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O TEXTO BIOGRÁFICO EM QUADRINHOS “O DIÁRIO DE ANNE FRANK”:

UMA ANÁLISE1

Natália Marques de Jesus

Aluna e bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)


Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná

RESUMO

Objetiva-se caracterizar a maneira como a linguagem quadrinística foi utilizada no texto biográfico
em quadrinhos “O diário de Anne Frank” de Ari Folman e David Polonsky (2017, editora Record,
reconhecida pela Fundação de Anne Frank). Eles se inspiraram no texto em prosa “O diário de Anne
Frank”, postumamente publicado em 1947. Nele, Anne relatou fatos vividos no âmbito familiar e
fora dele, direta ou indiretamente relacionados ao holocausto ocorrido durante a Segunda Grande
Guerra Mundial (1939-1945). Na Alemanha, cerca de seis milhões de judeus morreram vítimas do
antissemitismo liderado por Adolf Hitler. Na época, nem todas as famílias judias conseguiram
refugiar em outros países, como foi o caso da família Frank, que se instalou em um esconderijo
secreto por dois anos. Observam-se alguns aspectos: a) presença de personagens fixas, apresentadas
ao leitor antes da trama; b) predomínio de legendas para a expressão da voz narrativa de Anne e
balões-fala para o retrato das interações verbais; c) multiplicidade de espaços e tempos trazidos à
trama, como a casa da família Frank antes da fuga, o esconderijo durante a perseguição aos judeus
(com detalhamento espacial), distribuição dos acontecimentos por meio de datas (recurso típico do
gênero diário pessoal) etc. Também se destaca a personificação do diário como figura feminina: a
Kitty. Na trama, há trechos do diário na forma de prosa, configurando-se em um diálogo entre diário
pessoal, (auto) biografia e histórias em quadrinhos. Por fim, o narrar inclui um ir-e-vir entre as
memórias de Anne em relação ao presente e aos seus conflitos internos (o vazio existencial, sua
paixão por Peter e a inferioridade em relação à irmã, quando os adultos as comparam). Tudo isso se
baseia na descrição dos recursos quadrinísticos presentes no objeto citado, à luz, sobretudo, dos
trabalhos de Cagnin (2014), Acevedo (1990), Ramos (2010) e Borges (2017).

PALAVRAS-CHAVE: linguagem dos quadrinhos; “O diário de Anne Frank”; memórias.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, objetiva-se caracterizar a maneira como a linguagem quadrinística


foi utilizada no texto biográfico em quadrinhos “O diário de Anne Frank” de Ari Folman e
David Polonsky (2017, editora Record, reconhecida pela Fundação de Anne Frank). Eles se
inspiraram no texto em prosa “O diário de Anne Frank”, postumamente publicado em 1947.
O texto em quadrinhos citado possui o selo “Anne Frank Fonds”, uma fundação suíça
criada em 1963 por Otto Frank, para disseminar a escrita de Anne pelo mundo.

1 A proposta em questão está vinculada ao projeto de pesquisa “Quadrinhos e análise linguística”, coordenado pela
Professora Doutora Maria Isabel Borges.
A caracterização da linguagem dos quadrinhos presente em “O Diário de Anne
Frank em quadrinhos” será feita a partir dos estudos de Cagnin (2014), Acevedo (1990),
Ramos (2010) e Borges (2017), tendo em vista a construção dos sentidos do texto
biográfico.
O contexto de produção refere-se à época em que cerca de seis milhões de judeus
morreram vítimas do antissemitismo liderado por Adolf Hitler, na Alemanha. Naquele
período, algumas famílias judias não conseguiram refúgio em outros países, como foi o
caso da família Frank, da família Van Pels e do senhor Fritz Pfeffer, instalando-se em um
esconderijo por dois anos. O grupo de refugiados era formado por oito pessoas.
Durante os dois anos de refúgio, Anne (filha mais nova do casal Frank) relatou em
seu diário os acontecimentos de seu dia a dia, a relação familiar, o convívio com a outra
família que habitava o esconderijo e os horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Após o fim da guerra, Otto Frank (pai de Anne e único morador do esconderijo que
sobreviveu ao holocausto), publicou o diário da filha, dando origem à obra “O diário de
Anne Frank”, publicada em 1947.
A análise do objeto — o texto biográfico em quadrinhos “O Diário de Anne Frank
em Quadrinhos” de Ari Folman e David Polonsky (2017, editora Record, em 2017 — se dá
a partir da interpretação, por amostragem, da linguagem dos quadrinhos, em conexão com
contexto sócio-histórico relacionado à Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Alguns dos
recursos quadrinísticos analisados foram: a utilização dos os balões de fala, a caracterização
das personagens, a presença ou ausência das cores nas ilustrações, as divisões das vinhetas,
os tipos de ângulos, o uso das onomatopeias.

CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DE PRODUÇÃO: A PRIMEIRA GUERRA


MUNDIAL (1914-1918)

Com a Revolução Industrial, surgiram as máquinas elétricas que trouxeram


evoluções importantes para a economia capitalista. No final do século XIX e início do
século XX, o capitalismo estimulou a competição entre as principais potências mundiais
(Estados Unidos, Áustria-Hungria, Itália, Alemanha, Bulgária, Sérvia, Rússia, França,
Reino Unido e Bélgica). Para aumentar suas indústrias, esses países precisavam expandir
suas áreas territoriais. A briga entre os países pelo domínio de novos territórios foi o
principal motivo para o início da Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre os anos de 1914 e
1918. Durante a guerra, alguns países que possuíam inimigos em comum resolveram unir
forças para obterem melhores resultados nos conflitos. Dessa forma, surgiram dois grupos:
a Tríplice Entente formada pela Inglaterra, França e Rússia e a Tríplice Aliança composta
pela Alemanha, Império Austro-Húngaro e Itália. (RODRIGUES, 1988)
Após anos de guerra, começaram a surgir propostas de paz entre os países para que a
guerra chegasse ao fim. Porém, a Alemanha permanecia resistente e decidida a atacar seus
inimigos. A paz mundial só foi estabelecida definitivamente em 1919, com a assinatura do
Tratado de Versalhes.

O Tratado de Versalhes criava a sociedade das Nações (SDN), determinava a


entrega de territórios alemães (Alsácia-Lorena à França e um corredor de acesso ao
mar à Polônia), de todas as suas colônias, do material de guerra, da armada, a
redução do exército para 100 mil homens, o desmantelamento das defesas, a entrega
de parte da fronteira mercante, de locomotivas, gado, carvão, e o pagamento de
enormes somas como reparação de guerra (insistência sobretudo feita pela França,
em decorrência da destruição de seu território), uma vez que a Alemanha e seus
aliados foram considerados culpados pelo início do conflito. (VIZENTINI, 2003, p.
57-58).

Antes do Tratado de Versalhes, a Alemanha era uma das maiores potências


industriais da Europa. Com as medidas impostas pelo Tratado, o país perdeu muito dinheiro
e vivenciou a maior crise econômica de todos os tempos. (VIZENTINI, 2003).

CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DE PRODUÇÃO: A SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL (1939-1945) E O HOLOCAUSTO DOS JUDEUS

Os anos seguintes à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foram muito difíceis para
o povo alemão, que buscava se reerguer em meio à crise econômica. Sob esse contexto,
Adolf Hitler viu uma oportunidade para pronunciar seus discursos, com o objetivo de inflar
o ego do povo alemão e trazer a esperança de que a economia do país se reestabeleceria.
(CARNEIRO, 2005).
Adolf Hitler estava à frente do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães, o Partido Nazista. Hitler foi declarado embaixador da Alemanha em 1933. Com a
morte do presidente Hindenburg, em 1934, Hitler assumiu a presidência do país. Entre os
ideais defendidos por Hitler, estava a superioridade do povo alemão em relação a outras
raças. Ele culpava os judeus pela crise econômica e pela derrota da Alemanha na Primeira
Guerra Mundial (CARNEIRO, 2005).
Para Hitler, os judeus e outros grupos — negros, homossexuais, ciganos e
deficientes físicos e mentais — deveriam ser isolados e eliminados da sociedade, pois essas
categorias eram por ele consideradas como raças inferiores aos Alemães “puros”. Por
intermédio dos meios de comunicação, Hitler espalhou o ódio contra as raças “impuras” e,
por meio de seus discursos manipuladores, convenceu toda a população alemã de que os
judeus eram indivíduos perigosos e que poderiam causar a ruína do país. Por essa razão,
deveriam ser eliminados (CARNEIRO, 2005).
O Antissemitismo surgiu muito antes de Hitler. Durante a Idade Média, os judeus
foram culpados por terremotos, pela Peste Negra e pelo envenenamento de poços d’água.
Séculos depois, Hitler tirou proveito dessas ideias antissemitas para responsabilizar os
judeus pelo fracasso da Alemanha na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, por
consequência, pela causa da Segunda Grande Guerra (1939-19450). Os judeus também
foram culpados pelas epidemias de tifo que atingiram a Alemanha naquele período
(CARNEIRO, 2005).
Os judeus foram: a) afastados da vida econômica, social e política do país; b)
espancados em praça pública; c) proibidos de frequentar diversos lugares e de atuar
profissionalmente.

Frases que expressavam o sentimento de ódio que dominava o povo alemão


tornaram-se comuns: “Proibida a entrada de judeus neste lugar”, “Cuidado com
batedores de carteira e judeus”, “Não comprem em lojas de judeus”, “Interditado
aos judeus e aos cães de se banhar”. (CARNEIRO, 2005, p. 23).
Toda forma de arte e cultura produzida pelos judeus foi eliminada das bibliotecas,
das escolas e dos museus da Alemanha. Após serem excluídos da sociedade, os judeus
foram encaminhados para campos de concentrações, onde eram utilizados como cobaias
para experimentos médicos e depois eram mortos em câmaras de gás, seus corpos eram
queimados e enterrados em valas coletivas (CARNEIRO, 2005).
De acordo Vizentini (2003), em meio ao massacre dos judeus, Hitler também
pretendia recuperar as colônias que pertenciam a Alemanha antes da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), “não bastava apenas a Europa Oriental, a Alemanha queria de volta
as colônias e o domínio de regiões de influência anglo-francesa. O cenário para a Guerra
estava preparado.” (VIZENTINI, 2003, p. 89).
Durante a conferência de Munique (1998), a França e o Reino Unido fizeram um
acordo com a Alemanha, destinando 20% do território da Tchecoslováquia aos alemães.
Porém, em 1939, a Alemanha ocupou todo o país, rompendo o acordo. Em seguida, no dia
1º de setembro de 1939, Hitler e suas forças armadas invadiram a Polônia, com a intenção
de recuperarem o território pertencente a eles até a Primeira Guerra Mundial. A França e o
Reino Unido exigiram que a Alemanha recuasse. Diante da insistência do exército alemão
em ocupar novos territórios, esses países declararam guerra à Alemanha, iniciando a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945) (VIZENTINI, 2003).
Através dos estudos de Carneiro (2005) e Vizentini (2003), pode-se observar a
crueldade dos nazistas com relação aos judeus e a outras raças consideradas por eles como
impuras e a ambição de Hitler em conquistar novos países. A Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) acabou após a rendição da Alemanha. Diante da situação, temendo ser morto
pelos exércitos inimigos, Hitler suicidou-se em 30 de abril de 1945. Somente com o fim da
guerra, os judeus foram libertados dos campos de concentração.

Os nazistas transformaram os territórios ocupados em um teatro de pilhagem e


destruição. No final da guerra os sobreviventes — que nada mais eram do que
farrapos humanos, espécie de mortos-vivos — começaram a se movimentar por
todo o continente num imenso êxodo espontâneo. As imagens eram de uma patética
tentativa de retorno à vida.
Crianças, velhos e até mesmo famílias inteiras saíam de esconderijos improvisados
nas fazendas, aldeias e conventos. (CARNEIRO, 2005, p. 69).
Em 1991, a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) expôs os
dados presentes nos arquivos do campo de Auschwitz. Em 46 volumes, foram
contabilizadas 70.000 pessoas (judeus, ciganos e poloneses) assassinadas entre agosto de
1941 e dezembro de 1943.
O mais assombroso é que os dados, por mais exorbitantes que sejam, correspondem
somente às mortes ocorridas em Auschwitz. Segundo a autora, os locais de extermínio eram
tantos que constituíam uma verdadeira “rede de campos de concentração”. Dessa forma,
estima-se que milhões de pessoas foram torturadas e mortas (CARNEIRO, 2005).

UM POUCO SOBRE “O DIÁRIO DE ANNE FRANK”2

Anne Frank nasceu dia 12 de junho de 1929, na cidade alemã de Frankfurt em Main.
A garota vivia com os pais e a irmã mais velha. A partir da ascensão de Hitler ao poder e do
crescimento do antissemitismo, a família deixou a Alemanha e se mudou para a Holanda.
Otto (pai de Anne) estabeleceu seu próprio negócio em Amsterdã e a família encontrou uma
casa em Merwedeplein. Com a ameaça de guerra crescendo na Europa, Otto tentou emigrar
com sua família para a Inglaterra e Estados Unidos, porém as tentativas de emigração
fracassaram.
No dia primeiro de setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polônia e iniciou-se a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com a chegada das tropas Alemãs à Holanda, foram
estabelecidas leis contra os judeus. Para fugir do antissemitismo, a família de Otto Frank
buscou refúgio em um esconderijo montado no prédio em que ficava a empresa de Otto —
o “Anexo secreto” — em 1942. A família Frank dividiu o “Anexo secreto” com a família
Van Pels. Ao todo oito moradores moraram no esconderijo.
Poucos dias antes de ir morar no Anexo, Anne ganhou um diário, o qual se tornou
uma espécie de melhor amiga para a garota, chamado “Kitty” (um nome do gênero
feminino). Durante os dois anos em que Anne viveu no Anexo, ela relatou os
acontecimentos do dia a dia e seus sentimentos mais profundos em seu diário. No dia 4 de

2 Esta seção foi construída com base nas informações disponíveis na página oficial da Fundação Anne Frank House e
entrevistas, todas citadas nas referências.
agosto de 1944, o esconderijo foi descoberto pelas tropas alemãs e seus moradores foram
encaminhados para campos de concentrações distintos. Quase todos os moradores
morreram. Anne faleceu em fevereiro de 1945, aos quinze anos de idade, por conta de uma
febre tifo, adquirida em um campo de concentração. O único morador sobrevivente foi Otto
Frank, pai de Anne.
Após a invasão ao Anexo pela polícia alemã, Miep Gies — funcionária do escritório
de Otto e uma das pessoas que ajudava a família Frank, com mantimentos, roupas e
informações sobre a guerra — encontrou o diário de Anne e o entregou para Otto. A partir
de então, Otto dedicou-se assiduamente à publicação do diário, dando origem à obra “O
diário de Anne Frank”, em 1947. Setenta anos após a primeira publicação de “O diário de
Anne Frank”, o texto literário ganhou formato de quadrinhos e foi lançado em cinquenta
países pelo roteirista e cineasta Ari Folman e pelo ilustrador David Polonsky.
Em uma entrevista à editora Record, Folman contou que foi convidado pela
Fundação Anne Frank para criar uma versão em quadrinhos da obra de 1947. Ambos os
autores também estão trabalhando em um filme de animação, com a previsão de lançamento
em 2019. De acordo com Folman, a criação de uma releitura em quadrinhos de “O diário de
Anne Frank” possibilita o acesso das crianças à história de Anne e o conhecimento da
intolerância com o próximo.
Folman, em uma entrevista ao site “O Globo”, apontou que a presença em sua
infância de relatos sobre o holocausto também motivou a produção de tal texto em
quadrinhos. Seus pais foram enviados para o campo de Bergen-Belsen, na Alemanha, no
mesmo dia em que Anne Frank.
A obra em quadrinhos “O diário de Anne Frank” possui o selo Anne Frank Fonds,
uma organização fundada em 3 de maio de 1957, para evitar a destruição da casa, onde
Anne Frank e sua família buscaram refúgio durante o holocausto.
Este trabalho foi feito a partir da pesquisa bibliográfica, tendo em vista o
levantamento do contexto sócio-histórico de produção do diário (texto autobiográfico) e,
por consequência, do texto biográfico em quadrinhos. Vale lembrar que a produção dessas
obras foi baseada em fatos reais. Além disso, o objeto de estudo aqui analisado se volta ao
texto biográfico em quadrinhos, sem comparação com o texto literário em prosa, o diário.
Ao lado da pesquisa bibliográfica, contou-se com a pesquisa qualitativa, para a
interpretação de alguns momentos do texto biográfico em quadrinhos, procurando a
conexão entre a linguagem quadrinística e alguns aspectos sócio-históricos. “O diário de
Anne Frank”, publicado pela primeira vez em 1947, constitui um texto autobiográfico, com
relato de acontecimentos vividos por Anne e reflexões com eles relacionados. Entretanto,
na visão de Folman e Polonsky (2017), surge um texto biográfico em quadrinhos, já que se
inspiram em um texto autobiográfico. Os fatos narrados, por meio dos quadrinhos, não
foram por eles vividos.

ANÁLISE DA OBRA

Segundo Acevedo (1990), Cagnin (2014) e Ramos (2010), não um texto em


quadrinhos sem personagens, podendo ser: estilizadas, caricatas e realistas. Borges (2017)
acrescenta uma quarta categoria: as personificadas. As personagens também podem ser
fixas ou não, segundo tais autores. No texto biográfico em quadrinhos “O Diário de Anne
Frank”, as personagens são fixas, pois possuem características que são mantidas e
ampliadas durante a trama.
Antes da história, as personagens são apresentadas ao leitor, como se observa na
próxima figura. Assim, o leitor possui as primeiras características das personagens atuantes
no enredo. Além disso, é importante a conexão entre os papéis por elas desempenhados
com as ações realizadas e contadas por Anne.
Na família Frank (figura 1), Anne Frank é a narradora e protagonista da história,
Margot Frank é a irmã mais velha de Anne Frank, Otto Frank constitui o pai de Anne e
Edith Frank a mãe. Quantos aos demais moradores, são apresentados Peter Van Daan,
Auguste Van Daan (mãe de Peter), Hermann Van Daan (pai de Peter) e Albert Dussel (o
dentista). Como ajudantes desses moradores, são citados: Jo Kleiman (contador nas
empresas Opeka e Pectacon de Otto), Victor Kugler (funcionário da empresa Opeka), Bep
Voskuijl (secretária na Opeka e filha de Johan Voskujil), Johan Voskujil (administrator do
depósito da empresa Opeka e pai de Bep), Miep Gies (secretária de Otto) e Jean Gies
(marido de Miep).

Figura 1 — Apresentação das personagens.


Fonte: “O diário de Anne Frank em quadrinhos” (FOLMAN; POLONSKY, 2017, p. 7).

Figura 2 — Ampliação na descrição das personagens no decorrer da narrativa.


Fonte: “O diário de Anne Frank em quadrinhos” (FOLMAN; POLONSKY, 2017, p. 30).

Ao longo da trama, ampliam-se as características das personagens, em sintonia com


o relato do cotidiano e com as reflexões feitas por Anne, principalmente durante a
sobrevivência no Anexo, por exemplo: Madame Van Daan, a fútil e egoísta; senhor Van
Daan se autodefinia como extrovertido e pouco modesto; Peter como um garoto medroso.
No entanto, Anne por ele se apaixona, transformando o modo de vê-lo: corajoso, bondoso,
inteligente e gentil.
O dentista, o Sr. Dussel, mostra-se egoísta, pois, enquanto todos passavam fome no
Anexo, ele comia escondido, à noite, “delícias” enviadas pela amada, por meio de Miep e
Bep. Otto Frank, pai de Anne, é muito atencioso com as filhas. Entretanto, possui uma
relação pouco afetuosa com sua esposa. Com relação à mãe, trata-se de uma mulher
amargurada, que possui dificuldade em se aproximar da filha Anne, demonstrando mais
afeto pela filha mais velha: Margot. Esta filha, três anos mais velha que Anne, é vista por
todos como uma menina extremamente inteligente, bondosa e prestativa, um verdadeiro
exemplo a ser seguido.
Anne, por estar narrando sua própria história, constitui a personagem mais
transparente na trama. No decorrer da história, sua descrição amplia-se, mostrando seu
conflito com a irmã, seu apego com o pai, seu distanciamento de sua mãe, uma certa
implicância com a senhora Van Daan, sua paixão por Peter e seus medos em relação à
guerra e ao futuro. A garota é sonhadora, curiosa e um pouco desatenta, características
opostas às de sua irmã Margot. Essas distinções entre os traços identitários das duas
meninas fazem com que as pessoas que convivem no Anexo, principalmente a mãe de
Anne, estabeleçam comparações entre elas, tomando sempre Margot como o exemplo a ser
seguido, enquanto Anne é repreendida pelos próprios atos.

Figura 3 — Comparação constante entre Anne e sua irmã Margot


Fonte: “O diário de Anne Frank em quadrinhos” (FOLMAN; POLONSKY, 2017, p. 34).
Na figura 3 e de acordo com a visão de Anne, observa-se a oposição entre as irmãs.
Anne é emburrada, nervosa, não come qualquer tipo de comida e está sempre solitária em
suas decisões. Em contrapartida, Margot está sempre feliz e calma, come qualquer tipo de
comida sem reclamar e é amada e protegida por todos ao seu redor.
Anne, nas diversas repreensões feitas pela mãe, sente-se magoada. Diz várias vezes
que não se importaria caso sua mãe morresse, pois ela não age como uma “mãe de
verdade”, afetuosa e amiga. Não havia diálogo entre ambas. Dessa forma, Anne estabeleceu
um vínculo maior com o pai, o qual ela admirava e amava com todo o coração. Além disso,
Anne sentia ciúmes do pai quando ele se aproximava de Margot, sentindo certo
ressentimento com relação à irmã.
Outra personagem da história é Kitty, o diário de Anne. Quando a garota ganhou o
diário, esse objeto se tornou sua melhor amiga, chamada Kitty: diário, um objeto do gênero
masculino como palavra, porém tratado de forma personificada a partir do gênero feminino.
Com a personificação, o diário — por ela referida sempre como “Querida Kitty” (figura 2)
— torna-se personagem e confidente de Anne, relatando nele seus medos, suas tristezas e
alegrias. Assim, transparecem-se as reflexões de Anne sobre o mundo, si mesma e as
pessoas. Por meio de Kitty, a protagonista sente-se livre.
Trechos do texto autobiográfico “O diário de Anne Frank” aparecem no texto
biográfico em quadrinhos. Nota-se uma relação dialógica entre os textos, talvez por se tratar
de reflexões de “difícil” interpretação por meio da linguagem dos quadrinhos. Na trama,
predomina-se o uso de legendas para indicar a voz narrativa de Anne. Na maioria das vezes,
possuem um contorno e apresentam coloração levemente azulada (figura 2). Anne não só
assume a função de narradora de sua própria história e de outras pessoas, como também
atua como protagonista na trama e escritora em seu diário. Por isso, as falas, as reflexões e
as narrações são feitas em primeira pessoa do singular, sob o ponto de vista de Anne. Além
das legendas, no início das páginas, são citadas as datas exatas em que ocorreram os fatos,
característica típica do gênero diário.
As interações verbais entre as personagens ocorrem, predominantemente, por meio
dos balões de fala, no formato tradicional (contorno curvilíneo e apêndice). Também são
usados balões de pensamento, de grito, de sussurros, balões que trazem onomatopeias e
balões em formato retangular, utilizados para indicar características de algum elemento,
como pode ser observado na figura 4.

Figura 4 — Uso dos balões para descrição dos espaços.


Fonte: “O diário de Anne Frank em quadrinhos” (FOLMAN; POLONSKY, 2017, p. 29).
O Anexo (figura 4) é o espaço mais importante na obra, em função da concentração
da maioria dos acontecimentos e dos efeitos de aprisionamento físico e simbólico que afeta
as pessoas. Nesse caso, são usados balões retangulares para a indicação dos cômodos:
sótão; quarto de Peter; quarto dos Van Daan; sala de estar e cozinha; quarto de Otto, Edith e
Margot; quarto de Anne e do Sr. Dussel; banheiro; entrada secreta; cozinha e escritório. O
espaço em questão (figura 4), funcionando como refúgio, propicia certa segurança aos
moradores judeus, perseguidos pelos nazistas. Na história, Anne a ele se refere como “o
Anexo secreto”.
Além do Anexo, são retratados outros espaços, de maneira panorâmica: ruas da
cidade, da casa onde a família Frank morava antes de irem para o Anexo, o céu, os campos
de concentração para judeus, os consultórios médicos e espaços históricos e simbólicos, que
são representações dos pensamentos de Anne. Esses espaços históricos aparecem, por
exemplo, quando Anne menciona Galileu Galilei, Carlos V, Primeira Guerra Mundial
(1914-1918), a Guerra dos Sete Anos, os gregos, as pirâmides do Egito, artistas do passado
ou obras de artes de outras épocas. Todos eles são fruto da imaginação de Anne. Nesse
sentido, os espaços simbólicos presentes estão diretamente ligados aos pensamentos de
Anne. Alguns espaços são recordações e outros constituem efeitos da imaginação e sonhos
da garota, por exemplo, quando ela imagina estar se casando, o velório da mãe, a situação
da guerra nas ruas, as festas que ela poderia frequentar.
O diário também possibilitava a fuga da realidade, outra função. Anne mostra-se
criativa, construindo, de certa forma, um mundo fictício, fantasioso (figura 5). A seguir,
Anne se imagina vinte anos depois.
Figura 5 — Espaço simbólico.
Fonte: “O diário de Anne Frank em quadrinhos” (FOLMAN; POLONSKY, 2017, p. 78).

Após Anne reclamar com o Sr. Dussel sobre o conteúdo de um livro que ele havia
lhe dado, a senhora Van Daan tomou as dores do dentista e disse a Anne que dali a vinte
anos, nada mais interessaria à garota. Ouvindo as palavras da madame Van Daan, Anne
passou a imaginar seu futuro. Nele, ela havia se tornado uma garota que conhecia tudo
sobre literatura e música. Por esse motivo, não se deixava impressionar facilmente por seus
pretendentes amorosos.

CONCLUSÃO

Dentre os diversos recursos da linguagem dos quadrinhos, alguns são recorrentes: a


personificação do diário (BORGES, 2017); as legendas e os textos em prosa (transcrições
da obra de inspiração); os espaços simbólicos, efeitos da imaginação de Anne; o diálogo
entre fatos sócio-históricos, convívio familiar e dilemas pessoais como adolescente.
Anne sempre retoma na trama a guerra e a perseguição aos judeus como causadores
de seus medos e tristeza. O contexto sócio-histórico obriga a família a conviver
constantemente por cerca de dois anos. Dessa forma, Anne não possui contato com seus
amigos, com a natureza ou com a escola (local onde era admirada por sua inteligência). A
exclusão de Anne da sociedade afeta o processo de transição da infância para a
adolescência. Anne é obrigada a se adaptar à nova realidade, tornando-se mais responsável
e amadurecida.

REFERÊNCIAS

ACEVEDO, Juan. Como fazer história em quadrinhos. São Paulo: Global Editora, 1990.

BORGES, Maria Isabel. Tiras cômicas: personificação e humor. In: Anais do VI Encontro
Nacional de Estudos da Imagem, III Encontro Internacional de Estudos da Imagem. Volume
15. 2017. Londrina. Universidade Estadual de Londrina. p. 53-75. Disponível em:
<http://www.uel.br/eventos/eneimagem/2017/index.php/anais/>. Acesso em: 25 maio 2018.

CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos: um estudo abrangente da arte sequencial, linguagem e


semiótica. São Paulo: Criativo, 2014.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Holocausto: crime contra a Humanidade. São Paulo: Ática, 2005.

FOLMAN, Ari; POLONSKY, David. O diário de Anne Frank. 3. ed. Rio de Janeiro/São Paulo:
Record, 2017.

RAMOS, Paulo. A linguagem dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2010.

RODRIGUES. Luiz Cesar B. A Primeira Guerra Mundial. 8. ed. Campinas: Ed. da Unicamp,
1988.

VIZENTINI. Paulo Fagundes. As Guerras Mundiais (1914-1945). Porto Alegre: Leitura XXI,
2003.

Entrevista dos autores à editora Record. Disponível em:


<http://www.blogdaeditorarecord.com.br/2017/10/03/o-diario-de-anne-frank-em-quadrinhos-de-ari-
folman-e-david-polonsky/>. Acesso em: 14 ago. 2018.

Entrevista dos autores ao site G1. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/diario-


de-anne-frank-ganha-versao-em-hq-alerta-para-riscos-da-intolerancia-21874703>. Acesso em: 14
ago. 2018.

Página oficial Anne Frank House. Disponível em: <https://web.annefrank.org/pt/Anne-Frank/>.


Acesso em: 14 ago. 2018.

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