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A RELAÇÃO ENTRE JUDEUS E GENTIOS À LUZ DA NARRATIVA DE ATOS

INTODUÇÃO
O livro de Atos é um livro que narra um processo de transição. O movimento
observado no registo de Lucas expressa a ruptura da Igreja com os limites de Jerusalém para
uma expansão até aos confins da terra. Essa ruptura não foi facilmente aceita e recebida pelos
judeus, antes envolveu profundos debates entre os líderes e rejeição entre o “antigo” e o
“novo” povo de Deus.

Atos mostra como a Igreja distanciou-se de Israel e se tornou um movimento global e


independente. Sobre isso, Ladd (2003, p.499) declara: “um dos motivos centrais em Atos é a
explicação de como uma pequena comunidade de judeus em Jerusalém, (...) tornou-se uma
comunidade gentílica na capital do Império, completamente livre de todas as práticas
judaicas”.

Lucas não se preocupa em dar razões teológicas sobre a continuidade ou


descontinuidade entre Israel e a Igreja. Sua narrativa em Atos busca apresentar a transição do
povo de Deus de um grupo étnico e geograficamente definido para um grupo diverso em etnia
e localidade. Diante disso, é importante notar os momentos centrais na narrativa que focam
nesse choque entre Israel e Igreja para entender o que eles demonstram sobre a relação entre
esses dois grupos.

O maior embate notado da leitura do texto existe entre os grupos denominados de


gentios e judeus. Esses grupos não são identificados por Lucas como Igreja e Israel de forma
específica. O grupo judeu era formado pelos israelitas 1 adeptos do judaísmo, que criam no
Antigo Testamento como Palavra de Deus e aguardavam a vinda do Messias. Os gentios
geralmente identificam os grupo de salvos de outras nações que não Israel.

Sendo essa uma visão geral destes grupos, esse trabalho visa, por meio da observação
do texto bíblico e da análise bibliográfica, compreender a posição da Igreja e de Israel dentro
do conflito entre judeus e gentios dentro da narrativa de Atos. O estudo focaliza-se em três
momentos centrais a esse conflito: a morte de Estevão, a conversão de Cornélio e sua família
e o concílio em Jerusalém.
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Havia, também, pessoas de outras nações que criam no judaísmo, no entanto, em Atos nota-se que os embates
era marcados por judeus étnicos que não aceitavam gentios serem vistos como povo de Deus receptores das
mesmas bênçãos e promessas. O judaísmo apresentava diversas ramificações em sua estrutura.
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1 O MINISTÉRIO DE ESTEVÃO

No início do livro, Lucas registra o questionamento dos discípulos a Jesus, diante da


sua ascensão (Atos2 1.6-8). O interesse deles estava na restauração de Israel e implantação do
reino messiânico. Jesus lhes mostra que não era o momento de pensar somente em Israel,
antes importava aos seus discípulos testemunharem em todas as nações com poder do
Espírito.

Mesmo com o mandato à toda a Terra, a Igreja em seu início se limitava a Jerusalém e
ao convertidos de Israel. A perseguição vinha do judaísmo contra os judeus cristãos. O grupo,
mesmo com posição, crescia e se fortalecia ali (2.41, 6.7). Lucas só relata um movimento de
expansão com a dispersão ocasionada pela morte de Estevão (8.1). O resultado dessa
dispersão foi o cumprimento da ordem dada por Jesus em sua ascensão (8.4).

Deve-se considerar que era estranho ao ambiente da Igreja em Jerusalém a admissão


de gentios. A comunidade eclesiástica recém formada era proveniente de um judaísmo com
forte ênfase racial. Foi necessário levar os judeus crentes (agora participante da Igreja) a
entender a extensão global do cristianismo.

O ministério de Estevão foi uma importante evidência da ruptura com o judaísmo


(LADD, 2003). Estevão foi um dos sete homens escolhidos para ajudar o ministério dos
apóstolos. Ele obteve destaque pelos sinais que operava e pela sabedoria de seus discursos.
Houve uma revolta contra ele, que levaram alguns a levantarem acusações para o deterem. As
acusações consistiam em ataques ao templo e a lei. As acusações “aparentemente, significa
que os judeus que se tornaram cristãos não necessitavam mais observar a adoração no templo
ou a Lei do Antigo Testamento” (LADD, 2003, p.500).

A defesa de Estevão é uma exposição dos grandes atos de Deus no povo de Israel e a
rejeição do povo à aliança e a lei. Ladd (2003) nota algo interessante: os atos registrados por
Estevão ocorrerão fora de Israel e quando não tinha o templo. “Estevão declara que nenhum
prédio é essencial à verdade divina (...), ele pregara que a antiga alianças com suas
instituições foram cumpridas em Jesus (Atos 7.52)” (PEARLMAN, 1980, p.73). No seu
discurso, ele disse aos líderes judeus que os israelitas nunca entenderão as promessas de Deus,

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As próximas referências ao livro de Atos apresentarão apenas os números de capítulo e versículo.
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as rejeitando, perseguindo aqueles que foram enviados por Deus para anunciá-las. Defendeu
que o templo não era essencial, pois Deus não se limita a um lugar.

Segundo Ladd (2003), analisando a pregação de Estevão, podemos entender que ele
foi o primeiro a entender que a adoração restrita ao templo e o cumprimento da Lei de Moisés
não eram obrigatórios aos judeus (ou gentios) que adentrassem ao cristianismo. Pearlman
(1980, p. 73) destaca a importância do ministério de Estevão ao afirmar:

A primeira igreja foi composta quase que exclusivamente de judeus, os


quais não se separam de imediato da lei de Moisés e das suas tradições
nacionais. Havia, portanto, o perigo de os cristãos judaicos em Jerusalém
se apegassem demasiadamente à antiga aliança e deixarem de cumprir a
missão às nações. Esse jovem diácono pregador discerniu o sentido do
evangelho (...), e corajosamente pregou a completa ab-rogação da antiga
aliança mediante o ministério de Jesus e a destruição do Tempo como
sinal de que Deus rejeitara Israel como povo Seu.

O ministério e morte de Estevão trouxe liberdade a Igreja para além dos muros
judaicos.

2 A CONVERSÃO DE CORNÉLIO E SUA FAMÍLIA

Após a morte de Estevão e a dispersão, Pedro encontra destaque na narrativa de Lucas.


No relato relatos de Atos 10-11 “os cristãos de Jerusalém chegam à conclusão de que o
evangelho também é para os gentios, e essa é a tese fundamental ao longo do livro de Atos”
(GONZALES, 2011, p. 161).

No início do capítulo 10, a narrativa passa a falar sobre Cornélio, de Cesaréia. Ele era
um gentio temente a Deus, alguém que acreditava em Deus e simpatizante da lei, mas não
circuncidado. Em visão, Cornélio é ordenado a chamar Pedro que estava em Jope. Como
centurião, Cornélio era um cidadão romano. Muitos judeus não iam a Cesaréia por ser sede do
governo romano. No entanto, Cornélio chama Pedro a sua casa.

De forma paralela, Pedro tem a visão dos alimentos impuros no lençol (10.9-16). A
ordem para comer é vista por Pedro como uma afronte a lei. No entanto, o próprio Deus
ordenava que ele comesse, e isso era o suficiente para tornar o alimento puro. Daí, a resposta
de Deus a Pedro: “Ao que Deus purificou não consideres impuro (ou comum)” (10.15). Pedro
não compreendeu de imediato a sua visão.
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Gonzales (2011) ressalta que Jope foi a mesma cidade que Jonas foi chamado a pregar
em Nínive, mas recusou. Além de que Simão (um nome de Pedro) significa: filho de Jonas.
Na mesma cidade, Simão (filho de Jonas) é enviado a pregar fora da comunidade de Israel.

Os enviados de Cornélio chegam a Pedro, que pelo Espírito é direcionado até eles. A
recepção de Pedro foi favorável, diante da explicação trazida pelos servos de Cornélio.
Observa-se que Pedro leva consigo “alguns dos irmãos” de Jope (10.24), o que indica a
necessidade de Pedro de testemunhas. Segundo Gonzales (2011), alguns sugerem que essas
testemunhas serviam como um atestado aos judeus do bom comportamento de Pedro diante
dos gentios, mas não há como atestar isso. Sabe-se, no entanto, que os seis companheiros de
Pedro testemunharam a decida do Espírito Santo sobre os gentios.

Ao encontrar-se com Pedro, a atitude de Cornélio de adorá-lo é reprendida. Percebe-se


que a visão sobre Deus de Cornélio era limitada e influenciada pelo paganismo romano.
Pedro em sua fala com Cornélio, diante da sua família, esclarece o motivo da sua ida sem
questionamentos. Suas palavras demonstraram sua nova disposição para encontrar com
gentios. Ele havia compreendido que a sua visão demonstrava que ele não deveria considerar
qualquer pessoa como imunda ou comum.

Diante da explicação de Cornélio sobre o motivo de tê-lo chamado, Pedro declara:


“Reconheço, por verdade, que deus não faz acepção de pessoas, pelo contrário, em qualquer
nação aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável” (10.34-35). Essas palavras de
Pedro ampliaram ainda mais o sentido da visão de Pedro em Jope. Pedro viu que Deus havia
falado com Cornélio, isso quebrava qualquer exclusivismo judaico. Por isso, o
reconhecimento “de que Deus aceitará qualquer pessoa, de qualquer raça que O reverencia e
que vive com retidão” (MARSHALL, 1982, p.181). Diante disso, Pedro anuncia o evangelho
a Cornélio.

O resultado é a descida do Espírito Santo sobre os gentios, testemunhada pelo falar em


línguas. Da mesma forma como acontecera com os judeus em Atos 2, agora era testemunhado
o recebimento da promessa do Espírito Santo sobre os gentios. O derramamento do Espírito
nos gentios implica tanto que os gentios haviam respondido com fé a mensagem pregada,
como que Deus havia aceitado e selado a sua fé (MARCSHALL, 1982). Pedro batiza os
gentios ao reconhecer que eles eram “como eles”: receptores da mesma promessa dita em
Atos 1.8.
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O fato de Pedro se encontrar e entrar na casa de gentios causou indignação aos judeus
cristãos. Pedro os identifica como “ os que eram da circuncisão”. Esse partido da circuncisão
“era composto de judeus cristãos que se recusavam qualquer divergência entre o judaísmo e o
cristianismo. Para eles, o cristianismo era o cumprimento do judaísmo e não seu sucessor”
(LADD, 2003, p.500). Diante desse conflito, Pedro defende o rompimento das
obrigatoriedade das práticas judaicas como meio de aceitação divina, evidenciado pela
aceitação dos gentios.

Naquele contexto, os cristãos judeus enxergavam mais o judaísmo que o cristianismo.


Eles criam em Cristo, mas insistiam que os que confessassem a Jesus deviam obedecer a lei
mosaica, sendo assim circuncidados. Eles aceitavam a Cristo, mas não estavam dispostos a
abrir mão do judaísmo. Diante disso, Pedro é chamado a esclarecer o acontecido. Pois para
eles havia um problema: se os cristãos judaicos se viam obrigados a reger sua alimentação
pela lei, eles teriam contato com os cristãos gentios se fossem circuncidados e observassem a
lei dos alimentos, fora isso, era impureza (MARCSHALL, 1982).

Pedro obteve sucesso nesse conflito ao contar o que ocorrera com Cornélio e sua
família. Seu argumento era que o próprio Deus havia concedido o dom aos gentios, assim, ele
não poderia ir contra Deus, apenas aceitar a sua obra. Com isso, eles louvaram a Deus por
conceder aos gentios a salvação.

Esse evento assevera que os gentios são parte integrante do plano de Deus na Igreja.
Demonstrando que a circuncisão e a observância a lei são dispensáveis à salvação. Evidencia,
também, que a distinção judaica de comidas e etnias puras ou impuras era antiquada
(MARCSHALL, 1982). Diante desses conflitos, fica evidente uma ruptura com Israel e um
novo começo com a Igreja dentro do plano de Deus. Sendo que Israel era formada por judeus
dispostos a obedecer a Deus e gentios dispostos a se submeterem ao judaísmo, enquanto a
Igreja é formada por judeus e gentios cristãos.

3 O CONCILIO DE JERUSALÉM

Embora, Pedro tenha alcançado sucesso em seu discurso na Judéia, o conflito entre os
judeus cristãos na aceitação dos gentios continuou no ministério de Paulo. Após a sua viagem
missionária, Paulo havia obtido sucesso na fundação de igrejas no mundo gentílico livres de
influência legalista dos judeus (LADD, 2003). Mas, alguns judeus saíram por essas igrejas
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ensinando que quem não fosse circuncidado não poderia ser salvo. O que gerou contendas
entre Paulo e Barnabé com esse grupo de judeus.

Diante dessa contenda, foi convocada uma reunião (concílio) com os apóstolos e
presbíteros para discutirem a situação. Haviam fariseus cristãos que asseveravam a
necessidade da circuncisão. O problema era que Paulo, Barnabé e Pedro testemunharam e
não podiam negar que gentios haviam se convertido e eram cheios do Espírito Santo
independente de circuncisão, alimento ou prática da lei.

O concílio chegou a uma conclusão após a fala de Tiago. Ao relembrar a experiência


de Pedro em Cesaréia, e citou Amós 9.11-12 da seguinte forma: “Cumpridas estas coisas
voltarei e reedificarei o tabernáculo caído de Davi; e, levantando-o de suas ruínas, restaurá-lo-
ei. Para que os demais homens busquem ao Senhor, e também todos os gentios sobre os quais
tem sido invocado o nome do Senhor” (15.16-17). Com isso, Tiago esclarece que o que estava
acontecendo era o cumprimento de uma profecia já anunciada no Antigo Testamento. Deus já
havia estabelecido o propósito “de visitar os gentios e fazer deles um povo para o seu nome”
(LADD, 2003, p.501).

A conclusão era que um vez que Deus trouxe os gentios a fé sem lei e sem circuncisão,
não havia necessidade de impor sobre eles o judaísmo para serem salvos. Assim, eles não
deviam ser perturbados com isso. No entanto, visando a comunhão e o amor cristão, lhes foi
pedido que se abstivessem de algumas práticas que causariam divisões e escândalos entre os
judeus (comer alimentos associados a práticas idólatras e com sangue e de alguns
relacionamentos consideradas ilícitos na lei judaica).

Esse concílio foi um grande marco no conflito entre judeus e gentios dentro da Igreja.
“Aparentemente, libertou os gentios da obrigação de guardar a lei e, realmente, colocou à
parte as práticas judaicas em todas as congregações cristãs onde havia gentios, embora os
judeus cristãos pudessem continuar a observar a Lei com judeus” (LADD, 2003, p.501). Esse
acontecimento foi um grande passo da Igreja para a união de judeus e gentios na mesma
comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa de Atos expõe a forma como Deus guia seu plano na história do seu
povo. O período do início da Igreja foi marcado por adaptações e conflitos para adequar
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judeus e gentios no mesmo grupo. Sabe-se que no Antigo Testamento, Deus usava o povo de
Israel como instrumento de testemunho e meio de achegar-se a ele. Era a nação eleita por
Deus e receptora de bênçãos especiais.

No entanto, no Novo Testamento, diante da incredulidade de Israel, não limita mais


sua ação e testemunho apenas a uma etnia, mas abrange a dádiva do Espírito Santo a todas as
nações sem limitações étnicas ou geográficas. Com isso, “o propósito nessa longa narrativa é
ilustrar em detalhes como o judaísmo rejeitou o evangelho” (LADD, 2003, p. 501), pois
quiseram limitar a ação salvadora de Deus a prática da lei mosaica. Assim, o livro de Atos
mostra o movimento da Igreja de uma comunidade judaica em Jerusalém até chegar a ser uma
comunidade de gentios em Roma desassociada ao judaísmo.

REFERÊNCIAS

LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003.

GONZALES, Justo L. Atos: o evangelho do Espírito Santo. São Paulo: Hagnos, 2011.

MARSHALL, I. Howard. Atos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1982.

PEARLMAN, Myer. Ouro para enriquecer: Atos dos apóstolos. Pindamonhangaba: O. S.


Boyer, 1980.

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