoa conhecida.
Animado pela convivência familiar com as Almas do Purgatório,
Seuse fazia muitas meditações sobre o purgatório, que lhe servi­
am não apenas para rezar e penitenciar-se pelas Almas, como
também para extrair, de suas reflexões, as diretrizes norteadoras
de sua vida.
No Livrinho da sabedoria eterna, cap. 24, canta ele também as
loas do purgatório e de suas Pobres Almas:
“Senhor, continuo me dirigindo a Vós. Se eu tivesse de morrer
agora, e se fosse para eu ficar ardendo no purgatório 50 anos, eu me
sujeitaria à Vossa Glória. Louvado seja o fogo que me fará cantar o
Vosso louvor.”
“Meu suave Senhor, que suba a Vossos olhos grande louvor,
semelhante àquele rico e gozoso louvamento que os Anjos Vos deram
depois de terem passado pela prova e se terem alegrado com sua
aceitação no céu, depois de terem assistido à reprovação dos Anjos
revoltosos. Que o meu louvor suba a Vós semelhante aos hinos de
louvor que Vos prestam alegres as Almas quando saem do terrível

(8) Heinrich Seuse, Publicações místicas alemãs, do médio alto-alemão, traduzido por
Georg Hofmann, 1966, Editora Patmos, Düsseldorf, Alemanha.

24
cárcere e aparecem diante de Vós e, pela primeira vez, contemplam
Vossa Face amável, a Fonte de Eterna Alegria^.”

Podem as Almas do Purgatório aparecer sob a forma de animais?

Muitos leitores do diário de Eugênia não conseguem familiari-


zar-se com a idéia de que certas Almas se mostrem sob forma de
animais repelentes e nojentos; assim, por exemplo, quando Egolf se
mostra em forma de um grande macaco “de olhos em brasa”, e Maria
R. como serpente, pois “ela foi o símbolo de minha vida, juramentos
quebrados, tudo mentira e fingimento”.
A isso pode-se dizer: Também outros videntes, homens e
mulheres, têm visto as Almas do Purgatório sob a forma de animais.
Certa vez, Jesus disse a Santa Brígida da Suécia, numa visão: “O que
é espiritual não te aparece tal qual é, mas em forma corpórea; para que
tua mente possa compreender as verdades, elas são apresentadas em
símbolos e comparações”.
O médico-chefe Dr. Kemer, de religião luterana, escreveu em
seu livro Die Seherin von Prevorst, que um espírito disse à vidente de
Prevorst^10); ‘Tu nos vês como é o nosso caráter”.
O Dr. Kemer fala também de outra mulher, à qual aparecia
muitas vezes um espírito sob forma de animais nojentos, com a
aparência de coruja, de gato, de feio cavalo etc.
José de Gõrres, o grande especialista em mística, da Universi­
dade de Munique, escreve em sua obra Mística cristã^ de cinco
volumes, sobre a Irmã Francisca do SSmo. Sacramento, da Ordem
das Carmelitas, que “apareciam, às vezes, a essa Irmã, pessoas

(9) Heinrich Suso, Livreto da eterna sabedoria, traduzido por Oda Schneider, 1966,
Gegenbauer, Alemanha.

(10) Editora J. F. Steinkopf, Stuttgart, 3a edição, 1973.

(11) Joseph von Gõrres, Mística cristã, v. III, p. 476. Editora Manz, Regensburg, 1840.

25
falecidas sob formas terríveis, mais parecendo um animal do que
gente. E como, em tais casos, Francisca ficasse tão aterrorizada, a
ponto de desmaiar, essas almas, no seu primeiro aparecimento, não
se mostravam sob essas formas mas qual sombras flutuantes, até que
ela se acostumasse ao seu aspecto animalesco”.
Os fenômenos aqui descritos ocorreram, também, em todos os
detalhes, com Eugênia von der Leyen.

Não só castigo, mas purificação sucessiva

Será que no purgatório a alma sofrerá só castigo? Terá ela que


suportar dores, quantitativamente medidas, durante um período
rigorosamente tabelado? Não seria isso um castigo totalmente mecâ­
nico? O Dr. Miguel Schmaus, conhecido professor de Dogmática, da
Universidade de Munique, propiciou-nos a verificação desse proble­
ma de modo muito mais diferenciado e muito mais profundo. Na sua
Katholische Dogmatik, ele escreve:
“A doutrina da Escritura (Mateus 13,22), dos Padres da Igreja,
da maioria dos teólogos medievais, a oração litúrgica, a Santidade de
Deus e a dignidade da pessoa humana parecem harmonizar-se melhor
com a hipótese de se dar no purgatório também uma transformação
do homem, uma remissão dos pecados e um acrisolamento da alma,
e não apenas um suportar do castigo decretado por Deus. A Igreja
pede em suas orações que Deus perdoe aos mortos os seus pecados.
A palavra “peccata” significa não apenas os castigos pelos pecados,
mas também, e principalmente, pecados. Parece corresponder mais
ao poder da Santidade Divina que Deus exerça sua influência na vida
do homem, transformando-o, melhorando-o, do que proibir-lhe, por
castigo, a entrada no céu, embora esteja totalmente purificado. A
imagem de Deus, apresentada pela Sagrada Escritura, nos mostra que
Ele une a Santidade, a Justiça e o Amor. Parece-me pois ser mais
acertado aceitar a hipótese que Ele não só castiga mas também
purifica o homem, agraciado e querido por Ele. Condiz também com
a dignidade da pessoa humana, elevada ao estado espiritual, que os

26
mortos, enquanto não ressurgirem na visão e no amor da Verdade e
da Perfeição infinita, e dessa graça não estiverem totalmente penetra­
dos, sejam purificados na entrega amorosa a Deus, de todos os
resíduos e escórias terrenos. Essa transformação se relaciona com o
pecado e com as inclinações más dele nascidas”.

O irresistível fascínio da doutrina sobre o purgatório

A verdade sobre a existência do purgatório começa a atrair


irresistivelmente também os não-católicos. O historiador Golo Mann
escreveu em longa recensão do livro de Peter Berglar A hora de
Thomas Morus:
“Morus, tão bom conhecedor da Escritura quanto Lutero, tem
defendido tudo aquilo que ajudara a Igreja no seu crescimento; o
historiador o segue sem enrubescer. Quem apenas conhece minha
recensão, poderá estranhar que o autor se identifique enérgica e
extensamente com seu herói, quando Morus sustenta e defende a
doutrina do purgatório e, com isso, as orações e missas pelas Pobres
Almas e até as indulgências para socorrê-las. Ora, ninguém, dotado
de senso comum e que saiba raciocinar, pode ignorar a existência de
uma comunidade e de uma comunhão entre os que vivem, com os que
faleceram. Tampouco se pode ignorar também a necessidade de uma
purificação da alma antes ou depois da morte. E o leitor talvez se
pergunte: Como pode estar errado o que é tão razoável, tão sensato,
tão conforme os nossos sentimentos mais íntimos? Ou, ainda, consul­
tando a história, propor-se a seguinte asserção: Quando, sob escár-
nios e zombarias se deu a desagregação e a destruição dessas
profundas verdades vitais, quão terrível deve ter sido o sofrimento da
gente boa!”(12)
Desde o martírio de Thomas Morus, até o dia do falecimento de
Eugênia von der Leyen, decorreram 450 anos.

( 12) Diário Regional “O mundo”, de 23/12/78.

27
Observações a respeito deste livro

Durante o nazismo, o diário de Eugênia passou, em cópias


hectografadas, de mão em mão, como se fazia também com as poesias
de Reinhold Schneider. Um desses exemplares se encontra ainda com
a viúva do professor Josef Feistle. Depois da Segunda Guerra
Mundial, apareceu aobrasobo título ErlõsteSeelen (Almas Remidas),
em doze edições no Schacke-Verlag, Wiesbaden. Há anos, essa
editora deixou de existir. O editor belga Markus Schrõder, de Eupen,
publicou também quatro edições sob o título Zwischen Himmel und
Hõlle (= entre o céu e a terra). Markus Schrõder faleceu em 24 de
março de 1976.
Em consideração aos parentes vivos foram omitidos ou menci­
onados pelas iniciais os nomes das pessoas citadas no diário. Agora,
porém, transcorrido meio século depois da morte de Eugênia, não
existe mais razão para se ocultar ou omitir nomes das pessoas às quais
se faz menção. Por isso, sempre que possível, e ajudados por
testemunhas oculares e por parentes de personagens, que o diário
arrolou, temos dado os nomes por extenso. A obra ganha, com isso,
mais autenticidade, podendo, assim, ser confirmada a veracidade—
e exatidão — das informações.
O homem por cuja iniciativa o diário foi escrito e publicado é
Sebastião Wieser, confessor e diretor espiritual da princesa. A nosso
pedido, respondeu o Ordinariato de Augsburg que ele morreu em 11
de outubro de 1937, em Augsburg-Oberhausen. Pelo elenco do clero
daquela diocese, sabemos que foi pároco em Waal, de 1916 a Io de
junho de 1926(l2a).

Uma prova da autenticidade

Geralmente, o Bom Deus não é pródigo com testemunhos de


autenticidade pelo simples motivo de não nos eximir da prova de

( 12n) ( )ulios estágios de sua prática: pároco em Dezenacker, 1908, pároco em Kreuzthal,
I 11. primeo em Steinheim, 1931, pároco em Seehausen, 1934.
nossa fé. Todavia, em casos de agraciamento místico, há um ou outro
sinal que nos faz reconhecer a autenticidade da atuação divina.
Na sexta-feira santa de 1949, morria em Gerlachsheim, Baden,
após 68 anos de sofrimentos expiatórios pelas Almas do Purgatório,
com a idade de 86 anos, Margarete Schãffner. Como escreve o
professor Georg Siegmund, ela pedira “a Deus um sinal de que ela não
era vítima de um engano^13), de sua própria fantasia ou de um logro
diabólico. Apareceram-lhe então, duas vezes, Almas do Purgatório,
que deixaram gravada num pano a marca dos dedos da mão, que
parece ter estado em fogo, fornecendo, pois, um sinal visível que ela
havia pedido. O Ordinariato de Freiburg exigiu e recebeu para exame
aqueles panos...”
Outra prova interessante de autenticidade carismática devemos
a Ana Caterina Emmerich. Com base em suas visões, foram feitas
importantes escavações e descobriu-se a última morada da Mãe de
Deus, em Éfeso.
A prova da autenticidade do carisma de Eugênia consiste no
fato de ter recebido a predição do dia de sua morte que, embora
tivesse sido feita de forma enigmática, foi bem clara. Confirma-
o o professor da Universidade de Munique, Dr. Anton Seitz, que
analisou pormenorizadamente o fato no estudo: Prinzipielle
wissenschaftliche Beurteilung des Tagebuchs von Eugenie von
der Leyen^14) (= Apreciação conforme os princípios científicos do
Diário de Eugênia von der Leyen). Num dia de Finados, Eugênia
perguntou a um padre dominicano: “Sabes quando eu hei de
morrer?” Respondeu-lhe ele: “Três vezes nove”. Ela disse: “Não
te entendo”. Retrucou a alma: “Também não é para ser entendido
por ti!” Eugênia veio a falecer em 9 de janeiro de 1929, data em
que ocorre três vezes o número nove.

(13) A respeito de nossos mortos, Mensageiro bendito, fevereiro de 1979, Wels, Áustria.

(14) Bruno Grabinski, Almas salvas, 1958, Editora MaxSchacke,Wiesbaden, Alemanha.

2{)
A opinião do cardeal Luciano

João Paulo I, quandoera ainda patriarca de Venezae se chamava


AlbinoLuciano, concelebrou, em 10 de julho de 1977, a santa missa,
com Dom J. Venâncio de Leiria-Fátima. No dia seguinte visitou-o,
no Convento de Leiria, Irmã Lúcia, a vidente de Fátima. Naquela
ocasião deu uma brilhante resposta a todos aqueles que desdenhosa­
mente desprezam aparições marianas ou encontros com Almas do
Purgatório, por serem revelações particulares. Comentando sua
entrevista com a Irmã Lúcia, ele escreveu:
“Alguém poderia perguntar-me: Mas terá um cardeal interesse
em revelações particulares? Não sabe ele que o Evangelho já contém
tudo? Eque nem as aparições aprovadas são artigos de fé? Certamen­
te, bemo sei. Existe, porém, um artigo de fé na Sagrada Escritura
(Marcos 16, 17): ‘aqueles que crêem serão acompanhados por
milagres!’Hoje está na moda investigar ‘os sinais do tempo’. Há uma
verdadeira inflação e uma praga de sinais. Por isso, eu acho ser
conveniente ligar às coisas que são postas em evidência por um
determinado sinal(15V’
Até oConcilio Vaticano II advertiu que não se devem desprezar
tais carismas:
“Esses dons devem ser aceitos com gratidão e alívio porque se
adaptam de modo especial às aflições e necessidades da Igreja, tanto
faz, se esses dons são de extraordinária intensidade ou se têm um
caráter simples e comum... Quem julga sobre a autenticidade e as
conseqüências práticas deles são os que governam a Igreja e que têm
o dever denão apagar o Espírito e de examinar tudo e ficar com o que
é bom(16l”

(15) Citado conforme à revista II Cuore delia tnadre, janeiro de 1978.

(16) Vaticano II, Constituição sobre a Igreja, 13.

30
O livro tem uma tarefa e missão a cumprir

O diário de Eugênia é uma provocação para o nosso tempo, é um


livro que tem causado horas insones a muitas pessoas, e a inúmeras
outras, conforto e alívio, pois nos mostra que até mães assassinas de
seus filhos e outros grandes pecadores podem ser salvos pela mise­
ricórdia divina. Não se trata de histórias baratas de horror, fabricadas
para mexer com os nervos de leitores enfadados; trata-se de fatos, de
relatos de aparecimentos de pessoas falecidas, que causaram verda­
deiro sofrimento existencial a Eugênia von der Leyen. O leitor pode
assim lançar um olhar ao mundo do Além, que, algum dia, será o
nosso também.
Hoje em dia, muitos católicos já não possuem mais a verdade
toda. Há paróquias em que certas verdades não são mais assunto de
catequese e pregação, como, por exemplo, mandamentos, pecado
grave, purgatório, inferno, anjos, demônios, Maria Santíssima, e,
deste modo, verdades importantes da nossa Fé são relegadas ao
esquecimento. Na Igreja formou-se um grande vácuo; apresentam-
nos apenas a Igrej a terrestre, o povo de Deus em marcha, mas da Igrej a
triunfante, dos santos no céu, e da Igreja padecente, das Pobres Almas
no Purgatório, não ouvimos quase nada. Parece-me que, por isso, este
diário tem uma tarefa e missão providenciais: com a força de um
autêntico carisma pode sensibilizar-nos novamente para o mundo do
Além e abrir-nos os olhos para os novíssimos, que atualmente são
relegados por gente tola. Se nos faltasse a convicção de estarmos
unidos a nossos irmãos poderosos no céu, união essa que nos faz tão
felizes, unidos a nossos companheiros de dor no purgatório, que tanto
precisam de nossa ajuda, se nos faltasse essa convicção, sentir-nos-
íamos extremamente pobres na nossa religião e nos nossos sentimen­
tos mais elementares. As Almas do Purgatório não podem rezar por
si mesmas, podem, porém, conseguir tudo em nosso favor junto a
Deus, se fizermos algo por elas. É este um dos mistérios mais
admiráveis da economia de salvação do nosso Deus.

31
A admirável economia de salvação

O conhecido jesuíta Comelius Lápide van Steen (1567-1637),


professor de exegese em Louvaina e em Roma, explica-nos a
economia de salvação de modo muito claro, ao tratar da passagem do
segundo livro dos Macabeus, cap. 12, versículo 43:
“O sacrifício pelos falecidos é sagrado porque está sendo
oferecido ao Deus Santo, em santa atitude espiritual. É santo e
piedoso também quanto às Almas do Purgatório que, por meio dele,
são libertadas dos tormentos terríveis e das chamas do purgatório.
Santo é o sacrifício em relação aos Santos e Bem-aventurados, cujo
número e cuja alegria e glória aumentam principalmente em relação
à Igreja, a qual nos concede advogados e intercessores junto a Deus
e, também, em relação ao celebrante, a quem, as almas, salvas por
intermédio dele, mostram-se gratas, implorando ele graças para a sua
própria salvação^17).”
No diário procuram-se em vão conselhos leves; é a aflição, é o
sofrimento indizível das Almas do Purgatório, que gritam por
socorro. Escreve Ana Catarina Emmerich, uma das maiores místicas
da Igreja:
“Oh! E triste que tão pouco se faz para ajudar as Almas do
Purgatório! Toda obra que se oferece a elas, esmolas ou sacrifícios,
alivia-lhes imediatamente as dores, ficam, por isso, alegres e felizes
quais homens morrendo de sede, que recebem as gotas salvadoras de
água cristalina.”
Advirta-se sobre o advérbio “imediatamente”. Dizemos que os
moinhos de Deus moem morosamente, mas por que, então, tanta
pressa em aplicar às Almas do Purgatório nossas boas obras?
Quem pensa com o coração acerta a resposta: É que Deus, para
usarmos linguagem humana, anseia, com infinito amor, para que as
almas, feitas conforme sua imagem e semelhança, fiquem totalmente

(17) Comentários ao Segundo Livro dos Macabeus, Antuérpia, 1693, p. 302, em Símbolos
da Eucaristia no Antigo Testamento, de Severin Grill, Klostemeuburg, Alemanha, 1960.

32
puras, para que Ele as possa estreitar em seus braços e apertá-las ao
Seu Coração. Essa é a explicação do grande poder das Almas do
Purgatório. Se nós lhes prestarmos ajuda, alcançam mais depressa a
purificação. Deus não hesita, falando em termos humanos, de pagar
um alto preço por esse nosso interesse. Compreendemos, pois, que as
Almas do Purgatório não podem ajudar-se a si mesmas, no entanto,
podem alcançar junto a Deus grandes graças por nós.
Merece menção o que disse a já mencionada bem-aventurada
Crescência Hõss de Kaufbeuren: “Se quero receber de Deus uma
graça bem importante, invoco as Almas do Purgatório e sempre sou
atendida.”
Seremos tolos se não nos convencermos destas verdades. Se os
nossos pregadores, em vez de se dedicarem tanto à psicologia e a
obras sociais, dissessem aos homens as verdades sobre as Almas do
Purgatório e sobre as outras grandes realidades da religião, em breve,
as nossas igrejas vazias se encheriam de fiéis, ávidos de ouvirem e
meditarem sobre essas verdades, ao invés de reduzidas, como se
encontram hoje, a uma existência meramente museulógica.
E tu, alma querida, que estás lendo estas frases, se tu não
acreditas nessas verdades expressas por cada linha deste diário, faze
um teste: Se precisas de uma grande graça, oferece um sacrifício a
valer pelas Almas. Reze para que se cumpra a vontade de Deus e verás
que a ajuda vem. As Almas do Purgatório não deixarão de te ajudar.
São as mais amigas, as mais fiéis de todas as pessoas que Deus te deu
neste mundo.

Amold Guillet
editor

u
PREFÁCIO

Asfontes onde nascem os mistérios nunca se encontram lá, onde


instituições e poder reivindicam direitos sobre a posse desses misté­
rios; elas irrompem em algum lugar onde ninguém o espera. Pessoas
agraciadas — artistas, santos, músicos — surgem em tempos e
lugares qual presente do Espírito Santo, e seu aparecimento nosfaz
rezar: “Nós Vos agradecemos por todas essas magnificências que
provêm da Vossa Fonte de Luz e Amor e pelos homens se revelam ”.
Nós, que por muito tempo esperávamos a salvaçãopela ciência,
e que estamos agora diante de grandes bibliotecas que nos torturam
qual um coro loquaz de dissonâncias selvagens, temos percebido,
tarde demais, que esses professores-funcionários eram teólogos do
Estado, e que Gõrres, sob a deificação do EstadoporNapoleão epela
Prússia, clamava por um novo Atanásio. Pois este, enfrentando a
oposição dos poderosos bispos da corte e do Estado no século IV,
restabeleceu os direitos de Deus por não permitir, a nenhum poder
do mundo e a pessoa nenhuma, de se erguer por cima do Altíssimo.
Toda a luz que há no mundo é Luz de Deus. Toda a verdade brota de uma
sófonte. Tudo e todos devem dobrar osjoelhos diante do Senhor Jesus
Cristo. Nem as instituições eclesiásticas podem dispor, a seu talante,
desse único Senhore Deus, poisnão sãofonte, mas agraciadaspelafonte.

Quem nos ajuda contra a montanha de areia movediça?


Depois de, no século XIII, ter alcançado o apogeu, a academia
teológica deu ensejo a queixas ininterruptas. Henrique Seuse, o
grande místico, lamenta que ela nãofosse capaz de lhe dar verdadei­
ra satisfação e paz da alma, e que deixasse sua mente inteiramente
desconcentrada. A arrogante confiança na capacidade científica do
homem tem se desmascarado justamente nos tempos atuais, qual
esforço para assimilar a montanha de areia movediça de conceitos
acadêmicos. Cristo e a Sabedoria Eternajá não são aceitosplenamente.

35
Quemnosconseguirásàbedoriaconcentrada?Lemosnocapítulosetedo
Evcmgelhode SãoJoão: “Noúltimodia, omais importantedafesta, Jesus
veio a público e exclamou: Se alguém tiver sede, venha a mim e beba.
Quem crê em mim, do seu interior correrão rios de água viva ”.
Possuir espírito quer dizerpreocupar-se, com infinita inquieta­
ção, para com a eternidade. Ofilósofo Sõren Kierkegaard censura
os que acreditam possa o espírito meramente terreno, que governa
a técnica e a política, solucionar asprofundas preocupações existen­
ciais do homem.
Impulsionados pelo mesmo pensamento do filósofo dinamar­
quês, apresentamos, aos espíritos investigadores, a mais importante
obra sobre aparições depessoasfalecidas, reconhecidapelos maiores
especialistas da mística religiosa como a mais pura e a mais
autêntica documentação desta doutrina. Trata-se dos apontamentos
que anotava em seu diário, entre 1921 a 1929, a princesa Eugênia
von der Leyen. No transcurso daquele período, sofreu ela as mais
extraordinárias aparições de pessoas falecidas. Nós, que vivemos
entre duas épocas, e assistimos ao definhar do reinado de uma
teologia racionalista e mumificada, assistimos, igualmente, à
decadência dos hábitos burgueses e de uma época em que boa parte
dos cristãos perdeu a fé na vida eterna.
Que ninguém seja tão simplista a ponto de pensar em um
ressurgimento da velha Fé, só porque a teologia racionalista está em
agonia; tampouco cantem vitória osfiéis, sópor se sentirem tentados
a proclamar que estavam com a razão. Poisjá entramos na segunda
época há pouco referida. Agora se levantamforças poderosas que,
apesar de estaremfora da religião católica, tratam da preocupação
mais íntima do homem, efazem declarações a respeito dos mistérios
escondidos no findar da vida e na morte.
Associações de parapsicologia na Europa e nas Américas,
médiuns de talento indiscutível, sociedades místicas secretas em toda
a parte buscam, com avidez, desvendar os mistérios do Além. E
fazem-no valendo-se de recursos científicos e experiências clínicas.
Todavia, essa curiosidade do homem moderno— ela própria— nos

36
adverte que não estamos em condições de solucionarfacilmente, e
sem perigo de errar, o problema da morte. O príncipe deste mundo,
do qualfala o Salvador, não é apenas político mas quer ser também
"diretor espiritual ”. Ele pretende tomar inofensivas as perguntas, e
justamente as mais íntimas, aquelas que, depois do malogro do
racionalismo, intentamfazer. Ele as teme, e não as podendo respon­
der, joga-as no remoinho da confusão. Não se sente incomodado
pelos teólogos católicos, entre os quais muitos estão ocupados em
expor o Corpo Místico da Igreja católica a bacilos perigosos, devido
às monstruosas experiências que com ele fazem.

Temos que esperar pelos poetas?


São os poetas que devem avivar nossa consciência ? Temos que
esperarpor eles para alguém nos dizer que devemos preocupar-nos,
apaixonadamente, com a sorte das almas dos nossos falecidos?
Escutemos aspalavras suplicantes do grande poeta alemão Friedrich
Hebbel(1813-1863):(l8>
“Alma, não os esqueças,
alma, não os esqueças, os falecidos!
Vê, eles esvoaçam em tomo de ti,
tiritando de frio, abandonados,
e se também tu, arrefecendo
perante eles, fechares tua alma,
então seu íntimo mais profundo gela-se
e agarra-os o turbilhão da noite
ao qual, em espasmos se torcendo
resistiam no seio do Amor
e, qual implacável caçador,
os persegue com violentofuror
por sobre a mortalha do deserto sem fim
que cobriu a vida;

(18) Hans Urs von Balthasar: Prometeu, Estudos sobre a história do idealismo alemão,
1947, 2a edição inalterada, Editora F.H. Kehrle Heidelberg, Alemanha.

37
lá ruge o combate de forças soltas
em procura de uma renovação de seu modo de
[ existir,
de seu modo de existir...
de seu modo de existir...
Alma, não os esqueças,
alma, não os esqueças..., os falecidos.
Temos que rejeitar qual monstruoso erro a sentença: “Nada
sabemos de uma vida depois da morte, pois ninguém voltou de um mundo
no além ou aquela outra sentença: “Crer significa não saber nada
Há muito que homens da têmpera de um Ludwig Klages se
opuseram a essa visão do mundo, divulgada entre opovo simples por
marxistas, liberais ejovens, — estes por aqueles doutrinados— que
defende a existência de uma alma racionalista e mecânica. Klages
sentiu que a mente cometera uma separação catastrófica, distanci­
ando-se do resto do corpo. Mas, reconhecer um erro não significa,
necessariamente, conhecer a verdade e, por isso, esses pensadores
desiludidos não encontraram o caminho à sabedoria dos gênios
religiosos, isto é, dos santos. E, em sua cegueira, enveredaram, pela
antroposofia, pelo espiritismo oupelas drogas, pretendendo alcançar
regiões mais vastas, já que haviam sentido a irremediável limitação
de seus conhecimentos. Nesse sentido, o escritor Aldous Huxley fez
experiências com a mescalina e via vultos heróicos, seresfabulosos,
fantasmas, regiões fantásticas, e constatou que a produtividade do
cérebro “perturbador” é amortecida pelos entorpecentes, que con­
seguem passar pela parede que, antes, era protetora e indevassável.
As drogas foram desmitificadas e mostradas, na realidade, como
forças que destroem o homem, não se podendo, em sã consciência,
delas esperar nenhuma revelação do Além.

Claudel nos fornece a explicação


Desprezando as cavernas diabólicas das drogas e as sessões
ameaçadas por influências igualmente demoníacas, procuramos o

38
poetafrancês Paul Claudel, para lhe perguntar por que é tão estéril
o nosso espírito.
Claudel era um alto funcionário do Ministério do Exterior.
Podia colher experiências em todas as partes do globo. Num esforço
dramático lutava para se santificar. A história que ele nos conta do
“animus”eda “anima”(= cabeça e alma) nos mostra as dificuldades
de sua caminhada. O leitor não acostumado a símbolos — é o que
comumente ocorre com o homem da nossa época — atenta para o
trágicofato de estar o nosso íntimo dividido, e, por isso, despojado
de conteúdo humano. Claudel quer demonstrar o desenvolvimento
errado do nosso espírito e explicar por que, contentando-nos com os
conhecimentos superficiais da cultura moderna, temos fechado as
fontes da ciência do divino amor. Escutemos a história de Claudel:
“Não está dando certo o casamento de Animus com a Anima,
do espírito com a alma. A lua-de-melfoi de curta duração. Naqueles
dias, Anima podia à vontade dirigir-se a Animus que, encantado, a
escutava. Mas há muito tempo que isso se dava. Aliás, foi ela quem
trouxe o dote que mantinha a casa. No entanto, Animus não agüentou
sua posição de subalterno e, em breve, mostrou seu verdadeiro
caráter: inflado, pedante e tirânico. Ele acha que Anima é uma
bobinha que nunca freqüentou escola, enquanto ele é sabido, pois
tem lido tanta coisa nos livros e todos os seus amigos dizem não haver
ninguém quefale melhor que ele. Anima nem pode mais abrir a boca
— ele sabe melhor que ela o que ela quer dizer. Animus não éfiel, o
que, porém, não o impede de ser ciumento. Pois no fundo ele sabe
(desculpem, ele, enfim, o esqueceu) que todos os bens da casa são
dela e que ele é um mendigo e só vive daquilo que Anima lhe dá. Por
isso, ele constantemente a explora e a tortura para extorquir-lhe
dinheiro. Ela continua em casa, calada cuida da cozinha e faz a
limpeza do lar, do melhor modo possível... Outro dia, porém, algo de
estranho aconteceu... Certa noite, Animus voltou para casa
inesperadamente e ouviu que Anima, lá dentro, de porta fechada,
cantava, sozinha, de si para si, uma canção esquisita, algo que
desconhecia. E não houve meio de encontrar as notas ou as palavras
ou a chave. Era uma canção rara e maravilhosa. Desde então ele tem

39
tentado, perfidamente, conseguir que ela a repetisse; Anima, porém,
faz de conta que não o compreende. Basta que ele olhe para ela, ejá
se cala. A alma cala-se. Enfim, Animus ideou um truque: ele
consegue arranjar as coisas de tal modo, que ela chega a supor não
estar ele em casa... Aos poucos, Anima se acalma: ela olha para o
alto, escuta atentamente, respira, julga estar só e, baixinho, vai à
porta e abre a seu amado divino ”.
É, pois, devido à nossa condição mundana quejá não compre­
endemos a intimidade da nossa vida com Deus; seu Amor para
conosco tomou-se algo de estranho. O que foi que nos iludiu e nos
imbuiu da vã suposição de que seriamos capazes de decifrar os
enigmas da vida pela nossa esperteza? a cobiça de possuir? a
sofreguidão pelo poder? a cupidez de satisfazer o sexo? Seja o que
for, ofato é que nos separamos da humanidade inteira. Sabe-se, no
entanto, que os mortos continuam a viver no Além. A experiência dá
testemunho de que osfalecidos continuam vivos. Nunca se ignorou
que os seres humanos têm uma vida eterna e pode-se dizer que as
relações com os mortos não se trata de uma crença, mas de um saber, de
conhecimentos de todos os povos e de todas as comunidades tribais.
OsmistériosdoEgitogiravamsomente, numapreocupação infinita,
em tomo da sobrevivência eterna do Homem. Ele sentia sua grandeza e
sabia ter recebido um destino, uma vocação especial. E este seu saber
produziu todas as culturas. Mas a situaçãoparticular em que se achava,
trazia consigo preocupações, inquietação e melancolia, pois sentia que
não era deus e que ele, no Além, estaria sujeito a umjulgamento, e que
seria julgado conforme o objeto de seu amor. Mas o amor é sempre
participação no amor divino. E um caminho áspero que deve ser tomado
por aqueles que procuram conhecer a verdade: o duro caminho dos
mortos que recebem a graça de aparecer a santos deste mundo.

Para Eugênia não havia muro


Foi uma cruzpesada que aprincesa Eugênia von der Leyen teve
de carregar, padecendo os sofrimentos das almas que, em sua vida
terrestre, muito fracassaram na prática do amor a Deus. Para

40
Eugênia, na muralha entre a Igreja padecente e militante, havia
muitas brechas. Seus sentidos percebiam a horrenda realidade do
pecado e, com isso, sofria terrivelmente sua alma amorosa. Foi
documentado que ela via mortos, pois estes chegavam a dizer-lhe
como se chamavam, e isto ocorria até com pessoas desconhecidas,
cuja vida terrestre podia ser averiguada. A pessoa da vidente é, hoje,
muito conhecida, e, para o leitor desta obra extraordinária, será
gratificante conhecer melhor a personalidade de quem a escreveu.
A princesa (por seu caráter humilde e amoroso preferiríamos
chamá-la simplesmente “essa cristã”) nuncafalou a ninguém sobre
o que se passava com ela, nem a seus familiares. A única pessoa a
quem se dirigia a respeito dos casos por ela vividos, era o pároco,
homem inteligente e culto, que lhe recomendou escrever um diário.
Antes de morrer, em 9 de janeiro de 1929, com a idade de 62 anos,
ela entregou o diário ao seu diretor espiritual; este, ao deixar a
paróquia, levou-o consigo, e, por sua vez, confiou-o, antes de sua
morte, ao escritorBruno Grabinski, pessoa muito versada em mística
e parapsicologia, a quem devemos a publicação do diário.
O diretor espiritual de Eugênia era bastante crítico. Ele, que
também faz jus à nossa gratidão, declarou sob juramento:
“Eu conheci a vidente durante seus últimos doze anos de vida;
todos os dias tinha conhecimento de seus encontros com almas. A
meu conselho, ela anotava o que via num diário. Nem ela e, no início,
nem eu, tivemos a intenção de publicá-lo... A vidente levava uma vida
santa. Era de uma piedade autêntica, humilde como São Francisco,
zelosa na prática do bem e desmedidamente generosa: sempre
prestativa e pronta a renunciar à própria vontade, disposta aos
maiores sacrifícios, querida por Deus e por todos que a cercavam.
Quem a conhecia, venerava-a. Jamais desejou atrair a atenção de
quem quer quefosse. Tinha um talento especial para prestarfavores
e proporcionar surpresas agradáveis aos outros. O caráter da
princesa é a mais sólida garantia de que merece crédito. Declaro, sob
juramento, que a aconselhei a anotar, clara e integralmente, suas
experiências reais, mas nunca, e em parte alguma, lhe sugeri
quaisquer opiniões minhas. Sob qualquer ponto de vista, respondo

>11
pela credibilidade do diário e peço ao leitor lembrar-se da princesa
que, certamente, está agora fruindo a visão de Deus; ela merece
nosso respeito e nossa gratidão. ”
Um seu primo, o príncipe C. L, confirma a declaração do
pároco Sebastião Wieser:
“Subscrevo plenamente a apreciação de sua personalidade, feita
pelo pároco Wieser. E totalmente exata. Ela vivia sacrificando-se pelos
outros, efazia-o gostosa e alegremente, semfazer caso disso. Era de uma
simplicidade total, sem afetação, e sem quaisquer pretensões pessoais.
Tinhamuitosensodehumorecomicidade,poiserainteligente,muitoviva
e alegre. Era querida em toda parte, e muito procurada para fazer
companhia. As crianças eram loucas por ela. ”
Uma empregada escreveu a Bruno Grabinski:
“A princesa era amiga de todos, alegre e desprendida de si
mesma. Todo o mundo gostava muito dela. Desconhecia totalmente
caprichos; continuava sempre amiga e carinhosa. Acho que a idéia
do sacrifício e da reparação pelos pecados já a conduzia naquele
tempo em que a conheci. ”

Arrasta-me uma felicidade nunca imaginada


As experiências da princesa não foram de natureza
parapsicológica; provam-no asfrases que lançou no seu diário, em
4 de maio de 1924 e em 18 de março de 1925. São comovedoras, pois
demonstram que ela experimentou a tomada de posse do Espírito
Santo totalmente perplexa e sem entender a felicidade íntima que
gozava. Com toda humildade pede, em seu abandono, explicação
daquilo que se passa em sua alma. Não se trata de visões, de êxtases,
é a vivência íntima da união com Deus, do mais alto grau daquela que
ama, daquela que carrega a cruz.
“Tenho de adorar e amar— não sei como descrevê-lo: é como
um desfazer-se em algo de divino. Eu lhe peço—eu. Eu não o quero,
mas aquilo vem e se apodera de mim numafelicidade inconcebível. ”
Essa experiência, com oAmor Divino, sem qualquer colaboração
daparte dela, e sem que ela consigaformular qualquerpalavra, não tem

42
explicação natural A anima (= alma) está sendo agarrada, impregnada
de calor e de claridade de Deus. O amor de Deus arde no imo da alma,
depois de ela terfeito cruz sua vivência e suaforma de pensar.
Dos escritos da doutora eclesiástica, Teresa de Ávila, e de
outros místicos, podemos depreender essa felicidade, constatando,
ao mesmo tempo, com tristeza e pavor, o quanto os teólogos
hodiemos, neste ramo da teologia, nos têm defraudado. “Como
acreditarão Naquele do qual nada ouviram?” (Romanos 10,14).
Muitosleitoresdodiário,homensquequeriamconhecerorealismo
eaveracidade da religião, descobrem,justamente nisso, revelações cujos
frutos são fé, amor e humildade e que fazem que a alma se volva a si
mesma. Num mundo como o nosso, torturadopor todos os amargoresdo
mal, rebaixado até o animalesco, roído pela lepra do pecado, ainda
bruxuleia a esperança. “Chego a ti, qual um enfermo ao médico da vida,
qual cego à Luz da Eterna Claridade ”, reza S. Tomás de Aquino.
Não existe editor que consiga descobrir um autor capaz de
escrever uma tal obra. Inúmeras vezes o mundo em que vivemosfoi
pesquisado. Mas é esse o mundo verdadeiro em que vivemos? E só
isso que nos cerca? Estamos rodeados por pessoas falecidas que,
indizivelmente tristes, querem comunicar-se conosco enquanto olha­
mos unicamentepara o mundo terreno. Oh! que miserável escravidão
em que nos metem os sentidos!

Em harmonia com o ensino da Igreja


Para que o leitordo diário entenda umpouco o mistério da alma
e a escravidão do nosso espírito às coisas do mundo, mencionare­
mos, na abundância dos mistérios, duas noções que derivam das
aparições: música e beleza.
Eugênia escutava sons surgindo de algum lugar indefinido.
Embora não possamos confiar no espiritismo, sabemos, porém, que
um médium dificilmente pode concentrar-se sem música religiosa.
Até um povo que sofre catástrofes ou pranteia mortos queridos, deve
mudar de programa de rádio e televisão, pois é impossível guardar
o amor e a dignidade ao som de música selvagem, que apela para os

43
músculos. Dizem que Elvis Presley, aofim de sua vida, tinha reconhecido
que boa parte da música moderna estragara a alma da mocidade. Por
isso, aliturgiaprecisademúsicasublime,poisemlugarsagrado, amúsica
dos músculos é com razão considerada blasfema. A alma, “anima”,
anseiapelamelodiaquelheabreosolhospelo “celeste esposo”, equelhe
dá umafelicidade que não é deste mundo. Ela vê também, aterrada, a
feiúra do homem em pecado, e, na subida da alma à Luz, a beleza
readquirida da imagem de Deus.
Os sábios gregos viam três possibilidades para participar da
Divindade: pela bondade, pela beleza e pela verdade. O que nos
apresentam como cultura nos tempos atuais é aquilo que éfeio, grotesco,
estúpido, perverso e imoral. O que aconteceu conosco? Tomaram- se
nossos guias osfilhos das trevas? O estupro da beleza da criação deve
apenas horrorizar-nos e advertir-nos para não considerarmos afeiúra
da arte como algo que nos possa elevar espiritualmente.
O diário está em harmonia com a doutrina da Igreja. Mesmo a
teologia conservou, até hápouco, tudo quanto a princesa experimen­
tou. Só que tudo isso seria como que umferro em brasa, no qual não
se toca. Mas agora chegamos a reconhecerpor que as universidades
não compreenderam a alma humana, por que Kierkegaard — com
toda a razão —protestava contra a renúncia à sabedoria viva, e por
que Henrique Seuse se sentia totalmente “desconcentrado ”, incapaz
de se recolher. Quem no-lo ensina, por meios audiovisuais, é a
mocidade e até alguns adultos, que se contaminaram com o mundo
desorganizado das seitas, das “religiões da juventude” e até do
marxismo, e que abandonaram o Salvador Crucificado eprocuraram
refúgio no mundo selvagem e cruel. Nietzsche via nisso o arroubo
faminto das profundezas do ser contra o Crucificado.
Pilatosperguntava: “Oque é verdade ?”As realidades vividaspela
princesa e confiadas ao diário são verdades que nos tomam capazes de
solucionar as secretas preocupações pela nossa sorte na eternidade, e
compreender a virtude da esperança qual presente divino.

Dr. Peter Gehring

44
DIARIO DA PRINCESA ■
■ EUGÊNIA VON DER LEYEN ■

A freira

• 9 de agosto de 1921 — Cinco horas da tarde. Vi nojardim, entre


duas árvores, uma freira. Parecia estar me esperando. Pensei tratar-se
de uma velha conhecida e apressei-me a ir ao seu encontro. De
repente, ela desapareceu sem deixar vestígios. Retomei o caminho
para ver se uma sombra de árvore me ocultara a visão. Mas não
descobri nada de especial.
• 13 de agosto — Dirigindo-me à igreja, a freira veio ao meu
encontro.
• 19 de agosto — Ela passou ao meu lado; vi, claramente, pelo
hábito que vestia, pertencer às Irmãs de Mallersdorf/')
• 25 de agosto — Encontrei-a na escada que leva à capela.
• 30 de agosto — Ela me esperava à porta.
• 11 de setembro — Avistei-a no jardim.
• 14 de setembro — Dei com ela na capela. Antes da missa, vi
algo refletir-se na vidraça dajanela à minha frente. Pensei que ajanela
atrás de mim não estivesse bem fechada. Virei-me, e lá estava ela.
Examinei-a detalhadamente. Ela tinha os olhos grandes, escuros e
muito tristes. Nãoestava pálida, e tinhaojeito de qualquer pessoa com
quem topamos todos os dias, mas era-me totalmente desconhecida.
Parecia não ter braços, e causou-me uma sensação horrível porque
estava pertinho de mim.
• 17 de setembro— No jardim, ela deslizou rápida ao meu lado.
• 19 de setembro — Eu brincava de bola com uma criança,

1. As Irmãs de Mallersdorf (As Pobres Franciscanas da Sagrada Família) são uma


congregação feminina muito espalhada na Baviera; a casa-mãe está em Mallersdorf
(Baviera).

45
quando, de repente, a freira passou entre nós duas. Devo ter feito
uma cara muito assustada, pois a criança perguntou-me o que eu
estava vendo.
• 22 de setembro— A freira estava sentada na escada da capela.
• 2 de outubro — Eu estava colhendo flores. Lá estava ela na
minha frente, de tamanho sobre-humano. Faltou-me ainda coragem
para dirigir-lhe a palavra, e quando me havia resolvido a falar-lhe, ela
desapareceu.
• 7 de outubro — Infelizmente, entrou também no meu quarto.
Comuma sensação desagradável, acordei. Acendi a luz; ali estava ela
junto à minha cama. Transida de medo, faltaram-me forças para lhe
falar. Defendi-me contra ela com água benta. Passou por cima de mim
e entrou na parede. Que susto, meu Deus!
• 11 de outubro— Fui deitar-me por volta de dez horas da noite.
A conversa com os hóspedes fora muito boa; era a época da caça(la)
e, nem de longe, pensava nela. Acendi a luz; ali estava ela, junto à
minha cama. Passei rente a ela, fui à pia de água benta, dei-lhe
algumas gotas e lhe perguntei: “O que queres que eu faça?” Com olhar
penetrante, fixou-me e disse, sem mexer os lábios: “Deixei de enviar
vinte marcos às Missões(|b)”. Não me lembro se lhe prometi mandar
aquela soma às Missões ou se apenas lho dei a entender por um gesto
afirmativo de cabeça. Naquele momento, eu estava impressionada
demais. Em todo caso, ela estava satisfeita, pois se aproximou muito
de mim, como se quisesse dizer-me alguma coisa. Causou-me tanto
medo, que a borrifei depressa com água benta, e ela desapareceu
janela afora. Embora tudo tenha sido tão excitante, dormi muito bem.

(1 a) As caças, para as quais se convidavam parentes e amigos, eram sobretudo aconteci­


mentos sociais.

(1 b) Ao ler estas linhas, muitos ficam surpresos e comovidos ante o fato de alguém, por
causa de vinte marcos, tivesse que sofrer tanto. Parece que tais leitores se enganam, pois
não se esclarece qual a razão do sofrimento da freira nem se mencionam os pecados que
a levaram àquela situação. Em todo caso, aqueles 20 marcos são sinal de sua maneira
errada de viver.

46
Os vinte marcos foram enviados às Missões e pela pobre alma foram
rezadas santas missas.
Tive sossego até o dia 3 de novembro, data em que me foi
concedida uma grande alegria. Quando, pelas onze da noite, fui
deitar-me, vi o meu quarto iluminado. Pensei que havia deixado a
luz acesa, e entrei. A freira estava no mesmo lugar em que ficara na
vez anterior. Mas, que diferença! Saiu dela como que uma luz
radiante. Seu hábito escuro estava como que envolto em brilho. Mas
o mais reluzente era a expressão de seu rosto. Acho que seus olhos
já haviam visto o Bom Deus. Ela me olhou, sorrindo feliz. Pela pri­
meira vez, vi suas mãos; estavam cruzadas sobre o peito. Seu rosto
só era comparável a uma opala; não encontro outra comparação;
tive uma surpresa e um susto muito grande, e tão alegre e estarrecida
me senti, que não me lembrei de perguntar outra coisa a não ser:
“Como te chamas?” Muito solene, ela fez o sinal-da-cruz; o quarto
ficou escuro e ela desapareceu. Por conseguinte, não fora a luz elé­
trica que o havia iluminado. Estou certa de que não me enganei. É
impossível sentir o que eu senti se tais coisas não tivessem aconte­
cido realmente. A aparição me parecera bem mais alta que nas outras
ocasiões e, pela primeira vez, seus pés não tocavam o chão. Foi a
última aparição da freira e que, por assim dizer, me abriu, talvez, os
sentidos do corpo e da alma para novos encontros.

A condessa Maria Schonborn®

• 4 de fevereiro de 1922— Às nove horas da manhã, encontrei-


me com uma senhora de vestido marrom, gola branca de rendas e
touquinha do mesmo feitio, bastante alta e esbelta, à moda da segunda
metade do século passado. Não a conhecia.

(2) Como já mostramos na apresentação deste livro, a princesa Eugênia von der Leyen
escreveu em seu diário todos os nomes por extenso, motivo pelo qual o livro alcançou
grande veracidade.

47
• 17 de fevereiro — Vi-a na escada.
• Io de março — Outra vez na escada.
Estive ausente até 20 de maio. No dia de minha volta, eu a vi
entrar na biblioteca do segundo andar. Outra vez, em 26 de maio.
Quando, em 28 de maio, domingo, voltei da primeira missa, ela
subia a escada à minha frente e entrou novamente na biblioteca. Já que
eu havia tomado a comunhão, tive coragem de segui-la. Quando fui
abrir a porta, estava ela voltada para mim, como se me esperasse.
Perguntei-lhe: “Quem és tu?” — “Maria Schõnbom”.
Era, pois, a irmã de uma tia minha que eu não chegara a conhecer.
Perguntei-lhe: “O que queres de mim? Por que não encontras paz?”
— “Aqui pequei!”, respondeu-me, e desapareceu. Rezamos por ela,
muito; e nunca mais a encontrei.
Já mencionei que estive fora em março e abril. Em O., fiquei no
quarto de uma querida parenta minha, que falecera. Naquele quarto,
não a vi. Certo dia, num passeio, em meio a um prado, ela veio ao meu
encontro, de ancinho no ombro, muito suada, e ria para mim. Quase
que não acreditei no que meus olhos me mostravam. Ela me aparecera
como sempre o fora, e se eu não me encontrasse em companhia de
outros, teria gritado de alegria. Infelizmente, pouco depois, ela
desapareceu. Nada falei do acontecido em casa. Contei apenas aonde
tinha ido. Disseram-me: “Oh! lá em cima! a Hortense costumava
ajudar uma pobre mulher a fazer feno.”
Tive a impressão de que ela não precisava de minhas preces.
Antes, vi nesse encontro um sinal, pois nós éramos muito amigas e eu
lhe contara a história da freira e deixado a seu critério aceitá-la ou não.
Ela me respondeu não poder acreditá-la sem falar comigo a esse
respeito. No entanto, antes de trocarmos idéias, faleceu.

Os “onze” e o pároco Schmuttermeier

Em 4 de julho de 1922, vi, pela primeira vez, as onze sombras


que me aparecem constantemente. São colunas de neblina clara, de

48
tamanhos diferentes. Vejo-as sempre no terraço da frente e 110 morro
que desce atrás da cervejaria. De quando em quando, chegam bem
perto de mim. Não se reconhece que se trata de vultos humanos, antes
se parecem com aspargos gigantescos, envoltos em neblina. Vejo-as
tantas vezes que já não ligo, nem anoto a data em que se mostram.
Na festa do Natal, depois da primeira missa, chegaram perto de
mim; disse-lhes: “Se sois Almas do Purgatório, adorai o Menino
Jesus”. No mesmo instante, curvaram-se como que atingidas por um
raio, e desapareceram. Estranho, aquilo!Pois até agora nunca haviam
reagido a qualquer palavra minha.
• 27 de dezembro de 1922 — Vi o pároco Schmuttermeier*3)
aproximar-se de mim quando me achava no jardim. Foi por um
instante apenas, mas estou certa de que não me enganei/4)
•9dejaneirode 1922— Ele me esperava próximo à capela. Seu
aspecto não era nada bom. Perguntei-lhe: “Sr. vigário, posso ajudá-
lo?” Ele pediu que eu mandasse rezar uma santa missa; o que foi feito
na primeira oportunidade. Apareceu-me à noite daquele mesmo dia.
• 25 de janeiro— Foi pela quarta e última vez que o vi. À noite,
fui à igreja. Vi no confessionário a branca manga de uma sobrepeliz.
Achei estranha a presença do vigário no confessionário, pois não
havia gente na igreja; pensei comigo, porém, que não demoraria e
chegariam pessoas para se confessar. Veio-me a idéia de eu também
aproveitar a ocasião, e me confessar. Passados uns cinco minutos,
ouço abrir-se a porta do confessionário— e sai o pároco Schmutter-
meier; passa perto de mim, sorri-me cordialmente, caminha pelo
corredor do meio e ajoelha-se no degrau debaixo da lamparina. Pouco
depois, vem o sacristão para tocar as ave-marias. Acho que vai
tropeçar no pároco. Naquele instante, acendeu-se a luz elétrica e pude

(3) O pároco Schmuttermeier, o antigo diretor espiritual da princesa, morreu em 1899.

(4) Depois de ter saído a primeira edição desta obra, Maria Feistle, de Waal, nos escreveu:
“O pároco Schmuttermeier foi vigário de Waal, de 1926 a 1935; por isso não pode ter sido
o professor de religião da princesa Eugênia. É possível que se trate do vigário Mathias
Sollweck, falecido em 1899 ou 1900 (?).”

49
ver tudo bem direitinho. Foi muito esquisito o que aconteceu. O
sacristão continuou andando e passou através do vigário, como se
fosse apenas uma sombra. Vi claramente os dois. Pouco depois, o
pároco sumiu e nunca mais o vi.

Bárbara e Tomás

Vi a alma de nosso velho empregado dezessete vezes, mas


somente no hospital. Nunca falei com ele.
• 31 de janeiro de 1923 — Passei alguns dias num quarto do
terceiro andar. Ao olhar no espelho, de dia, vi nele refletida a cabeça
de uma senhora. Virei-me, lá estava ela, uma dama vestida de rosa;
desapareceu, porém, no mesmo instante. Trajava à moda do século
XVI; percebi, porém, que o jeito do penteado não combinava com o
traje. Fui dormir com uma sensação desagradável, pois ouvi, do
quarto vizinho, que não tinha ocupante, uma voz de timbre muito
especial, que a gente nunca mais esquece. Dormi razoavelmente bem
até às três da madrugada. Então, despertei com uma sensação ruim.
Eu sabia que ela estava perto. Acendi a luz e, pronto!ela e um homem
em trajes de cavaleiro estavam à porta. Recorri à água benta e
perguntei: “Quem és tu?” — “Bárbara.” — “O que queres?” Não
obtive resposta. Ela pôs o dedo nos lábios e me convidou, com um
gesto, para sair com ela. Tudo era tão natural, que senti vergonha de
pular da cama na presença daquele cavaleiro que a acompanhava.
Partiram, pois, e notei uma ferida na cabeça de Bárbara, no occipício.
Era esse o motivo de ela ter o penteado tão estranho. Não tive coragem
de os acompanhar, mas depois de terem saído, fui ver aonde iam.
Entraram na alcova. Eu nem podia ter entrado lá, pois a porta estava
trancada à chave.
• 5 de fevereiro — Estive ocupada no corredor de cima. Lá
chegou ela, Bárbara, e entrou na alcova. Desci correndo, busquei a
chave e corri atrás dela. Entrei na alcova. Lá estava ela, encostada à
parede, esperando por mim. (Havíamos pesquisado nas crônicas e
encontrado duas pessoas de nome Bárbara). Perguntei pois: “És a

50
Bárbara de L.?” — “Sou.” — “Queres rezar comigo?” De olhos
duros, fixou-me e acenou um sim. Rezei “Alma de Cristo” etc. Ao
dizer a frase: “Água do lado de Cristo, lavai-me”, ela começou a
chorar e a soluçar terrivelmente, com as mãos diante do rosto. Depois,
ainda de olhos duros, saiu torre afora. Durante algum tempo, não mais
subi àquele andar. E ela tampouco apareceu. Em seguida, uma pintora
se instalou num quarto lá em cima. Subíamos, então, muitas vezes,
para ver seus trabalhos, e Bárbara não reapareceu.
• 21 de fevereiro — Uma hora da noite. Acordo com aquela
sensação que sempre experimento quando as Almas do Purgatório
vêm procurar-me. De fato, Bárbara e seu companheiro haviam
chegado. Fiquei aborrecida, e bastante, porque julgava estar protegi­
da contra suas visitas. Exclamei: “Por que não ficam vocês lá em
cima?” — “Porque eles não nos podem ver.” Perguntei ao homem:
— “Como te chamas?” — “Tomás”, respondeu Bárbara em lugar
dele. — “O que queres que eu faça?” — “Uma santa missa”,
respondeu Bárbara. Rezo com eles e digo: “Não venham mais; eu lhes
prometo que será rezada uma missa por vocês.” Eles se foram e não
mais os vi.
Estranho! Sai tanta força das almas! Sua simples presença
desperta-me. É uma sensação esquisita quando, ao acordar, a gente
sabe perfeitamente o que nos espera. No escuro, nada enxergamos.
Quando Bárbara ainda v in h a l, fechei uma vez os olhos para
verificar se minha vista estava normal; mas, então, não vi mais nada.

Nossa velha cozinheira Crescência e a mãe assassina

Naqueles dias em que Bárbara vinha, deu-se outra aparição. Em


Iode fevereiro de 1923, estava eu com a cozinheira na despensa. De
repente, entre nós duas, se interpuseramduas almas, uma, a Crescência,
que esteve conosco 42 anos e que havia falecido em 1888; e, a seu

(4a) Ela temia, talvez, ser vítima de uma alucinação. Por isso examinou a capacidade de
sua vista.

51
lado, uma desconhecida, de aspecto desagradável. Crescência parrc-
cia a mesma que fora em vida: bastante simpática. Dois dias depois,
eu a encontrei embaixo, no corredor. Euvstava em companhia <de
alguém e não me foi possível falar com ela.
• 24 de fevereiro— Às quatro da manhã acordo e acendo a luiz.
Junto à minha cama está Crescência e, a seu lado, aquela desconhae-
cida. Perguntei: “Crescência, querida, donde vens?” — “Do espaçço
intermediário.” — “Como me encontraste?” Ela fez um gesto cormo
para dizer que veio pelo ar. Digo-lhe: “Não venhas mais me procuraar.
Prometo que será rezada uma missa para ti. Louvado seja Nossso
Senhor Jesus Cristo!” Ela se foi e, com ela, a desconhecida.
• 28 de fevereiro—Às 4:30 vem a desconhecida®. Que horronr!
Ela fica mais de dez minutos. Dou-lhe água benta. Rezo. Ela nem sse
mexe; apenas me olha como que zangada comigo. Tenho muitto
medo, nem sei por quê. Não dá resposta nenhuma. Por fim, ela saii.
Parece ter sido pessoa muito desleixada. Na cabeça, um pano; seui
avental parece indicar que é operária. Não gosto dela. Ela me lembrra
certa mulher que vi em A...; disso falarei mais tarde. Tenho medio
porque tem os traços de uma pessoa viciada; não encontro outra
explicação.
• 3 de março — Acordo às duas da madrugada. Sensaçãío
esquisita, a minha. Sei o que me espera. Sou covarde e demoro paria
acender a luz. Lembro-me, porém, que o Bom Deus me ajuda, <e
aperto o botão elétrico. E já está curvada sobre mim essa figuna
detestável. Depois, se afasta um pouco. Digo: “Em nome de Jesus;,
ordeno-te que me respondas: ‘Por que estás vagueando por aqui em
vezdeencontrarpaz?’” — “Matei meu filho.”— “Comotechamas?’”
— ‘'Margarida”. — “Será rezada por ti uma santa missa. Não m e
esquecerei de ti. Não precisas vir nunca mais.” Rezo com ela. D e
repente, desaparece. Foi duro suportá-la, mas seja tudo como dispõe

(5) Perceberá o leitor ao meditar sobre as páginas deste diário, desde a primeira até ài
última, quão realistas são as declarações religiosas: “O pecado é feio, a virtude é b ela/”
A máscara da feiúra do pecador transparece em todas as aparições. Vale a pena refletirmos;
sobre as ofertas da vida moderna: a pecaminosidade planejada da vida e a fealdade
planejada da música e da pintura modernas condicionam-se mutuamente.

52
o Bom Deus! No entanto, se as almas têm que visitar-me, preferiria
que fosse durante o dia claro.

Miguel, o marceneiro

No verão, em A..., vi, por três vezes, andar de um lado para o


outro, uma senhora cujo rosto manifestava uma tristeza inexprimível.
Quando a interroguei, respondeu apenas: “Ninguém reza por mim”.
A outras perguntas minhas, não deu resposta. Naquela época, eu
ainda não sabia que tinha de rezar com as Almas do Purgatório. Desse
modo, a visita delas se toma mais breve e a reza com elas, um alívio
para mim; por isso, já não sinto tanto medo.
• 11 de março de 1923 — Onze da noite. Apenas me havia
deitado quando alguém entrou no quarto. Pensei ser minha irmã, e
demorei em acender a luz; mas logo senti que se tratava de uma alma.
Na porta estava o Miguel, nosso velho marceneiro e antigo sacristão.
Não sei quando tinha falecido. Perguntei-lhe: “Então, Miguel, o que
queres?” Ele deu um grito e desapareceu. Preocupo-me com ele, pois
agora vem todas as noites, e é horripilante, já que nada se consegue
com ele. Ficou comigo meia hora, das quatro às 4:30. Gemendo em
voz alta, anda agitado pelo quarto. Não é bonito o aspecto dele, mas
o Bom Deus há de ajudar-me.
• 15 de março — 11:30 da noite. Ele voltou. Digo-lhe: “No
sábado será rezada por ti uma santa missa. Deixa-me em paz! O que
é que tens feito? Responde, por favor.” — “Sacrilégio!”, grita ele. —
“Posso ajudar-te?”, pergunto. Ele faz que sim com a cabeça e some.

Muitas mulheres e muitos homens

• 21 de março— Veio Viktor B... procurar-me. Muito triste, mc


olhou. Não respondeu às minhas perguntas e desapareceu.
• 22 de março — À uma hora da noite, acordei. Algucm me
perguntou: “Queres ajudar a esses como ajudaste a mim”? Acendi a

*>i
luz e vi junto à minha cama o pároco S...; não o posso dizer com toda
a certeza, pois mal havia ele formulado a pergunta, e já desaparecera.
Só então eu vi quanta gente enchia meu quarto, homens e mulheres
— e o Viktor também estava. Foi muito pesado para mim; no entanto,
não demoraram muito; fora impossível contar quantos eram.
• 23 de março — De noite. Outra vez aquela gente. Dezesseis
pessoas. Demoraram longo tempo. Cinco deles eu conheço: Viktor,
Maria M..., Perpétua R..., aquele sapateiro que vivia dizendo: “Ai,
meu Deus!” , Baptista B...; perguntei-lhes: “O que querem vocês?”
Nenhuma resposta. Então eu disse: “Vamos rezar por vocês. Não
precisam voltar mais.” Aí, diz o Viktor: “Temos de vir!” “Quem o
quer?”, perguntei. Não responderam. Ficaram mais um pouco; todos
cravaram os olhos em mim, e se foram. Aparecem noite após noite,
mas não posso fazer nada; rezo e depois de pouco tempo, todos eles
se retiram.
• 26 de março — Vieram apenas nove. Todos, desconhecidos.
Indago: “Onde estão os outros?” Não respondem^6). Esses nove vêm
agora todas as noites. Não sofro muito com eles. Faço a prece e depois
de algum tempo se retiram.
• 29 de março — Voltaram todos os dezesseis. Uma alma
daquele grupo— não a conheço— se aproxima de mim e diz: “Nós
te agradecemos.” Falta-me coragem para apertar-lhe a mão, mas ela
estende ambas para mim. Pergunto-lhes: “Podes ir pela Páscoa ao
céu?” Ela responde claramente, e não se podia entender outra coisa:
“À Luz!” Em seguida, todos eles se achegam a mim, o que não é muito
agradável. Dou-lhes água benta e logo se retiram. Achei estranho que
os dezesseis precisassem de tão reduzido espaço. A minha frente,
pareciam um montículo de gente, mas na realidade havia entre eles
vultos pequenos e outros bem grandes. Aquela que falou comigo era
muito jovem, de expressão cordial; vestia saia preta e avental branco;
todos traziam roupa de operário.

(6) As perguntas que visavam apenas à indiscrição e ao sensacionalismo não foram


respondidas. Esses fatos levam sempre o leitor a averiguar novamente.

54
Nicolau, o criado particular

Nos últimos tempos, vejo Nicolau, que havia sido criado


particular de meu avô. Encontrava-me com ele apenas no primeiro
andar do castelo, onde passeava pelos quartos. Parecia procurar
alguma coisa. Mas não consegui falar com ele porque nunca aconte­
cia de estar sozinha quando se dava o encontro.
De noite, porém, sofro terrivelmente. E sempre o mesmo horror,
todas as noites desde a Páscoa. Tenho a sensação de que há muitas
almas junto a mim, mas nada vejo; ouço, porém, passos e respiração
arquejante pertinho de mim; em seguida, um barulho estranho, como
se alguém batesse na parede. Apenas ouço e percebo esses ruídos, o
que, para mim, é pior do que ver e assistir seja ao que for. Certa noite,
essa situação começou por volta das onze horas e só terminou lá pelas
cinco da manhã. Levantei-me e fui sentar-me no corredor. Mas
vieram atrás de mim. Perguntei: “Vocês não podem comunicar-se
comigo?” Algo tocou-me no ombro e senti muito medo.

Babette

•21 de abril de 1923— Pela segunda vez vi hoje, na igreja, duas


senhoras. Ficaram ajoelhadas enquanto rezávamos o terço. Desapa­
receram e voltaram. Mais tarde, ao entrar na igreja com o vigário,
desejava, no meu íntimo, que também ele visse as duas almas. Elas
lá estavam, mas quando quis abordá-las, desapareceram.
• Quatro vezes encontrei o Nicolau. Mas passou ao meu lado,
sem me ligar.
Durante alguns dias, sempre à noite, tive febre. Não conseguia
conciliar o sono. Nessas ocasiões, nada via e nada escutava. Agora
que estou boa, parece que voltam.
• 26 de abril— À uma hora da madrugada apareceu a governanta.
Faz um ano que ela faleceu. Não me lembro de seu nome. Ela parece
estar muito triste. Mas não demorou muito comigo. Andava constan­
temente de um lado para o outro.

55
• 27 de abril — Hoje, ela ficou comigo bastante tempo.
Insistentemente cravava os olhos em mim, mas não respondia às
perguntas.
• Duas vezes vi o Nicolau; ele está sempre à procura de alguma
coisa.
• 29 de abril — A governanta ficou comigo das três às 4:30.
Estava muito triste. Ela queria falar, mas não foi capaz. Não aprecio
sua companhia porque me olha com muita fixidez.
• Vi também as onze “colunas de neblina”.
• Iode maio— Ao entrar no quarto para deitar-me, vi novamente
a governanta. Apresentei-lhe um pano para que ela nele imprimisse
o sinal de sua mão. Ela chegou pertinho de mim, mas nada fez.
• 4 de maio — Eu estava nesta noite deitada em meu leito e ela
veio duas vezes e se curvou sobre mim. Não gosto disso.
• Vi também o Nicolau.
• Perguntei à governanta^7) como ela se chama. Já lho havia
perguntado muitas vezes sem ter recebido resposta. Emitiu, agora,
um som abominável, parecido a Ba... e. Ela mostra uma grande
tristeza. Gosta muito de receber água benta; fica agitada, quando não
a ganha.
• 5 de maio — Ela veio outra vez. Agora sei que se chama
Babette. Ela me cansa muito porque fica demasiado comigo. Anda de
roupas rasgadas. E sofre da boca, mas não sei o que é, pois não o
observei distintamente.
• 9 de maio — Duas vezes nessa noite ela voltou.
• Tomei a ver os “onze”.
• 12de maio— Encontrei-me nocorredor como Nicolau; estava
de cara bastante cordial.
• 13 de maio — Voltou a governanta. Sua fisionomia é muito
desagradável. Ela curvou-se sobre mim. Sua boca abominável é
como uma grande úlcera; o lábio inferior, totalmente preto; os olhos,

(7) O pároco Sebastião Wieser conhecia bem a falecida (Bárbara Z.) quando viva. Disse
ele que ela fora uma mulher solteira, aparentemente piedosa, mas muito histérica e
sensual, que escrevia longas cartas aos padres e caluniara um deles do modo mais maroto
c astuto possível. Por fim, ela morreu ao dar à luz.

56
sumamente antipáticos. Eu ficaria contente se a fizesse falai-, mas
não consigo. Ela gostaria de expressar-se por palavras, mas também
não consegue.
• 14 de maio— Ela voltou e abriu a porta que eu, de propósito,
havia fechado para ver a sua reação.
• 15 de maio — Avistei o Nicolau.
• 18 de maio — Da uma às 3:30 da madrugada, a governanta
esteve comigo, correndo pelo quarto. É terrível, pois não sei como
ajudá-la. Tenho rezado, sim, mas não posso rezar desse jeito o tempo
todo. Sua boca é um horror.
• 19 de maio — Outra vez, mas apenas por pouco tempo.
• 21 de maio— Ela veio no lusco-fusco da madrugada, às 4:30.
Despertou-me fazendo muito barulho. Haviam-me falado da partícu­
la da Santa Cruz; apresentei-lha e perguntei: “És uma condenada?”
Fez que não meneando a cabeça. Continuei: “Eu te conjuro, dize-
me o que queres! Não te quero mais ver.” Saíram dela, então,
alguns sons quase ininteligíveis: “Vigário... sempre mentido a ele.”
Pedi-lhe que repetisse a frase, pois não entendia o sentido; ela,
porém, abriu a porta e saiu.
• 22 de maio — Ela veio como que fugindo de qualquer coisa.
Estava muito perturbada e de fisionomia horrenda. Disse-lhe: “Eu te
ordeno: dize-me, por que tomas a procurar-me?” Achegou-se a mim e
apontou para sua boca. Senti grande pavor; em seguida, ela sumiu.
•23 de maio—Mal haviacaídono sono, eelareapareceu. Disse-lhe:
“Se não me disseres o que queres, não mais rezarei por ti.” Durante longos
minutos,nenhumaresposta. Depois,ummurmúrioininteligível.Exclamei:
“Dize-me outra vez o que disseste a respeito de mentiras!” Ela chega
pertinho de mim e diz em voz bem clara: ‘Tenho de sofrer. Tenho
caluniado, tenho mentido muito; dize isso ao vigário.” Retruco: “Por que
não vais tu mesma?” Nenhuma resposta.
• 24 de maio — Ela voltou com um outro vulto, que não pude
identificar. Fiquei apavorada. Estendi-lhes apartículada SantaCruz, e lhes
disse: “Por favor, não voltem mais. Será rezada por vocês uma santa
missa.”
• Tomei a ver na igreja aquelas duas mulheres.

57
A mulher no cercado das galinhas

• 28 de maio de 1923 — Ao passar pelo cercado das galinhas,


vi uma pessoa procurando algo num monte de lenha. Pensando que
aquela mulher era uma mendiga, aproximei-me dela. Ela deu alguns
passos em minha direção, mas de repente se desfez no ar.
À tarde, junto ao Açude do Rosário^, veio ao meu encontro um
homem trazendo uma trouxa, como esses mendigos à procura de
mantimentos. Uns poucos passos à minha frente, dissolveu-se em nada.
Outro dia vi, na igreja, ajoelhadas, aquelas duas mulheres. Veio
então uma senhora, de carne e osso, e sentou-se naquele mesmo
banco em que estavam as duas almas. Havia pouco lugar naquele
banco e percebi, então, claramente, que aquelas duas almas eram
como neblina que não ocupa lugar.
• 29 de maio — Por poucos instantes, vi a mulher no cercado
das galinhas.

Aproxima-se a redenção

• 30 de maio — Eu estava ajudando as Irmãs do Hospital no


arranjo de flores. (Era véspera da festa do Corpo de Deus.) Por algum
tempo, fiquei sozinha, quando veio Benedito e se pôs ao meu lado.
Perguntei-lhe: “Benedito®, sofres muito?” Ele fez que não com a
cabeça. Continuei: “Em pouco tempo estarás no céu?” Meneou a
cabeça afirmativamente. — “Costumas andar por aqui?” Outra vez
o gesto afirmativo com a cabeça. Parecia estar muito à vontade, tal
como em vida, de avental azul e de mangas arregaçadas. Ficou
olhando algum tempo, saiu porta afora, até a casa, e sumiu.

(7a) Na vizinhança do castelo de Waal há dois açudes, um é chamado Açude do Rosário;


o outro, em honra às Chagas de Jesus, Açude das Cinco Chagas.

(8) Em vida, Benedito pertencia ao grupo dos criados; era factotum no castelo.

58
Graças a Deus que a governanta não vem mais; posso dormir
sossegada.
• 31 de maio— Durante a procissão do Corpo de Deus, quando
cstávamos ajoelhados junto ao altar do marceneiro Fischerhaus,
saiu da casa o marceneiro Miguel. Mas que transformação que se
dera com ele desde à última vez que o vira! Nele, tudo era claridade
e que olhos alegres! Parecia estar envolto em pano branco. Durante
o evangelho ficou na minha frente. Não entendo por que os outros
não o perceberam.
• 4 dejunho— Outra vez aquela mulher no cercado de galinhas.
Parece estar muito triste. Agora, durante a noite, há bastante barulho
— no entanto, não vejo nada. É o ruído de pés que, pesadamente, se
arrastam pelo quarto; estala o chão, estalam os móveis. Francamente,
preferiria ver tudo isso em vez de ficar apenas escutando.
• 7 de junho — Novamente a mulher do cercado de galinhas.
Ela crava em mim uns olhos ardentes. Até agora nunca a tinha visto
tão nitidamente. Mas não consigo falar com ela.
• Continua o barulho noturno, mas não é um ruído contínuo,
há intermitências.

Fritz, o pastor assassinado

• 11 de junho de 1923 — Quando despertei, curvou-se sobre


mim um vulto comprido, cinzento, totalmente envolvido por neblina.
Não posso dizer se era homem ou mulher, mas em todo caso foi
antipático. Fiquei muito assustada.
• Cessou o barulho.
• 14 dejunho— Aquele fantasmajá se achava no quarto quando
quis deitar-me. Em voz alta rezei a oração da noite, enquanto
“Aquilo” veio achegando-se a mim. “Aquilo” possuía braços — se
não fosse isso, diria que se assemelhava a um tronco de árvore
ambulante. Ficou comigo uns vinte minutos, mas pelas quatro horas
voltou.

59
• 16 de junho— Foi duro, muito duro. Sacudiu-me os ombros.
Que horrenda situação! Dei-lhe um soco e disse: “Tu não me deves
tocar!” “Aquilo” retirou-se a um canto. Ao lhe dar o soco, não senti
a resistência de um corpo, mas algo como se fosse um pano quente e
úmido. Acho que, dificilmente, suportaria mais vezes tal pavor.
• 18 de junho — “Aquilo” é simplesmente “o” horror. Ele
procurou estrangular-me. Transida de medo, rezei e agarrei a partí­
cula da Santa Cruz. Com todo o seu tamanho plantou-se diante de
mim. Longamente, assim ficou, sem dar resposta às minhas pergun­
tas. Por fim saiu, deixando a porta aberta.
• 19 de junho— Posso ver agora que se trata de um homem. Fi­
cou só pouco tempo.
• Na igreja tomei a ver aquelas mulheres. Parecem ser de um
século passado. Não respondem. Perguntei-lhes se furtaram velas.
• 21 de junho — Por mais de uma hora, aquele homem terrível
ficou comigo esta noite. Sem parar, corre pelo quarto. Tem cabelo
preto, desgrenhado, e olhos abomináveis.
• Vi sentada no cercado de galinhas aquela mulher. Seu jeito é
sempre amável. Mas ela não responde. Tendo ido ao galinheiro, pude
observá-la bem. Um gato veio andando em direção a ela. Ao enxer­
gá-la, deu um pulo, assustado, para o lado. Senti-me feliz por cons­
tatar que, ao menos, o gato vê o que eu vejo/9)
• 22 de junho — Desde à uma hora da noite até depois das cin­
co, esteve “ele” no meu quarto. Foi medonho. Curvou-se sobre mim
diversas vezes e sentava-se junto ao meu leito. Chorei de tanto
pavor. Para não ter que olhá-lo, rezei as Horas do Ofício divino. De
quando em quando, levantava-se e corria pelo quarto, gemendo de
modo abominável. Parece-me que conheço esse homem, mas não
consigo lembrar-me de quem se trata. Estou ficando bastante covar­
de, pois custa-me, às vezes, ao anoitecer, entrar no meu quarto. Mas
consigo pegar no sono depressa.

(9) É fato que animais demonstram medo de lugares onde foram constatadas aparições de
pessoas mortas. E célebre a aparição, documentada numa casa paroquial, onde um cão não
passava pelos últimos degraus de uma escada porque, ali, por diversas vezes, houvera uma
aparição. O cão acompanhava o dono a qualquer lugar, menos ao da aparição.

60
• 24 de junho — “Ele” voltou. Agarrou-me os ombros. Excla­
mei: “Por favor, dize-me o que queres, e não voltes mais!” Nenhuma
resposta. Correu algumas vezes pelo quarto e sumiu. Não consegui
acalmar-me. Voltou pelas seis da manhã. De dia claro, seu aspecto é
ainda pior; é repugnante. É da categoria das almas mais “relaxadas”
quejá vieram ver-me. Disse-lhe: “Não me perturbes; quero preparar-
me para a santa comunhão.” Achegou-se a mim, levantando, supli­
cante, as mãos. Fiquei com tanta pena dele que lhe prometi toda a
ajuda possível, e lhe perguntei: “Não consegues falar?” Fez que não
com a cabeça.— “Sofres muito?” Saíram dele gemidos pavorosos.
Dei-lhe muita água benta e ele se foi.
• 27 dejunho— Ele voltou durante a noite. Devo conhecê-lo mas
não consigo lembrar quem poderia ser. É muito antipático.
• 28 de junho — Voltou.
• Tornei a ver aquelas duas mulheres na igreja.
• 29 de junho — Outra vez estava ele no meu quarto quando
fui deitar-me. Poderia ser, talvez, aquele pastor Fritz que fora assas­
sinado. Perguntei-lhe se era o Fritz que havia sido morto. Mas ele não
reagiu. Rezei com ele, mas meu sinistro visitante mantinha os olhos
cravados em mim, com tanta maldade, que fiquei apavorada. Pedi-
lhe que me deixasse só e, realmente, ele se foi.
• 30 de junho — Seus gemidos pungentes me despertaram,
mas logo foi embora.
• Io de julho — Estou convencida de que ele é o pastor Fritz.
Seu rosto está tão escuro que mal o reconheço, contudo, a estatura, o
nariz e os olhos são dele, do velho pastor, com quem tantas vezes
me encontrara enquanto vivia.
• 2 de julho — Ele voltou. Seu aspecto é um pouco mais
“civilizado”; ficou só pouco tempo. Chamei-o pelo nome: “Pastor
Fritz!” E ele reagiu com toda naturalidade.
• 3 de julho — Voltou por poucos instantes. Perguntei-lhe: “Es o
pastor Fritz, que foi assassinado?” Respondeu-me claramente: “Sou.”
• 4 de julho— Veio ver-me pela manhã. De olhos tristes, ele me
fitava. Nada respondeu a minhas perguntas e logo saiu.

61
• 5 de julho— Percebo que nele tudo se toma mais claro. Fez o
sinal-da-cruz ao rezarmos nossa prece.
• 6 de julho — Estou muito feliz porque, agora, ele consegue
falar. Perguntei-lhe: “Por que procuras justamente a mim?” —
“Porque sempre rezaste por mim.” (É verdade, pois sempre senti
compaixão por esse pobre de Cristo. Já na infância, ele tinha um jeito
esquisito.) — “O que te salvou?” — “Compreensão mais clara dos
meus pecados e arrependimento.” — “Não tiveste morte instantânea
quando foste assassinado?” “Não.” — “Sairás do purgatório em
breve?” — “Falta muito, muito!” Permiti-lhe viesse ver-me se isso
lhe desse algum alívio. E interessante que alguém, bruto em vida, fale
dessa maneira quando separado de seu corpo('°). Já não me inspira
medo. Gostaria de ajudá-lo o mais possível. Quão misericordioso é
o Bom Deus!
• 8 de julho — Veio por alguns instantes apenas.
• 9 de julho — Despertou-me com um forte empurrão nos
ombros. Eu teria perdido a missa, se ele não me tivesse acordado.

(10) O pároco S. W. observa: “O comportamento dessa pobre alma é qual eco da vida
terrestre. Eu o conhecia bem, o pastor Fritz. Era como um bode entre as ovelhas. Não
adianta estender-me sobre a vida dele. Digo apenas que as palavras da Escritura nele se
realizaram: “A árvore, caindo para o sul ou para o norte, no lugar onde caiu, lá fica.”
(Eclesiastes 11,3); mas também causa admiração a misericórdia infinita de Deus. Fritz
freqüentava raras vezes a igreja. Tinha um único filho que na escola era conhecido como
patife e mentiroso. Causava muito desgosto a seus superiores. Quando era necessário
castigá-lo na escola, o pai ficava revoltadíssimo contra professores e contra o vigário. Eu
lhe dizia que, algum dia, ele receberia uma surra de seu próprio filho. Aos 16 anos, esse
seu filho era um rapagão de muita força física. Numa desavença, pela meia-noite, o velho
foi derrubado e morto pelo próprio filho, que, depois, foi condenado à morte. O pastor Fritz
entrou na eternidade, vítima de uma tragédia familiar. Não se soube se ele teve morte
instantânea ou se teve tempo de arrepender-se, mas, provavelmente, antes de expirar, deve
ter recuperado os sentidos, pois o assassino, depois de o ter abatido, deixou-o entregue à
sua sorte, naquele rancho. Dia claro, foi descoberto o cadáver. Agora ele volta como Alma
do Purgatório, mas do jeito como estava em vida: de cabelo preto, desgrenhado e de olhos
abomináveis, irreconhecível até o dia 27 de junho. Desde então, sua aparência se torna,
sempre, mais clara e, em 6 de julho, ele diz que não teve morte instantânea e que a
compreensão e o arrependimento o preservaram da condenação. Em 12 de julho ele
confirma: “Estou ardendo” e imprime um dedo na mão da princesa, deixando uma marca
vermelha, de mão em brasa, sinal que vi com meus próprios olhos.

62
Perguntei-lhe: “Tens tanto interesse em que eu tome parle na sanln
missa?” — “Pela missa podes ajudar-me bastante”, disse ele.
• 11 de julho — Veio apenas por poucos instantes.
• 12 de julho — Rezamos juntos e depois perguntei-lhe: “Em
que consiste teu sofrimento?” — “Estou ardendo.” Aproximou-se dc
mim, e antes que o pudesse impedir, o dedo dele tocou na minha mão.
Fiquei tão assustada, e aquilo me doeu tanto que gritei de dor. Ficou
na minha mão uma mancha vermelha e faço votos para que ela
desapareça quanto antes. É uma sensação esquisita ter no corpo um
sinal visível feito por alguém do outro mundo/1')

No abandono

• 15 de julho de 1923— Eu estava para me deitar. Ao entrar no


meu quarto, ele lá estava. Tive a impressão de que se achava com ele
mais alguém. Todavia, não posso afirmar com certeza.
• 18 de julho— Nesse dia encontrei-o já no quarto, na hora em
que ia dormir. Pareceu-me, quando estava ao lado dele, que era
apenas um vulto, embora não possa dizer exatamente. Ele rezou
comigo, isto é, murmurou ao meu lado. As minhas perguntas, não me
deu nenhuma resposta.
• 21 de julho — Chegam agora os dois juntos. Não posso
imaginar quem seja esse novo; é abominável e sujo, tem os cabelos
desgrenhados e não fala. Vi na igreja aquelas duas mulheres. Ajoelhei
ao seu lado. Não teria havido espaço para mim ao lado delas se fossem
de carne e osso. Não pararam de me fixar. Não pude falar com elas
porque havia reza do rosário com o povo.
• Vi também a mulher do cercado de galinhas. Enfim, ela

(11) Há diversos livros em que as Almas do Purgatório deixaram impressos sinais v i s í v e i s


de fogo. É conhecido o livro de orações em que a mão de uma pobre alma deixou seus
contornos e seu molde em muitas páginas daquele manual. O editor deste livro leve m|iiele
manual de orações em mãos.

f»l
consegue falar. Chama-se Adelgunde. Agora tem boa aparência e me
olha com cordialidade. Veste aqueles trajes característicos da Suábia,
de tempos passados. Parece uma velhinha de antigamente. Perguntei-
lhe por que veio procurar-me. — “Rezar”, ela disse.
• 24 dejulho— Fritz e aquele outro vieram esta noite duas vezes.
Não falaram mas, assim mesmo, a situação era desagradável.
• 29 de julho— Nada de especial. Aqueles dois aparecem todas
as noites. Acho esse novo detestável. Fritz irradia claridade, sempre
mais viva.
• Perguntei a Adelgunde de quanto tempoj á sofre no purgatório.
— “Três vezes oitenta”, respondeu.
• Io de agosto — Agora sei quem é o outro, é o G.../12) que
morreu de varíola há poucos anos. Quando perguntei a respeito dele
ao Fritz, este me respondeu: “Olha tu mesma!” Ele achegou-se a mim
e eu escondi depressa as mãos.
• 4 de agosto — Ambos ficaram comigo bastante tempo.
Perguntei a Fritz porque G. também vem. Respondeu:— “Ele esteve
à tua procura.”
• 9 de agosto — Não tive sossego durante a noite toda.
Reapareciam a cada instante. G. me causa medo. Pedi-lhes para me
deixar sossegada. Fritz respondeu: “Faça por nós alguns sacrifícios.”
Sinto vergonha por ter sido tão dura de coração.
• 10 de agosto— Fritz aproximou-se de mim. Tinha a fisionomia
cordial e atraente; por isso lhe perguntei: “Não precisas mais sofrer
tanto?” — “Não.” — “Já podes rezar por mim?” — “Ainda não.” —
“Onde te encontras?”— “No abandono.”— “Virás visitar-me ainda
muitas vezes?” — “Não.” — “E por que não?” — “Não mais
receberei permissão.” — “Tens recebido alguma ajuda de mim?” —
“Tenho.” E sumiu. G. ficou. Foi uma sensação sinistra. Ele geme,
geme e sua fisionomia exala maldade. No entanto, sentir-me-ei feliz
se puder ajudá-lo.

(12) G. recebeu os sacramentos dos agonizantes do pároco Sebastian Wieser e foi este
mesmo vigário quem encomendou seu corpo.

64
• Esqueci de anotar que vi no hospital, pela segunda vez, uniu
antiga superiora. Parece estar muito triste.
• 11 de agosto— G. veio quatro vezes esta noite. Não responde
nada. Não fica quieto nenhum instante. Está sempre correndo pelo
quarto. No fundo, estou triste porque Fritz não vem mais. Ultimamen­
te era como um protetor para mim. G. causa-me um certo pavor; no
entanto, quero de bom grado ajudá-lo.
Em geral, meus nervos estão em estado melhor do que antes.
Acostumei-me plenamente a esses visitantes intrusos e depois de
terem sumido, pego logo no sono.
• 12 de agosto — Ele veio só por poucos instantes.

Sou feliz

• 13 de agosto de 1923 — Senti uma grande alegria. Ao colher


groselhas, apareceu, de repente, ao meu lado, a velha lenhadora
que sempre havia catado lenha para o castelo. Exclamei: “Oh, minha
querida lenhadora! Tu não te esqueceste de mim?! Como estás?”
— “Sou feliz!”, respondeu, e desapareceu. Como foi boa essa
aparição! Nós duas havíamos freqüentemente colhido groselhas e,
certa vez, ela me havia dito: “Acho que depois de minha morte terei
que passar meu purgatório na horta.” Rimos bastante e eu lhe havia
dito: “Tu virás ver-me, não é?” E agora, de fato, ela veio/13)

Um cavaleiro em sua armadura de gala

• 14 de agosto — Vi, na igreja, ajoelhado diante do altar, um


cavaleiro metido em sua armadura. Pensei que se tratasse de um

(13) O vigário Sebastian Wieser disse que ela esteve doente durante muitos anos e se
purificara através dos mais diversos padecimentos. Há nisso um grande consolo para
muitas pessoas simples, que, além de suas preocupações por causa de sua humilde
condição de vida, ainda são provados por muitas doenças. Mas o amor de Deus os envolve.

65
engano meu. Para ver melhor, aproximei-me mais e cheguei pertinho
dele. Examinei-o durante algum tempo; depois, ele sumiu.
• G. ficou um bom tempo comigo. Anda terrivelmente inquieto.
• 17 de agosto — G. voltou. Já presta atenção quando rezo.
• 19 de agosto— Ele veio duas vezes esta noite. Quando estou
na capela, batem à porta. Quando vou ver quem é, não há ninguém.
• 20 de agosto — Vi aquele cavaleiro na igreja junto ao altar. E
um gigante de estatura. Talvez seja a alma daquele homem cujo
sepulcro fica no coro da igreja, quando foi feito o novo pavimento.
Foram encontrados ossos de tamanho descomunal.
• 23 de agosto — Passei uma noite desagradável. Senti a
presença de G., mas não havia energia elétrica; eu estava no escuro
e ouvia e sentia a presença dele. Não poder vê-lo, aumentava meu
pavor. Não tive a coragem de levantar-me e buscar fósforos. Depois
de uma hora, eu sabia que ele não estava mais. Não foi o ouvido que
me deu essa certeza, mas uma espécie de sexto sentido — uma
sensação nova para mim.
• 24 de agosto — Batem à porta da capela com mais força.
Quando vou atender, não vejo ninguém, mas apenas retomo ao meu
lugar, as batidas recomeçam. Isso me incomoda muito, pois gostaria
de ter sossego.
• 26 de agosto — G. ficou comigo por muito tempo. Rezei a
ladainha lauretanae ele me acompanhou. Sua aparência melhora. Seu
rosto já não está tão escuro.
• 30 de agosto— E sempre a mesma coisa. As vezes, o barulho
à porta da igreja é insuportável. Chamam-me e batem à porta. O
cavaleiro mostra-se quase diariamente.
• Na capela do hospital vi a Irmã Hedwig/14)
• 2 de setembro— Ao voltar do jardim, vi G. parado à janela do
meu quarto, me olhando. Senti uma sensação estranha e hesitei em
entrar; estava com medo. Mas quando entrei, não havia ninguém. Que
alívio!
• 6 de setembro— G. tem enfim permissão de falar. Perguntei:

(14) Waal tem um pequeno hospital, onde a irmã Hedwig Ostertag exercera o cargo de
superiora.

66
“Por favor, o que tu queres?”— “Ajuda!” — “Por que tu sofres?” —
“Porque não fiz bastante penitência dos meus pecados.” — “E por
que vens justamente a mim?” — “Porque a passagem por ti está
desimpedida.” — “Como desimpedida?” Não obtive resposta, infe­
lizmente, senão eu poderia, talvez, ter fechado essa tal passagem.
• 7 de setembro— Vi G. em frente de suacasa. Já não me inspira
tanto horror; toma-se mais e mais cordial. E para mim um mistério
essa transformação. Minha ajuda é mínima.
Retiro o que escrevi ontem. Mesmo se fosse possível, eu não
trancaria a passagem pela qual as almas chegam a mim. Seria uma
atitude extremamente egoísta da minha parte. Devo dar graças a
Deus em poder ajudar um pouco.

Duas irmãs que deram escândalo

• 8 de setembro de 1923— Foi um dia de muita excitação. Após


longo tempo, tomei a ver aqueles “onze” que recebem mais e mais
formas humanas.
• Na igreja vi o cavaleiro e aquelas duas mulheres que, final­
mente me deram resposta. Perguntei-lhes: “Por que estais sempre
aqui?”— “Porque demos escândalos”.— “Quem éreis em vida?”—
“Éramos irmãs.” Sumiram. Têm má fisionomia. Seus olhos pare­
cem penetrar como punhais.
• Vejo Adelgunde no cercado de galinhas. As galinhas perce-
beram-na e, assustadas, fugiram. De perto, o rosto dela não parece
velho como eu sempre o supunha. Segurou algo na mão, talvez um
punhal, mas não posso afirmá-lo com certeza.
Quando vejo tantas almas, tão diferentes entre si, num só dia,
convivo com elas mais do que com as pessoas vivas ao meu redor. A
gente não esquece facilmente o que vê. E, para mim, esses fatos
parecem-me, por vezes, uma carga tão pesada de suportar, que me
cansa, à exaustão, disfarçar o que se passa comigo.
• 9 de setembro — Encostado na cerca que fechava a praça

67
de armas(14a), estava o velho Henrique. Fiquei assustada porque
estava muito perto de mim. Apresentava um aspecto horripilante.
Faço votos para que fique longe de mim.
• G. esteve longamente comigo durante a noite. Ficou bem
manso. Começamos a rezar e em seguida conversamos. Perguntei-
lhe: “O que te aproveita mais da minha ajuda?” — ‘Tomar parte na
missa.” — “Já viste o Bom Deus?” — “Vi.” — “Estás vendo-O
ainda?” — “Não.” — “Por que não?” — “Estou sujo.” — “Em que
consiste teu sofrimento?” — “Estou ardendo.” (Talvez fosse outra
palavra, pois não a entendi bem; foi uma fala balbuciante.)— “Sabes
onde está Fritz, o pastor?” — “Não.” E sumiu.
• 13 de setembro — Ele veio só por poucos instantes.
• Vi na igreja o cavaleiro.
• 15 de setembro—Por longo tempo, os “onze” andaram ao meu
lado. Tenho a impressão de que se trata de almas de mulheres, mas
estão ainda totalmente envolvidas em neblina.

Tia Maria Sch...

• 16 de setembro de 1923 — Ao buscar à noite um livro na


biblioteca, vi, de repente, ao meu lado, tia Maria Sch... rindo
alegremente. Dirijo-lhe a palavra: “Tudo bem?” Responde-me: —
“Eu te agradeço.” Acenou-me um adeus e desapareceu. Fiquei feliz
com a sua visita. Acho estranho que agora voltem os velhos conhe­
cidos. Nestes últimos dias, exigiram muito de mim quanto às obriga­
ções sociais e eu fora tão expansiva que, nem de longe, pensava
naquilo que se passara na biblioteca.
• Muito barulho na capela e constantes chamadas: ‘Tu! Tu!”
mas nada se via.

(14a) Pedimos à princesa Ludovica que nos mostrasse a praça de armas que servira para
exercícios de tiro. Ela fica ao lado dos prédios da horticultura do castelo de Waal. Agora
está toda plantada de árvores frutíferas.

68
• 19 de setembro — G... está todo transparente. Ficou longo
tempo comigo. Indago-lhe: “Dize-me, por favor, por que está livre o
caminho justamente a mim?” — “Tu nos atrais.” — “Por meio de
quê?” — “Por meio de tua alma.” — “Podes vê-la?” — “Sim.” —
“Mas não gosto de que venhas. Vai a pessoas melhores que eu!” —
“Eu não volto mais, porque outros estão esperando sua vez.” —
“Estás melhor?”— “Sim.” Fitou-me meio sorrindo e desapareceu. O
que virá agora? Confesso que tenho medo. Leva sempre algum tempo
até que uma Alma do Purgatório não assuste mais, devido ao seu
aspecto horroroso. Mas parece que tem de ser assim.

Adelgunde, a mãe assassina

• 21 de setembro — Adelgunde esteve comigo. Ela tem


realmente uma faca na mão. Rezou comigo. Pergunto-lhe: “Por que
tens essa faca?” — “Matei!” — “A quem?” — “Meu filho.” —
“Como posso ajudar-te?” — “Dá-me tua mão.” Eu estava tão
apavorada que não fui capaz de fazê-lo. Sou muito covarde e agora
me arrependo de não tê-lo feito. Ela foi logo embora. Quero superar-
me quando ela voltar; no entanto, para mim, isso é terrível, pois sei
que aquilo faz arder minha mão.
• Vi os “onze” e o cavaleiro. O encontro com eles até acalma
meus nervos. Na capela há, de vez em quando, uma neblina cerrada
diante da porta e nos degraus, mesmo quando não descubro nevoeiro
em qualquer outro lugar. Ignoro se existe alguma ligação com o
barulho, que continua sempre com a mesma intensidade. É pena que
outras pessoas não o percebam.
• Vi o Nicolau andar pelos quartos, quando me encontrava em
companhia de pessoas vivas. Ele parecia estar bastante alegre.
• 23 de setembro — Adelgunde voltou. Cresce em mim a
repugnância por ela. Mesmo, não estando perto de mim, seus olhos
me perseguem.
• 27 de setembro — Ela voltou. Procura agarrar minha mão.

W
Não posso estendê-la a essa alma. Tudo dentro de mim se revolta
contra isso.
• 30 de setembro— Esteve comigo quase duas horas. Foi mui­
to pesado para mim.
• Durante a missa solene na igreja, vi o cavaleiro ajoelhado
junto ao altar, no meio dos coroinhas.
• 2 de outubro — Adelgunde continua me torturando. Como
uma mulher furiosa, corre pelo quarto e crava em mim seus olhos
ardentes, procurando agarrar minha mão. Sou muito covarde; não
consigo superá-la.
• 4 de outubro— Perguntei-lhe o que quer de mim. Respondeu:
‘Tua mão.” No entanto, não fui capaz de estendê-la a essa mulher.
Rezei com ela, mas ela nem ligou. Perguntei-lhe, entre outras coisas,
onde foi enterrado seu filhinho e se ela antes de morrer conseguira
confessar os pecados. Mas não respondeu coisa alguma.
• 5 de outubro — Quando acordei, ela estava sentada na minha
cama, mas ficou só por poucos instantes.
• 6 e 7 de outubro — Não passei bem essas noites porque me
senti bastante mal. Ela não veio; no entanto, eu havia contado com
sua visita.
• 8 de outubro — Graças a Deus! Consegui superar aquele
sentimento. Ela veio e eu lhe perguntei: “Como posso ajudar-te?” —
“Dá-me tua mão!” Estendi-lhe ambas as mãos. Não é possível
descrever a luta que se travava no meu interior. Desta vez, não fui
queimada. Sentia, porém, os ossos da mão dela. Ela não soltou suas
mãos imediatamente. Tive a impressão de que esses momentos
duravam muito tempo. Finalmente ela disse: — “Agora não volto
mais.” E desapareceu.
As aparições de almas de mulheres impressionam-me e me
parecem muito mais repugnantes que as de homens. Achei algo de
estranho em Adelgunde. Nela tudo parecia um conjunto de trapos,
mas assim mesmo parecia ser um vestido de sua alma. Nunca havia
visto ou imaginado algo semelhante.
Agora gostaria de ter um pouco de sossego, pois muitas vezes

70
me sinto tão cansada que poderia dormir de pé.
Diminuiu o barulho na capela. Acontece ainda um pouco,
porém só de quando em quando.

Ku tinha idéias muito mundanas

• 12 de outubro — Estava sentada à minha secretária quando,


de repente, uma neblina espessa, ou algo como uma fumaça inodora,
me envolveu. Apesar de ser dia claro, não conseguia mais distin­
guir nem imagens na parede. Perguntei se eram os “onze”, mas não
recebi resposta. Aspergi o quarto com água benta, e tudo voltou a
ficar claro. • Na igreja, vi o cavaleiro. Desci da capela e lhe perguntei:
“Posso fazer alguma coisa por ti?” Continuou a rezar sem olhar uma
só vez para mim. De perto, ele dá a impressão de ser muito bondoso.
Sua armadura é bonita. A figura toda parece sair de um museu. Não
tenho conhecimentos suficientes para situá-lo num determinado
século.
Estou com medo de que tomem a acontecer coisas graves.
Minhas anotações devem corresponder à verdade. Por isso, devo di­
zer também que eu não suportaria tudo isso sem a santa comunhão.
• 13 de outubro— Tive uma noite extremamente agitada. Havia
muito barulho naquela neblina. No hospital, vi a Irmã Hedwig. Falei
com ela na escada: “Por que voltas constantemente?” — “Tenho
alimentado pensamentos demasiado mundanos.” Ela entrou na
despensa. Já não tem a aparência tristonha que costumava ter.
• 15 de outubro— Os “onze” estão como que pairando à minha
frente. Não respondem às perguntas que lhes faço. De noite, ouço
um estrondo terrível. Aparecem três vultos, difíceis de reconhecer.
• 17 de outubro — Outra vez, essa neblina ao meu redor e a
sensação de que há almas abandonadas que me procuram.
• 19 de outubro — Um grito estridente, pertinho de mim,
despertou-me; em seguida, ruídos, estrondos e uma confusão de sons
indescritíveis, e, outra vez, aquela neblina.
• 20 de outubro — Um vulto indefinível.

71
• 21 de outubro — Vultos nevoentos estão se agitando no meu
quarto. Não posso comunicar-me com eles. Correm pelo aposento;
mexem-se e agitam-se enquanto estou rezando. É impossível des­
crever essa confusão de vultos e de formas vaporosas e nevoentas.
Não sinto pavor, mas tudo é tão estranho e irreal. Essas formas em
movimento se parecem com os “onze”; no entanto, são diferentes,
mais densas, mais espessas. • Tomei a ver aquele cavaleiro. Ele
pertence a uma outra categoria de almas e é bem diferente de todas
as que tenho visto. Parece estar feliz e reza sem parar.
• 24 de outubro — Uma daquelas formas está ficando mais
nítida. Tenho a impressão de que se trata de uma mulher. Os três
vultos nevoentos não se mostram mais.
• 25 de outubro — Muito ruído e muita confusão. A situação
começa a tomar-se desagradável.

Catarina

• 27 de outubro — Posso ver distintamente que se trata de uma


mulher. Está muito inquieta e seu vulto um tanto velado.
• 28 de outubro— Essa mulher é abominável. É, sobretudo, sua
boca que é horrorosa; está muito inchada e é simplesmente nojenta.
Está furiosa; seu vestido é um farrapo cinzento.
• 29 de outubro — Ao anoitecer, encontrei-a no meu quarto.
Seus olhos me perseguem; ela não consegue falar-me.
• 30 de outubro— Apenas me havia levantado, e elajá chegara.
Eu disse-lhe: “Vai-te embora, tu me incomodas.” Mas ela nem ligou.
Rezei com ela a oração da manhã e, em seguida, ela se foi. Tenho
medo dela. Ela me enoja. Eu poderia ser dura para com ela. Onde
está minha caridade? Esta situação me oprime mais e mais. O dia
todo tenho de ficar em meio às pessoas que me cercam e nem posso
pensar naquilo que me interessa. Sinto-me como que dividida. Mi­
nha alma está no outro mundo, isto é, estou ocupada com ele, e a
outra parte do meu “eu” deve fingir um interesse que realmente

72
não existe. Esta dissidência, esta fissão no meu interior me cansa,
me enerva.
• 31 de outubro — Passei uma noite medonha. Ela veio duas
vezes, e por muito tempo. Encostou-se à parede e me fixou um olhar
insolente. Aexpressão de seu rostoéexecrável. Não reage anada, mas
quando rezo, mantém-se tranqüila. Sua boca é medonha; é apenas um
inchaço vermelho e purulento. Tem o cabelo preto, desgrenhado.
Todo o seu aspecto é sempre inominavelmente sinistro.
• Io de novembro — Passei metade da noite me defendendo
dela. Não quero que se aproxime de mim. Mas nada a impede.
Ameacei-a de não mais rezar por ela se continuar me maltratando;
então, ela se foi.
• 2 de novembro — Esta foi a noite mais terrível. Ela parecia
estar possessa; agitava-se e corria como louca pelo quarto. Tenho
de sofrer sozinha, pois não quero acordar ninguém. Saí e ela veio
correndo atrás de mim; voltei ao quarto, já que não havia outra so­
lução. Tentei rezar, mas fi-lo mal; o pavor me esmaga. A cada ins­
tante, ela chega pertinho de mim; quase não consigo suportá-la. Há
nela algo que me provoca tão grande nojo e pavor que não encon­
tro palavras para descrevê-lo, por mais que o tente. Ela ficou comigo
das onze da noite às cinco da manhã. Fui muito covarde.
• 3 de novembro— Ela só veio pelas cinco da manhã; por isso
passei a noite bem melhor. Rezei com ela sem olhá-la. De repente,
sua cabeça estava encostada à minha. Sussurrou-me algo ao ouvido,
mas não consegui entendê-lo. Disse-lhe: “Se tu queres que reze por
ti, fica longe de mim. Não suporto a tua presença.” Ela deu um grito
alto e desapareceu. Agora estou muito triste por causa de minha falta
de compreensão, pois não duvido que a fiz sofrer.
• 4 de novembro— Estou tão contente!Ela voltou e me perdoou.
Mexeu sua boca horrorosa para falar, mas não entendi nada. Disse-
lhe: “Se posso realmente ajudar-te, dá-me um sinal e desperta-me
pelas cinco horas. Farei por ti o que puder.” Dormi muito bem. Às
cinco horas em ponto acordou-me um grito. Ela estava ao meu lado.
Fiquei muito contente com isso. Quero, novamente, suportar tudo

73
quanto Deus me enviar. • Os onze vultos nevoentos, meus velhos
conhecidos, estavam outra vez na encosta do morro; já não tenho
medo deles.
• Na igreja, aquele cavaleiro se mostra quase continuamente.
• 5 de novembro— Noite sinistra; aquela alma de mulher vem
a cada instante, e sempre muito agitada. Fiz-lhe diversas perguntas,
mas não obtive resposta. De repente, ela achegou-se a mim e sus-
surrou-me algo ao ouvido. Disse-lhe que eu nada entendia do que
me falava, e ela prorrompeu em soluços, tão fortes que quase me
partiam o coração. Prometi fazer tudo por ela, e ela se foi.
• 6 de novembro — Ao cair da noite, ao toque das ave-marias,
ela veio ver-me. Ficou junto à pia de água benta, onde me esperou.
Dei-lhe água benta, e ela desapareceu. Voltou durante a noite. Parece
tomar-se mais clara e mais pura. Cresce minha coragem. Quanto
mais sacrifícios faço por ela, tanto mais alívio ela sente e tanto mais
se toma minha amiga.
Até agora tenho evitado entrar em detalhes, mas já que o diretor
espiritual o deseja, tenho de fazê-lo. Por isso, há mais um assunto que
tenho de mencionar. Peço que me digam meus diretores se há algo
de errado em minha atitude e conduta.
Nos últimos tempos, em meio ao meu trabalho, e mesmo
estando com outros, algo se apodera de mim que não sei explicar. É
uma sensação de profunda felicidade, é como que mergulhar em algo
totalmente diferente daquilo que costumamos experimentar; é uma
presença de Deus, impossível de descrever. Às vezes, essa sensação
me surpreende até nos momentos em que nem penso em Deus.
Sempre reagi contra tudo que possa ser extravagante, mas agora
tenho de suportar o que supera toda a imaginação e experiência
humana, pois aquilo simplesmente se apodera de mim. Mudou
também minha vida de oração; nem sei se ficou melhor ou se piorou.
Estou como que me precipitando no infinito sem que possa formular
orações. Estou totalmente penetrada do meu nada perante Deus.
• 7 de novembro — A desconhecida achegou-se a mim sussur-
rando-me algo ao ouvido, mas não entendi nada. No entanto, posso,

74
agora, vê-la, claramente, nos seus trajes de cavaleira de fim do sé­
culo XVI. Perdi o pavor perante ela. Sinto a presença de uma alma
mesmo que eu não ouça nem veja nada. Até no escuro sinto a pre­
sença de alguém, quando se trata de uma visita do outro mundo.
• 8 de novembro — Ela esteve comigo quase a noite toda, mas
conservou-se calma. Formulei uma oração que lhe agradou muito.
Seu olhar ficou mais suave, mas ainda não tenho coragem de dormir
quando ela está comigo.
• 10 de novembro— Outra vez murmurou-me coisas ao ouvido.
Se entendi bem, foram as palavras “sem paz”. Perguntei-lhe, mas
apenas meneou tristemente a cabeça.
• 11 de novembro — Durante a missa cantada, do começo até
o fim, estava presente o cavaleiro, velho conhecido meu. Já é a
segunda vez que vem em dia de domingo. Será que há alguma ligação
com a relíquia da Santa Cruz, que se expõe à veneração nestes
domingos? • E ela também, a Catarina, apareceu.
• 12 de novembro— Finalmente, ela está em condições de falar.
Recomeçou a andar pelo quarto, agitada, muito inquieta, quase como
louca repetindo sem parar: “sem paz, sem paz!” • Vi também de novo
os onze vultos nevoentos.
• 13 de novembro — Catarina esteve comigo durante longo
tempo. Comecei diversas orações para ver qual delas lhe agradava
mais. Ela fez com a cabeça que não gostava, até que comecei aquela
que já lhe agradara outro dia. Ela ajoelhou-se ao meu lado. Foi a
primeira vez que uma Alma do Purgatório fez isso. Senti uma sensa­
ção muito especial. Em seguida, perguntei-lhe: “Viveste neste caste­
lo?” — “Vivi.” — “Seu corpo foi enterrado aqui?”— “Não.” Fiz-lhe
outras perguntas, mas não obtive resposta.
• 14 de novembro— Algo de estranho me aconteceu. Eu havia
resolvido a faltar, na manhã seguinte, à missa diária, porque me sen­
tia muito cansada e achava que deveria dormir mais um pouco até
despertar-me por completo. Sonhei então com uma pobre senhora
que me pedia e implorava lhe desse alguma coisa. Acordei assus­
tada. Catarina estava ao lado de minha cama, de mãos suplicantes.

75
Eugênia von der Leyen, no Ncital de 1912, aos 45 anos. É característico o
jeito de seu penteado. Todas asfotos mostram o cabelo enroladoformando como
que uma coroa na cabeça.

76
Eugênia, com ci sobrinha Adelheid von der Leyen, falecida em 17 de julho
de 1975, no castelo de Waal.

11
Eugênia fazendo trabalho de bordado, nas férias da Páscoa de 1913.

78
Eugênia, no castelo de Unterdiessen, com o pequeno príncipe Wolfram e
com o cão de guarda Tobanno, em 1926, três anos antes de sua morte. Como ela
diz nos apontamentos, só o pequeno e alguns animais domésticos viram, algumas
vezes, as Almas do Purgatório.
Disse-lhe: “Obrigada que me acordaste. Como soubeste dos meus
pensamentos?”— “Estou unida a ti.”—“Através de quê?” Nenhuma
resposta. Em vez disso, a pergunta dela: “Queres sacrificar-te ainda
por mim?” — “Quero; o que mais posso fazer para te ajudar?” —
“Dar-me a paz!” — “Como posso te dá-la?” — “Pelo amor!” Pobre
da Catarina! Agora cuidarei bem de minha amiga. Infelizmente,
ainda me ocupo demais com meu próprio conforto. Se não fosse o
ambiente confortável que me cerca, poderia fazer muito mais sacri­
fícios. Tudo seria bem mais fácil, se pudesse viver apenas pelas
Almas do Purgatório. Mas estou rodeada de pessoas de carne e osso.
Sinto-me bastante frágil para lidar constantemente com gente que
pertence a mundos diferentes. Sinto alívio em lançá-lo no papel, pois
ainda não estou em condições de dispensar consolo humano — e a
sensação de que alguém não me perde de vista, me dá segurança.
Preferiria calar tudo o que se refere a mim mesma, mas se um
quadro quer expressar a realidade, não se podem omitir detalhes e
matizes. Quero viver em obediência a meus diretores. Enquanto
lanço no papel estas notas, surgem no meu íntimo pensamentos
egoístas. Pergunto-me por que só eu tenho que passar por tudo isso
e por que não percebem também outras pessoas o que se passa
comigo? Mas quero esforçar-me para rejeitar essas idéias, pois devo
refletir mais sobre a minha vocação peculiar; assim encontrarei o
contrapeso necessário.
• 15 de novembro — Ela ficou longamente comigo sem falar.
Se a sua boca não fosse tão repelente, não causaria impressão
desagradável. Acho que ficará mais comunicativa ainda. • Vi os
“onze” e o cavaleiro. • Na horta vi o velho Henrique com sua
aparência hedionda. Como posso ajudar a todas essas almas? • Eu
estava com meus familiares quando, repentinamente, Catarina se
mostrou à minha frente. Fez-me um sinal com a mão para ir com ela.
Mas eu não podia abandonar meus familiares; eles não enxergavam
o que eu via.
Ver tantas almas naquele dia foi uma grande alegria para mim,
pois na santa missa eu pedira ao Bom Deus que me mandasse hoje

80
diversas almas, se minha solicitude para com elas fosse do agrado
dele. Agora estou em paz. Foi um belo presente que ele me deu para
o meu onomástico.

Eu sempre desunia os homens

• 16 de novembro—Catarina veio à uma da noite. Longamente,


rezamos juntas. Perguntei-lhe: “Podes dizer-me o que tens na boca?”
— “Vês isso?”— “Sim. Dize-me por que tua boca sofre desse jeito.”
— “Eu sempre desuni os homens.” E começou a soluçar terrivel­
mente. Disse-lhe: “Tenho muita compaixão de ti. Ainda tens que
sofrer por muito tempo?” — “Tenho!” — “Encontras alívio quando
me procuras?” — “Encontro.” — “De que modo?” — “Paz!” —
“Não entendo, explica-me melhor.” — “Tu me dás paz.” — “Mas
de que modo?” Ela achegou-se muito a mim e sussurrou-me algo ao
ouvido. E sumiu.
Interessante como o tempo passa tão rápido, quando a gente
está com as Almas do Purgatório. Ela chegou à uma e pouco e me
deixou às 4:30. E eu tive a impressão de que se passara meia hora no
máximo. Ela está bem vestida e traz uma corrente comprida de ouro.
Pena que eu não saiba desenhar. Não tem muita idade. Parece ter uns
40 anos. Faço votos para que volte; quase que começo a gostar dela.
• 17 de novembro — Ela começa a procurar-me também em
outros quartos. Até agora, veio nove vezes.
• 19 de novembro — Dois dias de descanso completo. Que
bom!
• 20 de novembro — Catarina passou comigo quase a noite
toda. Estava muito calma. Ficou simplesmente de pé. • Henrique
veio também. Aparência terrível. Tudo se vê nitidamente. Ele está
muito inquieto e geme de modo horroroso. Perguntei a Catarina:
“Vês a pobre alma que está ao teu lado?” — “Não.” — “E por que
não?” — “É que estou ligada somente a ti... ”. Ela disse ainda algo
que eu não entendi. — “Voltarás ainda muitas vezes?” — “Se

81
receber permissão.” — “Quem pode dá-la?” — “A misericórdia.”
E se foi.
• À tarde vi o cavaleiro na igreja. Aproximei-me dele para
interrogá-lo. Ele não se mexeu e continuou rezando. Apalpei-lhe a
armadura. É dura qual armadura real. Não tem muita idade o corpo
que a aceitou. Tem os cabelos longos e louros.
• 21 de novembro— Henrique ficou comigo longamente. Mui­
to inquieto, tem a aparência de um homem mau. Está ganindo e
gemendo sem parar. A reza o toma mais inquieto ainda, ou, por as­
sim dizer, mais malvado. • Ao nascer do dia veio Catarina. Fiquei
aliviada por não precisar permanecer sozinha com Henrique. Sem
esperar por mim, ela começou aquela oração de que mais gosta, por
si mesma. Fiquei tão comovida que chorei. Arrependi-me bastante de
ainda pensar tanto em mim mesma. Henrique ficou de pé assistindo
a tudo. A diferença entre as duas almas é grande, como entre luz e
sombra, entre ira e meiguice. Com Catarina deu-se uma grande
mudança. Perguntei-lhe: “Estás melhor?” — “Vejo a claridade”, me
respondeu. Continuei: “Posso então dedicar-me agora somente às
outras almas?” — “Não me abandones ainda!” E ambas as almas
me deixaram.
Oh, se eu pudesse fazer mais para socorrê-las! É verdade que
eu poderia jejuar mais, mas então não conseguiria ajudar devida­
mente a todos os outros, já que não me é possível esconder, durante
o dia, as conseqüências dos sofrimentos da noite.

Catarina morreu em 1680

• 22 de novembro— Sinto muita vontade de riscar o que anotei


ontem. Deixo de fazê-lo para que se saiba quão grande é a minha
falta de amor e a minha covardia. Como poderia eu duvidar que o
Bom Deus me daria toda a força de que preciso para seguir suas
inspirações?
Voltaram ambas as almas; vê-se no rosto de Henrique quanto

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detesta a oração. Não ligo para essa sua atitude e continuo, como
sempre, com a minha reza de costume. Notei certa mudança na boca
de Catarina. Às vezes, ela até sorri. Pedi-lhe: “Dize-me, por favor,
quando morreste.” — “No mês de fevereiro de 1680.” “Onde está
enterrado teu corpo?” — “Em Kempten.”('4b) — “Por que está tua
alma aqui?” — “Trouxe desunião para cá.” — “Conheces a Bárba­
ra?” — “Conheço.” — “Fala, por favor, mais um pouco.” Então, ela
sumiu. • Henrique deve tê-la visto, pois enquanto ela falava, foi-se
aproximando cada vez mais.
• 24 de novembro — As duas almas estiveram comigo durante
longo tempo. Mas não reagiram a perguntas e convites para rezar
comigo. Fico contente quando Catarina também aparece; é terrível
ficar sozinha com Henrique.
• 25 de novembro— Foi só Henrique que se mostrou. Compor­
tou-se de modo tão arrebatado que receei acabasse por cair na
banheira. Perguntei-lhe: — “Tens algo a me dizer?” Aí ficou muito
furioso. Saiu correndo, voltou e gemia de maneira abominável. Não
foi nada agradável.
• 26 de novembro— Vieram Henrique e Catarina. Disse a esta:
“Pensei que tua padroeira te fosse remir, pois ontem não me vieste
ver.” — “Minha padroeira é Catarina de Sena”, disse ela de um jeito
tão explosivo que quase dei uma gargalhada.
• 27 de novembro — Não me sentia bem e não consegui
adormecer, pois eu contava com a visita de minhas amigas. Mas não
veio ninguém, o que, aliás, costuma ocorrer quando sofro muito. É
interessante essa delicadeza das Almas.
• 28 de novembro — Sofro; as Almas não vêm.
• 29 de novembro— Veio apenas Henrique. Mostra-se aborre­
cido com minhas rezas e perguntas.
• 30 de novembro— Quando entrei no meu quarto, Catarina já
estava me esperando. Rezamos juntas. Terminada a oração da noite,

(14b) Kempten é a capital do Allgaeu bávaro, famosa pela basílica de São Lourenço e pelo
castelo residencial, ambos construídos pelo conhecido mestre da arquitetura barroca,
Michael Beer.

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perguntei-lhe: “Por que não vieste este tempo todo?” — “Eu estava
contigo.” — “Por que não te vi?” — ‘Tu me deste muito. Olha!” Ela
apontou para sua boca. Desaparecera tudo quanto de abominável a
desfigurara. Não sou capaz de descrever a alegria que senti. Pergun­
tei: — “Já não sofres tanto?” — “Não.” — “Dize-me de que modo
posso ajudar-te ainda mais?”— “Se não pecares nunca.”— “Infeliz­
mente, isso ainda não consigo.” Aí ela me sussurrou algo ao ouvido.
Mas não o entendi. Parece que foi “união” ou “boa intenção”. E se foi.
Viver sem pecado algum. Oh, se o conseguisse! De vez em
quando está tudo fervilhando dentro de mim. Sou também fingida
porque não mostro aos outros o que sinto dentro de mim.

Henrique torna-se brutal

• Io de dezembro — O velho Henrique ficou longamente


comigo e comportou-se de modo abominável. Perguntei-lhe se havia
sido ele quem atirara em meu avô(|4c\ Aí ficou fulo de raiva. Atirou-
se contra mim e me apertou a garganta com tanta força que pensei
morrer estrangulada. O gesto não levou mais de um segundo, no
entanto, foi terrível e me perturbou tremendamente^15). Jamais esque­
cerei aquele seu olhar furioso.
Fui agredida pelas Almas três vezes até agora. Quando isso
acontece, não é tanto a dor que sinto, mas um nojo indizível— é como
se eu tivesse que pegar em sapos ou cobras... Faltam-me palavras para
descrever tal sensação.

(14c) Seu avô chamava-se Carl Eugen Damian Erwin I (1798-1879). Fora casado com
Sophie Therese von Schõnborn-Buchheim (t 1876). O retrato dele está no salão.

(15) Essa atitude violenta é um mistério da malícia que a alma leva consigo ao estado
purificador. Em vida, ela queria praticar o mal; no estado de purificação, arrasta consigo
esse mal sem que o queira, reconhecendo toda a feiúra abominável de seus atos.
Compreendemos, assim, melhor, a atitude de muitos pagãos que sentiam um pavor
indizível dos defuntos e que procuravam expulsá-los, por meio de barulho e de máscaras,
do lugar onde haviam vivido e morrido. Daí a explicação da palavra “barulho infernal”,
em alemão: barulho dos pagãos.

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• 2 de dezembro— Henrique esteve no meu quarto, das duas até
às seis. Mostrou-se tão agressivo que só a custo consegui defender-
me. Apresentei-lhe a partícula da Santa Cruz. Aí se recolheu a um
canto, onde ficou ròsnando como um cachorro bravo. Foi terrível.
Tive saudades de Catarina.
Durante a missa toda, o cavaleiro esteve presente. Vi também
os onze vultos nuviosos; não sei o que pensar a respeito deles.
• 3 de dezembro — Primeiro veio Henrique; em seguida,
Catarina. Perguntei-lhe: — “Ainda não enxergas a alma que está
comigo?” — “Não.” — “E por que não” — “Não estou mais na
fase dele.” — “Por favor, dize-me se é uma Alma do Purgatório ou
se é um espírito do inferno.” — “Salva-a!” Durante longo tempo
rezei com ela. Henrique estava calmo, mas sua figura continua
abominável.
• 4 de dezembro — Ao subir a escada, uma sombra acompa­
nhou-me à frente até dentro do meu quarto; em seguida, desapare­
ceu. À noite, Henrique retomou. Rezei com ele, mas ele nem ligou.
Quando uma alma me aparece, seu rosto, nos primeiros tem­
pos, está totalmente escuro; começa a clarear aos poucos e só então
passo a distinguir contornos e detalhes até tomar-se reconhecível.
Isso sempre me impressionou. O rosto começa a clarear, quando as
almas recebem permissão para falar.
• 5 de dezembro — Veio só Catarina. Perguntei-lhe: “Podes
rezar por mim?” — “Posso.” — “Não queres pedir para que eu não
mais receba visitas de Almas do Purgatório, pois gostaria tanto de ter
novamente sossego.” — “Não!” — “Mas por que não queres rezar
por essa minha intenção?” — “Deus não quer que eu peça isso.”
Fiquei profundamente emocionada ao ouvi-la, pois então tratava-se
de uma ordem do próprio Deus para que eu recebesse visitas das
almas. De hoje em diante devem acabar as perguntas tolas e os “por­
quês”; deve terminar qualquer consideração pessoal e pensamentos
egoístas.
Mostrei uma relíquia da Santa Cruz à minha amiga Catarina,
e perguntei-lhe: “Conheces isso?” — “Conheço.” — “O que é?” —
“E coisa santa.”

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• 6 de dezembro — Aquela sombra, aparentemente uma Alma
do Purgatório, ainda impossibilitada de se manifestar claramente,
continua mostrando-se na escada. Tem certa semelhança com os onze
vultos nevoentos. Será que ela faz parte do grupo? • Henrique esteve
comigo a noite toda; a relíquia da Santa Cruz é a minha proteção.
Agora ele já não se aproxima tanto de mim.

Salva por dar esmolas

• 7 de dezembro— Durante muito tempo esteve comigo minha


querida Catarina. Perguntei-lhe: “Por que sofres no purgatório já há
tanto tempo? Fizeste muito pecado por tua fala?” — “Fazia, e não
me arrependia e não me confessava.” — “Como foi que te salvaste?”
— “Eu costumava dar esmolas.” — “Por que morreste sem ter
recebido os sacramentos?” — “Morri afogada.” — “O que posso
fazer por ti?” Ela murmurou-me algo ao ouvido. Entendi apenas:
“participação” e “de Cristo”. Talvez tenha dito: “Participação no
corpo de Cristo” (= oferecer por ela a santa comunhão). E desapare­
ceu. • Logo em seguida veio Henrique. Ele não mudou quanto ao
comportamento. Faço bem pouco por ele, é a verdade. Estou como
que dividida entre as coisas do mundo e o meu dever de ajudar as
almas. O pouco que consigo fazer por elas não basta, evidentemente,
para ambas, para Catarina e Henrique.
Estou percebendo quej á não fico assustada quando vem alguém
do outro mundo. Enxergo as almas até no escuro, mas prefiro que
me apareçam na claridade do dia.
• 8 de dezembro — Henrique reapareceu furioso; parecia um
demente. Jogou-se no chão. Rezei à Mãe de Deus; aí se acalmou um
pouco. No entanto, minhas orações não são bem boas; rezo como
que maquinalmente, pois todo o meu pensamento está ocupado com
a Pobre Alma que está comigo e que me dá tanto medo. Ele se foi às
três da madrugada, mas voltou pelas cinco. Disse-lhe: “Vai embora.
Quero ir à igreja. Lá posso rezar melhor por ti.” Em vez de me res­
ponder, gritou de modo abominável, e, comovida, voltei a rezar com

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ele. Soluçou tanto que tentei dizer-lhe algo que o alegrasse. Lem­
brei-me que, quando eu era ainda criança, me passara ele, algumas
vezes, por cima da cerca, muitas ameixas. Disse-lhe, então: “Agrade-
ço-te, pois muitas vezes me proporcionaste favor e alegria. Não te
esqueci. Dize-me de que modo posso ajudar-te, eu o farei de boa
vontade.” Saiu então de sua garganta um som trêmulo, balbuciante.
Ele me estendeu a mão. Apertei-a; estava quente. Seu rosto ficou mais
humano; havia nele algo de amável, por assim dizer, embora seu
aspecto continuasse bastante repelente. Disse-lhe: “Agora deves ir.
Tenho que ir à igreja.” Parece-me que fizemos amizade, pois sem­
pre que venço o medo pelo amor, sinto-me melhor, e a própria situa­
ção muda para melhor.
Na encosta do morro esperavam-me aqueles onze vultos ne­
bulosos. Diante do fundo de neve, pareciam de um cinzento muito
escuro.

Não me podes contar nada do Além?

• 9 de dezembro — Veio Catarina. Eu estava acordada. No


momento em que me aparece uma Alma do Purgatório, tudo quanto
está em meu cérebro fica totalmente concentrado naquela aparição.
Todos os outros pensamentos se apagam. O efeito é um tanto
semelhante ao de um comutador. Interrompendo a força, desaparece
para a vista tudo quanto se via à luz elétrica. O que vem do Além tem
uma força irresistível. Já não sentia eu dor alguma; Catarina veio
encostar-se a mim e passou a mão na minha fronte como se quisesse
fazer um carinho. Perguntei-lhe: “Por que estás hoje tão amável para
comigo?” — É porque está tudo claro.” — “Onde está essa clarida­
de?” — “Dentro de mim e dentro de ti.” — “O que mais estás vendo
dentro de mim?” — “Anseio de Deus.” — Dito isto, desapareceu. E
verdade que eu estava esperando ansiosa a santa comunhão. Tenho
medo, porém, de qualquer atitude extravagante. Escrevo estas coisas
a contragosto, pois parecem um tanto extravagantes.• E veio Henrique.
Nada de especial.

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• 10 de dezembro — Tudo como ontem.
• 11 de dezembro — Aquela sombra que eu vira na escada,
estava, agora, de dia claro, em meu quarto. Durante a noite, retomou
Catarina. Estava muito amável. Perguntei-lhe: “Não podes contar-
me nada do Além?” — “Não.”— “Não tens permissão de falar?” —
“Deves crer.” — “O Além é assim como o aprendeste no catecis­
mo?’/ 16)— “Sim.” — “Por que não te vejo quando estou sofrendo?”
— “Porque então não tens força para agüentar minha presença.”
• 12 de dezembro — De dia claro, aquela sombra ficou ao meu
lado. Ninguém o percebeu. • Veio Henrique. Ficou bastante tempo
comigo. Mudou um pouco para melhor. Parece que já não hostiliza
a oração. Junto com ele havia mais um vulto. Ficaram quase a noite
toda. Estava tão cansada que lhes pedi que me deixassem só.
Responderam ao meu pedido com um horroroso gemer e choramin­
gar. Retirei, pois, a minha súplica e recomecei a oração. Veio-me um
pensamento abominável: invejei as pessoas que podem dormir sem
serem procuradas pelas Almas do Purgatório.
• 14 de dezembro— Apareceram todos: os onze vultos nevoen­
tos, o cavaleiro, Catarina e Henrique, mas nenhum deles me falou.
• 15 de dezembro — Tive uma noite horrífica: parecia-me que
um grande pássaro estava batendo sem parar contra a janela. Levan­
tei-me para ver o que havia. Mas estava tudo em ordem, nem ventava.
Contudo, apareceu uma grande sombra negra, ou um vulto, que me
encheu de pavor; parecia mais bicho que gente. Fiquei com um medo
inominável e afastei-me às pressas da janela. Que alívio! Quando
Catarina apareceu, interpelei-a: “Viste aquele horror?”— “Não, mas

(16) A princesa era muito abnegada e procurava evitar qualquer pecado por mais “leve”
que fosse. No entanto, às vezes lhe acontecia não saber distinguir claramente entre
perguntas inspiradas pelo anseio de se santificar e aquelas que procediam de uma certa
curiosidade religiosa. A resposta da alma: “Crê!” — acentua a ordem rigorosa para o
mundo que sofre as conseqüências do pecado original. Se a fé se transformasse em um
saber científico, já não haveria liberdade humana. É só pela fé que gozamos da liberdade
de aceitar ou de rejeitar as verdades religiosas. Deus quer que o homem se decida
livremente entre o bem e o mal e que, com essa sua decisão, arque com as conseqüências
que dela resultarem.

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vi teu medo.” — “Estás sempre comigo?” — “Estou.” — “Por
que não te vejo?” Não me respondeu e foi embora. Deus há de me
proteger daquele horror que me ameaça.
• 16 de dezembro — Outra vez aquele estrondo à janela, mas
só ruído; não vi nada. Veio Catarina e ficou comigo bastante tempo.
Ao rezarmos aquela oração de que mais gosta, ela ficou de joelhos.
Depois me disse: “Agradeço-te muito.” — “Tua aparência mudou
totalmente. Não precisas mais sofrer?” — “Começa para mim a
alegria.” — “Não me visitas mais?” — “Não.” E achegou-se a mim
e me disse algo que não entendi; pareceu-me palavra em língua
estrangeira. E desapareceu. Estou um pouco triste por não mais po­
der vê-la. Ela se havia tomado um verdadeiro refúgio para mim.
Agora estou com medo daquilo que se anuncia à janela, pois é
totalmente diferente de tudo quanto já vi.
Eu havia feito diversas perguntas a Catarina, mas tenho anota­
do apenas aquelas a que me respondeu. • Vi o cavaleiro, os “onze” e
a “sombra” qual neblina cinzenta; ela ficou comigo uns dez minutos.
• 17 de dezembro — Vieram Henrique, o cavaleiro e a “som­
bra”. Aquele pavor à janela estava como que misturado à tempestade
que se abateu sobre a nossa região. Por isso, não posso dizer nada
de preciso a respeito daquilo que se aproxima.
• 18 de dezembro — Na capela do Hospital, vi a Irmã Edviges,
que parecia estar bem feliz. • No meu quarto, Henrique. Disse-lhe:
“Acabo de rezar bastante por ti. Por favor, o que queres mais?” —
“O perdão.” — “Foste tu que atiraste em meu avô?” — “Eu fui o
instigador e o caluniei.” — “De bom grado te perdôo. Ainda tens que
sofrer muito?” — “Sim.” — ‘Tenho ordem de te perguntar se
estiveste doente ou possesso.” — “Possesso.” — “De quem?” —
“Do espírito da mentira.” — Ele falou tudo isso choramingando o
tempo todo. Seu aspecto era comovente. Estou satisfeita por ele ter
começado a falar. (Tenho a impressão de que não está muito certo
descobrir as faltas que as Almas do Purgatório cometeram em vida.
E como se eu faltasse à confiança que têm para comigo. A obediên­

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cia a meu diretor e a caridade para com o próximo dificilmente se
conciliam dentro de mim.) (17)
As almas que me procuram mostram seu sofrimento, sobretudo
pela posição e gestos de suas mãos. Infelizmente, não sou capaz de
o descrever nem de o desenhar.

O Monstro

• 19 de dezembro — Chegou o Monstro. Posso vê-lo distinta­


mente. É mais alto que os homens comuns. Tem cabelos hirsutos,
negros; resfolega de um modo asqueroso. Protegi-me com a relíquia
da Santa Cruz e aspergi água benta na aparição, fixou-me o olhar
algum tempo e depois foi embora pela janela. Nunca em minha vida
tinha visto algo tão nauseabundo, a não ser em jardins zoológicos.
E esse Monstro, nojento e asqueroso, esteve no meu aposento!
• Ao amanhecer, veio Henrique. Perguntei-lhe: “Queres rezar
comigo?”— “Quero.”— “Sentes alívio pela oração?”— “Sinto.”—
“Mas, então, por que outro dia vieste sufocar-me?”— “Meu tormen­
to é horrível.”— “Não o farás mais?”— “Não.” — “Porque não vais
a teus parentes?”— “Não há caminho que leve a eles.” Quando rezo,
agora, Henrique se comporta de modo bem diferente de como o fazia
antes.
• 20 de dezembro — O Monstro esteve no meu quarto quase a
noite toda. Eu estava acordada e a luz, acesa. De repente, com gran­
de estrondo, irrompeu pela janela adentro. Foi horrendo. Por sorte,
ficou distante de mim. Mas aqueles olhos com que me fixava! Meu
Deus, que olhos! Parece-me que não mais agüentaria outra noite

(17) Escreve o pároco Sebastian Wieser: “Eu conhecia bem o velho Henrique (como
também Fritz Schaefer e outros). Ocupava a casa em frente à minha. Eu o visitei diversas
vezes nos dias de sua demência. Faz uns 50 anos que morreu. Ainda hoje se mostra o
buraco pelo qual passara a arma. Agora, sua alma confessa ter sido ele o autor do tiro
fatídico e responde à pergunta que eu lhe dirigira, por intermédio da princesa, afirmando
ter sido possuído pelo espírito da mentira. Mandei fazer-lhe essa pergunta porque sou de
opinião que boa parte de pessoas loucas são possessas por espíritos malignos.

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semelhante a esta. Sentia-me como que totalmente abandonada de
Deus. • Henrique veio duas vezes. Parece-me que enxergava o
Monstro, pois virou-se para olhar para ele. Não respondeu a minhas
perguntas.
• 21 de dezembro — Vi a alma que se mostra qual sombra em
meu quarto. • Henrique ficou comigo longamente. Perguntei-lhe:
“Viste o Monstro que esteve aqui ontem?” — “Vi.” — “Ele é mais
infeliz que tu?” — “Sim.” —“Sabes quem é?” — “Não.” — “O que
posso fazer por ti que mais te ajude?” — “Receber os sacramentos.”
— “Depois de eu ter recebido os sacramentos, percebes alguma
coisa?” — “Percebo.” — “De que modo?” — “Tu atrais.”
• Veio o Monstro e Henrique se foi. Tentei rezar também com
ele, e o Monstro achegou-se a mim. Na minha covardia, parei de
rezar. Ele se parece com um grande macaco.
• 23 de dezembro — Aconteceu o pior que já tive de enfrentar.
O Monstro veio fazendo muito barulho e se acocorou num canto,
fixando-me o olhar sem parar. Ontem, eu fui muito covarde ao parar
de rezar quando o Monstro veio se aproximar de mim. Hoje, recobrei
coragem e comecei a rezar. Mal havia pronunciado as primeiras
palavras, agarrou-me o Monstro com toda força. Não senti dor física,
mas algo tão asqueroso que perdi os sentidos. Não sei o que acon­
teceu, mas aquilo não durou muito. Quando recobrei os sentidos, a
luz estava acesa, mas o Monstro não estava mais. Senti-me mal.
Consegui dormir um pouco. • Veio Henrique, ficou, porém, pouco
tempo comigo. • Vi o cavaleiro e os onze vultos. • Aquela alma em
forma de sombra seguiu-me ao subir a escada e ficou comigo
enquanto eu enfeitava a árvore de Natal.
É difícil minha situação, muito difícil. Tenho que esconder
todas as impressões que me causam as visitas do outro mundo, e
comportar-me como pessoa comum enquanto convivo com as Almas
do Purgatório.
• 24 de dezembro— Henrique esteve muito tempo comigo. Seu
aspecto está melhorando. Perguntei-lhe: “Estás passando melhor?”
— “Estou.”— “Serás libertado e remido em breve?” — “18x7”. —

<)l
“Dize-me se há mais algumas almas comigo que não posso ver —
“Há.” — “Por que não as posso ver?” — “Elas não têm permissão de
se mostrar.” E desapareceu.
• Na hora do jantar veio a “sombra”. • Os onze vultos acompa-
nharam-me para a missa da meia-noite. • De volta ao meu quarto,
antes de me deitar, veio o Monstro. Ele tem duas vezes meu tama­
nho. Senti tanto pavor que quis sair para o corredor. O Monstro colo-
cou-se à minha frente, tomando impossível minha saída. Disse-lhe:
“Não me podes fazer mal; é noite de Natal.” O Monstro urrou e foi
correndo pelo quarto. Ajoelhei-me diante de meu presépio, sem
poder rezar nem pensar, já que um pavor inominável me penetrava.
O que aconteceria ainda?! Ao meu lado, aquele resfolegar sinistro.
Enfim falei: “Se não podes falar, dá-me um sinal se posso ajudar-te.”
Ele jogou-se no chão, uivando como um animal. Dei-lhe água benta.
Por ser Natal, superei o meu medo e o acariciei. Mas como foi duro
esse gesto para mim! Rezei em voz alta. Ele estava quieto. Seu aspec­
to era terrível. Não tinha roupa, apenas couro, como os animais. E
esses seus olhos! Contudo, veio-me um pensamento consolador. Se
fosse um espírito mau, não se comportaria assim como está fazendo,
já que mostrou, por sua atitude, que posso ajudá-lo.
• Henrique me despertou para ir à primeira missa. Perguntei:
“Quem está aí?” — “Gebhard.”('8) E foi Henrique quem respondeu.
Vim, assim, a saber que ele tinha mais um nome de batismo.
Eu me convenço mais e mais de que são as almas que me
despertam e assim já o fizeram no passado.
• A “sombra” mostrou-se de novo na sala de jantar e se
comportou de tal modo que quase me foi impossível levar o alimento
à boca. Os que estavam comigo à mesa perguntaram-me o que me
faltava, já que não comia. Procurei disfarçar a penosa situação do
melhor modo possível, pois ninguém me compreenderia.

(18) Ele tinha dois nomes: Gebhard Heinz.

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Nós todos caminhamos no escuro

• 26 de dezembro — Chamei o Monstro de “Miserável”. Só


pouco tempo ficou comigo. Os “onze” nãó mudam de atitude. Não
posso abordá-los, mas têm comigo um comportamento amigável. A
“sombra” permaneceu longamente comigo.
• 27 de dezembro — O “Miserável” ficou no meu quarto
bastante tempo. Eu quis rezar, e logo ficou comigo. Emudeci, pois
vi que estava totalmente coberto de bolhas, tumores e inchações
sangrentas. À vista de seu corpo, sinto um asco medonho. Queira
Deus que o meu “Miserável” não me toque.
• Como é fraco meu amor para com esse pobrezinho. Sinto tanta
repugnância diante dele. Eis que, no instante em que quis ceder ao
impulso de me retrair, Catarina aparece à minha frente. Ela apontou
para a sua boca que ainda há pouco se assemelhava ao corpo do
“Miserável”. E ela mudara tanto! Estava linda, mas tão linda! e sor­
ria para mim. Alegrei-me com ela e perguntei-lhe: “Ainda ficas
comigo?” — “Não.” — “E por que vieste agora?” — “Porque ficas-
te fraca.” — “Sim, sempre enfraqueço... Mas tenha dó! Olha para
ele! Vê como está! Tenho que ter medo dele. Não o vês?” — “Não.
Essa fase de minha existência passou.” Com isso desapareceu.
Que visão linda que ela oferece! Sou grata quando as Almas
do Purgatório me ajudam para mudar para melhor.
Pouco depois, o “Miserável” foi embora. Venci-me a mim
mesma e disse: “Volta logo!” Mas é triste constatar que, apesar de
minha idade, ainda não aprendi a fazer sacrifícios— em teoria, sim!,
mas na prática, não!
• 28 de dezembro — Veio Henrique. Estava muito triste.
Perguntei-lhe a razão. Respondeu-me: “Não me deste.” — “Descul-
pe-me, eu o sei. Negligenciei-te porque tenho pena também dos
outros. Doravante quero cuidar primeiro de ti. Sabes quem me
procura além de ti?” — “Nós todos caminhamos no escuro.” Mais
tarde veio o “Miserável”. Examinei-o bem. O couro dele é marrom;
seu corpo apresenta tumores, chagas, empolas, feridas abertas. Pensei
que o chão ficaria salpicado de sangue; seu aspecto é medonho. E
esse Monstro ficava ao meu lado e me fixava. Disse-lhe pesarosa: —
“Ainda não estou em condições de ajudar-te muito, já que um outro
precisa de mim.” Ele uivou, correu pelo quarto e veio de braço erguido
me agredir. Peguei depressa a relíquia da Santa Cruz e segurei-a como
se fosse uma arma para me proteger. Rosnou qual cachorro bravo,
mas ficou comigo. Sua presença faz meu coração bater violenta­
mente porque ele me olha de modo atrevido e me dá nojo; impres­
siona não por sua desgraça mas por sua maldade. Aproxima-se uma
luta que tenho travado já tantas vezes: devo amar esse pobre coitado
e não o consigo. Só quando chegar a amar essa alma embrulhada em
execração serei capaz de fazer sacrifícios. • A “sombra” esteve
comigo três vezes. Estou interessada em ver o que acontecerá com
ela; não me causa impressão sinistra; parece ser um pedaço de parede
ambulante.
Há situações, coisas ou pessoas de que tenho verdadeiro pavor.
Às vezes, algo de pouca importância me atinge mais que horrores, por
assim dizer,justificados: estrondos dentro da sala, visitas do Além que
passam pela janela, resfolegar perto de mim, ruídos dentro de uma
parede, tudo isso me impressiona muito.
• 29 de dezembro — Veio Henrique. Fiz-lhe muitas perguntas,
mas não recebi resposta. Ele aprecia a reza e quando lhe dei água benta
ficou quietinho. • Depois veio o “Miserável”. Acocorou-se num
canto. Disse-lhe: “Chega-te a mim! Por que te mostras sob forma de
animal?” Ele deu um salto e já estava ao lado de minha cama. Quando
comecei a rezar, gritou de modo execrável. Contorceu-se no chão em
convulsões terríficas. A relíquia da Santa Cruz não estava ao meu
alcance. Dei-lhe água benta. Aos poucos, as contorções foram ces­
sando e, finalmente, ele se deitou no chão. Pude ver bem seu tamanho
descomunal, tumores, inchações, bolhas e feridas abertas. Seu corpo
está todo coberto dessas ascosidades. O rosto é apenas uma massa
informe munida de olhos. Ao ver tanta deformidade, fiquei tomada
de profunda compaixão. Levantei-me, ajoelhei ao lado dele e lhe
disse: “Por que não me deixas rezar? Só quero ajudar-te. Rezemos

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juntos! Verás que a oração ajuda.” Rezei o pai-nosso. Ele escutou
calmamente, mas depois enlaçou-me com seus braços detestáveis.
Disse-lhe: “Prefiro que não me toques, embora eu tenha muita von­
tade de ajudar-te.” Continuei a rezar com ele e como soluçasse mui­
to, rezei com ele o ato de contrição. Ao pensar em sua imensa miséria,
tive de chorar de comoção. E aconteceu algo de singular. Soltou-
me, ajoelhou-se ao meu lado e contei-lhe um pouco do Natal. Coi­
tado dele! Quanto não deve sofrer! Perguntei-lhe: “Ainda não con-
segues falar?” Fez que não com a cabeça. “Entendes o que te digo?”
Acenou que sim. Parece-me que nos tomamos amigos. Pouco depois
saiu... Aquilo foi duro para mim.
No entanto, estou bem feliz. Tomar felizes as Almas do Purga­
tório é ainda muito mais belo, neste mundo, do que tomar felizes as
pessoas vivas. Que bom que é o Senhor! Senti sua presença com
muitíssima intensidade. E só pode ser assim, pois, por mim mesma,
não sou capaz de nada. Infelizmente, devo admitir que, agora, em
mim mesma, trabalho bem pouco; continuo sempre no mesmo grau
de perfeição e não progrido. Meditando à noite, não encontro nada de
bom dentro de mim.
• Durante o jantar, a “sombra” apareceu e, depois, me acompa­
nhou no corredor. • Encontrei também os “onze”.
• 30 de dezembro — Henrique esteve comigo longamente.
Comecei diversas orações, uma após outra, mas não foi possível
contentá-lo; estava agitado, inquieto, e não parava de gemer. Quando,
finalmente, comecei o “Lembrai-vos”, serenou. Veio-me a idéia de
que ele se salvou pela intercessão de Nossa Senhora. Perguntei-lhe:
“Como foi que te salvaste?” Não obtive resposta. Insisti: — “Quero
sabê-lo.” — “Foi a Mãe' da ... ia.” Não entendi a última palavra;
provavelmente foi “misericórdia.” — ‘Tu a procuraste sempre?” —
“Procurava.” Tais comunicações aquecem o coração da gente e o
fazem muito feliz. Mas já fiz muitas perguntas similares sem obter
respostas.
• 31 de dezembro *— Veio o “Miserável”. Mostrou-se bem
agitado. • Estávamos à mesa, e veio a “sombra”. Parei no meio da

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conversa, e todo o mundo exclamou: “Que cara boba estás fazendo!”
Acho que minha cara ficou mais boba ainda com essa constatação. E
tão difícil manter a atitude natural quando nos procura o sobrenatural.
• Io de janeiro de 1924 — Vieram Henrique e o “Miserável”.
Nada que fosse importante. Tomo a dizer que, com as Almas do
Purgatório, se constata a tristeza pela posição das mãos. As pessoas
vivas não possuem essa faculdade de expressar a tristeza pela postura
das mãos. Pode-se pensar, talvez, numa flor cuj a haste se quebrou. Há
tanta tristeza nesses braços caídos, e tanta aflição, que é totalmente
impossível expressá-lo por palavras.
• 2 de janeiro — O “Miserável” comportou-se de maneira bem
desagradável. Chegava repetidas vezes bem perto de mim, gemendo;
era impossível rezar. Tive um medo terrível que me agarrasse. E isso
que mais me amedronta. Toda a minha natureza se revolta contra tais
atitudes. • Fiquei aliviada com achegada de Henrique. Rezei com ele.
O “Miserável” se foi. Estava tão cansada que falei: “Por favor, deixa-
me dormir. Rezarei por ti.” — “O que me prometeste?” E me deixou.
Senti-me pequena por causa de minha preguiça.
• 3 de janeiro — Acordei, transida de terror. O “Miserável”
estava me segurando. Foi horroroso! Pedi-lhe que me deixasse em
paz. Rezei com ele. Mas sua agitação continuou. Foi ao quarto anexo
ao meu, onde, por muito tempo, fez barulho. • Henrique entrou
chorando. Perguntei-lhe: “Por que estás tão aflito?” — “Existe algo
entre mim e ti.” — “Sei, sim. Mas devo rezar também pelos outros.”
— “Não deves, não!”— “Mas tenho tanto medo de que o “Miserável”
me torture se eu não o ajudar.” — “Agüenta!” e foi embora. A situa­
ção me parece sinistra. Pois o que farei com o “Miserável”?
• 4 de janeiro — E o “Miserável” veio. Disse-lhe que eu não
poderia ajudá-lo enquanto a outra alma precisasse de mim. Ele deu
um grito e me agrediu. Foi pavoroso. • Mais tarde, veio Henrique.
Perguntei-lhe: “Estás contente comigo?” — “Estou.” — ‘Tenho de
fazer tudo só para ti, e nada pelas outras almas?” — “Dá mais!”
Realmente, ele vê o meu íntimo. Eu poderia doar ainda mais, se eu
não fosse “Eu”.

96
• 5 de janeiro— O “Miserável” veio durante o dia claro. Via-se
distintamente sua feiúra. Não encontro explicação para o “invólucro”
que envolve seu corpo. Talvez não seja couro ou pele, mas, em todo
caso, está cheio de tumores e inchações. Calculei seu tamanho porque
o comparei mentalmente com o tamanho do fogão que está no meu
quarto. O “Miserável” aproximou-se de mim de braços abertos.
Refugiei-me na torre. Ele não me perseguiu. Desapareceu.
• 6 de janeiro — Tive muitas dores durante a noite. Nada
aconteceu. Interessante, isso! Mas agradável. Na igreja, o cavaleiro.
Em certos domingos, não falta.

O tormento diminui, continua o castigo

• 7 de janeiro — O “Miserável” voltou, adentrando pela janela.


O barulho que fez ao chegar, me despertou. Perguntei-lhe: “Se não
estás em condições de falar, responde por sinais. És uma Alma do
Purgatório?” Ele fez que sim com a cabeça. — “Posso realmente
ajudar-te?” Outro aceno afirmativo. “Conheces aquela alma que
precisa de minha ajuda e que veio antes de eu me dedicar a ti?” Ele
fez que não com a cabeça e quis a minha mão. Não fui capaz de
estendê-la. É horrível demais o aspecto de sua mão. “Por que fazes
essas tentativas constantes de agarrar minha mão?” Ele apontou
para seus tumores e feridas abertas e gritou de modo aterrador. Rezei
com ele; acalmou-se e colocou a mão no meu leito. • Veio Henrique.
Tive a impressão de que um não enxergava o outro. Perguntei: “Sabes
que está comigo outra alma?” — “Sei.” — “Podes vê-la?” — “Não
posso.” — “E como o sabes?” — “Tu já a socorreste.” — “Como eu
a socorri?” — “Deste luz.” — “Que queres dizer com isso?” —
“Mostraste o caminho.”— “Estou ajudando também a ti?”— “Sim.”
O “Miserável” foi embora. Henrique continuou comigo ainda
longo tempo. Rezamos bastante. Fiz-lhe muitas perguntas, sem,
todavia, receber respostas. Para mim tudo isso é incompreensível,
pois como posso proporcionar luz às almas?! De uma coisa, porém,

97
estou certa: o “Miserável” precisará muito de luz.
• 9 de janeiro — O “Miserável” ficou comigo das 10:30 até às
quatro da madrugada. Não reagiu a nada, mas não me perdeu de
vista um instante sequer. Fiquei muito cansada com essa situação.
Parece que seu rosto está ficando um pouco mais humano. Uma vez
levantou-se de supetão, querendo agredir-me. Gritei: “Não deves fa­
zer isso!” Ficou furioso, mas voltou ao seu cantinho. Tive muito
medo. Depois de ele ter ido, escutei, de repente, uma música que vinha
de muito longe. Foi algo de totalmente novo para mim. Abri a janela,
mas a música não vinha de fora...
• 10 de janeiro — De dia claro, veio Henrique. Parecia estar
alegre e satisfeito. Disse-lhe: “Parece que estás contente. Estás me­
lhor?” — “Estou, sim.” — “Dize-me por favor, por que tens que so­
frer tanto tempo? Tenho oferecido por ti já tantas vezes uma indul­
gência plenária!” — “Sim.” — “Então o percebeste?” — “Percebi.
Deus é a Justiça; por isso, o tormento diminui mas o castigo continua.”
E desapareceu. • Depois, encontrei-me com a “sombra”. Ela toma os
contornos de uma mulher, mas apenas vagamente. • O “Miserável”
entrou aos gritos. Eu estava ainda de pé e rezei com ele. Ele pousou
a mão na minha cabeça. Não agüentei e afastei-a. Ele pediu: “Por
favor!” — “O que queres que eu faça?” — “Sacrifícios.” — “Que
sacrifícios?”— “Tua vontade.” Logo entendi o que ele queria: eu não
suportava que me tocasse, e não queria tocar nele. Eu deveria, pois,
sacrificar minha suscetibilidade e meus melindres. E ele me esten­
deu os braços. Dei-lhe a mão direita, mas a contragosto. Ele pegou
também a mão esquerda. E eu sentia suas mãos moles como papinha.
Estive a ponto de prorromper em lágrimas. Perguntei-lhe: “Por que
seguras minhas mãos?” — “Trazem alívio refrescante.” Fiquei
quieta, mas sentia-me mal até que soltou minhas mãos. Ficou ainda
algum tempo comigo. Que suplício!
• 11 de janeiro — Henrique esteve comigo quase a noite toda.
Tem aspecto de alma bem contente. Disse-lhe: “Por favor, conta-me
por que fícaste possesso pelo demônio?” — “Dei escândalo.” —
“Onde estás agora?”— “Na sombra.”— “Ainda longe de Deus?” —

98
“Sim.”— “Será que voltarás a me visitar algumas vezes?” — “Não.”
—E por que não?”— “Já não me poderás dar coisa alguma.”— “Mas
de bom grado te ajudarei!” — “Eu estarei distante de ti.” — “Em que
consistirá o teu sofrimento?” — “Em estar distante de Deus.” E
desapareceu... Como é tudo tão singular! Anoto só o que entendo
claramente, pois muitas vezes tenho de perguntar, porque freqüen­
temente as almas apenas sussurram.

O “Miserável” se dá a conhecer

• 12 de janeiro — Vieram o “Miserável”, a “sombra” e os onze


vultos.
• 13 de janeiro — Acordei com a pressão que se exercia sobre
o meu braço direito. Foi o “Miserável” que se inclinou sobre mim. Sua
cabeça estava tão próxima à minha que pensei esvair-me em pavor.
Não posso descrever quanto sofri com isso. Todavia, não quero
lamentar-me. O Bom Deus não me enviará cruz superior às minhas
forças. • O rosto do “Miserável” está cheio de tumores e feridas, e
como que coberto de uma massa pegajosa. Finalmente, colocou-se
ao meu lado. Comecei a rezar; depois, retirou-se. • Na igreja vi
também o cavaleiro.
• 14 de janeiro— Eu estava muito contente com a volta de meus
parentes de Roma, e a L... ficou comigo até à noite. Ela estava sentada
comigo à mesa quando, de repente, o “Miserável” apareceu atrás dela
e fixou-me, como de costume, seu olhar de onça morta. Faço um
esforço tremendo para que minha companheira não perceba que está
conosco, e de modo visível para mim, uma visita do outro mundo. No
entanto, agüentar, durante muito tempo, essa tensão terrível, vai
além de minhas forças. Disse, pois, à minha amiga que fosse deitar-
se. No momento em que eu ia abraçá-la, o “Miserável” se pôs à
frente dela, mas eu a vejo através dele. Ela está como que encostada
no “Miserável”, mas não o percebe, apenas estranha muito que eu a
esteja despachando sem formalidade e me considera quase como
sem modos nem educação.

99
Mal minha amiga se foi, o “Miserável” avança contra mim.
Agüento calmamente. Não quero desmaiar, embora aquela situação
quase me subjugue. Nem me lembro se rezei naquele transe horrendo.
Eu agia maquinalmente pois o “Miserável” me apertava tanto que
só com muito esforço conseguia respirar. Finalmente me largou.
Exclamei: “Por que me torturas desse jeito?” — “É que tu me livras
de meu tormento!”— “Mas quem és, afinal?” — “Alguém que está
à procura.” — “À procura de quê?” — “De paz e descanso.” —
“Quero saber como te chamas.”— “Henrique.” E desapareceu. Des­
ta vez, eu me senti realmente esmagada; no entanto, fiquei contente
por ouvi-lo falar e saber que o coitado se chama Henrique^19). • Tor­
nei a ouvir aquela música estranha. Ou será que foi ilusão minha e
que aqueles sons vieram dos fiós de telefone que passam sob a
minha janela?
• 15 de janeiro — Henrique, é este o nome do ex-“Miserável”,
voltou. Já começa a apreciar a oração, e seu rosto se transforma.
Tenho a impressão de já ter visto esses olhos, mas não sei dizer nem
quando nem onde. • A “sombra” esteve no meu quarto; não sei se é
homem ou mulher.
• 16 de janeiro — Henrique me despertou com um grito e
começou a gemer atrozmente. Rezei com ele, mas como continuas­
se a se lamentar, tomei a garrafa de água benta e a esvaziei sobre a
cabeça dele. Ficou quietinho e acompanhou a oração em voz baixa.
E se foi. No chão, não se via gota de água alguma, embora tivesse
eu despejado sobre ele o conteúdo inteiro da garrafa.
• 17 de janeiro — Estranho! Tive muitas dores a noite toda, e
não apareceu nada. Pelas quatro da madrugada caí no sono e dormi

(19) O pároco Wieser comenta: Henrique v. M. é um personagem histórico. Assim como


encontrei os nomes de Egolf e Bárbara, também achei o dele. Parece que levou uma vida
violenta. Durante um ano inteiro continuou em evidência. Fez doações para missas que,
porém, pela inflação, já não têm valor. Mandei, por isso, perguntar se ele sentia que as
missas, outrora rezadas pela alma dele, agora não mais se rezavam. Ele respondeu: “O
sangue de Jesus está sendo derramado por todos nós.” No dia 11 de fevereiro, também
Henrique terminou sua purificação.

100
bem até às seis. Aí veio Henrique. Perguntei-lhe: “Por que vieste
tão tarde?” — “Não te encontrei.” — “Por que não? Estive sempre
no meu quarto.” — “É que não espalhaste claridade.” — “Dize-me
por que tens esse terrível aspecto?”— “É devido aos meus pecados.”
— “Cheguei a conhecer-te em vida?” — “Não.” — “Viveste neste
castelo?” — “Sim.” — “Quando?” Sumiu, sem dar resposta. • A
“sombra” subiu a escada adiante de mim. • Na igreja, vi o cavaleiro.
• 18 de janeiro — Novamente, a visita do pobre Henrique.
Jogou-se em mim. Pedi-lhe que me deixasse em paz. Tudo em vão.
Enfim colocou-se ao meu lado. Senti tão grande asco que estive a
ponto de prorromper em lágrimas. “Por que voltaste a fazer isso?”
— “Para me libertar.”— “Libertar de quê?”— “Não o estás vendo?”
— “Não!” — “Olha para mim!” E sumiu. Será que devo ajudá-lo a
se libertar de seus eczemas e tumores? Não entendo isso. Como
pode ser proveitoso um sacrifício que devo fazer forçada?! Pois de
livre vontade jamais o tocaria.
• 19 de j aneiro— Confesso que, agora, cada noite me amedron­
ta. No entanto, consigo adormecer. A uma hora, Henrique, dando
um grito, entrou. Perguntei-lhe: “De que modo poderei ajudar-te
melhor?” — “Vence-te a ti mesma!” — E novamente me enlaçou.
Foi pavoroso. Esforcei-me para oferecer minha agonia por ele. Por
fim, me largou. A sensação que experimento com tais ataques, é de
ter ficado toda coberta de sangue e lama, mas nunca se vê nada.
Perguntei-lhe: “Deves torturar-me desse modo?” — “Devo.” —
“Quem o quer?” — “Eu.” — “Mas tens ainda tua livre vontade?” —
“Não.” — “Por que dizes então que és tu que o queres?” — “Algo
me obriga a isso pois apenas tu...” Não consegui entender o resto. E
sumiu. Mais tarde, aqueles sons misteriosos me acordaram; não
entendo o que seja; é como se cantassem dentro da parede.
• 20 de janeiro — Ele irrompeu qual vendaval em meu quarto;
eu estava ainda acordada e exclamei: “Por favor, não te aproximes
hoje de mim.” — “Por que não?” — “Não suporto teus modos.” —
"Não queres ajudar-me?” Achegou-se a mim. Eu não disse nada e

101
fechei os olhos. Ele colocou suas terríveis mãos nos meus ombros e
deitou a cabeça na minha. Não me lembro de mais nada, foi demais.
Recobrei a consciência pouco depois. O pensamento na santa comunhão
me faz esquecer todas essas coisas; tanto me alegra a vinda de Jesus.
• 21 de janeiro — Os mesmos horrores, apenas sem que eu
perdesse a consciência. Fiquei covarde, pois só com pavor penso na
chegada de Henrique.
• 22 de janeiro — Um pouco melhor. Não o posso levar a me
responder, mas consegui rezar com ele. • A “sombra” esteve longa­
mente comigo. • Na igreja, vi o cavaleiro.
• 23 de janeiro — Henrique mudou bastante. Nem sei dizer
como ou em que, mas já não me inspira tanto nojo. Estou feliz por­
que não me tocou. Perguntei-lhe: “Dize-me, és tu o Henrique M.?”
— “Sou.” — “Por que deves sofrer tanto tempo?” — “Tenho feito
o pecado mais pesado.” — ‘Tens sofrido todo esse tempo neste
castelo?” — “Tenho.” — “Por que não te vi antes?” — “A Justiça
Divina não o permitiu.” — “Meu diretor quer saber se percebes que
as missas fundadas não existem mais?” — “O sangue de Cristo jorra
por todos nós.”(2°) E começou a chorar. “Por que choras?” — “Por­
que não posso aproveitar-me do sangue de Cristo.” — “E por que
não?”— “É nisso que está meu castigo.”— “Eu te ajudo?”— “Estás
me ajudando, sim.” Rezei com ele. Por algum tempo ficou ainda
comigo, mas não respondia a minhas perguntas.
• À noite, na igreja, o cavaleiro estava ajoelhado no banco dos
ajudantes da missa. Seu rosto, belo e cheio de paz, estava voltado
para mim. Não tive coragem de falar com ele. Talvez, nem deva
dirigir-me a essa classe de almas, totalmente diferente daquelas que
me procuraram.
• 24 dejaneiro— Já que tenho confiado tudo de importante a este
diário, digo também que meu estado de saúde é péssimo e, para ter

(20) “O sangue de Jesus está sendo derramado por todos nós.” Os que opinam de maneira
diferente a respeito do santo sacrifício da missa, e não mais aceitam a transformação das
espécies no corpo e sangue de Jesus, não sabem o que fazem.

102
as forças físicas necessárias, deveria sacrificar-me espiritualmente,
sem ir à santa missa devido a meu extremo cansaço. Mas isto seria
um tratamento de saúde totalmente errado, pois então me faltaria
tudo e sairia de dentro de mim até o que não deveria existir: tanta
impaciência, tanta rudeza na convivência com o próximo.
• Na noite passada, Henrique veio três vezes. Ele está ficando
mais humano e já não tem aparência de macaco. Até os eczemas
desapareceram. Rezei longamente com ele; parece gostar do salmo
De profundis (Das profundezas, salmo 129). De repente, achegou-se
a mim, sem me tocar (Graças a Deus!), e me perguntou: “Já o
percebeste?” — “Sim; tens o aspecto totalmente diferente. Qual a
razão?” — “É que te flagelaste por mim.” E sumiu. Eu o havia feito
porque seguira um impulso pensando que isso ajudaria, talvez, às
almas. Faço tão pouco por elas. • Outra vez, a “sombra” na escada.
• Ouvi a música. E um entremear-se muito estranho de tons...
• 25 de janeiro — Henrique ficou longamente comigo. Estava
muito triste e não descobri o motivo de sua tristeza. Desapareceram
tumores, pústulas e tudo o que provocava asco. Em vez de couro
animal traz agora um casaco marrom. O modo como tem os braços
expressa uma tristeza indizível.
• 26 de janeiro — Ele veio de dia. O aspecto é pior do que de
noite. É como se fosse um mosaico formado de quadros de nuvens
de diversos matizes; a cabeça parecia ser transparente, e impressio­
nava de modo estranho. Perguntei-lhe: “Por que estiveste ontem tão
triste?” — “Não me foi possível procurar-te.” — “Por que não? Tu
estiveste comigo!” — “Havia tantas almas ao teu redor.” — “Não
vi nada. Quem esteve comigo?” — “Almas!” — “Mas eu rezei con­
tigo.” — ‘Tu estavas dividida!” — “E hoje chegaste tão cedo por
causa disso?” — “Foi.” E verdade que tive uma noite sossegada,
e foi bem agradável. Mas o pensamento nas almas que por mim
esperam, me oprime um pouco. Será que agüentarei a situação por
muito tempo? Onde está minha confiança em Deus? Onde está meu
espírito de sacrifício? Estranho! • A “sombra” me seguiu durnnlr

KM
o dia todo. Trata-se de uma mulher, mas não se reconhece a pessoa.
• Henrique me fez uma curta visita.
Novamente, aquela música! No fundo, não me faz feliz. Ela é
tão imprecisa! Será que é imaginação minha? Será que é real? Não
sei; vou simplesmente anotar tudo. No entanto, não mais farei
menção daquilo que dou às Almas do Purgatório, pois é a coisa mais
natural domundoqueeufaçaalgoporelas;épouco;devofazermuito mais.
• 28 e 29 de janeiro — Dores e mais dores. Por isso, as almas,
como de costume, me deixaram em paz. Durante a noite, fiz a
experiência: chamei por Henrique, mas não veio.
• 30 dejaneiro— Sentia uma sensação esquisita. Veio Henrique
e me fez um sinal. Queria que eu o acompanhasse. Quis ignorá-lo,
mas ele achegou-se a mim e disse: — “Vem comigo.” O convite
não me agradou, e não reagi. Aí ficou tão agitado que juntei todos os
restos de coragem contidos dentro de mim e o acompanhei. Deram
justamente três horas. Ele foi à minha frente e descemos até à porta
da cozinha pela qual se chega à adega. Fui abri-la e descemos a es­
cada. Foi duro. Lá embaixo, ele apontou para um canto escuro e de­
sapareceu. Eu me achava em frente da parede. Não se via nada.
Graças a Deus, eu podia em toda parte acender a luz elétrica, pois no
escuro a situação teria sido pior. Não há palavra para descrever o
medo que sentia. Mas, paciência! A gente suporta também isso.
Infelizmente, continuo sendo sempre “Eu mesma”, com todas as
minhas misérias.
Iode fevereiro— Durante a noite, a presença de Henrique. Fez-
se de surdo para todas as minhas perguntas. Longamente rezei com
ele. • A alma-sombra se dá a conhecer. É a velha camareira Janete,
que há 40 anos esteve a serviço de minha avó. Ela passou bem perto
de mim.
Ao voltar da santa missa, e ao tentar abrir a porta de meu quarto,
o trinco se mexeu quando nele coloquei a mão; e quem estava ali?
Henrique! Assustei-me deveras. — “Acabo de rezar por ti! Notaste-
oporacaso?”— “Notei, sim.”— “Escuta! Há alguma coisa enterrada
na adega?” — “Não!”. — “Por que me levaste para lá?” — “Foi lá

104
que pequei.” — “Mataste alguém?” — “Não! Mas continua pergun­
tando!” — “Posso ajudar-te se pergunto?” — “Pode.” — “Foi um
pecado contra o 6o mandamento?” — “Foi.” — “Mais não quero
saber desse assunto. Dize-me como posso ajudar-te?” — “Reza hoje
por mim!” — “Por que justamente hoje?” — “Porque estás bem
pura.” — “É porque me confessei e tomei a santa comunhão?” —
“É por isso.” — E sumiu. (Escrevo isso obrigada pela obediência
a meus superiores. Não quero nem pensar no que me disse. Que não
me venha algum pensamento presunçoso ou de vaidade; caso con­
trário, a pureza já se vai.)
• 2 de fevereiro— Outra vez, aquela música que me despertou.
Mais tarde, Henrique. Perguntei-lhe: “Qual a razão de teu sofrimento
tão prolongado? Não tiveste tempo para te confessar antes de
morrer?” — “Tive, sim. Fui perdoado, mas não fiz a devida penitên­
cia pelos meus pecados.” — “Podes dizer-me por que tua cunhada
tinha aquela chaga na cabeça?” — “Não.” — “Vês também outras
almas no castelo?” — “Vejo apenas as almas que se encontram na
mesma esfera em que estou.” — “Por algum tempo, não me
encontrarás aqui. Tenho de viajar, mas rezarei por ti.” — “Para nós
não existe espaço.” — “Não estás ligado a este lugar?” — “Estou
confinado a ti.” — “Por quem?” — “Pela misericórdia de Deus.” E
desapareceu.
Realmente, o Bom Deus o quer! Subiu-me ao peito uma onda
de calor ao pensar que posso fazer algo por ele. Tem sido tão mise­
rável minha atitude! Sempre pensando só em mim mesma. O Bom
Deus me encarrega de uma tarefa. Este pensamento dá à alma um
empurrão que, no meio da tortura e do medo, me enche de júbilo.
Encontro-me hoje num estado esquisito, totalmente dividida em mim
mesma. O que há de espiritual dentro de mim, mal permite ao meu
corpo mexer-se. Mas eu me comporto de um modo tão artificioso!
Ninguém pode suspeitar o que se está passando comigo. Mas o que
se agita no meu íntimo, tem de irromper; por isso fico contente que
alguém saiba o que está se passando comigo, embora, às vezes, eu não
aprecie muito esse fato, já que minha alma é propriedade privada

105
minha. • Durante a reza do terço, vi, na igreja, aquele cavaleiro.
• Encontrei-me com os “onze’’na encosta do morro. Talvez, Henrique
possa informar-me a respeito deles. Vou interrogá-lo.
• 3 de fevereiro— O cavaleiro esteve presente no culto quase o
tempo todo; cheguei a pensar que os coroinhas da missa iriam nele
tropeçar. • Henrique apareceu apenas por instantes.
• 4 de fevereiro— Henrique ficou a noite quase toda. Disse-lhe
que eu partiria e que ele não conseguiria encontrar-me, segundo
minha opinião. — “O caminho é luminoso!”^21) disse ele.

Quando morrerei?

• 7 de fevereiro— Sch... De fato, Henrique veio. Não falou na­


da. Mas ainda deve haver outras almas dentro do meu quarto, pois
há um sussurro constante ao meu redor, que toma o ambiente pouco
acolhedor.
• 8 de fevereiro — Henrique ficou longamente comigo. O
aspecto dele é bom. Indaguei-lhe: “Virás ainda muitas vezes?” —
“Ainda preciso de tua ajuda.” — “Como posso ajudar-te?” — “Pela
mortificação.” Devo confessá-lo: Nos últimos tempos diminuiu
meu fervor em socorrê-lo porque pensava que ele estivesse se recu­
perando bem. • Depois da saída dele, vi uma sombra indo de um lado
para o outro; ouvi também bastante ruído.
• 9 de fevereiro — Durante o dia, Henrique esteve duas vezes
comigo; durante a noite, permaneceu por mais tempo. Quis saber:
“Podes informar-me quando morrerei?” ■ — “Deves estar preparada!”
— “Será então em breve?” — “Será quando estiveres madura.” —
“Podes indicar-me as minhas faltas?” — “Não posso.”
Enquanto ele conversava comigo, houve, de repente, um sus­
surro e um cochichar no quarto, como nunca o havia escutado.

( 2 1 ) 0 diretor espiritual, Sebastião Wieser, comenta: “A viagem foi feita entre 4 e 7 de


fevereiro. O que se segue, deu-se em Sch..., distante d e seu domicilio algumas centenas
de quilômetros.”

106
Repentinamente, tudo sumiu. Mesmo de dia, ouvi em tomo de mim,
ruídos esquisitos. Em que vai dar isto?!
• 11 de fevereiro— Eu estava fazendo minha oração da manhã,
quando, subitamente, Henrique apareceu. Disse-lhe: “Vem cá; vou
dar-te água benta. Ela te faz bem?” — “Faz.” — “Que mais queres?”
— “Tua mão.” Satisfiz-lhe o pedido. Ele pegou também minha outra
mão. Tive a sensação que saía de mim uma força ou até toda a minha
energia, como se extinguisse a minha própria vontade. Pedi-lhe:
“Larga-me, por favor.” Mas ele implorou: “Se agüentares mais um
pouco, ficarei livre”, e apertou-me ainda mais. Ficamos assim alguns
momentos, segurando-me ele com tanta força, que sua mão parecia
ser uma verdadeira prensa. Disse-lhe: “Larga-me; do contrário, não
poderei receber a santa comunhão, já é tarde.” Soltou-me. Vi, pela
primeira vez, um sorriso em seu rosto. Disse-me: “Agradecido!
Estou na Luz.” E partiu.

Reinaldo

• 16 de fevereiro— Encontrei-me, no corredor, com a alma de


um homem idoso que entrou em meu quarto e desapareceu. Os ruídos
no quarto são sempre os mesmos.
• 18 de fevereiro— Vi uma senhora no jardim, acompanhando-
me sempre. A expressão de seu rosto era de muita tristeza. Quando
me dirigi a ela, sumiu.
• 19 de fevereiro — Outra vez, no corredor, aquele velho. Não
inspira medo.
• 21 de fevereiro — O homem veio de noite; parecia estar bem
satisfeito. Comecei a rezar, e ele ficou bastante tempo comigo; depois
abriu a gaveta de uma cômoda, como se procurasse alguma coisa.
• 22 e 23 de fevereiro— Tive dores; não ouvi nada, nem música
nem ruídos.
• 24 de fevereiro — Voltou aquele velho. Eu fora aconselhada
a não reagir de modo algum, para ver o que aconteceria. Deu-se algo

107
estranho. O homem ficou à minha frente, imóvel, e me fixando; tive
a sensação de que estavam me tirando toda a minha força; senti-me
enfraquecer. Ele se inclinou sobre mim e seu bafo abominável bateu
em cheio no meu rosto. Eu quis levar a experiência até o fim, e não
reagi. Então, gritou com tanta força que pensei que todo mundo ali
acorreria. E sumiu. Sentia-me tão miserável como se tivesse tirado
algo de mim mesma, mas o quê? Ou foi tudo apenas o resultado do
esforço de resistir-lhe? Seja como for, terei mais uma vez a mesma
atitude. • O grito havia sido ouvido por minha sobrinha que pensara
ter eu gritado em sonho.
• 25 de fevereiro— Ao entrar no meu quarto para deitar-me, ele
lá já estava. Fiz como se não ligasse à sua presença. Rezei a oração
da noite e, aí, ele me deu um empurrão como se estivesse desconten­
te comigo. Esforcei-me para não reagir. Apaguei a luz e me deitei.
Sentia a presença dele. Começou um grande barulho dentro do
quarto. Achei melhor levantar-me e acender a luz. Ele corria agitado
pelo quarto. Finalmente, aproximou-se de mime me perguntou: “Por
que me resistes?” Não respondi. Ele me agarrou e me apertou a
garganta como se quisesse estrangular-me; deu um grito medonho e
desapareceu... Minha consciência me diz que devo retomar a atitude
antiga, dialogar com as almas e procurar ajudá-las. • De novo, aquela
estranha música.
• 26 de fevereiro— Ele entrou aos gritos. Perguntei-lhe: “O que
queres? Estou pronta a ajudar-te?” — “Por que não me aceitaste?”
— “Porque não quis. Procura outras pessoas que se interessam em
ajudar as almas.” — “Só tenho permissão de me dirigir a ti.” —
“Quem és?” — “Reinaldo.” — “Por que não encontras paz?” —
“Enganei gente.” — “Por que abriste a gaveta?” — “Por causa do
dinheiro.” — “Como posso ajudar-te?” — “Furtei. Manda rezar uma
missa.” — E se foi.
• 27 de fevereiro— Ele demorou apenas poucos instantes; não
falou nada.
• 28 de fevereiro— Realmente, não há motivo para ter medo de
Reinaldo. Perguntei-lhe: — “Viveste aqui, neste castelo?”— “Não.”

108
— “Onde foste enterrado?” — “Em Heidelberg.” — “E por que
sofres aqui?” — “Aqui furtei o dinheiro.” — “Podes estar sossega­
do, mandarei rezar a santa missa.” E desapareceu. Ninguém sabe algo
de um homem chamado Reinaldo. Acho que talvez tenha sido aqui
servente.
• Iode março— Muito barulho. No corredor vi também a alma
de uma mulher. Outra vez, aquela música misteriosa.
• 2 de março— Durante o dia, diversas sombras em meu quarto,
e bastante barulho.
• 3 a 5 de março — Estive doente. Nada de importante.
• 6 de março— À noite, veio uma mulher, bastante inquieta; os
contornos dela são muito imprecisos.
• 7 de março — Encontrei a mulher no corredor. Durante a
noite, um barulho insuportável no quarto, no baú, debaixo da cama.
Tive muito medo. Essas coisas mexem com os nervos da gente mais
que quaisquer outras ocorridas durante o dia.
• 8 de março— Uma barulheira tremenda. De permeio, aquela
mulher; o rosto dela está, ainda, totalmente na neblina.
• 9 de março — Eu estava lendo no meu quarto. De repente,
envolveram-me um vendaval e uma cerrada fumaça. Mas janelas e
portas estavam fechadas. Foi uma situação sinistra.
A idéia de que minha situação se toma mais e mais dolorosa,
me oprime. Todavia, sou feliz. Pois a consciência da presença de
Deus me arrebata, muitas vezes com tanta força que gostaria de fugir
de tudo e apenas permanecer nessa presença. Essas coisas só se
podem experimentar e não descrever. Talvez haja de minha parte
uma certa exaltação, mas não faço nada artificialmente. No meio de
situações alegres, sinto, repentinamente, a presença de Deus, e só é
possível adorar! Mesmo que sejam curtos tais momentos, eles me tra­
zem felicidade para muitos dias. É a contragosto que escrevo isto, pois
tudo soa como se aquilo surgisse de minha imaginação; anoto-o, porém,
para que me possa sentir mais segura, pois meu diretor espiritual me
avisaria se houvesse algo de errado na minha conduta.^22)

(22) Da mesma opinião é seu confessor pároco Sebastian Wieser.

109
• 11 de março — A mulher veio três vezes durante a noite. Sua
figura é bem reconhecível. Também com ela, o sofrimento se
exprime pelos braços. A boca está inchada. Interessante que minha
sobrinha ouvira sua entrada no meu quarto. Pelo relógio se compro­
vou o momento exato.
• 12 de março — Hoje, eu a vi cinco vezes, mas sempre
furtivamente.
• 14 de março— Ela entrou no meu quarto como em fogo. Dis-
se-lhe: “Dize-me quem és.” — “Hermengarda Montfort.” Jogou-se
ao chão, chorando muito. Tive grande compaixão dela. Ajoelhei-me
ao seu lado e disse: “Farei por ti o que me for possível. Tens um desejo
especial?” — “Penitência!” — “Penitência em quê?” — “Nesse teu
corpo.” E desapareceu. Se eu fosse diferente, poderia ajudar tanto às
pobres almas. Graças a Deus que elas se encarregam agora de minha
educação!
• 15 de março — Durante muito tempo, ela ficou comigo. Não
pertence essa alma àquela classe que amedronta; por ela sinto apenas
comiseração. Deve ter sido muito bela, só aboca está torta. Não falou,
mas de bom grado rezou comigo.
• 16 de março— Alguns religiosos passaram a noite no castelo.
Quando Hermengarda veio, disse-lhe: “Vai aos padres que podem
rezar por ti melhor do que eu.” — “Estive com eles, mas não
enxergam.” — “Então é preciso enxergar-te para te ajudar?” —
“Ofereces algo aos pobres se eles não te estendem a mão?” —
“Passaste a vida aqui?” — “Não. Mas aqui eu pequei.” Ela traz
consigo tamanha tristeza como jamais observei em outras almas.
• Após longo tempo, tenho novamente ouvido aquela música.
• 17 de março— Hermengarda veio chorando. Estendi-lhe meu
crucifixo mortuário; ela o beijou. Não houve jeito de mitigar-lhe a
dor. Perguntei-lhe: “Sofres tanto assim?” — “Olha para mim.”
Naquele instante, ela estava como que envolvida em fogo, mas logo
desapareceu. Pela madrugada, ela voltou. “Por que deves sofrer
tanto?” — “Por causa dos pecados com a língua. Eu tenho... discór­
dia.” (Não entendi uma palavra.)— “Posso realmente ajudar-te?”—

110
“Podes, sim.” — “Escuta, não há também outras pessoas que te
possam ajudar?” — “Elas passam adiante.” — “Como encontraste
a mim?” — “Vi outras almas indo a ti.” — Ela achegou-se a mim e
me implorou com olhos sedentos. E eu sentindo toda a minha
pobreza! Ela se foi. Não sei o que eu poderia fazer por ela, pois
também os vivos estão a exigir muito de mim, e só posso dar bem
pouco.
• 19 de março — Quatro vezes, Hermengarda me apareceu.
• 20 a 27 de março — Estive gripada. Nada vi, nada escutei.
Férias.
• 28 de março — Senti que algo havia no meu quarto, mas eu
não vi nada. Perguntei: “Hermengarda, estás aí?” — “Estou.” —
“Onde estiveste o tempo todo?” — “Contigo.” — “Por que não pude
ver-te?” — “Não estavas em condições de me ajudar.” — “Tenho
pensado demais em mim mesma?” — “Foi.” E nesse momento tor­
nei a vê-la. É tudo tão estranho, mas é a verdade. Eu me sentia tão
mal que não pensava em nada a não ser: quero ter sossego.
• 29 de março — Ela sentou-se no meu leito. Não me assusta.
Rezamos muito.
• 30 de março— Ela ficou comigo muito tempo. Não respondeu
nada às minhas perguntas.
• 31 de março— Veio chorando. Perguntei-lhe: “De que modo
posso ajudar-te?” — “Pelo amor.” — “Mas tenho amor para conti­
go.” — “Não o suficiente.” Rezei longamente com ela. Não sei de que
modo eu poderia amá-la ainda mais. Ajudo quanto posso.
Nos três primeiros dias do mês estive doente. Nada de especial.
• 4 de abril — Durante quase todo o dia, eu a vi nos quartos, no
corredor e na escada.
• 5 de abril — Chegou ao meu leito de braços estendidos. Dei-
lhe as mãos e disse:— “Quantas vezes ainda virás?”— “Doa mais!”
— “O quê?” — “A santa comunhão.” E sumiu. Interessante! É
verdade que eu oferecia sempre a santa comunhão por minha
sobrinha enferma.
• 7 de abril— Ela me perseguiu o dia todo. Aparecia repentina­
mente e a cada instante.

111
• 8 de abril — Ela veio de noite. Jogou-se no meu leito e me
abraçou. Não sinto para com ela o pavor que costumo ter com outras
almas; contudo, tenho a impressão de perder toda a minha força
íntima, e isso de um modo bem mais acentuado do que, em outras
ocasiões, em relação a certas almas... Talvez porque me sinta muito
cansada devido ao meu serviço recente de enfermeira da casa.
• 9 de abril — Ela ficou comigo durante três horas. Disse-lhe:
“Agora recebes a santa comunhão que pediste?” — “Sim.” —
“Sentes alguma melhora?”— Umclarão de alegria alumiou seu rosto
quando fez que sim com a cabeça. — “Escuta, és tu, porventura, dos
meus ascendentes?” (Perguntei isso, porque o nome dos Montfort
aparece na minha árvore genealógica.)— “Sim, provéns também de
mim.” — “Foi por isso que me procuraste?” — “Não, não foi.” —
“Como vieste a saber que descendo de ti?”— “O sangue”, foi abreve
resposta. Que coisa interessante! As perguntas me vieram sem eu ter
refletido nelas; talvez porque ela seja diferente de todas as almas que
me têm procurado.
• 11 de abril — De dia, ela veio repetidas vezes; de noite,
descanso.
• 12 de abril — Entrou no meu quarto como se estivesse pai­
rando. Perguntei-lhe: — “Queres rezar comigo?” — “Quero.” De­
pois de ter rezado longamente com ela, sussurrou-me algumas
palavras que, infelizmente, não entendi. Parecia ser latim. Acho que
disse: “Ex usuris...”, mas não o garanto. Como continuasse murmu­
rando, talvez tenha sido o versículo de um salmo/23)
• 13 de abril—Ela veio, quandoeu, na capela, estava arranjando
os ramos e as palmas para o dia seguinte. Dei-lhe uma palma.
Recebeu-a com um sorriso.

Hermengarda ajuda-me a rezar

• 15 de abril — Minha sobrinha estava muito mal. Chamaram-


me durante a noite. Levantei-me e fui. Hermengarda me seguiu.

(23) O versículo 14 do salmo 71 diz: “Ele redime suas almas da usura e da injustiça.”

112
Perguntei-lhe: “Podes ajudar-me na oração?”— “Posso.”— “Sabes
se a criança vai recuperar a saúde?”— “Não sei.” — “Então reza pa­
ra que ela possa receber o batismo.” Ela fez que sim com a cabeça.
• 16 de abril — No quarto da doente, Hermengarda ficou
constantemente comigo. A criança foi batizada; quando ela morreu,
Hermengarda ficou contente.
E tão difícil em tais situações aceitar a companhia de gente.
Tenho que fazer um esforço muito grande para que ninguém perceba
minha convivência com o Além. Mas não quero vangloriar-me, já
que Deus me dá a força.
• 17 de abril — Quando preparei a criança para o enterro,
Hermengarda chegou e me observou com toda a naturalidade, como
qualquer outra pessoa viva. Perguntei-lhe: — “Quando estarás lá
onde está a alma desta criança?” Ela nada respondeu mas achegou-
se a mim, encostou o rosto ao meu, e me deixou.
• 19 de abril — Ela ficou comigo a noite toda. Posso ver as al­
mas na escuridão, mas, quando aparecem, prefiro acender a luz.
• 21 de abril — Quatro vezes ela se mostrou.
• 22 de abril — Passou longo tempo comigo. Rezou comigo o
pai-nosso.
• 23 de abril — Esteve comigo quase a noite toda. Perguntei-
lhe: “Onde está teu corpo enterrado?” — “Em Tettnang.”^24) —
“Quando viveste em teu corpo?” — “No passado.”
• 25 de abril — Tive a impressão de haver mais alguém no
quarto. Interroguei Hermengarda a esse respeito, mas ela não me
respondeu.
• 26 de abril — Ela parece estar mais alegre.— Não há dúvida
de que há mais alguém no meu quarto. Poderia ser a alma de um
homem.
• 27 de abril — Hermengarda está muito contente. Ela disse
bem claramente: — “Usque ad domum Dei.”(25) Perguntei-lhe:

(24) O velho castelo em Tettnang, hoje Câmara Municipal, pertencia aos condes de
Montfort; o último conde morreu sem deixar filhos, em 1780. Tettnang fica ao nordeste
do lago de Constança.

113
“Estás agora remida?” Ela me sorriu e de braços abertos se aproximou
de mim, e desapareceu.
• 29 de abril — Aquele vulto esteve comigo demoradamente.
É um homem de barba loura; só a cabeça aparece nitidamente. Está
muito agitado, mas por enquanto não me amedronta.
• 30 de abril — Acordei com uma sensação de medo, mas não
vi nada. Todavia, ao meu redor, um ambiente de tempestade. Pensei
que portas e janelas estivessem abertas, mas nada disso! Finalmente
vi aquele vulto correr de um lado a outro. Quando comecei a rezar,
aproximou-se ele de meu leito.
• 3 de maio — Após longo tempo, revi os “onze”. • O homem
que vi em Sch..., talvez tenha ficado lá.
• 4 de maio — Novamente, a música dentro da parede junto à
minha cama. Para descobrir a origem ou a causa dos sons, levantei-
me e saí do quarto. Os sons vibram em tomo de mim. Tudo isso é
lindo, mas não o sei explicar.
Já por diversas vezes mencionei a sensação da presença de
Deus, que me penetra de modo irresistível, e cuja força aumenta mais
e mais. Acho meu dever expor minha atual situação. E muito difícil
descrevê-la, pois é tudo diferente daquilo que se passava antes
comigo, em relação ao que ocorre agora. Ao redor de meu espírito
aumenta a claridade, como se eu me achasse diante de uma grande
fogueira. Algo se apodera, inteiramente, do meu pensar. Tudo
quanto é humano fica desligado, e minha alma goza o que é
indescritível. Quando volto à vida normal — ao terreno —, é como
se eu acordasse de um belo sonho; todavia, há uma diferença, pois
algo continua dentro de mim: a possibilidade de poder viver e sentir
aquilo que é impossível exprimir em pensamentos ou palavras.
Tenho a impressão de que algo dentro de mim está crescendo.
Antigamente, isso se dava apenas por poucos instantes e depois
voltava à situação normal. Agora, porém, continua o contato espiri­

(25) A citação latina “Usque ad domum Dei” significa: “Até à casa de Deus”.

114
tual, ou um anseio permanente pelo indefinível. Às vezes me
pergunto: como é possível que tenha essa vivência? Surge também,
de quando em quando, a preocupação de que tudo possa ser produto
de uma fantasia, talvez louca. Passadas tais reflexões fugidias, e
examinando-me bem, esquadrinhando cuidadosamente meu íntimo,
tenho de admitir que tudo isso é real e verdadeiro. E parece-me
impossível imaginar o que a gente nunca é capaz de vislumbrar.
• Vi o cavaleiro diante do cruzeiro na igreja.

Aparece o conselheiro Fridolino Weiss^26)

• 5 de maio— (No dia 7 de fevereiro, a princesa Eugênia viajara


a Schr... Lá, o vulto de um homem lhe aparecera, sem se dar a
conhecer. Agora ele a procura.) Veio o homem de Schr... Parece que
vai haver coisa. É muito inquieto e bruto.
• 6 de maio — O homem ficou quase durante a noite toda; é
bem nojento e desleixado, e indiferente à oração.
• 7 de maio — Quando, ao anoitecer, entrei no meu quarto,
estava ele deitado no chão. A situação me parecia tão sinistra, que
deixei o quarto. Mas isso nada adiantou. Criei coragem e voltei.
Encontrei-o na mesma posição. Dei-lhe água benta, ajoelhei-me ao
lado dele; gemia terrivelmente. Devo conhecê-lo, mas não tenho
certeza.
• 8 de maio — E dura a situação. O homem fica a noite quase
toda, e é muito inquieto. Mas eu sou boba, pois sei que nada me pode
acontecer, e assim mesmo tenho um medo tremendo.
• 9 de maio — Ele entrou adiante de mim no meu quarto.
Comecei a rezar. Ele chegou bem perto de mim. — Tenho quase
certeza de que ele é o conselheiro Fridolino Weiss. Seu aspecto é
horroroso, já que está todo revestido de uma pegajosa massa. Não
reage de modo algum. • Escutei aquela música...

(26) Fr. Weiss foi, durante muitos anos, feitor no castelo de Waal.

115
• 10 de maio— O homem é bastante desagradável. Está ganin­
do constantemente. Veio quatro vezes, esta noite. • Vi os “onze”.
• 11 de maio — Quando, ao cair da noite, debrucei-me àjanela,
olhando as estrelas, veio o homem voando pelo ar. Experimentei
uma sensação abominável. Faz muito tempo que tive um choque se­
melhante a este. Nem consegui ficar no quarto. Sentei-me no cor­
redor. Não me seguiu. Uma vez refeita do susto, voltei e o encontrei
esperando por mim. Rezei com ele a devoção do mês de maio, en­
quanto ele ficava atrás de mim. Durante algum tempo desapareceu,
para voltar feito louco. Foi medonho. É de fato o conselheiro Fri­
dolino Weiss.
• 12 de maio — Encontrei os “onze” e, na escada, a camareira
de minha avó. ♦ O conselheiro veio duas vezes; inclinou-se sobre
mim. Ele é horrorífico: o rosto todo furado, só buracos; não tem
olhos, a barba é vermelha qual fogo. Nunca vi alma que tivesse
caveira tão impressionante como a cabeça dele.
• 13 de maio — Vi novamente a camareira. • O conselheiro
Fridolino Weiss ficou bastante tempo; está um pouco mais calmo.
Parece gostar da água benta. • Escutei aqueles sons.
• 14 de maio — A atitude de Weiss não muda; é muito bruto e
repelente. • Tenho escutado aquela música misteriosa. Pena que não
possa descrevê-la, pois não entendo de música. Mas é linda e me
alegra.
• 15 de maio — Vi muitas almas: três vezes o Weiss, cinco ve­
zes a camareira e duas vezes os “onze”; mas nada de abominável.
• 16 de maio — Weiss veio de dia, gemebundo. À luz, ame­
dronta-me mais que de noite. Percebo quanto ele gostaria de falar.
Durante a oração acalmou-se.
• 17 de maio — Weiss na escada e também na sala de estar,
enquanto estavam presentes T. e a criança. Foi muito desagradável.
Ele veio também durante a noite.
• 18 de maio — Agrediu-me violentamente, apertando-me o
pescoço. Reagi com força, e ele caiu no chão. Ficou deitado bastante
tempo. Tive muito medo, pois suas órbitas eram qual carvões em

116
brasa. Finalmente, levantou-se de um salto querendo agredir-me
outra vez. Apresentei-lhe a relíquia da Santa Cruz. Aí ele desapare­
ceu. • Escutei aquela música; na igreja vi o cavaleiro.
• 19 de maio — Foi medonho. Tive um indizível pavor. Ele
agrediu-me do jeito como o havia feito Henrique. Não desmaiei,
embora, talvez, tivesse sido melhor para mim. É impossível descrevê-
lo. Não gostaria de passar por tais transes outra vez. (Se o Bom Deus
o quisesse, aí sim.) Weiss ficou comigo longamente; rezei muito,
mas parece que ele não escutou.
• 20 de maio — Que beleza! Weiss não veio. Linda música e
bom descanso.

Vem o Dr. G...

• 21 de maio— Noite muito intranqüila. Weiss está quase sem­


pre comigo. Quer falar, mas não consegue. No entanto, parece que
entende o que lhe digo.
• Indo ao castelo, apareceu-me a alma do Dr. G... No século
passado, pelos anos 80, ele fora caçar e, quando se achava na estação
da estrada de ferro, teve morte instantânea. Agora, no caminho do
castelo, ele se aproximou de mim. Eu o reconheci imediatamente.
Ele me estendeu a mão e tinha aparência totalmente humana. Mas eu
não podia fazer nada, porque estava acompanhada. Assim mesmo,
durante muito tempo, andou ao meu lado. Como é difícil a gente se
comportar com naturalidade, quando anda em companhia de pessoas
de mundos diferentes! Eu esperava revê-lo na volta e por isso fiquei
sozinha, distanciando-me dos outros. Pena que não viesse. • Em
compensação, ao voltar a casa, receberam-me os “onze”.
• 22 de maio— A música. Em seguida, Weiss. Ojeito de sempre,
mas comedido.
• 23 de maio— Enfim, Weiss consegue falar. Perguntei-lhe: “És
tu Fridolino Weiss?” — “Sou.” — “Sofres muito?” — “Sofro.” —
“Como posso ajudar-te?” — “Fazendo sacrifícios.” — “Já os faço.”

117
À direita, Erwein II Theodor, irmão de Eugênia. De pé, o filho Erwein III Oito,
e o neto Wolfram.

118
O príncipe Erwein III Otto von der Leyen, nascido em 1894, era capitão de
cavalaria reformado, vice-presidente da VereinigungderdeutschenStandesherren,
conde da Ordem bávara de São Jorge, senhor de Unterdiesen e Waal Em 10 de
janeiro de 1924 contraiu núpcias com Maria Nives, filha de Antônio Rujfo e de
Ludovica, princesa Borghese.
Maria Nives Ruffo clella Scaletta, filha da princesa Ludovica Borghese, de
Roma, esposa do príncipe Erwein III Otto, mãe do príncipe Wolframe da princesa
Ludovica, atual proprietária do castelo de Unterdiesen e Waal.

120
Príncipe Wolfram, nascido em 1924, morto na guerra contra a Rússia, cm
6 de fevereiro de 1945, em Deutsch-Krone.
— “Mas não o bastante.” — “O que tenho de fazer?” — “Deves
desembaraçar-te de ti mesma.” — “Não exijas demais, pois ainda
sou muito imperfeita. Vai a pessoas melhores que eu!” Aí ele veio a
mim, pôs a mão no meu braço e sumiu. Sim, estou apegada a muitos.
Terei força para renunciar a tudo? Quero ser sincera, essa força, por
enquanto, me falta. Acho graça ao ver o conselheiro Weiss tão dife­
rente do modo que aparentava em vida: sempre a cortesia em pessoa.
Agora ele tem modos bem diferentes e até me faz sofrer e me ma­
chuca. Sem que eu o queira, a imagem dele e o seu jeito em vida ainda
continuam presentes em minha memória.
• 24 de maio — Ele veio duas vezes, mas não falou.
• 25 de maio — Houve uma barulheira horrorosa em meu
quarto, estrondo e gemidos, embora eu não visse nada. Perguntei:
“Quem está aí?” — “Muitos.” — “É Fridolino quem fala?” — “Sim,
sou eu.” — “Por que não te posso ver?” — “Porque estás doente.”
(Ele disse a verdade.) E continuei: “Quem trazes contigo?” — “Não
os conheço.” — “Escuta, por que não te vejo quando estou doente?”
— “As tuas faculdades sofrem também.” — “Poderias ajudar-me?”
— “Não!” — “Como percebes que estou enferma?” — “Tu não tens
poder de nos atrair.” — “Mas então, por que ainda estás aí?” — “O
caminho que devemos tomar nos é prescrito.” O barulho continuou,
mas não mais responderam. Por muito tempo tive a sensação de não
estar só; é bastante desagradável tal situação. Estou muito descon­
tente comigo mesma; penso demais em minha própria pessoa; estou
desanimada e muito cansada. Arre!

Vivi à toa

• 27 de maio — A situação começa a se tornar insuportável.


Além de Weiss, havia no meu quarto neblina e gemidos de cortar o
coração. Exclamei: “Suportai o vosso castigo; porque me atormentais?
Não quero mais escutar-vos.” — Weiss exclamou: “Onde está tua
compaixão?”, e ele desapareceu; os gemidos, porém, continuaram.

122
Agora minha consciência me acusa de que fui dura com as almas.
• 28 e 29 de maio — Não vieram. Talvez a minha maldade as
tenha afastado.
• 30 de maio— Weiss está triste, o que me levou a dizer-lhe que
continuarei a ajudá-lo. Aí ele veio e apertou-me o pescoço, de tal
modo que pensei morrer sufocada. Ele foi abominável. Perguntei-
lhe: “Por que fazes isso se eu quero ajudar-te?”— “Quero forçar-te.”
— “Não permito que me forcem, sobretudo quando me tratam desse
ijeito.” Aí, aproximou-se de mim com expressão tão maldosa que
perdi a consciência. Quando recobrei os sentidos, ele não estava mais.
Escutei a música.
• 31 de maio — Vi o cavaleiro. • Weiss voltou, de dia. Sinto
medo dele. Há algo mais no quarto que, por ora, não posso ver. Será
que essa situação vai continuar desse jeito?
• Io de junho — Weiss voltou. Perguntei-lhe: “Dize-me, é por
vontade de Deus que tu vens a mim?” — “É-nos permitido por ele.”
— “E por que tu me fazes sofrer tanto? Não basta o tormento de te
ver?” — “Dentro de mim está a inveja.” — “Por que me invejas? Já
não podes perder-te eternamente, mas eu ainda posso ser condenada.”
— “Nunca controlei minha mente; tenho vivido em vão.”— “E como
te salvaste?” — “Pelo sacerdote.” — “Como podes ter inveja? Pois
não podes mais pecar.” — “O mal ainda está dentro de mim.” Ao
mesmo tempo, ele se tornou feio e abominável como nunca o havia
visto. Voltou ainda quatro vezes.
• 2, 3, 4, 5 de junho — Cada noite ele voltou, mostrando-
se sempre num estado de hediondez abominável. Ouvi ainda, de
dentro da neblina, muitos outros sons e um gemido longínquo.
Encontrei-me na escada com a velha camareira.
• 6 dejunho— Vi na igreja o cavaleiro, numa postura de piedade
constante e fixidez. Weiss apareceu e ficou longamente comigo. Não
me respondia o tempo todo. Foi muito duro suportá-lo, pois chegava
bem perto de mim. Sinto algum consolo quando penso que Deus me
envia essas almas para reparar a minha falta de caridade ativa para
com o próximo. Lamento quej á não estej a fisicamente em condições,
como antigamente, para locomover-me. E assim perco muito do meu
rendimento no serviço de Deus e do próximo, devido ao meu grande
cansaço na parte da manhã.
• 9 de junho— Nada de novo. Weiss volta todas as noites mas
não diz nada. Tomou-se bastante agitado. O barulho aumenta.

A velha trapeira

(Observação: Havia, em tempos passados, pessoas que catavam nas


ruas trapos e coisas velhas, para vendê-los às fábricas. Geralmente
vinham em carroças de tração animal.)

• 11 de junho — Além de Weiss, veio também uma alma em


forma de mulher hedionda, um verdadeiro monstro. Estou com medo.
• 14 de junho — Vi dois homens no primeiro banco diante do
altar da cripta. Pareciam gente de carne e osso, por isso entrei no banco
atrás deles para ver quem eram. Só então percebi que traziam longas
vestes negras, usadas em séculos passados. Dei-lhes água benta da
grande bacia em frente a eles. Aí desapareceram. • Ouvi a música.
♦Weiss ficou pouco tempo comigo.
• 16 de junho — Novamente apareceu aquela mulher hedionda.
Devo conhecê-la, mas não posso dizer nada de definitivo, a não ser
que ela me é extremamente antipática. • Tenho visto o cavaleiro na
igreja.
• 17 de junho — Aquela mulher ficou comigo durante muito
tempo. Eu a reconheci. É uma velha trapeira, chamada Nanete
Blochem. Foi o terror de minha infância e era temida por todo mundo.
Acho que morreu pelo ano de 1893.
• 18 de junho — Parece que Weiss não vem mais. A Nanete
comportou-se muito mal. Outra vez, aquela música.
• 19 de junho — Festa do corpo de Deus. Vi algo muito lindo.
Eu ia subindo o morro quando foi dada a bênção, com o Santíssimo
em frente do hospital. • Vi os “onze” lançarem-se por terra, como já

124
os vira fazer no Natal. Foi tão comovedor que tive de chorar. Oh! se
os incrédulos tivessem visto essa cena! (26a>Não entendo por que os
“onze” aparecem sempre como paus de neblina. De dia claro, aquilo
dá um aspecto esquisito.
• 20 de junho — Estando eu para me flagelar por Weiss, apa­
receu ele, ao meu lado, com uma expressão feliz e disse: “Tu me
remiste.” — “Não fui eu, foi a misericórdia de Deus.” — “Servindo-
se de ti!” — “Aonde vais agora?” — “A uma esfera superior.” —
“Escuta, o que posso fazer para que as Almas do Purgatório não
venham mais?” — “Sê generosa!” Foi, eme deixou como dentro de
uma clara neblina. • Pouco depois veio Nanete, mas eu estava tão feliz
que desta vez nem liguei à sua aparência. • Escutei aquela música.
• 21 de junho — Na igreja, vi o cavaleiro. • Nanete é simples­
mente repugnante; é nojenta.
• 22 de junho — Tanto barulho no quarto, que tive um acesso
de covardia.
• 23 de junho— Quatro vezes neste dia vi a Nanete. Seus olhos
hediondos me prendem; a situação ameaça piorar outra vez.
• De 23 de junho até 14 de julho — Sempre o mesmo; senti-lo
é muito penoso; anotá-lo, bem maçante. Nanete conseguiu falar.
Perguntei-lhe: “Como posso ajudar-te?” — “Olha, e vê o que me
falta.” Chegou bem perto de mim, e vi no seu rosto uma expressão
de tão profunda tristeza como jamais notara em quaisquer outras
almas. Interroguei-a: “Tens anseio por Deus?”— ‘Tenho.”— “Não
podes vê-lo ainda?” — “Ainda não estou pura.” — “Posso ajudar-te
para ficares pura?” — “Dá-me o Santíssimo Sacramento!” —
“Queres que eu ofereça a santa comunhão em tua intenção?” —
“Quero, sim!” — “Quantas vezes?” — “Sete.” — “E por que
justamente sete vezes?” — “Foram tantas as minhas comunhões

(26a) Se a princesa ainda vivesse nos tempos atuais, quanto não sofreria ao saber que o
mistério da fé se apagou até nos corações de muitos sacerdotes e pessoas religiosas. Ela
que vivia totalmente com e pela santa missa e comunhão, por isso muito se alegrou com
a adoração prestada pelos onze vultos do Além.

125
indignas.” E chorou com tanta intensidade como ninguém neste
mundo é capaz de chorar; foi um verdadeiro desmancho em lágrimas.
Tive de abraçá-la, não havia outro jeito. Aí ela me olhou e, naquele
instante, sua hediondez se foi — para voltar nos dias seguintes com
força redobrada. Nem L. nos seus piores tempos apresentara aspecto
tão hediondo. Na imaginação humana tal sordidez é inconcebível e,
por isso, faltam-me palavras para descrevê-la. Até agora, eu tinha
sossego em dias de doença, mas essa indulgência para comigo se
acabou. Para usar de franqueza, quase que não posso mais, tão frágil
se tomou minha confiança em Deus.
• 18 de julho — Hoje, o dia foi muito pesado. Perguntei-lhe:
“Por que me torturas? Sabes que quero fazer tudo quanto me pedes.”
— ‘Tu preferes dormir.” Ao dizer isso, deu-me um empurrão tão
violento que quase morri de medo. É verdade que ela tinha razão,
pois me sentia tão fraca que não conseguia vencer o cansaço.
• 19 de julho — Quando entrei no quarto para me deitar, ela
estava sentada no meu leito. De todos os lados sentia-me cercada de
almas que procuravam pôr a mão em mim; contudo, eu nada podia
ver. Isso levou alguns minutos. Só pela madrugada pude deitar-me.
• 20 de julho— Havia tanto barulho que não podia nem pensar
em dormir. Nanete voltou a emudecer. Seus olhos são bem esquisitos;
é como se deles saísse uma força que obriga a gente a fitá-los. Tenho
a sensação de que me retiram energia. Nunca sentira algo semelhan­
te em outras aparições.
Desde 27 de julho, Nanete não veio mais. Sinto um certo alívio.
Há muitas almas que me importunam. Sete vultos tomaram forma,
mas nenhum deles me é conhecido. Aproximam-se de mim; sinto
mãos hediondas me apalparem, o que para mim é o pior. Enquanto
eu anotava isso, um vulto de mulher achegava-se a mim por detrás.
Parece que nunca estou só. Causa-me tristeza descuidar-me de minha
alma; não me esforço para adquirir virtudes; não chego a trabalhar
devidamente na santificação de mim mesma como costumava fazê-
lo, embora nunca com o devido afinco.
• 4 de agosto — Noite de extremo horror. Nada vi, mas senti e
ouvi. Repetidas vezes me bateram e não sabia o que fazer. Fui muito

126
covarde. Será que não serão espíritos maus que procedem desse
modo?
• 6 de agosto— Algo ou alguém segurava dentro do meu quarto
o trinco da porta. Consegui, enfim, entrar. Uma neblina cerrada en­
chia meu quarto e ouviam-se gemidos. Derramei muita água benta,
e a situação melhorou. Quatro vultos formaram-se na neblina e depois
diluíram-se na cerração. Ultimamente vi quatro vezes Bárbara no 3o
andar; parecia estar bem contente e sorria. Eu estava acompanhada
e, por isso, não pude falar com ela.
• 7 de agosto — Viam-se claramente os sete vultos; ficaram
comigo das dez até à uma da madrugada. Não me maltrataram;
contudo, por serem muitos, senti medo. Em compensação, ouvi
aquela música misteriosa. Muito estranho foi o que observei durante
uma tempestade. Via os raios coruscarem através dos vultos. O
aspecto foi tão sinistro que preferi acender a luz.
• 9 de agosto — Passei por algo pavoroso. Um estrondo me
despertou. Acendi a luz e algo de horripilante se inclinava sobre mim.
Constantemente meus pensamentos voltam àquilo: uma cabeça
gigantesca com olhos tão apunhalantes que não parecem existir, ou
antes: o rosto todo era um só olho que me fixava. “Vai-te!—exclamei
— o que procuras comigo?” — “A paz.” — “Não sou eu quem pode
dá-la.” — “Mas tu deves!” — “O que me pode obrigar a isso?” —
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”— “E se me falta a força?”
— “Então reza!” E sumiu. Como alguém tão abominável pode
pronunciar tais palavras! Que seja! Estou de acordo. Como sabem
educar-me, essas almas!
Agora vou contar algo que me parecia qual saudação do Bom
Deus. Talvez fosse ridículo, contudo, tornou-me feliz. Eu estava
bastante deprimida. Tudo me angustiava. A cada passo voltava a
pensar se era a vontade de Deus o que se passava comigo. Pedi ao
Bom Deus me desse um sinalzinho como já o fizera tantas vezes
antes.Eu andava peloj ardim; aí caiu de súbito uma andorinha no chão
diante de mim. Levantei-a e a acariciei. E ela foi embora, cortando o
ar. Para mim, era o sinal que eu pedira; agora basta de lamúrias.

127
• 10 de agosto— Voltou a cabeça; desta vez com o corpo todo,
e logo indaguei:— “Quemés?”— “Wolfgang.”— “Como se explica
que já podes falar?” — “Faz tempo que estou contigo.” — “Por que
não te vi?” — “Tua força se dirigiu aos outros.” — “Queres tu ajudar
também a mim?” — “Quero.” — “Dize-me o que está errado dentro
de mim.” — ‘Tu estás dividida.” — “O que entendes com isso?” —
“Corpo e alma não combinam.” — “Sei, é só a alma que deve
dominar. Mas não o consigo ainda. O que mais vês em mim de
errado?” — “Teu orgulho.” E sumiu. Que bom poder receber tais
ensinamentos! Vou tomar aulas particulares com as Almas do Pur­
gatório. • Ouvi aquelas músicas. Vi o cavaleiro. Na igreja, sacudiram-
me pelos ombros.
Desde o dia 16 de agosto, seguindo os conselhos recebidos,
ignorei as visitas do Além. Quanto sofri por causa disso não quero
descrever. Basta dizer que Wolfgang e os sete vultos vieram todas
as noites. Sofro menos quando aceito as visitas das pobres almas,
pois então os nervos não ficam tão tensos e não se percebe tanto
quanta força nos subtraem.

Ele cumpriu a promessa

• 24 de agosto — Alfred S... me procurou de dia, sorrindo


e me estendendo as mãos: “Alfred, és tu?” — “Vim cumprir minha
promessa.” — “Onde estás?” — “Na visão de Deus.” — Com um
aceno, se despediu. Essa visita foi para mim uma grande alegria e ao
mesmo tempo impressionou-me profundamente. No ano passado,
mais ou menos nessa mesma época, quando conversávamos sobre
as coisas que comigo acontecem, rindo prometera visitar-me, se fos­
se possível. Apareceu-me agora tal qual em vida. Às palavras dele
tive que redargüir, mas com outros nunca mais tenho falado até hoje.

(27) Escreve o pároco Sebastian Wieser: “Alfred S. foi uma pessoa altamente posicionada
na sociedade. Eu o conhecia bem. Essa aparição é uma justificativa perante aqueles que
dizem: Não é possível que mortos voltem”.

128
Quando Wolfgang veio, disse-lhe: “Por que contínuas vindo?
Pois nem mais liguei a ti para que me deixasses sossegada.” — ‘T u
não tiveste misericórdia.”— “O que queres?”— “Uma santa missa.”
— “Onde teu corpo está enterrado?” — “Em Augsburg.” — “Como
me encontraste?” — “Basta que rezes.” E desapareceu.
Os sete vultos estão ainda num estado cinzento-escuro. Ape­
nas seus gemidos impressionam desagradavelmente. • A noite vi
na igreja o cavaleiro. Já que eu estava só, fui perguntar-lhe se ele
tinha alguma ligação com a partícula da Santa Cruz. Não respondeu.
Continuou rezando sem ligar a qualquer outra coisa. Seu olhar é de
uma bondade encantadora. Ele é totalmente diferente das demais
almas que me procuram.
• 17 de setembro — Foi uma noite horrenda. Primeiro vieram
os sete, em seguida Wolfgang e, depois, algo que nem entendo. Era
qual nuvem descendo sobre mim, que estava deitada na cama. Em
seguida, uma sensação horrífera, no sentido mais realista da palavra,
um tremendo pesadelo. A cerração ao meu redor tomou-se tão densa
que nem vi mais a luz elétrica do meu quarto. A seguir ouvi as pala­
vras: tormentum malit (28\ .., o resto da palavra não o entendi.
Espalhei muita água-benta e a neblina se foi, e com ela desapareceu
toda uma situação sinistra.
Nos últimos quinze dias nada acontecera de novo. Aquela
nuvem desagradável transformou-se em alguém. Parece ser mulher,
mas não apavora, pois quando rezo, está bem quieta e contente.
• Tomo a ouvir, freqüentes vezes, uma música que vem de dentro da
parede.
• 9 de outubro — No castelo de D ... vi a alma de uma senhora
idosa. Por longo tempo ficou ao meu lado.
• 11 de outubro — Tenho visto coisas muito estranhas. Eu
andava pelo jardim e veio ao meu encontro algo de muito lindo: cores
e luzes que não posso explicar. Eu me achava como numa roda de luz

(28) Parece que o texto é tormentum malitiae = tortura por causa da malícia.

129
e ouvia música. Para os olhos, foi de uma beleza indescritível; para
a alma, algo que jamais experimentei. Posso examinar-me e pers-
crutar o meu ser: não tenho palavras para descrever o que aquilo
significou; no entanto, gostaria de experimentá-lo de novo. É como
se eu fosse inundada de força, o que me fez muito feliz.
• 14 de outubro — Uma forte barulheira me despertou. Minha
cama estava sendo empurrada para todos os lados; foi uma sensação
desagradável, mas eu não enxergava nada. Durou cerca de meia hora;
em seguida, tudo terminou. Minha cama estava ao viés. Mais tarde
veio aquela mulher.
• 17 de outubro — Experimentei outra vez aquela situação
inefável, porém dentro do meu quarto; não pode provir, por conse­
guinte, de um fenômeno natural da estação do ano. Era como se me
encontrasse dentro de um grande globo de luz, de um deslumbra­
mento de cores indizível, imersa num gozo maravilhoso para os
olhos e numa alegria inefável para a alma — um submergir dentro
de algo celestial. Enquanto anoto isto, faço para mim mesma o papel
de uma pessoa exaltada, mas, ainda assim, devo escrevê-lo porque
faz parte do inexplicável que eu posso vivenciar.
• 19 de outubro — Aquela mulher ficou comigo por muito
tempo. Ela tem um rosto juvenil como jamais o vira. Tentei algo de
novo: querendo rezar o terço, dei-lhe também um rosário na mão.
Ela o segurou durante a reza. Depois que ela se foi, notei o rosário no
chão. Algo me surpreende nela: muda de estatura. Quando vem, é de
tamanho pequeno, ao sair, da altura da porta. Ela pertence a uma
espécie de almas que ainda não cheguei a conhecer; não amedronta
de modo algum; gosto dela.
• 20 de outubro — Novamente, os empurrões em minha cama;
em seguida, veio aquela mulher.
• 21 de outubro — Ela começa a falar. Chama-se Eva. Mais
não entendi. Por longos minutos continuou mexendo os lábios, mas
foi impossível entender alguma coisa.
• 29 de outubro — Ela ficou muito tempo comigo. Perguntei-
lhe: “ Por que vens a mim? Posso ajudar-te?” — “Já me ajudaste.” —
“De que modo? Ainda não fiz nada por ti.” — “Sou aquela alma

130
abandonada, pela qual.. (O resto não entendi.) — “És tu a alma
pela qual rezei já na minha infância?” — “Sou.” — “Por que não te
mostraste mais cedo?” — “Não me foi possível.” — “O que fizeste
de mal?” Ela sussurrou-me algo ao ouvido, mas não foi possível
entendê-lo, sorriu para mim e desapareceu.
• 30 de outubro— Depois da missa de aniversário da morte de
nosso avô, eu o vi em nossa capela, tal qual em vida; foi para mim
uma grande alegria poder revê-lo. Parecia estar muito satisfeito.
Seus cabelos brancos brilhavam. Foi pena não poder falar com ele já
que eu não estava só. O encontro me fez muito feliz. É uma sensação
toda particular encontrar-se com alguém a quem a gente amara em
vida. Parece que me quis dar a conhecer que foi liberto pelas santas
missas rezadas por sua alma.
• Iode novembro — Vi muitas almas: os “onze”, o cavaleiro e
os dois homens no banco em frente ao altar da cripta.
No dia de finados não vi nada. Também os dias anteriores
estavam calmos. A respeito da aparição de Hermengarda em Sch...,
posso acrescentar que ela realmente existia: foi irmã de uma condes­
sa de Geroldseck, descendente dos Montfort, e viveu em 1642. Seu
castelo ficava na região de Spremberg; está enterrada no convento
de Wittich (29>.
• 11 de novembro — Continua o costumeiro barulho em tomo
de mim. Eva não veio mais. Vultos me cercam gemendo e até gri­
tando. Mas, por enquanto, ninguém se dá a conhecer.

Nem em Munique encontrei sossego

• 16 de dezembro— Fiquei três semanas em Munique, (29a) mas


nem lá encontrei sossego. Já no segundo dia, a alma de uma mulher

(29) O convento Wittichen pertencia antigamente às Clarissas e havia sido fundado por
Santa Luitgardes.

(29a) A família von der Leyen possuía até à Primeira Guerra Mundial uma casa cm
Munique, perto do Karolinenplatz.

IH
me procurou, de mãos torcidas, feições descompostas. Voltou todas
as noites e me fazia sofrer de modo insuportável. Deve ter sido criada,
pois vinha de avental e pobremente vestida. Custou-lhe poder falar.
Chama-se Ana e pecou muito por calúnias. À minha pergunta, quan­
do seria remida, respondeu: “Três vezes Advento.”
Em Munique vi algo de estranho. Eu me achava com pessoas
conhecidas em casa do célebre pintor Franz von Lenbach. (29b) De
repente, durante o almoço, ele apareceu diante de mim, hediondo,
como animal, mas claramente reconhecível, pois eu o conhecera
bem em vida. Fiquei tão assustada que os outros perceberam e me
perguntaram se eu não me sentia bem. Por isso, não mais olhei para
ele, embora sentisse o tempo todo a sua presença. Terminado o almo­
ço, ainda o via, mas ele não me seguiu e não o encontrei nas demais
dependências da casa. • Ana me procurou também no castelo de
Waal. Perguntei-lhe: “De que jeito vens para cá?” — “Estou sempre
contigo.”— “Mas não te vejo sempre!”— “É porque não o suportas.”
— “Por que não?” — “Tua alma ainda não está livre.”
• 22 de dezembro - Ela ficou comigo quase a noite toda; ela e
mais algumas outras almas. Disse-lhe: “O Advento está para termi­
nar; não voltarás mais quando ele está no fim?” — ‘Tu pensas à
maneira humana.” — “Mas não é possível pensar de outro modo
enquanto vivo.” — “Podes desprender-te.” E desapareceu.
• 24 de dezembro — “Dize-me, como posso desprender-me.” —
“Se seguires aquilo que te atrai.” Fui covarde. Não o quero saber, não
dela. Acho, porém, que suas palavras se ligam com aquela sensação
maravilhosa que agora está crescendo, pois quando a sinto, tenho a
impressão de estar livre de mim mesma e viver num mundo diferente.
Observei que meu corpo perde a faculdade de se locomover quando
me sobrevêm aquele estado, pois ao sentir chegar essa sensação, quis
trancar a porta, mas já não o conseguia; veio a luz e tudo ficou indife­
rente para mim, que queria apenas gozar aquele inefável estado.

(29b) Franz von Lenbach foi o mais festejado pintor retratista de sua época, amigo de
Bõcklin e de Bismarck, de quem pintou cerca de 80 retratos. Ele morreu em 1904.

132
Aparece o padre O ..., o meu antigo professor de religião

• 27 de dezembro — Vem agora a alma do padre O.. num


estado lamentável. Durante muito tempo foi meu professor de
religião. Ainda não está em condições de falar. A tristeza que
demonstra me dói, pois eu gostava muito dele. • Ao descer o morro,
vejo quase sempre os “onze”. Tomaram-se mais pequenos, tendo já
quase o tamanho de crianças.
• 30 de dezembro — A noite foi terrível, terrível. Meu quarto
estava cheio de vultos, todos eles desconhecidos. Pela primeira vez
me cercava um fedor abominável. Eles jogavam-se no meu leito —
eram sete, mas havia mais almas comigo. Uns vinham, outros saíam.
Eu fiquei um pouco desanimada, pois se isto continuar assim, não
agüentarei mais o cansaço.

E s to u e m e s ta d o d e p u rific a ç ã o

• 5 de janeiro de 1925 — AZ... chegou. Ela impressiona por


sua profunda tristeza. Quando rezo, achega-se a mim mostrando
sua satisfação e me acariciando. (O que não me agrada.)
• 7 de janeiro— Ela já pode falar. Pergunto-lhe: “O que queres
que eu te faça?”— “Uma santa missa.”— “Sofres muito?”— “Estou
na purificação.” — “É o que nós chamamos de purgatório?” — “É,
sim.” — “Mas o que estás sofrendo?” — “O anseio, anseio de Deus
me devora.” — “Por que tens de sofrer?” — “Praguejava.” — “De
bom grado te ajudo. Sentes algum alívio quando rezo por ti?” —
“Sinto, sim.” — “No estado em que te encontras não podes rezar?”
— “Posso adorar, mas não posso pedir.” — “E agora?”— “Agora tu
pedes por mim.”(3°)
• 8 de janeiro— Ela ficou tanto tempo comigo que não agüentei
mais de tanto cansaço. Disse-lhe: “Por favor, deixa-me agora porque

(30) Anota o pároco Sebastian Wieser: Conheci a Z... e a visitei muitas vezes durante sua
doença. Era muito pobre. Suas respostas impressionam porque em vida tais conceitos IIr*
foram totalmente estranhos.

I <<
estou com muito sono.” — “Por obséquio, tem compaixão de mim.”
— “Mas uma reza que apenas sai de minha boca não pode te ajudar;
nem consigo mais rezar direito.”— “Tua presença me dá refrigério.”
— “E por quê?” — “Porque alivias nosso sofrimento.” — “Se eu te
ajudo, ajuda-me a mim também. Vês, certamente, o que há em mim
de mau, de pecado.” — “Não és mortificada.” — “Sei; tens razão. E
que mais?”— “Quanto mais te privares e te despojares de tudo, tanto
mais poderás dar.” Tenho a impressão de que houve algo ou alguém
com ela, mas não consegui distinguir claramente o que era.
• 9 de janeiro— Estranho! Enquanto eu conversava com a filha
de Z., esta veio ao nosso encontro. Z. acenou para mim e lançou um
olhar penetrante à filha. Quase perdi a fala. Depois de a filha ter ido
embora, ela ficou comigo. Perguntei-lhe: “Por que não te deste a
conhecer à filha?” — “Ela não está livre.” — “Nem eu estou livre e
por que eu te posso ver?” — “Tu te libertaste.” As palavras dela
provam que até as Almas do Purgatório não sabem tudo. Eu, estar
livre e totalmente libertada?! Estou em meio a todo mundo e tanta
coisa fica grudada a mim, que meu corpo enfermo faz com que não
dê o cuidado necessário à minha alma. E isso me apavora muito. Às
vezes, fico muito oprimida, mas depois volto a ser leviana. E então
vem, de quando em quando, aquela felicidade única, maravilhosa e
consoladora que me faz esquecer tudo, tudo.

O orgulho espiritual fez em mim um solitário

• 15 dejaneiro— Não fiz anotações porque nadahouve de novo,


apenas noites repletas de inquietação. • O padre O... continua vindo,
até diversas vezes durante o dia.
A noite passada foi tão insuportável, que devo anotá-lo. Algo me
puxava para todos os lados dentro de minha cama. Meu pavor é
inominável. Deve haver muitas almas dentro do meu quarto. Não
sabia o que fazer. Havia neblina ao meu redor, e tão cerrada que a
lâmpada do aposento me parecera muito distante daqui. Refugiei-me

134
num outro quarto. Lá, tive sossego, apenas ouvia o barulho. Pelas
cinco horas consegui deitar-me de novo.
• 17 dejaneiro— EmD... encontrei aquela mulher que já havia
visto.
• 23 dejaneiro— Quase toda noite, a situação é horrorosa. Estou
tremendamente apavorada por haver tantas almas no meu quarto.
Quando vem o padre O..., o resto sossega e dele não tenho medo. Fui
muito covarde, e sei por quê. Minha alma já não consegue arranjar a
força de que precisa. O corpo, por estar enfermo, arrulhou-a em
indolência.
• 25 dejaneiro— Vieram cinco vultos. Torturaram-me terrivel­
mente, pois tentaram sempre tocar-me, o que, para mim, é o pior que
me podem fazer.
• 29 de janeiro — O padre O... consegue falar. Perguntei-lhe:
“Como posso ajudar-te?” — “Continua rezando.” — “Não consigo
entender por que ainda não estás no céu.”— “O orgulho espiritual tem
feito de mim um solitário.” — “Mas, e o bem que tanto fizeste?” —
“Isso me salvou.” — “Vais também a outros dos teus alunos?” —
“Não; que rezem por mim.”
• 30 dejaneiro— Sofri muito. Chamei pelo padre O... para que
me livrasse das almas que tanto me fazem sofrer. No entanto, só veio
pela manhã. “Não me ouviste, quando os outros estavam comigo?”
— ”Sim, estive presente.” — “Por que não pude ver-te?” — ‘Tu
estavas com medo e não tinhas amor.”— “Mas quero ajudar também
aqueles.” — “Só conseguirás ajudar quando te esqueceres de ti
mesma.” — “Ainda não consigo controlar-me quando me surpreen­
dem agressões martirizantes.”
• Iode fevereiro — O padre O... esteve comigo a manhã toda.
Até quando outras pessoas entraram no meu quarto, ficava ele
comigo. Ele parece realmente vivo qual outra pessoa. Durante a noite,
as outras almas têm-me torturado terrivelmente.
• 4 de fevereiro— Aqueles cinco vultos podem ser reconhecidos
agora, são cinco mulheres, mas em relação aelas nada consigo quanto
a rezas ou colóquios. O padre ficou longamente comigo.

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Tenho de falar agora dum assunto que nada tem a ver com as
Almas do Purgatório. No entanto, prefiro comunicá-lo ao meu diretor
espiritual porque acho melhor cientificá-lo de tudo quanto se passa
comigo: aquela sensação de um bem-estar indizível cresce de tal
modo que isso me assusta. Hoje, durante meia hora, estive fora de
mim. Não sei onde estive; tenho a certeza de que estive fora de mim
mesma. Quando isso se dá, algo se apodera de mim, devagarinho, que
me toma impossível qualquer ocupação; uma presença invisível me
atrai. Uma grande claridade me envolve e em seguida não sei mais
nada de mim mesma. Estou imersa em felicidade. Tudo quanto é
humano está desligado; gozo e não posso expressar o que estou
gozando. Acho isso tão estranho que não sei classificá-lo, descrevê-
lo ou falar a esse respeito, pois é anormal perder a consciência de si
mesma. Alguém como eu não pode cair em êxtase. E vem o
escrúpulo: imagino ou sonho tais coisas? Minto? Mas isso é totalmen­
te impossível. Deponho, pois, as minhas preocupações nas mãos do
meu diretor espiritual; ele me dirá se há em mim qualquer coisa de
errado.
• 11 de fevereiro — Aconteceu muita coisa. Por longo tempo
esteve comigo o padre O...; perguntei-lhe: “Virás ainda muitas
vezes?” — “Não.” — “Estás remido? — “Ainda não, mas vejo com
maior claridade e vou para lá, donde não poderei voltar.” — “Podes
dizer-me se tudo é assim como o aprendi contigo?” — “É, sim. No
entanto, a língua humana é incapaz de expressar o que há de mais
santo.” • Vieram as cinco mulheres; duas delas têm rostos hediondos;
uma sussurrou-me algo ao ouvido, mas não entendi.
• 15 de fevereiro — Quando estive lá em cima com Wolfram,
veio aquele homem que eu vira duas vezes em companhia de Bárbara.
Ele ficou imóvel ao meu lado; parece ser muito infeliz. • Que noite
cheia de agressões abomináveis; as cinco mulheres me torturam de
maneira terrível.
• 17 de fevereiro — O padre apareceu por um instante apenas,
sorriu para mim e desapareceu. Parece-me que não volta mais.
• 19 de fevereiro — Enquanto eu estava com Wolfram nos

136
braços, aquele homem inclinou-se sobre nós e gemia: “Tu me
esqueceste.” Ele tem razão. Fui diminuindo as orações por ele porque
não se mostrava mais.

Um assassino visto também por uma criança

• 25 de fevereiro — No terceiro andar vi, outra vez, aquele


homem que vinha há tempos com Bárbara. Ele me estendeu as mãos,
nas quais vi sangue. Perguntei-lhe: “Es tu um assassino?” — “Sou.”
— “Machucaste Bárbara na cabeça?” — “Não.” — “A quem
mataste?” — “O filho dela.” — “Por quê?” — “Por causa da
herança.” — “Era teu filho?” — “Não.” E ele se foi. Ele traz o
uniforme de cavaleiro do século XVI. E jovem; não me amedronta.
Fico triste quando vejo seus olhos que imploram ajuda. • As cinco
mulheres continuam me procurando de noite. Todas elas são de um
século passado; uma, de rara beleza.
• Ia de março — Estive com Wolfram. Veio aquele homem. O
pequeno também deve tê-lo visto, pois, medroso, cravou nele os
grandes olhos. E pena que tenha como testemunhas, das aparições,
apenas criancinhas, gatos e galinhas (30a). Perguntei ao homem: “Por
que assustas a criança? Não o admito!” — “Ela vê mais que tu.” Em
seguida foi ao quarto de N ...; eu o segui para ver se ela o perceberia.
Ele ficou em frente dela, mas ela nada percebeu.
Em tais momentos posso comparar a pessoa viva com uma
pobre alma. Penso logo nos olhos que, em pessoas vivas, nunca são
semelhantes aos de uma pobre Alma do Purgatório: seus olhos são a
imagem da dor. Também a boca é diferente da de uma pessoa viva,
pois ninguém é capaz de expressar de modo tão intenso a inominável
acridez de sua dor. De dia posso fazer ainda observações de outro
gênero: as roupas são impecáveis, as franjas, as rendas, tudo aliás, é

(30a) Esse suspiro “testemunhas minhas são apenas criancinhas, galinhas c galos”
manifesta sua dor por não poder expressar aos outros o que se passa com ela. InteressanU*
que o principezinho Wolfram foi sua única testemunha. (Foto na p. 79, cm que da sr
inclina maternalmente para o pequeno príncipe.)

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de execução impecável. As esporas e as correntinhas tilintam ao
caminhar; os que estão comigo em tais ocasiões nada vêem e nada
escutam.
• 7 de março — As cinco voltam constantemente, mas não se
pode fazer nada por elas. Tomei a ver, enfim, meus velhos queridos
“onze”. É de estranhar: seu tamanho se foi reduzindo mais e mais;
eram bem mais altos do que eu, agora ficaram qual crianças.
• 9 de março — No terceiro andar tomei a ver o cavaleiro.
Perguntei-lhe: “Por favor, dize-me como te chamas.” — “O pobre.”
— “Pobre por quê?” — “Basta me olhares.” — “Nada vejo de
especial.” Achegou-se então bem perto de mim. Além de suas mãos
sangrentas, não constatei nada de anormal. “O que posso fazer por ti?”
— “Lavar-me.” Agora acontece o mais bonito: corri depressa buscar
águabenta. Bem quietinho ele esperou por mim. Despejei águabenta
sobre suas pobres mãos e jamais esquecerei com quanta gratidão ele
me olhava. As mãos continuaram sangrentas mas seu rosto se
transformou totalmente. Perguntei-lhe: “Assimestábem?”— “Reza!”,
respondeu ele. Rezei o De profundis e, de repente, ele desapareceu.
Estou feliz. E algo de estranho aconteceu: eu havia despejado quase
uma garrafa inteira de água benta sobre ele, e não se viu no chão nem
uma mancha úmida sequer.
• 11 de março — Havia tanto barulho no meu quarto como se
homens de botas pesadas andassem em tomo de mim, e tropeçando
a cada passo.
• 13 de março — Aconteceu algo de estranho. Eu estava
embrulhando copos e tinha, por isso, papel velho à minha frente.
Embora não houvesse correnteza de ar no quarto, o papel começou
repentinamente a voar. Bati nele e minha mão encontrou outra mão,
invisível porém. Assim, de repente, é um horror!
Saí correndo, pois um pavor inominável me invadiu. Quando o
Além nos agride subitamente, sem se mostrar de qualquer modo que
seja, é muito pior do que enfrentar seres visíveis. Será que estou
cercada constantemente do Além?! Não posso mais viver uma vida
normal? Não encontro palavras para dizer quanto sofro com isso e

138
nunca poderei acostumar-me a viver com seres de dois muiulos
diferentes.
• 16de março— Em D... tenho visto duas vezes a alma daquela
senhora. Não a conheço. Seus trajes são dos anos de 1850.

Aparece o pároco Natterer

• 18 de março — Escutei violentos soluços. Durante muito


tempo não enxergava nada. Finalmente, daquela neblina cerrada,
surgiu o vulto do pároco Natterer. Eu nem sabia que ele havia fale­
cido. Agora encontra-se num estado hediondo. Não há dúvida de
que é ele. Sempre me fora tão antipático que seu rosto se me tomara
inesquecível. Sinto pavor quando vem. Está como que envolvido em
uma pegajosa massa, que já vira em certas aparições. Tenho dó
desse pobre coitado. Mas tenho de confessar que fui muito covarde,
tão covarde que chorei. Quase não posso mais. Se isso continuar
deste jeito, nem sei o que vai acontecer. Sou uma covarde egoísta.
Peço a meu diretor que me explique o que se passa comigo. O
sobrenatural ameaça esmagar minha fraca inteligência. Não ouso
falar nisso, pois receio dizer uma palavra irrefletida que talvez não
corresponda à verdade; no entanto, tenho que desabafar-me, pois
sozinha não encontro solução para meu problema. Estou sendo
arrancada do mundo e não posso resistir. No começo, sinto uma
grande tristeza dos meus pecados. Quando surgem esses sentimentos,
sei que o Além me invade, já que, normalmente, sou bastante leviana.
De repente, encontro-me cercada de luz. Ouço um som como vindo
de muito longe e, com isso, estou sendo atraída irresistivelmente.
Então não posso ver senão claridade e sinto que uma força me atrai,
a mim, que continuo sendo eu mesma. Não se trata de eu ver, mas de
eu pensar, de tal modo que nem posso imaginar. Tenho de adorar e
amar sem palavras; é qual imergirem algo divino. Por favor, que meu
diretor me compreenda! Eu não quero aquilo, contudo minha alma
está sendo invadida e arrebatada ao encontro de uma impensável

I
felicidade. Será que tudo isso não será uma produção fantasmagó­
rica? Isso me desvia dos trilhos que eu costumava tomar; e isso me
amedronta.
Tenho de admitir que quis fugir da invasão do Além. Deixei a
meditação; rezei apenas minhas orações obrigatórias, e me tenho
esforçado para pensar menos no Bom Deus. Mas agora ficou tudo
pior; pior diz o “homem carnal”; mais belo, o “homem espiritual”.
No entanto, como disfarçar essa situação se tudo continuar deste
modo? Diversas vezes deixei de atender quando me chamaram e eu
estava “fora” de mim. Sou mesquinha e estou sendo roída de medo.
• 15 de abril— Faz um mês que deixei de fazer anotações, pois
quis experimentar o que acontece quando penso menos no Além; no
entanto, nada melhorou com isso. • O pároco Natterer veio catorze
vezes; as únicas palavras que pronunciou foram: “Peço-te que man­
des rezar uma santa missa.” Havia nele tal inquietação que jamais
descobri algo de semelhante em outras aparições. Não ficou calmo
nenhum instante sequer. Depois da nona aparição, aquela massa
viscosa amoldava-se a ele como se fosse uma veste de farrapos. Digno
de nota foi o seu rosto. Diversas vezes despejei nele água batismal,
que se usa também como água benta. Olhava-me com tanta gratidão
que essa sua reação foi para mim a melhor alegria da Páscoa. Não
devo ficar me lamentando, pois posso gozar também alegrias
indescritíveis.

João

• 24 de abril— Faz três dias que me visita toda noite um animal


todo preto, intermediário entre búfalo e carneiro. Fiquei muito
assustada. Pulou no meu leito. Para remediar minha covardia, recorri
à água batismal, e o quadrúpede me deixou em paz.
• 25 de abril — Três noites seguidas ele veio. Não descubro
nele nada de humano.
• 26 de abril — Ele veio de dia. Tem agora um rosto humano,
mas todo preto, e provoca arrepios. Poderia até tratar-se do demônio.
Mas não quero, de modo algum, pensar em tal possibilidade.

140
• 27 de abril— Já se achava no meu quarto, quando fui dormir.
Ao fazer a oração da noite, correu ao meu redor e me deu umempurrão
tão forte que preferi não deitar-me; fugi para o corredor; ele ficou no
meu quarto. Passado algum tempo, entrei no quarto e não o vi. No
entanto, apenas suspirava aliviada quando avançou contra mim e me
jogou no chão. Pensei morrer de medo. O rosto dele estava perto do
meu. Disse-lhe: “Váembora, vou ajudar-te, mas não me toques!” Aí
começou a uivar, e se retirou. Perguntei-lhe: “És tu uma Alma do
Purgatório?”— “Sou João.”— “Por que tens a figura de um animal?’’
— “Por causa de minhas paixões!” Ululava, ao dizê-lo. “O que devo
fazer para te ajudar?” — “Faze o que podes fazer. Sofro tanto.” E se
enfurecia como um desesperado, ou melhor, como um animal ruim.
• 12 de maio — João vem constantemente, como quadrúpede
perigoso; o rosto, porém, se toma mais e mais humano. O couro está
molhado, como se acabasse de sair da água.
• 17 de maio — Passei por algo terrível; o pavor tremendo, que
sinto, me cansa demais.
• 22 de maio— Todas as noites vem o sinistro visitante. O rosto
aparece agora distintamente: é o Dr. G. que, no fundo, foi um homem
bastante bom. Nada responde às minhas perguntas.
• 25 de maio — Ele se toma mais e mais terrível e meu pavor
aumenta. Gritou comigo: “Por que não me dás nada?”— “Mas eu te
dou o que posso.” Furioso, jogou-se no meu leito. Não sei o que
aconteceu em seguida. Quando recobrei os sentidos estava ele
acocorado num canto. Levantei-me e rezei com ele. Em seguida,
sumiu.
• 27 de maio — “Escuta, cometeste suicídio?” — “Não.” —
“Por que não encontras paz?”— “Os pecados secretos... ”, mais não
entendi. “O que é que devo fazer para te ajudar?” — “Tu deves
flagelar-te!” — “Exiges bastante! Ter que olhar-te, já é uma tortura
para mim.” — “Se te flagelares por mim, tu e eu teremos paz.”
• 30 de maio— Ele ficou comigo longamente. Agora anda como
homens, nos dois pés, mas ainda traz o couro. Andou pelo quarto
como se procurasse alguma coisa; por fim sentou-se no chão e me

141
fixava. Não era agradável, mas percebi que perdera aquela expressão
de malvadez. Perguntei-lhe: “Estou te ajudando um pouco mais?”
— “Sim.” — “Por que demoraste em me procurar?” — “Não me era
permitido chegar mais cedo.” — “Por que vens a mim, se há tantos
outros que te podem ajudar?”— “Tu estás mais perto de nós.”— “De
que modo?” — “É tua alma.” — “Não entendo.” — “Tu vives sem
viver.” E desapareceu. Pena, eu teria gostado tanto de fazer mais
algumas perguntas.
• 4 de junho— João, o ex-quadrúpede, vem todos os dias. Mas
não fala. Em vez do couro, a aparição veste agora algo de cinzento.
Tive dois dias de descanso total. Isso faz bem! Tomo a observar que
não gosto de falar de mim mesma. Faço-o porque respeito as dire­
trizes recebidas de meu diretor.
• 8 de junho— João acaba de vir em plena forma humana. Falei:
“Então! Agora és tal e qual em vida. Por que tiveste de aparecer em
forma de animal?” — “Era o símbolo adequado de minha vida.” —
“Pois não!Contudo levavas uma vida normal, e não deste escândalo.”
— “A Justiça Divina vê tudo diferente da maneira que é comum aos
homens. Minha alma estava esfomeada; procurava e não encontra­
va.” — “E como te salvaste?”— “Na hora derradeira eu cri.”— ”Por
favor, fala um pouquinho do Além!” — “É a claridade e a compre­
ensão. Quem semeou, pode colher.” — “Qual é o teu maior
sofrimento?” — “ O anseio.” — “Anseio por Deus?” — “Sim!” —
“Estás separado dele ainda totalmente?” — “Estou no espaço inter­
mediário.” — “No purgatório?” — “Não.” Ele disse mais alguma
coisa, mas não foi possível entendê-lo; talvez tenha sido “por cima”,
mas não o posso afirmar com certeza.
• 10 de junho — “Dize outra vez onde te encontras agora.” —
“No espaço intermediário.” — “O que significa isso?” — “Estou
entre a escuridão e a claridade.” — “Estarás remido em breve?” —
“Sim.” — “Durante o tempo todo, depois de tua morte até que me
procuraste, ninguém rezou por ti?”— “Rezou, sim. A corrente do sa­
crifício corre sem parar. É a salvação daqueles que nele têm crido.”
— “É na missa que estás pensando?” — “Sim, penso nela.”

142
•12 de junho— Ele veio todo claro e bondoso. Cumprimentei-
o: “Muito bem! Hoje irradias felicidade.” (João acabou de vir em
plena forma humana.) Ele disse: — “Devo muito a ti.” — “Podes
dizer-me porque vós, almas, vindes no começo em figuras e formas
tão hediondas? Estavas sabendo que me aparecias como búfalo?” —
“Sabia.” — “Faz isso parte do castigo?” — “É a conseqüência do
pecado.”— “Posso fazer alguma coisa para que as almas não mais me
procurem?” — “Não podes parar uma torrente!” — “Dá-me, por
favor, um sinal de que estiveste comigo, para que outros também
acreditem nisso.” — Ele achegou-se a mim e cochichou: “Faze mais
este sacrifício por nós.” E foi embora; suponho que não volte mais.

“O pobre Martinho”

• 4 de julho — Dr. G. não vem mais, porém, agora, aparecem,


fazendo um barulho indescritível, dois vultos que não conheço.
• 7 de julho — Encontrei-me na escada com um homem.
Pensando tratar-se de um mendigo, eu lhe disse: “O sr. espere um
pouco; já lhe dou uma esmola.” Chegou tão perto de mim e se
comportou dum jeito tão humano que só notei tratar-se de uma alma
ao se dissolver em neblina. • Em D ... vi sete vezes aquela mulher, já
minha conhecida; chama-se Isabela; não foi possível perguntar-lhe
mais alguma coisa, porque eu não estava sozinha.
• 9 de julho — Acordei com uma horrenda barulhada. Durante
algum tempo, meu quarto estava como em chamas. No entanto, não
vi nada, apenas escutei, junto com o barulho, um chamado longínquo.
Sofro mais ao ouvir coisas misteriosas que ao vê-las, pois escutando,
apenas, é muito mais angustiante o pavor diante daquilo que está por
acontecer. Devo confessar que meus nervos afrouxam mais e mais,
pois quase não durmo.
• 11 de julho — Aquele homem que veio ao meu encontro na
escada, procurou-me no oratório, abrindo a porta, como qualquer
pessoa o faria. Assustei-me bastante, porém continuei ajoelhada.

II \
Primeiro, colocou-se a meu lado; depois ajoelhou-se. Não agüentei a
situação por muito tempo; saí do oratório e ele me seguiu. Perguntei-
lhe: “O que queres de mim?” — “Amor.” — “Receberás meu amor
se me disseres quem és.” — “Tu me ajudaste quando eu ainda vivia
no meu corpo. Olha para mim.” Vi então que trazia um pulôver que
eu, anos atrás, havia feito a ponto de malha. — “Não te conheço,
apenas reconheço o pulôver. Foi a ti que o dei?” — “Foi, sim.” —
“Viveste aqui?” — “Não.” — “Mas então, como vieste para cá?” —
“Porque tu me deves ajudar!”— “Devo?!Ninguém me pode forçar!”
— “Pode! O amor!” — ‘Tens razão; mas dize-me teu nome!” —
“Sou o pobre Martinho.” E sumiu. Não tenho idéia de quem seja.
Tem aparência bondosa. É um homem de idade; de barba longa;
quanto ao resto, parece mendigo. Estranho, esse caso do pulôver!
Bem me lembro, enquanto eu estava tecendo, lia Sven Hedin.
Estive quinze dias em Munique. Lá, a situação foi insuportável.
No começo, apenas a barulheira; após cinco dias, um vulto de homem
hediondo; durante horas a fio esteve diante de mim, em atitude supli­
cante. Longamente rezei com ele, mas sua atitude era de indiferença,
apenas colocou, uma vez, a mão na minha cabeça. Oh, essa mão! Foi
horrível. À minha pergunta em relação a quem ele era, respondeu
apenas: “anima”(31\ Não tirei mais nada dele. • Numa loja, vi junto
ao vendedor uma senhora. Quando lhe perguntei alguma coisa, o ho­
mem me lançou um olhar esquisito, pois a mulher se havia desfeito,
e ele estava só no balcão. • Quando fui ver minha irmã na clínica,
encontrei no corredor duas senhoras de aparência tão miserável que
perguntei a respeito de sua saúde, tão grande fora a compaixão que eu
senti por elas. Uma enfermeira que naquele instante estava ao meu
lado, no corredor, me olhou como se eu fosse louca, pois aquelas duas
senhoras haviam desaparecido.
Apenas tinha eu voltado a W ..., quando vi o Martinho. Eu
estava no jardim, quando ele veio. Perguntei-lhe: “Estás percebendo
que rezo por ti?”— “Sim, mas dá-me ainda mais.”— “Eu te agradeço

(31) A palavra latina “anima” significa “alma”.

144
por não vires durante a noite.” — “As outras não mo permitem.” —
“Que outras?” — “Aquelas que estão contigo.” — “São muitas as
almas que fazem essa barulheira tremenda?” — “São muitas.” —
“Por que não posso vê-las?”— “Elas não gozam ainda da faculdade.”
— “Quando é que a recebem?” — “Numa esfera superior.” — “Já
estás lá?” — “Estou no espaço intermediário.” — “É somente desse
espaço que podes vir a mim?”— “Nem todas encontram o caminho.”
— “Por favor, dize-me como é esse caminho que te traz a mim.” —
“É duro, mas tu nos puxas para junto de ti.” — “Onde está enterrado
o teu corpo?” — “Em Erlangen.” E desapareceu.
Quando olho continuamente para as almas, elas me parecem
mais comunicativas.
O barulho durante a noite é muitas vezes insuportável. E tudo
isso ainda está para vir, pois a barulhada anuncia o que vai acontecer.
Em U... vi Isabela dezesseis vezes. Perguntei-lhe: “Donde
vens?” — “De dentro da tortura.” — “És parenta minha?” — “Não
sou.” — “Quando morreste?” — “Em 1846.” — “Onde estás
enterrada?” — “Em Paris.” — “Por que não encontras paz?” —
“Nunca me lembro de minha alma.” — “Como posso ajudar-te?” —
“Manda rezar uma santa missa.” — “Não tinhas parentes?” — “Eles
perderam a fé.” — “Passaste todo o tempo do teu purgatório neste
castelo?” — “Não.” — “E por que sofres agora aqui?” — “Porque
tu estás aqui.” — “Durante tua vida estiveste aqui muitas vezes?”
— “Sim, era amiga de muitas pessoas daqui.” Ela é muito linda.
Meu quarto tem estado freqüentes vezes como em chamas, e
isso até durante o dia. Tais coisas me inquietam seriamente.
• 11 de agosto— O pobre Martinho esteve outra vez comigo, no
jardim. Perguntei-lhe: “O que queres de novo? Faço por ti o que
posso.” — “Podias fazer ainda mais, mas tu estás demasiado ocupa­
da em teus pensamentos contigo mesma”. — “Não me dizes nada
de novo, infelizmente. Conta-me mais um pouco, se podes ver em
mim o que não presta.” — “Rezas muito pouco e perdes forças na
convivência com os homens.” — “Tudo isso eu sei; mas não posso

145
viver unicamente para vós. Que mais ainda vês em mim? Talvez
pecados meus, pelos quais tu estejas pagando?” — “Não; se fosse
assim, não me poderias ajudar.” — “Fala mais um pouco!” — “Não
esqueças que eu sou apenas alma.” E me olhava com tanta bonda­
de que fiquei toda contente. No entanto, havia ainda tanta coisa que
eu teria gostado de saber. Se eu pudesse dedicar-me totalmente às
Almas do Purgatório, com que prazer o faria! Mas as pessoas que
me cercam...!

Sou a culpa ainda não resgatada

• 14 de agosto — Isabela me encontrou aqui. Ela aparece tam­


bém de dia. Perguntei-lhe: “Porque não ficasemU...?”— “Fico con­
tigo.” — “Ainda por muito tempo?” — “Isso depende de tua miseri­
córdia.” — “Deves compreender que preciso ajudar também outras
almas. Não posso dar tudo só a ti.” — ‘Tira do teu amor e ajudarás.”
— “E com a permissão de Deus que me procuras?” — “Sim.” Estou
muito feliz pelo fato de o Bom Deus lembrar-se de mim.
• 23 de agosto — Uma daquelas sombras pode agora aparecer
em forma humana. É um velho que está constantemente em movi­
mento e me faz pensar, por sua agitação, na sombra de folhagens em
caminho cascalhento quando nele bate um sol ofuscante. O ritmo é
bem parecido.
• 25 de agosto — O homem estava furioso e se comportava de
modo abominável. Durante a oração, ele se acalmou.
• 27 de agosto— Ele começou a falar. Berrou comigo: “Ajuda-
me.”— “De boa vontade. Quem és?”— “Sou aculpanão resgatada.”
— “O que deves expiar?” —”Eu era um caluniador.” — “Posso re^
parar alguma coisa em teu lugar?” — “Minhas calúnias continuam
existindo naquilo que escrevi; por isso, a mentira não morre.” —
“Como posso remediar a situação?” — “Sacrificando-te.” Ache­
gou-se a mim e com força encostou a cabeça hedionda no meu rosto.
Foi um horror, mas não perdi os sentidos. No entanto sofri um verda­
deiro calafrio.

146
• 28 de agosto — Perguntei-lhe: “Estás um pouco melhor?
Percebeste que ofereci a ti a santa comunhão?” — “Sim; desagravas
desse modo os pecados feitos com a minha língua.” — “Não podes
dizer-me quem és?”— “Meu nome não deve mais ser pronunciado.”
— “Onde está enterrado teu corpo?” — “Em Leipzig.” — “Não
entendo de que jeito encontraste o caminho que te trouxe a mim.”—
“Seguimos o roteiro que nos é indicado.” — “Existem diversos
caminhos para as almas?” — “Há sete.” — “Podes falar-me de
outras almas?” — “Não.” — “Quem mais está no meu quarto? Vejo
duas sombras.” — “Somos solitárias.” — “Isso significa que nem
enxergas as outras almas?” — “Sim, é isso.” Ele ficou comigo a
noite toda, andando de cá para lá.
• 29 de agosto — Enxerguei-o durante quase todo o dia, pois
não deixou de perseguir-me. Perguntei-lhe: “Por que estás sempre
comigo? Peço-te que te vás embora quando eu estiver com outras
almas. Não te posso ajudar enquanto estiver com elas.” Aí me deu
ele um empurrão que quase me derrubou escada abaixo. Disse-lhe:
“Não deves fazer chantagem comigo!” — “Onde estão teus sacrifí­
cios?” — “Perdoa-me que de novo tenha pensado em mim mesma.”
Não me deixou até às sete horas da noite. Refugiei-me na igreja. Aí
ele ficou diante de mim, bem calmamente. Perguntei-lhe: “Vês Cristo
no Santíssimo Sacramento ou em realidade?” — “O Sacramento é
para os vivos; a realidade da visão beatífica começa apenas quando
eu estiver puro.”
• 30 de agosto — Ele me atormenta dum modo pavoroso, me
dá socos e surras. A minha pergunta, por que me trata desse modo,
berrou: “Tu me esqueceste!”— “Mas eu não posso fazer para ti mais
do que estou fazendo!” — “Tu deves fazê-lo!”— “Dize-me o que tu
queres que eu faça!”— ‘Tu não rezas bastante.”— “Sim, infelizmen­
te. Mas estou tão cansada, que muitas vezes não sou capaz de fazer
mais nada.” Aí se comportou qual homem irritado, deu-me um soco
e se foi. Pelas cinco da manhã voltou, berrando: “Levanta-te!” Ele
ficou comigo até que fui à igreja. Quando voltei, já estava no meu
quarto. Eu lhe disse: “Por favor, agora sai!” Ele me agrediu e me fez.

147
sofrer tanto que nem o posso descrever. Foi simplesmente demais
para mim. Contudo, não quero me queixar, embora sinta um imenso
pavor.
• 3 de setembro— Nos últimos dias sofri mais que em toda esta
época passada. Foi a luta de uma alma desesperada. Parece que agora
tudo terminou. Hoje ele estava todo manso e satisfeito, mas não falou
nada.
• 4 de setembro — Ele veio sorrindo. Disse-lhe: “Assim me
agradas.” — “Entro na claridade.” — “Não me esqueças!” — “Os
vivos na terra pensam e esquecem, os mortos não podem esquecer o
que o amor lhes deu.” E desapareceu. No firr aquelas palavras
consoladoras. Quem terá sido? Tenho-lhe feito muitas perguntas,
sem receber resposta. Meus familiares se riem de mim, pois escu­
tam minha voz quando falo com as almas. Digo-lhes que é um sinal
de que estou caducando.

Um dominicano

• 5 de setembro — As outras sombras começam a se dissolver.


Veio um dominicano. O rosto irreconhecível, apenas um pedaço
cinzento. É bastante calmo, mas murmura palavras ininteligíveis;
parece que é latim o que está falando.
• 6 de setembro — Ficou comigo a noite toda. Eu estava com
tanto sono que perdi o que é o mais santo, a santa comunhão.
Preocupo-me por isso, não me mortifico mais; meu espírito tomou-
se indolente.
• 10 de setembro — Nada de novo. O dominicano não me
amedronta e quase não me deixa. • Indo à serraria, encontrei uma
senhora que não tinha nada de especial que lembrasse ser ela uma
pobre alma. Depois de ter dado uns passos, escutei-a implorando:
“Misericórdia!” Voltei-me, e só então percebi que eu estava em
presença de uma Alma do Purgatório. Elas têm os olhos diferentes dos
nossos. Havia trabalhadores bem perto de mim, ocupados no campo;
por isso falei baixinho: “O que posso fazer por ti?”— “Rezar muito.”

148
— Observando-a melhor, vi que ela é a mãe de Rosa B... Perguntei-
lhe: “És tu a Teresa B...?” — “Sou.” — “Mas tu levaste vida tão
boa!” — ‘Tudo fingimento; só na hora da morte fui sincera.” —
“Queres que eu o diga às tuas filhas?” — “Não; és tu quem me pode
ajudar.” — “Mas eu devo ajudar com minha pobre oração a tantas
almas; aí tu não te aproveitarás muito das minhas rezas.” — “Quando
é o amor que dá, o que é pouco fica muito.” E desapareceu.
• 13 de setembro— O dominicano é um padre que eu conhecia
bem. É francês. Ficou muito tempo comigo. Quando comecei a rezar,
ele me fez acenos.
• 17 de setembro — Ao cair da tarde, eu estava muito triste e
chorava. A mão de alguém pousou na minha cabeça. Olhei: era a mão
do dominicano. Ele perguntou: “Por que choras?” — “É porque não
estou contente comigo mesma.”— “Por que não me dizes tudo?” —
“Mas tu me podes ajudar?” — “Eu gostaria de te ajudar.” — “Tenho
tanto medo de não me salvar. A vontade de não pecar não basta, e mais
que isso não consigo.” — “Se não pecas, não podes perder-te.” —
“Mas eu peco; não estás vendo minha alma?!” — “Não. Contudo, o
caminho a ti está luminoso; caso contrário não poderíamos vir.
Confia, e sê humilde.”— “E para eu te ajudar, o que posso fazer?” —
“Mortificar-te!” — Ele ficou ainda longamente comigo. Não tem
nada de repugnante. De todas as almas, é ele a primeira que começou
a falar sem que eu lhe tivesse feito pergunta.

O que acontece logo depois da morte

• 27 de setembro — Ele ficou comigo por muito tempo.


Comecei a falar: “Por favor, dize-me se imediatamente após a morte
vemos o Bom Deus.” — “Sim; a alma estremece em adoração e
logo imerge na purificação.” — “Não podes dizer mais um pouco?”
— “Não! Quanto mais amares a Deus, tanto maior tua felicidade.
Procura orientar-te conforme essa realidade.” — “Ainda demom
muito para te purificares totalmente?” — “Não.”

11'*
• 29 de setembro — Três vezes tenho visto a alma de uma
velhinha diante do altar de Nossa Senhora. Não a conheço. • O
dominicano deteve-se comigo longamente. Indaguei: — “Como é
que a gente pode salvar-se? Ensina-me, por favor.” — “Crendo
firmemente e sendo bem humilde.” — “Posso fazer alguma coisa
para que as Almas do Purgatório não me procurem mais? ” — “Não
podes.” — “Mas se eu deixasse de rezar por vós?” — “Elas força­
riam a tua ajuda.” — “Posso chamar uma alma se eu quisesse saber
alguma coisa por intermédio ou a respeito dela?” — “Não tens
nenhum poder sobre ela.”<32)
• Io de outubro — Aproxima-se algo de terrível. Parece que é
um animal. Sei que também isso vai passar, mas assim mesmo tenho
um medo indescritível.
• 3 de outubro — Depois daquele horror, veio o dominicano.
Exclamei: “Estou contente que vieste. Senti tanto medo. Sabes, quem
esteve comigo?” — “Não sei; cada alma, por si só, percorre seu
próprio caminho”. — “Foi um animal. Por que aparecem almas em
forma de animais?” — ‘Tu vês o pecado. Esquece-te de ti mesma e
ajuda!” — “O que é que ajuda mais a essa pobre alma?” — “O
sacrifício da vontade própria.” — “A santa missa não ajuda?” —
“Não; porque essa alma não tem crido nela.” — “Contudo, há outras
almas que logo recebem ajuda.” — “Não podes entender o que é a
Justiça Divina.” Não tenho medo algum do dominicano; gosto até
da visita dele.
• 7 de outubro — Aquele animal horroroso vem agora todas
as noites. É um grande macaco, semelhante àquele de tempos atrás.
Por que sinto de novo esse horrendo pavor? Não poderei acostu-
mar-me nunca a essas aparições?
• 9 de outubro — Infelizmente, o dominicano não vem mais;
vem, isso sim, aquele animal hediondo.

(32) Os espiritas afirmam que se pode forçar os espíritos a aparecer. Se nem essa santa
princesa, que via as almas em formas diversas e convivia com elas, possuía o poder que
os espíritas pretendem ter, como o conseguiriam eles só para satisfazer sua curiosidade?
Ou perguntemos mais realisticamente: quem é que aparece nas sessões espíritas?

150
• 10 de outubro — Passei uma noite medonha. Talvez essas
visitas façam parte da necessária renúncia à minha vontade própria.
Quero, pois, referir apenas os fatos, e não quero lastimar-me.
O macaco tem o tamanho de uma porta; enraivece-se qual louco
enfurecido. Parece nem escutar a minha oração. Entrou pela janela,
o que para mim já tem uma conotação sinistra. Expele seu bafo no
meu rosto e bufa qual animal selvagem. Ele quis estrangular-me, mas
eu coloquei depressa meu crucifixo de agonizantes no meu pescoço,
e aí me deixou.
• 14 de outubro— O macaco vem todos os dias, mais exatamen­
te todas as noites. Eu estranho que tenha o couro molhado como se
viesse da chuva. Mas estou contente que essa alma apareça em forma
de macaco e não de cobra; pois se fosse de cobra, seria demais para
mim.
• 17 de outubro— O macaco é insuportável. Seus olhos, quando
me fixam, são qual carvões em brasa. Reconheço que me tomei mais
corajosa. Há um ano, eu teria perdido os sentidos.
Estando assim, toda miserável, veio o dominicano, e aquele
horror de macaco desapareceu. Exclamei: “Por que não vieste mais
cedo?” — “Estavas cercada.” — “De quê?” — “Da tortura daquele
pobrezinho.” — “Sim, ajuda-me a prestar-lhe auxílio.” — “Ainda
não estou liberto; não estou em condições de ajudar alguém.” —
“Então dize-me o que posso fazer por ele.”— “Mostra-lhe teu amor.”
— “Mas não consigo amá-lo; apenas posso dar-lhe o começozinho do
amor; posso mostrar-lhe a minha compaixão.” - “Faze aquilo que
é duro para ti.” — “Flagelar-me?” — “Sim.”
• 18 de outubro — O dominicano veio de dia. Comecei: “Dis-
seste que ainda não podes ajudar outros. Posso eu libertar-te? E de
que modo?” — “Oferece sete vezes a santa comunhão para que eu
fique livre.” — “Por que não mo disseste antes?” — “Porque tens
dado a comunhão a outros.” — “Como podes sabê-lo?” — “Vi que
eles te deixaram de mãos cheias.” — “Mas uma outra alma declarou
que ela não podia ver as almas que me procuram. Donde vem que tu
podes vê-las?” — “Nós somos todas diferentes umas das outras.”
O macaco esteve comigo a metade da noite, sempre bastante

IM
agitado, acocorado geralmente num cantinho. De repente, avançou
contra mim qual cachorro louco. Gritei-lhe: “Não podes fazer isso
comigo.” Caiu no chão, levantou-se de um salto e investiu de novo
contra mim. Dei-lhe então um tapa. Ai, meu Deus! Jamais tomarei a
fazê-lo! Gritou de dor, e as lágrimas lhe borbulhavam nos olhos
selvagens. Escondeu-se choramingando num canto. Quanto me
arrependi por ter sido tão cruel para com ele. Fiz o que podia fazer e
lhe disse que fizesse a seu bel-prazer o que quisesse; ainda outro dia
escrevi que eu já era mais corajosa. Se tivesse escrito que tinha menos
compaixão, teria dito a verdade.
• 19 de outubro— Enquanto eu brincava com Wolfram, veio o
dominicano. Pedi-lhe: “Não assustes o menino.” — “Sua inocência
me atrai.” O menino estava muito alegre e olhava para o padre com
muito prazer. A cena era inverossímil e muito linda e real. Pedi ao
padre: “Por favor, deixa-me agora. Estão chegando outras pessoas.”
— “Elas não me podem ver.” — “Por que não?” — “Estão em seu
corpo humano.” — “E eu também estou. Por que eu te vejo?”— ‘Tu
és das nossas.” Inclinou-se sobre Wolfram e desapareceu. Por que
pertenço eu às almas? Tenho a impressão de que algo de sinistro me
envolve.

Sabes quando morrerei?

• 20 de outubro — Este macaco! Ficou comigo quase a noite


toda. Seu rosto se toma mais humano, mas suas feições são repelen­
tes. Rezei muito com ele; gosta que lhe dê água benta. Eu o tenho visto
também na campina que fica dentro da horta. Vi de novo aquelas três
mulheres na igreja. Trajam-se como as camponesas de outrora.
• 24 de outubro — Veiõ o meu querido dominicano. “Não me
podes dizer por que algumas almas, às vezes, me torturam de
verdade?”— “Pertencem elas à esfera mais baixa. O pecado ainda as
possui. Estão salvas, mas não purificadas.” — “Não estiveste nunca
nessa esfera?” — “Não. A graça de Deus me preservou de cair em
pecados que precipitam a pobre alma naquelas profundezas.” —

152
“Quando foi que morreste? Eu nem sabia que havias morrido.” —
”Faz quatro meses.” — “Por favor, explica-me como posso vê-las
sob a forma corpórea, já que as almas são incorpóreas.” — “Pela
vontade de Deus, senão tu não nos poderias ver.” — “Mas como é
possível que eu sinta de olhos fechados a presença delas?” —
“Estamos unidas a ti.” — “Elas não se aborrecem por eu estar alegre,
apesar de minha compaixão para com elas?” — “Não; pois estando
bem disposta tens nova força para nos ajudar.”
• 24,25,26 de outubro— Noites terríveis com o macaco. Falta
quase total de sono. Ele precisa de muita ajuda, parece; bem o
compreendo, pois é tão miserável minha pobre oração. • O dominicano
veio por poucos instantes apenas. Concordei: ‘Tu me vês triste; quase
que não posso mais.” — “Não quiseste sacrificar-te?” — “Sim, sem
dúvida; no entanto, minha vontade é fraca.” — “Quanto mais
pequenina fores, tanto maior a ajuda.” Ele disse mais algumas
palavras que não entendi e desapareceu.
• 28 de outubro — Nada de novo; o macaco continua me
maltratando.
• 30,31 de outubro, Io de novembro — Nada de especial. São
delicadas as pobres almas, pois sinto-me tão mal, e quando estou
doente, me deixam em paz.
• 2 de novembro — Dia de Finados. Veio o dominicano.
Cumprimentei-o dizendo: “Hoje temos um dia bonito.”— “O sangue
de Cristo flutua torrencialmente.” — “Pensas nas muitas santas
missas?” — “Sim; esse sangue nos leva à vida.” — “Também a ti,
ainda hoje?” — “Vou bem.” — “Deixarás de vir agora assiduamen­
te?” — “Tens razão.” — “Não me podes dizer o que possa me ajudar
para que minha alma mude para melhor?”— “O que te dizia em vida:
tua alma deve ficar cada dia mais pura pela recepção dos sacramen­
tos.” — “É nisso que eu falho. Reza por mim. Sabes quando eu vou
morrer?” — “3 x 9.” — “Não o entendo.” — “Nem podes entendê-
l0.”(33) • Yeio o macaco, e meu bom amigo desapareceu. Rezei com

(33) Eugênia von der Leyen morreu em 9 dejaneiro de 1929, data em que ocorrc trôs vc/.ivs
o número “9”.

n 4
este novo visitante o Dies irae. Ele me olhava de modo tão comovedor
que tive de acariciá-lo. Ao tocar nele senti a graxa suja de seu couro.
— “Ainda não consegues falar?” A resposta foi um soluço e se
encostou em mim. “Eu te ordeno que te levantes e que me digas quem
és.” — “O impuro.” — “De bom grado te ajudo. De que precisas?” —
“Que te sacrifiques.”— “Percebeste quanto se rezou no dia de hoje?”—
“Sim. Devido a essas rezas consigo falar.” — “Por que estás nesse
estado?”— “Não há pecadoqueeu não tenhacometido.”—“Noentanto,
tiveste fé.” — “Até a hora da morte tenho desprezado o mais sublime.”
— “E depois?”— “Veio a compreensão e assim escapei do inferno.”—
“Queres missas?”— “Delas não tiro proveito pois nelas não acreditava.”
— ‘Teu castigo consiste nisso?”— “É um dos meus muitos castigos.” E
sumiu pela janela afora. Gostaria tanto de ajudá-lo depressa. É a figura
personificada da dor. Sinto dele mais nojo que temor.
• 3 de novembro — Quase o dia todo, o macaco me perseguiu.
Foi assim que tive de representar meu papel de alma vivendo em dois
mundos. Meu íntimo está comovido até o extremo, mas na superfície
estou falando e rindo; meu Deus! como é difícil e quanta força não se
exige! No entanto, quando eu já estava a desfalecer, aquela sensação
de extrema felicidade me subjugou. Não tocarei mais no assunto, pois
temo exagerar. Durante a noite, o macaco voltou; também nos três
dias seguintes. Mas nada falou.
• 7 de novembro — O macaco esteve pior do que nunca; quase
não posso olhar para ele. Perguntei-lhe: “O que te aconteceu, para te
mostrares num estado tão repugnante?” — ‘Terás de conhecer toda a
minha vida.” — “Não penses nisso; eu te ajudo assim mesmo.” — “Sa­
bes quem sou?” — “Sei; uma alma muito, muito pobre.” — “O que
estás vendo em mim?” — “Vejo em teus olhos desgraça inominável
e vícios. Não quero ouvir o que fizeste.” — “E queres sacrificar-te
por mim?”— “Quero, sim.”— “E eu vou ajudar-te”, e deu-me um tapa
foite no rosto e sumiu. Não compreendo isso. Quero ajudá-lo, e ele me
bate no rosto. Vou perguntar-lhe por que me trata desse modo.
• 8 de novembro — Esteve comigo quase o dia todo. “Por que
me bateste outro dia?” — “Quis maltratar-te.” — “Mas se quero
ajudar-te e tu me bates, não é isso ingratidão?”— “No estado em que

154
me encontro, há só malícia.” — “Mas estás salvo; como podes ser
mau?” — “Aquilo está ainda grudado em mim, por acaso não o
enxergas?”— “Vejo apenas que és um animal nojento.” Aí achegou-
se a mim. Meu Deus! Vi o que é simplesmente indescritível. Seu
corpo estava inteiramente como que esburacado, e em cada cavidade
se mexiam milhares e milhares de vermes. Tudo nele estava sendo
roído por vermes e mais vermes. Acho que nunca em minha vida eu
havia visto algo tão nojento. Oh, meu Deus! que eu nunca mais tenha
de ver algo tão hediondo!
Pedi ao meu sinistro amigo: “Por favor, vai embora, não o posso
suportar. São eles os símbolos de teus pecados pelos quais não
pagaste ainda?” — “São. Deus é infinitamente justo; meus pecados
bradam ao céu.”(34) — “Estás pensando nos pecados que bradam ao
céu, como diz o catecismo?” — “Estou, sim.” — “Coitado! Escuta,
na última hora de tua vida te salvaste, e foi a força do arrependimento
que te salvou?”— “Sim, foi devido à contrição e ao sacramento.” Ele
vinha se aproximando mais e mais e colocou em mim seu braço
horroroso. É indescritível quanto sofri com sua presença. Fechei os
olhos. Apenas consegui pensar: que vá embora quanto antes. Não
rezei nada, e nada ofereci em sacrifício. Aí se vê o que sou:eu só penso
em mim mesma. Tanto desamor para com os mais miseráveis!Enfim
me soltou. Exclamei: “É preciso fazer isso comigo?” — “Tu és um
refrigério para mim.” Dei-lhe muita água benta, e ele se foi. Quando
uma tortura dessas termina, a gente experimenta uma sensação de
alívio e de libertação; só então estou em condições de me sacrificar
por aquelas almas. Parece que essa alma vai me dar ainda muito
trabalho. Pensando nisso, sinto-me muito oprimida. Vivo num pavor
indescritível, pois os incontáveis vermes provocam em mim um

(34) Os pecados que bradam ao céu são os seguintes: Io homicídio premeditado,


voluntário; 2o o pecado homossexual, sodomítico, contra a castidade; 3o opressão dc
viúvas, pobres e órfãos; 4o não pagar, ou demorar voluntariamente em pagar, o salário
devido a operários e empregados.

1^
terror sem limites. É verdade que digo: tudo como Deus quer, mas
no meu íntimo está o desejo de me ver livre dessa tortura.
• 10 a 26 de novembro— Sofro muito, muito. Ele não diz nada.
Não vale a pena descrever o que suportei; prefiro nem mais pensar no
que aconteceu.

O macaco é Egolf von R ...

• 27 de novembro — Furioso ele me agrediu. Não foi possível


defender-me, pois não quis bater nele. Eu sentia os vermes no seu
couro. Foi um horror. Enfim me soltou. Exclamei: “Por que voltas a
fazer isso? Quero que fales.” Ele gritou: “Estou ardendo!” — “O que
posso fazer por ti?” — “Água santa!” Dei-lhe muita água benta.
Como já acontecera, não se via nenhuma gota no chão. Olhou-me
cordialmente e começou a chorar. “Por favor, dize-me quem és.” —
“Egolf von R ...” — “Então vivias aqui?” — “Aqui vivi, aqui pe­
cava.” — “A quem mataste?” — “Matei Susana.” — “Aqui?” —
“Não.” — “Mas se foi aqui que pecaste?” — “Aqui cometi outros
pecados mortais.” — “Teu arrependimento atual não te alivia a dor
e não te aproveita em nada?” — “Não.” — “Não tens ninguém,
além de mim, que te ajude?” — “Não.” — “Estiveste neste castelo
o tempo todo neste mesmo estado em que te encontras agora?” —
“Passei para este estado depois de ter saído da escuridão.” — “O
que entendes por escuridão?” — “A distância de Deus.” — “Então
estás agora mais perto de Deus?” — “Sim, estou.” — “Dize-me
ainda: o que te aconteceu logo depois da morte?” — “Primeiro, o
juízo; depois, o castigo.” — “Estiveste diante do Bom Deus?” —
“Adorei e afundei na escuridão.” — “Sabes que te posso ajudar?” —
“Sei.” — “De que maneira?” — “Renuncia a qualquer alegria.” (35>

(35) Escreve o diretor espiritual da princesa a respeito dessa frase: “Expliquei à princesa
que as almas não têm direito de pedir que ela renuncie a todas as alegrias; elas insistem
nisso porque sofrem muito e querem sair do sofrimento o mais depressa possível.

156
— “Se eu o fizer, não virás mais na forma de macaco?” — Aí ele me
bateu na cabeça e se foi. Renunciar às alegrias não é muito fácil, já que
em tudo encontro prazer. Terei, pois, que deixar, por assim dizer,
minha própria natureza.
• 28 de novembro — A mão de Egolf parecia estar tingida de
sangue. Perguntei-lhe: “Por que tua mão está sangrando?” — “Por
causa do meu pecado.”— “Nunca se soube que mataste Susana?”—
“Não. Mas a ti devo confessá-lo.” — “Quem foi Susana?” — “Uma
menina inocente.”— “Não quero saber dos pecados que cometeste.”
Aí explodiu em uivos, pegou meu braço, agitou-o violentamente e
disse uma palavra que não compreendi. Entendi apenas “domítico.”^36)
Deve ter-lhe custado muito fazer essa confissão, pois caiu no chão e
gemia terrivelmente. Depois de lhe ter dado água benta, acalmou-
se e ficou comigo até a madrugada. Já que o sono para mim é um
prazer, quis ele forçar-me a renunciar ao descanso, pois tenho-lhe
dado bem pouco até agora.
• 18 de dezembro— Nada mais escrevi porque não foi possível
colóquio algum. O macaco se transformou em fera furiosa e se tenho
feito por ele o que foi possível, isto se deu provavelmente devido à
minha covardia e não ao meu pouco amor. Passei por momentos
horrorosos, como, por exemplo, quando ele sacudia o couro, e os
vermes caíam na minha cama. Pensava desfalecer de nojo. Quando
saiu, também os vermes desapareceram, o que, aliás, não foi grande
consolo para mim. Hoje, enfim, apareceu em forma humana, como
jovem. Mas não falou. Graças a Deus que alcançou essa etapa de sua
purificação.
• 21 de dezembro— Esteve longamente comigo. Perguntei-lhe:
“Por que me torturaste tanto?” — “Para aumentar teu sacrifício.” —
“O pior para ti passou?” — “Estou na esfera da luz.” — “Chegarás
então à visão de Deus?” — “Só quando eu estiver totalmente puro.”
— “Como posso apressar tua purificação total?” — “Quando me

(36) Trata-se do pecado sodomítico, que é considerado natural até por certos padres e
teólogos católicos. Quanto não sofrerão na eternidade por ensinarem isso!

157
Castelo de Unterdiesen. Foto aérea. Do castelo, vê-se bem o vale do rio Lech.

158
Relicário em forma de ostensório, com a partícula da Santa Cruz, menci­
onada freqüentemente no diário da princesa.

IV)
i <• H 3 1' ft l i

í r l I

W2k£Bi

Em cima: armário embutido na parede; em cima do armário, que se


encontra na grande escadaria do castelo de Waal, um ex-voto do dono do castelo
durante a peste de 1672. Nossa Senhora estende seu manto sobre o castelo e
freguesia. Uma cópia da imagem encontra-se no castelo de Unterdiesen. Embai­
xo: quarto de dormir de Eugênia. Afoto é defevereiro de 1979. Fogão e leito estão
no mesmo lugar, como no tempo em que ela vivia. Foto: Christiana.

160
Príncipe Johatui VI von der Leyen, Arcebispo de Trier. Pintura a óleo no
castelo de Waal. Foto Christiana.

161
deres aquilo de que mais gostas!” — “A santa comunhão?” —
“Sim.” — “Mas isso não está errado? Eu gostaria de ajudar-te na
tua purificação.” — ‘Tu me ajudas, pois conheces e te lembras do
meu castigo: eu não havia crido naquilo que é o mais sublime.”
• 23 de dezembro — Ficou comigo por muito tempo. Já não
preciso ter medo dele. Apenas seu olhar é penetrante demais, e
bastante inquieto. Indaguei: “Gostaria de saber como é possível que
as almas apareçam sob diversas formas.” — “É pela permissão de
Deus. Não podes ver a alma.” — “Se estavas há tempo comigo, por
que não pudeste mostrar-te mais cedo?” — “Não era capaz; o
caminho que me conduz a ti é longo.” — “Como me encontraste?”
— “És tu que nos procuras e encontras.” — “De modo algum. Eu
me sinto infeliz quando as almas chegam.” — “Tua alma não fala
desse modo.”
• 24 de dezembro— Esteve muitas vezes comigo de dia; rezava
com gosto, mas não falou.
• 25 de dezembro— Esteve comigo a metade da noite. Pergun-
tei-lhe: “Sabes que é Natal?” — “Eu posso adorar.” — “Não vens
mais?” — “Não.” — “Então devo confessar que menti para ti quan­
do dizia que me sinto infeliz com as visitas das almas. É antes o tre­
mendo pavor que abafa meu amor. É verdade que eu quero ajudar.”
— “Para ti já não existe o querer, tu deves.” Sorriu para mim e
desapareceu. Mal se retirara e a velha trapeirajá estava diante de mim
num estado lamentável.

Gisela

• 17 dejaneiro de 1926 — A Z... não vem mais. Aparece uma


figura em forma de bruma; muito calma; não provoca medo, consigo
até conciliar o sono em sua presença.
• 20 de janeiro — Aquela aparição parece mulher, mas total­
mente diversa de tudo quanto já tenho visto. É uma figura nebulosa
que não toca o chão. O rosto é gracioso e um tanto jovem. Ela
movimenta-se pelo quarto, pairando com um donaire indescritível.

162
• 27 dejaneiro— Minha graciosa visita vem todas as noites, no
entanto não consigo tirar dela palavra alguma. Ela me acompanhou
também a D . d i s t a n t e de nossa casa uma hora de viagem. Lá
aconteceu, em presença dela, algo de estranho. De repente, deu-se no
meu quarto um barulho como se balaios de vidro fossem jogados ao
chão. Foi um tinido apavorante e, em seguida, meu quarto estava em
chamas. Um medo horrendo apoderou-se de mim, pois eu estava
convencida de ter irrompido um incêndio. Corri ao corredor— e tudo
em paz! Voltei ao meu quarto, e nada de especial. Perguntei à minha
gentil visitante o que havia acontecido. Ela apontou para o prado em
frente à minha janela, mas não vi nada de importante.
• Iode fevereiro— Finalmente a aparição decide aproximar-se
de mim. Ela me disse algo com a voz bem baixinha, mas nada entendi.
• 3 de fevereiro — Agora até me alegro por rever minha
visitante. Apostrofei-a: “Por obséquio, dize-me quem és!” —
“Gisela.” — “Por quees diferente das outras almas?” — “Em breve
posso adorar.” — “Mas então, por que vens a mim pedir-me ajuda?”
— “Devo obedecer à voz.” — “A que voz?” — “Àquela que reza por
mim.”— “Nunca rezei por ti, e não te conheço.”— “Dize-lhe que me
salvei; eu o fiz com minha mão, não de livre vontade.” (Lembrei-me
poder tratar-se de Gisela S... por quem a I. L. constantemente reza.)
— “Deste a morte a ti mesma?” — “Sim, suicidei-me; eu enlouque­
cera.’^38) — “Vai tu então àquela voz!” — “Não a encontro.” — “O
que lhe devo dizer?” — “Que eu rezo por ela e lhe agradeço.”
• 6 de fevereiro— Gisela voltou.— “Para dar-te prazer.”— “Eu
te agradeço; podes dizer-me o que significa aquelabarulheira horrível
e acompanhada de fogo?” — “Prepara-te e sê valente.” — “Então
aquele horror ainda vem?” — “Virá, sim; pertencerá à tua missão.”

(37) D. fica cerca de uma hora distante da casa da vidente.

(38) Gisela S. falecera mais ou menos dois anos antes dessa aparição. Corria o hoalo do
ter sido assassinada. Sua amiga, a Irmã L., rezava muito por ela. (Esclarecimento do
pároco Wieser.)

U» \
— “Não podes rezar por mim para que aquilo não me sobrevenha?”
— “Falas de maneira humana.” — “Sim, estás vendo? Continuo
sendo a mesma de sempre; dize-me por favor o que está errado em
mim.”— “Háclaridade em tomo de ti; cuida quejamais se transforme
em trevas.” — “Não me digas o que de bom vês em mim, mas sê
rigorosa para comigo.” — “Sacrifica mais e mais tua livre vontade,
e ajudarás a ti e às almas.” Ela colocou-me as mãos na cabeça, e
desapareceu. Sua visita me tranqüilizou; acho que Gisela me deixou
definitivamente.

Uma religiosa em forma de cobra

• 8 de fevereiro — Furiosamente, o horror me assalta. Nunca


ouvi barulho semelhante a esse: tempestade, rugido, derrubada do
mobiliário, e tudo aquilo de que a gente não gosta. Quero corajosa­
mente enfrentar tudo; escuto o horror, mas não vejo nada.
• 9 de fevereiro — No meu quarto turbilhonava uma ventania
como se estivessem abertas todas as portas e janelas. Já se apodera de
mim um pavor infame, que aumenta implacavelmente. Como posso
ajudar as almas se eu mesma preciso de ajuda!
• 12 de fevereiro — A situação foi tão horrenda que comecei a
suar por todos os poros. Sentia-me totalmente abandonada na minha
grande miséria. Ao meu redor desencadeava-se um poder invisível.
Até minha cama estava sendo levantada. Fugi para um outro quarto.
Em tomo de mim rugia um furacão medonho. Abri a janela; lá fora
estava tudo em paz.
• 13,14,15 de fevereiro — Todos os dias acontecia o mesmo:
barulho e pavor.
• 18 de fevereiro— Foi tão horrível que adoeci de pavor. Tenho
rezado constantemente o Salmo 90, pois adapta-se à minha situação.
Também, para mim, as forças ocultas andam às furtadelas pela
escuridão; é só a confiança em Deus que me sustenta nesta situação.
• 19 de fevereiro— No centro do fogo acaba de formar-se uma
indefinível massa escura, da qual sai o medonho estrépito. As chamas

164
não espalham calor. Enfraqueceu a tempestade inicial. Gastei muita
água benta.
Para falar com toda a franqueza, tenho que admitir que me
encontro atualmente num estado espiritual lamentável. Posso dar às
almas só bem pouco. Pois devido à minha doença e fraqueza, a alma
passa muita fome. Compreendo isso com clareza sempre mais nítida.
Quando não posso unir-me sacramentalmente a Jesus, perco mais e
mais as forças.
• 21 de fevereiro — E aconteceu o pior que me poderia
acontecer. Aquela massa escura é uma cobra. Quando dei por isso,
fiquei como que paralisada de pavor. Tenho um medo inominável,
pois uma simples cobra-cega me faz tremer de medo. Essa cobra me
parece descomunal; talvez tenha uns três metros de comprimento. Já
estou tremendo de medo, imaginando as noites que passarei. Ainda
não estou em condições de fazer sacrifícios. As chamas desaparece­
ram, como também o barulho. Por enquanto, a cobra está quieta.
Meus familiares dão-me um cordial “boa-noite”, e eu tenho que
enfrentar a maior tortura... Pois bem, acabo de lamentar-me; mas não
adianta. O Bom Deus só permite o quanto a gente é capaz de suportar.
Talvez estes apontamentos sejam para mim qual sedativo que me
acalmem e me ajudem a sofrer <39).
• 23 de fevereiro — Só depois da uma da noite a cobra veio.
Com um surdo baque caiu no chão. Estava toda estendida à minha
frente; eu enganara-me quanto ao seu comprimento, pois mede um
pouco mais de 2 m. Tirei a medida pelo comprimento da parede junto
à qual ficara— aliás bastante quieta. Eu disse à pobre alma em forma
de serpente que farei tudo por ela, mas que ela não se aproxime
muito de mim, que por favor não faça isso. Pelas três da madrugada

(39) Sebastião Wieser, seu diretor espiritual, lhe havia dado o conselho de anotar o que
achasse conveniente, num diário. Ela não podia comunicar-se a respeito de suas experi­
ências místicas com seus familiares. Seu diretor achava que seria para ela de proveito
espiritual fazer os apontamentos que, hoje, possuímos. Sabemos que até Goethc procu­
rava libertar-se de suas idéias, lançando-as no papel.

lí^
entrou, junto ao meu leito, na parede, e passou para o quarto de W.,
que deu um grito estridente. Quando me informei de manhã com a
governanta como o menino passara a noite, ela disse: “Nem sei o que
a criança teve. Pelas três, ela acordou e deu um grito como se tivesse
medo de alguma coisa.” Sinto muito que o menino sofra porque se
encontra em minha companhia.
• 24 de fevereiro - Aquele pobre animal tem olhos chamejantes,
em que arde muita inquietação. É uma sensação muito esquisita rezar
com uma alma que não se percebe e que aceitou a forma que mais
lhe convém: um corpo de cobra. Muni-me da relíquia da Santa Cruz,
que me dá a sensação de uma certa proteção. A cobra havia-se
enroscado, e não sei se isso me acalmou. Em todo caso, não me deitei,
por precaução. Procurei evitar até os pensamentos de situações que
possam ocorrer. Proibi-a de entrar no quarto do pequeno; se ela não
me obedecesse, não mais poderia contar com minha ajuda. Exerço,
pois, sobre ela um certo poder, fato que me faz bem. Ela arrastou-se
ao corredor.
• 25 de fevereiro— Examinei-a bem. E de um cinzento-escuro,
com listras brancas. Acho totalmente impossível que a cobra seja
apenas um produto da minha fantasia e não tenha um corpo real. Os
que afirmam isso nunca passaram por situações semelhantes àquelas
que eu tenho de enfrentar. Toquei-a com a minha bengala, e ela se
esticou imediatamente. Foi terrível; fi-lo apenas para ter a prova do
que acabo de escrever.
• 26 de fevereiro — Depois de ter rezado com ela, achegou-se
a mim. Fiquei horrorizada. Ela parecia gostar da situação, mas eu
pulei na cadeira, onde fiquei em pé. Minhas perguntas não receberam
resposta.
• 2 de março— Meu orgulho foi castigado: não tenho poder sobre
ela. Quando lhe disse para ficar quieta, arrastou-se até perto de mim, e
silvou de uma forma que me deixou tremendamente apavorada.
• 3 de março — Foi um dia abominável. Vi a cobra pendurada
numa árvore, diante de minha mesa de trabalho. Saí do quarto, para
ver-me livre dela e fiquei algum tempo com meus familiares. Passada

166
uma hora, voltei. Ela estava no meu quarto. De dia, seu aspecto ainda
é pior, e eu saí correndo, mas ela, de um bote, passou pela porta atrás
de mim, e depois, de repente, desapareceu.
Durante a noite aconteceu o pior: ela passou pelo teto e foi
descendo, descendo e se aproximando... Mais não sei, pois fiquei
fulminada pelo pavor e perdi os sentidos.
• 4 de março — A cobra fala! Eu lhe disse: “Mostra-te enfim
do jeito que eras no mundo, pois já não te suporto mais.” — “É culpa
tua.” — “É porque estou fazendo por ti pouco sacrifício?” — “Sim.”
— “Minha força está chegando ao fim. O pavor que sinto de ti, me
consome.” — “Não estás totalmente pura.” — “É verdade, infeliz­
mente. Como sabes isso?” — “Em tomo de ti, a claridade não é
total.” — “Obrigada! Quero, pois, converter-me.” O que se deu em
seguida foi um horror. Ela enroscou-se e deu um bote contra mim.
Lembro-me de ainda ter dado um grito; aí ela sumiu. Mas durante o
dia todo, o susto permarieceu em todos os meus membros.
• 5 de março — Fui receber os santos sacramentos. Entrei em
casa e quando quis começar meu trabalho de costura, não consegui
levantá-lo da mesa; estava preso, não sabia por quê. Não pensei em
algo de sobrenatural, mas achei que alguém, por brincadeira, queria
mexer comigo. De repente, vi, numa pálida mão, uma aliança como
aquelas que as freiras costumam usar. Era essa mão que segurava
meu trabalho de costura. Aos poucos, aquela neblina começava a
mexer-se, mas era só a mão que tinha forma humana. Perguntei: “És
tu aquela cobra?”— “Sou.” — “E quem és?” — ‘Tu me conhecias
c me desprezavas.” — “Dize-me teu nome!” — ‘Tu me reconhece-
rás. Agora ajuda-me.” Rezei, pois, um pouco com ela. De súbito, eu
mesma fiquei como que envolvida em neblina, e ela disse baixinho:
“Tu odiavas minha mentira.” Não tenho idéia de quem possa ser essa
pessoa. No entanto, agora eu sou a alma redimida; a cobra já não
aparece. Sou tão grata ao Bom Deus que me libertou daquele horror.
• 6 de março — A pobre alma ficou comigo por muito tempo.
Que espetáculo! Um nevoeiro do qual saem duas mãos! Tudo tão
pacato! Cheguei até a adormecer na sua presença. Da parte dela não
havia reação alguma.

167
• 8 de março — A neblina se condensa tomando a forma de
uma mulher. Não posso fazer idéia de quem se possa tratar, e não
consigo lembrar-me de ter desprezado alguém.

A forma de cobra, imagem da vida

• 9 de março— Ficou comigo por longo tempo, e muito comigo


rezou. Quanta paz! Já não estou em companhia de um réptil hediondo,
e assim estou em condições de ajudá-la melhor.
• 10 de março— Ela é uma religiosa; j á dá para reconhecer o véu,
mas ainda não se vê o rosto. — “Dize-me enfim quem és.” —”Uma
alma sedenta.” — “Por que vieste em forma de cobra?” — “Não
estava em condições de mostrar-me de outra maneira.” — “Por que
apareceste de modo tão horrível?”— “Foi a imagem de minha vida.”
— “Foste religiosa?” — “Fui.” — “Por que não pedes ajuda às tuas
irmãs?”— “Estive com elas, mas não enxergam.”— “É verdade que
te conheci?” — ‘Tu desprezaste meu pecado.” E sumiu. Não sei
quem possa ser.
• 11 de março — De dia claro, o pároco W. esteve comigo; era
exatamente como quando vivo. Perguntei-lhe: “Como vai o sr.? Que
prazer poder vê-lo!”— “Purifiquei-me pelo sofrimento. Estou salvo.
Agora eu sei que as almas te podem procurar. Aproveita o carisma
que tens. Quem tudo dá, muito receberá.”
Essa aparição me alegra por dois motivos: Io) porque ele, que era
tão bom, está passando bem; 2o) porque ele não queria acreditar na
história da religiosa, com que começam estes apontamentos^40). Foi
este o terceiro caso em que almas, depois da morte, me aparecem; em
vida não acreditaram nessa possibilidade. F. S. e K. T. me procuraram
como agora o pároco W. A minha satisfação não vem do orgulho mas
da necessidade que sinto de saber que estou no caminho certo, pois
essas almas não precisam vir a mim. Muita coisa que escrevo parece

(40) Compare-se com a primeira visão.

168
talvez nascer do orgulho e por isso gostaria de omiti-lo. Contudo, se
eu não escrevesse essas coisas, minhas anotações pecariam contra
a veracidade.
• 17 de março — Em Munique, fui logo cumprimentada pela
religiosa; por conseguinte, adeus, minhas férias! Apareceram ainda
três sombras e um homem idoso.
• 19 de março— Ela ficou a noite toda comigo. Era de fato Maria
R ..., religiosa francesa de Pie. Morreu, faz cinco anos, em Marselha.
Perguntei-lhe: “Por que não te mostras em teu convento?” — “Estou
lá muitas vezes, mas não me enxergam.” — “Podes explicar-me
porque eu te vejo e elas, que são tão piedosas, não te percebem?” —
“O espírito delas ainda está preso; tu consegues libertar-te.” —
“Libertar-me de quê?” — “De ti mesma.” — “Por que vieste em
forma de cobra?” — “Era a figura de minha vida: juramentos rom­
pidos, pois tudo em meu comportamento era mentira e fingimento.”
— “E assim mesmo te salvaste para a eternidade?” — “Antes de
morrer, recebi dignamente os santos sacramentos.” — “O que
posso fazer ainda por ti?” — “Rezar comigo e te flagelar; então virá
para mim a claridade.”
• 25 de março— Ela tem vindo toda noite, mas sem responder
às minhas perguntas. Está ficando sempre mais nítida, igual a seu
aspecto em vida, apenas mais triste.
• 30 de março— Comecei a conversar com ela: “Queres que eu
escreva a teu respeito para Pie?” — “Não, elas rezam por mim.” —
“Qual é teu sofrimento maior?” — “O anseio insatisfeito.” —
“Coitada! Sinto muito que tenha sido contigo tão pouco amável;
quero repará-lo agora mostrando-te meu amor.” — ‘Tu não me
julgaste pela minha aparência, mas conforme eu era de verdade.” —
“Já que tenho sido tão severa para contigo, trata-me também a mim
como o mereço e dize-me o que não te agrada em mim.” — ‘Tu
ainda não entendeste qual a tua vocação.” — “E qual é?” — “A mi­
sericórdia.” — “É verdade, sou tão fraca e egoísta; uma criatura tão
miserável. Fala mais um pouco!” — “Reflete, entra no teu interior, e

Kt<)
verás.” — “Não entendo.” — “Com tua vontade estarás em condi­
ções de penetrar a neblina.” — “Não quero senão aquilo que quer o
Bom Deus. Como saberei que teu conselho é bom?” — “Vês o teu
Anjo da Guarda?” — “Não. E tu o vês?” — “Sim, ele está ao
teu lado.” Isso me alegra muito. Mas eu nem gostaria de vê-lo. Não
me convém coisa sobrenatural em demasia, pois aumenta sempre
mais o que devo ver. • Em A... vi três mulheres, e quatro vultos
nebulosos. O jejum me liberta muito, embora seja um sacrifício
miserável da minha parte. Continuo sendo muito covarde.

Um sinal

• 21 de março — Ao entrar na igreja em A ..., duas senhoras


desconhecidas vieram ao meu encontro. — “Quem sois vós?”,
perguntei-lhes. — “As esquecidas!” Sumiram. Estava sentada no
meu quarto. De supetão, ao meu redor, flutuavam nevoeiros, mas pela
janela entrava o sol. Disse: “Se vós sois Almas do Purgatório, dai-me
um sinal.” No mesmo instante caiu um quadro da parede e os
nevoeiros sumiram. Entrei no jardim. Veio ao meu encontro um
cavaleiro, de trajes modernos, montado num alazão, e antes de passar
perto de mim mudou de rumo, entrando no mato. Um cachorro, que
estava perto de mim, soltou latidos. Para um único dia, não foi pouco!
• Io de abril — Eu me achava sozinha no vagão. Entrou a
religiosa.— “Então! Encontras-me em qualquer lugar que seja?” —
“Estou sempre contigo!” — “E como se explica que não te vejo
constantemente?” — “É porque teu fluido muda.” — “O que vem a
ser isso?” — ‘Tu não o entendes.” — “Quantas vezes ainda me
visitarás?” — “Até cantares aleluia ."(4|)— “Então até depois de
amanhã?” — “Sim.” — “Por favor, fala-me um pouco do Além.” —

(41) Todos os pronunciamentos religiosos “inteligentes” se fazem de modo humano. O


intelecto compreende apenas o mundo de que se ocupa, e nada mais. A religiosa aceita o
modo de sent irda al ma, como Claudel o formulou na hi stória do prefácio. A reiigiosa canta
o que a princesa não pode entender enquanto viver neste mundo.

170
‘Tunãoentenderiasabsolutamente nada,éainfinidadedaimensidão.”
Ela começou a cantar. Não compreendi nada. Parece que as palavras
eram em latim. E foi assim que chegamos a Munique.
Na sexta-feira santa nada vi, nada escutei. No sábado de Aleluia
vi apenas duas sombras. O domingo de Páscoa foi belo demais.
Nunca o esquecerei. Ao Vidi aquam, ela esteve diante de mim, nos
degraus do altar.
Meu Deus, que brilho, que brilho! E pensar que há um mês
apenas, sua alma aparecia em forma de cobra! — Senhor, agradeço-
vos! Fiz o propósito de suportar tudo pacientemente e não mais
escrever sobre essas coisas. Temo que surja em minhas anotações
algo de presunção. — Sr. Padre, entrego tudo, seja o que for, ao
critério de Vossa Reverendíssima.

Um conhecido fala do abismo

• 24 de abril— Meu propósito de não mais escrever sobre visitas


do Além, foi de curta duração. Não dá; é como se eu perdesse um
apoio necessário se deixasse de fazer estas anotações. Há quinze dias
que me procura um homem em estado miserável. A situação é difícil
de suportar. Não o conheço.
• 27 de abril — Ele está muito agitado e chora.
• 30 de abril — Veio de dia, correndo ao meu quarto como se
estivesse sepdo perseguido. Tinha cabeça e mãos ensangüentados.
Perguntei-lhe: “Como posso ajudar-te?” — “Dá-me tua mão.” Eno­
jada dei-lhe a mão, convencida de que ela também ficaria ensangüen­
tada. Nada disso aconteceu. Senti apenas, ao apertá-la, seu grande
calor. Perguntei-lhe: “Como pode este gesto ajudar-te?” — ‘Tu me
dás refrigério.”— “Quem és?”— “Deves conhecer-me.”— “Não te
conheço.” — “Estou enterrado no abismo.” — ‘Tua alma ou teu
corpo?” — “Meu invólucro, meu corpo.” — “Como te chamas?” —
”Aloísio.” Não tenho idéia de quem se trata.
• Iode maio— Voltou, e de dia. Vi nitidamente que sua cabeça ha­
via sido esmagada.— “Por que estás todo ensangüentado?”— “Porque

171
ninguém enxuga o sangue.” — “Queres que eu enxugue a tua
cabeça?” — “Não entendes o que estou dizendo.” — “Falas em
figuras. O sangue significa dor?” — “Sim; estou esquecido no
abismo.” E saiu chorando.
• 3 de maio— Quando entrei no quarto, segurou ele, por dentro,
o trinco. É interessante; com tais coisinhas me assusto mais que com
a própria aparição. Disse-lhe:— “Escuta, por que mencionas sempre
o abismo?” — “Porque me encontro nele.” — “Referes-te a um
castigo?” — “Não.” — “Não me podes dizer um pouco mais?” —
“Não.” De repente, deu um salto como se quisesse agredir-me. Disse:
“Fica quieto e dize o que pretendes.” — “Tu deves conhecer-me!”
Mas não o conheço. Pronto! Que posso fazer!
• 3 e 4 de maio — Esteve comigo várias vezes, mas sem falar.
• 5 de maio— Veio-me a idéia de que ele seja Aloísio Z...; este
esteve com..., em 1879. Foi um grande alpinista e morreu nos Alpes
ao escalar o Tõdi (3 614 m). Pena, que justamente hoje não me veio
visitar.
• 6 de maio — De fato, é como eu pensava. Perguntei-lhe: “Es
tu o Aloísio Z..., que morreu nos Alpes?” — ‘Tu me libertas!” —
“Como pode isso ajudar-te, esse simples fato de eu te conhecer?” —
“Então me ajudarás mais!” — “Não, isso não faz diferença. Faço o
que posso. Encontram-se ainda os teus ossos no abismo?” — ”Sim.”
— “Mas isso não prejudica tua alma! Ela está salva.” — “Sim, está
Mas ainda no abismo. Das profundezas clamo a vós, Senhor.” —
‘Tens ainda muita penitência para fazer?” — “Toda a minha vida
carecia de sentido. Quanto sou pobre! Reza comigo!” Assim o fiz, e
longamente. Nem eu entendo como sou capaz de rezar desse jeito.
Deixo de ser totalmente o “eu” dissipado. Ele acalmou-se de todo e
me olhava com muita gratidão. Perguntei-lhe: “Sentes algum alívio?”
— “Sinto.” — “Por que não rezas tu também?” — “A alma sente-se

(42) Esporte e turismo não são a finalidade e o sentido da vida. Antes, esvaziam e
empobrecem a alma. Poucos se aproveitam das festas do Senhor, pois se entregam às
futilidades do dia-a-dia e vivem desligados do Criador.

172
desalentada quando chega a conhecer a Majestade Divina.” — “Não
podes descrevê-la melhor para mim?” — “Não. O anseio devorador
de revê-la é a nossa tortura.” — “Estás junto com outras almas?” —
“Estou; contudo, cada alma está só.” — “E como me encontraste?”
—- “Tu estavas no meu caminho.” — “De que modo posso ajudar-te
melhor?” — “Quando te mortificas e se não cometeres pecado.” —
“Exiges muito de mim. Posso e quero mortificar-me e gostaria de
viver sem cometer pecado, mas nãooconsigo. Infelizmente continuo
vivendo no corpo e estou sendo exposta a tantas situações perigosas.”
— ■“Quanto mais pura te tornares, tanto mais nos poderás ajudar.”—
“Como percebes isso?”— “Nãosofremosemtuapresença.”— “Mas
então, que procurem as pessoas perfeitas!” — “É-nos indicado o
caminho que devemos tomar.”— “De que esfera podem as almas vir
a mim?” — “Das inferiores.” — “E depois?” — Ele não respondeu,
mas demorou ainda comigo por muito tempo.
♦ 7 de maio — Ele veio quando estávamos tomando o café da
manhã e foi andando entre mim e...; era quase impossível que eu me
comportasse normalmente. Consegui, enfim, retirar-me; quase no
mesmo instante, estava ele comigo. Disse-lhe: “Por favor, não me
apareças quando me encontro com outras pessoas.” — “Não vejo
outros, só enxergo a ti.” — “Ainda conheces os quartos em que
estiveste tantas vezes?” — “Sim.” — Achegou-se a mim e colocou
as mãos nos meus ombros. Quando ele ainda vivia, já me era muito
antipático; agora, porém, minha antipatia para com ele era ainda
maior. Por isso, com toda a energia falei: “Deixa-me em paz. Não
quero que me toques.” — “Agora estás muito pura.” — “Percebes
que tomei a santa comunhão?” — “É isso que me atrai.” Por longo
tempo rezei com ele. Via-se que ficara mais feliz. Todas estas
anotações, eu as fiz a contragosto.
• 9 de maio — A. Z. ficou muito tempo comigo; infelizmente,
estava muito encostadiço e soluçava demais. Perguntei-lhe: “Por que
estás hoje tão triste? Seu estado não está melhor?”— “É que vejo tudo
com tanta clareza e nitidez.”— “Mas o que estás vendo?”— “Minha
vida perdida!”— “Adianta alguma coisa se agora te arrependes'?”
“E tarde demais!” — “Tiveste estes sentimentos logo depois clu

IM
morte?” — “Não.” — “Podes dizer-me como consegues mostrar-te
do mesmo jeito como eras em vida?” — “Pela vontade.”
• 10 de maio — Está chegando algo de novo; tenho medo.
• 13 de maio — Z... aparece todo nervoso. “Quando ficarás
calmo?”— ‘Tu estás te dividindo.”— “Mas entãojá estás perceben­
do que uma outra alma me procura?” — “Sim.” — “Não podes
expulsá-la?” — “Não.” — “O que queres?” — “Dá-me tudo; então
me libertas.” — “Está bem; não quero nem pensar na alma que se
anuncia.” Sumiu. Não é tão fácil cumprir o que prometi. Quero tentar
suprimir os pensamentos que me torturam. Não posso satisfazer duas
almas ao mesmo tempo. Tenho algo a confessar. Senti-me tão infeliz
e tão só, que chorei qual criancinha. Continuo tendo pouca vontade
para fazer grandes sacrifícios.
• 15 de maio — Cumprimentei-o: “Estás satisfeito?” — “Sim,
finalmente: a paz!” — “Ela te sobrevêm?”— “Sim, vou ao encontro
do brilho da luz.” Neste dia ele veio três vezes, cada vez mais alegre.
Parece que foi a despedida.
• 16 de maio— Acordei com um barulhão tremendo; havia um
verdadeiro furacão no meu quarto. Levantei-me, lá fora nem sombra
de aragem. De súbito, rolou pelo meu quarto uma bem grande bola
ou um informe barril, sei lá; estava assustada demais para verificar.
Em seguida me chamaram pelo meu nome; escutei-o claramente.
Fiquei muito confusa. Depois, de supetão, tudo calmo, e até consegui
cair numa sonequinha.
• 17 de maio— Algo de parecido como no dia anterior, mas não
com tamanha violência. • No jardim, duas senhoras vieram ao meu
encontro. De repente, desapareceram.

Eleonora

• 25 de maio— Em H... ,(43>por ocasião de uma visita. Até aqui,


distante de Waal um dia de viagem, ela me encontrou. Está se

(43) H. permaneceu um dia inteiro afastado da casa da vidente.

174
transformando em figura humana, mas hedionda; lembra a cabeça da
personagem mitológica chamada Medusa.
• 27 de maio — Eu estava com...; de repente, alguém me
pega, por trás, pelos ombros, e me sacode com força. As pessoas
com quem estava, viram o que se passava comigo, e alguém me
perguntou: “Estás com frio?” De fato, eu estava quase suando
frio, de medo. Aquela alma aparecera em forma de mulher
repelente e hedionda.
• 29 de maio — No mato, vindo ao meu encontro, um vulto
pairando no ar.
• 2 de junho — Aquele monstro de mulher esteve comigo
constantemente. Mas nada de especial a mencionar. • O vulto,
pairando no ar, que eu havia visto no sábado, aproximou-se de mim;
estava como que envolto numa clara nuvem. Sobreveio-me uma
sensação estranha, não de medo, antes de paz e felicidade. Ao mesmo
tempo, eu me vi a mim mesma, e tudo parecia mau em mim. Vi toda
a minha miséria numa luz totalmente nova. Acho que pela primeira
vez senti um autêntico arrependimento. Eu me achava no mato, mas
não via mais árvores; estava como que cercada por alva nuvem e
liberta do corpo; por isso sou incapaz de descrever o que se passava
comigo. O que vem a ser aquilo que me envolve e me faz tão feliz?
Tenho, entretanto, plena certeza de que isso não tem nada a ver com
espíritos. Sinto horror de tudo que cheira a atitudes exaltadas. Ainda
assim, receio ser eu mesma exaltada. Eu estava com tanto anseio pela
santa comunhão; aqui há pouca oportunidade de recebê-la. Pensando
nisso, sobreveio-me aquele estado mencionado.
Não sei com quem eu poderia desabafar-me senão com V.
Revma. Talvez me fosse possível fechar-me contra essa invasão do
invisível, se V. Revma. assim julgar melhor. Mas para mim seria um
sacrifício, pois sinto-me indizivelmente feliz quando me invade
aquela força estranha. Mas o que é aquilo? Poderia ser um estratage­
ma do demônio que quer apoderar-se de mim? Por que Deus quercri a
dar-me graças que ele costuma dar só aos bons? Pois eu não sou nada,
não tenho nem uma única virtude, apenas arrasto comigo um saco

I /'.
cheio de bons propósitos. É isso que me perturba. Pois é! Agora, V.
Revma. está a par de tudo. Lançar esses problemas no papel é um
calmante.
• 11 de junho— Aquela mulher chega quase toda noite. Mas eu
não sei o que fazer com ela. Apenas a oração parece agradar-lhe.
• 17 de junho — Enfim! Ela ciciou seu nome, Eleonora, e é
de Passau.
• 22 de junho — Quase que ela me desconcertou antes da santa
comunhão. Sacudiu meu braço e ficou, em tamanho gigantesco, ao
meu lado. Pensei que todos a vissem. Será que ela sabe ler os
pensamentos? Pois mal veio-me a idéia de presenteá-la com a santa
comunhão, ela desapareceu. Durante a noite, pousou a cabeça na
minha mão; senti até suas sobrancelhas. Apanhei água benta e
despejei nela. Ela disse: ‘Tu és misericordiosa.” — “Foi tão difícil
ajudar-te? pois apareceste tantas vezes!” — “Se soubesses quanto
pequei!” — “Nem quero sabê-lo. O que me interessa é ajudar-te.”
— “Escreve para Passau que...” Impossível entender o que diz.
Estou muito triste, mas era apenas um sussurro. Gostaria de saber o
que ela quer.
• 24 de junho — “Dize-me o que tenho de escrever a Passau!”
— “Que a criança assassinada foi minha.” — “A quem o escreve­
rei?” — “Gr...” — “Quando mataste a criança?” — “No verão de
1823.” — “Mas Gr... não estará mais viva.” — “Eu a caluniei.” —
“Quero ver o que se possa fazer, mas talvez tu já sentirás alívio por
tê-lo dito agora.” — “Sou infeliz, infeliz.” E sumiu. Dois dias de
descanso total. Que bom que é poder dormir!
• 27 de junho — Apareceu algo de novo, com muito barulho e
gemidos; irreconhecível; semelhante a uma grande caixa. Eleonora
veio e me deu um beijo. Não gosto dessas coisas. Rezei longamente
com ela e, aos poucos, parecia ficar mais contente. Perguntei-lhe:
“Posso fazer por ti mais alguma coisa?” — “Não me rejeitar!” —
“Mas não te rejeito.” — “Tu me evitas, quando quero tocar em ti.”
— “Sim, arrepio-me e nisso não posso ajudar-te.” — “Deixa-me.”
Ela encostou-se a mim. Eu o suportei, pois é possível que isso lhe
aproveite se ofereço por ela esse sacrifício.

176
• 29 de junho — Outra vez, aquele novo horror. Parece ser
alguémquecarregaumfardo, terrivelmente pesado. E voltou Eleonora.
Disse-lhe: “Vem, dá-me tua mão.” Rindo, veio a mim. “Estás rindo
porque vais indo melhor?” — “Superei.” — “Superaste o quê?” —
“O desamparo.” — “E por quê?” — “Porque tu dás o que preciso.”
— “Justamente hoje dei bem pouco, já que me sobrou pouco tempo
para rezar por ti.” — “Tua vontade foi sacrificada em meu proveito.”
— “Se tudo sabes, então dize-me o que não te agrada em mim.” —
“Ainda hesitas em doar-te; não deves guardar nada para ti.” Nesse
instante, nova alma apareceu, e Eleonora sumiu. Oh, se eu alcançasse
enfim a generosidade que as almas me aconselham, mas estou
distante ainda da perfeição.
• 30 de junho — Eleonora veio ao meu encontro na escadaria,
sorridente, mostrando com a mão a vastidão lá fora. Talvez tenha
sido o desfecho de suas aparições.
• 4 de julho — Ela continua vindo. Não fala mais e se mostra
satisfeita e contente. O homem que carrega o fardo pesado, mexe com
os nervos da gente. Está muito inquieto e nervoso. Já se distinguem
seu rosto e sua barba longa, cinzenta. Não o conheço.
• 7 de julho — De dia, grande barulheira no meu quarto. A
porta se abriu de repente; também o baú, mas nada vi. Isso se repetiu
quatro vezes.
• 9 de julho — A realidade completou meu sonho: eu sonhava
que um homern, carregando um grande fardo, me procurava, e que
depositara sua carga em frente ao meu leito. Aí eu acordei e o homem
estava à minha frente e deixou cair ao chão algo escuro. Não vi o que
era. Aquilo tudo me pareceu tão estranho que me levantei para me
convencer se estava de fato acordada. Anoto isso porque nunca me
aconteceu nada parecido.
Parece que Eleonora não vem mais. Ouço muito barulho e
chamadas, não porém meu nome, apenas escuto: “Ouve-nos!Ajuda-
nos!” e, em seguida, um grito lancinante.
• 11 de julho — Tenho-me examinado seriamente, perguntan­
do-me se as coisas a que me refiro concordam com a verdade, e posso

177
responder com um sincero sim. Tenho o costume de reler
reiteradamente meus apontamentos antes de entregá-los e, muitas
vezes, jogo ao lixo o quejá havia escrito, com medo de ter exagerado.
Com aquele assunto particular que se refere a mim, deixo-me levar
talvez por um certo sentimentalismo.. S44^

Nicolau

• 20 de julho — Aquela coisa indefinível e a caixa escura se


transformaram num homem idoso; veste trajes de séculos passados.
Disse-lhe: “Demoraste muito para te mostrares em forma humana.”
— “É culpa tua.” — “Deixei de ajudar-te devidamente nos últimos
tempos?” — ‘Tua força está diminuindo.” — “Estou sentindo isso,
mas não tenho forças para ajudar a todos como gostaria.” — “Deves
libertar-te.” — “Devo ter também amor ao próximo; não posso viver
unicamente para as Almas do Purgatório.” — “Deves rezar mais!”
Ele desapareceu para voltar depois de duas horas. Eu havia dormido,
sim senhor! Estou cansadíssima, já não agüento. Durante o dia todo
não tenho nenhum momento para mim mesma. Disse-lhe: “Escuta,
vamos agora rezar juntos se quiseres.” Parecia gostar da proposta e
aproximou-se de mim. É idoso, está trajando um gibão castanho e tem
corrente de ouro. Perguntei: “Quem és tu?” — “Nicolau.” — “Por
que estás sem paz?” — “Fui um escorchador dos pobres. Eles me
amaldiçoaram.” — “Viveste aqui?” — “Não.” — “Onde?” — “Em
Mogúncia (= Mainz).” — “És parente meu?” — “Não.” — “Como
posso ajudar-te?” — “Por sacrifícios.” — “Que entendes por essa
palavra?”— “Oferece tudo quanto é duro a ti, por mim.”— “A minha
oração deve sempre estar acompanhada de sacrifício para teres

(44) Trata-se de aparições e visões que não têm nada a ver com as Almas do Purgatório.
A vidente entrelaçou na descrição uma autocrítica — endereçada unicamente ao diretor
espiritual — e que é qual confissão por carta. Ela escreveu: “Devo preparar-me para a
morte e devo fazer enfim um esforço sério...” e depois vem o texto que lembra uma
confissão. (O pároco Wieser.)

178
proveito dela?” — “Sim.” Ele ficou muito tempo comigo.145)
• 22 de julho— Fui a Rottweil; Nicolau já estava lá. Exclamei:
“Como consegues encontrar-me tão depressa?” — “Eu nem te
deixo.”— “E por que não te enxergo constantemente?”— “É porque
estás dividida.” — “Outras almas me têm dito o mesmo. Ajuda-me
mais um pouco!”— “Estás liberta, mas não totalmente.”— “Por que
não procuras as pessoas que já se libertaram plenamente?” — “Não
as encontro.”
• 23 de julho— Que noite terrível!No meu quarto nunca houve
tantas almas como as que lá se achavam na noite passada. Elas me
apertavam e gemiam. Houve, porém, uma diferença quanto a outras
aparições: eram almas sem forma material. Tudo tão sinistro, que, de
medo, chorei. Elas flutuaram em torno de mim durante umas três
horas. Ao amanhecer chegou Nicolau. Perguntei-lhe: “Sabes quem
esteve comigo?”— “Não, tu me esqueceste.”— “Não te esqueci. No
entanto, tive que dar também ajuda às outras almas. Não me deveis
torturar tanto!” — “Obedecemos a uma vontade superior.”
Dois dias de descanso total — como faz bem!
• 26 de julho— Quatro vultos, e depois Nicolau. Perguntei-lhe:
“Donde vens que durante tanto tempo não achaste ninguém que te
ajudasse?”— “Eu me achava ainda na escuridão.”— “E como é que
te dirigiste justamente a mim?” — “O caminho nos é indicado.” —
“Mas pelo sacrifício da missa recebes ajuda muito mais eficiente, pois
nela se reza sempre pelas almas!”— “Os castigos são diferentes; nem
todos recebem os frutos; Deus é justo.”
• 28 de julho — De modo quase insuportável fui atormentada
por muitos vultos que me cercavam. Aonde quer que me dirigisse,
eles me acompanhavam. Receava ter enlouquecido. O pior: a pessoa
com quem estivesse não devia perceber a minha situação. Eu estava

(45) A vida religiosa afirma acertadamente que a oração deve estar unida ao sacrifício, c
nos adverte que não devemos rezar por egoísmo. Freqüentemente, o sentimentalismo
religioso leva os devotos por caminhos errados e embalam-nos em falsa segurança. A CYu /.
de Cristo nos ensina a verdadeira sabedoria.

I'/•>
Retrato de Eugênia von der Leyen: pintura feita a óleo por John Rieger;
Galeria Hecht, Tenfen bei St. Galhen. Encarregado pela editora, o pintor
americano John Riegerpintou o retrato conforme umafoto de Eugênia. Ele havia
lido as páginas que iam ser impressas deste diário eficara tão impressionado que,
apesar de ter machucado a mão, pintou, como num arroubo extático, durante a
noite toda, de 22 a 23 de março de 1979, até a imagem de Eugênia von der Leyen
completar-se, na tela, em toda a sua autenticidade.

180
Princesa Ludovica Borghese, a avó do último príncipe herdeiro Wolfram
von der Leyen e da princesa Ludovica von der Leyen.

ISI
Às irmãs espirituais de Eugênia: Maria Ana Lindmayr (em rima, <)
esquerda) e a bem-aventurada Crescência Hõss de Kaufbeuren (em cima, a
direita). Embaixo: o encontro delas em Munique.

IS l
meio desesperada quando “o Além” me arrebatou, e me deu uma
paz total, e não via e não escutava mais nada do mundo material.
Resolvi não mais tocar no assunto...
• 29 de julho — Nicolau colocou a mão na minha cabeça e me
fitou tão sorridente que eu disse: “Estás contente; podes ir ao Bom
Deus?” — “Teu sofrimento me libertou.” — “Percebeste quanto,
nestes dias, aturei? Mas eu pensava que com isso não te ajudaria,
visto que não o aceitei com alegria.”— “Tua vontade estava lesada.”
— “Não vens mais?” — “Não.” — “Onde estás enterrado?” — “No
rio Neckar.” — “Mas viveste em Mogúncia?” — “Tombei na
guerra.” Novamente se aproximou e pôs a mão na minha cabeça.
Não foi nada ruim — ou já estarei acostumada a essas situações e
não reajo mais?
• 4 de agosto — Nada de novo. Há vultos, porém não me
atormentam. Estou percebendo que agora as almas não se conten­
tam tão facilmente como tempos atrás. Só posso explicá-lo pelo fato
de ter enfraquecido minha capacidade de prestar ajuda.

ASra. W ...

• 7 de agosto— Costuma vir agora, soluçando, um vulto, cujos


movimentos exprimem uma grande dor.
• 11 de agosto — É uma senhora. Sua inquietação cresce mais
e mais.
Dou graças a Deus porque posso continuar a tomar apontamen­
tos e falar “do Além”...
• 15 de agosto — Aquela pobre criatura tristonha é a Sra. D ...
W ..., (46>que aparece tal qual em vida; não consigo consolá-la.
• 18 de agosto— É sempre a mesma história: ela não fala, pois
não pode falar. Jogou-se no meu leito, chorando amargamente.

(46) O esposo de D. W. já havia aparecido à princesa anteriormente.

184
• 20 de agosto — Sete vezes esteve comigo; não me ame­
dronta, apenas me causa tristeza. (4?)
• 25 de fevereiro de 1927 — Volto, pois, a lançar minhas
anotações; todos aqueles bobos escrúpulos se foram. D. W ... veio
procurar-me 37 vezes, nunca infundindo terror; estava sempre aco­
metida de uma profunda tristeza. Tem falado pouco. Perguntei-lhe:
— “Por que tens que sofrer tanto? Sempre foste tão boa!” — “O
julgamento de Deus é diferente do modo de pensar dos homens;
comigo, tudo era por fora.” — “Mas sofreste! Tantos desgostos,
tantas preocupações!”— “Não sofri por amor a Deus.” Foram inúteis
meus esforços para levá-la a falar um pouco mais e, de repente, ela
deixou de aparecer. <48)

Betty

Agora vem a K... Betty, que esteve tanto tempo no hospital.


Não sabia que ela havia falecido; vim a sabê-lo só mais tarde. Ela
chora e geme terrivelmente. Depois de ter-me procurado muitas
vezes, levei-a, enfim, a falar. Perguntei-lhe: “De onde vens?”— “Da
neblina mais cerrada.” — “E como achaste o caminho até aqui?” —
“A claridade me atraiu.”— “Como posso ajudar-te?” — “Mortifica-
te!”— “Estou admirada que medizes isso. Falei contigo muitas vezes
sobre isso e tu senjpre dizias que tais normas nada valiam.” — “Vejo
agora tudo de maneira diferente.” — “Sofres muito?” — “O anseio
por Deus me devora.” Um choro lancinante a sacudia. E desapareceu.
Após algumas noites, ela voltou. Perguntei-lhe: “Ainda não tens
vontade própria?” — “Não.” — “Como vieste justamente a mim?”
— “Seguimos uma direção superior; a vontade própria morre com o

(47) Tem ocorrido aos próprios santos o temor de ser enganados por espíritos maus. Um
padre aconselhara a princesa a não anotar mais o que lhe acontecia. Perturbada por alguns
escrúpulos, deixara então de continuaro diário. Por isso, essa grande lacuna nas anotações.

(48) Tanto a princesa como também o pároco Wieser conheciam bem a sra. W.

185
corpo.” — “Podes contar-me um pouco do Além?” — “Não; deves
crer.”— “O que devo crer?” — “O que diz a Igreja.”— “Posso fazer
alguma coisa para que as almas não mais me procurem?” — “Não;
deves permitir que venham.” Ela visitou-me ainda quatro vezes sem
me falar; agora não vem mais.
Algo mudou comigo: já não tenho medo, atemorizo-me menos
que antigamente, quando alguma coisa aparecia. A gente pode
acostumar-se a essas coisas que se dão comigo. Aumenta apenas a
terrível fadiga, no entanto, não se trata de cansaço corporal como
acontece depois de esforço físico, mas sim de fadiga espiritual, que
atinge apropria vontade. O que outrora não exigia esforço, atualmen­
te eu o faço lutando comigo mesma. Quero querer e — às vezes —
não o consigo.
Passei oito dias em D... Nesta semana vi cinco vultos diferentes,
dois até dançaram juntos. Como já acontecera anteriormente, um
menino viu a aparição. Eu estava brincando com ele. De repente,
apareceu à nossa frente uma senhora. O menino riu*49)e disse: “Uma
nova titia!” Realmente, ela não nos intimidava.

N ..., o jardineiro

Em G ... encontrei um jardineiro, falecido há muito tempo.


Aproximou-se devagarinho e quando estava na minha frente, acenou
acabeça para me cumprimentar. Perguntei: “ÉstuN..., ojardineiro?”
— “Sou, sim.” — “Por que nunca te vi?” — “Eu estava ligado.” —
“Como ligado?” — “Por ordem. Eu não tive permissão de vir.” —
“Fala mais um pouco do Além.” — “Como estás ainda sujeita a
maneiras humanas!” Já diversas vezes tive que ouvir tal repreensão.
Ao abrir uma porta, tenho, freqüentemente, a sensação de me
encontrar com alguém; algo passa ao meu lado e às vezes escuto meu
nome, pronunciado por uma pobre alma.

(49) As palavras de Cristo: “Se não vos tomardes como as crianças...” não encontram
explicação nos tempos atuais. Paul Claudel parece ter-nos dado a melhor interpretação na
sua história de animus e anima. Veja as observações no Prólogo.

186
No jardim foram derrubadas árvores. De repente, o jardineiro
N ... estava no meio dos homens, mexendo-se também. Perguntei à
companheira ao meu lado para ver se ela enxergava o jardineiro: —
“Quantos homens estão trabalhando ali?” Infelizmente ela só via
pessoas vivas e não aquele jardineiro vindo do Além. • Vi N ... mais
onze vezes, mas não me falou.
É isso! Para que conversar ainda com as Almas do Purgatório!
É sempre o mesmo assunto, e nem sei o que convém perguntar.
Durante algum tempo fingi não perceber a presença delas. Mas
então elas se tomavam violentas, torturavam-me, dando-me empur­
rões e socos; beliscavam-me, batiam-me. Minha atitude doravante
será a de nada mais perguntar, nem falar com elas, mas rezar.

Cecília

• 9 de abril — Sete vultos estão flutuando em tomo de mim; só


posso distinguir a forma de uma mulher. A situação não me causa
medo, mas também não me permite dormir sossegadamente.
• 12 de abril — A mulher chama-se Cecília. Ela tem caluniado;
perguntei-lhe: — “Quem mais está contigo?” — “Seis almas.” —
“Por que posso ver apenas a ti?” — “Estou contigo já há alguns
meses; tu cuidavas de outras almas.” — “Também agora há outras
almas a cuidar.” — “Primeiro é a minha vez.” — “Por quê?” — Não
recebi resposta.
• 14 de abril — Fixando melhor minha nova visita, vi sua boca
cheia de abscessos. Além disso, todo o seu processo de purificação
não é nada bonito para ver. Interroguei-a: “Quando estás comigo e
eu rezo por ti, percebes isso imediatamente?” — “Percebo, sim, pois
estou sempre contigo.” — “Mas então me explica por que não te
enxergo sempre.” — “E porque não o suportarias.”
• 16 de abril — Os sete vultos me apertaram qual muralha
viva, que se fecha mais e mais em torno de mim. Exclamei: “Deixai-
me em paz! Não me atormenteis.” — “Queremos ajudai-lc.”

1Hl
— “Não percebeis que tenho preocupações?” — “Sim.” — “Po­
deis rezar em minhas intenções?” — “Podemos, é só por nós mes­
mos que não podemos rezar.” — “Como percebeis minhas apre­
ensões?” — “Estás dividida.” — “Mas também quando não estou
preocupada, nem sempre penso em vós.” — “Tua força nos per­
tence e agora dás essa energia a outras pessoas.”
• 17 de abril — Logo que ela apareceu, aspergi-a com a água
da noite santa de Páscoa. Ela ficou radiante. Exclamei: “Esta água
querida é de maior proveito para ti do que tudo quanto eu faço.”
— “Só tu me presenteias com ela. Essa água tem poder para
curar-nos.”
Um dos seis vultos começa a adquirir realce; não o conheço;
sua fisionomia manifesta pungente tristeza. De dia, vejo muitas almas
em forma de sombras; talvez sejam os cinco vultos que ainda não se
deram a conhecer. Vez por outra recebo bafos frios no rosto, mas eu
dou graças a Deus que não mais apareçam almas em forma de
animais.
• 23 de abril — Cecília está com aparência melhor. Interpelei-
a: “Mudaste muito; estás melhor?” — “A neblina se foi; adoro meu
Deus.” Sua mão roçou meu rosto, e ela desapareceu.

A amiga esperando a recompensa

Visitou-me a alma de umaboa amiga, Gr... deM.. .,falecidaem


janeiro. Reconheci-a imediatamente. “Que cara feliz que mostras!
Onde estás?” — “No mais belo salão!” E sumiu. Esse seu jeito de
falar, francamente, não me agradou. Usar um termo tão mundano!
Três dias depois, ela voltou. Apostrofei-a: “Por que falaste dum
modo tão mundano em salão?”— “Para que me possas entender, falei
de modo humano.” — “Estás no céu?” — “Não; estou esperando
minha recompensa.” — “Recompensa? De quê? Dize-mo, para que
eu fique como tu.” — “Cumprimento do dever e espírito de sacrifí­
cio.” — “Sabes que teu esposo está sentindo falta de ti?” — “Nós
vemos isso de modo diferente. Tudo vai dar certo.” — “Por favor,

188
dize-me o que vem a ser o lugar de expectativa.” — “É o último
lugar do anseio.” — “Por que vieste a mim, se já não precisas de
minha oração?” — “Para te alegrar. Eu sabia o que se passava
contigo.” — “Vês ainda meu corpo ou minha alma?” — ‘Tua alma.
Nós somos os sem-corpos.” — “Mas eu te vejo tal qual eras. Dize-
me como se dá isso.” — “É porque ainda não estás em condições
de ver a alma.” — “Pode-se ver então uma alma?” — “Existe uma
luz que não luza?”— “Dize-me o que há de mau em mim.”— “Ainda
gostas de ser querida pelas pessoas; deves ficar totalmente liberta.” E
desapareceu. Que bom que é poder falar com uma alma dessa
maneira! Oh, se fosse plenamente livre e vivesse unicamente para
Deus! Bem sei o que eu deveria fazer, mas...

Uma impressão indescritível

Dois homens estão comigo muitas vezes; põem-se à frente dos


outros; cada um quer ser o primeiro. Não os conheço. Estão muito
tristes. Pergunto-lhes: “Quem sois vós?” — “Os esquecidos.” —
“Ninguém fica esquecido, pois na santa missa, por todos se reza.”
Um deles aproxima-se de mim e sussurra-me algo ao ouvido. Não
entendi bem o que disse; talvez uma das palavras fosse “mil”. Em
seguida vi fogo, e eles sumiram.
Eu estava deitada e, de repente, minha cama estava sendo
levantada e, com estrondo, caiu no chão. Não podia acender a luz, e
algo me estrangulava de tal modo que eu pensei morrer asfixiada.
Senti um pavor tremendo, mas não encontrei nada de especial. Sofri
isso sete vezes e, em seguida, vi uma mulher de aparência hedionda.
— “Foste tu que me torturaste? Por quê?” — “Porque te odeio.”(5°)
— “Mas por quê? Eu nada te fiz?” — “Tu me cegas!”— “Mas quero
ajudar-te!” Aí ela me agrediu furiosamente até que eu gritasse: “Em
nome de Jesus, vai-te embora.” E ela sumiu. Acho que ela talvez tenha

(50) Essa senhora parece ter tido em vida um só sentimento: inveja; nela tudo cr» invr|n.
sido muito má, bem diferente de todas as outras almas que já vieram.
Isso me causa imenso pavor e rezo para que não me apareça mais.
Causou-me uma impressão inominável essa aparição que muito me
preocupa, pois trago-a sempre em meus pensamentos.
Voltaram aqueles dois homens. Perguntei-lhes: “Onde vives-
tes?” — “Aqui.” — “Quando?” — “Há 57 000 dias.” — “Qual era
vosso estado de vida?” — “Éramos empregados.” — “Como posso
ajudar-vos?”— “Dá-nos uma santa missa.”— Satisfiz-lhes o pedido,
e já não os vejo.

O dia 9 de agosto

• 3 de julho — Aconteceu-me algo de estranho. Eu estava na


horta colhendo morangos. De súbito, por cima do canteiro, um vento
violentíssimo. Levantei-me e olhei; nenhuma árvore se mexia, só as
folhas dos morangueiros ondulavam na ventania. A coisa parecia-
me sinistra e entrei numa casa próxima. Tudo calmo. Voltei a colher
morangos, e os fenômenos continuaram. Lancei a pergunta: “Há
por aqui uma pobre alma?” • Vejo aqueles quatro vultos que dançam
em tomo de mim e exclamam: “9 de agosto.” E tudo, normal como
sempre, foi 9 de agosto, que estranho! É pela quinta vez que me di­
zem esta data ou que eu sonho com ela. Acho que já o mencionei
nos meus apontamentos. A primeira vez a ouvi em 1898, e fiquei
impressionadíssima naquela ocasião. Eu estava convencida de que
ia morrer naquele dia. A última vez, em dezembro, sonhava que
na minha escrivaninha havia uma folha em que estava escrito “9
de agosto”. E estranho, mas não tenho medo. Fico apenas um tanto
curiosa e me pergunto o que essa data possa significar. Em geral,
para mim, as noites são agora mais calmas. Tenho anotado apenas as
visitas em que as pobres almas falavam. Foram muitas as aparições
silenciosas, mas não me fizeram sofrer demais. Aliás, a gente se
acostuma à situação.

190
João

Desde agosto tive muitas visitas das almas; eram, porém, de


modo diferente que as mencionadas até agora, e me parece que pouco
lhes tenho dado; 27 vultos me procuraram, e onze deles me fizeram
sofrer muito.
Há oito dias, a situação mudou. Procura-me um velho conheci­
do meu, F. M., o pai de...; quer constantemente tocar em mim.
Acalma-se, porém, um pouco, quando lhe dou água benta. Ele me faz
sofrer muito, mas assim mesmo estou satisfeita. Quando aparece,
espalha luz como se uma lanterna muito forte fosse dirigida contra
mim; aos poucos, porém, em tomo dele, tudo vai escurecendo. De dia,
ele pousa, meio homem, meio animal, na árvore em frente à minha
janela. Após alguns dias, soltando gritos, me agrediu. Exclamei:
“João, que queres?” — “Tua paz.” — “Vai à tua esposa que tanto
reza.” — “Não a encontro.” — “Ela sofre muito por causa de ...
Talvez seria melhor, se os procurasses.” — “Não posso deixar meu
caminho.” — “Sabes tudo de teus...?” — “Não; preocupações
humanas estão distantes de nós.” — “Como posso ajudar-te?” —
“Deixa-me ficar junto a ti enquanto tenho permissão, e não fales
mais.” Acho que sofreu com minhas palavras e fiquei triste de ter
falado como falei. Agora ele está sempre comigo, mas eu fico calada.
Ele continua muito inquieto. • Vem uma mulher, e com ela há muita
barulheira no quarto. Na igreja vi sete vultos, esperando por mim na
entrada.
• 7 de novembro — À hora do crepúsculo fui dar uma volta na
alameda. Vieram ao meu encontro duas senhoras que não conhecia.
Quis falar com elas, mas desapareceram à minha frente. Apavorada
voltei depressa à casa. Quando as almas se comportam de modo
natural, como se fossem pessoas de carne, iguais a nós, e de repente
mostram que são do Além, isso me atemoriza e me dá arrepios mais
fortes do que sabendo desde o começo que vêm do além-túmulo.

I‘)l
Uma velha senhora em minha escrivaninha

Entrando em meu quarto, vejo sentada à minha escrivaninha


uma senhora idosa, apoiando a cabeça nas mãos. Exclamei: “O que
estás fazendo aí?” — “Estou procurando.” — “O que procuras?”—
“Minha promessa.” Para dar-lhe prazer, abri as gavetas. Num ins­
tante remexeu tudo. Com os olhos ardentes fixava as coisas. Nunca
vi alguém procurar algo desse jeito. Ela tinha em mãos até as cartas
de V. Revma. endereçadas a mim/51) Gemeu enfim: “Perdeu-se.” E
desapareceu. Não tenho idéia de quem se trata. Ajulgar pelo traje, ela
é do tempo atual.
• 8 de novembro — João ficou a noite quase toda. Observei:
“Estás mais contente, parece.” — “Avancei.” — “Aonde?” — “Na
compreensão.” — “Queres dizer no arrependimento, não é?” —
“Não, aquele passou. Na compreensão da luz.” — “Por favor, fala-
me mais um pouco da luz. Referes-te ao Bom Deus?” — “Só os sem-
corpo me entendem.”
• 11 de novembro— Outra vez no meu quarto a mulher que está
à procura. Pergunto-lhe: “Não posso ajudar-te?” Ela me fixa e chora.
No dia seguinte está em frente à minha secretária, e agora vem o que
não entendo: todas as gavetas que eu conservo trancadas estavam
abertas. Senti arrepios. Foi impossível um engano meu. Sorrindo, ela
ficou ao lado da secretária, achegou-se a mim, descansou a cabeça no
meu ombro e desapareceu de repente. Nas gavetas, tudo em ordem.
Algo de estranho: acordo com uma sensação desagradável, e
vejo a parede toda com cabeças, uma ao lado da outra. Aquilo me dá
uma sensação sinistra. Cada cabeça tem a expressão diferente uma da
outra, todas, porém, de fisionomia dorida.
• 27 de novembro— João H. aparece de contornos e traços mais
nítidos, e também de expressão mais contente e satisfeita. Rezei com
ele e lhe perguntei: “Que mais posso fazer por ti?” — “Sacrifica tua
vontade.”— “Bem o quereria, mas é sempre tão difícil.” — “A força
te será dada.” — “Por que não procuras tua esposa?” — “É-me

(51) Trata-se da carta que o pároco Wieser tinha escrito para a princesa.

192
prescrito o caminho a tomar.” — “Fala-me mais um pouco da
eternidade.” — “Crê e confia.” E sumiu.
• 4 de dezembro — Já não o vejo, nem aquela velhinha. Mas
muita barulheira e muitos vultos, até de dia.

Uma testemunha

• 11 de janeiro de 1928— Mandei o menino buscar um livro no


meu quarto. Voltou correndo e disse: “Há um mendigo lá dentro.” Fui
lá e, de fato, estava lá alguém que parecia um mendigo, aliás muito
triste. Perguntei-lhe: “Donde vens?” — “Da tribulação.” — “Quem
és?”— “José...” Faz anos que vivia aqui uma família. Não é do meu
conhecimento se alguém da família se chamava José. Continuei: “O
que posso fazer por ti?” — “Com... rezar por mim.” — “Quando
morreste?” — “Em 1874.” — “Por que sofres tanto tempo?” —
“Calúnias.” — “Posso repará-las em teu lugar?” — “Sim; aquela
história do padre D ... M... ”(52) — “A respeito de quê?” Naquele
instante, alguém chegou, e ele sumiu. Agora me lembro um pouco do
caso de um padre D... M...; quando se tocava nisso, eu era mandada
embora para brincar lá fora.

A mãe do pároco

• 17 de dezembro — É uma sensação toda especial que estou


sentindo: devo ser intermediária entre V. Revma. e sua mãe. Imagine,
aquela senhora que durante quase três semanas me procurava e que
me havia respondido “sua mãe” é a senhora sua mãe...
Segue agora um diálogo que não posso reproduzir por motivos
estritamente pessoais. Infelizmente, consegui saber apenas que mi­
nha mãe está salva. Devo acentuar que a princesa em vida não chegou
a conhecê-la.

(52) Um padre.

I'H
A comunicação do dia 17 de dezembro foi a última que recebi.
Ela mesma, que fez tantos sacrifícios pelas Almas do Purgatório no
último decênio de sua vida, goza, agora, da visão beatífica, como
firmemente acredito.
Ela morreu, como já foi dito, no dia 9 de janeiro de 1929.
O pároco Sebastian Wieser (53>

(53) Sebastian Wieser, o diretor espiritual de Eugênia von der Leyen, morreu em 11 de
outubro de 1937, em Oberhausen. O Schematismus, da diocese de Augsburg, de 1937, dá
detalhadamente o currículo, isto é, a carreira da vida desse sacerdote, os cargos que
exerceu e as atividades pastorais.

194
Leitores que atenta e seriamente têm estudado o diário, estra­
nharam terem as almas, que apareciam à princesa, mostrado não
apenas suas misérias, mas manifestado até atitudes realmente malé­
volas. Partilhavam a opinião corriqueira que nada de impuro pode
gozar a visão de Deus, mas supunham que os falecidos recebiam uma
compreensão mais clara da realidade do mundo espiritual e que
sofriam, por assim dizer, apenas exteriormente. As representações
das Almas do Purgatório, feitas por pintores ingênuos, acentuaram
sobretudo as torturas nas chamas, suportadas por penitentes
arrependidos; imaginava-se que o essencial do purgatório consistisse
no fogo exterior, e que o elemento constitutivo de uma pobre alma
fosse unicamente o anseio por Deus, unido a um grande arrependi­
mento. Nas pinturas e nas meditações não figurava a idéia que uma
pobre alma pudesse ser má, pelo contrário, excluía-se a possibilidade
de uma hipótese dessas. Até no próprio Inferno de Dante, as almas
condenadas sofriam mais em virtude de pavorosas manifestações
externas de sofrimento e desespero do que por padecimentos oriun­
dos do interior de sua própria natureza. Mas o que a arte, aparente­
mente, não podia representar não escapara à intuição mística dos
homens. Com profunda comoção aflorava, às vezes, por ocasião de
uma morte repentina, a palavra da Escritura aos lábios de uma pessoa
enlutada: a árvore fica, onde cai.

A árVore fica onde cai (Eclesiasíes 11,3)

Tomás de Aquino compara a alma do homem a uma folha em


branco, na qual, no decorrer de sua vida, lança tudo quanto se refere
à sua espiritualidade e à sua conduta moral. A alma assimila o que
chegou a conhecer e a amar. O espírito do homem, que se determina
a si mesmo, escolhe o que quer assimilar de conhecimentos, dc amor.

I«n
O homem “religioso” relaciona o conteúdo de seus conhecimentos ao
amor de Deus e do próximo. Durante sua existência humana, o
homem pode subverter e revirar todos os valores e considerar o
mundo e o próprio Eu qual valor supremo. Desse modo, os valores da
vida corporal e material se tomam os mais importantes, enquanto os
valores sacrossantos se distanciam tanto, que já não se consideram
como reais e, aos poucos, desaparecem do dia-a-dia — e o homem,
que outrora aprendera a ver na imitação de Cristo o sentido da vida
para se santificar, transforma-se em ferrenho adversário do Senhor.
O mistério da santa comunhão com o Salvador cede à comunhão
profana com o príncipe deste mundo. A malícia, a perversidade
ganham existência real em sua alma.
Quando, na hora da morte, o homem depõe o corpo qual veste
gasta, nada se modifica em relação àquilo que aceitava em vida como
algo que queria conhecer e abraçar. Sua alma entra no Além com tudo
quanto assimilou em sua vida terrena: virtudes e paixões, vícios e
inclinações secretas, tudo quanto formava seu Eu. Há, porém, uma
grande diferença: as distrações que o corpo lhe possibilitava já não
existem e nem serão possíveis. Ele deve sentir a existência e os
anseios de sua alma sem qualquer atenuante.
Uma só coisa se modificou totalmente: a maneira de ver e de
apreciar os reais valores e desvalores da vida e de sua existência. Ele
reconhece com clareza total que não existe separação entre o Bem e
o próprio Deus, e que seus pecados significam e produzem “uivar e
ranger de dentes”. Enquanto possuía um corpo, a alma aceitava o
prazer dos olhos, da carne e da satisfação do orgulho da vida, a
malvadez contra o próximo, a revolta de sua vontade contra a vontade
de Deus, porque prometiam e de fato davam algum deleite para o
corpo.
Agora, porém, ela experimenta tudo isso qual câncer espiritual,
como lepra no íntimo de seu ser, como uma aids horrorífica, qual
vergonha inominável, como sofrimento, escuridão, desespero e
solidão. Seus pecados são chamas devoradoras de sua existência e
que, ao mesmo tempo, lhe fornecem a forma que lhe convém. Em

196
vida, os pecados parecem ser algo de aparente no seu exterior, agora,
porém, os pecados determinam sua própria figura, seu aspecto, sua
forma, sua atitude e todo o seu ser.
Um poeta do século XIII nos deu uma seqüência que, até o
Vaticano n, fazia parte da missa pelos falecidos. Ele experimenta a
profunda preocupação que os homens sentem a respeito de sua
existência depois da morte, por causa de seus pecados. Também nós
a rezamos com ele, porque toda a humanidade reconhece sua situação
de pecadores diante de seu Senhor e Criador, e crê que na morte se
realiza o juízo:

O “dies irae”, de Tomás de Aquino

Dia de ira, aquele dia,


será tudo cinza fria:
diz Davi, diz a Sibila.

Que tremor será causado,


quando o Juiz tiver chegado,
para tudo examinar!

Correrão todos ao trono


quando, em meio ao etemo sono,
a trombeta ressoar.

Morte e mundo se espantam,


criaturas se levantam
e ao Juiz responderão.

Vai um livro ser trazido,


no qual tudo está contido,
onde o mundo está julgado.

I')/
Quando Cristo se sentar,
o escondido vai brilhar,
nada vai ficar impune.

Eu, tão pobre, que farei?


Que patrono chamarei?
Nem o justo está seguro.

Rei tremendo em majestade,


que salvais só por piedade,
me salvai, fonte de graça.

Recordai, ó Bom Jesus,


que por mim fostes à cruz,
nesse dia me guardai.

A buscar-me, vos cansastes,


pela cruz me resgatastes,
tanta dor não seja vã.

Juiz justo no castigo,


sede bom para comigo,
perdoai-me nesse dia.

Pela culpa, se enrubesce


o meu rosto; ouvi a prece
e poupai-me, justo Deus.

A Maria perdoando
e ao ladrão, na cruz, salvando,
vós me destes esperança.

Meu pedido não é digno,


mas, Senhor, vós sois benigno
não me queime o fogo etemo.

198
No rebanho dai-me abrigo,
arrancai-me do inimigo,
colocai-me à vossa destra.

Quando forem os malditos


para o fogo etemo, aflitos,
entre os vossos acolhei-me.

Dum espírito contrito


escutai, Senhor, o grito.
Tomai conta do meu fim.

Lacrimoso, aquele dia,


quando em meio à cinza fria
levantar-se o homem réu.

Libertai-o, Deus do céu!


Bom Pastor, Jesus piedoso,
dai-lhe prêmio, paz, repouso.

A missa por falecidos de “corpo presente” terminava até o


Vaticano II com o Libera. Também essa oração, hoje em dia, não se
reza mais, embora exprima a Majestade Divina e o seu reino
universal: “Salvai-me, Senhor, da morte eterna no dia do terror,
quando céu e terra são sacudidos e quando voltais parajulgar o mundo
pelo fogo.”

Só a moral não basta

Como se resolve a relação entre o pecado e a virtude da


esperança? Esta pergunta tem levado muita gente a um dilema. Desde
o tempo do Iluminismo tem-se acentuado mais e mais, no ensino c
na pregação, a doutrina da moral, como se dependesse tudo imieii

I')'»
mente da observância das leis e dos mandamentos deste e do outro
mundo. Já no século IV, essa heresia de Pelágio havia sido combatida
por Santo Agostinho, que compreendia não haver lugar para Cristo
e o amor etemo de Deus numa religião excessivamente moralista. Se
na religião fosse suficiente a observância da moral, bastaria Moisés
com os seus mandamentos.
A piedade moderna enveredou em direção contrária: Cristo nos
remiu; Moisés e sua lei já não contam. No passado, chegou-se a um
ensino da moral, isento da graça. Hoje apregoa-se uma graça que
ignora a moral. Os cristãos celebram a Páscoa, sem que meditem a
Paixão e a Morte reparadora de Cristo; muito menos se interessam em
acompanhá-lo no sacrifício — aceitam como conteúdo da fé apenas
o resultado da Paixão, isto é, a Páscoa.
Uns como outros estão errados; os rigoristas erram quanto à
conduta moral, pois colocaram o medo no lugar do amor. Com isso,
oprimem as consciências e as fazem viver numa atitude habitual de
pavor. Por outro lado, estão errados também os pregadores de um
laxismo total ao afirmarem que Deus é um Pai que não exige a não ser
o que a gente possa fazer sem grande esforço — contenta-se, por
assim dizer, com umas bagatelas. Com isso, o “amor” fica ridículo
porque os moralistas fanáticos esvaziam o amor divino deixando, por
medo, esmaecer a imagem do Crucificado.
A mente humana corre perigo quando arrisca soluções do
problema existencial em busca de um Deus “benigno”. Muitos
pensam que no momento da morte, a alma abandona o corpo, saindo
do coração. A paralisação das correntes que passam pelo cérebro não
indicaria a morte propriamente dita, e isto representaria um sinal de
que o coração seria, para a sorte do homem, muito mais importante
que o intelecto. A cura de almas sempre admitiu que os indícios e os
sinais do desenlace da agonia não impedem que se dê ainda a unção
ao corpo.
A vida foi confiada ao amor. O desamor é uma caminhada em
direção ao etemo exterior, ao “nada”, à perene e total carência de tudo
aquilo que comunica, mesmo no ínfimo grau, do “existir”. Não

200
vamos atrás de alguém quando vivemos “esperando”. Nossa santa
Madre Igreja, a mãe da graça, está em condições de colocar um
penitente ao lado de um santo, igualando-o em brilho e glória.
Mas é nisso que está a tragédia do coração. O demônio não
suporta que entre os homens se manifeste o amor divino. Por isso tenta
o homem a se deixar levar pelo desamor que reina no mundo, por
aborrecimentos, amarguras e ressentimentos, por preocupações,
paixões selvagens, medo, afastamento mútuo entre amigos e paren­
tes, por cobiça e ambição. Tudo isso toma o homem incapaz de
conhecer o amor divino. Nietzsche resume o que acabamos de
meditar nas palavras: “Dionísio não suporta o Crucificado”.

Dr. Peter Gehring


A doutrina da Igreja sobre as Almas do Purgatório

A misericórdia de Deus e o seu amor não se estendem apenas


aos vivos, mas também aos falecidos que anseiam por estar com
ele: às Almas do Purgatório.
Perguntemo-nos: O que acontece na hora da morte? “A alma
que acaba de deixar o corpo sente-se como envolvida por Deus. Tão
grande é a santidade que a cerca que ela vê, num instante, toda a sua
vida terrestre e o que ela merece perante a Justiça Divina.”
Caso esteja totalmente livre de pecados e de penas merecidas,
tomar-se-á imediatamente participante da Visão Beatífica. Pois sua
veste nupcial está imaculada e a luz divina pode penetrá-la, fazendo
com que já experimente uma felicidade indizível e as alegrias do céu.

Nada de impuro pode entrar no céu

Para a alma que não tem culpa grave, isto é, sem pecado mortal,
mas eivada de faltas veniais ou de culpas que não incluem o peso de
um pecado mortal, a luz divina significa apenas o juízo, pois o estado
em que se acha não condiz com a santidade infinita nem com a
perfeição de Deus. É, por isso, impossível uma união com Deus e a
entrada na bem-aventurança etema. A alma não agüentaria nem um
instante sequer a estada no reino da santidade.
Se não houvesse a possibilidade de uma purificação no Além,
a grande maioria dos homens não entraria no céu. Pela voz da Igreja,
Deus fala claramente: “As almas serão purificadas depois da morte
do corpo por castigos merecidos pelos pecados, dos quais ainda não
fizeram penitência”, o que acontece “pelo purgatório” (Concilio de
Florença e de Trento). Não é apenas na frase bíblica: “É um

202
pensamento bom e salutar oferecer pelos defuntos um sacrifício de
expiação para que fiquem remidos de seus pecados”, que a Igreja
fundamenta a crença na existência do purgatório, mas também na
severa parábola em que Jesus fala da prisão donde ninguém sai antes
de ter pago suas dívidas até o último centavo. Também São Paulo
menciona que “o fogo revelará qual foi a obra de cada um; aquele cuj a
obra for consumida, sofrerá o dano; ele se salvará, mas como quem
passa pelo fogo” (/ Coríntios 3,13-15).
No momento da morte, a alma manchada sente-se como aniqui­
lada pela presença de Deus e esmagada pelo peso de suas culpas que
devem ser pagas. Por isso, ela se lança nas chamas purificadoras. A
alma chega a se convencer, no purgatório, da santidade e da Justiça
Divina, do amor infinito que Deus tem para com ela; é no purgatório
que ela compreende ser a maior desgraça possível ofender a
Majestade Divina pelo pecado.
A alma gostaria de lançar-se nos braços de seu Deus, mas ela se
sente totalmente indigna de um tal ato, e a percepção de sua
indignidade toma impossível qualquer ousadia irreverente: ela geme
e anseia por Deus, devorada pelo arrependimento de seus pecados,
mas é incapaz de satisfazer a vontade de todo seu ser. Profundamente
agradecida por ter a chance de reparar a ingratidão para com seu
Criador, quer penitenciar-se por não ter aproveitado sua vida terrestre
para se santificar.
Ela sabe que está salva, e este pensamento consola-a no seu
padecimento. A misericórdia infinita nos dá a possibilidade de
reparar nossas culpas mesmo depois da morte. O purgatório é um
mistério da graça, é o fogo da misericórdia divina.

Castigos corporais no purgatório

A grande maioria das almas sofie não apenas o doloroso anseio


de estar com Deus— e isso numa intensidade totalmente inimaginável
para nós —, mas também os castigos por seus pecados e faltas, já que,
pelo arrependimento e pela boa confissão, recebemos o perdão da

2(B
culpa, mas não escapamos dos castigos merecidos.
O fogo purificador penetra sobretudo as partes do corpo
com as quais se pecou. Embora o corpo fosse deixado na terra, a
alma tem a sensação de possuí-lo ainda para que ele participe do
castigo que Deus a ela impôs. É um ato da Justiça Divina, pois
depois do Juízo Final não haverá mais purgatório, e o corpo que
pecou em união com a alma ficará livre do castigo. Diz ainda a
Irmã Natividade (t 1798): “Alguns anos antes do Juízo Final, o
sofrimento aumentará para cada alma conforme o grau de sua
culpa. Deus pode fazer com que a alma sofra num ano mais do que
sofreria em tempo normal no espaço de cem anos. Os anjos
anunciarão às pobres almas que elas sofrerão tanto porque se
aproxima o Juízo Final e que Deus aumenta a intensidade dos
padecimentos para abreviar a sua duração.”

As pobres almas são realmente pobres

As Almas do Purgatório merecem esse nome porque precisam


de ajuda. Já não podem, como outrora na terra, satisfazer a Justiça
Divina por boas obras. O bispo Dom Kepller de Rottenburg, um
exímio pregador, referindo-se às pobres almas, diz: “O pêndulo do
purgatório bate sempre no mesmo ritmo: ‘Sofrer-esperar! Sofrer-
esperar!’ ”
Acresce a isso o fato de que as almas sofrem sem acumular
méritos para a eternidade. Diz Santo Agostinho que os sofrimentos e
os castigos das almas são piores do que as torturas a que foram
submetidos os mártires. Santo Tomás de Aquino e São Boaventura
afirmam que as almas sofrem um fogo igual ao do inferno, com a
diferença que, no inferno, elas amaldiçoam a Deus, enquanto que no
purgatório o louvam e lhe agradecem pela sua salvação.
As almas têm pior sorte que os mendigos na terra: sofrem, e não
param de sofrer. Dizem Ana Catarina Emmerich e Maria Ana
Lindmayr que as mais miseráveis entre as almas são aquelas que, em
vida, não pertenciam à Igreja católica. Isto porque não recebem ajuda

204
da terra, como os católicos que acreditam na existência do purgatório
e rezam pelas almas, ao passo que os protestantes e outras seitas não
aceitam o purgatório e, por isso, não rezam por elas no seu culto.

As Almas do Purgatório rezam por todos

As reflexões seguintes podem ampliar os nossos conhecimen­


tos arespeito do purgatório. São respostas a perguntas freqüentemente
formuladas. Uma religiosa francesa rezava muito e se sacrificava por
uma coirmã falecida, que, por permissão da misericórdia divina, nos
comunicou as considerações que, depois, foram impressas, em boa
parte, na publicação Voz do Além (Hacker-Verlag, München). Tem
o imprimaíur da Igreja e por isso é digna de crédito. “Há almas que
passam o purgatório nos lugares onde pecaram; outras, aos pés dos
altares, não, porém, devido a pecados que lá poderiam ter cometido,
mas para adorar o Santíssimo Sacramento por terem venerado em
vida, de modo relevante, Nosso Senhor Sacramentado. Sofrem
menos do que padeceriam no purgatório. Enxergam Jesus com os
olhos da fé e, ao mesmo tempo, com a alma. Na sua presença, seus
sofrimentos diminuem de intensidade.”
As almas não estão ocupadas unicamente com os seus padeci-
mentos, pois podem rezar pelas pessoas que procuram ajudá-las
como também poderão fazê-lo para as grandes intenções de Deus.
Louvam e agradecem a Deus por ele ter mostrado misericórdia
infinita para com elas, pois, para muitíssimas almas, a distância entre
o purgatório e o inferno tem sido mínima, e pouco teria faltado para
caírem no fogo eterno. Pode-se imaginar a gratidão dessas almas que,
no último instante, haviam sido arrancadas do demônio!

E bem rara a indulgência plenária

Perguntou-se à Irmã do Além: “O que nos pode dizer das


indulgências plenárias?” E veio a resposta da pobre alma: “Poucas

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pessoas, bem poucas, estão em condições de ganhá-las. Exige-se um
estado todo especial do coração e da vontade, o que é extremamente
raro, muito mais raro do que comumente se acredita. Ganhamos no
purgatório as indulgências que se nos aplicam conforme a vontade de
Deus. Quando uma alma está no último estágio de sua purificação,
pode ser libertada do purgatório pelo efeito de uma indulgência
plenária que lhe é aplicada parcial ou totalmente. Mas isso não se dá
com as almas em geral. Se, em vida, ela depreciava as indulgências,
ou se não lhes ligava, o Deus justo lhe paga conforme as suas boas
obras. Se ele o achar oportuno, dar-lhe-á o presente de nela participar,
mas dificilmente lhe aplicará uma indulgência plenária toda.”

A noite de Natal é a grande festa das Almas do Purgatório

Poderão no mês das almas, sobretudo no dia de Finados,


desfrutar as pobres almas de graças especiais para serem libertadas?
E uma pergunta que se faz ainda hoje em dia e que foi dirigida àquela
Irmã, padecendo no purgatório.
Resposta: “No dia de Finados saem muitas almas do purgatório;
é só nesse dia que todas as pobres almas, sem exceção, participam das
preces oficiais da Santa Igreja. Muitas almas recebem da Justiça
Divina só esse único alívio durante os longos anos que têm de
permanecer no purgatório. Mas não é no dia de Finados que mais
almas entram no céu, mas sim na noite do Natal.”

Diante do Senhor, mil anos são como um dia

“Quanto tempo levam os sofrimentos do purgatório?” Isso


difere de alma a alma. O sofrimento mais longo e mais duro é para as
pessoas mais duras de coração, como também para as almas de que
fala o beato Henrique Suso (t 1365): “Certos homens encolerizam
Deus de tal modo que deverão padecer no purgatório até o fim do
mundo; trata-se dos pecadores nefandos, que protelam a conversão

206
até o fim de sua vida e que, antes de morrerem, recebem ainda a graça
de se arrepender.
No entanto, o conceito de tempo é para as almas totalmente
diverso do nosso. Diz Maria Ana Lindmayr que uma hora de
sofrimento no purgatório parece mais longa do que vinte anos dos
mais terríveis padecimentos, passados na terra. Certa alma disse a
uma vidente que a grande maioria das almas fica no purgatório de
vinte a quarenta anos, outras, porém, tempo bem mais longo, e um
terceiro grupo, tempo mais breve; e continuou: “Digo isso conforme
o modo de calcular na terra, pois nós sentimos o sofrimento de
maneira diferente do que ocorre na terra: há oito anos que estou aqui,
mas a mim me parecem ser dez mil. Oh! meu Deus...”

São Miguel, padroeiro das Almas do Purgatório

Uma alma diz: “Ele não é apenas testemunha quando se


pronuncia a sentença, mas é também o executor da Justiça Divina, e
depois de a Alma tê-la satisfeito, ele a leva à bem-aventurança etema.
Ele tem compaixão de nós e nos encoraja em nossos padecimentos,
falando-nos do céu. Aparece, às vezes, em companhia da Santíssima
Virgem, que vemos de forma corporal. Nos seus dias de festa, ela nos
visita, e volta, depois, ao céu, cercada de muitas almas. Também os
nossos Anjos da Guarda nos visitam.”

Como ajudar as almas

Podemos ajudá-las de muitos modos. Eis alguns:


Io) Pelo santo sacrifício da missa, que não pode ser substituído
por nenhum outro ato de piedade. Convém não apenas “encomendar
uma missa”, mas nós mesmos, sendo possível, nela devemos tomar
parte. Ela é o sacrifício da cruz, oferecido de modo incruento. Por ele
oferecemos ao Pai Celeste os méritos e os sofrimentos de seu divino
Filho, suas santas chagas, o sangue precioso, sua dolorosa morte pani

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a reparação dos nossos pecados. No seu amor misericordioso para
com as pobres almas, Deus nos permite que lhes apliquemos este
tesouro de valor infinito, oferecendo a santa comunhão por interces-
são de Maria Santíssima. Acentua AnaMariaLindmayr que ela devia
entregar todas as suas boas obras à Mãe de Deus e nada podia dar às
almas a seu bel-prazer.
As pobres almas recebem ajuda especial pelas “missas
gregorianas”, que devem ser rezadas em trinta dias consecutivos; este
piedoso costume remonta ao papa Gregório Magno (590—604).
2o) Pelo sofrimento reparador; qualquer sacrifício, para ajudar
as almas, lhes dá grande alívio. Diz Ana Catarina Emmerich:
“Ninguém pode imaginar quão grande consolo as almas recebem
pelos nossos pequenos sacrifícios e por todo ato pelo qual nós
vencemos a nós mesmos. O santo Cura d’Ars pediu a Nosso Senhor
para sofrer durante a noite em benefício das pobres almas.
3o) Depois da santa missa, o meio mais eficiente de ajudar as
almas é a reza do terço. Por essa oração são remidas diariamente
muitas almas que, de outro modo, teriam que sofrer ainda longos
anos. Recomendemo-las à intercessão poderosa da Mãe de Deus, que
gosta de ajudar as almas, visto que é a porta do céu.
4o) Também a reza da via-sacra traz às almas grande alívio, se
por elas oferecermos a Paixão e a Morte de Nosso Senhor e as
lágrimas da Mãe dolorosa. Podemos rezar no fim de cada estação:
“Senhor Jesus, pregado na cruz, compadecei-vos de nós e das Almas
do Purgatório.” Grande alívio se dá às almas, oferecendo ao Pai as
cinco chagas de Jesus, sobretudo quando se está tomando parte na
encomendação de uma pessoa falecida.
5o) Diz Maria Simma que as almas lhe falaram do imenso valor
das indulgências. E tem razão, porque abreviam sensivelmente seus
padecimentos. É que a indulgência é o perdão— ratificado por Deus
— de castigos temporais, neste ou no outro mundo, por pecados já
perdoados. Quem, durante sua vida, lucra muitas indulgências pelas
almas, receberá, na hora da morte, também a graça de ganhar, ele
mesmo, a indulgência plenária para os agonizantes. Aproveitemos,
pois, a possibilidade de lucrarmos muitas indulgências, que formam

208
um tesouro de máximo valor, com que Jesus nos contemplou por sua
Paixão e que a Madre Igreja nos oferece.
6°) Práticas de virtude e boas obras. Por intermédio de Maria Ana
Lindmayr, Jesus nos recomenda que nos esforcemos em praticar, cada
semana, uma determinada virtude em relação a Deus e aos homens,
conforme a ocasião que se nos apresentar, e entregar esses atos ao nosso
Anjo da Guarda ou a Nossa Senhora, para que apliquem os méritos às
pobres almas. Por exemplo: praticar atos de humildade e de abnegação
a favor daquelas almas que sofrem por causa de sua soberba e que têm
desprezado outras pessoas. Diz ela: “Justamente pela humildade pode­
mos ajudar as almas muito mais do que por penitências exteriores.” A
sorte das almas que pecaramporexagero nocomere nobeber, aliviaremos
com jejum; outras almas precisam de atos de paciência e mansidão para
serem libertadas de penas merecidas por impaciência e ira. As torturas
dos avarentos e duros de coração serão mitigadas por obras de miseri­
córdia, dando esmolas, ajudando as missões.
7o) Um outro meio, e muito fácil para ajudar as almas, é a boa
intenção repetindo, por exemplo, com toda a sinceridade, jaculatórias
como: “Em nome do Senhor” ou “Jesus, tudo por amor a vós”, ou
“Seja tudo feito por vós, sagrado Coração de Jesus, através de vossa
santa Mãe” etc. Uma religiosa falecida confirma a importância da boa
intenção, dizendo: ‘Tanto no mundo, como também nos conventos,
acontece que muitas ações, boas em si, não são recompensadas por
Deus, por não terem sido santificadas pela boa intenção.”
Também o ato heróico de amor baseia-se nessa intenção, quan­
do oferecemos às pobres Almas do Purgatório, numa oferta livre,
todas as nossas boas obras durante o tempo de nossa vida, assim
como todos os méritos das obras de outras pessoas outorgáveis a
nós depois de nossa morte. Com isso nada perdemos, pelo contrá­
rio: sairemos lucrando, pois: “O que fizeste ao mais pequenino de
meus irmãos, foi a mim que o fizeste.”
8o) Maria Ana Lindmayr diz que a água benta faz muito bem
às Almas do Purgatório. Até Jesus a estimulava a aspergir água
benta. Ela tinha o costume de dar essa água salutar às almas antes
de deitar-se, e diz: “Certa vez me havia esquecido disso e me deilci

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para dormir; mas as almas ao redor de minha cama não me deram sos­
segoenquanto não me levantassee as borrifassecomáguabenta.” Quando
lhes damos água benta, a prece da Igreja sobe ao céu e atrai graças, pois
a água foi benta pelo padre e é um sacramental da Igreja. Mas também
na fé e na confiança do cristão que a usa, baseia-se o efeito da água benta.
As almas sentem a força purificadora e santificadora da água, mas tam­
bém o amor daquele que lhes dá esse alívio.
9o) Acender velas aproveita às almas porque é um ato de atenção
e de amor para com elas e porque as velas foram bentas e alumiam as
trevas das pobres almas.
Temos meditado a desgraça do pecado, mesmo do assim
chamado pecado “leve” ou venial. Devemos, por conseguinte, reno­
var o propósito de combater fraquezas e faltas. Nossa vida deve
transbordar da consciência da presença divina de Jesus em nosso
interior, para que fiquemos plenos de seu amor, que abrange tudo e
todos, e para que nos deixemos ser totalmente transformados por ele.
Vivendo assim intimamente unidos com ele, poderemos dar mais
àqueles que não podem ajudar-se a si mesmos: às pobres Almas do
Purgatório.
Oração pelas almas: Misericordiosíssimo Senhor, vós quereis
que rezemos pelas almas. Por isso, pelas mãos puras de Maria, vos
oferecemos todas as santas missas que hoje serão celebradas em
vossa honra e pela redenção das Almas do Purgatório. Humildemente
vos pedimos que os méritos copiosíssimos de vosso mui querido
Filho paguem as culpas das pobres almas e que delas tenhais
compaixão. Amém.
Ato heróico de amor pelas pobres almas: Etemo Pai, em união com
os méritos deJesuseMaria,vosofereço,pelas pobres almas,todosos meus
atos de reparação e de satisfação de minha vida, como também tudo
quanto por mim será oferecido depois de minha morte. Entrego tudo às
mãos da Imaculada Virgem Maria. Ela quer aplicá-lo àquelas almas que,
com suasabedoriae seu amormaternal, desejamlibertar-se do purgatório.
Pai celeste, aceitai, benigno, esta minha oferta e fazei que eu cresça todos
os dias em vossa graça Amém.
Pe. Kaspar Demmeler

210
O sofrimento purificador

O que acontece, quando, depois de sua morte, o homem deixa


o espaço restrito e fechado da História e aparece diante do Deus vivo?
A luz de sua verdade descobre tudo; a força de sua santidade rejeita
o que é manchado e impuro.
A fé nos diz que o homem querido por Deus, procurado pela
graça e animado por sua boa vontade, será aceito no céu. O amor do
Pai o faz participante dajustiça de Cristo— não que o homem tivesse
direito a isso e o merecesse, mas por graça. O que significa isso? A
Justiça outorgada não é qual manto que cubra o que é mau, feio e sujo,
pois Deus perdoa o pecado, e seu perdão diverge totalmente do nosso.
Quando nós dizemos a alguém que nos magoou: “Não tenho nada
contra ti”, o fundo existencial do nosso próximo não é atingido. Com
o perdão de Deus acontece algo bem diferente: seu perdão não é da
“superfície”, como se Deus não nos guardasse mais rancor, como se
o olhar divino ou o seu coração tivesse amolecido; Deus é imutável
e o que muda é a atitude existencial do homem. É este que deve tomar-
se diferente e mudar de modo que Deus possa amá-lo. O amor divino
transforma o homem, mas não como se fosse por um truque mágico,
pois o amor autêntico é verdadeiro. Deus dá ao homem um “coração
novo, uma vida nova”. No entanto, isso não quer dizer que o passado
é como se fosse apagado, de tal maneira como se nunca houvesse
existido. No coração humano deve dar-se uma transformação, uma
purificação, uma “repetição” do passado.
Quando o homem morre, deixa o tempo. Passou “o dia” no qual
pode “fazer as obras de Deus” (João 9,4). Com a morte acabou o
“fazer”, apenas pode o “existir”, pode o “ser”. E nele, já não pode
modificar-se nada?
Não naquele que está “concluído”, confirmado pelo juízo
divino, na pura atualidade da vida eterna. Tampouco será possível
qualquer modificação naquele que terminou sua vida de vontade
perversa: foi reprovado por Deus e permanece congelado para todo
o sempre.

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Mas o que se dá com os homens de boa vontade, cuja vontade
ainda não se identificou de modo total com o “ser”— os homens cuja
boa vontade penetrou apenas acanhadamente a superfície, enquanto
por baixo rumorejava a revolta, e das profundezas subiam os miasmas
dos bons propósitos em decomposição? Poder-se-ia objetar que
pensamentos tais seriam apenas elucubrados de maneira demasiada­
mente humana e que, para a alma, aparecendo diante de Deus, ficaria
sem sentido tudo que traz a marca do efêmero. Faltas, insuficiências,
contradições, lacunas, omissões, atos e delitos, erros e falsidades,
tudo o que havia sido feito no emaranhado da existência humana, tudo
ficaria sem importância diante da força santificadora e amorosa da
graça divina. Se existisse o “único necessário”, a união da graça e
liberdade, e o desejo de agradar a Deus, haveria o essencial para
participar da glória dos filhos de Deus (Romanos 8,21), qual criação
autêntica da força criadora do Senhor.
Esse pensamento é tão grande e tão piedoso que, à primeira
vista, nos fascina; entretanto não está certo. Engana-se quem acentua
demais o que parece grandioso e com isso já não liga ao que parece
insignificante, pois também isso existe. A redenção não é obra de
entusiasmo, mas procede do amor que é inseparável da verdade. A
graça de Deus é tudo, mas não de modo que, por causa dela, o ato
humano, as faltas no decorrer da vida, os fracassos e desvios da vida
pudessem ser considerados como inexistentes. Diante de Deus, que
é a verdade, tais atos não podem, simplesmente, ser ignorados. Seu
amor não consiste em não tomar conhecimento dos defeitos, mas em
colocá-los na verdade e em extirpá-los — cada um deles, mesmo os
mais insignificantes — e arrancá-los totalmente, pelas raízes mais
finas e mais fundas.
Mas como se fará isto se o tempo já passou e o homem já não
é capaz de agir? A Igreja diz que ele pode sofrer e que seu sofrimento
procede de seu próprio estado e que o seu padecer é, ao mesmo tempo,
sua superação.
Quando tal homem entra na luz de Deus, ele se vê com os olhos
dele. Ele ama a santidade divina e se odeia a si mesmo porque está em

212
oposição à Divindade. Ele compreende e sente sua situação, o que
nunca se dera em sua vida. Vendo-se como Deus o vê, sobrevém-lhe
um sofrimento inominável, um indescritível nojo de si mesmo.
Esses sentimentos agem nele, purificando-lhe a mentalidade que
apaga as conseqüências e leva a vontade a só querer o bem. Todas as
forças vivas do seu ser colaboram para conseguir uma aceitação to­
tal do bem, que é o novo universo em que doravante vai viver, que
perpassa toda a sua existência, que entende como única realidade do
ser. Nesse processo do lento e doloroso definhamento até à morte
definitiva dum passado vergonhoso, e do nascimento de uma limpi-
dez e pureza, de uma sinceridade e transparência, a vida vence a
morte, a verdade vence a mentira, de maneira que até o culposo vazio
de uma vida distante de Deus se aproveita do renascimento espiri­
tual. Na entrega total da criatura à vontade onicriadora de Deus,
recupera-se o que foi perdido durante a vida: o sofrimento não aceito
na terra, aceita-se plenamente no purgatório; a verdade não reconhe­
cida é agora abraçada, o amor não praticado em vida, pratica-se na
purificação e por toda a eternidade. A transformação se dá, sobre­
tudo, pelo arrependimento. Este não é apenas dor dos erros e peca­
dos no passado, nem só a vontade de fazer tudo melhor no futuro, mas
é o reviver consciente e voluntário do acontecido, colocando-o na
balança da Justiça e Santidade de Deus, para refazê-lo conforme a
vontade divina, pela força do Espírito Criador.
A psicoterapia pode ajudar-nos um pouco para compreender­
mos melhor o que se dá no purgatório. Ela diz o seguinte: quando
alguém, em sua mocidade ou num momento tentador qualquer,
fracassou diante de uma exigência, de um dever etc., tal fato perma­
nece na esfera do inconsciente e de lá envenena toda a vida da pessoa.
Aí serão infrutíferos os esforços para tentar esquecer ou ignorar o
acontecido: é necessário reevocar voluntariamente o que se passou,
pesá-lo na balança da Justiça Etema, admitir a culpa e fazer reparar
o que for possível.
Tudo quanto foi dito nos mostra “pistas” a tomar para entender
melhor o mistério do Purgatório — pistas, e nada mais, pois a gniça

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que perdoa e que renova é um mistério para a mente humana.
O juízo depois da morte significa que o homem se vê na
claridade do Deus infinitamente santo: ele vê as situações e as causas,
o passageiro e o essencial, o exterior, o interior e o mais íntimo, o
conhecido e o escondido, o que jazia nas profundezas mais ocultas e
o que estava coberto apenas por leve camada do esquecimento ou de
repressão voluntária. No tribunal de Deus, o homem vê tudo com total
clareza. Em vida, ele recorreu a um sem-número de truques para se
tomar insensível ao passado, a meios que lhe forneciam o orgulho, a
vaidade, as distrações, a indiferença etc. Na presença de Deus, isso é
impossível. A alma está toda aberta à verdade, que penetra todo o seu
ser, sobretudo o seu íntimo, que jamais procurara conhecer. Na
presença de Deus não existe absolutamente nada que a possa distrair.
Ela é contra si mesma, contrariando todos os argumentos que
colecionara em vida, para não pensar na prestação de contas na hora
da morte. Agora, quer refazer sua vida conforme o Espírito Santo lho
conceder. Uma vez que ela vive na verdade e se toma qual “contrição
personificada”, o Espírito Criador lhe dá o que haviajogado fora e põe
em ordem o que ela havia perturbado e estragado, refazendo o que era
mau e transformando-o em bem.
O essencial do purgatório está, pois, na purificação da alma de
tudo quanto não agrada a Deus. Nenhum coração bem formado
poderá recusar o consentimento a essa verdade que vai ao encontro
dos anseios mais profundos do nosso ser. Pois quem de coração bem
formado não tem o desejo de “ser todo púro e todo santo”?
Tomo a dizer que, em nossas reflexões, nem todas as perguntas
arespeito do purgatório foram respondidas; não se falou por exemplo
na reparação, incluída, necessariamente, no estado de purificação.
Entendemos, porém, as inúmeras idéias erradas que se ligam ao
conceito sobre o purgatório. A expressão “Pobres Almas” é produto
de grande ternura e de amorosa preocupação, mas encerra também
não pouco de pequenez de espírito e de mesquinharia. Os “falecidos
que estão na mão de Deus” não querem a nossa comiseração; sofrem
padecimentos inomináveis, mas esse sofrimento é de grande digni­

214
dade. Se amássemos alguém às voltas com problemas, erros e difi­
culdades, e se víssemos, um dia, quanto esforço faz para sair dessa
situação, como luta, como despende todas as energias para se libertar
de laços indignos, empolgados por seu combate heróico, tomaríamos
parte em sua luta e o ajudaríamos na medida do possível. Afastemos,
sobretudo, qualquer pensamento de orgulho em relação às almas,
como se fôssemos melhores que essas “coitadas”, ou até desejos de
que algumas delas sofram bastante, visto que, em vida, não nos eram
simpáticas ou até nos fizeram sofrer. A Escritura nos diz que elas
sofrem, mas “que se preparam para a participação da liberdade
gloriosa dos filhos de Deus” (Romanos 8,21).
Romano Guardini

As doze bem-aventuranças das Almas do Purgatório

São Bemardino de Sena (1380-1444), famoso franciscano e


missionário italiano, fala de doze bem-aventuranças das pobres
almas — fonte de alegria delas — e por ele assim exaltadas:
Io) As Almas do Purgatório estão consolidadas na graça, razão
por que já não poderão cometer pecados — nem no querer nem no
fazer.
2o) Elas têm a certeza da salvação, pois a posse da felicidade
etema já lhes está garantida.
3o) Estão de acordo com a vontade de Deus, pois aceitam o
castigo conforme a sua justiça e o seu amor.
4o) Alegram-se porque estão sendo transformadas em puro
amor e, por isso, aceitam, de livre vontade — qual verdadeiro
benefício — qualquer dor.
5o) Alegram-se porque granjearam o amor dos santos, que
rezam por elas e delas estão muito próximos, fazendo-as participar da
luz etema (os anjos consoladores descem ao purgatório como aquele
anjo desceu para fortalecer o Senhor no Getsêmani, no vale das
Lágrimas).
6o) Alegram-se porque pertencem à comunhão dos santos,
como Igreja padecente que, por sua vez, pertence ao corpo místico e
que participa dos méritos de todos os seus membros.
7o) Alegram-se porque se santificam a si mesmas.
8o) Alegram-se, também, porque ganham ajuda das pessoas
ainda vivas no mundo.
9o) Sorvem a alegria de tudo quanto recebem: de cada dádiva,
de cada donativo, de cada remédio que os vivos lhes propiciam.
10°) Gozam ainda da alegria dos que contribuem para satisfazer
a justiça divina.
1 Io) Sentem especial alegria por qualquer contribuição para a
diminuição de seus sofrimentos e que as faça aproximarem-se da
justiça divina.
12°) Participam da alegria geral em relação a tudo o que se
aplique aos mortos, na medida da justiça amorosa de Deus.
São essas alegrias todas que propiciam às almas do purgatório
suas doze bem-aventuranças.

Oração pelas Almas do Purgatório

Santíssima Trindade, Deus etemo e todo-poderoso, mostrastes,


certa vez, ao santo Cura d’Ars, a beleza de uma alma. Foi qual
explosão de beleza e luz que transcende toda capacidade humana de
compreensão, e João Maria Vianney teria morrido naquele instante
sem vossa ajuda milagrosa para mantê-lo vivo.
Como é possível que a alma seja tão bela? É porque ela é um
pensamento vosso, um reflexo de vossa beleza, criação vossa segun­
do a vossa imagem e semelhança, nenhuma igual a uma outra, cada
qual com sinais inconfundíveis e preferenciais.
O homem, enfraquecido pelo pecado original, perde facilmente
a inocência, deixa-se arrastar pela tentação para cá, para lá, entre o
Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo, e freqüentes vezes termina entre
oposição e emaranhamento em culpa e pecado. No entanto, não vos

216
cansais de nos estender vossa mão benigna após as nossas quedas e
de conceder-nos a vossa indulgência.
Mas, recebido o perdão, não nos é poupada a purificação da
ferrugem do pecado e o pagamento de todas as nossas dívidas. São
Paulo diz que seremos purificados como que “por intervenção do
fogo” e, conforme as palavras de vosso Filho, “do lugar purificador
não se sai até que tenha sido pago o último centavo da dívida.” As
Almas do Purgatório sentem a vossa perfeição infinita, sabem que
odiais o pecado, que viveis na luz inacessível, e alma alguma ousaria
aproximar-se de vós, mesmo se pudesse, enquanto tivesse a mais
pequenina mancha de pecado. O anseio por vós queima-as qual fogo
e elas mesmas ardem no desejo de serem purificadas no fogo do vosso
amor, qual bronze na brasa.
Pai etemo, vosso Filho Jesus permitiu-nos chamar-vos Abba,
Pai querido. Amais vossos filhos e sacrificastes vosso Filho unigênito
para nos salvar, a nós que somos vossos filhos adotivos. Pai, apiedai-
vos das Almas do Purgatório. Oferecemo-vos, por intercessão do
Coração doloroso e imaculado da Virgem-Mãe, o Sangue Precioso de
vosso Filho. Pedimo-vos pelos méritos de vosso Filho: abreviai o
tempo de sua purificação, enxugai-lhes as lágrimas, como foi anun­
ciado na Escritura, apertai-as ao vosso peito e guardai-as para sempre
no vosso Coração.
Jesus, Filho unigênito do Pai, nascestes da Virgem Maria,
ficastes nosso irmão e subistes ao céu para nos preparar uma morada
na casa do Pai. Compadecei-vos das pobres almas, lavai-as no vosso
Sangue, apagai as suas faltas pelos vossos méritos e relembrai-as
diante de vosso Pai e de todos os Anjos e Santos.
Espírito Santo, que procedeis do Pai e do Filho, vós sois a
terceira Pessoa na Divindade. O Pai nos criou, o Filho nos remiu e
vós, Espírito Divino, nos santificastes. Por isso, o purgatório é,
sobretudo, obra vossa, que sois o Espírito do Fogo do Amor Divino.
Recomendamo-vos as almas que se encontram no purgatório do
vosso Amor Divino.
Vós as purificais porque as amais; vós as santificais porque
quereis embelezá-las como Deus as imaginava. Espírito Santo, por
amor à glória de Deus, fazei delas uma nova criação {Gálatas 6,15),
apressai a obra de vossa santificação e perfeição, pois todos os Anjos
e Santos se alegram por cada alma que entrar no céu, no brilho da
inocência readquirida.
Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito
Santo, nós, a Igreja militante, vos pedimos, pela Igreja padecente no
purgatório, por nossos irmãos e irmãs no purgatório. Ouvi a nossa
oração para que, junto a nós, elas possam interceder por nós.

Amold Guillet

Ao encontro dos finados

A oração nos conduz aos finados, e devemos procurá-los


diariamente. Ela é o laço de amor, o início de uma união que se toma
mais e mais rica e mais palpável quanto mais nos aproximarmos
deles.
Reinold Schneider

“Quando minha alma tiver abandonado o corpo, acompanhai-


a com vossas orações. Lembrai-vos de mim também no trigésimo dia,
pois os falecidos recebem grande ajuda pelas rezas e pelo sacrifício
dos vivos.”
Efrém, o sírio
doutor da Igreja
(306-373)

Relato de Santo Agostinho

Enquanto eu me encontrava em Milão, contaram-me o caso


seguinte, como tendo acontecido realmente:

218
Um credor apresentou a alguém um título de dívida de seu fale­
cido pai, exigindo que pagasse a soma devida. Mas o pai havia pago a
dívida sem que o filho o soubesse. O jovem estava muito aflito e
estranhava que o pai, antes de morrer, nada lhe falara a respeito de tal
dívida, visto que fizera também um testamento. Quando o filho se
encontrava na mais profunda depressão, apareceu-lhe em sonho o pai e
mostrou-lhe o lugar onde se achava o recibo pelo qual o título da dívida
caducara. O recibo foi, pois, encontrado e apresentado ao juiz. O jovem
não só provou que a acusação fora falsa, mas recebeu também o título da
dívida, escrito pelo pai e que não lhe havia sido devolvido por ocasião do
pagamentodadívida.Temosaquiumcasoqueprovateraalmadofalecido
se preocupado com o filho e o procurara em sonho para esclarecê-lo a
respeito de um assunto ignorado, livrando-o, deste modo, de uma grande
inquietação interior.

Aurélio Agostinho

“Não temas, sou o primeiro e o último, o vivente, estive morto,


mas eis que vivo pelos séculos dos séculos. Tenho as chaves da morte
e do abismo” (Apocalipse 1,18).
Apresentação........................................................................ 7
Prólogo de Amold Guillet...................................................... 9
Prefácio do Dr. Peter Gehring.................................................. 35
Diário da princesa Eugênia von der Leyen............................. 45
A freira................................................................................. 45
A condessa Maria Schõnbom.................................................. 47
Os “onze” e o pároco Schmuttermeier................................... 48
Bárbara e Tomás:................................................................... 50
Nossa velha cozinheira Crescência e a mãe assassina............. 51
Miguel, o marceneiro............................................................ 53
Muitas mulheres e muitos homens.......................................... 53
Nicolau, o criado particular..................................................... 55
Babette................................................................................... 55
A mulher no cercado das galinhas.......................................... 58
Aproxima-se a redenção........................................................ 58
Fritz, o pastor assassinado...................................................... 59
No abandono......................................................................... 63
Sou feliz............................................................................... 65
Um cavaleiro em sua armadura de gala.................................. 65
Duas irmãs que deram escândalo........................................... 67
Tia Maria Sch....................................................................... 68
Adelgunde, a mãe assassina................................................... 69
Eu tinha idéias muito mundanas............................................ 71
Catarina................................................................................ 72
Eu sempre desunia os homens............................................... 81
Catarina morreu em 1680..................................................... 82
Henrique toma-se brutal.......................................................... 84
Salvapordaresmolas.............................................................. 86
Não me podes contar nada do Além?....................................... 87

221
O Monstro............................................................................ 90
Nós todos caminhamos no escuro.......................................... 93
O tormento diminui, continua o castigo.................................. 97
O “Miserável” se dá a conhecer............................................. 99
Quando morrerei?................................................................. 106
Reinaldo................................................................................ 107
Hermengarda ajuda-me a rezar.............................................. 112
Aparece o conselheiro Fridolino Weiss.................................. 115
VemoDr. G.......................................................................... 117
Vivi à toa.............................................................................. 122
Avelhatrapeira..................................................................... 124
Ele cumpriu a promessa......................................................... 128
Nem em Munique encontrei sossego..................................... 131
Aparece o padre O..., o meu antigo professor de religião....... 133
Estou em estado de purificação.............................................. 133
O orgulho espiritual fez em mim um solitário........................ 134
Um assassino visto também por uma criança.......................... 137
Aparece o pároco Natterer..................................................... 139
João....................................................................................... 140
“O pobre Martinho”............................................................... 143
Sou a culpa ainda não resgatada............................................. 146
Um dominicano..................................................................... 148
O que acontece logo depois da morte..................................... 149
Sabes quando morrerei?........................................................ 152
O macaco é Egolf von R........................................................ 156
Gisela.................................................................................... 162
Uma religiosa em forma de cobra........................................... 164
A forma de cobra, imagem da vida......................................... 168
Um sinal................................................................................ 170
Um conhecido fala do abismo................................................ 171
Eleonora................................................................................ 174
Nicolau................................................................................. 178
A Sra. W............................................................................... 184
Betty...................................................................................... 185

222
N..., o jardineiro.......................................................................186
Cecília.....................................................................................187
A amiga esperando a recompensa.............................................188
Uma impressão indescritível.................................................. .189
O dia 9 de agosto.....................................................................190
João...................................................................................... ..191
Uma velha senhora em minha escrivaninha........................... ..192
Uma testemunha.....................................................................193
A mãe do pároco......................................................................193
Posfácio do Dr. Peter Gehring............................................... .195

Anexos
A doutrina da Igreja sobre as Almas do Purgatório
(Pe. Kaspar Demmeler)........................................................ .. 202
O sofrimento purificador (Romano Guardini)........................ ..211
As Almas do Purgatório segundo a doutrina de
São Bemardino de Sena........................................................ ..215
Oração pelas Almas do Purgatório...........................................216

223
m
edições

Diretor Responsável: Nestor A. Zatt


Diretor Administrativo: Hely Vaz Diniz
Diretor Editorial: Américo Romito
Gerente Comercial: Paulo Rosemberg
Assistente Editorial: Gilda Tomiko Hara Cinquepalmi
Revisão-Preparação: José Joaquim Sobral
Cesar A. A. dos Santos
Wilton Vidal de Lima
Chefe de Arte: Silvia Regina Villalta

Esta obra foi composta e impressa na indústria gráfica da


Editora Ave-Maria Rua Martim Francisco, 656.
01226-000 São Paulo-SP - Brasil.
Conversando
com as Almas do
Purgatório
Ao longo de quase uma década (1921-1929), a
princesa Eugênia von der Leyen, cuja vida se voltara para
a contemplação mística de Deus, recebeu, diutumamente,
visitas das almas do purgatório, com as quais travava os
mais espantosos diálogos.
Sobasmaisdiferentesformas, até mesmo animalescas
(macacos, serpentes), as almas apareciam-lhe e diziam-
lhe por que tinham ido para o purgatório, como lá sofriam
e como lá podiam ser socorridas. Para isso precisavam
percorrer um longo e penoso caminho de purificação,
para, depois, escoimadas de todas as manchas, ungirem-
se, triunfantes, no amor a Deus.
Na maioria desses encontros — aos quais as almas
compareciam em busca de ajuda —, a princesa sofria
muito. Via e sentia coisas terríveis, que chegavam a
provocar-lhe sucessivos desmaios. Mas encontrava em
Deus forças suficientes para aceitar o sofrimento reparador.
E a ninguém a princesa ousou falar sobre tais apari­
ções — até que, um dia, as revelou ao seu confessor e
diretor espiritual, o pároco Sebastião Wieser, que a acon­
selhou a anotá-las em um diário, do que resultou este livro.
Conversando com as Almas do Purgatório — intenso
e absorvente— não é, pois, uma história que se conta, mas
uma experiência que se vive. E que não pode ser apre­
endida pela razão, porque só é acessível aos dotados de
fé e, sobretudo, da fé que se apóia na Revelação.

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