Você está na página 1de 11

SOBRE A PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA

O que era reputado como distrações, meros


equívocos sem maiores efeitos ou mesmo ausência de
disciplina (racionalizações egoicas que pretendem
neutralizar, mediante justificativas, tais aspectos
veiculadores de enigmas do inconsciente), passou a ser
objeto de estudos.

Alvo de críticas pela presumida “amostra viciada”


nos “Estudos Sobre a Histeria”, onde abordou a terapêutica
efetuada em 5 pacientes mulheres da classe média
vienense, com “A Interpretação dos Sonhos”, Freud
discorreu sobre uma temática que envolvia toda e qualquer
pessoa. No texto em estudo, ele ampliou ainda o
conhecimento sobre mais essas ações do inconsciente.

O mapeamento dos mecanismos psíquicos


pelos quais o inconsciente se põe na vida do sujeito iniciou-
se com as neuroses, passando pelos sonhos e, com o
texto em foco, incluiu novos elementos -- atos falhos,
lapsos, esquecimentos etc. Eles não ocorrem
aleatoriamente, mas são motivados por dinâmicas
inconscientes mediante operações variadas a fim de
alcançarem a consciência.
Trocas de nomes próprios: se dá por causa
motivada e associada ao inconsciente da pessoa. Seria
resultado de algo não aleatório, pois que articulado por
todo o campo inconsciente e se valendo de seus
processos determinados. O nome falado estaria ligado de
alguma forma ao nome esquecido e traria consigo uma
razão para tanto.

Cabe à análise rastrear esses processos,


identificar a sua origem, descobrir a sua motivação e
interpretar as suas associações.

Somos atravessados por recordações,


representações, deslocamentos afetivos. Há, no
inconsciente, um conjunto de aspectos tidos por
incompatíveis com a instância do eu ou com a imagem
que o ego tem de si mesmo. Tais conteúdos recalcados
buscam modos de emersão ao consciente, assim o
fazendo por formações inconscientes que operam pela
modificação ou deformação dos conteúdos
inconscientes, de modo a não serem identificados pelo
consciente, permitindo que passem ao largo da censura e
de sua vigilância.

Saber esse percurso é fundamental ao analista


para, por intermédio de associações livres, perceber
quais os conteúdos recalcados que afligem psiquicamente
o analisando e os processos de seu retorno fragmentário
ao consciente.

Enquanto o consciente trabalha em função dos


aprendizados da razão, o inconsciente atua em função de
energias flutuantes geridas pelo processo primário,
fazendo relações entre objetos mentais (representações,
recordações) de maneira imprevisível à consciência.
Assim, o inconsciente busca fazer ligações entre
representações diversas a fim de criar caminhos de
escoamento da pulsão.

Nesse contexto, operam-se as diversas espécies de


atos falhos e lapsos.

Capítulo I – Esquecimento de Nomes


O nome esquecido, por incerta motivação ics, deixa
de ser lembrado por conta de alguma resistência que atua
psiquicamente contra a sua lembrança, fato que pode se
dar tanto em relação à pessoa cujo nome se esqueceu,
como por associação desse nome a alguém ou a algo
contra quem ou em relação ao que o psiquismo adota uma
postura de afastamento pelo processo do recalcamento.
Exemplo: uma pessoa aleatória que se chama Maíra.
Pode ser que o sujeito que, ao se referir a ela, não
consegue lembrar o nome da mesma, tenha algum tipo de
pensamento ou afeto, ou mesmo tenha vivido alguma
situação com tal pessoa que lhe evocou alguma
contrariedade, angústia, raiva, tristeza, desencanto,
temor etc. Assim, quando a ela alude, encontra dificuldade
em nomeá-la. Isso pode ser também por conta de outra
pessoa com o mesmo nome ou de cuja semelhança
fonética com o da mesma suscite uma ação de defesa,
repelindo-o, ainda que temporariamente, da cs ou mesmo
do pcs.

Capítulo II – Esquecimento de Palavras Estrangeiras


Embora seja preciso contar como agravante desse
esquecimento o fato de, muitas vezes, ocorrer o uso menos
frequente do idioma estrangeiro em nossas relações
habituais, o processo psíquico é semelhante àquele do
esquecimento de nomes do idioma do falante, ou seja,
opera-se uma resistência à lembrança do vocábulo pela
sua associação direta ou indireta a algo que provoque
angústia ou algum tipo de sensação desprazerosa ao
sujeito do ics.
Exemplo: tomemos o substantivo em inglês “May” ou o
nome próprio “Mary”. Pode ser que a pessoa, ao tentar
verbalizar o segundo, diga o primeiro. E se esforçando
mais um pouco, pronuncie o segundo. Essa confusão,
mesmo que temporária, é sinal de que o nome trocado
(“May” ao invés de “Mary”) possa tanto ter um caráter
encobridor quanto revelador. Seria encobridor se o
recalque se referisse a certa Mary com quem o sujeito teve
alguma experiência desagradável, o que não é dito e
permanece no desconhecimento. Seria revelador se a
palavra que vem no lugar de outra se refira a algo de
grande importância ao falante/escritor/pensador, como, por
exemplo, o mês em que nasceu etc., ou seja, pode indicar
a perturbação proveniente de um pensamento ou afeto
cujo recalque produziu uma contradição interna (palavra
encobridora) ou o retorno de um conteúdo recalcado que
se aproveitou da associação nominal para aceder à cs.
Enfim, é pela investigação analítica realizada mais a
fundo que se poderá alcançar a compreensão.

Capítulo III – Esquecimento de Nomes e Sequência de


Palavras
Lacunas, distorções, esquecimentos,
substituições de nomes ou palavras expressam a
operação de processos psíquicos no sujeito. A causa de
uma simples e inofensiva falha sugere que houve algum
tipo de associação a assuntos até mesmo remotos e
íntimos da vida da pessoa (“afeto penoso”, segundo
Freud).
Exemplo: Eu afirmo que “meus pães-de-queijo são
(…) do que os de uma certa mineira”. Ora, a falta da
palavra pode sinalizar uma inibição ou recalque que operou
no momento da verbalização, deixando a oração sem
sentido. Analisando o fato, pode ser que eu conclua que: i)
a palavra ausente seria “piores” [não esqueçamos de que
se trata de um mero exemplo e, por isso, bastante irreal], a
qual não foi pronunciada porque, se o fosse, iria ferir
caracteres de meu narcisismo; ii) a palavra ausente seria
“melhores” [muitíssimo mais condizente com a realidade, é
claro], cujo não pronunciamento teria se operado em razão
de alguma moralidade ou cultura introjetada que me
impediria de fazer elogios a mim mesmo.
Freud explica isso da seguinte forma: “o nome perdido
tocou num ‘complexo pessoal’ em mim, tratando-se,
assim, de um efeito colateral do sintoma neurótico. Cuida-
se, então, da conjugação entre causa cs ou ics e
mecanismo ics que produz esse efeito, interferindo na
reprodução do vocábulo, o que pode ser sintetizado pela
seguinte equivalência:
Nome perturbador ↔ Complexo perturbador ↔ Nome perturbado

Para Freud, os complexos perturbadores mais


frequentes seriam aqueles relacionados a aspectos
íntimos, familiares e profissionais do sujeito, denominados
autorreferentes. Em todos os casos, o que há de mais
comum nesse processo é a atuação da defesa psíquica
para evitar que as lembranças despertem desprazer, seja
por aquilo ou aquele(a) a que o vocábulo se refere
diretamente, seja por causa de seus vínculos
associativos a algo que igualmente provoque angústia.

Ele assinala, ainda, que haveria um caráter psíquico


contagioso no esquecimento de nomes, o que poderia
ser constatado quando, numa conversa entre duas
pessoas, bastaria haver a menção ao esquecimento por um
sujeito para que também ao outro lhe escapasse da
memória o mesmo nome – o que, salienta-se, não se trata
de fato genérico, mas circunstancial –, inserindo-se isso
nas especificidades da psicologia das massas (contágio
coletivo).

Por fim, é também possível que haja esquecimento de


toda uma cadeia de palavras, isto é, o esquecimento
saltaria de uma palavra a outra de apoio, indicando a
existência de forte resistência a qualquer associação
nominal.

Capítulo IV – Lembranças da Infância e Lembranças


Encobridoras

Há uma natureza tendenciosa no funcionamento da


memória. Isso porque ela faria uma seleção entre as
impressões que lhe são oferecidas em razão do fato de as
lembranças infantis de fatos indiferentes ao sujeito se
processarem no psiquismo mediante o deslocamento, de
maneira que seriam substituídas por outras realmente
significativas cuja recordação pode se desenvolver a partir
delas, já que a reprodução direta destas seria impedida por
alguma resistência. Em resumo: lembranças indiferentes
devem sua preservação não por conta do seu conteúdo,
mas a vínculos associativos entre este e outro que esteja
recalcado, estabelecendo uma ilusão de memória, o que
foi denominado por Freud de lembranças encobridoras.

Há uma relação temporal entre a lembrança


encobridora e o seu conteúdo encoberto, o que pode se
configurar de três formas:

a) Deslocamento retroativo ou retrocedente: o


conteúdo encoberto diz respeito à situação recente, o
qual é substituído na memória pelo deslocamento de
conteúdo anterior menos ou em nada gravoso à pessoa.
Exemplo: no momento atual, a pessoa se envolve em
acidente de trânsito com consequências psíquicas graves.
Em seu lugar, advêm à memória lembranças de alguma
circunstância com que o fato guarde alguma relação (pode
ser outro acidente relacionado a veículo), mas cujos efeitos
foram mais leves ou indiferentes à pessoa;

b) Deslocamento avançado ou adiantado: o conteúdo de


certos aspectos angustiantes da infância do sujeito é
encoberto por memórias de vivências ou pensamentos
que se deram em momento posterior de sua vida. Exemplo:
a pessoa, em sua infância, passou por uma situação
traumática (acidente de trânsito), cujos detalhes
angustiantes (de conteúdo) são suprimidos da cs, mas
cuja menção ao fato faz irromper ao pensamento do sujeito
já adulto uma associação a outro fato ocorrido
posteriormente em sua existência (alguma situação de
trânsito em que esteve envolvido mais recentemente, mas
sem efeitos graves), que atuaria como encobridor do que
antes ocorrera;

c) Deslocamento por simultaneidade ou contiguidade:


um fato desprazeroso vivenciado pela pessoa, seja no
passado, seja no presente, tem a sua lembrança
modificada e substituída por outro fato que se dera na
mesma época, porém sem impactos ao seu psiquismo.
Exemplo: acidente de veículo (lembrança traumática), que
é substituído na memória por outra situação inesperada
relacionada a tal bem ou a trânsito de menor proporção
(lembrança indiferente associada e encobridora)
acontecida na mesma época.

Distintamente do fenômeno abordado nos três


primeiros capítulos, aqui não se cuida de lembrar nomes ou
palavras, mas de algo vivenciado – na realidade concreta
ou no pensamento. Dessa feita, no primeiro caso,
evidencia-se falha temporária da função mnêmica; no
segundo, uma memória equivocada ou confusa que
perdura pelo processo do deslocamento, propiciando, na
situação do esquecimento, a sensação do falseamento
daquilo que emergiu em sua substituição, ao passo que,
nas lembranças encobridoras, uma surpresa pela distorção.
Apesar dessas distinções, em ambos os casos ocorre a
substituição daquilo que não se fez presente na cs
mediante a tentativa de lembrança; os dois, ainda, dizem
respeito a algo perturbador, o que teria provocado a ação
de mecanismo de defesa no psiquismo com o intento de
evitar a rememorização.

Há de se considerar, também, as características de


cada sujeito, pois que há os que se recordam a partir de
imagens em seus pensamentos, ao passo que outros o
fazem por sons etc. Além disso, das primeiras lembranças
da infância, existe muita deformação e lacuna nas
memórias, indicando uma elaboração recente de tais
relatos para lhes conferir sentido pelo sujeito. De tal feita,
diversas forças psíquicas atuam no ato de recordar
situação experimentadas na infância, fato que caracterizam
tais lembranças, em grande extensão, como encobridoras.
Na mitologia, isso também se observa, com preenchimento
de lacunas e estabelecimento de sentidos mediante
narrativas extraordinárias para melhor contextualizar algo
que se perdeu, ainda que parcialmente, na memória
ancestral de um povo.

Na clínica, convém não só investigar detalhes da


biografia do analisando, mas investigar separadamente, em
sendo possível, esse fragmento da narrativa dentro e fora
de seu contexto de então. (p.33)

*Desde seus primórdios, humanos clamam pela


participação do outro em suas vidas, cuja interação
favorece a inserção do eu no campo da cultura que o
outro compartilha com o sujeito. De igual modo, o
inconsciente de uma pessoa lida com a marca indelével da
presença do outro com quem convive, abrangendo o olhar
desse outro dirigido a si, da significação que tem para ele
e, assim, do desejo do outro.

Você também pode gostar