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Catolicismo nº 219 - Março 1969
Escutando-se no Burgo os gritos de triunfo dos muçulmanos, a Levadas por pequenas naus que conseguiam furar o bloqueio, notícias
guarnição, de pé nas ameias, içou num mastro de quarenta pés o grande da epopéia do Monges-cavaleiros tinham-se espalhado pela Europa,
vexilo da Religião. Ao lado dos cavaleiros e dos Capelães estava o Bispo, inflamando as coragens, e voluntários para a luta apresentavam-se em todos
de mitra e báculo, revestindo não os paramentos pretos dos mortos, mas os os priorados da Ordem no continente. Infelizmente, só uma grande frota
vermelhos dos mártires, e conduzindo o véu miraculoso de Nossa Senhora conseguiria forçar o bloqueio e Felipe II, de quem poderia partir o socorro
de Philerme. Altivos e majestosos, soldados e Sacerdotes entoavam o hino mais imediato, mantinha-se inesperadamente cauteloso. Seus próprio irmão,
com que a Igreja celebra os atletas da fé: “Deus, tuorum militum / sors et D. João d’Áustria, o futuro vencedor de Lepanto, então com vinte anos,
corona, praemium...” desobedecendo ordens reais, fugira para Barcelona com intuito de procurar
transporte para Malta.
Mustafá, surpreso ao ouvir o canto, perguntou a um de seus generais,
de sangue cristão, herdeiro de um grande nome – Láscaris chamava-se ele – A situação na ilha já então era a mais grave possível. La Valette, que
o que salmodiavam os inimigos. Láscaris, emocionado, respondeu-lhe: até essa altura mantivera segredo a respeito, julgou-se no dever de
“Serasquier, os cristãos celebram, com este hino, a morte de seus irmãos”. comunicar o Conselho dos Grão-Cruzes que os víveres, as balas e a pólvora
chegavam ao fim. Diante do abatimento de seus próceres, o Grão-Mestre
Assim informado, o cruel seguidor de Mafoma mandou imediatamente assim lhes falou: “Deus não nos abandonará, meus irmãos, nem Nossa
que lhe trouxessem os corpos dos heróis de Santo Elmo e todos os Senhora. Começaremos esta tarde uma novena à nossa Mãe do Céu, que,
prisioneiros cristãos que se encontrassem em poder de seu exército. Mortos neste momento, está em débito com a Ordem. É por isso que nós Lhe
e vivos foram colocados no centro de um quadrado formado pelos yayalars suplicaremos que Se digne saldar sua dívida libertando-nos do assédio
sobreviventes. Por ordem de Mustafá, estes rasgam o peito dos cristãos e turco, e se Ela aceder dar-Lhe-ei, com alegria e reconhecimento, quitação
lhes arrancam o coração. Em seguida, os corpos são fendidos em cruz, em boa e devida forma”.
amarrados a pranchas e jogados ao mar, para que as correntes os levem até
o Burgo.
Quando estes pobres e gloriosos despojos chegaram ao ancoradouro da
cidade, o Grão-Mestre saía do ofício com os dignatários da Ordem. Neste momento, os socorros já se aproximavam. Felipe II, atendendo
Comovido até as lágrimas, La Valette proclamou que o bárbaro desafio dos afinal aos reclamos de seu próprio zelo, determinara a partida de uma frota,
turcos exigia uma resposta imediata. Com aprovação de seu Conselho, comandada por D. Garcia de Toledo e conduzindo quatorze mil
mandou executar todos os prisioneiros maometanos, e os pedaços de seus combatentes. Chegando de surpresa, os espanhóis descarregaram, “en
corpos previamente atados às bocas dos canhões, levaram ao serasquier a passant”, seus canhões sobre as naves turcas, antes de atracar no porto. La
terrível resposta da Religião. (Tocado no mais íntimo da alma, Láscaris Valette não tinha mais balas de artilharia para saudá-los e foi obrigado a
poucos dias depois atravessou a nado a baía e, jogando-se aos pés de La soltar alguns foguetes para não faltar de todo à cortesia.
Valette, informou-lhe que recebera o batismo antes de ser raptado pelos Com seu exército dizimado, seu moral quebrado, e obrigados a
turcos aos treze anos, e implorou o perdão de sua apostasia com o favor de enfrentar agora não só os terríveis Hospitalários como também as
ser admitido entre os defensores de Malta. Obtido o perdão, lutou aguerridas tropas espanholas, viram-se os maometanos ameaçados de
valentemente até o fim do sitio). extermínio. Compreendendo a situação, abandonaram o campo o mais
rápido que lhes foi possível e partiram para enfrentar a cólera do sultão, –
não sem verem antes, novamente, o estandarte da Religião a flutuar sobre as
ruínas do Forte de Santo Elmo.
Reagrupando as suas tropas bastante desfalcadas, pois a tomada de
Santo Elmo lhes havia custado mais de dez mil baixas – entre elas o famoso O levantamento do sítio provocou um entusiasmo indizível em toda a
Dragut, morto por um tiro de mosquete – os generais do sultão prepararam- Cristandade. Reis e Príncipes enviaram ao Grão-Mestre embaixadas para
se para o assalto final. A partir desse momento, o Burgo não conheceu mais felicitá-lo e entregar-lhe doações destinadas a reparar as ruínas e fortificar a
repouso: entre ataques que se repetiam dia e noite, e o fogo contínuo de ilha. Felipe II mandou-lhe uma espada e um brasão de ouro, decorados de
todas as baterias instaladas nas colinas e nos navios da frota, durante dois diamantes. O Papa, que era Pio IV, ofereceu-lhe a púrpura cardinalícia e
meses os sitiados viveram num inferno, e o Grão-Mestre perguntava-se se o convidou-o a participar do Senado da Igreja, distinção que La Valette
número não terminaria por vencer o heroísmo. respeitosamente declinou, preferindo continuar na luta, ao lado de seus
irmãos de hábito.
Juntando, por sua vez, todos os recursos que lhe restavam, La Valette
organizou corpos auxiliares femininos, os quais recarregavam as armas Desejoso de preparar a ilha para a eventualidade de futuros ataques,
disparadas na batalha, e até um grupo de duzentos meninos, hábeis na decidiu ele construir uma nova cidade, menos acessível ao inimigo, no
funda, que, como novos Davis, causavam sensíveis baixas aos assaltantes. monte Sceberras. A primeira pedra, colocada pelo indomável ancião, trazia
a seguinte inscrição: “O Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor, Frei Juan de
Os feitos de armas magníficos se sucediam. Um dia os janízaros La Valette, Grão-Mestre da Ordem Hospitalar e Militar de São João de
conseguiram forçar um dos ângulos do bastião de Castela e começaram a se Jerusalém, considerando todos os perigos aos quais seus cavaleiros e seu
espalhar pela cidade. Não contavam porém com a reação dos cavaleiros povo de Malta estiveram expostos, da parte dos Infiéis, no último sítio,
que, com La Valette à frente, revestido de seu manto agaloado de ouro, tendo decidido, de acordo com o Conselho da Ordem, e para se opor a
barba branca ao vento, os receberam espada alta, fazendo grande carnagem novas empresas dos bárbaros, construir uma cidade sobre o monte
e obrigando-os a recuar em desordem. Sceberras, hoje, 28 do mês de março do presente ano de 1566, após haver
Noutra ocasião o Forte de São Miguel foi invadido, mas o alarido invocado o Santo Nome de Deus e implorado a intercessão da Santa
muçulmano cessou bruscamente quando a explosão das minas previamente Virgem, sua Mãe, e de São João Batista, Patrono titular da Ordem, para
colocadas por Frei Evangelista, hábil engenheiro militar, os aniquilou a atrair as bênçãos do Céu sobre uma obra tão importante, o Senhor Grão-
todos. Mestre colocou a primeira pedra, sobre a qual gravaram-se as suas armas,
que são de goles com um leão de ouro, e a nova cidade por sua ordem foi
Pouco a pouco, os homens tombavam, os víveres diminuíam e a denominada cidade La Valette”.
pólvora se esgotava na cidade. Nos raros intervalos entre os combates todos
rezavam, a exemplo do Grão-Mestre, não para terem a vida salva, mas para E até hoje, passados quatrocentos anos, ao longo dos quais tanto
que não fosse permitido o triunfo dos inimigos da Cruz. mudaram as condições do mundo e tanto mudaram os homens, a capital da
Ilha de Malta continua a ostentar orgulhosa o nome do ancião que pela sua
inquebrantável fortaleza soube preservá-la da dominação infiel