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ARTIGOS

TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E DESENVOLVIMENTO DA PERCEPÇÃO:


FUNDAMENTOS PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS
HISTORICAL-CULTURAL THEORY AND THE PERCEPTION DEVELOPMENT: GROUNDS FOR BABIES
EDUCATION

Elieuza Aparecida de Lima 1


Amanda Valiengo 2
Aline Escobar Magalhães Ribeiro 3

Resumo:
Neste artigo apresentamos reflexões sobre a criança e a Educação Infantil sob a perspectiva da Teoria
Histórico-Cultural (THC). Partimos de resultados de pesquisas e estudos atrelados às nossas participações em
Grupos de Pesquisa focados na criança e nas contribuições da THC para a Educação. Nesta oportunidade,
compartilhamos compreensões focadas na superação de ideias de criança e de educação orientadoras de
processos pedagógicos focados na assistência infantil ou daqueles sistematicamente voltados à antecipação da
escolaridade, transformando a criança pequena em escolar, como se somente o cuidado do corpo ou apenas o
ensino forçado respondesse às reais necessidades de desenvolvimento humano nos primeiros da vida. Em
lugar disso, a perspectiva histórico-cultural anuncia princípios teóricos capazes de mobilizar reflexões sobre a
criança, a Educação Infantil, a infância e o papel do(a) professor(a) nos primeiros anos de vida, como
alicerces para a organização de uma nova escola da infância, onde o(a) professor(a) torna-se sujeito propulsor
e mediador do processo educativo direcionado ao pleno desenvolvimento de capacidades tipicamente
humanas na infância, dentre as quais formas sofisticadas de percepção.
Palavras-chave: Educação Infantil. Papel do(a) professor(a). Teoria Histórico-Cultural. Desenvolvimento de
formas sofisticadas de Percepção.

Abstract:
In this article we present reflections about child and Children’s Education from the perspective of Historical-
Cultural Theory. We start from results of researches and studies linked to our participation in Research
Groups focused on child and the contributions of Historical-Cultural Theory for Education. On this occasion,
we share understandings focused on overcoming ideas of child and education of pedagogical processes
focused on childcare or those aimed systematically at advance the education, transforming the small child in
academic, as if only the care of the body or just the forced teaching can respond the real needs of human
development in the first years of life. Instead of this, the historical-cultural perspective announces theoretical
principles that are mobilize reflections about child, Children’s Education, childhood and the role of the first
years teachers, as building blocks for the organization of a new childhood school, where teacher becomes
subject propellant and mediator of the educational process directed to the full development of typically
human capacities in childhood, like sophisticated forms of perception.
Keywords: Children’s Education. Teacher’s role. Historical-Cultural Theory. Development of sophisticated
perception forms.

1
INTRODUÇÃO trabalhadoras imbuídas pela defesa da guarda de
seus filhos em creches (LIMA, 2001). 23No caso
Assim como em outros lugares desse
imenso planeta, no Brasil, a história da Educação
Infantil é marcada por reivindicações de mães 2
Doutorado em Educação pela Faculdade de Filosofia e
Ciências (Unesp-Marília), Professora da Rede Municipal de
Ensino em Mogi das Cruzes e da Faculdade Unida de
Suzano-SP
1 3
Professora Assistente Doutora junto ao Departamento de Mestrado em Educação pela Faculdade de Filosofia e
Didática da Faculdade de Filosofia e Ciências – Unesp- Ciências (Unesp-Marília), Professora da Rede Municipal de
Marília. e-mail: aelislima@ig.com.br Ensino de Marília-SP. Agência financiadora: Capes
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da sociedade brasileira, tais reivindicações datam para a Educação Infantil (BRASIL, 1998b) e as
particularmente a partir dos anos de 1970. Frutos Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
de movimentação social e política, as defesas e Infantil (BRASIL, 1998a; 2009).
reivindicações públicas efervescentes nesse Especificamente sobre o Referencial
momento se encontram expressas na Constituição Curricular para a Educação Infantil (BRASIL,
de 1988, na qual o Estado brasileiro regulamenta 1998b), por ser um documento citado e referido
o direito da criança à educação sistematizada em em propostas pedagógicas de escolas de Educação
creche e em pré-escola. Infantil brasileiras, uma leitura de seus
Na década seguinte do século XX, outras pressupostos é necessária (LIMA; VALIENGO,
legislações são sancionadas e favorecem 2009). Sua construção foi realizada na contramão
discussões e militâncias sócio-pedagógicas dos movimentos sociais que ocorreram desde a
dirigidas à garantia do direito da criança à década de 1980, como fruto de movimentação de
educação e não mais como um direito de suas diferentes segmentos da sociedade. Este
mães trabalhadoras. Dentre essas leis, em 1990, é documento não tem valor legal e foi idealizado
criado o Estatuto da Criança e do Adolescente – sem a participação efetiva dos profissionais que
ECA – Lei 8.069 de 1990 (BRASIL, 1990) que educam as crianças. Cerisara (2002) aponta que,
situa a criança como sujeito de direitos sociais. em relação ao aproveitamento dos estudos de
Adiante, em 1996, promulga-se a Lei de pesquisadores brasileiros militantes de uma
Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei Pedagogia da Infância, pouco foi considerado na
9.394/1996 (BRASIL, 1996) que estabelece, pela versão final do documento, ainda que a
primeira vez na história da sociedade brasileira, a bibliografia citada contemple um número
educação infantil como sendo a primeira etapa da considerável de trabalhos relativos à produção
educação básica. Para o campo da Educação recente da área. Em uma leitura atenta do
Infantil, essas conquistas dão novo status à documento, os esforços teóricos desses estudiosos
educação da criança pequena, por concebê-la foram desconsiderados, enviesados e não
como direito de todas as crianças brasileiras referenciados ao longo de todo o texto
(CAMPOS; ROSEMBERG, 1995) e têm (CERISARA, 2002).
implicações decisivas para reflexões Composto de três volumes (BRASIL,
contemporâneas acerca da garantia e ampliação de 1998b), o Referencial apresenta a ordenação legal
oportunidades de atendimento educativo da orientadora de sua elaboração: a Constituição
criança (LEITE FILHO, 2001), considerando suas Federal (BRASIL, 1988) e a Lei de Diretrizes e
possibilidades de aprendizagem e Bases da Educação – Lei 9.394/96 (BRASIL,
desenvolvimento cultural. 1996), com a perspectiva de contribuir com as
No entanto, apesar dos avanços do ponto de políticas e programas de Educação Infantil, de
vista das leis e da ampliação quantitativa das maneira a orientar propostas educativas existentes
creches e pré-escolas, em pleno século XXI, a com articulação de práticas sociais, políticas
atuação do Estado brasileiro em diferentes públicas e sistematização de conhecimentos,
localidades ainda é retratada em seu caráter determinantes de um projeto educativo. Contudo,
assistencial, especialmente ao considerarmos a versão final que “pretendeu seguir as
relações restritas “de guarda” e “de cuidado” orientações feitas pelos pareceristas da versão
estabelecidas no interior das escolas dedicadas às preliminar do documento, de ter como referência a
crianças pequenininhas, em detrimento do caráter criança não o ensino fundamental, [...] deixa
educativo humanizador que esses espaços também antever uma concepção de educação infantil muito
deveriam assumir, o que implica, sem dúvidas, o mais próxima da do ensino fundamental do que o
bem estar físico e emocional dos bebês (LIMA, próprio referencial declara em sua Introdução”
2001). (CERISARA, 2002, p. 336-337).
Nesse contexto político e educacional, ao O documento apresenta diferentes lacunas,
longo dessa história recente da Educação Infantil fragilidades, fragmentação de conceitos, bem
no Brasil, foram elaboradas diretrizes e propostas como uma “didatização” de componentes
pedagógicas direcionadas à educação da criança curriculares que acabam por disciplinar,
pequena. Em nível nacional, é possível citar escolarizar e aprisionar gestos, falas, emoções,
diferentes documentos, dentre os quais pensamentos, linguagens, expressões, vozes e
destacamos o Referencial Curricular Nacional corpos infantis (CERISARA, 2002).

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Com base nessa ideia, Cerisara (2002) ao desenvolvimento infantil, apontando


denuncia a desarticulação desse material em indicativas para a ação do(a) professor(a) em
relação ao processo de constituição de uma relação aos aspectos específicos da formação e
Política Nacional para a Educação Infantil aperfeiçoamento da percepção nos três primeiros
(BRASIL, 1998c), bem como propõe a leitura de anos de vida.
documentos elaborados pelo MEC, na COEDI,
tais como as Diretrizes Curriculares Nacionais DESENVOLVIMENTO DA PERCEPÇÃO
para a Educação Infantil (BRASIL, 1998a, 2009), NOS PRIMEIROS ANOS DE VIDA
como indicadoras de fundamentos para a
constituição de propostas pedagógicas para a A Escola Soviética de Psicologia, em sua
Educação Infantil, com ênfase em princípios vertente histórico-cultural, tem no pensamento de
éticos, políticos e estéticos. Vigotski, de seus colaboradores e seguidores seu
Diante desse quadro e assumindo a aporte teórico. Alguns dos estudiosos dessa escola
necessidade de conhecer mais e melhor conviveram e trabalharam com Vigotski nas
particularidades do desenvolvimento da criança primeiras décadas do século XX, outros são
pequena, emergiu a preocupação de refletir sobre discípulos que, atualmente, continuam as
as possibilidades de educação e de aprendizagem investigações focadas no desenvolvimento do
na infância e também acerca do papel do(a) psiquismo humano, por meio de análises
professor(a) no processo de formação cultural da específicas. Dentre os estudiosos dessa escola
criança de até três anos (LIMA, 2001). estão: Smirnov et al (1961), Leontiev (1978,
Lembremo-nos que a preocupação com a atuação 1988), Novoselova (1981), Galperin (1982),
do(a) professor(a) em escolas de Educação Liamina et al. (1982), Luria (1982), Talízina
Infantil emerge no seio de investigações focadas (1988), Sojin (1985), Venguer (1986), Elkonin
no desenvolvimento infantil motivado por (1987), Bozhóvich (1987), Liáudis e Bogdánova
processos educativos e condições de vida (1987), Lísina (1987), Zaporózhets (1987),
propícias, nos quais o adulto é essencial como Davidov (1995), Vygotski (1995), Mukhina
parceiro mais experiente para inserção da criança (1996). Nesta reflexão, particularmente focaremos
no âmbito das riquezas culturais produzidas pela os estudos de Smirnov et al (1961), Leontiev
humanidade (SMIRNOV et al., 1961; (1988); Zaporózhets (1987), Venguer (1986) e
LEONTIEV, 1978; LIAMINA et al., 1982; Mukhina (1996).
VENGUER, 1986; VYGOTSKI, 1995; O aporte teórico produzido por esses
MUKHINA, 1996). estudiosos traz análises sobre a natureza social
Nos dias atuais, ao confrontarmos essa humana, desvelando bases psicológicas inerentes
preocupação com o quadro do cotidiano da às reflexões sobre o desenvolvimento cultural da
educação de crianças pequenininhas (LIMA, consciência e da conduta da pessoa. Comungamos
2001), é possível perceber, de um modo geral, um dessas teses como alicerces teóricos capazes de
desencontro entre as práticas pedagógicas contribuírem para repensarmos a educação, ao
observadas e sua efetiva contribuição ao processo apontarem diretrizes didático-metodológicas que
pleno de aprendizagem infantil. Salientamos o possam nortear uma práxis pedagógica
papel motor da aprendizagem na formação das direcionada à educação das formas superiores de
premissas para o desenvolvimento das formas conduta.
superiores de conduta nos anos iniciais da vida. Para a Teoria Histórico-Cultural, o
Essa breve explanação retrospectiva motiva- desenvolvimento da inteligência, da
nos a discussões sobre o valor da educação da personalidade, das emoções, da consciência e do
criança de até três anos em escolas de Educação relacionamento da criança com outras pessoas – o
Infantil e sobre o papel do(a) professor(a) nas desenvolvimento de capacidades especificamente
relações pedagógicas intencionalmente humanas – acontece em seu processo de vida
organizadas, particularmente aquelas direcionadas social, por meio da atividade infantil e de
ao desenvolvimento cultural nos primeiros anos condições concretas de vida, em processos de
de vida. educação e de comunicação (LIMA, 2001). Em
Com essa perspectiva, nos limites desta outras palavras, essas ideias nos remetem ao
exposição, buscamos sistematizar contribuições entendimento de que o desenvolvimento cultural
advindas da Teoria Histórico-Cultural em relação constitui-se na atividade humana mediada pelas

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relações e pelas objetivações humanas, social e vida corretos, surgem outras necessidades
historicamente produzidas. sobre a base das quais se produz o
Essas compreensões denotam desenvolvimento psíquico: necessidade
especificidades sobre a natureza social humana: de obter impressões, necessidade de
movimentos, de contato com os adultos
cada pessoa não nasce pronta e acabada, mas se
[...]. (tradução nossa).
humaniza em patamares cada vez mais elevados
no decorrer de sua vida. Isto é, as características
Nessa perspectiva, desde o nascimento, os
humanas são externas à pessoa no seu nascimento.
processos de percepção são revelados mediante o
Por intermédio de sua atividade e da sua vivência
reflexo das qualidades dos objetos e dos
em sociedade, mediante processos de educação e
fenômenos da realidade, considerando a
de comunicação, a pessoa humaniza-se, apropria-
possibilidade ilimitada da criança receber as
se da experiência social, transformando-a em sua
influências perceptivas externas, por meio dos
própria experiência individual. Nesse sentido,
órgãos dos sentidos (olhos, boca, nariz, ouvidos,
além da herança congênita, biológica, e da
mãos, pés – por exemplo). Para Vénguer (1986), a
experiência individual estruturada sobre essa
necessidade de receber impressões externas
herança biológica, o homem, diferentemente dos
depende, pois, da preparação dos órgãos dos
animais, apropria-se da prática histórica e social, a
sentidos da criança para recepção das impressões
experiência humana construída e acumulada.
externas no ambiente social onde vive.
Conforme assinala Leontiev (1988), nesse
Ao nascer, a criança chega ao mundo social
processo de desenvolvimento ontogênico peculiar,
e tem novas condições de vida. Após o
distinto por seus mecanismos (de apropriação e
nascimento, os reflexos entram em ação e
objetivação – qualitativamente distintos dos
asseguram o funcionamento dos principais
processos de adaptação), o homem forma suas
sistemas do organismo (MUKHINA, 1996). Há
aptidões e capacidades humanas.
reflexos de orientação direcionados à alimentação,
Aprendemos em nossos estudos e pesquisas
por exemplo, e reflexos protetores voltados para,
que, nessa formação cultural humana, há um
dentre outras ações, fechar os olhos quando estão
processo sistêmico de desenvolvimento psíquico
expostos a uma luz forte ou direta. Assim como os
observado nas relações interfuncionais das
de sucção, preensão, impulso, esses reflexos são
funções psíquicas (por exemplo, as emoções, a
inatos. Eles garantem a sobrevivência da criança,
atenção, a memória, o pensamento, as diferentes
mas não constituem a base para o seu
formas de percepção) em desenvolvimento desde
desenvolvimento cultural. Quando as
os primeiros anos de vida. De modo especial, essa
necessidades orgânicas básicas são satisfeitas, em
ideia ratifica a tese de que a percepção – como as
condições favoráveis de vida e de educação, a
demais capacidades típicas do humano em nós – é
criança apropria-se de novas necessidades
uma das capacidades que possibilita à pessoa
humanizadoras, dentre elas as de perceber cores,
maneiras cada vez mais sofisticadas de orientação
cheiros, sabores, sons, texturas.
na realidade, relevando o papel essencial da
Os órgãos dos sentidos são responsáveis
atividade infantil e da mediação do(a) professor(a)
pela percepção que a criança terá. Esses órgãos
nesse processo de domínio da conduta.
não estão completamente desenvolvidos quando a
Assim como as demais capacidades
criança nasce e, por isso, precisam de estímulo e
psíquicas, a percepção desenvolve-se a partir das
maturação do sistema nervoso para se
oportunidades de experiência e atividade da desenvolverem. A visão e a audição se
criança, desde bem pequenininha. Nas palavras de
aperfeiçoam rapidamente nas primeiras semanas
Venguer (1986, p. 68),
de vida (MUKHINA, 1996).
Diferentemente dos outros animais, o bebê
A característica principal do recém
nascido é a possibilidade ilimitada de depende completamente de um adulto que realiza
adquirir nova experiência e formas de seus cuidados e educação. O adulto é o
conduta inerentes ao homem. Se a responsável pelas impressões audiovisuais para a
satisfação de suas necessidades orgânicas formação do sistema nervoso da criança. Assim,
está assegurada em certa medida, estas as possibilidades de percepção da criança são
perdem rapidamente seu predomínio. Se determinadas pelo adulto. Embora o bebê ainda
mantém-se uma educação e um horário de não possa se locomover nos primeiros meses de

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sua vida, ele aprende a olhar o que o adulto lhe gustativas, auditivas, visuais e táteis, dirigindo-se
oferece ou perceber cores, sons e texturas carinhosamente e falando diretamente com eles,
dependendo da posição que o adulto lhe enaltecendo o barulho e o cheiro da chuva, por
proporciona. exemplo, ou lhe instigando a saborear uma fruta.
A percepção do recém nascido vai sendo Um bom exemplo de como esse processo
construída a partir da maturação do cérebro e pode ser potencializado é a partir da organização
principalmente por aquilo que o mundo externo de uma Cesta dos Tesouros (GOLDSCHMIED;
lhe oferece. Isto é, trata-se de capacidade psíquica JACKSON, 2006), em que elementos do uso
que, para se aperfeiçoar, depende das cotidiano adulto, e que estão fora do alcance das
possibilidades oferecidas pelos adultos, já que as crianças, são selecionados e estruturados de modo
capacidades psíquicas em níveis atrativo para a manipulação dos bebês que já
sofisticados/superiores não são constituídas por conseguem permanecer na posição sentada.
meio de maturações orgânicas. Ao observar um bebê que começa a ficar
A partir dessa ideia geral e central acerca da sentado, podemos perceber seu fascínio por
percepção, como capacidade psíquica humana que objetos como panelas, talheres, caixas de sapato e
nos permite perceber e observar o conjunto das chaves. Quando começam a se locomover, esses
qualidades dos objetos e dos fenômenos, na objetos passam a ser atrativos e podem se tornar
seqüência, discutimos acerca do desenvolvimento seus brinquedos favoritos. Ao mesmo tempo, seu
da percepção no curso dos três primeiros anos de cérebro está se desenvolvendo em velocidade
vida, a partir de pressupostos da Teoria Histórico- inigualável a outros períodos de sua vida. Com
Cultural sobre a formação cultural de capacidades base nessa premissa, a Cesta de Tesouros foi
típicas do homem. idealizada.
Nas palavras de Lima (2001), a criança Para sua composição, os objetos são
pequena inicia o processo de desenvolvimento da escolhidos e compilados com a finalidade de
percepção, já nos primeiros meses de vida, como estimulação dos sentidos das crianças
já apontado anteriormente. Ao nascer, seus pequenininhas. São materiais diversificados.
reflexos são incondicionados: isso significa que a Majem e Òdena (2010) sintetizam alguns tipos
criança ainda não diferencia as impressões deles: os naturais tais como pedras, sementes
recebidas. O convívio social comunicativo grandes, rolhas ou frutas – limão, maçã, romã; ou
(caracterizado pelas oportunidades olfativas, de ainda industrializados tais como novelos de lã,
visão, tateio, audição e gustação, em relações escovas de dentes, pincéis ou brochas; objetos de
mediadas pelo educador) possibilita o madeira: chocalhos, toquinhos, colheres ou
condicionamento desses reflexos por parte da espátulas; objetos metálicos: colheres de diversos
criança. tamanhos, latas, argolas de cortina, sinos,
Na atividade comunicativa emocional – chaveiros; objetos de couro, tecidos, borracha,
considerada a atividade principal do primeiro ano feltro: bonecas de pano, bolas de tênis, rede de
de vida, o bebê aprende a diferenciar os estímulos pesca, tubos de borracha, retalhos de tecido, couro
recebidos, passando a organizar seus reflexos e e feltro; objetos de papel e papelão: caixinhas,
iniciando um controle elementar sobre eles. Nesse tubos, cones e cilindros de papelão, cadernos com
processo, o(a) professor(a) pode criar espiral; objetos de vidro: embalagens de perfume
oportunidades para a criança organizar seus e maquiagem, colares, puxadores de armários,
reflexos de forma condicionada/diferenciada, por dentre outros.
meio de conversas com o bebê, orientando o seu De acordo com Majem e Òdena (2010), é
olhar e a sua escuta, por exemplo. essencial reunir aproximadamente sessenta (60)
Um dos focos do trabalho educativo nos objetos a serem organizados atrativamente em um
primeiros meses de vida é, pois, a organização cesto firme com aproximadamente trinta e cinco
intencional de situações educativas que (35) centímetros de diâmetro e oito (8)
possibilitem à criança perceber cores, sons, centímetros de altura. Além desses materiais
texturas, cheiros, sabores, resultante da relação serem higienizados constantemente, é essencial
comunicativa do(a) professor(a) com o bebê. que sejam substituídos com certa periodicidade,
Nessa relação, esse profissional propõe com a intenção de renovar os materiais e mantê-
oportunidades educativas capazes de garantir o los atrativos para os bebês.
direito dos bebês a ricas experiências olfativas,

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30 Teoria histórico-cultural e desenvolvimento da percepção: fundamentos para a educação de bebês

Nessa ação com objetos, a criança criança são o período de elaboração das
desenvolve e estrutura modos de percepção e de conexões reflexo-condicionadas
pensamento, além da capacidade de concentração, fundamentais entre os analisadores
de escolha e do prazer da surpresa, mediante [olhos, mãos, boca, ouvidos] (por
exemplo, tátil-visual) cuja formação exige
exploração dos objetos e sem a intervenção direta
movimentos e ações imediatas com
do adulto. No entanto, vale ressaltar a importância objetos. Nessa idade, as crianças ao
da presença atenta do adulto nessa ação objetal, mesmo tempo olham os objetos, os
representando fonte de segurança e prazer à apalpam e tocam. Posteriormente, quando
criança. Segundo Majem e Òdena (2010, p. 27): essas relações estão mais consistentes e
diferenciadas, a ação imediata com os
Ainda que o adulto não intervenha nem objetos já não é indispensável e a
interfira nas ações das crianças, será um percepção visual torna-se um processo,
ponto estável de referência para elas. É relativamente independente, em que o
importante que observe as transformações componente motor intervém de forma
e os progressos de cada criança, e que encoberta (principalmente nos
perceba quais objetos querem alcançar e movimentos dos olhos). Esses dois
quais meios utilizam para isso. Desse estados são observados sempre, mas não
modo poderá conhecer os interesses, se pode relacioná-los a uma idade
preferências e progressos de cada menino determinada, já que depende das
ou menina. condições de vida, de educação e de
ensino da criança.
A não intervenção direta do adulto enquanto
as crianças tateiam e manipulam objetos Desde o nascimento da criança, a
constantes na Cesta dos Tesouros não significa intencionalidade do(a) professor(a) no ato
um tempo livre em que o(a) professor(a) possa educativo, torna-se, assim, condição para seu
permanecer fazendo outra tarefa, mas, sobretudo, desenvolvimento cultural, superando os limites do
se trata de oportunidade didático-pedagógica para que a natureza biológica lhe dá. A oportunização
observação das ações e atitudes infantis. Com de situações propícias para a ação da criança será
isso, a brincadeira manipulatória com objetos “o motor” da aprendizagem de formas superiores
entre duas ou três crianças em torno da cesta deve de percepção, o que fundamenta a reorganização
sempre ter a supervisão atenta, calma e das estruturas psíquicas elementares. Nesse
estimulante do adulto. Nesse sentido, as crianças, processo de reorganização das funções psíquicas,
movidas por sua curiosidade, podem explorar os acontece a passagem qualitativa das formas
objetos da Cesta e, por meio dessa manipulação primárias, involuntárias e inferiores de percepção
objetal exploratória, há condições efetivas de às formas mais sofisticadas, voluntárias e
ativação e aperfeiçoamento de percepções táteis, superiores de orientação visual, olfativa, gustativa,
gustativas, olfativas, auditivas e visuais. táctil e auditiva.
As proposições de Venguer (1986) ratificam Nessa perspectiva, o conhecimento das
essas assertivas. Para o pesquisador, os primeiros peculiaridades inerentes ao desenvolvimento das
anos de vida são fundamentais para o capacidades humanas, isto é, o conhecimento das
desenvolvimento das premissas para a formação regularidades do complexo processo de
da personalidade infantil e, de modo específico, humanização do homem representa condição
para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da necessária à atuação intencional do(a)
percepção visual, da percepção tátil e da professor(a), entretanto, enfatizamos que apenas a
percepção auditiva. observância desses fundamentos, em si, não
Em concordância com essas ideias, garante a ação educativa intencional e consciente.
recuperamos as proposições de Smirnov et al. Ela tem valor quando orienta encaminhamentos
(1961, p. 174): didáticos da atividade docente caracterizadas em
situações educativas planejadas para o trabalho
As leis de formação das conexões com crianças pequenas, dentre as quais o cultivo
reflexo-condicionadas explicam também da observação dessas crianças como possibilidade
a estreita relação que existe entre a para melhor conhecê-las e educá-las e para
percepção infantil e os movimentos e atos garantir seus direitos sociais fundamentais como o
da criança. Os primeiros anos de vida da direito à educação em ambientes extra familiares.

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LIMA; VALIENGO; RIBEIRO 31

De um a três anos, algumas conquistas alguns aspectos, como o espaço, que pode ser a
essenciais da criança são o andar ereto, o sala em que as crianças estejam acostumadas a
desenvolvimento da atividade objetal e o domínio brincar. Porém, não deve ter outros objetos ou
da linguagem (MUKHINA, 1996). Quando a brinquedos que distraiam a atenção infantil e,
criança passa a andar de maneira ereta, ela passa a além disso, o local precisa estar devidamente
experimentar o mundo com maior amplitude de preparado com material concreto não catalogado
possibilidades. Primeiro ela é estimulada pelo como didático, tendo o tempo de
adulto e depois, quando começa a andar, pelo aproximadamente 45 minutos para cada sessão
próprio prazer e autonomia possibilitados pelo (que se divide em dois momentos: o primeiro, de
caminhar. Aprende a capacidade de se orientar no aproximadamente 20 a 25 minutos de livre
espaço. exploração pelas crianças e o segundo, de
Para Lima (2001), nos primeiros anos de aproximadamente 20 minutos para a organização
vida, essas conquistas relacionam-se diretamente dos materiais nas sacolas) e disponibilidade de
ao desenvolvimento das formas de percepção, uma ou duas professoras para estar com as
intrinsecamente orientada pela execução de ações crianças “brincantes”.
com objetos (a atividade infantil principal ou guia Dentre os materiais a serem utilizados nessa
de um a três anos). A familiarização com as brincadeira estão objetos, recipientes e sacolas. Os
propriedades objetais (formas, cores e objetos podem ser provenientes da natureza como,
magnitudes) e com as relações espaciais forma por exemplo, conchas, esponjas, buchas, gravetos
“uma reserva de impressões sobre essas pequenos; podem ser comprados, tais como rolos
propriedades, o que constitui a premissa para o de cabelo, prendedor de roupas, pedaços de
desenvolvimento intelectual posterior” mangueira; podem ser confeccionados como
(VENGUER, 1986, p. 115-116). Assim, o pompons de lã e retalhos de tecido e podem,
desenvolvimento das formas de percepção e ainda, ter as mais diversas procedências, dentre os
orientação infantis fundamenta o aperfeiçoamento quais cilindros de papelão, tampas de metal,
e a re-organização das formações psíquicas em chaves, pedaços de cano, rolhas, pedaços de
níveis superiores. barbante. É fundamental que existam, pelo menos,
Essas proposições de Lima (2001) são cinquenta (50) objetos do mesmo tipo em bom
amparadas nas assertivas de Mukhina (1996, p. estado para cada criança. Os recipientes têm a
96): “A orientação da criança no mundo que a finalidade de conter outros objetos, como, por
rodeia, por meio de movimentos e ações externas, exemplo, cilindros de papelão ou metal, latas,
é anterior à orientação por meio de processos caixas de madeira, contendo base ou não. É
psíquicos (percepção e reflexão) e é a base interessante a existência de três ou quatro
desses”. recipientes por criança para cada sessão de
Nesse processo de desenvolvimento das brincadeira heurística.
percepções, a atividade objetal é fundamental. Ela As sacolas são confeccionadas com tecido
envolve diferentes momentos, dos quais o medindo aproximadamente 50 x 50 centímetros,
primeiro é o uso indiscriminado do objeto. Num dependendo do material que será guardado nela,
segundo momento, há a utilização direta do objeto devendo ser identificadas e guardadas penduradas
apenas para sua função, e o terceiro trata-se do para facilitar a organização (MAJEM; ÒDENA,
uso livre, mas consciente de sua função específica 2010).
(MUKHINA, 1996). A apropriação do objeto pela Antes de iniciar cada sessão o(a)
criança é mediada pela relação do adulto, por professor(a) prepara o espaço, retirando todos os
meio principalmente da linguagem oral. brinquedos que possam atrair a atenção das
Na direção dessas ideias, as considerações crianças; depois dispõe três ou quatro tipos de
de Majem e Òdena (2010) contribuem para nossas objetos, juntamente com recipientes nos cantos da
discussões. Para essas estudiosas, para a sala, senta-se e observa. Num primeiro momento,
ampliação das referências perceptivas das as crianças exploram e combinam os objetos e,
crianças, a brincadeira heurística configura-se nessa atividade, descobrem as propriedades e os
como uma atividade destinada aos bebês maiores, diferentes tipos de materiais dos objetos, por
entre 12 e 20-24 meses a ser realizada em exemplo.
pequenos grupos, no máximo dez crianças. Para Num segundo momento, as crianças fazem
desenvolver a brincadeira, devemos observar a recolha do material, guardando-o dentro das

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32 Teoria histórico-cultural e desenvolvimento da percepção: fundamentos para a educação de bebês

sacolas que são oferecidas pela professora. Todo o determinar especialmente sua forma, sua
trabalho é dirigido pelo adulto. Essa etapa da cor, as relações de tamanho ou outras
brincadeira motiva a mobilidade das crianças e propriedades, isso não determinará nela a
auxilia a estruturação do pensamento do(a)s formação de representações precisas. Tais
representações formar-se-ão somente
pequeno(a)s, uma vez que favorece a classificação
como resultado da execução de ações de
dos objetos no momento de guardá-los. O(a) percepção, relacionadas com os objetos
professor(a) tem o papel de, inicialmente, começar que apresentem distintas propriedades. E
a recolha, retirando objetos que já não atraem o essas ações, como já vimos, estão
interesse das crianças e guardando-os. relacionadas com os tipos de atividade
Posteriormente, permanece sentado, orientando prática característicos da criança,
verbalmente a atividade de recolhas das crianças. fundamentalmente com a atividade com
Vale ressaltar o papel fundamental do professor objetos. Por isso, a acumulação de
(a) durante a brincadeira heurística: representações sobre as propriedades dos
objetos, dependerá da medida em que a
A professora deve controlar tanto o criança necessite considerar as diversas
progresso das crianças como a evolução características (distintas formas, cores,
da tarefa educativa a que se propôs. A relações de tamanho, etc.) durante suas
todo o momento, precisa saber o que quer ações com objetos, já tendo dominado a
conseguir e que meios deve colocar em orientação visual ao realizar essas ações.
jogo, se está obtendo, ou não, os
resultados que pretendia e se os Nessa perspectiva, o papel do(a)
resultados são o que necessitam todas e professor(a) é possibilitar ações com objetos com
cada uma das crianças. E, sobretudo, diferentes propriedades e relações entre eles e no
precisa saber que modificações convém espaço circundante, com o objetivo de enriquecer
propor no que diz respeito à duração da as representações da criança referentes aos
atividade, ao material oferecido, a objetos.
adequação do espaço, à sua intervenção A relação existente entre o desenvolvimento
como pessoa adulta e o ambiente em
da percepção e a formação das representações
geral. (MAJEM; ÒDENA, 2010, p. 64).
sobre as propriedades objetais dá novo significado
à relação intrínseca desse processo com o
O(a) professor(a) é organizador de todo o
desenvolvimento da linguagem na infância. A
processo, selecionando e compilando os materiais,
maior parte das palavras apreendidas pela criança,
estruturando-os de modo atrativo às crianças,
nos primeiros anos de vida, representa objetos e
cuidando do tempo, observando, estimulando por
ações. Ao se apropriar dos nomes dos objetos, a
meio de um sorriso ou poucas palavras durante a
criança aprende a reconhecer os objetos
exploração das crianças, cuidando dos materiais,
independentemente de suas variações externas
no que se refere à higienização e substituição,
(cor, tamanho e forma), mas se confunde na
quando necessário e, ainda, orientando o momento
distinção das cores, por exemplo.
da recolha por meio de palavras simples e diretas,
Conjuntamente com o desenvolvimento
como, por exemplo: “atrás de você tem dois
geral da percepção aperfeiçoa-se, de modo
objetos”, “tem um debaixo da cadeira”.
particular, a percepção auditiva. Segundo Venguer
Ressaltamos que, em acordo com
(1986, p. 117):
Goldschmied e Jackson (2006), a brincadeira
heurística não se configura como uma prescrição e
A principal atividade nas crianças da
sim como uma abordagem. Nesse sentido, não há primeira infância está relacionada com a
uma única maneira correta de desenvolvê-la, mas, percepção de sons. Por essa razão
dependerá da criatividade e intencionalidade do(a) desenvolve-se de forma intensa o ouvido
professor(a), tornando a tarefa de cuidar das fonemático (responsável pela
crianças estimulante e enriquecedora. discriminação dos sons), a percepção de
Segundo Venguer (1986, p. 116), sons da língua materna. Da percepção das
palavras como complexos sonoros
[...] se os objetos estão simplesmente ante desarticulados, que diferem entre si pelas
a visão da criança, inclusive se ela os particularidades da estrutura rítmica e da
examinar, mas não sentir a necessidade de entonação, a criança passa gradualmente
à percepção da composição sonora das

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palavras. [...] No entanto, a consolidação percepção dos mesmos objetos e


do ouvido fonemático se conquista nos fenômenos é diferente, em cada uma
anos posteriores. delas e inclusive em uma mesma pessoa
em distintos períodos de sua vida; um
O aperfeiçoamento e complexificação da mesmo objeto ou fenômeno pode ser
percepção humana são fundamentados pelos percebido a partir de distintos pontos de
conhecimentos apropriados ontogenicamente, vista, com diferente exatidão e extensão.
Como todos os processos de
aqueles conhecimentos que constituem a
conhecimento, a percepção, sendo reflexo
experiência pessoal acumulada. Nesse sentido, o ou representação do mundo real, depende
maior ou menor grau de desenvolvimento da das características do sujeito que
percepção depende da experiência anterior do percebe, de seus conhecimentos, de suas
indivíduo, dos conhecimentos por ele assimilados. necessidades, de seus interesses, etc.
Daí acrescentarmos que, para Smirnov et al. Como a sensação, a percepção é uma
(1961, p. 144), “a percepção de algo, como objeto imagem subjetiva do mundo real. (grifos
ou fenômeno determinado da realidade, seria no original).
impossível sem o apoio na experiência passada”
(grifos no original). Somente a atuação no mundo permite ao
Assim sendo, a experiência na atividade homem a apropriação de formas cada vez mais
acumulada pela criança (atividade comunicativa sofisticadas de perceber as diferentes qualidades e
emocional, atividade com objetos, jogos, estudo, propriedades dos objetos com os quais se
etc.), é o fundamento da passagem qualitativa das relaciona ao longo de sua vida.
formas primárias de percepção à formação da
percepção em nível superior. Nessa perspectiva, CONSIDERAÇÕES FINAIS
nos primeiros anos de vida, a mediação do(a)
professor(a) visa garantir à criança a ação com A exposição anterior pautou-se em
objetos diferenciados, bem como observações do contribuições da teoria elaborada por Vigotski e
ambiente circundante que se tornam condição seus colaboradores, denominada Teoria Histórico-
indispensável ao desenvolvimento perceptivo do Cultural, para a educação de modo geral e de
bebê. modo particular para a educação de crianças
É a atividade prática do indivíduo – para a pequenas. Conforme buscamos ratificar, tratou-se
criança pequena, a atividade com objetos e de olhares atentos à infância baseados em estudos
comunicação com outras pessoas – que o torna realizados por nós, com a perspectiva de reflexão
capaz de perceber diferentes qualidades acerca de sobre os novos sentidos atribuídos à Educação
objetos e fenômenos reais. O processo em que a Infantil, por meio de compreensões sobre a
criança aprende a observar e perceber as criança e sua infância, bem como de suas
particularidades essenciais nesses objetos e necessidades de desenvolvimento.
fenômenos sociais é um processo de educação: Ao longo do texto, defendemos o lugar e a
um processo por meio do qual a criança aprende o essencialidade da Educação Infantil, desde os
modo de atuar sobre objetos e fenômenos sociais e primeiros meses de vida, no processo de formação
a percebê-los por meio de suas características da inteligência e da personalidade da criança – seu
mais essenciais, dando a essa percepção um desenvolvimento como ser genérico, isto é, seu
sentido. desenvolvimento cultural.
Esse entendimento assinala a natureza Destacamos que, a partir do entendimento
social das funções psíquicas superiores, de que a criança possui ilimitada capacidade de
fundamentada pelas apropriações e objetivações aprendizagem, como sujeito capaz de atuar no
do sujeito, por sua ação em processos de mundo, se relacionar e conviver com outras
comunicação. Nesse sentido, a percepção é uma crianças e adultos de seu entorno, ela constitui sua
função psíquica que se fundamenta na prática natureza social humana mediante apropriações e
social. Conforme Smirnov et al. (1961, p. 144), objetivações motivadoras de seu desenvolvimento
cultural. Assim, a expectativa que se tem sobre a
Como as pessoas, segundo sua idade, seu criança, o lugar destinado a ela na sociedade em
nível cultural, sua profissão e outras geral e, em particular, no espaço educativo e,
condições, têm distinta experiência, a fundamentalmente, as oportunidades de

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34 Teoria histórico-cultural e desenvolvimento da percepção: fundamentos para a educação de bebês

aprendizagem que lhe oferecemos, fortalece esse incorpora as capacidades, habilidades e aptidões
novo entendimento: a criança como pessoa com humanas, também historicamente criadas pela
direitos próprios, particularidades e interesses a humanidade, contidas nesses objetos da cultura.
serem ampliados por meio das relações Esses objetos podem ser materiais como
vivenciadas dentro e fora de escolas de Educação instrumentos do dia a dia – objetos e máquinas –
Infantil. ou podem também ser objetos não-materiais,
Conforme continuamente ratificamos, como a linguagem e os costumes, por exemplo.
decorrente desse novo olhar sobre a criança, Desse novo sentido de educação,
surge, também, uma nova significação para a compreendemos o(a)s professore(a)s como
Educação Infantil como possibilidade de profissionais habilitados a inserir conscientemente
humanização, oriunda de processos intencionais e a criança como partícipe ativa na aprendizagem do
conscientes de ensino e de aprendizagem das conhecimento e das relações humanas. Esse(a)s
crianças a partir do seu nascimento. Nessa professore(a)s assumem papéis como
perspectiva, com base nesses novos sentidos interventores, na medida em que observam,
atribuídos à criança e à sua educação, o papel escutam, refletem, documentam e interpretam o
do(a) professor(a), também, se transforma. De processo realizado pela criança, questionam os
acordo com nossa defesa fundamentada nos seus próprios saberes e certezas. Assim se tornam
pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, no sensíveis e abertos para escutá-la, oportunizando
complexo processo de Educação Infantil, o(a) uma educação infantil com base na mediação
professor(a) torna-se profissional capaz de criar recíproca, na qual a criança e os professores(as)
elos mediadores entre a criança e o conhecimento constituem-se como sujeitos e parceiros mais
a ser aprendido, de maneira a escolher os experientes na prática pedagógica.
melhores caminhos e conteúdos da cultura para a Com isso, professor(a) e criança assumem
atividade e, conseqüente, aprendizagem infantil. diferentes papéis no processo educativo, embora
Essas novas perspectivas sobre quem é a ambos sejam denotativos de atitude ativa nas
criança na sociedade contemporânea avançam e se relações vivenciadas no interior da escola da
fortalecem em vários lugares do mundo. Em infância. Ressaltamos, portanto, a importância de
alguns países europeus e mesmo entre nós, a partir professor(a) e criança serem sujeitos capazes de
de experiências avançadas na área da Educação atribuição de sentidos às suas realizações dentro e
Infantil, surgem significações forjadas por fora da escola da infância. Evidentemente, o
princípios de atuação intencional do(a)s ensino intencional e planejado caracteriza a
professore(a)s em relação à educação da criança. atividade do(a) professor(a). Ensina-se à criança
Trata-se da educação pautada em estudos, tomada aquilo que ela ainda não sabe e que o(a)
de consciência sobre a atuação docente e a professor(a), como sujeito mais experiente e
atividade infantil provocada por meio da profissional preparado para isso, pode realizar, por
organização intencional de situações pedagógicas meio de tarefas didáticas essenciais, dentre as
baseadas no sentido de ouvir, observar e se quais o planejamento e a avaliação. As relações
relacionar com a criança por intermédio da entre adultos e crianças tomam outra conotação:
reflexão sobre quais são as especificidades da esses sujeitos surgem como protagonistas nos
infância e seus direitos fundamentais (LEITE processos de ensino e de aprendizagem de
FILHO, 2001; CAMPOS; ROSEMBERG, 1995; conhecimentos historicamente elaborados.
MUKHINA, 1996). A partir desta nova Em relação ao desenvolvimento de formas
perspectiva sobre a infância e a criança, o(a) sofisticadas de percepção, os primeiros anos de
professor(a) apropria-se de elementos de reflexão vida são propícios para aprendizagens essenciais a
sobre as reais necessidades e as formas mais esse desenvolvimento eminentemente cultural.
adequadas para motivação do desenvolvimento de Como buscamos afirmar, a partir dos
capacidades humanas em cada criança. ensinamentos advindos de leituras e reflexões
Essa nova atitude docente está atrelada a um sobre pressupostos da Teoria Histórico-Cultural,
outro entendimento de educação. A educação as situações educativas intencionalmente
assume papel primordial no desenvolvimento organizadas para crianças bem pequenininhas
humano. Por meio da educação, a criança se podem potencializar o uso e a mobilização de
apropria dos objetos criados historicamente pela formas de percepção, por meio de uma
humanidade e, nesse processo, reproduz e

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Tradução de Suely Amaral Mello e Maria Carmen
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