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3º MÓDULO – A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA ALFAIATARIA

A alfaiataria é um ofício secular, particularmente dotado de técnicas e saberes


perpetuados pelos alfaiates de maneira singular na hierarquia de suas organizações, na
particularidade dos métodos de ensino e aprendizagem empregados e por meio de
suas práticas.

PRIMEIROS REGISTROS IMPRESSOS DA ALFAIATARIA

A alfaiataria artesanal é um ofício secular. Um dos primeiros registros


encontrados na literatura data do reinado de Henrique I (1100-1135), em que o rei
concedia direitos e privilégios aos alfaiates de Oxford (Pirenne, 1973). Com relação aos
métodos utilizados pelos alfaiates, no ano de 1589 surgiu a primeira referência
bibliográfica sobre o tema, publicada pelo alfaiate espanhol Juan de Alcega, o primeiro
livro de traçados em modelagem masculina na história intitulado o “Libro de Geometri
pratica y Traça” (Junior, 1937).

Juan de Acelga reuniu em seu livro traçados que vão desde as roupas
masculinas e femininas, até roupas para sacerdotes e comandantes militares. Os
desenhos não indicam necessariamente a construção de cada uma das peças, mas
demonstram as formas e o posicionamento sobre o tecido para se obter o melhor
aproveitamento da peça a ser confeccionada. Em seu livro, Alcega sugere indicações
de encaixe, número de partes a cortar, além de códigos que indicam valores a serem
executados. Esses valores dizem respeito a uma espécie de tabela de medidas que
eram aplicadas a fim de se obter o valor total do tecido a ser empregado, uma vez que
havia na época até quatorze possibilidades de larguras de tecido.

Seguindo o modelo de Alcega, no ano de 1618, em Madri, foi publicado o


segundo livro de alfaiataria intitulado Geometria Y Traça, do também espanhol
Francisco de La Rocha de Burguen. Ambas publicações tinham como objetivo principal
mostrar como colocar as modelagens da forma mais vantajosa no tecido, de acordo
com a sua largura, além apresentar uma constante preocupação com os desejos do
cliente. Segundo Waugh em ambas as publicações, [...] o alfaiate que deseja cortar
bem suas roupas, seja para um homem ou para uma mulher, deve tomar medidas
cuidadosas de seus clientes. Ele também é avisado dos caprichos dos referidos clientes,
que muitas vezes quando um vestuário está sendo cortado pede para ele ser feito dois
ou três centímetros mais curto e mais estreito, e quando a peça de vestuário está feita,

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quer mais comprida e larga, o que significa que muitas peças de vestuário são
desperdiçadas, e o alfaiate deve permitir isso (1985, p.35)

Apesar das muitas recomendações acerca do corte e do aproveitamento do


tecido, as publicações não traziam variações de estilo nem instruções técnicas, e a
montagem das peças não era mencionada (Waugh, 1985).

A primeira publicação francesa surgiu no ano de 1671 intitulada Le Tailleur


Sincère, de Le Sieur Benist Boullay. Como as anteriores espanholas, orientava como
cortar todas as peças de ternos masculinos e a quantidade de material que cada um
exigia, sem ainda fazer nenhuma menção à montagem das peças (Waugh, 1985).

De acordo com Waugh, o primeiro tratado “realmente sério” sobre a arte da


alfaiataria, L’Art du Tailleur, foi escrito por François Alexandre de Garsault e publicado
pela Académie Royale des Sciences de Paris, em 1769. Ele descrevia os traços de um
casaco desde a tomada de medidas até a apresentação detalhada de como realizar os
pontos utilizados na confecção e no acabamento, o método de prensagem, os
instrumentos necessários, etc. Ainda não há nenhum tipo de orientação com relação à
montagem, mesmo que, segundo a autora, Garsault dê instruções sobre a confecção
de corsets que até então era de domínio dos alfaiates (Waugh, 1985).

As publicações do período refletiam o momento em que os alfaiates viviam.


Eles gozavam de uma sólida reputação, pois eram os responsáveis por confeccionar os
trajes tanto femininos quanto masculinos (Roche, 2007). Nesse contexto, os alfaiates
exerciam forte representação social e política. Eles se organizavam por meio das
guildas1 (Pirenne, 1973), as quais representavam e garantiam a proteção econômica
necessária à classe, por meio de normas rígidas acerca do exercício do ofício. Segundo
Roche, [...] o ápice da hierarquia dos alfaiates era constituído de quatro oficiais
ajuramentados, pelo prazo de dois anos, por todos os mestres e pelos antigos mestres
ajuramentados, os bacharéis. Assistidos por dezesseis jovens mestres, de “toga e
borla”, eles visitavam lojas e oficinas. Nomeados na presença do procurador do rei, no
Châtelet, os alfaiates ajuramentados encarnavam o ideal do governo como bons pais
de família das comunidades antigas, uma emancipação do poder real, uma forma de
primazia intelectual (eles tinham de saber ler e escrever “na medida do necessário”) e
técnica, em suma, representavam a autoridade, embora temporária e transitória. Eles
supervisionavam o ofício, mantinham a disciplina e asseguravam a coesão,
especialmente as condições de seu exercício (Roche, 2007, p.303).

Até o século XIV, os alfaiates eram especializados em segmentos específicos do


vestuário em que se destacavam as guildas dos Doubletiers2, Chaussetiers3 e
Pourpontiers4 (Waugh, 1985). Somente “em 1588 todas as guildas foram unificadas e
tornaram-se o Les Maîtres Tailleurs d’Habits5, quando então obteve a permissão para

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fazer todo tipo de roupa usada por homens e mulheres” (Waugh, 1985). A partir desse
ano, durante um século, os alfaiates controlaram a confecção de vestimentas e
administraram todos os ofícios ligados ao vestuário (Roche, 2007).

Desde a formação inicial, as guildas foram as responsáveis por estabelecer um


padrão de hierarquia definida, constituída de mestres, oficiais6 e aprendizes. Pirenne
descreve o modelo de organização da idade média que ainda se mantém em muitos
aspectos definindo as relações de trabalho das oficinas.

Os membros de toda corporação dividem-se em categorias subordinadas umas


às outras: os mestres, os aprendizes e os companheiros (oficiais ou jornaleiros). Os
mestres formam a classe dominante de quem dependem as outras duas. São
pequenos chefes de oficinas, proprietários da matéria-prima e das ferramentas.
Pertencem-lhes os produtos fabricados e portanto, todos os lucros da venda ficam em
suas mãos. Ao seu lado, os aprendizes iniciam-se no ofício sob a sua direção, uma vez
que ninguém pode ser admitido no exercício da profissão sem garantia de capacidade.
Os companheiros, enfim, são trabalhadores assalariados que terminaram o
aprendizado, porém não puderam ainda elevar-se à categoria de mestre (Pirenne,
1973, p.192).

As guildas, ou ainda os Cavaleiros da Agulha, constituíam uma organização que,


de acordo com Thompson, eram “extremamente poderosos, ao menos até a recessão
de 1823” (1985, p.99). Eram esses cavaleiros os responsáveis por fiscalizar e
regulamentar o ingresso dos alfaiates de acordo com as normas impostas. O domínio
do corte e da costura era exigido ao ponto de ser previsto em seus regulamentos
indenizações aos clientes descontentes.

Ainda de acordo com Hollander, “as guildas de alfaiates tinham tanta


importância quanto as outras instituições artesanais e profissionais e, como elas, eram
totalmente masculinas” (2003 p. 89). Contudo, existiam costureiras profissionais que
eram empregadas pelos alfaiates, e a elas cabiam tarefas de costura, ornamentação e
acabamentos da roupa. “As mulheres nunca eram alfaiates, ou treinadas para criar
estilo, corte e acabamento..., mas eram reconhecidamente especialistas no trabalho
de costura fina” (Hollander, 2003, p. 89).

Somente em 1675 as mulheres conquistaram o direito de trabalhar de maneira


autônoma. Nesse ano, o governo real parisiense concedeu-lhes o direito de formar sua
própria guilda garantindo-lhes o status quo perante a sociedade. A confecção das
roupas por pessoas do mesmo sexo garantia a decência e a modéstia das mulheres e
moças (Roche, 2007).

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Tanto para os alfaiates como para as costureiras, agora devidamente
registradas e reconhecidas por meio das guildas, não havia um tipo de padrão de
medidas que os orientassem. Essa padronização só ocorreu a partir de 1830 quando o
alfaiate francês Guglielmo Compaign, pioneiro da antropometria moderna,
estabeleceu critérios e técnicas de mensuração do corpo humano. Até esse momento,
para o registro das medidas, os alfaiates utilizavam uma fita de papel ou ainda de
couro marroquino para cada um de seus clientes. Em cada uma das fitas escreviam o
nome, as observações necessárias e assinalavam os valores por meio de piques de
tesoura. Porém, essas fitas apresentavam o inconveniente de enrolar, enrugar ou
ainda apagar facilmente as anotações que eram registradas (Ormen, 2011).

Para cada cliente, os alfaiates mantinham uma única fita métrica com seu nome
inscrito nela, marcada com indicações denotando o comprimento de seu antebraço, o
diâmetro de seu pescoço, a largura de seus ombros ou o que quer que fosse
necessário para o feitio de sua roupa. O traje do cliente seria cortado de modo
apropriado, alterando-se um padrão muito geral para coincidir com as indicações da
fita individual (Hollander, 2003, p.133).

De acordo com North e Tiramani (2011), essas fitas eram mantidas e


atualizadas para a confecção de novas peças de vestuário, bem como para alterar as já
existentes. No ano de 1847 o alfaiate francês Alexis Lavigne criou a fita métrica tal qual
é conhecida hoje. Produzida com material à prova d’água e com qualidade na
impressão que garantiria a sua durabilidade, não haveria desgaste dos números
aplicados. Com a criação da fita métrica o processo de tomada de medidas foi
facilitado. Ela tornou-se um acessório vital dos alfaiates e costureiras nas oficinas do
início do século XIX substituindo as fitas individuais usadas até então (Ormen, 2011).
Estes avanços permitiram a evolução do ofício em concordância com a evolução da
indumentária masculina.

A EVOLUÇÃO DO TRAJE MASCULINO

Segundo Hollander (2003), o traje masculino civil padrão em todo o mundo


constitui-se de paletó, calças, coletes, sobretudos, camisas e gravatas originárias do
período neoclássico. Esse traje colocou um selo definitivo de desaprovação nas roupas
espalhafatosas usadas até então e se firmou como padrão para os homens sérios de
qualquer classe. Isto se deu graças ao poder de permanência da alfaiataria masculina,
com autoridade própria e força simbólica que permitiram sua autoperpetuação.

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Essa maneira de vestir consolidou-se no século XIX com o movimento do
Dandismo7, que na figura de George Beau Brummell encontrou seu principal
representante. O inglês Beau Brumell, conhecido como o Dândi (D’ Aurevilly, 2009)
corporificava um novo “tipo de herói” feito pela alfaiataria, em que o heroísmo de um
homem era ser simplesmente ele mesmo (Hoolander, 2003).

Brummell provou que o ser superior essencial não era mais um nobre
hereditário. Sua excelência era inteiramente pessoal, sem o apoio de brasões
heráldicos, salões ancestrais, vastas extensões de terra [...] Sua roupa tinha de ser
perfeita apenas em sua integridade de ser feita por um alfaiate, isto é, apenas na
forma, sem a sobrecarga de quaisquer indícios superficiais do valor atribuído ao nível
social (Hollander, 2003, p.119).

Para Hollander (2003), as técnicas de alfaiataria possibilitaram a execução dos


trajes utilizados pelos dândis, com linhas ajustadas ao corpo, e que evidenciavam a
forma simples e o corte cuidadoso. Segundo a autora, “o nível social do homem ou
mesmo seus feitos são irrelevantes quando confrontados com o fino corte de seu
casaco simples; apenas suas qualidades pessoais mostram-se importantes” (Hollander,
2003, p.120). As formas simples do vestir masculino, tidas como modernas no século
XIX, traziam uma mensagem de “honradez severa, e a confecção de roupas sob medida
passou a depender do corte sutil e da textura fina de seus tecidos discretos, mais ainda
do que do feitio” (Hollander, 2003, p. 139).

A lã, tecido comum desde a antiguidade, já estava estabelecida na Inglaterra


através de uma produção altamente desenvolvida e estruturada. Conforme Wilson
(1985), ela tornou-se um tecido habilmente adotado pelos alfaiates ingleses. Após a
revolução industrial deixou de ser usado pelas classes mais humildes e se estendeu
“aos estratos mais altos da sociedade, para o traje formal, pelo menos para o traje
masculino” (Wilson, 1985, p.96). Por suas características flexíveis e elásticas, dava aos
alfaiates condições de adaptá-la ao corpo proporcionando caimento e cortes exatos
como se demandava.

Sob a influência do vapor, da pressão e da manipulação cuidadosa, para não


dizer nada do corte criativo, a lã podia ser esticada, encolhida e encurvada, obediente
à vontade do alfaiate, para acompanhar as formas e os movimentos do corpo do
usuário sem formar volumes ou rugas (Hollander, 2003 p.116).

Hollander (2003) destaca que a forma simples imposta pelos dândis,


evidenciada pelo corte e o emprego dos tecidos, era consequência do retorno ao
natural e às formas simples que o neoclassicismo impunha. A utilidade e a graça da
roupa eram fundidas e evidenciadas simultaneamente, sendo “os alfaiates masculinos
da Inglaterra os primeiros a colocar isto em prática, exatamente como os arquitetos, e

5
as costureiras da França” (Hollander, 2003, p. 113). Ainda de acordo com a autora, os
casacos em lã eram originários do “grosseiro casaco campestre” inglês e davam
destaque ao corpo do homem agora evidenciado. As costuras e as tramas aparentes
do tecido faziam o vestuário parecer honesto, bem como o homem que o vestia.

Para Hollander (2003), desde o século XV a evolução do traje masculino sofreu


importantes alterações que o libertaram dos excessos, brilhos e adornos. No seu modo
de ver, o período neoclássico estabeleceu um padrão que permanece há quase dois
séculos e que constitui sua maior contribuição à história do traje. A autora considera
que esse um padrão revela um ideal manifesto na vida contínua dos trajes
confeccionados no estilo alfaiataria entre homens e mulheres do mundo moderno.

A ALFAIATARIA ARTESANAL E O PRÊT-À-PORTER

A evolução do traje masculino diz respeito também à evolução da indústria do


vestuário. Os avanços tecnológicos extinguiram profissões e permitiram que outras
evoluíssem (Cerqueira, 1999), ou ainda, coexistissem de forma paralela. De acordo
com Kakita (2014) há na produção do vestuário masculino “duas abordagens da
mesma forma como ocorre com as oficinas de alta costura, separando suas unidades
de produção em duas áreas” (Kakita, 2014, p.16). No caso da alfaiataria, pode-se
observar a coexistência de dois segmentos: a alfaiataria artesanal e a alfaiataria prêt-à-
porter.

A indústria do prêt-à-porter pôde ser implementada graças aos próprios


alfaiates que dominavam as técnicas de confecção do vestuário, adotadas por
varejistas para a confecção de roupas em massa (Ormen, 2011). A própria introdução
da máquina de costura, que impulsionou a produção de roupas prontas, se deu
primeiramente nas alfaiatarias, mais do que na própria indústria (Avelar, 2011).

Ainda segundo Avelar, a roupa pronta para vestir apresentou um forte


crescimento após a segunda guerra mundial, com a economia estabilizada e o
aumento da população que demandava por mais produtos. As lojas de departamentos,
que surgiram na primeira metade do século XIX, criavam estratégias de vendas
variando proporcionalmente o valor das peças de acordo com o grau de trabalho e
com os materiais envolvidos em sua fabricação (Avelar, 2011). A mudança na
concepção do vestuário, tanto masculino quanto feminino, contribuía
significativamente, impulsionando a produção que se tornava menos complicada e
dessa forma não necessitava de mão de obra especializada como a dos alfaiates e
costureiras da Haute Couture.

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A alfaiataria artesanal, por sua vez, é formada por mão de obra altamente
especializada. Ela apresenta-se ao universo masculino assim como a Alta Costura se
apresenta ao universo feminino (Hopkins, 2013). De acordo com Roche, ela
“representa o monopólio masculino na esfera do vestuário, uma herança do antigo
passado medieval e do começo da Idade Moderna” (2007, p.302).

A alfaiataria tem como objetivo principal a confecção de roupas sob medida,


sobretudo masculinas, tais como gravatas, casacas, camisas, e principalmente o terno,
costume ou fato. Em 1930 o terno “consistia em três peças, ou seja, as calças, o casaco
e o colete. Hoje em dia, a composição é, em regra, só de duas peças, nomeadamente o
casaco e as calças, o colete desaparece gradualmente” (Roetzel, 2010, p.91).

Todas essas peças, quando produzidas no rigor da alfaiataria artesanal,


comparam-se à alta costura pelos acabamentos utilizados, pela qualidade dos tecidos
e aviamentos empregados, além do fato de não ser uma roupa padronizada,
atendendo as particularidades do corpo que as vestirá. Apesar de constituir o mesmo
ofício, costura e confecção em ambos os setores - alfaiataria ou alta costura, são
distintas e claramente descritas por Grumbach:

A primeira (alta costura) veste as mulheres sob medida, ao passo que a


segunda (prêt-à-pôrter) se dirige à sra. Todo Mundo. Embora na origem os dois ofícios
sejam aparentemente um só, a confecção (indústria), mais dinâmica, assume o risco da
estocagem ao produzir de antemão modelos segundo medidas ditadas pela
experiência e passíveis de serem oferecidos a preços mais acessíveis... Uma procura
enfatizar o luxo e o savoir-faire que se exige dela exaltando a criatividade, ao passo
que a outra se padroniza a fim de tornar-se mais competitiva (Grumbach, 2009, p.33).

A indústria do vestuário prêt-à-porter, diferente do traje customizado da


alfaiataria artesanal, desenvolveu-se de tal maneira que hoje é possível encontrar
trajes de alfaiataria em larga escala a um preço acessível. Porém, mesmo esses trajes
não se equiparam àqueles desenvolvidos pela alfaiataria artesanal, não apenas no
fazer manual como também na elaboração e criação dos traçados. A alfaiataria
artesanal quando examinada em seus detalhes tais como a modelagem, o corte e a
montagem das peças, é classificada, de acordo com Waugh (1985) como uma arte
altamente qualificada:

É a mais pessoal e essencial de todas as artes aplicadas, pois o artista que cria
usando roupa, seda e outros materiais tem sempre de lidar com o elemento humano
para a formação bem como para a visualização de sua arte. É uma arte que é ainda
mais complicada pelo fato de, além de ser incômodo em termos de forma o seu
modelo nunca é estático e o produto acabado. O que deverá parecer de forma

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agradável e elegante para um espectador, também deve ser flexível e confortável para
o usuário ao mover-se (Waugh, 1985, p. 34).

Para Waugh (1985), a qualidade da peça desenvolvida pelo alfaiate é


assegurada desde a tomada de medidas, momento em que o corpo é cuidadosamente
avaliado. Nessa etapa, o alfaiate observa e toma nota de todos os detalhes físicos de
seu cliente, tais como ombros altos ou inclinados, forma e tamanho do estômago,
peito de pombo8 etc. “Se o cliente tem algum defeito físico, deve notar-se, de modo a
ser habilmente disfarçado com endurecimento adicional9, preenchimento, etc”
(Waugh, 1985, p.86).

No entanto, há que se destacar que a roupa prêt-à-porter se desenvolveu de


forma satisfatória graças ao resultado do investimento em criação de esquemas novos
de medida, elaborados por “alfaiates habilidosos e experientes para a criação de
padrões variáveis que tornariam as roupas prontas para o uso bem-feitas e desejáveis”
(Hollander, 2003, p.136).

Dessa forma, a alfaiataria prêt-à-porter transformou o traje comum, porém de


qualidade inferior, “no terno formal usado em todas as ocasiões pelos homens deste
século, qualquer que seja sua classe ou ocupação”. E, principalmente depois da
segunda guerra, quando o traje sob medida ficou ainda mais custoso, “os cidadãos
comuns naturalmente continuaram a vestir versões produzidas em massa e de todos
os preços” (Hollander, 2003, p.140).

Essas versões “produzidas em massa e de todos os preços” traduzem os apelos


do consumismo imposto pela cultura do século XX, em contraponto ao artesanal
produzido pelo alfaiate desde o século XVIII. Como atesta Alberoni, o fato burguês
oitocentista confeccionado por um alfaiate utilizava um “tecido escolhido com os
maiores cuidados e devia durar muito, muito tempo, como a casa, como a empresa
que se devia transmitir aos filhos” (1989, p.58).

Cada qual com seus apelos, ambas as alfaiatarias possuem condições de


manterem-se harmoniosamente com o seu respectivo público. A alfaiataria artesanal e
sua tradição permanecem para atender a um público que preza pela qualidade e que
compreende o quão valorosa é sua arte. Bem como por ser uma importante referência
para a indústria do prêt-à-porter, que busca a todo tempo em seus produtos a
aparência do sob medida (Hollander, 2003).

A HIERARQUIA DAS OFICINAS E AS RELAÇÕES DE TRABALHO

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As regras impostas pelas guildas, que regulamentavam as condições de ingresso
no ofício, bem como a hierarquia das organizações, demonstravam o caminho que o
aprendiz de alfaiate percorreria até alcançar o título de mestre dentro das oficinas.
Conforme Roche, [...] dez mestres admitidos por ano, não incluindo os filhos de
mestres; três anos de aprendizado e outros tantos na condição de jornaleiro; uma obra
prima obrigatória, podendo ser substituída no caso de meninos nascidos dentro do
ofício; as viúvas de mestres podiam continuar o negócio de seus maridos (Roche, 2007,
p.304).

Havia ainda outras condições para que um alfaiate obtivesse o título de mestre,
como a cobrança de 500 libras na Inglaterra no ano de 1660. Este era o custo médio
exigido pelas Guildas pelas cartas de mestrança, às quais eram acrescidos os “direitos
reais, os alfinetes da guilda, o preço do banquete de recepção, o custo de uma loja e o
estoque de insumos, além da disponibilidade financeira de indenizar possíveis
credores” (Roche, 2007, p.305).

A alfaiataria, como ainda se observa (Barbosa, 2011), desde as guildas é um


ofício transmitido principalmente de pai para filho, que herda a oficina, os clientes,
bem como todo o conhecimento adquirido ao longo de uma vida pelo mestre alfaiate.
Além de seu pai, o mestre alfaiate poderia ser um parente próximo, como destaca
Roche em uma análise em que demonstra a forma de ingresso no ofício dos alfaiates,
em Paris no século XVIII.

Quatro quintos dos aprendizes de alfaiates vinham de famílias proprietárias de


lojas e oficinas em Paris; três quartos deles eram jovens parisienses casados sobretudo
com moças parisienses, sendo a metade filhos de alfaiates, mestres ou mesmo de
jornaleiros parisienses. Chegada a hora de se estabelecerem profissionalmente, os
jovens mestres alfaiates podiam contar com o apoio da família – pais, tios e primos -,
quase todos da mesma origem social: a burguesia parisiense, ou trocando em miúdos,
comerciantes, mestres e pequenos oficiais (Roche, 2007, p.321).

Os oficiais tinham origem nas províncias e pertenciam a níveis sociais humildes,


o que demonstrava o grau de dependência das grandes alfaiatarias e a natureza
fechada das guildas que se mantinham entre famílias tradicionais do ofício (Roche,
2007). Os alfaiates e as costureiras, ainda no século XVIII, “raramente tinham loja ou
oficina; o trabalho deles era feito nas instalações do mestre, onde os materiais e
instrumentos eram facilmente encontrados” (Roche, 2007, p.323).

Fonte:
Por Juliana Barbosa e Eloisa Helena Santos.
http://historiapt.info/a-evoluco-histrica-da-alfaiataria-trajes-saberes-mtodos-e-rela.html?page=5

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O LIVRO SOBRE GEOMETRIA, PRÁTICA E PADRÕES

Esta obra impressa em formato de paisagem é o primeiro tratado sobre


alfaiataria publicado na Espanha. Ele abriu caminho para outras obras semelhantes do
final do século XVI e início do século XVII.

O autor foi Juan de Alcega, um alfaiate de profissão, nascido em Guipúscoa, na


região basca do norte da Espanha. Em sua dedicação, a um teólogo chamado Tejada,
ele descreve "esta, minha pequena obra, algo totalmente novo, nunca visto até então
em nossa Espanha".

A utilidade da obra foi confirmada por Hernan Gutierrez, alfaiate da princesa de


Portugal, e Juan Lopez de Burgette, alfaiate do duque de Alba, que, em 21 de agosto
de 1579, após examinar a obra e o conhecimento do autor, concluiu que "este livro é
muito bom, útil e benéfico para toda a república" e recomendou que o autor
recebesse uma licença para que a obra pudesse ser impressa e vendida a um preço
justo. A licença foi concedida pelo rei em 13 de setembro de 1579 e o livro foi
impresso em Madri em 1580.

A obra de Alcega é estruturada em três partes, através das quais ele pretende
passar seu conhecimento, embora, como ele informa ao leitor no prefácio, várias vezes
esteve prestes a desistir, ou "porque eu considerei demais os custos e os diversos
padrões que eram necessários" ou porque "havia muitas contradições e disputas a
enfrentar no Conselho Real para imprimir este livro".

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A primeira parte explica a origem da "vara para medir que usamos nestes
reinos de Castela", que é dividida em "décimo segundo, oitavo, sexto, quarto, terceiro
e metade de uma vara". Em seguida, ele menciona como se reduz a medida do tecido
de "duas varas de largura" para qualquer outro tamanho.

Usando frações, Alcega dedica 22 capítulos a este tema, de modo que qualquer
um pode pedir corretamente o traje, a seda ou outro tecido necessário para
confeccionar roupas masculinas e femininas sem qualquer desperdício ou falta de
pano.

Na segunda parte, Alcega apresenta 135 traças (padrões) usados para fazer
roupas para homens, mulheres, sacerdotes, comandantes de ordens militares, trajes
para combates e jogos de lança e até mesmo para bandeiras de guerra. A qualidade
dos desenhos é digna de nota e contrasta com o descaso visto na redação dos textos
explicativos que acompanham.

Na terceira parte, Alcega especifica a quantidade de tecido necessária para


produzir cada item do vestuário, utilizando tabelas que combinam três possíveis
comprimentos dos itens e 14 possíveis larguras de tecidos que podem ser usados.

Fonte: https://www.wdl.org/pt/item/7333/

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