Você está na página 1de 12

PRÓLOGO

ESTRATAGEMAS E OPERAÇÕES ESPECIAIS


DA ANTIGUIDADE A 1939

O guerreiro hebreu Gideão foi o inventor das primeiras unidades


especiais. O Livro dos Juízes revela como, em 1245 a. C., ele iludiu
e venceu os adversários midianitas. Primeiro, Gideão escolheu,
entre os milhares de soldados de que dispunha, 300 combatentes
de elite. Em seguida, preparou­‑se para a ação no mais absoluto
sigilo, usando o efeito­‑surpresa. Tinha como objetivo desorientar
os adversários, em número superior, com três ações simultâneas:
despertá­‑los em sobressalto, sob luz ofuscante e com barulho
ensurdecedor. Sigilosamente, distribuiu trombetas, cântaros e
tochas aos 300 guerreiros selecionados. Orientou os homens a
ocultarem a chama das tochas com os cântaros, de modo a con‑
seguir brandi­‑las em simultâneo, no momento certo, altura em
que deveriam também fazer soar as trombetas. Ao cair da noite,
aproveitando­‑se da escuridão e no mais profundo silêncio, os
soldados hebreus cercaram as posições midianitas. Ao sinal com‑
binado, partiram os cântaros e investiram contra o inimigo,
tocando as trombetas. Os midianitas, despertados em sobressalto
pela algazarra e ofuscados pelos numerosos clarões, convence­
ram­‑se de que uma força numerosa se precipitava sobre eles.
Então, empunharam imediatamente as armas e lançaram­‑se
ao combate, e, na escuridão e na confusão geral, massacraram­
‑se uns aos outros. Gideão e os seus homens despedaçaram os
sobreviventes.
Em todas as épocas, a História oferece exemplos de unidades
às quais foram confiadas missões audaciosas, com o objetivo de
resolver uma situação ou corrigir o curso de uma batalha que
começou mal.

9
ÉRIC DENÉCÉ

A Ilíada e A Odisseia constituem uma verdadeira mina de exem‑


plos de ações que hoje qualificaríamos como de «forças especiais»,
sobretudo nos atos de Ulisses. Alternadamente comerciante,
pirata e guerrilheiro, o herói de Homero conhece todas as artima‑
nhas. Entre os seus qualificativos, destacam­‑se: «personagem dos
mil truques», «engenhoso», «astuto», etc. De Ulisses, pouca ou
nenhuma façanha bélica é exaltada; já conluios, emboscadas,
estratagemas à cretense, sim. Na época de Homero, a forma de
combate dos cretenses não se parecia com a dos outros exércitos
gregos. Os compatriotas de Ulisses fizeram da trapaça uma arte
sublime. Eles espreitavam à noite, das montanhas, ludibriavam e
montavam armadilhas aos adversários. Praticavam a pirataria,
saqueando navios estrangeiros, fazendo razias e raptando.
Os exércitos regulares não podiam contra esses combatentes que
surgiam como sombras, atacavam, voltavam para o mar e desa‑
pareciam. A Ilíada e A Odisseia estão repletas de façanhas desse
tipo, mais próximas do banditismo que do ato heroico, mas terri‑
velmente eficazes.
O episódio do cavalo de Troia é a melhor ilustração dessas prá‑
ticas não convencionais. A deusa Atena, para precipitar o fim de
uma guerra que se eternizava, ensinou a Ulisses o estratagema do
cavalo de madeira. O embuste consistia em oferecer aos troianos
uma enorme escultura equestre, marcando o fim das hostilidades.
Então, os gregos fingiram levantar o acampamento que haviam
instalado diante de Troia e em seguida os navios partiram. Na
realidade, eles ocultaram­‑se atrás de uma ilha vizinha. E o imenso
cavalo, na verdade sem nenhum guerreiro dentro, serviu para pro‑
vocar o alargamento da porta e a queda de parte das muralhas.
Quando a cidade adormeceu, um espião a serviço de Ulisses ateou
um fogo que a frota grega podia avistar do mar. As forças gregas
desembarcaram imediatamente e conquistaram a cidade.
Essa forma de guerra irregular também existiu na China antiga:
A Arte da Guerra, de Sun Tzu, e o célebre tratado Os 36 Estratagemas
concedem um lugar primordial à guerrilha na condução da guerra.
Eles preconizam a ação pela retaguarda do inimigo, a fim de
desorganizá­‑lo, formulando verdadeiros princípios de guerrilha.
Outro grande conquistador também foi mestre na arte dos sub‑
terfúgios e das operações especiais: Aníbal. Em 217 a. C., durante

10
A HISTÓRIA SECRETA DAS FORÇAS ESPECIAIS

a campanha na Itália, o general cartaginês viu­‑se obrigado a aban‑


donar uma posição na qual não podia passar o inverno. Nessa
retirada tinham de passar por um desfiladeiro onde ele sabia que
seriam atacados pelos romanos. Mas Aníbal usou um estrata‑
gema para enganar os adversários: reuniu uma manada de dois
mil bois e, no meio da noite, mandou que os soldados atassem
tochas aos chifres dos animais. Depois ordenou a alguns homens
que os conduzissem para um vale vizinho, onde deveriam com‑
bater os romanos que aparecessem. As tochas convenceram o
inimigo de que o exército cartaginês estava em vias de tomar, na
escuridão, o caminho do vale. Foi apenas com as luzes da alvo‑
rada que os romanos se deram conta da artimanha. Enquanto
isso, ­Aníbal e o seu exército atravessaram, com tranquilidade, o
famoso desfiladeiro.
Esse estratagema atravessou os tempos. Muitos séculos mais
tarde, durante a guerra de independência da Macedónia, um
punhado de guerrilheiros macedónios conseguiu tomar meia
dúzia de tanques sérvios empregando uma estratégia similar: apa‑
nharam 500 tartarugas, numerosas na região, colaram uma vela
acesa no casco de cada uma, e, em seguida, fizeram­‑nas avançar
na direção dos tanques sérvios. Acreditando que um sem­‑número
de inimigos os assaltava, os sérvios contra­‑atacaram com vigor,
mas vendo que os tiros que disparavam não surtiam efeito,
renderam­‑se...
Os romanos, apesar do reconhecido génio militar, só tiveram
paixão pela guerra convencional. Para enfrentar as guerrilhas que
os confrontaram, desenvolveram diversas táticas. Uma das raras
ações especiais romanas conhecidas por nós aconteceu em 213
antes da nossa era. Fábio Máximo encontrou a cidade de Arpi, na
Apúlia, ocupada por uma guarnição de Aníbal. Com o objetivo
de tomar a cidade, enviou 600 soldados, numa noite escura, para
atravessar a muralha utilizando escadas num ponto particular‑
mente fortificado, logo, menos bem guardado. Graças à intensa
chuva que abafava os ruídos da tropa a avançar, esses homens
cumpriram a missão e os romanos de Fábio Máximo invadiram
Arpi.
Em comparação, esse desdém pelas operações especiais e estra‑
tagemas não existiu no Império Romano do Oriente, depois

11
ÉRIC DENÉCÉ

Império Bizantino. Situado na confluência do Ocidente latino, do


mundo eslavo, do Oriente asiático e do Islão, Bizâncio teve de
guerrear incessantemente, ao longo de toda a sua história, em
diversas frentes: contra uzes, pechenegues, magiares e búlgaros,
na Europa Oriental; contra persas, árabes e turcos seljúcidas, na
Ásia; contra normandos e cruzados, no Mediterrâneo e no Levante.
Essa situação naturalmente predispunha o império a apelar a
todos os recursos da ação secreta. E esses permitiram que preser‑
vasse o seu território durante mais de mil anos.
Na primeira campanha da Itália, de 535 a 540, o general
­Belisário lançou mão de um estratagema para conquistar Nápoles.
Quando o cerco à cidade durava há muitos meses, ele deu­‑se conta
de que era possível penetrar no coração da cidade utilizando o
aqueduto que a abastecia. Depois de cortar a água, o general
bizantino enviou um grupo de 400 soldados pelo aqueduto,
enquanto o resto do exército atacava as muralhas. Os napolitanos,
atacados pela retaguarda, e não vendo socorro no horizonte,
submeteram­‑se então a Belisário. Assim se afirma um princípio
inerente às operações especiais: a importância da dimensão psi‑
cológica. Vencer por meio de operações especiais não é apenas
destruir os meios de combate do inimigo, mas também suprimir
qualquer vontade de combater dos soldados.
Nesta época, também os povos do Norte da Europa desenvol‑
veram técnicas de combate não ortodoxas. Os viquingues dispu‑
nham de sólida tradição na realização de ações especiais,
principalmente no domínio marítimo: a destruição da frota adver‑
sária aportada – na maior parte das vezes, incendiando­‑a – era
sempre um dos objetivos desses beligerantes. Essa prática das
operações especiais advinha em particular do facto de a tripulação
dos dracars vikings ou snekkars (serpentes – referência às figuras de
proa desses barcos) ser sempre menos numerosa que a dos adver‑
sários. Qualquer técnica que permitisse preservar a vida dos
homens era, portanto, preferível a um confronto. Quando se ins‑
talaram nas margens do Baixo Sena, no século ix, os viquingues
tinham longa prática no reconhecimento dos sítios a invadir, nas
incursões propriamente ditas e em operações noturnas. Planea‑
vam exímios ataques­‑surpresa e realizavam­‑nos para obter o
máximo efeito. Escolhiam os domingos, feriados ou a hora da

12
A HISTÓRIA SECRETA DAS FORÇAS ESPECIAIS

missa para agir. Essa forma de guerrear garantiu o seu sucesso,


permitindo­‑lhes estabelecerem­‑se por algum tempo em França.
Os normandos herdaram essa cultura de guerrilha dos viquin‑
gues, a qual souberam adaptar em benefício próprio, para garantir
a segurança e estender os seus domínios. Desde a fundação do
ducado, no início do século x, existiu nas regiões fronteiriças da
Normandia um sistema de guerrilha cuja origem eram as organi‑
zações de autodefesa dos primeiros colonos escandinavos. Esse
sistema permitia a formação praticamente imediata de grupos de
camponeses treinados e armados, comandados pelos senhores
locais. Durante as invasões estrangeiras, eram capazes de observar
o inimigo sem serem vistos, reunir­‑se rapidamente para preparar
emboscadas, montar armadilhas na retaguarda e até atacar em
coordenação com as forças regulares. Esse sistema demonstrou
ser eficaz por diversas vezes: em 1029, contra os bretões; em 1054,
diante de um poderoso exército francês; e em 1136, contra o conde
D’Anjou.
Como os bizantinos e os viquingues, os normandos sempre
procuraram evitar os grandes confrontos ou batalhas, recorrendo
à desestabilização do inimigo pela ação psicológica e pelas ope‑
rações especiais. Tentavam surpreender os adversários através da
dissimulação do seu contingente, e dos movimentos, da realização
de emboscadas sistemáticas e de operações noturnas, para as
quais eram treinados. Há múltiplos exemplos do êxito de opera‑
ções desse tipo na Normandia, no Mediterrâneo, nas lutas contra
Bizâncio e no Oriente, durante as cruzadas.
As cruzadas, aliás, colocaram em evidência o talento dos povos
do Médio Oriente em matéria de estratagemas e operações espe‑
ciais. No cerco de São João de Acre, em junho de 1191, a frota
cruzada intercetou e afundou um navio muçulmano carregado de
animais peçonhentos. Esses bichos seriam soltos no campo dos
cruzados ou nos seus navios, pois os cavaleiros alemães, austría‑
cos e flamengos tinham um medo terrível de tais animais.
Essa «pequena guerra», como a chamavam então, foi larga‑
mente praticada em toda a Idade Média. Durante a Guerra dos
Cem Anos realizaram­ ‑se numerosas operações audaciosas,
como os ataques­‑surpresa. O cavaleiro bretão Bertrand du Guesclin
– futuro condestável de França – foi um dos mais criativos na

13
ÉRIC DENÉCÉ

especialidade. Jovem guerreiro, Du Guesclin estabeleceu domicí‑


lio na floresta de Paimpont, de onde atacava os guerrilheiros de
Montfort na rota de Rennes, que ele controlava. Du Guesclin e os
seus homens podiam surgir em qualquer lugar da rota e a todo o
momento – a sua armadilha nunca dava oportunidade de fuga
aos adversários e eles desapareciam assim que terminavam.
A assombrosa mobilidade do grupo devia­‑se ao seu conhecimento
detalhado da região.
Em julho de 1350, Du Guesclin decidiu tomar a Fortaleza de
Fougeray, situada a meio caminho entre Rennes e Nantes, e defen‑
dida pelo capitão inglês Bemborough. Escondido nos limites da
floresta com 60 homens, o bretão aguardou o momento oportuno.
Aproveitou­‑se de uma saída do adversário, que partia com urgência
para defender Auray, e colocou o plano em ação. Quinze homens,
disfarçados de açougueiros e camponeses, com as armas escondi‑
das nos feixes de lenha, apresentaram­‑se no portão. Apesar da
legítima desconfiança dos guardas, a ponte levadiça foi baixada e
os bretões tomaram a fortaleza.
Foi também durante a Idade Média que se desenvolveram os
ninjas, no Japão. Essa arte teria sido importada da China, onde
guerreiros similares existiam há séculos. No reinado do imperador
Shotoku (573­‑622), há registos da presença de guerreiros da som‑
bra, cuja função era espreitar as manobras de todo o clã que se
opunha ao poder. Mas a verdadeira fase de desenvolvimento dos
ninjas deu­‑se no período Kamakura (1192­‑1333). Organizavam­‑se
em três classes: os jonin, que planeavam e dirigiam os ataques; os
chunin, quadros intermediários, que organizavam os ataques; e os
genin, agentes encarregados da execução. O ninja não obedece a
um código de ética, como os samurais dependem do bushido. São
hinin, marginais. No sentido nobre do termo, o ninja era um espe‑
cialista: combatente perito num certo número de armas e também
bom batedor, rastreador, acrobata e ilusionista. Mas a eficácia
assentava principalmente em observações perspicazes, extraordi‑
nário sentido de oportunidade e na arte da encenação. Táticas não
convencionais, espionagem, embuste, ardil… usavam tudo.
As famílias e as escolas ninjas foram numerosas no Japão até
serem consideradas um perigo por Tokugawa, que as fez desapa‑
recer no início do século xvii.

14
A HISTÓRIA SECRETA DAS FORÇAS ESPECIAIS

Essa cultura da guerra pouco ortodoxa não foi monopólio da


China e do Japão. Na Índia, em 1637, Dadoji Konddeo, adminis‑
trador do reino de Puna, compreendeu bem o valor da informação
e da ação. Não acreditava no combate frontal, ainda que este satis‑
fizesse o ego dos senhores de então. Esse confronto só trazia resul‑
tados quando apoiado por manobras «por trás da cena». Dadoji
Konddeo desenvolveu um verdadeiro serviço de informação e
ação e nele iniciou o seu soberano, o rei Shivaji. Esse serviço com‑
preendia quatro atividades:

– A primeira chamava­‑se «de orelha à escuta»: os agentes


deviam ouvir tudo – discursos, proclamações, súplicas, mur‑
múrios, etc., e reportar.
– A segunda nomeava­‑se «olhos à espreita» e era responsável
pela observação direta: avaliação das tropas, o seu equipa‑
mento, fortificações, estradas, pontes, etc.
– A terceira, denominada «bisbilhotice», coletava todos os
rumores que circulavam nos bazares, mercados e caminhos,
a fim de poder determinar a disposição do povo.
– A quarta era o departamento dos «solucionadores», agentes
que ficavam acantonados num quartel isolado do Forte de
Raigarh. Esses homens não tinham nome, ninguém os conhe‑
cia, nem se sabia o que faziam. Durante 20 anos, eles iriam
preparar e executar todos os golpes de Shivaji.

O Império Otomano também teve à disposição a cavalaria


ligeira dos akinji, cuja missão era penetrar profundamente no ter‑
ritório inimigo a fim de desorganizar as linhas de comunicação e
os preparativos de defesa.
Na Europa, no final do século xvii, apareceram as tropas ligei‑
ras e os destacamentos de batedores. Essas novas formações
davam resposta à preocupação tática de conhecer a situação,
cobrir as comunicações e desgastar o inimigo. Uma das primeiras
utilizações deu­‑se em França, em 1702 e 1703, durante a revolta
dos protestantes do Languedoc e de Cevenas – chamados camisards.
O poder real, após meses de fracasso, concentrou então 12 mil
homens sob as ordens do marechal de Montrevel, para dominar
dois mil guerrilheiros. Os camisards fundiam­‑se na paisagem e

15
ÉRIC DENÉCÉ

desapareciam. Para lutar com eles, Montrevel constituiu, então,


companhias de irregulares chamados migueletes. Eram combaten‑
tes que calçavam alpargatas e usavam uma boina pontiaguda.
Com a adaga na cintura e a carabina nas costas, corriam como os
camisards nas montanhas, chegando antes dos dragões reais.
Depois, progressivamente, as unidades com vocação para comba‑
ter de maneira irregular foram normalizadas e especializaram­
‑se. Eram as companhias francas, saídas do caldeirão das tropas
ligeiras.
Sucederam­ ‑se outras guerras de guerrilha ao longo do
século xvii, tanto na Europa como na América do Norte. No Novo
Mundo, os confrontos pela supremacia entre França e Grã­
‑Bretanha multiplicaram as ações de guerrilha e as alianças com
tribos indígenas – tudo para vencer o opositor. No século xviii,
nas guerras em que se opuseram no Canadá, franceses e ingleses
apoiaram­‑se em companhias francas, capazes de combater nas
florestas da América do Norte. Para desgastar as tropas adversá‑
rias, as nações europeias utilizaram voluntários, verdadeiros
«batedores dos bosques» que recrutavam os guerreiros indígenas
das tribos aliadas. Caçadores habituados ao combate na floresta
forneciam informações aos britânicos e efetuavam ataques­
‑surpresa. Os mais célebres foram os Rogers Rangers, que partici‑
param da expedição de Montreal contra os franceses.
A Guerra de Independência norte­‑americana também propi‑
ciou a realização de numerosas ações irregulares (emboscadas,
ataques­‑surpresa). Apesar dos esforços de Howe, as formações de
infantaria, que constituíam o exército inglês no início do conflito,
nada podiam contra o desgaste contínuo promovido pelos com‑
batentes norte­‑americanos que praticavam a guerra à indígena.
Embora cada regimento britânico tivesse uma companhia de tro‑
pas ligeiras instruída especificamente para a «guerra na floresta»,
elas mostraram­‑se ineficientes. A partir de 1777, foram, então,
criadas tropas ligeiras de um novo género: rangers e sharpshooters
(atiradores de elite).
A Revolução Francesa e a passagem para as guerras de massa
parecem ter relegado ao esquecimento esses modos de ação.
Os efetivos alistados nos campos de batalha europeus a partir do fim
do século xviii quase não deixaram espaço para essas operações.

16
A HISTÓRIA SECRETA DAS FORÇAS ESPECIAIS

É verdade que alguns dos êxitos fulgurantes de Bonaparte se


deveram à leveza das tropas, que viviam nas regiões para as
quais levavam a mensagem revolucionária. Foi na sua época, no
entanto, que os exércitos se tornaram novamente vulneráveis à
luta de guerrilha, devido ao seu crescimento e à logística
necessária.
Mesmo assim, o império não foi mesquinho em ações irregu‑
lares. No dia 20 de outubro de 1804, sob as ordens de Bonaparte,
uma centena de soldados franceses desembarcou na costa prus‑
siana. A sua missão era raptar sir Rumbold, embaixador britânico
em Hamburgo, responsável por numerosas operações de espio‑
nagem e subversão em França, o que aconteceu na noite de 24 para
25 de outubro. Essa operação permitiu desmantelar a organização
de espionagem inglesa no Norte da Europa.
Durante a expansão colonial do século xix, os exércitos euro‑
peus de além­‑mar tiveram de adaptar as táticas para derrotar
adversários que lhes eram frequentemente inferiores em número
e, sempre, em material bélico. Descobriram assim as operações de
contraguerrilha, primeiro contra a população local, mas também
contra os próprios colonos ocidentais – foi o caso dos britânicos
durante a Guerra dos Bóeres, na África do Sul.
A comunidade bóer, descendente dos primeiros colonos holan‑
deses, recusou­‑se a aceitar a dominação inglesa, desencadeando
então uma rebelião contra a Coroa. Para o povo bóer, tratava­‑se
da sobrevivência da comunidade. Por isso escolheram a guerra
irregular. As suas tropas não empreendiam batalhas clássicas, pri‑
vilegiavam as ações localizadas, cansando os ingleses. Os britâni‑
cos levaram meses para admitir que enfrentavam um novo tipo
de conflito. A situação tornou­‑se incontrolável, pois um inimigo
intangível ameaçava­‑os por toda a parte e a procura dessa força
adversária consumia­‑os.
A unidade de combate bóer era o kommando. A definição bóer
para este termo era bem diferente da que os exércitos europeus
modernos atribuem à palavra. Entre os bóeres, o kommando era a
unidade militar do distrito eleitoral no qual estavam inscritos
todos os cidadãos masculinos do local em idade de se alistarem.
Esses homens recebiam treino convencional. No terreno, os
kommandos fundiam­ ‑se com a imensidão sul­ ‑africana. Eram

17
ÉRIC DENÉCÉ

rápidos, conheciam muito bem o terreno, eram excelentes atira‑


dores, cavaleiros notáveis, resistentes e sóbrios, e fizeram as uni‑
dades britânicas, pesadas e de pouca mobilidade, passar por
dificuldades. Para se abastecerem e se armarem, os kommandos
bóeres atacavam comboios, mantinham as guarnições isoladas e
sabotavam as vias férreas. Não hesitavam em usar uniformes bri‑
tânicos, que lhes permitiam escapar ou surpreender as patrulhas.
Mas a tática da terra arrasada, seguida do genocídio de mulheres
e crianças bóeres nos campos de concentração, fez os combatentes
recuarem.
Foi necessário esperar o início da Primeira Guerra Mundial e
o impasse da situação na frente francesa para que os estados­
‑maiores europeus voltassem a considerar a realização de opera‑
ções especiais. O mais belo exemplo de guerra não convencional,
porém, não aconteceu no Velho Continente, mas no Médio Oriente.
Foi obra do capitão T. E. Lawrence, que imobilizou e desafiou um
expressivo contingente de forças turcas na Península Arábica e na
Síria. Comandando tropas árabes, organizou incursões audacio‑
sas, atacando sempre os adversários quando estes menos espera‑
vam, obrigando­‑os assim a dispersar as forças e abrindo uma nova
frente na retaguarda turca no Médio Oriente. Lawrence relatou a
sua ação na célebre obra Os Sete Pilares da Sabedoria. Nela, resumiu
maravilhosamente o carácter intangível dos destacamentos de
guerrilha, que atacam e desaparecem, frustrando as fileiras dos
exércitos convencionais: «Nós funcionamos de maneira indefi‑
nida, como uma influência, uma ideia, uma coisa invulnerável,
intangível, sem frente nem costas, evanescente como um gás.
Os exércitos regulares são como as árvores, imóveis, profunda‑
mente enraizados, nutridos até ao topo graças às suas longas raí‑
zes. Nós podemos ser como um sopro, que vai aonde bem lhe
apetece. [...] Assim como nada de material nos é indispensável
para viver, é possível não usarmos nada de concreto para matar.»
O Império Otomano, ao qual Lawrence da Arábia se opôs, tam‑
bém passou a contar, a partir de agosto de 1914, com uma temível
organização especial, a Techkilat Mahsusa, criada por Enver
Pacha. Voltada para as atividades de propaganda, espionagem e
sabotagem, tratava­‑se de uma espécie de quinta­‑coluna, cuja mis‑
são principal era propagar como palavra de ordem, através do

18
A HISTÓRIA SECRETA DAS FORÇAS ESPECIAIS

mundo muçulmano, a guerra santa lançada pela Sublime Porta.


Ao longo da guerra, os milhares de agentes dessa organização
efetuaram várias tarefas, desde a simples organização de grupos
políticos até expedições armadas contra inimigos internos e exter‑
nos do regime, tanto em território otomano quanto em regiões
longínquas como o Afeganistão, a Índia ou a Etiópia.
Mal acabada de nascer, a aviação foi utilizada para operações
especiais já no princípio da Primeira Guerra Mundial. Em novem‑
bro de 1914, as trincheiras apareceram e a guerra atolou. A infil‑
tração a pé pelas linhas inimigas tornou­‑se impossível. O grande
quartel­‑general francês decidiu então confiar ao serviço de aero‑
náutica a missão de colocar em território inimigo, por avião,
os espiões encarregados de recolher informações ou executar
sabotagens.
Ao longo desse conflito, os alemães também foram criativos
em matéria de operações especiais. Em 1916, o espião Von Rintelen
e a sua rede de ação, integrada por mergulhadores, operaram no
porto de Nova Iorque. Eles ocultavam explosivos Thermit nos
navios americanos que levavam suprimentos e munições para a
Europa, ou fixavam bombas no casco das embarcações ancoradas.
Assim destruíram ou causaram danos a muitas dezenas de navios.
Depois, em 1918, foram criados os Freikorsp alemães, que comba‑
tiam mas nunca ocupavam as posições conquistadas, assim como
algumas unidades britânicas que operavam no Médio Oriente.
Com exceção das operações de assalto, essas unidades não se
envolviam nos combates.
Quando chegou à Palestina, no outono de 1936, com 33 anos,
Orde Wingate já era veterano em operações especiais. Aprendeu­
‑as, entre 1928 e 1933, ao lado do pai, oficial que, no Sudão, per‑
seguiu contrabandistas e traficantes de marfim. No outono de
1937, obteve permissão dos superiores para estudar o modus ope-
randi dos bandos árabes que aterrorizavam a região. Em junho de
1938, enviou ao comando um relatório intitulado «Como permitir
que as forças de Sua Majestade operem à noite para pôr fim ao
terror no Norte da Palestina». Wingate sugeria agir à noite, insistia
na necessidade de recolher previamente informação, conhecer bem
a região, os costumes e a língua dos nativos. O adversário devia
ser atacado de surpresa, valendo­‑se de marchas de aproximação

19
ÉRIC DENÉCÉ

longas e da realização de operações de diversão. Os ataques


deviam ser empreendidos de forma breve, serem rápidos e contar
com todo o poder de fogo disponível.
Quarenta soldados de infantaria e alguns camiões foram colo‑
cados à disposição de Wingate, que recebeu autorização para
recrutar voluntários judeus. Organizou a unidade sob o nome de
Special Night Squads (SNS). Após um curto período de treino, os
SNS começaram a operar em julho de 1938, realizando ataques­
‑surpresa a aldeias árabes suspeitas de abrigar terroristas. No pri‑
meiro mês de operações, mataram 60 suspeitos. A extrema violência
caracterizava essa unidade – o método utilizado por Wingate para
obter informações dos prisioneiros, por exemplo, consistia em
alinhá­‑los e executar 1 a cada 10, «estimulando» os que sobrevi‑
viam a falar. Os SNS continuaram a operar até maio de 1939, mas
os laços que Wingate estabeleceu com os líderes da comunidade
judia – sobretudo Ben­‑Gurion – e o seu sionismo cada vez mais
ostensivo exasperaram os superiores, que o transferiram para um
posto fora da Palestina.
Assim, da Antiguidade até às vésperas da Segunda Guerra
Mundial, as operações especiais foram numerosas, embora o seu
carácter secreto as tenha frequentemente ocultado dos historiado‑
res. A partir da Segunda Guerra Mundial, elas assumem um carác‑
ter institucional dentro das forças armadas. Daí em diante, a
atuação desses grupos especiais intensificou­‑se, o seu papel e os
seus efetivos cresceram rapidamente e tornaram­‑se mais impor‑
tantes do que nunca.

20

Você também pode gostar