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PENAS E MEDIDAS DE
SEGURANÇA NO DIREITO
PENAL BRASILEIRO
/ / SALO DE CARVALHO
Exemplar genérico,
conhecimento específico
SALO DE CARVALHO
Professor Colaborador da Faculdade de Direito da UFSM.
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Penais da UFRGS (2010-2011).
Professor Titular do Departamento de Ciências Criminais da PU CRS (1996-2009).
Pós-Doutor em Criminologia pela Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, ES).
Doutor (UFPR) e Mestre (UFSC) em Direito.

PENAS E MEDIDAS DE
SEGURANÇA NO DIREITO
PENAL BRASILEIRO
(FUNDAMENTOS E APLICAÇÃO JUDICIAL)

2013

8P Saraiva
^ EditOTa
Cdttora
Saraiva
' ISBN 978-85-02-20351-8
Ruo Henn^e ^oim ooo, 270, Cadeira Co t — M o Crnjlo — SP
CEP 05413-909
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S Á » 0800 055 7688 Corvolho, Solo de
D e 2 fio 6 fi, d a s 8 : 3 0 à s 1 9 :3 0 D ... . .. .
sora^ur@dito™.«m.br . .
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Penas e m e d id a de seguronco no direito penol

A c ^ : i^ . ^ ^ j u r . c o m . » Corvolho. - São Poulo: Soroivo, 2013.

FILIAIS 1. Oíreíto penol 2. Direito penol - Brasil


3. M edidos ds segurança (Direito penol) 4. Penos
A^ONtó/RONDÓNlMtOMlWAaiE (Direito penol) I. Título.
ItaCmoAzevedo, 56-Cato
F m : (92) 3633-4227 - F m : (92) 3 6 3 3 4 7 8 2 - t o u s
B A H I^ E I»
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Fox (71) 3 3 81 -0 9 5 9 - indico |»ro cotdlogo sistemático:
BAURU (5M) PAULO)
1. B ro s il: Penos e medidos de se gu ran ça:
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Direito penol 3 4 3 .8 ( 8 1 )
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A violação dos direitos autorais è crim e estabelecido na
f 1 3 5 W 1 .M 1 .M 1 1 Lei n. 9.610/98 c punido pelo artigo 184 do C ódigo Pena).
“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem — uma corda
sobre o abismo. Perigosa a travessia, perigoso o percurso, perigoso olhar para trás,
perigoso o tremor e a paralisação.
A grandeza do homem está em ser ponte e não meta: o que nele se pode amar é o
fato de ser ao mesmo tempo transição e declínio.
Amo os que só sabem viver em declínio, poú são os que transpõem.
Amo os que desprezam com intensidade, pois sabem venerar intensamente, e são
Jlechas lançadas peloanseio-da-outra-margem. (...)
Amo o que não quer virtudes em demasia. Uma única virtude é mais virtude do
que duas, pois ela é o nó maisforte onde se ata o destino.
Amo o que prodigaliza sua alma, e que, ao fazer isto, não visa à gratidão nem ao
pagamento; pois sempre dá e nada quer em troM.
Amo o que se envergonha quando o dado cai a seu favor, e então pe%unta: serei um
trapaceiro? - poú épara sua ruína que ele quer se encaminhar.
Amo o que antecede com palavras de ouro os seus atos e sempre cumpre mais do que
promete; pois ele quer o seu declínio.
Amo o que justifica os que serão e resgata os que foram; pois quer pereur por aque­
la que são.
Amo aquele que pune seu Deus porque o ama; porquanto só poderá perecer pela
cólera de seu Deus.
Amo o que, mesmo ferido, tem a alma profunda, e que um simpltt acaso podefazer
perecer. Assim, ele atravessa de bom grado a ponte.
Amo aquele cuja alma transborda e a tal ponto se esquece de si que todas as coisas
nele encontram lugar. Assim, todas as coisas se tomam seu declínio.
Amo todos aqueles que são como pesadas gotas caindo uma a uma da negra nuvem
que paira sobre os homens; anunciam a chegada do mio e perecem como anunciado-
res (...).” (Zaratustra)
Para M ari e Inês, que mudaram a minha percepção de mundo, “com todo
o amor que houver nesta vida”.
Para N ilo B atista, que, em seu combate cotidiano contra a violência
genocida do sistema penal, demonstra ser possível conciliar ética de res­
ponsabilidade e ética de convicção.
4
4

SUMÁRIO

Prefácio ...................................................................................................................... 17
Apresentação ................................................................................................................... 23
Nota Teórico-Afetiva ...................................................................................................... 29

Parte I
TEORIAS DA PENA: FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO PODER DE PUNIR................. 37
1 . INTRODUÇÃO À PENOLOGIA................................................................. 39
1.1. Teorias da Pena, Penologia e Poder P u n itiv o .......................................... 39
1.2. Localização da Penologia na Estrutura do Direito Penal e os Modelos
de Justificação (Teorias da P e n a )............................................................... 43
1.3. Crítica Criminológica às Teorias da Pena: Intencional Violação à
Lei de H um e..................................................................................................... 47
2 . TEORIAS ABSOLUTAS DAPENA.............................................................. 53
2.1. Modelos de Retribuição: Fundam entos................................................... 53
2.2. Modelos de Retribuição: C rítica................................................................ 57
3. TEORIAS RELATIVAS DA PE N A .............................................................. 61
3.1. Modelos de Prevenção Geral Negativa: Fundamentos......................... 61
3.2. Modelos de Prevenção Geral Negativa: Crítica...................................... 65
3.3. Apêndice: Modelo de Prevenção Social.................................................... 71
3.4. Modelos de Prevenção Especial Positiva: Fundamentos....................... 75
3.5. Modelos de Prevenção Especial Positiva: Crítica................................... 80
4. MODELOS CONTEMPORÂNEOS DEJUSTIFICAÇÂO...................... 91
4.1. Revitalização das Grandes Narrativas nos Discursos
Contemporâneos dejustificaçâo da P e n a ................................................ 91
4.2. Teoria da Pena Merecida: Fundamentos e Crítica do
N eorretributivism o......................................................................................... 96
4.3. Teorias Penológicas Neoconservadoras: Discursos Atuarial e
Funcionalista-Sistêmico: Fundamentos e C rític a ................................. 102
4.4. Teoria Garantista da Pena: Fundamentos e C rítica............................... 113
5. TEORIAS DEJUSTIFICAÇÂO NA CONTEM PORAN EIDA DE:
CRISE, FRAGMENTAÇÃO E SIGNIFICADOS DA PENA E DA
PUNIÇÃO N O GRANDE E N C A R C E R A M E N T O .................................. 119
5.1. Teorias Ecléticas e Revitalização das Teorias dejustificaçâo:
Sintomas da Fragmentação das Narrativas Penológicas....................... 119
5.2. Alternativa Inviável: Reconfiguraçâo da Gramática Correcionalista. . 126
5.3. Hipótese sobre os Significados da Pena e a Experiência da Punição
na Era do Grande Encarceramento: o Caso Brasileiro......................... 134
RD
R U Il!

Parte II
FUNDAMENTOS DA TEORIA AGNÓSTICA DA PENA.............................................. 141
ENAI

6. TEORIAAGNÓSTICA (OU NEGATIVA) DA PENA: PRESSUPOSTOS,


.►ANi.A NO aREITO

PRINCÍPIOS E TELEO LO G IA ......................................................................... 143


6.1. Fins no Direito Penal e Pressupostos da Teoria A gnóstica.................. 143
6.2. Teoria Agnóstica da Pena: Dogmática C onseqüente............................. 149
6.3. Teoria Agnóstica da Pena: Teleologia R e d u to ra..................................... 155
li‘ S D ES E

7. PROJEÇÕES DA CONCEPÇÃO AGNÓSTICA (OU NEGATIVA)


i UEO

DA PENA NA CU LPA B ILID A D E..................................................................... 161


7.1. Vínculos entre Pena e Culpabilidade na Dogmática Penal: Formação
ENAS

do Juízo de R eprovabilidade....................................................................... 161


7.2. Vínculos entre Pena e Culpabilidade na Dogmática Penal:
Culpabilidade como Limite e M edida da P e n a........................... 168
7.3. Vínculos entre Pena e Culpabilidade no Direito Penal Brasileiro . . 177
7.4. Problemas Derivados da Finalidade Polifuncional da Pena e
Reflexos na Culpabilidade............................................................................ 185
7.5. Construção do M odelo Agnóstico a partir das Crises da
Culpabilidade: Constitucionalizaçâo do Princípio, Funções
e Conceito de Referência.............................................................................. 190
7.6. Conteúdo Metafísico da Culpabilidade: Questão do Livre-Arbítrio . . 196
7.7. Juízo de Reprovabilidade em Tensão: Pluralismo Jurídico e
Subculturas C rim inais................................................................................... 206
7.8. Juízo de Reprovabilidade em Tensão: Secularização do D ireito . , . 221
7.9. Bases para Delineamento da Concepção Agnóstica
(ou Negativa) da Culpabilidade: da Coculpabilidade
à Culpabilidade pela V ulnerabilidade........................................................ 2^2^4-
Parte I I I
PENA E CONSTITUIÇÃO: FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DE LIMITAÇÃO DO
PODER DE PUNIR................................................................................................. 239
8. PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO: CONFIGURAÇÃO DO
SISTEMA DE PENAS E DE MEDIDAS DE SEGURANÇA N O
D IR EITO PENAL B R A SIL E IR O ..................................................................... 241
8.1. Princípio da Secularização e o Direito Penal na M odernidade . . . . 241
8.2. Inserção Constitucional do Princípio da Secularização...................... 245
8.3. Princípio da Secularização, Culpabilidade de Ato e Culpabilidade
de A u to r............................................................................................................. 247
9. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE LIMITAÇÃO DAS PENAS
E DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA N O D IR EIT O BRASILEIRO . . 251
9.1. Princípios Configuradores do Sistema de G arantias........................... 251
9.2. Princípio da Legalidade dos Delitos e das Penas................................... 253
9.3. Princípio da Responsabilidade Penal P esso al........................................ 256
9.4. Princípio da Individualização da P e n a .................................................... 259
9.5. Princípio da Humanidade das Penas.......................................................... 264
9.6. Espécies de Penas Adotadas pela C onstituição..................................... 270
91. Responsabilidade Penal e Penas Aplicáveis às Pessoas Jurídicas . . . . 2721
10. PRINCÍPIOS CONSTITUCIO NA IS INSTRUM ENTAIS DA
DOGMÁTICA DA DETERM INAÇÃO DAS PENAS E DAS MEDIDAS
DE SEGURANÇA N O D IR EITO BRASILEIRO: MOTIVAÇÃO E
N E B IS IN ID E M 277 ^
10.1. Fundamentação como Mecanismo de Controle da Aplicação da Pena 277
10.2. N e Bis in Idem como Mecanismo de Controle dos Excessos na
Aplicação da P e n a ........................................................................................... 287
Parte IV
DOGMÁTICA DA APLICAÇÃO DAS PENAS E DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA 295
11. DOGMÁTICA DA SANÇÃO PENAL E E STR U TU R A NORMATIVA
DO SISTEMA PU NITIVO BRASILEIRO...................................................... 297
11.1. Crise da Dogmática e Dogmática das Penas e das Medidas de
Segurança.......................................................................................................... 297
11.2. Estrutura Normativa do Sistema Punitivo Brasileiro............................ 300
12. SISTEMA DE DETERM INAÇÃO DA PENA N O D IR EITO PENAL
BRA SILEIRO............................................................................................................ 309
12.1. Espécies de Pena e Centralidade da P risão ............................................. 309
12.2.E tapas de Aplicação da Pena......................................................................... 311
12.3. Pena-Base: Conceito e Caracterização das Circunstâncias Judiciais . . 325
12.4. Pena-Base: Circunstâncias Gerais e Específicas, Elementares do
Tipo e Conflito Aparente de Normas (Bis in Idem) ............................... 335
12.5. Pena-Base: Circunstâncias Judiciais em E spécie.................................... 346
12.6. Cálculo da Pena-B ase................................................................................... 381
12.7. Pena Provisória: Agravantes e Atenuantes: Características Gerais . . 385
12.8. Pena Provisória: Agravantes em Espécie.................................................. 387
PENAL B R A S IL E IR O

12.9. Pena Provisória: Atenuantes em Espécie.................................................. 414


12.10. Pena Provisória: Cálculo e Circunstâncias Preponderantes............... 435
12.11. Pena Definitiva: CausasEspeciais de Aumento e de Diminuição
(Majorantes e M inorantes)............................................................................ 441
3 REIID

12.12.Pena Definitiva: C álculo.............................................................................. 445


NO

12.13. Determinação da Pena no Concurso de Crimes e Limites de


DE S EG U R A N Ç l

Cum prim ento das Sanções P e n a is............................................................. 451


12.14. Definição do Regim e Inicial de Cum prim ento (Regimes Aberto,
Semiaberto e Fechado) e Espécies de Penas Privativas de Liberdade
FTNAS • MED WS

(Detenção e Reclusão)................................................................................... 464


12.15. Substituição da Pena Privativa de Liberdade por Pena Restritiva de
D ireitos............................................................................................................... 471
12.16.Pena de M ulta................................................................................................... 481
12.17. Suspensão Condicional da Execução da Pena (S mkú) ......................... 484
12.18. Efeitosda Condenação................................................................................... 488
13. SISTEMA DE DETERM INAÇÃO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
N O D IR EIT O PENAL BRA SILEIRO ............................................................. 499
13.1. Fundamento (Periculosidade), Pressuposto (Inimputabilidade)
e Efeitos Jurídicos da Imposição da Medida de Segurança.................. 499
13.2. Medidas de Segurança: Sistemas (Duplo Binário e Vicariante) e
Espécies (Internação e Tratamento Ambulatorial)................................. 504
13.3. Medidas de Segurança: Caráter Punitivo e Critérios de Aplicação
Ju dicial............................................................................................................... 508
13.4. Lógica Manicomial e Obstaculizaçâo dos Direitos dos Portadores
de Sofrimento Psíquico em Conflito com a L e i................................... 517
13.5. Reforma Psiquiátrica como Mudança Paradi^nática no Tratamento
Jurídico do Portador de Sofrimento Psíquico: Crítica aos Conceitos
de Periculosidade e de Inim putabilidade................................................ 523
13.6. Sanções Alternativas Aplicáveis ao Portador de Sofrimento Psíquico:
Lições da Reforma Psiquiátrica.................................................................. 526
Referências Bibliográficas .............................................................................................. 533
4
4
4
4
4

PREFÁCIO
4
4
*

Este trabalho expõe o estágio atual de duas décadas de investigações


acadêmicas de Saio de Carvalho, documentadas num conjunto de artigos
e livros1 que constituem referência obrigatória no debate brasileiro sobre
a questão da pena. Como sempre, Saio surpreende, e não apenas pela qua­
lidade da exposição, nem pela metodologia guerrilheira que opera “nas
lacunas e nas contradições dos discursos legitimantes”, e tampouco pela
transdisciplinaridade que rasga na dogm áticajanelas imprevisíveis. Saio
surpreende porque sua inquietação intelectual não lhe perm ite comprazer-se
nojardim concluído: seu pensamento, em perm anente ebulição, desconfia
das próprias conclusões poucos minutos após alcançá-las. Por isso mesmo,
na primeira destas linhas substituí a palavra “resultado” pela locução “es­
tágio atual”, porque felizmente a reflexão penalística de Saio não sossega
e gosta de reinventar-se todo dia.
Este livro contém a chamada teoria da pena (na qual se inscrevem
as estratégicas perguntas sobre fundamentos, funções e legitimidade da
punição) e a dogmática da aplicação da pena. N a literatura penalística
brasileira observou-se, nos últimos anos, um renovado interesse pela teoria
da pena2, pela aplicação da pena3 e pela execução penal4, em contraste com

1 Crítica à Execução Penal, R io de Janeiro, Lumen Juris, 2002; Pena e Garantias, Rio de
Janeiro, Lumenjuris, 2003; Aplicação da Pena e Garantismo, em coautoria com o duplamente
imprescindívelAmilton Bueno de Carvalho, R io dejaneiro, Lum enjuris, 2002; O Papel
dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo, R io dejaneiro, Lum enjuris, 2010.
2 Por exemplo, CHAVES CAM ARGO, Antonio Luís, Sistema de Penas, SãoPaulo, Cul-
turaPaulista, 2002; SHECAIRA, Sérgio Salomão e C O R R Ê A JU N IO R , Alceu, Teoria
a obsessiva fixação em estudos sobre teoria do delito que a marcara, salvo
honrosas exceções3, desde a segunda década do século XX. Os penalistas,
de m odo geral, restringiam seu interesse ã aplicação da pena, m atéria que
pode ser juridicam ente reconstruída e sistematizada a partir de extensa base
normativa que ocupa o m aior setor da parte geral do Código Penal (arts.
32 a 120), e também, ã guisa de teoria geral da pena, às surradas concepções
legitimantes (retribucionismo versus prevencionismos). Q uanto ã execução

& Pena, São Paulo, RT, 2002; EL TASSE, Adel, Teoria da Pena, Curitiba, Juruá, 2003;
C IR IN O DOS SANTOS, Juarez, Teoria da Pena, Rio dejaneiro, Lum enjuris, 2005;
GUIM ARÃES, Cláudio Alberto Gabriel, Funfies da Pena Privativa de Liberdade no Sistema
Penal Capitalista, R io dejaneiro, Revan, 2007; GIAM BERARDINO, A ndrée (que luxo!)
PAVARINI, Massimo, Teoria da fàna e E xecuto Penal, R io dejaneiro, Lumenjuris, 2011.
3 Além dos trabalhos arrolados na nota 1, e também por exemplo, FERREIRA , Gilberto,
Aplita&o da Pena, R io dejaneiro, Forense, 2000; M ORAES BARROS, Carmen Silvia
PENAL B R A S IL E IR O

de, A Individualização da Pena na Execução Penal, São Paulo, RT, 2001; XAVIER DE
SOUZA, Paulo, Individualização da Pena no Estado Democrático de Direito, Porto Alegre,
Fabris, 2006; SOUZA NUCCI, Guilherme, Individualteação da Pena, São Paulo, RT, 2007.
Acrescentem-se todos os manuais de direito penal vindos a lume no período, já que aplica­
ção da pena é capítulo obrigatório da parte geral. Muitos artigos sobre questões pontuais
3 REIID

foram também publicados; destaquemos, semprepor exemplo, VIANA, Túlio e MATTOS,


Geovana, A Inconstitucionalidade da Conduta Social e da Penonalidade do Agente <nmo Critérios de
ND

Fixação da Pena, em Anuatw de Dencho Constitucional Latinoamericano 2008, pp. 305 ss.
DE S EG U R A N Ç l

* Recordando os clássicos FRAGOSO, Heleno — CATÃO, Yolanda — SUSSEKIND,


Elizabeth, Direitos do Preso, R io dejaneiro, Forense, 1980 e CASTILHO, Ela Wiecko V.
de, Controle da Legalidade na E xecuto Penal, Porto Alegre, Fabris, 1988, mencione-se ad
• MED WS

exemplum FABBRINI M IRABETE, Julio, Execução Penal, São Paulo, Atlas, 1987; R AU-
T ER , Cristina et al. (Orç.), feecução Penal, R io dejaneiro, Lumenjuris, 1995; KU EH -
NE, Maurício, Lei de Execução Penal Anotada, Curitiba,Juruá, 1999; MARCÃO, Renato,
FTHtô

Curso de Execução Penal, São Paulo, Saraiva, 2004; RUSSOM ANO FREIR E, Christiane,
A Violêrnia do Sistema Peniterniário Brasileiro, São Paulo, IBCCrim, 2005; D U QU E ES­
TRADA ROIG, Rodrigo, Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil, Rio de
Janeiro, Revan, 2005; C O U TO DE BRITO, Alexis Augusto, Execução Penal, SâoPaulo,
Quartier Latin do Brasil, 2006; SILVA, Antônio Juliâo da, Lei de E xecuto Penal, Curitiba,
Juruá, 2007; BARROSO, DanielViegas S., Criminologia — do Estado de Policia ao Estado de
Direito, Florianópolis, Conceito, 2009; M ARCHI JÚ N IO R , Antonio de Padova e M AR­
TINS PINTO, Felipe (Org.), Execução Penal, Curitiba, Juruá, 2008.
3 Entre as quais cabe destacar René Ariel Dotti, no tema desde a década de 1970: Pena
Privativa de Liberdade, Curitiba, 1970; Pesquisas sobw a Reforma Penal, Curitiba, 1973; R e­
forma Penal Brasileira, R io dejaneiro, Forense, 1988; Bases e Alternativas parao Sistema de
Penas, São Paulo, RT, 1998.
penal, isto é, quanto ao centro empírico da pena, quanto à fornalha do
engenho punitivo, m uito pouco ou nada. É como se houvéssemos delega­
do o exame do produto final dos sistemas penais a outra disciplina, fosse
ela um “direito penitenciário” autônomo do penal6 ou fosse uma “peno­
logia” que estaria para este direito penitenciário mais ou menos como a
criminologia positivista estava para o direito penal7. Direito penitenciário
e penologia, respectivamente as regras e a ciência da governança peniten­
ciária, do aparelho repressivo que cuida da retifica das almas.
A reincorporação da execução penal ao vasto objeto do direito penal
pode ser atribuída, antes de mais nada, ao advento de sua regulação, em
1984. Sim, até 1984 só dispúnhamos de escassos princípios gerais8, que
perm itiam aos Estados da Federação toda a arbitrariedade na previsão de
sanções disciplinares e na restrição a direitos subsistentes dos condenados.
Mas com a Lei de Execução Penal passamos a dispor de uma m iríade de
artigos, parágrafos, incisos e alíneas, o que costuma ser condição episte-
mológica para o jurista enxergar a realidade. A este fator, ao advento da
regulação que finalmente judicializou a execução penal, cabe acrescerem­
-se os efeitos dogmáticos da derrocada das interdições metodológicas
neokantianas e da crise sem saída do positivismo, em paralelo ã chegada
irreverente da criminologia crítica. O feto é que um a profunda renovação
no diálogo entre os saberes penais está em curso. Certa ocasião, observei
que na casa do direito penal a teoria do delito recebia as visitas na sala,
enquanto a teoria da pena ficava na cozinha e vez por outra servia um
cafezinho: já não poderia repetir hoje essa observação, sem estar ignoran­
do em preendim entos teóricos m uito atraentes, ainda que díspares, na
América Latina e tam bém na Europa.
A primeira virtude do presente trabalho é abandonar nas coxias o
conceito de ius puniendi e levar ao proscênio, na plenitude de sua violenta
nudez, o conceito de potentia puniendi. Não existe direito penal subjetivo
do Estado. Não repetirei aqui os argumentos, hauridos em tantos autores,
sobre o absurdo teórico de considerar a pena uma faculdade do Estado-
-administração correlacionada ã obrigação do condenado de submeter-se

6 Como proposto por M IO TTO , Armida Bergamini. Cuno de Direito Penitenciário. São
Paulo: Saraiva, 1975, v. I2, pp. 38 ss.
7 Cf. GOULART, Henny. Penologia. São Paulo: Bras. Direito, 1975, v. I,p p. 18 ss.
8 Cf. Lei n. 3274, de 2 out. 1957.
ao sofrimento punitivo9. O poder de punir, aquele que Hobbes chamava
de “poder do gládio”, afirmando tratar-se do maior entre todos os poderes
pensáveis10, certam ente foi teorizado pelos juristas do absolutismo como
um direito do soberano. N o final do século XVIII, Souza e Sampaio ain­
da podia dizer — estávamos em Portugal —que a imposição de penas, in­
clusive a capital, integrava um “direito executivo” privativo, embora de-
legável (como o “direito judiciário”), do “Summo Imperante”11. Trasladar
contudo esta concepção absolutista para o Estado democrático de direito
é risível. N o campo fiscal, fala-se abertamente num “poder de tributar”
fundamentado na soberania12; mas o poder punitivo é ciosamente oculta­
do atrás da falsa máscara de um direito...
Agrada-me especialmente a prudente distância que o Autor guarda
das tentações moralistas. A atribuição ã pena, pelas teorias legitimantes, de
sentidos morais, que se realizariam no próprio ato da execução (retribu-
cionismo) ou a prazo na alma do condenado (correcionalismo), bem como
a concepção da culpabilidade como reprovabilidade, favoreceram a infil­
PENAL B R A S IL E IR O

tração —m uito visível quando um julgam ento é televisionado, porque se


infla na pena tam bém sua velha função comunicativa —de juízos e pre­
conceitos morais. Com o em seus trabalhos anteriores, Saio é de um rigor
fichteano em m anter a moral bem longe do debate penalístico.
3 REIID

Não escapa ao olhar do A utor o desconforto entre as leis penais po­


NO

pulistas (como a dos crimes hediondos, de 1990, e a do R D D , de 2003),


OE S EG U R A N Ç l

que incorporam a visão pós-industrial da prisão neutralizante, e a Lei de


Execução Penal (de 1984), com seu ingênuo compromisso correcionalista
(alguém pode ainda ser ingênuo quanto a isto?), mas tam bém com sua
FTNAS • MED WS

carta de direitos do condenado. A crítica às teorias legitimantes é outro


m om ento alto do trabalho. Quem ainda tiver sede de saber se as (mal) cha­
madas “alternativas ã prisão” reduziram o emprego da privação da liberdade
ou aumentaram enormemente a criminalização e a vigilância será saciado.
20 ___________
9 Há um quarto de século lancei-os em Introdução Critica ao Direito Penal Brasileiro. R io de
Janeiro: Revan, 1990, pp. 106 ss.
10 Do Cidadão. Tradução de R . J. Ribeiro. São Paulo: M artins Fontes, 1992, p. 118 (De
Cive, cap. VI, 6): "não se pode imaginar poder maior que este".
11 SOUSA E SAMPAIO, Francisco Coelho de. freleçòes de Direito Pátrio, Público e Particu­
lar. Coimbra, 1793,passim (esp. Parte Segunda, tít. VII, caps. I, II e III).
12 B R ITO M ACHADO, Hugo de. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo:
Atlas, 2003, v. I, pp. 143 ss.
Nada, no entanto, supera que a teoria negativa ou agnóstica da pena,
fundada por Tobias Barreto e burilada por R aúl Zaffaroni, tenha agora
uma nova e valiosa contribuição para sua fundamentação, e um novo ofi­
cial para sua defesa. Sim, a teoria é brasileira. Foi preciso que o gênio
mulato, no Recife da segunda m etade do século XIX, emparelhasse a pena
ã guerra, negando-lhe fundam ento jurídico, para que o gênio portenho,
uma centúria depois, pudesse estabelecer a regra de três segundo a qual o
direito penal está para o poder punitivo assim como o direito humanitário
está para a guerra. N o fundo, redução de danos punitivos, eis um bom
horizonte teleológico para uma dogmática realista.
Encerro com uma remissão que me ocorreu quando recebi os ori­
ginais. Há quase quarenta anos, ousei pedir um prefecio a Roberto Lyra,
de quem fora aluno no doutorado da Universidade do Estado da Guana­
bara. N o texto que generosamente preparou, o querido M estre me adver­
tiu para incluir, ao lado do questionamento técnico-jurídico, “a crítica do
exercício do poder judiciário” que tom aria audíveis “clamores e gemidos
da maioria abandonada”13. Mas tam bém falou da urgência “em transmitir,
como o mais antigo especialista em atividade, os fechos simbólicos na
corrida de revezamento das gerações”14.
Quando me encontrar com o velho Lyra, procurarei saber se estive
ã altura de sua advertência. Q uanto aos fachos, Saio de Carvalho tem toda
a legitim idade para em punhá-los e brandi-los.
Arpoador, 16 de dezembro de 2012.
N ilo Batista
Professor titular de direito penal da Universidade Federal do
R io dejaneiro e da Universidade do Estado do R io dejaneiro.

13 LYRA, Roberto. Prefácio em BATISTA, Nilo. Decisões Criminais Comentadas. R io de


Janeiro: Lum enjuris, 1976, p. 7.
14 Op. cit., p. 8.
APRESENTAÇÃO

“É a prim eira vez desde que se aboliu a escravidão que um grupo


definido... vive em um estado legal de não liberdade, em forma mais ou
menos permanente... por passar por encarceramentos sucessivos ou por
sofrer as conseqüências, a longo prazo, de um a reclusão penal; e um per­
centual im portante deles são descendentes daqueles escravos liberados.”
A afirmação poderia ter partido de qualquer criminólogo brasileiro...
mas é de Jonathan Simon, em Gobernar a través dei delito1, e retrata a
realidade norte-am ericana atual. O livro foi escrito em 2007.
Em 2003, R obert Kagan alertara para o fenômeno da transformação
do perfil da sociedade norte-americana, sob a chancela do medo ao delito,
e registrou que a resposta ao foto de ter triplicado o núm ero de crimes
noticiados nos Estados Unidos da América, entre 1960 e 1980, consistiu
no incremento igualmente significativo do arsenal de mecanismos penais,
processuais e penitenciários destinados a conter e neutralizar os indivíduos
tendencialmente criminosos. Além disso, salienta Kagan, “a demanda pelo
controle do crime foi alçada ao topo da agenda política”2.
Da Europa, Enrique Bacigalupo, por sua vez, colocará em evidência
a influência dessa virada da política criminal em parte da América do
N orte sobre os diversos ordenam entosjurídicos, a que atribui o foto de,
nos anos 60 e 70 do século X X , o modelo de ciências penais de corte li­

1 Barcelona: Gedisa, 2011,p. 17.


2 KAGAN, Robert A. Adversarial Legalism: the American Way ofLaw. 2. ed. Harvard Uni-
versity Press, 2003, p. 61.
beral ter sofrido pesadas críticas, que colocaram em dúvida seus princípios,
especialmente por conta da reação pragmática do establishment norte­
-americano ao delito, com a implementação do denominado “modelo de
controle social do delito (crime control modet)".
O citado m odelo, ressalta Bacigalupo, contradiz a matriz liberal de
política crim inal, consagrada por Von Liszt, e atribui ao processo penal a
função de ser um dos “meios de luta contra os delitos”, sendo esta a sua
mais im portante função3. A presunção de inocência passa a ser interpreta­
da de forma fundam entalm ente diversa da tradição em que até então esta­
va inspirada.
Tudo isso, vale sublinhar, m uito antes da derrubada das Torres Gê­
meas. As pesquisas de Simon capturaram o m odo com o a nova ordem
norte-am ericana foi se constituindo em termos de “ barbárie organizada”,
lidando e manipulando o medo ao delito, que definitivam ente é incorpo­
rado ã agenda política, ganha lugar de destaque e prioridade na arena
pública e se estabelece com tam anho grau de rigidez, que é duvidoso que
PENAL B R A S IL E IR O

essa “barbárie organizada” possa vir a ser desmontada em curto prazo.


O papel estratégico que o debate sobre o delito assumiu na sociedade
norte-am ericana expandiu-se m uito rapidamente, de início para os Países
ocidentais situados no círculo de alcance daquela cultura (televisão, cine­
3 REIID

ma, literatura etc.) e depois, com o fim da Guerra Fria e o apogeu do


neoliberalismo globalizado, term inou por atingir os lugares mais variados
NO
OE S EG U R A N Ç l

e distantes da tradição cultural de origem.


Convém ressaltar que nos dias atuais o mainstream das ciências cri­
minais, como o denom ina Saio de Carvalho, incorpora um sem-número
de práticas e teorias que se combinam para “ressignificar a pena desde as
FTNAS • MED WS

mais distintas hipóteses” [Saio de Carvalho], lançando mão de um variado


e muitas vezes incongruente repertório de teses, empregado no cotidiano
das práticas sociais de controle, de m odo conjuntural e despreocupado com
a coerência e as conseqüências geradas no corpo social.
Em termos de teoria o fenômeno não é novo. N o diálogo que Saio
generosamente empreende com as minhas ideias, vamos buscar na antropo­
logia norte-americana, a partir das lições de Angela Alonso, o conceito
desta ferramenta, o “repertório”, cuja presença no âmbito das ciências penais
no Brasil pode ser rastreada até o século X IX e configurou a política crim i­

3 BACIGALUPO, Enrique. El Debiáo Proceso Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2005,


pp. 27-28.
nal então dominante, destinada a conter escravos, ex-escravos e seus descen­
dentes, assim como todos os que ousassem divergir da pauta estabelecida pelo
poder central, de viés marcadamente conservador e patrimonialista.
O “repertório” nada mais é que “o conjunto de recursos intelectuais
disponível num a dada sociedade em certo tem po”4. Este cardápio, indica
Alonso, é composto de “padrões analíticos; noções estilísticas; figuras de
linguagem; metáforas” e seu emprego, sublinho, obedece aos desafios da
vida prática e aos projetos de poder que não raro exprimem perspectivas
homogêneas de sociedade e uma visão autoritária da vida e do mundo.
Nos Estados Unidos da América o redirecionamento da política
crim inal resulta ainda hoje, segundo Simon, em um poder executivo mais
autoritário - e o exemplo “Guantánam o”, eloqüente, pode ser interpreta­
do, penso, como “efeito Guantánam o”, que consiste em “m andar às favas
os escrúpulos” do liberalismo político dos dois últimos séculos —em um
legislativo mais passivo e em um poder judiciário mais “defensivo”, no
sentido de não rigorosamente comprometido com a tutela de direitos de
acusados da prática de crimes5.
Pelo menos por ora o Estado do Bem-Estar Social está perdendo a
batalha.
Nos últimos anos a hegemonia da concepção repressiva da vida social
tem contado com o apoio de parte da doutrina penal que fornece subsídios
ao repertório —a este conjunto de ferramentas disponíveis para vigiar, se­
gregar e encarcerar —, reelaborando fundamentos para a pena criminal.
Não se trata, por óbvio e tão somente, da contribuição dos que re­
cuperaram para os tempos modernos a noção de “direito penal do Inim i­
go”. Com seriedade não se pode dizer que houve algum m omento, mesmo
desde Beccaria, em que o Direito Penal deixou de ser um “direito penal
do inim igo”. A História refuta esta tese.
N o entanto, o esforço da penologia m oderna orientou-se a estabe­
lecer “limites ao exercício da força”, com lastro em um discurso jurídico-
-político que “im põe que o exercício da força no interior da ordem polí­
tica seja limitado por regras e legitimado por discursos (teorias d a p en a)”
[Saio de Carvalho],

* ALONSO, Angela. Ideias em Movimento: a Geração de 1870 na Crise do Brasil-Impbio. São


Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 39.
s SIM ON, Jonathan. Obra citada, p. 17.
Autores com inequívoca postura democrática, como Antoine Gara-
pon e Fréderic Gros, têm se esforçado para justificar em tese o poder de
punir — e o poder de punir em democracia reconhecendo, todavia, a
encruzilhada em que se encontra o ser hum ano na contemporaneidade:
“O hom em democrático hesita, oscila e finalmente esquiva-se” entre os
termos desta oposição dicotômica: “punição ou im punidade”6.
Na América Latina a absorção de discursos legitimadores das penas
pelas agências encarregadas do controle social converge com a dissemina­
da violação sistemática dos direitos humanos e fundam enta flagrantes
distorções funcionais e desvios semânticos7, no interior das agências e das
“teorias”, que têm se revelado, por exemplo, no uso abusivo da prisão
provisória, eleita hoje a resposta penal por excelência, supostamente capaz
de escapar aos controles de legalidade das suas concretas formas de execu­
ção, controle que, pelo lado das sanções penais, existe precariamente há
algum tem po8.
Este é o contexto, segundo vejo, em que se insere, oportunam ente,
PENAL B R A S IL E IR O

a obra de Saio de Carvalho: Penas e Medidas de Seguranp no Direito Penal


Brasileiro fundamentos e aplicação judicia^.
Neste m undo acadêmico brasileiro, em que os profissionais do di­
reito são ensinados a encarar com naturalidade as violações e m ortes —ver­
3 REIID

dadeiro genocídio, salienta Zaffaroni9 —causadas, ironicamente, em nome


do controle da criminalidade e da violência e que, por nossa sofrível tra­
NO
OE S EG U R A N Ç l

dição jurídica paleopositivista, no âmbito das ciências penais, nos acostu­


m amos a reservar às penas quase nada de investigação, pesquisa e estudo,
no âmbito da formação do profissional, o livro de Saio de Carvalho é um
divisor de águas.
FTNAS • MED WS

Didática, extraordinariam ente clara, sem tom ar o leitor por alguém


desprovido de senso crítico, a obra nos conduz pelos caminhos da penologia.
Saio de Carvalho recusa atalhos e não os oferece ao leitor, pois que
aposta na capacidade deste últim o de, conhecendo criticamente a realida­
de, “não apenas a partir do visível”, form ar o próprio patrimônio intelec­

6 GA RA PON , Antoine et al. Punirem Democracia: e aJustip será. Lisboa: Piaget, 2002,p. 7.
’ Preciosa a referência de Saio de Carvalho ao pensamento de David Sánchez Rubio.
8 ZAFFARONI, Eugênio R . Proceso Penal y Derechos Humanos: Códigos, principios
y realidad. In: E l Proceso Penal: Sistema Penal y Derechos H um anos.M éxico : Porrúa, 2000,
p. 11.
5 ^ Palabradelos Muertos: Conferências de Criminobigia Cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011.
tual que o habilite a opinar com clareza e responsabilidade, na esfera pú­
blica, e a trabalhar com competência, dispensando as “muletas” das “dicas
de interpretação e aplicação” que, com raras exceções, com põem a biblio­
grafia indicada para abordagem do tema.
Não há teoria quando o que se descreve não é o “m undo do real”,
tampouco o idealizado, mas um a pretensa forma de realidade que, a não
existir concretamente, perpetua discriminações e desigualdades.
O trabalho de Saio de Carvalho, convocando a realidade por m eio
do forte embasamento em dados e sofisticada reflexão, recorrendo como
poucos (diria que no Brasil no nível de Nilo Batista, Juarez Cirino dos
Santos e Vera Andrade, mais do que justas homenagens prestadas pelo
próprio autor) ao saber sem fronteiras, mais do que indica o livro, como
se este precisasse: torna-o obrigatório.
E neste contexto m inha presença nestas páginas tem sentido afetivo
e de relato.
Conheci Saio em um Seminário promovido por James Tubenchlak,
no fim dos anos 1990. Na ocasião o tema era algo como “a solidão teórica
da execução penal”, esquecida pela doutrina nos sótãos do direito e do
processo penal.
M uito logo nos tornamos amigos e participamos juntos de muitas
empreitadas. Enquanto escrevo estas linhas estamos, eu e Saio, aguardan­
do o dia de nossa palestra no Presídio Central de Porto Alegre, a convite
da Defensoria Pública do R io Grande do Sul, denunciado ã Organização
dos Estados Americanos (OEA) como mais um destes lugares onde roti­
neiramente a dignidade da pessoa hum ana é violada.
A teoria de Saio é assim, m ilitante, às escancaras. Diria corajosa se
um dia Gabriel Garcia M árquez não houvesse lembrado que determinadas
ações não são “corajosas”, mas necessárias.
O traço de afeto que nos une e que talvez tenha, inconscientemen­
te, provocado este gentil convite, ao fim e ao cabo, tem a ver com essa
militância.
Durante m uito tempo Saio foi um pensador “pessimista”. Pessimista
em relação ao Poder... e nisso estamos de acordo. Sempre militante, extraor­
dinário, presidente do Conselho Penitenciário de seu Estado, querendo
m udar o m undo para melhor, mas pessimista quanto às possibilidades reais
de se alcançar algum sucesso neste intento.
E me recordo de ter dito a ele: amigo, os africanos nos lem bram que
o m undo, nós o herdam os de nossos filhos e temos o dever de devolver a
eles melhor do que encontramos (Eduardo Galeano)!
Os filhos têm esse dom... de nos fazer acreditar na possibilidade de
um m undo melhor.
Creio que o largo sorriso de Saio —e da M ari —são a prova cabal de
que o pessimismo não venceu. Ao contrário, revela-se na esperança de um
m undo mais justo e solidário e hoje leva o nome de Inês!
Parabéns ao amigo e tam bém ao afortunado leitor.
Balneário de São Sebastião do R io dejaneiro, 20 dejaneiro de 2013
(dia do padroeiro da Cidade).
Geraldo Prado
Professor adjunto da Universidade Federal do R io dejaneiro.
PENAL B R A S IL E IR O
OE S E G U R A N Ç : NO OIREOO
MED ÜIS
i
FíM AJ

28
4

NOTA TEÓRICO-AFETIVA

O prim eiro contato que tive com o tem a deste livro — que em
sentido amplo pode ser denom inado penologia — foi na graduação do cur­
so de Ciências Jurídicas e Sociais da Unisinos, nas aulas do prof. Ney Fayet
de Souza.
A família Fayet, naquela época,jâ era um a referência afetiva, sobre­
tudo em decorrência dos fortes vínculos de amizade que eu nutria com as
gerações das décadas de 1960 e 1970 da família Agne. Em Santa M aria,
nas casas dos Agne Ritzel e dos Agne D ornngues, que freqüentei duran­
te toda a m inha adolescência, os parentes de Porto Alegre eram sempre
mencionados: os Agne Fayet, mas, sobretudo, a enigmática D. Ignez Valdez
Weigert, que posteriormente descobri ser a matriarca dos clãs.
Para além deste olhar naturalm ente afetivo e cúmplice, lembro de
freqüentar curioso as aulas de Penal III em 1991. A energia e a segurança
intelectual do p ro f Ney Fayet despertaram grande interesse pela matéria,
notadamente por dois temas considerados espinhosos na teoria da pena:
aplicação da pena e prescrição penal. A ênfase do professor nestes pontos,
diretamente proporcional ao seu dom ínio, era imensa, e muitos alunos
apresentavam naturais dificuldades na resolução dos casos propostos. Com o
todo mestre, o autor de A Sentença Penal e suas Nulidades plantou uma se­
mente de curiosidade que permanece viva até hoje. E ntre os debates sobre
filosofia e sociologia do direito com meu orientador Antônio Carlos N e-
del, o interesse pela penologia foi cultivado pelo professor, amigo e colega
Ney Fayet de Souza Jr.
A questão teórica que envolve o tema da punição foi verticalizada
no M estrado da UFSC. Em Florianópolis, sob a orientação da profa. Vera
Andrade, pude m ergulhar com intensidade na crítica crim inológica e
perceber a tensão entre os discursos oficiais (declarados) e as reais funções
que a pena desempenha na sociedade ocidental. A constante presença (física
e literária) de Alessandro Baratta nas aulas do Mestrado perm itiu sofisticar
e radicalizar a crítica. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal e infin­
dáveis textos de Baratta eram consumidos com voracidade junto com os
de outros autores que eram (e continuam sendo) referências obrigatórias
(Dario Melossi, Edw in Lemert, Edw in Schur, Erving Goffman, Eugênio
R aúl Zaffaroni, Georg Rusche & O tto Kirchmeier, Howard Becker, Jock
Young, Juarez Cirino dos Santos, Lola Aniyar de Castro, Louk Hulsman,
Luigi Ferrajoli, Massimo Pavarini, M ichel Foucault, Nilo Batista, Roberto
Bergalli, R oberto Lyra Filho, Rosa dei Olmo, Stanley Cohen).
O processo de aprendizagem e de orientação foi paralelo ã constru­
ção da tese da pupila preferida de Baratta, pois Vera Andrade, naquele
período, finalizava a redação de A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da
violênáa à violência do controle penal.
PENAL B R A S IL E IR O

Em meio aos estudos de criminologia, com Edm undo Arruda Jr. e


Antonio Carlos W olkmer pude compreender com maior clareza o que
representava, naquele mom ento, o M ovimento do Direito Alternativo.
Apesar de ter m ergulhado no movimento durante o período da Faculdade,
3 REIID

acom panhando meu pai, A m ilton Bueno de Carvalho, nos eventos, mas,
NO

sobretudo, nas leituras da teoria crítica do direito (Agostinho Ram alho,


OE S EG U R A N Ç l

Alicia R uiz, André-Jean Arnaud, Boaventura de Souza Santos, Carlos


Cárcova, Clémerson M erlin Cléve, David Sanchez Rúbio, Jacinto C outi-
nho.Joaquin Herrera Flores.João Maurício Adeodato.José Eduardo Faria,
FTNAS • MED WS

José Geraldo de Souza Jr., Luis A lberto W arat, Luiz Fernando Coelho,
Lédio Rosa de Andrade, Lenio Luiz Streck, Leonel Severo Rocha, Michel
Miaille, Modesto Saavedra López, Nicolás López Calera, Oscar Correas,
Perfecto Ibanez, Plauto Faraco de Azevedo, R oberto Aguiar, Roberto
Kant de Lima, R ui Portanova), no mestrado tive condições de perceber
sua dimensão (amplitude).
Antes da conclusão do Mestrado (defesa da dissertação), no início
de 1996, retom ei a Porto Alegre. O objetivo era ingressar em alguma
Faculdade de D ireito e seguir a carreira docente.
Currículos enviados, recebo o convite da Unisinos para uma entre­
vista. A Faculdade estava selecionando professores. Na época eram poucas
as pessoas com titulação acadêmica, sobretudo nas ciências crim inais, e o
M EC estava anunciando a exigência de núm ero m ínim o de mestres e
doutores nas instituições de ensino superior. Após a seleção, fui designado
para lecionar duas disciplinas: Introdução do Direito Penal (Penal I) e
Penologia (Penal III). Por uma grata coincidência, assumi a disciplina do
prof. Ney Fayet, na ocasião afastado das atividades docentes.
Em princípio não desejava fazer, im ediatamente, o Doutorado. Es­
tava um pouco “ressacado” da dissertação —publicada pelo querido James
Tubenchlak —, e com as energias direcionadas às atividades de ensino e de
pesquisa na Unisinos. N o entanto, no final de 1996 ou início de 1997, um
encontro casual m udou m eus planos.
Estava com o Am ilton, esperando o elevador no antigo prédio do
Tribunal de Alçada do R io Grande do Sul, quando cruzamos com Cezar
R oberto Bitencourt. Cezar é um antigo e m uito querido am igo da fam í­
lia. Em 1981, quando meu pai assumiu a magistratura, foi designado para
uma Comarca do interior gaúcho na qual Cezar igualmente iniciava a
carreira no M inistério Público. Os laços de amizade se fortaleceram, não
apenas em decorrência de serem duas famílias estrangeiras em uma terra
desconhecida, mas, sobretudo, pela afinidade das ideias.
Naquele momento de reencontro, de “contar as novidades”, comen­
tamos que eu havia recentemente, em agosto de 1996, finalizado o mes­
trado. Cezar com R uth Gauer e Lenio Luiz Streck estavam elaborando um
projeto de M estrado em Ciências Crim inais na PU C R S. O embrião seria
uma Especialização transdisciplinar na área. Alguns meses se passaram, a
Especialização foi aprovada e o convite para integrar o projeto veio junta­
mente com o compromisso de realizar, imediatamente, a seleção em um
Programa de Doutorado.
Na época estava im erso na leitura de Direito e Razão, de Luigi Fer­
rajoli. Nas aulas da Especialização conheci grande parte dos amigos que,
posteriormente, formaram o Instituto Transdisciplinar de Estudos C rim i­
nais (ITEC), dentre eles Andrei Zenkner Schmidt, Daniel Gerber, Fábio
R oberto D’Ávila, Jader Marques, Marcelo Bertoluci, Marcelo Peruchin,
Paulo Vinícius Sporleder de Souza, R odrigo Moraes de Oliveira e, espe­
cialmente, meus irmãos, Alexandre W underlich e Felipe Cardoso M orei­
ra de Oliveira.
Ao longo das aulas debatemos m uito a estrutura garantista e o pro­
jeto justificacionista de Ferrajoli (utilitarismo reformado). Neste período
acabei desenvolvendo o projeto de tese, posteriormente apresentado ao
Programa de D outorado da U FPR . Em Curitiba, sob a precisa e preciosa
orientação de Jacinto Coutinho, m ergulhei no garantismo, notadamente
nas teorias da pena, centro nervoso dos sistemas punitivos. Instigado pelo
orientador, realizei uma fértil temporada de estudos entre Rom a e Cam e-
rino — Ferrajoli, na época, lecionava na Universidade de Camerino. Do
debate teórico sobre o justificacionismo direcionei o enfoque para a exe­
cução penal e a realidade carcerária brasileiras. A tese, aprovada pela ban­
ca composta pelo meu orientador,Jacinto Coutinho, Luis Alberto Machado,
Sérgio Salomão Schecaira, Lenio Luiz Streck e Nilo Batista, foi posterior­
mente publicada pela L um enjuris sob o título Pena e Garantias.
Com o título foi efetivado no Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais (PPGCCrim ) da PU C R S, instituição na qual desen­
volvi, por cerca de 15 anos, pesquisas nas áreas da crim inologia e do direi­
to penal, sempre com ênfase na penologia. N o PPG CCrim da PU C R S
tive o prazer de trabalhar e aprender m uito com Alberto Rodrigues R ufino
de Souza, Alfredo Cataldo Neto, Aury Lopes Jr., Cezar R oberto Biten­
court, Emil Sobottka, Fabrício Dreyer de Ávila Pozzebom, Gabriel Gauer,
Giovani Agostini Saavedra, N ereujosé Giacomolli, Luciano Feldens, R uth
PENAL B R A S IL E IR O

Gauer e, sobretudo, com Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Ricardo


T im m de Souza. Ainda na PU C R S tive a oportunidade de ver surgirem
novos pesquisadores. Assim como o ITEC foi o instituto que perm itiu a
reunião dos primeiros mestrandos do PPG CC rim da PUCRS, um a segun­
3 REIID

da e fértil geração se a^utina em tom o do Instituto de Crim inologia e


Alteridade (ICA), efetivando de forma concreta e radical a interdisciplina-
NO

ridade (Alexandre Costi Pandolfo, Carla M arrone Alimena, Daniel Achutti,


DE S EG U R A N Ç l

Fernanda Bestetti Vasconcellos, Gabriel Divan, Grégori Laitano, Guilherme


Bôes, Janaina de Souza Bujes, José Antônio Gerzon Linck, Manuela Mattos,
Marcelo Mayora Alves, M arco Antonio de Abreu Scapini, Moyses Pinto
FTNAS • MED WS

Neto, Mariana de Assis Brasil e W eigert, Mariana Dutra Garcia e Raffaella


Pallamolla).
N o início dos anos 2000, outras duas importantes experiências aca­
dêmicas perm itiram amadurecer a reflexão sobre o tema. N o final da
década de 1990 recebi o convite para lecionar, como professor convidado,
no Mestrado em Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da Univer­
sidade Cândido Mendes. O projeto, concebido por Nilo Batista, envolvia
grande parte dos pesquisadores de vanguarda que atuavam nas ciências
criminais latino-americanas e propunha um a leitura interdisciplinar críti­
ca dos fenômenos do crim e e do controle social. Neste período fortaleci
os laços de amizade com Afrânio Silva Jardim , Geraldo Prado, Nilo Ba­
tista e Vera M alaguti Batista, todos referências teóricas e afetivas, com o o
leitor poderá notar.
A outra experiência foi no Doutorado em “Derechos Humanos y De-
sarmllo” da Universidade Pablo Olavide (U PO ) de Sevilha. Coordenado
por Joaquin H errera Flores e David Sanchez Rúbio, o curso congregava
os principais pesquisadores da teoria crítica do direito na ibero-américa.
Com o resultado deste trabalho conjunto, foram publicados os Anuários
Ibero-americanos de Direitos Humanos, em uma rica parceria institucional
entre a U P O e a PU C RS.
Neste período (primeira década dos anos 2000), publiquei alguns
trabalhos sobre fundamentos do poder de punir, aplicação da pena e exe­
cução penal, dentre os quais destaco o livro Aplitóção da Pena e Garantismo,
em coautoria com o Am ilton, e Crítica à Execução Penal, coletânea a partir
da experiência no Conselho Penitenciário do R io Grande do Sul, insti­
tuição que presidi durante quase dois anos.
Em 2003, M ari e eu nos apaixonamos e, juntos, realizamos vários
projetos, inclusive acadêmicos. Mari, a netinha predileta da D. Ignez, em
2005, foi morar em Barcelona para cursar o Mestrado em “Criminologia y
Ejecución Penal” da Universidade Autônoma (UAB). O contato com a
profa. Elena Larrauri estabelecido por ela e pela Raffaella Pallamolla per­
m itiu que, no ano seguinte, eu apresentasse um projeto de pós-doutora-
mento. Com a transferência da profa. Larrauri para a Universidade Pompeu
Fabra, durante dois períodos letivos (2008 e 2009), retom am os a Barcelo­
na. Em 2010 publiquei O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Puni-
tivismo (o exemplo privilegiado da aplicação da pena), livro que condensa as
investigações realizadas na Catalunha.
C om a m inha transferência para a U FR G S, em 2010, criei o Grupo
de Estudos em Ciências C rim inais (GCrim ). U m a das linhas de pesquisa,
concentrada na questão das penas, rendeu m uitos frutos. Realizamos vários
eventos, debates, sessões de vídeo e tive a oportunidade de orientar inú­
meras monografias de conclusão na área. Junto ao trabalho desenvolvido
no GCrim, passei a coordenar (hoje sou consultor acadêmico) o G10,
grupo de atuação na defesa de adolescentes em conflito com a lei no Ser­
viço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da UFRGS. N o G10
cresceu o interesse pelas medidas socioeducativas, sobretudo pelos déficits
de legalidade na sua aplicação e execução, conforme procuro demonstrar
em alguns momentos deste livro.
Os membros do G C rim e do G10, juntam ente com meus orientan-
dos e inúmeros alunos e ex-alunos da Faculdade de Direito, proporciona­
ram -m e a mais rica e intensa experiência acadêmica, em uma manifestação
pública de carinho e de afeto pela m inha permanência na UFRGS que me
emociona até hoje. Não é exagero nenhum dizer que serei eternamente
grato, pela profunda generosidade, a todos os alunos que se manifestaram
publicamente e assinaram o docum ento de apoio redigido pelo Centro
Acadêmico André da Rocha (CAAR), sobretudo Alexandre Brandão, Ana
Carolina Svirski, André da Rocha, A rthur Amaral Reis, Antonio Goya
M artins Costa, Augusta Diebold, Bruna Rossol, Camila M allet, Caroline
Boff, Caroline Guerra, Caroline Vidal, Cassio Macedo, Chiavelli Falavig-
no, Clarissa Baumont, Daniela Eilberg, Danielle Bettim, Denise Mayer,
Eduardo Geoqão Fernandes, Elis Barbieri, Fabricio Schefifer, Fernanda
Am orim , Fabiana Simioni, Fabiane Batisti, Flora Valls, Francisco Pretto,
Gabriela Feldens, Gabriel Simões Pires, Gabriela Alvares, Guilherm e Sei-
bert, Greice Stern, Henrique Richter, João Baptista Rosito, João Henrique
Conte, João Vicente Rovani, Júlia Rom baldi, Júlia Soll, Juliana Azevedo,
Laura Lotti, Leonardo Günther, Luiza Rocha, M areei Saldanha, Marcelo
Azambuja, Mareio Augusto Paixão, Marcos Laguna Pereira, Mariana Chies
PENAL B R A S IL E IR O

Santos, Mariana Kuhn, Mariela W udich, Michele Savicki, M imi, Natália


O tto, Nathalia Schneider, Patrícia Becker, Paula Leal, R u i Almeida, Sa­
muel Sganzerla, Thaianne Alves, Ulisses de Oliveira e Vitor Guimarães.
N o entanto, é na figura da acadêmica Jéssica Pinheiro, pelo seu com pro­
3 REIID

m etim ento e militância na defesa dos Direitos Humanos, que eu gostaria


NO

de homenagear todos os demais alunos e ex-alunos que fetalmente esque­


DE S EG U R A N Ç l

ci de nominar.
O meu desligamento forçado da U FR G S provocou inúmeras reações
de professores e funcionários da instituição e de pesquisadores de todo o
FTNAS • MED WS

Brasil. Além das manifestações das pessoas já referidas, sou m uito grato
pelo apoio de Ades Sanchez y Vacas, Alex Niche Teixeira, Alexandre M o­
rais da Rosa, Álvaro Oxley Rocha, Ana Paula M otta Costa, Andréa Behe-
regaray, Augusto Jobim do Amaral, Carm em Craidy, Christiane Russo-
m ano Freire, C larice Sohngen, C láudio Brandão, D ani R udnicki,
Daniela M iranda, D avi Tangerino, Domingos Dresch da Silveira, Edson
de Souza, Eduardo Scarparo, Elisiane Pasini, Érica Ferraz, Fábio Morosi-
ni, Fauzi Choukr, Germano Schwartz, Giovane Santin, Gislei Lazzarotto,
Graça Correa, Jaqueline Tittoni, José H enrique Salim Schmidt, José Luiz
Bolzan de Morais, José Vicente Tavares dos Santos, Juarez Tavares, Judith
M artins-Costa, Lenora de Oliveira, Liliana Carrard, Luiz Antônio Bogo
Chies, Luiz Eduardo Soares, Marcelo Moura, Marcelo Peregrino, M arce­
lo Sgarbossa, M aria Palma Wolff, M iguel Reale Jr., M iriam Guindani,
Mônica Delfino, Neuza Guareschi, Paula Gil Larruskaim, Paulo Abraão,
Paulo Queiroz, Raquel Scalcon, Renata Almeida da Costa, Ricardo Aro-
ne, Ricardo Gloeckner, R oberta Baggio, Rogério Maia Garcia, Rosa
M aria Borges, Rosem eri C opetti, Rubens Casara, Simone Paulon, Théo
Dias e Tupinambá Azevedo.
Este relato da m inha trajetória acadêmica tem um propósito bastan­
te claro: agradecer sinceramente a todas as pessoas que influenciaram,
dolosa ou culposamente, na construção deste trabalho. N enhum a obra é
individual, todos sabem. O conhecimento não se constrói solitariamente.
M otivo pelo qual é fundamental que as pessoas que o ajudaram a construir
sejam nominadas, apesar dos inerentes riscos do esquecimento. Mas quem
me conhece sabe que não temo correr riscos e assumo a responsabilidade
pelas minhas escolhas. O que não impede, logicamente, que antecipe m i­
nhas desculpas pelos eventuais lapsos de m em ória ou atos falhos. Para os
últim os, recorro ã sempre competente orientação de Liane Pessin.
Registro igualmente que o trabalho seria impossível sem o apoio da
equipe de profissionais com a qual tenho o prazer de conviver diariamente:
Alexandre Wunderlich, Antônio Tovo Loureiro, Bruna Brochado, Camile
Eltz de Lima, Fabiani Fonseca, Felipe Bertoni, Gustavo Satt Corrêa, Inês
Majolo, Lilian Reolon, Lisiane Gallert, Luiza Gaiger, Luiza Farias Martins,
Marcelo Araújo, Mariana Gastai, Natália Píffero dos Santos, N iveti O li­
veira, Paulo Caleffi, Patrícia Costa, Rafaela Cruz e Renata Saraiva.
Igualmente, devo especial agradecimento a Eduardo Gutierrez Cor-
nelius e Rafael Canterji, pela leitura atenta dos originais, Paola Vettori,
pela transcrição das aulas que deu a estrutura do trabalho, e Thaís Weigert,
pelas sugestões e revisões no texto.
Im portante dizer, ainda, que esta trajetória acadêmica não apenas
foi amparada pelo carinho das pessoas que figuram nesta “N ota Teórico-
-Afetiva”. Inegavelmente todos ajudaram a construir um conhecimento
que perm itiu o desenvolvimento do meu espírito crítico. Pensamento
crítico que merece este qualificativo no sentido em que “(...) suscitando o
que não é visível, para explicar o visível, se recusa a crer e a dizer que a realidade se
limita ao visível”'. A crítica sabe que a realidade está em m ovim ento e que
só o pensamento positivista ortodoxo se contenta em descrever a mera
aparência, apenas aquilo que é visível, como realidade, nas precisas palavras
de Miaille.

1 MIAILLE, Introdução Crítirn ao Direito, p. 22.


Os princípios que regem a investigação são, portanto, os da cons­
tante dúvida e da perm anente descorôança. Dúvida e desconfiança com
todos os discursos e todas as práticas desenvolvidos no e pelo sistema penal
e que são oferecidos com o naturais e inevitáveis.
A partir deste primado da d&confiança, a ideia do trabalho foi a de
sistematizar toda a m inha produção na área, apresentando ao público aca­
dêmico e aos atores do sistema penal um texto completo —o mais didático
possível dentro da complexidade das questões —sobre os principais temas da
penologia: (a) fundamentos teóricos do poder de punir (teorias da pena); (b)
fundamentos normativos do poder de punir; (c) aplicação das penas e das
medidas de segurança; (d) execução penal; e (e) extinção da punibilidade.
Neste prim eiro texto estão contemplados os três prim eiros tópicos.
A estrutura da execução das penas e das medidas de segurança e a dogmáti­
ca da extinção de punibilidade serão desenvolvidas posteriormente, em um
projeto que se inicia exatamente no m omento em que term ino esta nota.
O projeto mais im portante, porém , e que acompanhou todos os
PENAL B R A S IL E IR O

momentos da redação deste livro, não foi acadêmico. Foi um projeto de


vida e de am or que e u e a M ari compartilhamos e que foi acompanhado
de perto por M aria Teresa Flores-Pereira, José Carlos M oreira da Silva
Filho, Gustavo Trindade, K arina Pozza, Raffaella Pallamolla, Daniel
3 REIID

Achutti, Fernando R otta W eigert, Ana Luiza Bitencourt, Manoela Cam e-


NO

lier, Gabriela de Carvalho, Diego de Carvalho, Am ilton Bueno de Car­


DE S EG U R A N Ç l

valho, N éder Lopes da Rosa, M aria R ita de Assis Brasil e Sérgio Weigert.
Inegavelmente o m aior projeto de todos: nossa filha, cujo nom e é uma
sincera homenagem ã matriarca. Não por outra razão esta apresentação se
FTNAS • MED WS

inicia e term ina com Inês.


Província de São Pedro, novembro de 2012.
P arte I
TEORIAS DA PENA: FUNDAMENTOS
TEÓRICOS DO PODER DE PUNIR
4
4

1 - INTRODUÇÃO À PENOLOGIA

ri

1.1. Teorias da Pena, Penologia e Poder Punitivo


1.1.1 A principal característica das normas jurídicas é a coercitivi-
dade. Não há direito sem sanção. Isto significa que, na estrutura do
direito penal, a previsão de um a conduta como crim e estará sempre
vinculada ã possibilidade concreta de os Poderes constituídos habilitarem
um ato de coerção. A própria Constituição, ao estabelecer os princípios
que regem o sistema de crimes e de penas, determ ina que os tipos incri­
m inadores (figuras abstratas que descrevem as condutas criminais) fixem,
como conseqüência de sua violação, um a resposta punitiva (pena), inde­
pendente da sua espécie (pena privativa de liberdade, restritiva de direi­
tos ou multa).
Assim, a estrutura da norma penal (tipo penal incriminador) é for­
mada pela associação entre o preceito prim ário, descritivo da conduta
proibida —p. ex., “matar alguém" —e o preceito secundário, que estatui a
punição —“pena: reclusão de 06 a 20 anos” (art. 121, Código Penal). A au­
sência do preceito secundário descaracteriza a lei penal, aproximando a
regra jurídica das normas morais ou das prescrições éticas. É possível afir­
mar, pois, que o direito se distingue das instâncias informais de controle
social pela sanção, não existindo ordem jurídica sem coerção. Em particu­
lar, o direito penal se distingue das demais esferas do direito (instâncias
formais de controle) pela natureza e pela intensidade da sanção: enquanto
a sanção característica dos demais ramos do direito, notadamente o direi­
to civil, é de natureza reparatória (restituição, ressarcimento), a pena cri­
m inai implica necessariamente a privação ou a restrição de um direito
(liberdade)1.
Segundo Kelsen, a coerção jurídica se efetiva na aplicação de um mal
ao infrator, mesmo contra a sua vontade e empregando a força física se
necessário: “na medida em que o acto de coacção estatuído pela ordem jurídica
surge como reação contra a conduta de um indivíduo pela mesma ordem jurídica
especficada, esse acto coactivo tem o caracter de uma sanção e a conduta humana
contra a qual ele é dirigido tem o caracter de uma conduta proibida, antijurídica, de
um acto ilíríto ou delito (...). O direito é uma ordem coactiva, não no sentido de que
ele — ou, mais rigorosamente, a sua representação — produz coacção psíquica; mas
no sentido de que estatui actos de coacção, designadamente a privação coercitiva
da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como conseqüência dos pressu­
postos por ele estabelecidos”2.
M ax Weber demonstra que a soberania do Estado m oderno se concre­
tiza por meio da força, como coerção resultante do exercício legítimo dos
poderes constituídos. As relações entre a constituição do poder político e a
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

violência da pena seriam, portanto, simétricas. Não por outra razão, o pro­
jeto político de legitimação dos Estados m odernos se sustenta na just^cação
da centralização do poder e, consequentemente, da imposição de sanções.
As teorias de fu n d am en tação das penas operam, portanto, como
discursos de racionalização do poder soberano, sobretudo porque o m o­
nopólio da coação legítima representa uma das principais conquistas da
modernidade. Im portante lembrar, p. ex., que W eber caracteriza o Estado
m oderno como uma “comunidade humana que, dentro dos limites de determina­
do território — a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do
Estado — reivindica o monopólio do uso legítimo da violênciaJísica. Logo, o Estado

1 A diferenciação entre as sanções no direito penal e dos demais ramos do direito adqui­
re, na atualidade, um maior nível de complexidade. Não apenas pelo feto de os ordena-
mentosjurídico-penais contemporâneos ampliarem o rol das penas em razão da crise da
pena de prisão (pena privativa de liberdade), com a incorporação das penas pecuniárias e
restritivas de direito, mas, sobretudo, pela expansão do denominado direito (administra­
tivo) sancionador. São inúmeros os estudos que apontam esta diminuição entre as fron­
teiras dos ilícitos penais e extrapenais em decorrência de influências recíprocas. Note-se,
por exemplo, o rico debate na dogmática brasileira sobre o caráter penal das sanções
aplicáveis aos atos de improbidade administrativa e, de forma mais próxima ao campo da
justiça criminal, os estudos sobre a natureza dos atos infracionais de adolescentes em
conflito com a lei (direito penal juvenil).
2 KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 62.
se transforma na única fonte do ‘direito’ à violência”3. Na tradição jurídi­
ca brasileira, Tobias Barreto, ao tratar dos fundamentos do poder de punir,
conclui de forma semelhante: “assim como a ideia de um território entra na
construção do conceito de Estado, da mesma forma a ideia de direito de punir é um
dos elementos formadores do conceito geral da sociedade”4.
Neste sentido, desde o ponto de vista da teoria política, duas con­
clusões são possíveis sobre a forma moderna de percepção e de represen­
tação da sanção penal. A primeira é a de que o uso da força e a reivindi­
cação de sua legitimidade instauram a ordem jurídico-política; a segunda
é a de que a pena imposta pela autoridade constituída é, inevitavelmente,
um ato de violência programado pelo poder político e racionalizado pelo
saber jurídico. Exatam ente por caracterizar-se como ato de violência, o
discurso jurídico impõe que o exercício da força no interior da ordem
política seja limitado por regras e legitimado por discunos (teorias da pena).
Do contrário, se não houver limitação e legitimação do exercício do
poder de punir, e sendo a sanção uma manifesta imposição de violência,
não haveria diferença entre o Estado (comunidade jurídica) e um a orga­
nização crim inosa, visto que ambos adotam os mesmos recursos para
im por sua vontade: privação de determinados bens (vida, liberdade, patri­
mônio) por meio da violência.
A questão é levantada por Kelsen, quando analisa o direito como
uma ordem norm ativa de coação e estabelece a distinção entre a com uni­
dade jurídica e um bando de saqueadores. Kelsen sustenta que a diferença
entre as normas e as coações impostas pelas distintas comunidades (socie­
dade civil e grupo criminal) decorre do feto de que a sanção jurídica não
é um a norm a isolada, mas integrante de um sistema normativo, vigente
em determinado território, cujo fundamento de validade é a Constituição
normativa5.
O problema central da penologia, porém , desde uma perspectiva
crítica, para além da legitimidade jurídica das penas e dos seus critérios de
limitação, é o de que os discursos dejustificaçâo (teorias da pena), inva­
riavelmente, naturalizam as conseqüências perversas e negativas da pena
como realidade concreta. Neste sentido, David Sánchez R ubio identifica

3 W EBER, C iêrnae Política, p. 56 (grifou-se).


* BA R RETO , Fundamentos do Direito de Punir, p. 643.
5 KELSEN, Teoria Pura do Direito, pp. 74-82.
um processo de inversão (ou reversão) ideológica dos direitos humanos que con­
siste na implementação de técnicas (discursivas) de garantia dos direitos
humanos que, em sua instrumentalização, viola direitos humanos. Em
relação ao poder punitivo, este procedim ento de inversão do significado
de tutela dos direitos humanos fica bastante nítido se for possível “reconhe­
cer que a pena sempre possuiu o caráter de um mal, ainda que se queira impor a
favor do condenado”6.

1.1.2. Heleno Cláudio Fragoso, ao discutir a crise das teo rias da


pena na atualidade, coliga as justificativas e os fins das penas às próprias
funções do Estado: “se contemplarmos a evolução processada na teoria da pena,
verificaremos que os juristas, desde há muito, têm-se ocupado com a determinação
do sentido e dofim da pena. Essa problemática está hoje ao centm da crise do siste­
ma punitivo. Parece ciam que a justificação da pena se encontra na própria função
do Estado, como tutor e mantenedor da ordem jurídica, destinada à consecução e à
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

preservação do bem comum. Isso seft&: através da proteção de certos estados valiosos,
que são os bens jurídicos, que o Estado busca preservar através da ameaça penal”7.
Nota-se, pois, que os discursos sobre a legitimidade ou a ilegitim i­
dade das violências públicas vinculam o direito penal ã teoria política,
sendo o problema da justificação do poder punitivo o ponto de conver­
gência entre ambas as disciplinas. N orberto Bobbio afirma que o alfa e o
ômega da teoria política é como se adquire, como se defende, como se con­
serva, como se perde, como se exerce o poder e, sobretudo, de que forma os
cidadãos se protegem das violências derivadas do seu exercício8.
A questão da aquisição, do exercício e das formas de limitação das
violências legítimas (ou legitimadas) é central na filosofia política e no
direito (penal). No entanto, diferentemente da ciência política, que pro­
cura responder aos problemas decorrentes das formas de aquisição e de
constituição legítima do poder, o direito penal ocupa-se em justificar

6 SANCHEZ RUBIO, Invenién Ideológica y Dencho Penal Mínimo, Dewlonial, Intercultural


y Antihegemónico, p. 139.
Sobre a questão da reversibilidade do direito, H E R R E R A FLORES, Hada una Vi-
sión Compleja de los Denchos Humanos, pp. 19-78; e SÁNCHEZ RUBIO, Reversibilidade do
Direito, pp. 21-32.
7 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 546.
8 BOBBIO, Uetà dei Diritti, p. 157.
(processo de racionalização)9 o exercício da violência estatal, organizando
os discursos dejustificaçâo em grandes modelos narrativos denominados
teorias da pena.
Assim, ao pressupor como superada a indagação sobre a (^legitimi­
dade do Estado em impor sanções10, a dogmática penal, por meio da peno­
logia, constrói os discursos de legitimação da sanção criminal de forma a
propor um fondamento racional ao ato de coação política e, em decorrência,
habilitar o exercício do controle social realizado pelos Poderes constituídos.
Neste quadro, a questão prim eira a ser colocada é, exatamente, por
que punir?

1 .2 . Localização da Penologia na Estrutura do Direito Penal e


os Modelos de Justificação (Teorias da Pena)

1.2.1. A estrutura dogmática do direito penal é consolidada a partir


de três grandes discursos de sistematização: (a) teoria da lei penal; (b) teo­
ria do delito; e (c) teoria da pena.
A te o ria d a lei p en al restringe-se aos procedimentos de funda­
mentação e de validação das normas penais no tempo, no espaço e em rela­
ção às pessoas. São temas de estudo os critérios de elaboração das leis e sua

9 A criminologia, como ciência empírica, terá como preocupação central a exposição (e


a crítica) das formas como as penas sâo aplicadas e, consequentemente, das disfonções com
os discursos dejustificaçâo. Por esta razâo, o discurso criminológico adquire tonalidade
crítica em relação ao direito penal. As tensões entre as distintas disciplinas integrantes das
ciências criminais serão expostas pontualmente na análise das teorias da pena.
10 Em realidade, a teoria do direito penal não superou a indagação sobre a (i)legitimidade
do poder de impor sanções. O direito penal dogmático tem esta legitimidade como um
pressuposto de ordem. A crítica é realizada, nas ciências criminais, pela criminolo^a, mas
especificamente a criminologia crítica abolicionista.
No entanto, apesar de a perspectiva crítica orientar o trabalho, em decorrência de seu
objeto estar circunscrito ao âmbito dogmático, a discussão sobre a tensão entre justijicacio-
nismo e abolicionismo não será analisada pontualmente. A ideia de superação do problema da
l^itimidade da pena pela teoria do dimto penal nâo significa, pois, a exclusão a priori das teses
abolicionistas. Sobretudo porque grande parte das críticas aos discursos de legitimação
advêm desta orientação teórica. Todavia, a limitação dogmática acaba por excluir o estudo
autônomo do abolicionismo do horizonte da investigação. Sobre o debate entre justifica-
cionismo e abolicionismo, conferir CARVALHO, Antimanual de Criminologia, pp. 137-154.
aplicação temporal (definição do m om ento do crime, vigência das leis
penais no tempo e condições de aplicabilidade ultrativa e retroativa das
leis), de verificação espacial (local do delito, territorialidade e extraterri-
torialidade das leis) e de incidência sobre os sujeitos (ativos e passivos) do
delito (imunidades). O estudo da teoria da lei penal coloca questões rela­
tivas ao como, quando, onde e contra quem as normas penais serão (ou não
serão) aplicadas.
A te o ria do delito trata dos critérios e das condições que tornam
possível qualifitór como crime determ inada conduta, ou seja, cria os pressu­
postos objetivos e subjetivos de imputação para afirm ar a existência do
fato-crim e e atribuir responsabilidade ao seu autor. Metodologicamente a
teoria do crime desdobra sua análise em três momentos distintos (tipicida-
de, ilicitude e culpabilidade) que se caracterizam como elementos do
conceito analítico de delito e como critérios de adjetivação da conduta
(ação ou omissão). O estudo, portanto, é realizado em um a estrutura tri-
partida que se reduz ao preceito crime é uma conduta típica, ilídta e culpável.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

A te o ria da p en a ou p en ologia, em bora seja apresentada como


disciplina normativa, regrada pelos princípios de interpretação elaborados
pela dogmática, apresenta no sistema de direito penal im portantes traços
distintivos em relação ã teoria da lei penal e ã teoria do delito.
O prim eiro é relativo ao tema de análise. A pena estatal, diferente­
mente dos pressupostos jurídicos de imputação do crime, transcende a
matéria estritamente dogmática. Conform e apontado anteriormente, na
m odernidade, o local de debate sobre os fundamentos e a legitimidade do
poder estatal de punir foi o da filosofia política. Os primeiros contratua-
listas (Hobbes, Locke, Rousseau, Voltaire, p. ex.), ao justificarem o Estado
m oderno, discutem as condições nas quais é possível afirm ar como legíti­
ma a restrição dos direitos considerados naturais (vida, liberdade, patrimô­
nio). As grandes narrativas filosóficas sobre o Estado m oderno obrigato­
riam ente tiveram de enfrentar o tem a do direito-poder de punir. O
problema, portanto, não é exclusivo e transcende a ciência dogmática do
direito (penal).
O segundo traço distintivo é o que diz respeito ã inserção do tema no
campo do controle social. Como conseqüência jurídica da prática de fetos
instituídos como delitos, as penas —assim como as medidas de segurança
e as medidas socioeducativas —integram o rol de respostas oferecidas pelo
Estado ao infrator. O tema se insere, portanto, no debate sobre os meca­
nismos de administração da justiça crim inal e expõe, inevitavelmente, os
índices de maior ou m enor respeito das agências estatais de controle social
aos direitos fundamentais. Em outras palavras, a form a de imposição das
penas, das medidas de segurança e das medidas socioeducativas perm ite
verificar o grau de adequação das práticas do sistema penal com os seus
discursos legitimadores, bem com o o nível de respeito do poder estatal
pelos direitos das pessoas condenadas ou internadas.
A terceira nota distintiva é relativa ã dimensão processual penal e aos
limites da matéria no âmbito das disciplinas dogmáticas. Diferentemente
da teoria do delito e da teoria da norm a penal, cuja perspectiva de análise
é em inentem ente interna ao direito penal, ou seja, são saberes autorrefe-
renciais intrínsecos ã dogmática jurídico-penal, a penologia tam bém se
insere como tema de relevância nas práticas processuais, fundam entalm en­
te porque a aplicação da pena é realizada no ato que encerra o processo
penal de conhecimento, que é a sentença penal. Por outro lado, com o
trânsito em julgado da sentença penal condenatória (pena) ou da sentença
absolutória im própria (medida de segurança), inicia-se a fase de execução
e, em foce do notório processo de jurisdicionalização, a experiência san-
cionatória será partilhada pelo direito penal material, pelo direito proces­
sual penal e pelo direito penitenciário sancionador (administrativo).
Em foce da pluralidade de olhares possíveis, a investigação sobre as
penas e as medidas de segurança ultrapassa as fronteiras da dogmática penal
para integrar estudos de teoria política, de teoria do estado, de sociologia
do controle social, de criminologia, de direito processual penal e de direito
penitenciário. A penologia, contrariamente às demais teorias que sustentam
o direito penal, não se restringe, pois, ã análise normativa, agregando ao
campo de investigação importante e inevitável perspectiva empírica.
Assim, a penologia (teoria da pena em sentido amplo)11 trata de quatro
questões centrais relativas às penas e às medidas de segurança: (1-)Junda-

11 Importante destacar a distinção terminológica queserá utilizada no trabalho. O termo


íeoria da pena em sentido amplo — teoria dapena no singular —será referência para indicar
uma das três teorias centrais que formam o sistema de direito penal, quais sejam, teoria
da lei penal, teoria do delito e teoria da pena.E m sentido amplo, portanto, a teoria da
pena se associa às demais teorias do direito penal. No entanto, a análise da teoria da pena
é proposta a parrir de uma divisão metodológica em quatto etapas: (a) teorias da pena (em
sentido estrito); (b) aplicação dapena; (c) execução da pena e (d) extinção da punibilida­
de. Como espécie do gênero, as teorias da pena (no plural) correspondem aos discursos
dejustificaçâo das sanções em direito penal.
mentação (teorias da pena); (2-) aplicação; (3-) execução; e (4^) extinção. As
questões colocadas pela matéria dizem respeito, portanto, ao por que, como
e quando punir, seguindo a m etodologia proposta por Ferrajoli em Direito
e Razão.

1.2.2. A discussão sobre os fu n d am en to s da p u n ição invariavel­


mente gera no expositor ju rista teórico) a tentação de reconstruir histo­
ricam ente as teorias de justificação. Assim, é bastante com um ver na
doutrina do direito penal o retrocesso aos modelos da Antiguidade, com
remissões ao Velho Testamento ou ao Código de Hamurábi, sobretudo
para identificação da ‘origem ’ do discurso retributivo taliônico12.
O corre que todos os sistemas punitivos, da antiguidade ã pós-m o-
dernidade, apresenta (ra)m discursos mais ou menos coerentes sobre a le­
gitimidade das incriminações e os fundamentos dos castigos13. Em qualquer
época, em qualquer local, é possível encontrar justificativas ã imposição de
sanções pela comunidade ao infrator das suas leis a partir dos vínculos com
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

as normas de cultura, que em última instância dizem da própria constitui­


ção do poder com unitário —vejam-se, p. ex., as adesões dos sistemas pu­
nitivos aos discursos jusnaturalistas ^usnaturalismo cosmológico, teológi­
co ou antropológico) antes do processo de racionalização do político pelo
jurídico. Apenas na modernidade, com a pretensão de cientificidade e de
racionalização do poder soberano, que são elaboradas as grandes narrativas
sobre a punição, no sentido pelo qual atualmente são identificadas. Estas
narrativas dejustificaçâo são denominadas teo rias d a pena.

12 Esta forma de abordagem que se pretende historiográfica invariavelmente aponta a


fonte do retributívismo na Bíblia e no Código de Hamurábi: "vioí^ão por violação, olho por
olho, dente por dente; assim como ele causou uma injúria a um homem, assim será Jeito contra ele”
(Levítico, 24:20); "se um homem lança uma maldição contra outro h om w , sem justficação, aque­
le que a lança deverá ser condenado à morte” (Código de Hamurábi, primeiro decreto).
13 Em outro momento, embora referindo um específico sistema de criminalização (crí-
minalização das drogas), constatou-se que "as reconstruções históricas em geral, e em particular
as relativas aos sistemas legislativos penais, sempre são difáeis de realizar. Um dos fatores que lhes
confere amplexidade é o de que os sistemas punitiws, por sua tendênáa anstante a maximizar a
criminalização, invariavelmente atribuem, em algum períotk histórico, algum tipo de sanção para
condutas desviantes, ou seja, não ó incomum a reedição de hipóteses criminalizadoras.Destaforma,
sempre ê possível encontrar tipos penais (ideais) histórias para que se possafazer referêntia à origem
de determinada lei criminal” (CARVALHO, A Política Criminal de Drogas no Brasil, p. 9).
Sobre os usos de perspectivas históricas nas monografiasjurídicas, conferir CARVA­
LHO, Como (não) sefa z um Trabalho de Conclusão, pp. 8-12.
O projeto da modernidade, no âmbito do direito penal, fomenta a
proposição de modelos universais de legitimação das sanções que possam
ser aplicados com o resposta a qualquer tipo de delito, em qualquer situação,
independentemente dos indivíduos implicados e das características do caso.
O processo de elaboração de justificativas das sanções transforma-se, des­
se modo, em um evidente exercício de construção de tipos ideais, gerais e
abstratos, que perm item harmonizar toda a programação das agências do
sistema penal em tom o de determ inado prindpio ou sentido unificador. O
princípio unificador do sistema de legitimação das sanções será exatamen­
te aquela justificativa fornecida pelas teorias da pena. As teorias da pena
não passam, em última análise, de estereótipos abstratos dejust^cação ou,
em termos weberianos, de tipos ideais teóricos.
Não por outra razão a resposta ã pergunta por que punir? confere as
condições de possibilidade dos demais discursos que sustentam o sistema
penal: os critérios de imputação (direito penal), as formas de instrum en­
talização e de incidência das normas (teoria do processo penal), os rumos
da criminalização (política criminal) e a im agem dos atores envolvidos no
delito e na sua repressão (criminologia).

1.3 . Critica Criminológica às Teorias da Pena: Intencional


Violação à Lei de Hume

IH TR 00 U Ç Ã 0 À P E N 0 L 0G 1L
1.3.1. Distinção tradicional na enciclopédia das ciências criminais
—term o cunhado por Liszt para definir o “conjunto vastíssimo de disciplinas
cientficas que tem o crime por objecto” 14 —é aquela relativa ao caráter norm a­
tivo e dogmático do d ire ito pen al e à condição empírica da c rim in o lo ­
gia. Assim, enquanto o direito penal, como ramo da ciência jurídica, es­
taria centrado na discussão sobre os pressupostos de validade e de aplicação
das normas penais com intuito de definir a responsabilidade penal, a cri­
minologia direcionaria sua atenção ao fenômeno do delito (e do desvio) e
à instrumentalização e à efetivação das normas por meio das decisões ju ­
diciais e dos atos da administração.
Segundo Roxin, o caráter normativo do direito penal se expressa
na análise das regras jurídicas e da sua aplicação, diferentemente da crim i­
nologia, que se coloca, dentre as disciplinas que com põem a ciência global

14 A pud FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, p. 18.


do direito penal (Liszt), “como ciência da realidade”'3. Nas palavras de Cláu­
dio Brandão, esta divisão metodológica significa “que o Direito Penal busca
investigar o crime à lu z das normas, do dever-ser, ao passo que a criminologia
busca investigá-lo à luz da realidade fenomênitó. Consequentemente, os conceitos
criminológicos de delito busMm explicá-lo à luz do ser, enquanto o conceito jurídico
buscará compreendê-lo à luz do dever-ser”16.
A precisa delimitação das fronteiras dos saberes penal e crim inoló-
gico produziu dois campos absolutamente autônomos, dois universos
científicos distintos, com métodos, objetos e linguagem próprios. N ão por
outro motivo a criminologia invariavelmente foi apresentada, pela dogmá­
tica jurídico-penal, como um a ciência auxiliar do direito penal'7.
A impossibilidade de intersecção entre os saberes é derivada da ob­
servância da Lei de H u m e, máxima lógica segundo a qual não é possível
alcançar logicamente conclusões prescritivas ou morais a partir de elemen­
tos descritivos ou fáticos. A proibição de derivar valores de fatos objetivos
determina que um dever-ser não poderia resultar de um ser e vice-versa. A
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

transposição da Lei de H um e às ciências criminais impediria, p. ex., que a


crítica criminológica baseada em dados empíricos da realidade fenomêni-
ca invalidasse premissas normativas ou fundamentos dogmáticos. Assim,
o horizonte válido de crítica seria apenas aquele que se estabelece em sua
própria zona de intervenção: crítica dogmática ao direito penal e crítica
criminológica ã criminologia.
A observância ã Lei de Hume, no campo da penologia contemporânea,
é um dos principais postulados teóricos defendidos, p. ex., por Ferrajoli.
Segundo o autor, a pergunta “por que castigar?” pode ser entendida em dois
sentidos diferentes: (a) por que existe a pena? ou por que se pune? e (b) por que
deve existir a pena? ou por que se deve punir? O prim eiro seria um problema de
ordem científica, que admitiria somente respostas de caráter empírico formu­
ladas m ediante proposições assertivas verficáveis e refutáveis, isto é, a partir de
dados feticos considerados verdadeiros ou falsos. O segundo sentido revelaria
um problema de cunho filosófico, que admitiria apenas respostas de caráter
ético-político formuladas mediante proposições normativas, nem verdadeiras,
nem falsas, mas somente aceitáveis e inaceitáveis com o justas ou injustas.

15 R O X IN , DereAo Penal, p. 46.


16 BRANDÃO, Teoria Jurídica do Crime, p. 5.
” Sobre a questão da auxiliaridade da criminologia, conferir CARVALHO, Anlimanual
de Criminologia, pp. 15-17.
Em outros termos, aduz Ferrajoli que a primeira indagação estaria
sustentada na existência do fenômeno pena, ou seja, do fato punição, que
traduz problemas de ordem histórica ou soáológica —incluindo-se logicamen­
te nesta perspectiva sociológica a criminologia, tam bém nominada por alguns
autores como soaologia do desvio. A segunda questão revelaria o dever-ser
jurídico da pena ou do direito de punir, situação que remeteria a discussão
às prescrições normativas que validam as sanções18.
1.3.2. A partir desta proposição de reforço dos lim ites en tre o
d ireito penal e a crim ino lo gia, em termos específicos, e entre o direito
e a sociologia, em termos gerais, Ferrajoli aponta como incursas em vícios
metodológicos todas as respostas ao problema das penas (à pergunta por que
castigar?) que confundem as suasfunções (uso descritivo histórico ou socio­
lógico) ou as suas motivações (uso descritivo jurídico) com os seus fin s (uso
normativo axiológico). De igual form a reputa com o equivocadas todas as
proposições que não diferenciam o ser (de foto ou de direito) do dever-ser
(axiológico) da pena. O erro que o autor aponta estaria representado no
foto de se assumir a explicação da pena como a sua justificação ou vice-versa.
Seriam, pois, segundo o autor, ideológicas todas as doutrinas e as teorias que
incorressem na sobreposição dos modelos de justificação aos esquemas de
explicação e todas as teses que confundissem o dever-ser e o ser da pena19,
ou seja, todas as proposições teóricas que violassem a Lei de Hume.
A opção metodológica de Ferrajoli revela a adesão explícita aos
postulados do positivismo jurídico que, instrumentalizado pela dogmática
jurídica, limitará a compreensão e a crítica do direito ã esfera exclusiva­
mente normativa —a propósito, é exatamente este tipo de opção m etodo­
lógica que perm ite situar o garantismo dentre as inúmeras correntes do
neopositivismo jurídico contemporâneo. O papel do pensador da ciência
jurídico-penal, neste quadro, seria o de adotar determ inado sistema de
ampreensão e, a partir dos seus pressupostos e dos seus princípios fundacionais,
estabelecer as condições de validade para a série de desdobramentos lógicos
exigidos pelo sistema. N o caso da ciência jurídico-penal, a adoção de deter­
m inado sistema de compreensão exigiria a formulação de critérios para ga­
rantir condições de validade (coerência e completude) a todos os seus níveis
de incidência (lei penal, delito e pena) em todos os seus desdobramentos

18 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 314.


19 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 315.
(teoria da lei penal: lei penal no tempo, no espaço e em relação às pessoas;
teoria do delito: conduta, tipicidade, ilicitude e culpabilidade; teoria da pena:
fundamentos, aplicação, execução e extinção da punibilidade).

1.3.3. A ruptura com a assepsia positivista e a sua conseqüente abs­


tinência de experimentação dos fenômenos da vida cotidiana —m orm ente
em um campo de saber marcado pela radicalidade das violências individual
e institucional —ocorre com o advento da teo ria crítica do d ireito e,
em especial, com a c rim in o lo g ia crítica.
N o campo da punição, a exposição realizada pela criminologia crí­
tica acerca da profunda discrepância existente entre os discursos apresen­
tados pelas teorias dejustificaçâo (dever-ser) e as Junções exercidas pelas agên­
cias de punitividade (experiência fenomênica) tornou irreversível o
processo de reconhecim ento do saber criminológico pela dogmática. Fato
que permitiu, inclusive, o desenvolvimento de um a im portante corrente
dogmática crítica no direito penal.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

N este sentido, a criminologia crítica operou nas ciências criminais


a revogação da Lei de Hume, perm itindo que o saber em pírico sobre o
funcionamento das agências do controle penal servisse como instrum ento
de desconstrução, de modificação e de transposição do saber dogmático.
Exatamente nesta linha foi desenvolvida a ideia da crim inologia crítica
como crítica do direito penal (Baratta)20 nos países ocidentais de tradição
jurídica romano-germânica.
Desde a perspectiva crítica, M unoz Conde e Hassemer sustentam,
pois, “a importância que, para evitar a cegueira frente à realidade que muitas v&es
tem a regulação jurídica, o saber normativo, ou seja, o jurídico, deva ir sempre acom­
panhado, apoiado e ilustrado pelo saber empírico, isto é, pelo conhecimento da rea-

20 Baratta, ao configurar a criminologia crítica como crítica ao direito penal, postula a


50 consttu^o de uma sociologia do direito penal, cujo objeto corresponderia a três categorias
de comportamentos: “a sociologia jurídico-penal estudará, pois, em primeiro lugar, as ações e os
comportamentos normativos que consistem na formação e na aplicação de um sistema penal dado; em
segundo lugar, estudará os feitos do sistema penal entendido como aspecto 'institucional' da Kação
ao comportamento desviante e do conespondente controle social. A teneira categoria de ações e com­
portamentos abrangidos pela sociologia jurídico-penal compreenderá, ao contrário, (a) as reações não
institucionais ao comportamento desviante, entendidas como um aspecto integrante do controle social
do desvio, em conconência com as reações institucionais estudadas nos dois primeiros aspectos, e (b)
em nível de abstração mais elevado, as conexões entre um sistema penal dado e a anespondente es­
trutura econámico-social” (BARATTA, Criminologia Critica e Critica do Direito Penal, p. 23).
lidade (...)”21. N o entanto, coráorm e notam os autores, “a relação entre o
saber normativo e o saber empírico, próprio de cada uma destas formas de abordar a
realidade, não é, sem embargo, idílica, mas conflituosa e tem, todavia, muitos pon­
tos de contato, onde às vezes entram em claro enfrentamento a solução que propõe
uma parte, a normativa, e a que propõe a outra, a empíritó, não sendo raro que, às
vezes, esta seja uma das causas da disjunção e ineflcáría das normas jurídico-penais
na solução de determinados conflitos ou que o próprio saber empírico careça de influ­
ência na regulação jurídica de um determinado problema”22.
Conforme sustentado, a pesquisa sobre penas e medidas de seguran­
ça rom pe as fronteiras da dogmática jurídico-penal, integrando-se aos
estudos críticos de teoria política, de teoria do estado, de sociologia do
controle social e de criminologia. O estudo das múltiplas dimensões da
punição, portanto, não deve estar enclausurado na esfera dogmática de
normatividade23, sendo imprescindível ã pesquisa jurídico-penal aportar
na investigação empírica.
Assim, sem quaisquer pudores se assume explicitamente neste tra­
balho o vírío ideológico atribuído pejorativamente por Ferrajoli. A opção pela
perspectiva criminológica crítica perm ite abandonar a devoção sacra ã Lei
de Hume em nome da preocupação efetiva com a vida das pessoas que sofrem
com as intermitências criadas pelas grandes narrativas teóricas. Interm i-
tências expostas na tensão entre as formas abstratas dejustificaçâo da pena
e a experiência real da aflição punitiva. A opção, portanto, deriva da preo­
cupação exclusiva de garantir os direitos humanos de todos aqueles que
foram envolvidos em fatos nominados como crime e que resultaram em
punição; aquelas pessoas identificadas como frágeis nas situações-problema
geridas pelo sistema punitivo, ou seja, a vítima no m om ento do delito, o
réu no m om ento do processo e o condenado nos momentos de efetivação
da pena ou da m edida de segurança.
N este sentido Zaffaroni é preciso ao postular um sistema de com ­
preensão do direito penal configurado com a finalidade exclusiva de lim i-

21 M U N O Z COND E e HASSEMER, Introdução à Criminologia, p. 5.


22 M U N O Z COND E e HASSEMER, Introdução ê Criminologia, p. 6.
23 Importante frisar que a dogmática penal, sobretudo a teoria do delito, historicamente
dialogou com a filosofia. A afirmação de que estaria enclawurada à normatividade não sig­
nifica que esteja totalmente alheia ao diálogo interdisciplinar. O problema apontado é o
relativo ã tendência de a dogmática realizar diálogos com perspectivas eminentemente
metafísicas, excluindo dos seus problemas a realidade empírica.
tação do poder punitivo e instrumentalizado a partir da ampla compreen­
são dos dados normativos e empíricos —“as leh se expressam através de palavras,
mas ofazem em um mundo onde ocorrem fenômenos físicos, sociais, culturais, eco­
nômicos, políticos etc., em permanente mudança, em uma realidade que f u i conti­
nuamente, protagonizada por pessoas que interagem e se comportam conforme certos
conteúdos psicológicos. Todas estas coisas são reais e sucedem deste modo e não de
outro, e as leú devem ser inteyretadas neste mundo e não em outro que não exúíe”24.
Se o pensamento dogm ático-ortodoxo atribui a esta forma de abor­
dagem o rótulo de equívoco metodológico (ou vício ideológico), o presente es­
tudo parte do pressuposto de que as metodologias devem ser adequadas ã
vida, e não a vida servir às fórmulas metodológicas, ou seja, se as m etodo­
logias não têm inserção no real são elas mesmas um equívoco.
Não por outra razão, é significativo o insistente culto ã metafísica
desenvolvido na dogmática jurídico-penal, especialmente na teoria do
delito. A crença fundamentalista do jurista teórico e do operador do direito
nas regras do método dogmático cria uma espécie de autismo metodológico,
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

pois, apesar de a realidade insistentemente demonstrar a inadequação das


técnicas de compreensão dos problemas das pessoas, suas fórmulas e suas
categorias seguem vigentes, aplicadas e relegitimadas. Parece que ao dogmá­
tico ortodoxo a conclusão é bastante óbvia: a inadequação entre o sistema
teórico e a realidade social reafirma o desajuste da realidade ante a teoria.
Neste sentido lembra Davi Tangerino que “não há nada de particular­
mente problemático no fato de as ciências se estruturarem a partir de determinados
pontos de partida que não podem ser demonstrados. O que m o se pode admitir,
todavia, é que tais pressupostos contradigam a realidade sensível das coisas, sob pena
de tomar-se ficção. Dito de outro modo: nada impede que as ciências tomem como
ponto de partida noções indemonstráveis, desde que a realidade concreta não as
contradiga"25.
Assim, as críticas que serão direcionadas às teorias da pena conglo-
bam elementos normativos e abordagens empíricos, ou seja, serão utiliza-
52 dos de forma paritária argum entos dogmáticos e criminológicos, para que
se possa adquirir o m áxim o de compreensão possível sobre os problemas
dos modelos de justificação. Se as críticas às disfunções das teorias da pena
existem e são baseadas em contundentes dados da realidade, parece injus­
tificável omiti-las.

24 ZAFFARONI et. al., Manual deDerecho Penal, p. 77.


2i TAN G ERIN O , Culpabilidade, p. 170.
4
4

2 - TEORIAS ABSOLUTAS DA PENA

ri

2.1. Modelos de Retribuição: Fundamentos


2.1.1. Leciona R oxin que a tipologia ab so lu ta deriva da finalidade
autônoma atribuída à pena, ou seja, a sanção é desvinculada teoricamente
de qualquer efeito ou projeção social —absolutus, no latim , significa desvin­
culado. Em sentido oposto, as teorias relativas referem modelos punitivos
direcionados a um a finalidade extrínseca, no caso ã prevenção de delitos
ou de reações ilegítimas (formais ou informais) - relativo deriva do latim
referre, que significa referir-se a algo ou a alguma coisa1.
As teorias absolutas da pena (ou teorias retributivistas) sustentam-se,
fundamentalmente, no modelo ilum inista do contrato social, no qual o
delito é percebido como um a ruptura com a obrigação contratual, confi­
gurando a pena uma indenização pelo mal praticado. A relação entre
crime e pena se estabelece a partir de um a noção de dívida, e a lógica
obrigacional fixa a necessidade da reparação do dano em razão do inadim -
plemento (descumprimento das regras sociais). O poder de punir se expres­
sa, pois, como um direito/dever do Estado exercido por meio da expro-
priação forçada de algo de valor quantificável.
Zaffaroni e Pierangeli notam que, na vigência dos modelos punitivos
do medievo, as massas criminalizadas nada possuíam além de seus corpos2.
Mas, ao mesmo tempo, o exercício da pena sobre o corpo do culpado por

1 R O X IN , Derecho Penal, pp. 82-85.


2 ZAFFARONI e PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 263.
m eio de mutilações, de esquartejamentos e da própria destruição física,
não correspondia ã pretensão de racionalização do sistema punitivo.
Neste sentido, Foucault, ao interpretar as alterações do sentido da
punição do medievo para a modernidade, questiona “se não é mais ao cotpo
que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce?
A resposta dos teóricos — daqueles que abriram, por volta de 1760, o período que
ainda não se encerrou — é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria
indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. A e^iação que tripudia sobre o cor­
po deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o corafio, o intelecto, a
vontade, as disposições”3.
Assim, na transposição do medievo ã modernidade, a função de
expropriação da pena se materializa no seqüestro do tempo, pois a capaci­
dade de trabalho e a liberdade do culpado seriam os únicos objetos passíveis
de conversão da dívida em um bem tangível. O aprisionamento do tempo
de liberdade surge, portanto, como a sanção característica da modernidade.
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

2.1.2. Dentre as principais teorias absolutas da pena, o re trib u ti-


v ism o k a n tia n o merece especial destaque, sobretudo pela influência que
exercerá na dogmática penal no século X X .
Kant, na M e t^sitó dos Costumes (1797), sustenta ser a lei penal um
imperativo categórico que deve ser respeitado sob quaisquer condições. A
ruptura com o imperativo categórico determ ina a aplicação da pena, não
havendo quaisquer outras justificativas ã punição senão a própria inobser­
vância do contrato. Ao infrator é suficiente que a pena “deva ser imposta em
razão de ter delinquido”4. Afirm a o autor que mesmo no caso de dissolução
da sociedade civil, precedida da absoluta e plena concordância de todos os
seus membros, deveria ocorrer a execução do últim o assassino que se en­
contrasse no cárcere, “para que cada pessoa receba o que merecem seus atos e o
homiddio não recaia sobre aqueles que não exigiram o castigo: porque podem ser
considerados cúmplices da violação pública dajustiça”5. Para explicar sua hipóte­
se utiliza como exemplo a disseminação de todo o povo habitante de uma
ilha. Neste caso, apesar da situação extrema de dissolução do poder polí­
tico, sustenta ser um dever remanescente a execução dos condenados.

3 FOUCAULT, Vigiar e Punir, p. 20.


* KANT, Metafísica de las Costumbres, p. 166.
3 KANT, Metafísica delas Costumbres, p. 166.
A pena, segundo o modelo kantiano, não poderia ter qualquer fi­
nalidade utilitária (relativa). Os objetivos de m elhorar ou corrigir o hom em
delinqüente (prevenção especial positiva) ou de intim idar ou de persuadir
os não delinqüentes a não praticar crimes (prevenção geral negativa) seriam
ilegítimos. Se o poder político utilizasse a pena como instrum ento de
emenda ou de dissuasão, o direito acabaria por mediatizar o ser humano,
ou seja, o hom em seria transformado em um meio para o alcance de um
fim , o que tornaria a sanção imoral.
Para Kant, a observância das regras morais é o pressuposto prim eiro
do agir hum ano e pode ser expressa em imperativo categórico sintetizado
em duas fórmulas: primeira, age segundo uma máxima tal que possas querer ao
mesmo tempo que se tome lei universal, segunda, nunca alguém deve tratar a si
mesmo e nem aos demais como simples meio, mas como fim em si mesmo. Zaffa­
roni e Pierangeli anotam que a segunda formulação do imperativo cate­
górico define a concepção penológica kantiana, que impede justificar a
sanção na ideia de instrumentalização do homem, vedando ser o conde­
nado percebido como um objeto para determ inados Jins como, p. ex., a
intimidação social ou a correção individual6. A pena criminal, portanto,
teria como exclusivo objetivo a imposição de um mal decorrente da vio­
lação do dever jurídico, encontrando neste m al (violação do direito) sua
devida proporção e a sua própria justificação.
2.1.3. Em oposição ao modelo kantiano de retribuição ética e moral,
o re trib u tiv ism o hegeliano aportará o problema ã esfera jurídica. Para
Hegel, a pena será justificada pela necessidade de recomposição do direito
violado. A violência da pena corresponderia àquela violência perpetrada
contra o ordenam ento jurídico. O delito, portanto, por configurar lesão
ao direito, deveria ser neutralizado por meio de um a força correspondente.
Em Prindpios da Filosofa do Direito (1820) o autor trata das relações
entre crime, violência e penalidade. O princípio fundamental da teoria
hegeliana da pena é centrado na noção de que a violência destrói a si mes­
ma com outra violência: “a supressão do crime é a remissão, quer segundo o
conceito, pois ela constitui uma violência contra violência, quer segundo a existência,

6 ZAFFARONI & PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 264.


Para aprofundar a concepção kantiana de retribuição, notadamente no que tange ã
caracterização, ã fundamentação, ã significação política e às conseqüências, conferir R I-
VACOBA y RIVACOBA, Función y Aplicación de Ia Pena, pp. 68-84.
quando o crime possui uma certa grandeza qualitativa e quantitativa que se pode
também encontrar na sua negação como existênría”7.
O crime, considerado como violação da ordem jurídica - e não como
produção de mal ou violação de imperativo ético justificaria a imposição
de uma sanção exclusivamente retributiva, visto a necessidade de restabe­
lecimento da lei. Sustenta Hegel que os discursos legitimadores da pena
invariavelmente estiveram vinculados ã ideia de que a eliminação do mal
pelo mal produz valor positivo (bem) —“este aspecto supefiríal da malignidade
è, por hipótese, atribuído ao crime nas diferente teorias da pena que sefundamentam
na preservação, na intimidação, na ameaça, na correção, consideradas como primor­
diais; o que disso deverá resultar é definido, de um modo também superficial, como
um bem”s.
N o entanto, entende fundamental deslocar o problema dos valores
morais e éticos (bem e mal) para o debate jurídico, para a consideração
objetiva da justiça9. Os efeitos psicológicos da sanção sobre a consciência
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

do criminoso ou sobre a sociedade —referência expressa às teorias preven­


tivas (relativas) de emenda e de intimidação - são externos ã questãojurí-
dica central: a qualificação da pena como justa ou injusta10 a partir da
discussão sobre quais direitos do infrator devem ser suprimidos como
resposta adequada ao crime11. Segundo a perspectiva do autor, a pena, como
oposição racional ao ato irracional do delito, constitui-se como a negação
da negação do direito. A lógica dialética perm ite, pois, a reafirmação e o
restabelecimento da ordem jurídica por meio da sanção criminal.

I HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, pp. 92-93.


8 HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, p. 90.
5 “Ora não se traü desse mal ou desse bem; o que esú em questão é o que é justo e o que é injusto.
Naqueles pontos de vista superficiais oblitera-se a consideração objectiva da justiça, que é o que permite
apreender o princípio e a substância do crime” (HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, p. 90).
10 "As diversas considerações refeKntes à pena como fenômeno, à injluência que exene sobre a <nns-
ciência particular e aos efeitos que tem na representação (intimidação, coneção, etc.), ocupam o lugar
próprio, até porque o primeiro lugar desde que se trate da modalidade da pena, mas têm de supor
resolvida a questão de saber se a pena é justa em si e para si” (HEGEL, frindpios da Filosofia do
Direito, p. 91).
II "Nesta discussão apmas se trata do seguinte: o crime, wnsiderado não como produto de um mal,
mas como violação de um direito tem de suprimir-se, e, então, qual é a existência que contém o crime
e tem de suprimir-se? Esta existência é que é o verdadeiro mal que importa afastar e nela Kside o
ponto essencial" (HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, p. 91).
2 .2 . Modelos de Retribuição: Crítica
2.2.1. Os discursos de retribuição, sobretudo o kantiano, são os que
estruturam os modelos jurídico-penais romano-germânicos até meados do
século passado. Neste sentido, é possível dizer que constituem as n a rra ti­
vas de m a io r estab ilidad e n a m o d ern id ad e. Embora desde o final do
século X IX se assista ã emergência das ideias de prevenção especial positi­
va (correcionalismo) —teorias que inegavelmente influenciaram os discur­
sos dogmáticos, mas que acabaram tendo maior receptividade no direito
penal dos países anglo-saxões a partir da forte i^ u ê n c ia da criminologia —,
foi o retributivismo que modelou a estrutura da dogmática penal, espe­
cialmente da teoria do delito, visto sua intrínseca relação com a ideia de
culpabilidade.
A relação entre crime e pena será, na dogmática jurídico-penal,
mediada pelo princípio da culpabilidade que, instrum entalizado pela teo­
ria do delito, fornecerá um critério de proporcionalidade pelo dano cau­
sado. Neste aspecto, o postulado retributivista aparenta adquirir um a
im portante função de limitação do excesso punitivo: a pena deverá ser
determinada no limite da culpabilidade do réu, estabelecendo uma relação
de justa proporção entre crime e castigo.
N o entanto, a partir da década de 1970, a i^ u ê n c ia das teorias de
prevenção geral negativa —incorporadas na dogmática com a instrum en­
talização do direito penal para tutela de bens jurídicos —e de prevenção
especial positiva —atualizadas pelo sentido ressocializador da pena —opera
o desgaste das narrativas retributivistas12.
R oxin constata que embora as teorias de retribuição estabeleçam
limites ao poder punitivo do Estado, exercendo im portante função liberal
de salvaguarda da liberdade —“se a pena deve ‘corr&ponder’ à magnitude da
culpabilidade, está proibido impor lição através de uma penalização drástica nos
casos de culpabilidade leve” 13 —, atualmente não se sustentam do ponto de
vista científico, gerando indesejáveis efeitos desde a perspectiva político­
-social. O autor aponta, sobretudo, problemas teóricos de incompatibili-

12 Importante sublinhar que a trajetória narrada é a dos discursos jurídico-penais dos


países de tradição romano-germânica (civil law). Nospaíses da common law, o impacto das
teorias preventivas foi totalmente distinto, conforme será posteriormente abordado na
narrativa do correcionalismo e na apresentação da teoria do justo merecimento.
13 R O X IN , Derecko Penal, p. 84.
dade do fundam ento retributivo com a finalidade exclusiva do direito
penal na proteção subsidiária de bens jurídicos. Desta forma, considera
injustificável a aplicação de sanções que prescindissem de quaisquer fins
sociais14. Assim, não sendo o modelo dejustificaçâo retributiva compatível
com as atuais expectativas do direito penal (tutela de bens jurídicos e res-
socialização), os discursos absolutos não estariam dotados de legitimidade
suficiente para orientar os sistemas punitivos.
2.2.2. Conforme exposto, a qualificação absoluta que caracteriza as
teorias de retribuição traduz um sentido autorreferencial no qual a pena
possui um fim em si mesma.
Ferrajoli sustenta que todas as doutrinas absolutas estão estruturadas
sobre a m áxim a de que é justo im por (retribuir) o mal pelo mal. O autor
lembra que este postulado atua como um mecanismo de rememoração de
sistemas punitivos primitivos baseados na vingança de sangue, situação que
m antém o direito penal im pregnado de uma lógica repressiva que exerce
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

fascínio sobretudo ao pensamento político reacionário. Exatamente por


este motivo nunca teria sido abandonado pela cultura penalística, inclusi­
ve após o iluminismo penal, m orm ente em razão da reconfiguração do
retributivismo pelas versões laicas de Kant e de Hegel13.
Ambas as versões do modelo de retribuição são, contudo, insusten­
táveis do p o n to de vista n o rm a tiv o em decorrência da obscura crença
na existência de um nexo de causalidade necessário entre a culpa e o castigo'6.

14 A ausência de qualquer finalidade estranha à própriapena é reconhecidapelos autores


identificados com o modelo de retribuição. Nestesentido, Rivacoba y Rivacoba susten­
ta que "a concepção retributivista mantém a pena estritamente dentro do jurídico, como um verda­
deiro ente jurídico, de criação e sentido somente jurídims, não impulsionando-a fora do Direito como
mero neutro para satisfazer ou realizar iksígnios sociais” (RIVACOBA Y RIVACOBA, Funcién
y Aplicacién de la Pena, p. 37).
00 15 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 240.
16 A compreensão dapena como resultado natural do delito é ancorada no pressuposto de
que a dogmática penal parte de ser o próprio crime um dado social (e não um consttuto
político). Crime e castigo, compreendidos como fenômenos naturais —e a criminologia
agregará um terceiro elemento queserá o criminoso natural—, correspondem às expectativas
do pensamento positivista que imunizaestas categorias de qualquer questionamentopiévio.
Nestesentido, Geraldo Prado lembra que "as teorias penais surgiram nos séculos X IX e X X
para legitimar ofancionammto do sistema crimi^i, corfome o discurso da m od^idade, não pmbkma-
tizando no inkio um dos seus elrnentosprincipais, o crime, que era considerado como um dado social
e não c r i^ o do pnprio poder político” (PRADO, C ^ p o Jurídico e Capital Científico, p.26).
Sánchez R ubio considera uma redução arcaica o caráter de equivalência
entre crim e e castigo que permanece no discurso penal, situação que ter­
m ina por naturalizar e norm alizar a pena como sanção por excelência,
tornando-a evidente, inquestionável e evitando possibilidades não puniti­
vas de resposta às situações problemáticas17.
Conforme Ferrajoli, este entendim ento que cria uma relação simé­
trica entre crime e pena deriva de uma confusão entre fenômenos distintos
que são o direito e a natureza, equívoco que tornaria filosoficamente ina­
ceitável o discurso retributivo de legitimação. As teorias absolutas estariam,
portanto, assentadas em um a interpretação normativista jurídica) da na­
tureza na qual a sanção representaria a restauração, o remédio ou a reafir­
mação da ordem natural violada; a contraposição ou a purificação do de­
lito por meio do castigo; ou a negação do certo pelo errado.

2.2.3. Zaffaroni desloca a crítica ao retributivism o do aspecto


normativo-filosófico para a experiência concreta, sustentando que os m o­
delos kantianos e hegelianos de justificação da pena são essencialmente
dedutivos, motivo pelo qual inexiste qualquer dado empírico que perm ita
afirm ar que a sanção exerce efetivamente um papel de neutralização. Per­
cebe o autor que tanto a função de garantidor externo do im perativo ca­
tegórico (Kant) quanto a de reafirmação do direito (Hegel) são funções
que não podem ser respondidas devido ã ausência de evidências feticas
(pon to de vista em pírico ). Ademais, conclui que as teorias absolutas
“não constituem nenhuma justificação da pena em si mesma, estando a serviço de
outra coisa, que é a defesa social, ainda que se chame de outra maneira”™.
Por outro lado, para além da feita de evidências que demonstrem a
capacidade de a sanção neutralizar o delito, questão que merece ser avalia­
da é a da (in)adequação de sistemas de justificação baseados em critérios
de retaliação do sujeito que violou a norma jurídica. A pergunta que deve
ser enfrentada é a da validade ou da plausibilidade de uma fundamentação
de pena estruturada em um princípio de vingança que se instrumentaliza
em um cálculo sempre impreciso que é o da justa retribuição pelo dano
causado. Desde esta perspectiva, é possível perceber a baixa intensidade do

17 SÁNCHEZ RUBIO, Inversión Ideológica y Dereiho Penal Minimo, Decolonial, Intercultural


y Antihegemónico, p. 140.
18 ZAFFARONI et al., Manual de Dencho Penal, p. 38.
princípio da retribuição com o critério limitador da pena. Pelo contrário,
o ideal retributivo pode legitim ar, sobretudo em sociedades imersas na
cultura punitivista, a aplicação de penas extremas e cruéis, se efetivado a
partir de um a operação simplificadora de adequação ou de identificação
entre a extensão do dano e a intensidade da pena (princípio taliônico).
Se do ponto de vista empírico inexiste a possibilidade de verificar a
exata dimensão da reparação do dano por meio da imposição de um mal,
sob o aspecto normativo é possível dizer que a cadeia de princípios que
configura as Constituições contemporâneas, em grande m edida decorren­
tes da incorporação dos preceitos internacionais do direito humanitário,
evidencia a inadequação da resposta retributiva como discurso de legiti­
mação do sistema punitivo.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

60
4
4

3 - TEORIAS RELATIVAS DA PENA

ri

3 .1. Modelos de Prevenção Geral Negativa: Fundamentos


3.1.1. Conforme destacam Zaffaroni e Batista, existem dois grandes
discursos de legitimação do poder punitivo construídos a partir de funções
preventivas: “a) o que pretende que o valor positivo da criminalização atue sobre
os que não delinquiram, fas chamadas teorias da prevenção geral, as quais se sub­
dividem em negativas (dissuasórias) e positivas (reforçadoras); e b )o que afirma que
o referido valor atua sobre os que delinquiram, das chamadas teorias da prevenção
especial, as quais se subdividem em negativas (neutralizanttt) e positivas (ideologias
re: r^roduzem um valor positivo na p&soa)”
Embora os sistemas retributivos tenham inegável im portância his­
tórica na construção dos discursos sobre a legitimidade da pena e na for­
matação dogmática do direito penal centrado no princípio da culpabilidade
- sendo inclusive retomados atualmente sob a nova roupagem das teorias
do m erecim ento fu s t desert theories) - , as teorias relativas de destaque na
literatura penal e criminológica que marcaram de forma mais contunden­
te a penologia m oderna foram as de p reven ção g eral n eg ativ a (teorias
de dissuasão) e as de preven ção especial po sitiva (teorias da emenda).
3.1.2. E possível dizer que o modelo penológico preventivo que
melhor caracteriza a primeira fase da modernidade penal, gestada sob o
paradigma liberal-contratualista, é o m o d elo de dissuasão.

1 ZAFFARONI et al., Direito Penai Brasileiro I, p. 115.


Na formulação da hipótese contratual (Hobbes, Locke, Rousseau e
Voltaire), o indivíduo, ao encontrar-se solitário e em estado de natureza,
cansado de viver na incerteza da manutenção dos bens da vida (vida, li­
berdade, propriedade), adere voluntariamente, por m eio de pacto, ã socie­
dade civil. Segundo os doutrinadores da Ilustração, um dos fatores que
im pediriam o retom o da sociedade civilizada ao estado de barbárie seria
o estabelecimento de penas pelo poder político soberano legitimamente
constituído. Defende Beccaria, p. ex., que “eram necessários meios sensíveis e
bastante poderosos para comprimir &se espírito despótico que logo tornou a mergulhar
a sociedade no seu antigo caos. Esses meios foram as penas estabelecidas contra os
infratores das leis”2.
A necessidade de ruptura com o estado de natureza constrangeu os
homens a se sujeitarem às penas. A intervenção punitiva, portanto, passa a
representar uma das condições de vida em sociedade. Lembra Adela Asúa
Batarrita, ao com entar o manifesto de Beccaria, que “a pena é o preço neces­
sário para impedir danos maiores, e apenas nisso encontra sua justificação”2.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

N ote-se que a cessão da liberdade individual é a contrapartida ofe­


recida pelo cidadão, ao firm ar o contrato, para justificar o poder de punir:
“o conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fimdamento do direito
de punir. Todo exercido de poder que se tfastar dessa base é abuso e não justiça; é
um poder de fato e não de direito; é uma usut^ação e não mais um poder legítimo.
A s penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública
são injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e in­
violável for a seguranp e maior liberdade que o soberano conservar aos súditos”*.
Com a entrega da liberdade individual como garantia da obrigação,
o poder de punir é, ao mesmo tem po, fundamentado e limitado. Como o
pacto versa essencialmente sobre a liberdade individual (bem penhorado
em garantia), somente este bem (liberdade) poderia ser executado em caso
de violação do contrato. A incidência da pena sobre qualquer outro bem
seria ilegítim a, pois excederia o pactuado. A estrutura penal baseada na
62 teoria do contrato social estabeleceria, pois, limites precisos ã intervenção
do Estado. Incabível, p. ex., desde esta construção teórica sobre o funda­
m ento da pena, deliberar sobre a vida de um a pessoa, visto que somente a
liberdade poderia ser objeto da sanção. Por outro lado, há um a especifica­

2 BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, p. 33.


3 ASUA, Reiuindicación o Superación dei Programa de Beccaria, p. 20.
* BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, p. 34.
ção da liberdade, ou seja, além de a pena estar restrita ao bem liberdade,
não seria qualquer liberdade passível de execução —pense-se, p. ex., na
ilegitimidade de intervenção do Estado na liberdade de pensamento, de
culto, de associação política, todas conquistas do processo de secularização
do direito. Não por outro m otivo a pena privativa de liberdade, instrum en­
talizada no tem po de confinamento, constitui-se como modelo sanciona-
tório ideal da prim eira m odernidade penal. Sobretudo porque a liberdade
de locomoção seria o único bem individual suscetível de cálculo no tempo,
constituindo algo que se projeta como linha reta do passado ao futuro5.
A partir destes pressupostos Beccaria desenvolve um a teoria da pena
baseada em critérios de utilidade social, transpondo a ideia de que a justi­
ficativa intrínseca (absoluta) seria suficiente para legitimar o poder de
punir. A tese utilitarista fundamentadora pode ser expressa na equação “a
máxim a feliddade ao maior número possível de pessoas”. No capítulo “Dos Meios
de Prevenir Crim es”, Beccaria desenvolve o conteúdo do aforismo ao pres­
crever que “é melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador
sábio deve procurar antes impedir o mal do que r^ará-lo, pois uma boa legislação
não é senão a arte de propordonar aos homens o maior bem-estar possível epreservá-
-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e
dos males desta vida”6.
O sentido utilitário da pena rompe com o pensamento retributivis-
ta, no qual a sanção possui finalidade em si mesma ao repreender fotos
passados ao invés de atribuir significado futuro. O novo objetivo proposto
“não é atormentar e infligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi
cometido” 7. Centrada nas ideias de proporcionalidade, necessidade e culpa­
bilidade, a pena adquire um a finalidade intim idatória, pois o exemplo
aplicado ao infrator seria o meio necessário para constranger o corpo social
a não incorrer na mesma conduta: “os castigos têm p o r jtm único impedir o
culpado de ser nocivo fituram ente à sociedade e desviar seus conddadãos da senda
do crime. Entre as penas e na maneira de aplicá-las proporcionalmente aos delitos,
é mister, pois, escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão
mais eftMZ e mais durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no co^o do culpado”*.

i ZAFFARONI e PIERANGELI, M anual de Direito Penal Brasileiro, p. 264.


6 BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, p. 193.
7 BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, p. 88.
8 BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, p. 85.
Beccaria, apesar de ratificar o caráter intim idativo da pena em inú­
meros momentos de sua obra, não esgota na sanção criminal os únicos
meios para prevenção da criminalidade. N o últim o capítulo do manifesto,
trata especificamente das ações preventivas não penais, apontando as in­
justiças sociais e a má distribuição de riqueza como fatores potencializa-
dores do crime. Logicamente não se pode ver nesta denúncia ã má distri­
buição de riquezas uma postura revolucionária de corte socialista utópico
pré-marxista, como, p. ex., na obra de Marat. N o entanto, o registro de
Beccaria acerca da relação entre crim e e injustiça social é relevante e dig­
no de nota.
3.1.3. Feuerbach densifica o modelo de prevenção geral negativa de
Beccaria e marca o discurso dissuasório como o de m aior identidade com
o projeto politico-crim inal da p rim e ira m o d e rn id a d e penal.
Em A nti-H obbes (ou os limites do poder supremo e o direito de resistência
dos cidadãos contra o soberano) (1798), Feuerbach indaga sobre o fundamento
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

do conceito jurídico de pena. O autor parte do pressuposto de que o fim


da sanção não pode ser a correção do culpado, sobretudo porque “o Estado
não é tutor, mas protetor; não é preceptor, mas defensor; não possuindo como fim a
moralidade e a cultura, mas a tutela da liberdade”9. Portanto, apenas a ameaça
forneceria os elementos adequados para sua justificação —“a intimidação dos
outros, para que não cometam as condutas incriminadas, não deveria ser o escopo
essencial dapen a e o fundam ento do direito de infringi-la? A resposta afirmativa é
uma opinião comum aos nossos juristas efilósofos ” 1 0 .
Para o autor, o indivíduo, como m em bro de uma sociedade civil
organizada, está submetido ã vontade com um representada pelas leis. Por
outro lado, caberia ao Estado a criação de condições que impeçam eficaz­
mente as lesões aos direitos. Assim, as instituições jurídicas e políticas,
apesar de caracterizadas pela coerção física, teriam como finalidade a
proteção dos bens dos integrantes da comunidade civil. Do mesmo modo
64 que Beccaria, Feuerbach não exclui as denominadas instituições éticas
(família, escola, igreja) do papel preventivo. Situa tais instâncias, porém,
fora do projeto formal de controle social.
N o Tratado de Direito Penal (1801), Feuerbach sustenta que a coação
física não é suficiente em si mesma, ou seja, que o sentido retributivo da

9 FEUERBACH, Anti-Hobbes, p. 104.


10 FEUERBACH, Anti-Hobbes, p. 106.
pena não cria condições de prevenção do ilícito. Desta forma, postula um
modelo de sanção que perm ita antecipar o cometimento do crime e que
“sendo proveniente do Estado, seja eficaz em cada caso particular, sem que requeira
o prévio conhecimento da lesão. Um a coação desta natureza — afirma Feuerbach
— somente pode ser de índole psicológi<z” n .
O fundam ento intim idatório da pena, evocado pela atuação políti-
co-crim inal do Legislativo, estaria condicionado ã eficácia dos poderes
Judiciário e Executivo. Se o objetivo da sanção criminal é a dissuasão
daqueles que não com eteram crimes, a aplicação da pena deveria ser ine­
quívoca, sob pena da perda do seu caráter simbólico. Segundo Feuerbach,
“o objetivo da cominação legal da pena é a intimidação de todos como possíveis
protagonistas de l&ões jurídicas. A finalidade de sua aplicação é de dar fundam ento
efetivo à cominação legal, dado que sem sua aplicação haveria lacuna (seria ineftM z).
Se a lei intimida todos os cidadãos e a execução deve dar efetividade à lei, o objetivo
mediato (ou fin al) da pena é, em qualquer caso, a intimidação dos cidadãos através
da lei " > 2 .
A punição não é direcionada, em nenhum mom ento, ao indivíduo
que praticou o delito (prevenção especial). Inexiste, pois, nas teorias jus-
tificadoras da pena da primeira m odernidade penal, qualquer fim educa­
tivo ou moral. A ideia estritamente jurídica de sanção exclui a prevenção
particular, negando qualquer conteúdo pedagógico ou perspectiva de
melhoramento moral do autor do ilícito. Orientada pelo sentido laico da
política (criminal), a pena é imunizada das pretensões correcionalistas.
O m érito das teorias de prevenção geral negativa é inegavelmente o
de evitar a tendência sempre presente no âmbito punitivo de fusão das
esferas do direito e da moral. Assim, é possível afirmar que a teoria da
coação psicológica é praticamente a única entre todos os sistemas clássicos
de fundamentação das penas que respeita o pressuposto ilustrado da secu­
larização do direito.

3 .2 . Modelos de Prevenção Geral Negativa: Crítica

3.2.1. A lin h a de a rg u m en ta ç ão e a m eto d o lo g ia adotadas para


crítica dos modelos preventivos, não apenas de prevenção geral, mas,

11 FEUERBACH, Tratado de Derecho Penal, p. 60.


12 FEUERBACH, Tratado de Dencho Penal, p. 61.
igualmente, de prevenção especial, são fornecidas por Zaffaroni e Batista.
Segundo os autores, duas perspectivas devem orientar a avaliação dos m o­
delos (relativos) de justificação: primeira, aquelas que indicam os dados
sociais a respeito da função originalm ente concebida (ciências sociais);
segunda, aquelas relacionadas aos resultados desta legitimação para o Estado
de Direito (política). Assim, em cada perspectiva, é necessário deter-se: “a)
na fu n fio manifesta atribuída à pena, dela deduzindo suas consequênrías quanto b)
à form a em que concebem a defesa social por eles postulada (os valores que querem
realizar socialmente) ec) à essência do delito, como contradigo com tais valora e d)
à medida da pena para cada caso” 1 3 .
O fundam ento punitivo da dissuasão parte do pressuposto da capa­
cidade do autor do delito em valorar as conseqüências negativas da sua
conduta e, a partir de um cálculo racional entre os custos e os benefícios
do ato ilícito, optar pdo crime ou pela observância das regras jurídicas. O
conhecimento das normas de conduta e a opção livre pela sua violação
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

estão ancorados na ideia iluminista de livre-arbítrio, centro nervoso das


principais formulações sobre os fundam entos materiais e o conteúdo da
culpabilidade, o que implica, até os dias atuais, em um problema de cons­
tante debate na teoria do delito.
As duas grandes narrativas preventivas de legitimação da pena do
século passado —prevenção especial positiva, direcionada para a correção
do criminoso, e prevenção geral negativa, voltada para a dissuasão social
— irão contrapor duas imagens distintas sobre o hom em (delinqüente).
Assim, se os modelos correcionalistas pressupõem o sujeito como incapaz
de compreensão de sua conduta, pois condicionado por causas e fatores
endógenos e/ou exógenos, os discursos dissuasivos percebem o hom em
como ser racional e livre na eleição das suas ações, consciente das conse­
qüências dos seus atos. Culpabilidade e periculosidade, livre-arbítrio (in-
determinismo) e determinismo, dissuasão e correção, pena e medida (de
66 segurança) são as palavras-chave para compreender as tensões e as dicoto-
mias entre as grandes narrativas penológicas do século XX.
Note-se, contudo, que os discursos dejustificaçâo não são apenas
construções teóricas para diletantismo acadêmico. Grande parte dos esta­
tutos punitivos ocidentais do século passado foi moldada a partir destas
noções, com a predominância de fundamentos corretivos ou dissuasórios

13 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I , p. 115.


ou com a construção de sistemas híbridos. A propósito, é possível diagnos­
ticar a inexistência de um modelo totalm ente puro na fundamentação e na
instrumentalização da resposta punitiva, pois nas legislações penais é co­
m um verificar, inclusive na atualidade, a presença muitas vezes dissonante
de conceitos e categorias de sistemas distintos dejustificaçâo. Todavia, esta
aparente incompatibilidade teórica é sanada pela utilidade política dos
discursos polifuncionais. Nestes casos, percebe-se a fusão de conceitos
teoricam ente dissonantes para construção de regras e de metarregras de
interpretação com alta capacidade resolutiva. Vejam-se, p. ex., os efeitos
produzidos pela apropriação da categoria periculosidade pelos sistemas penais
de culpabilidade fundados na dissuasão (culpabilidade de autor).
Ocorre que estas imagens (determinista e indeterminista) sobre a
condição humana são idealizações simplificadoras que trazem mais pro­
blemas do que soluções na questão da pena, em particular, e na dogmática
do direito penal, em geral. Outrossim, por serem ambas as imagens meras
hipóteses teóricas, sem qualquer possibilidade de demonstração empírica
(irrefutáveis), tornam-se inválidas desde o ponto de vista adotado neste
trabalho que é o d e assumir a complexidade das questões contemporâneas,
sobretudo a complexidade da condição hum ana que se nega ã redução
simplificadora no binômio liberdade-causalidade.
Significa dizer que não é possível conceber o agir hum ano a partir
de conceitos metafísicos, idealizados. Sobretudo porque a preocupação da
investigação é a de criar condições de compreensão da condição hum ana
a partir de sua inserção na cultura e, para além da investigação sobre os
fundamentos do agir lícito ou ilícito, visualizar as relações de poder que
se estabelecem entre os grupos criminalizados e as agências que concreti­
zam o poder punitivo.

3.2.2. Desde este ponto de partida, im portante enfatizar que, além


das representações abstratas sobre o hom em nas quais invariavelmente a
dogmática incorre, as teorias dissuasivas de justificação apresentam outros
problemas insuperáveis.
O primeiro, apontado por Carrara no Programa de Direito Crim inal
(1874), é relativo aos efeitos decorrentes da adoção do m odelo de coação
m oral ou psicológica. Segundo Carrara, o fundam ento da coação psicoló­
gica “acarreta um aumento constantemente progressivo das penas, pois a prática do
delito, ao demonstrar de maneira positiva que o culpado não sentiu temor pela san­
ção, conduz ao convenrímento de que para impor temor às pessoas é necessário au-
mentá-la” u . Percebe Carrara o efeito perverso da possibilidade de expansão
do direito penal, por meio do aumento das hipóteses delitivas e da rigidez
das penas, sempre que forem apresentados indícios de ausência do tem or
social na atuação repressiva do Estado.
Na atualidade, R o xin reitera esta conseqüência hipercriminalizado-
ra da adoção da perspectiva intim idatória como discurso exclusivo de
fundamentação das penas13, pois “como a prevenção esperíal, [a prevenção
geral negativa] não inclui nenhuma medida para a delimitação da duração da pena.
A ssim , a prevenção geral negativa se encontra sempre diante do perigo de converter-
s e em terror estatal. Pois a ideia de que penas mais altas e mais duras produzam
maior efeito intimidatório fo i historicamente (apesar de sua provável inexatidão) a
razão mais freqüente das penas ‘sem medida ' ” 16.
O segundo problema do modelo de dissuasão, que igualmente se
entrelaça com esta possibilidade de expansão incontrolável das hipóteses
de criminalização e do aum ento das penas, diz respeito ã feita de instru­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

mentos idôneos que perm itam demonstrar a existência de um a relação


factív el entre a existência das sanções e o não com etim ento de delitos.
Além de ser uma hipótese isenta de possibilidades empíricas de
comprovação, o avanço da teoria crim inológica e da penologia no século
passado fornece elementos interpretativos que perm item afirm ar que a
prática ou não de crimes independe dos fatores criminalização e/ou puni­
ção. Ressalte-se que isto não significa dizer que para algumas pessoas a
pena não tenha um im portante efeito simbólico inibidor. A dúvida posta
pela criminologia crítica em relação ao fundam ento dissuasivo é a de que
o fenômeno pena é apenas um fator (e provavelmente o menos importante)

14 C A R R A R A , Programa de Derecho Criminal, p. 69.


15 Lembre-se, porém, de que, na formulação de sua hipótese fencionalista, Roxin instru­
mentaliza a tese da prevenção geral a partir de uma das funções atribuídas ao direito penal
que é tutela de bens jurídicos. Ademais, agrega ã prevenção geral negativa a função de
prevenção especial positiva (ressocialização). No entanto, para controlar o efeito da inde-
terminação das penas e a possibilidade de expansão do direito penal, o autor atribui ã
culpabilidade (retribuição) a fonção de limitar os efeitos maximalistas da prevenção geral
negativa (tutela de bens jurídicos) e da prevenção geralpositiva (ressocialização do con­
denado). O moddo polifuncional propostopor Roxin será mais bem detalhado na aná­
lise dos vínculos entre pena e culpabilidade.
16 R O X IN , Derecho Penal, p. 93. No mesmo sentido, RIVACOBA Y RIVACOBA,
Función y Aplicacián de la Pena, pp.40-43.
dentre as inúmeras circunstâncias que influenciam a prática ou a abstinên­
cia de atos ilícitos.
A inviabilidade de sustentar a legitimidade das sanções em um ex­
clusivo modelo intimidativo decorre, portanto, da percepção dos distintos
impactos que os fatores criminalização e punição exercem sobre as pessoas,
sobretudo em um período histórico de expansão do direito penal —o fenô­
m eno da hipercriminalização (overmminalization phenomenon )17, ao mesmo
tempo que produz altos índices de encarceramento de pessoas e de grupos
vulneráveis ã seletividade do sistema penal, dim inui a confiança do corpo
social no papel das instituições e dos seus atores em face da notória incapa­
cidade de o Estado efetivar em pena a série de condutas criminalizadas.
3.2.3. Os dados de encarceramento contemporâneos em praticamen­
te todo o Ocidente possibilitam comprovar a inexistência de relação causai
entre (a) o aum ento de penas e a dim inuição dos crimes ou entre (b) a
descriminalização e o aumento da criminalidade. Tome-se, a título de
exemplificação, o incremento das sanções nas duas últimas décadas no
Brasil, sobretudo no que tange aos crimes violentos.
A partir de 1990, com a edição da Lei n. 8.072 (Lei dos Crimes
Hediondos), houve gradual acréscimo de sanções, imposição de regimes
mais severos de penas (limitação ao sistema progressivo) e restrição de
direitos processuais (sobretudo no que diz respeito às possibilidades de
decretação de prisão cautelar) aos crimes definidos como hediondos. Se
analisarmos a curva de encarceramento brasileira18, com especial ênfase aos
crimes hediondos e os seus equiparados, é possível diagnosticar a ausência
de um impacto direto ou um a relação direta entre o increm ento do puni-
tivismo e a dim inuição dos delitos. E não é necessário um olhar refinado
sobre o problema, pois a mera análise de dados perm ite esta conclusão.
Por outro lado, se forem analisados os casos de descriminalização, a
conclusão será similar. Embora não seja da tradição jurídica a revogação
de leis penais — costume que produz o efeito do acúmulo vertiginoso de
textos legislativos (inflação penal) —, a Lei n. 11.343/2006 determ inou a
vedação da aplicação de pena de prisão (descarcerização) às condutas de
porte de drogas para consumo no Brasil. Este feto, analisado em conjunto
com os dados de países que nas últimas décadas optaram pela descrim ina-

Sobre o tema, conferir LUNA, The Overcriminalization Phenomenon , pp. 703-743.


18 CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo, pp. 27-57.
lização do porte —Portugal, Espanha, Inglaterra, República Tcheca, entre
outros —, perm ite concluir a inveracidade do argumento do potencial au­
m ento do consumo de drogas em decorrência da ausência de repressão
penal. No recente caso de Portugal, país que descriminalizou o porte para
consumo pessoal de todo o tipo de drogas, inclusive as consideradas pesadas
como cocaína e heroína, a alteração legislativa, assim como ocorreu na
Espanha e na Inglaterra, não alterou as taxas de consumo. Todavia, possibi­
litou a implementação de inúmeras políticas de redução de danos com im ­
pacto positivo no aumento da qualidade de vida de usuários e dependentes19.
A abordagem de questões específicas que afetam o cotidiano das
pessoas é um recurso metodológico im portante e que perm ite, no caso em
análise, maior reflexão sobre a eficácia dos discursos de coação psi­
cológica.
A questão do aborto, p. ex., como no caso das drogas, pode servir
de interessante chave de interpretação, fundam entalm ente em face de sua
criminalização ser questionada por inúmeros grupos da sociedade civil
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

organizada e de inúmeros países terem optado pela descriminalização


desta conduta, deslocando o foco de intervenção e de investimento do
campo penal para a área da saúde pública. Outrossim, a escolha do aborto
é relevante por ser crim e doloso contra a vida, fito que, em decorrência
de norma constitucional, determ ina sejajulgado no Brasil pelo tribunal do
júri. A interrogação cabível seria acerca do impacto de eventual descrimi­
nalização da interrupção voluntária da gravidez no incentivo ou desestí-
mulo à prática do aborto. Em termos mais simples, a pergunta possível de
ser proposta é se efetivamente é o fito de a conduta ser crim e que impede
que determinadas pessoas optem por intervenções abortivas, ou seja, se em
caso de descriminalização quem não realiza aborto passaria a realizar ou
se houvesse aumento de pena quem é favorável deixaria de eventualmen­
te se submeter ã prática abortiva.
Parece evidente que, neste caso, a relevância da incriminação ou da
quantidade de pena é m ínim a para definir a opção de uma m ulher ou de
um casal em realizar o procedim ento de interrupção da gravidez. Os pro-

19 Sobre os dados de descriminalização em Portugal, conferir GREENW ALD, Drug


Decriminalization in Portugal, pp. 4-28, e, na Espanha, verificar WEIGERT, Uso de Drogas
e Sistema Penal, pp. 111-125. Estudo global sobre o tema da descriminalização das drogas
e daspolíticas de redução de danos, consultar CARVALHO, A Politica Criminal de Drogas
no Brasil, pp. 87-188.
blemas que se colocam acerca da adesão ou não ao aborto são, invariavel­
mente, de ordem moral e ética, sendo o peso da criminalização ínfim o no
m om ento de definição/escolha da conduta.
3.2.4. As hipóteses e os dados empíricos que dem onstram a inexis­
tência de relação de causalidade entre os fenômenos punição e delitos
sustentam o diagnóstico produzido pela crim inologia crítica no sentido de
ser negativo o im pacto político-crim inal decorrente da adesão aos discur­
sos de coação psicológica.
Segundo Zaffaroni e Batista, “quem procede por introspecção não pode
afirmar, a partir do seu status social e ético, se o efeito dissuasivo está na pena ou
na estigmatização social devida ao fato em si” 20. Concluem que os sistemas de
prevenção geral negativa partem de um a ilusão pam pew lista que confunde
os efeitos da ética social com os do direito penal, identificando o poder
punitivo como a totalidade da cultura. Não por outra razão lembram que
“as únicas experiências de efeito dissuasivo do poder punitivo passíveis de verificação
são os estados de terror, com penas cméis e indiscriminadas ”21. Assim, na esteira
de Radbruch, é possível dizer que a crença nos sistemas de dissuasão pro­
duz, como resultado prático, a redução da razão jurídica ã razão política
ou de Estado, obtendo, como efeito perverso, o terrorismo penal22.
Ademais, Ferrajoli aponta um defeito de justificação (ponto de
vista n o rm ativ o ) da teoria da prevenção geral negativa: a grave violação
da ética kantiana que estabelece que o hom em não pode servir como mero

DAPENA
instrum ento (meio) aos fins do Estado23. Em efeito, ancorado no objetivo
intim idatório, o direito penal legitima as agências de punitividade a utili­
zar o sujeito criminalizado como um simples objeto de exemplaridade, - TEORIAS RELATIVAS

ampliando, gradual e sucessivamente, sua ingerência no corpo social.

3 .3 . Apêndice: Modelo de Prevenção Social


71
3.3.1. C om o referência histórica de vanguarda destaca-se a perspec­
tiva de prevenção social proposta por Marat, no Plano de Legislação Crim inal

20 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I, p. 118.


21 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I, p. 118.
22 A pud FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 265.
23 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 268.
(1790), que, apesar de constituir um “ importante documento até hoje não de­
vidamente valorizado” 24, conforme anota Ney Fayet Jr., antecipa questões
fundamentais do p en sa m e n to c rim in o ló g ic o crítico.
M arat redige o Plano com a intenção de concorrer em um concurso
promovido pela G a zette de Berne, que instigava a comunidade acadêmica
a elaborar um projeto de legislação penal sob o ponto de vista dos crimes,
das penas e do juízo. Apesar de o trabalho não ser o vencedor, o texto é
publicado pela Assembleia Nacional francesa como projeto de Código dos
Delitos e das Penas.
A preocupação central de M arat, que revela sua inspiração liberal, é
a preservação da liberdade individual contra os abusos dos poderes. Desta
forma, propõe sistemas taxativos de delitos a partir do pressuposto da pu­
blicidade das leis, demonstrando intensa preocupação com a proporciona­
lidade e a pessoalidade das penas, definidas a partir de uma ideia de cul­
pabilidade fundamentada m aterialm ente no livre-arbítrio. N o que tange
ao processo penal, sustenta a construção de um modelo baseado em prin­
L H U H IttB

cípios que garantam juízos equânimes fundados na imparcialidade.


N o entanto, o diferencial apresentado por Marat, que ultrapassa a
H hm- H M

perspectiva liberal do projeto, é a proposição de um Código Penal, orga­


nizado a partir da classificação dos delitos pela sua natureza e espécie, com
a preocupação voltada às formas de prevenção de atos ilícitos, especialmen­
:■
%

te em sociedades marcadamente desiguais23. Embora estruturado em uma


Pl 1*5 F U '. II,LU Oí a s u ^ ú ta -ju

concepção teórica marcadamente contratualista26, M arat realiza um a sig­


nificativa virada interpretativa, avançando no pensamento ilustrado ao
perceber que o pacto social não anula os conflitos e as desigualdades entre
os indivíduos (teoria do conflito). Neste aspecto, sua teoria é significati­
vamente distinta das propostas por Beccaria, Verri e Feuerbach, que en­
tendiam a sociedade desde um a perspectiva consensual e igualitária (teoria

24 FAYET JR., A Evolupo Histórica da Pena Criminal, p. 249.


25 Sobre a obra de Marat, seus princípios e a resposta recebida pela comunidade acadêmi­
ca, conferir M ACHADO, Direito Criminal, pp. 26-27.
26 “Os homens não se Kuniram em sociedade senão por seu interesse comum; eles não fizeram leis
senão para fixar os respectivos direitos, e não estabeleceram um govemo senão para assegurar a si
mesmos o gozo desses dimtos. Se renunciaram a vingar-se pessoalmente, fizeram-no para transferir
essa Ksponsabilidade ao braço público; se Knunciaram à liberdade natural,fizeram-no para adquirir
a liberdade civil; se renunciaram à comunhão primitiva dos bens, fizeram-no para possuir pessoal­
mente uma parte desses bens” (MARAT, Disegno di Legislazione Criminale, p. 72).
do consenso). Possível dizer, portanto, que M arat antecipa em vários as­
pectos a crítica da crim inologia radical dos anos 70 do século X X , nota-
dam ente no que tange á formulação de um m odelo sociológico estrutura­
do no dissenso.
Segundo o autor, para garantir igualdade em um a sociedade cujos
bens da vida não são paritariamente distribuídos, a postura absenteísta do
Estado liberal era evidentemente insuficiente. Assim, seria imperativa uma
atitude comissiva dos Poderes constituídos para efetivação de políticas
(prestação de serviços) voltadas ã redução material das desigualdades, pois
“a própria sociedade não merece existir senão enquanto busca o bem-estar próprio do
gênero humano”27.
Apesar de apresentar como fundam ento do ius puniendi a retribuição
ã culpabilidade —“ únitó admissível do postuhdo contratualista”2s —, sustenta ser
justa a sanção apenas quando o Estado age eficazmente para reduzir as
diferenças sociais, pois somente em situações de igualdade substancial seria
possível afirm ar a liberdade individual na violação da norm a (livre-arbí­
trio). Em estados de miserabilidade do corpo ou da alma, a responsabili­
dade individual e, consequentemente, a reprovabilidade penal não pode­
riam ser afirmadas ou, no m ínim o, deveriam ser reduzidas —“se a lei em
algum momento devesse abrandar, isto deveria acontecer somente em favor de quem
é destfortunado, porque nele a virtude raramente pode germinar, e nada encontra
para se sustentar. A ssim , levando em consideração o sexo, a índole, a condição, a
sorte dos deli^uentes, e examinando as circunstânrías do crime, é que se pode julgar
com exatidão a pena merecida”29.
M antida a distribuição desproporcional dos bens materiais, ou seja,
prevalecendo a dicotomia social entre ricos e miseráveis, o Estado violaria
seus deveres obrigacionais, visto que a garantia da igualdade material entre
os cidadãos seria um dos pressupostos do contrato. Assim, situações de
profundas desigualdades poderiam desobrigar o indivíduo do dever de
respeitar as leis30.

27 M ARAT, Disegno di Legislazione Criminale,p.77.


28 M ARAT, Disegno di Legislazione Criminale,p.86.
25 M ARAT, Disegno di Legislazione Criminale,p.86.
30 "Em uma temi aberta de propriedades alheias e onde não têm possibilidade de se apropriar de
nadaficam tvduzidos a moner defome. Ora, não pertencendo à sodedade em razão das desvantagens
que esta amporta, são estes obrigados a nspeitar as suas leis? Indubitavelmente não. Se a sociedade
Conclui que, se cabe à sociedade civil o dever de assegurar os meios
necessários de sobrevivência para todos os seus cidadãos, ao eximir-se
desta responsabilidade o Estado estaria instigando o indivíduo ao cometi-
m ento do delito.31 Não por outra razão afirma que o crim e contra a pro­
priedade, praticado nas sociedades corroídas pela pobreza, seria absoluta­
m ente legítimo, sendo a resposta punitiva tirânica32.

3.3.2. A teo ria d a preven ção social, em realidade, não se cons­


tituiu como um a autêntica narrativa dejustificaçâo do direito de punir no
sentido empregado nas demais construções legitimadoras. Diferentemente
das demais teorias da pena, o modelo proposto por Marat não foi respal­
dado por um a dogmática do delito e da pena, universalizada e comparti­
lhada pela doutrina do direito penal. Inclusive sua argumentação lógica e
o seu âmbito de incidência aproximam-se m uito dos pressupostos expostos
nos modelos de coação psicológica, pois ao contrário dos modelos retribu-
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

tivos e correcionalistas as perspectivas de prevenção (geral negativa e social)


projetam uma ação estatal anterior ao cometimento do ilícito, voltada a
dim inuir o núm ero de ações danosas. N o entanto, se os modelos de pre­
venção geral negativa optam pela intimidação por meio da ameaça da pena,
a teoria da prevenção social elege as estratégias de redução da miséria e de
educação dos cidadãos como ferramentas político-crim inais.
N este sentido, o sistema delineado por M arat representa, em termos
criminológicos, um prim eiro esboço de discurso crítico sobre as incidên­
cias ilegítimas do poder de punir e sobre os limites formais e materiais das
penas em sociedades de alto contraste socioeconômico. Assim, é signifi­
cativa sua contribuição, pois produz um giro interpretativo na teoria do
contrato social e inclui no rol dos direitos fundamentais os direitos sociais.

os abandona eles voltam ao estado natural, e quando reivindicam com aforça aqueles direitos aos quais
renunciaram com a única finalidade de garantir para si maiores vantagens, qualquer autoridade que
lhes opõem obstáculos é tirânica e oju iz que os condena à morte não é outro senão um infame assas­
sino” (MARAT, Disegno di Legislazione Criminale, p. 72).
31 C O CQ U A RD , Marat: o Amigo do Povo, p. 96.
32 "A sociedade não tem o direito de punir aqueles que violam suas leis, se não tiverse organizado
de modo a cumprir as suas próprias obrigações em reltqão a todos os seus membros (...). O zelar pela
prfyria sobrevivência é o primeiro dewr do homem e os senhores mesmos não conhecem outros deve-
res acima deste: quem rouba para viver, desde que não possa agir de outra maneira, não fa z mais do
que exeraros seus dimtos” (MARAT, Disegno di Legislazione Criminale, p.73).
Antecipa, portanto, o pensamento liberal-socialista, esboçando, segundo
Zaffaroni, um a prim eira versão da criminologia radical33.

3 .4 . Modelos de Prevenção Especial Positiva: Fundamentos

3.4.1. Se a coação psicológica é a marca característica dos discursos


justificacionistas da primeira fase, as teorias de prevenção especial positiva
(teorias da emenda ou correcionalistas) dominarão o sentido da pena na
segu nd a fase da m o d e rn id a d e pen al, período que germ ina no início
do século X X e perdura até o final da década de 1970.
A mudança no discurso de fundamentação da pena está associada às
transformações no perfil do Estado nas democracias ocidentais. A alteração
da forma de intervenção estatal consequentemente modifica os modelos
de controle social. A sobreposição do Estado intervencionista (welfare) ao
Estado liberal redimensionará a expectativa quanto às formas de atuação
no controle do delito. Outrossim, a influência das teorias do positivismo
criminológico e a autonomização da crim inologia em relação ao direito
penal irão marcar uma nova concepção sobre a ingerência das agências
estatais na execução das punições, com reflexos irreversíveis sobre as teo­
rias dejustificaçâo das penas.
Diferentemente das teorias retributivistas e dos modelos negativos
de prevenção geral, direcionados respectivamente ao crime e ã coação
psicológica da comunidade, os discursos de prevenção especial positiva
inauguram perspectiva punitiva centrada no indivíduo (homo criminalis). Se
o novo objeto de investigação e de intervenção das ciências criminais é o
homem delinqüente, a resposta ao desvio punível deve tê-lo no centro do
palco punitivo, vê-lo como o principal destinatário da sanção e como o
protagonista em sua execução.
A sanção penal de caráter interventivo, no interior do p a ra d ig m a
penal-w elfare (Garland), objetivará sobretudo a reforma m oral do crim i­
noso. Adquire, portanto, sentido essencialmente profilático (medicinal),
pois o homo criminalis, objeto de intervenção do controle social formal,
constitui-se como um indivíduo deficitário (undersoáalized )34. Trata-se (o

33 ZAFFARONI, Criminologia, p. 120.


34 Interessante perceber como as ideias de origem positivista ingressam com exuberância
no discurso juridico-dogmático, influenciando os mais distintos pensadores. A fanção
criminoso) de uma pessoa com marcantes carências de natureza orgânica
ou moral, as quais se tornam passíveis de medição, quantitativa ou quali­
tativa, por meio da intervenção do laboratório criminológico. A ciência
criminológica objetiva, portanto, desenvolver um instrum ental tecnológi­
co capaz de diagnosticar estes déficits e supri-los por meio da pena crim i­
nal, cujo caráter e natureza são gradativamente aproximados aos das m e­
didas de segurança.
Neste quadro, se o debate sobre a pena (finalidades e funções), nos
séculos XV III e X IX , era matéria exclusiva dos pensadores do direito e da
filosofia política, no século X X , o câmbio será radical. Não apenas a fun­
damentação teórica é compartilhada por investigadores de outros ramos
do saber como a atuação punitiva é desapropriada do jurídico em razão do
ingresso de profissionais das áreas da saúde mental e do serviço social.
Psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e pedagogos ingressam com au­
toridade na discussão prático-teórica sobre a pena, alterando seu funda­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

m ento e propondo distintos instrum entos para realização das novas metas
de reforma individual.
Segundo Garland —em referência específica às instituições do R ei­
no U nido e dos Estados Unidos —, a estrutura penal-weljare produz um
resultado híbrido que combina o legalismo liberal, caracterizado pelo prin­
cípio da legalidade, pelo processo formal e pelo castigo proporcional, com
os compromissos correcionalistas baseados na reabilitação, no bem-estar e
no conhecimento criminológico3^.
O sistema do welfarismo penal, nesta perspectiva, para além de
constituir-se como um a teoria penológica e uma prática criminológica,
moldou a m aneira de pensar os hábitos dos operadores e das autoridades
encarregadas de desenhar as políticas públicas punitivas, construindo uma

corretiva e redentora da pena prolifera tanto na teoria do direito penal quanto no pensa­
mento processual. Carnelutti, quando trata do castigo, afirma que a pena deve ser um
‘“restitutio do ser’: a pena fo i wncebida sempre como um remédio contra o delito. Se, portanto, o
delito é o sintoma de uma deficiência de quem o pratica, a pena deveria servir para preenchê-la (...)
O instituto penal surgiu wmo um remédio empírico, da mesma forma que as medicinas primitivas
para as enfermidades do co^o”. O escopo da pena seria, portanto, “fazê-lo [criminoso] ser o
que não é mas deve ser. É, portanto, um enriquecimento do ser do indivíduo, talvez o verdadeiro e
único enriquecimento do seu ser: o acréscimo da sua capacidade de amar” (CA RN ELU TTI, De-
reclw Procesal Civil y Penal II, p. 8).
3i GARLAND, The Cultun ofControl, p. 27.
distinta gramática orientada às novas diretrizes. Em síntese, o novo sistema
elabora a série de regras que estruturou a linguagem , o pensamento e as
ações standards dos atores das agências que atuam no cam po punitivo36. A
construção teórica gestada no Estado de intervenção será a configuradora
da ideologia punitiva do século X X .

3.4.2. M as a gramática do welfiarismo não redefine apenas as formas


de compreensão do fenômeno punitivo. Os pressupostos do c o rrecio n a­
lism o penal, notadamente a imagem que o paradigma projeta sobre o
hom em (criminoso), reconfiguram a própria ideia de delito e os requisitos
da responsabilidade criminal. Ao ser abandonada a noção de livre-arbítrio,
ou seja, de sujeito responsável com capacidade de compreensão e de opção,
o sistema punitivo direciona-se ã anamnese reconstrutiva da personalida­
de do indivíduo criminoso e das condições que determ inaram ou im pul­
sionaram o agir delitivo. Avaliando sua história de vida pessoal (inclusive
orgânica), familiar e social, os atores do laboratório criminológico objeti­
vam encontrar as fontes de deficiência que produzem o crime. Isolada a
causa do delito, diagnosticada sua etiologia, delimitam-se o grau e a forma
de intervenção corretiva. Neste procedim ento é que se concentra a ideia
central da substituição da finalidade da sanção retributiva ou dissuasiva pela
perspectiva preventivo-especial de pena-tratamento.
Dois efeitos, produzidos no campo da teoria da pena e do delito,
são, portanto, claramente identificados: primeiro, a culpabilidade, ancorada
no livre-arbítrio (fundamento material), é substituída pela periculosidade,
entendida como a potência individual que se transforma em ato delitivo; se­
gundo, a pena, anteriormente concebida com o retribuição da culpabilidade (ou
prevenção geral negativa), é reprogramada com o terapêutica voltada ã correção
dos déficits individuais que determ inam ou potencializam a prática do crime.
Se o delito é um a característica natural (intrínseca) do autor da conduta,
um status negativo do sujeito vinculado ao seu grau de periculosidade, e
não um a construção jurídica abstrata (ente jurídico), serão de competência
das práticas correcionais a identificação e a redução desta potência crim ino­
sa por meio de uma anamnese reconstrutiva e de uma prognose curativa.
Im portante destacar, pois, que esta substituição das perspectivas li­
berais (retributivas e preventivas gerais negativas) pelo discurso correcio-

36 GARLAND, The Cultun ofControl, p. 38.


nalista não é m eram ente retórica, sobretudo porque gera reflexos contun­
dentes na interpretação do crim e como fenômeno jurídico (dogmática do
delito) e na pragmática da aplicação e da execução das sanções penais
(dogmática da pena). Sobretudo em relação ao conteúdo da resposta pu­
nitiva, o caráter sanitarista altera a sua natureza: as penas são convertidas
gradualmente, em m aior ou m enor escala, em medidas (de segurança ou
socioeducativas), tanto na forma (qualidade) quanto no tempo (quantida­
de) da punição.
Ademais, se no plano da teoria do delito (culpabilidade) o funda­
m ento indeterm inista da liberdade no agir delitivo é substituído pelo de­
terminismo causal-mecanicista, em toda a dogmática penal (teoria da pena
e do delito) serão abolidas ou radicalmente reduzidas as fronteiras entre
imputáveis (capazes) e inimputáveis (incapazes).
Assim, diferente da pena retributiva ou dissuasiva, em que é possível
estabelecer ex ante a quantidade (tempo) e a qualidade (forma) da sanção,
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

na arquitetura intervencionista é inviável fixar objetivamente o tempo


necessário para o tratam ento corretivo, pois a extensão da medida não pode
ser dimensionada antes do diagnóstico. A quantidade e a qualidade da
sanção, nesta fusão entre pena e medida de segurança, dependerão da evo­
lução terapêutica do condenado, im portando neste processo o período
necessário ã investigação dos déficits do homo criminalis, a proposição de
formas de tratam ento e a avaliação da reação ã terapêutica. Não por outra
razão são fundamentais o diagnóstico do indivíduo quando do seu ingres­
so na instituição penal e, posteriormente, de forma periódica, o acompa­
nham ento de sua trajetória.
Somente após a identificação da fonte de periculosidade e do trata­
m ento das carências endógenas e exógenas —ou seja, depois do controle
da potência delitiva —é que o paciente conquista a possibilidade de retom o
ao convívio social. Se falho ou incompleto o tratam ento penal, sua m anu­
tenção no sistema punitivo é medida necessária, pois a possibilidade de
colocar o condenado em liberdade é a própria expectativa de reincidência
criminal.
Segundo Garland, o tema central do paradigma punitivo correcio-
nalista é o indivíduo inadaptado ou mal-socializado (undersocialized), iden­
tificado a partir de um a diferença radical entre o normal e o patológico,
produzida pela gramática criminológica —“o realfoco de atenção estava volta­
do ao delinqüente, ao caráter criminal, ou aquilo que os criminóbgos do inicio do
século X X intituhvam ‘delinqüentepsicopático’” 37. Neste sentido, a preocupação
prim eira que define o objetivo desta forma de intervenção punitiva é a da
assimilação clínica das características individuais que diferenciariam as
personalidades criminais das pessoas norm ais, de forma a encontrar indícios
para realizar a análise etiológica e estabelecer o tratam ento correcional38.
Nos países ocidentais, centrais e periféricos, o modelo correcional
da prevenção especial positiva representou o discurso oficial das agências
do sistema punitivo ao longo do século passado, orientando as legislações
penais e penitenciárias e m oldando as instituições de execução da pena.
Logicamente, em cada país, o percurso de incorporação e de efetivação do
sistema penal-welfare foi distinto; inclusive em razão da m aior ou m enor
identificação política com as distintas formas de Estado de intervenção.
Assim, embora seja possível vislumbrar a emergência do correcionalismo
no positivismo criminológico, diferentes movimentos político-crim inais
adequaram suas orientações às realidades dos distintos países que adotaram
o modelo.
N os países de tradição jurídica rom ano-germ ánica, a incorporação
legislativa do correcionalismo ocorreu fundam entalm ente na década de
1960, sob forte influência do m ovim ento da Defesa Social (Prinz e M arc
Ancel). R oxin, p. ex., narra que o Projeto Alternativo de Código Penal da
Alemanha (1966) “ deve muito, e deform a muito especial, à teoria preventivo-
-especial e, particularmente, a Franz v. L is z t e às ideias de defesa social” 3 9 .

3' GARLAND, The Culture o/Control, p. 42.


38 GARLAND, The Culture of Control, p. 44.
39 R O X IN , Deredio Penal, p. 86.
Lembra R o á n que o fondamento preventivo especial da pena integrou o Programa do
Marburgo (1882) de Liszt, no qual a resposta punitiva adquiria três formas de incidência:
(a) assegurando a comunidade ante o criminoso, mediante o seu encarceramento; (b) inti­
midando o autor, por meio da pena, para que não cometa novos delitos; (c) preservando o
delinqüente da reincidência a partir dasua correção. A ideia foi compartilhada com Prins
e Hammel na criação da União Internacional de Direito Penal (1889) e é reforçada com o
advento da Associação Internacional de Direito Penal (1924).No pós-guerra, o projeto cor-
recionalista é incorporado pela Sociedade Internacional de Defesa Social (1947), adquirindo
forte influência nas sucessivas reformas da legislação penal ocidental (ROXIN, Dere&o
Penal, pp. 85-87).
Sobre o desenvolvimento histórico do movimento da Defesa Social, em especial as
formulações teóricas de Prins, Liszt e Gramatica, conferir R EO LO N , A Violência do
Discuno de Defesa Social e a Política Criminal <k> Inimigo, pp. 33-52.
3 .5 . Modelos de Prevenção Especial Positiva: Critica

3.5.1. A partir da década de 1970, um a pluralidade de discursos


sobre a pena e as formas de punição, em particular, e sobre o poder puni­
tivo, em geral, em sua maioria identificados com a criminologia crítica,
deflagrou processo de deslegitimação do program a correcionalista. A
crítica ao co rrecio n alism o está inserida em uma crítica ampla direcio­
nada ã estrutura do paradigma etiológico, seus discursos configuradores e
suas práticas decorrentes. A compreensão das disfunções do sistema penal
—ausência de harmonia entre os discursos oficiais de legitimação e a ope-
ratividade das agências de punitividade —desdobrou um a série de inter­
pretações deslegitimadoras do projeto de pena corretiva.
O conjunto de abordagens críticas pode ser apresentado em dois
planos: ponto de vista jurídico-norm ativo, relacionado aos fundamentos da
prevenção especial positiva e ã inadequação dos seus postulados na estru­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

tura do direito penal de garantias moldados pela m aioria das Constituições


nas democracias ocidentais; segundo, criminológico, acerca da incapacida­
de de o modelo correcionalista e de a instituição carcerária preservarem
m inim am ente os direitos humanos dos condenados e cum prirem a finali­
dade ressocializadora.
D entre as inúmeras virtudes dos discursos derivados da criminologia
crítica, uma das mais significativas foi exatamente a de dar visibilidade às
formas pelas quais as doutrinas de prevenção especial positiva legitimaram
inúmeras práticas autoritárias no interior das instituições totais. Em linhas
gerais, a crim inologia crítica não apenas demonstrou a total incapacidade
de as instituições punitivas preservarem m inim am ente os direitos das pes­
soas encarceradas, com o revelou as absolutas insuficiência e inaptidão de
as práticas correcionalistas atingirem os objetivos correcionalistas (resso-
cializadores) projetados pelo welfarismo penal. N ote-se que o processo de
desconstrução do m ito ressocializador foi de tal forma agudo e preciso que
o diagnóstico sobre suas disfunções, m orm ente a partir dos anos 1980,
passou a ser compartilhado inclusive pelas agências responsáveis pelo con­
trole punitivo.
Conforme visto anteriormente, na tradição crim inológica crítica o
texto de referência na análise das instituições prisionais é Pena e Estrutura
Soáal (1939), de Georg Rusche e O tto Kirchheimer. Os autores, após
identificarem no sistema mercantilista produzido e elaborado pelo Ilum i-
nismo a funcionalidade do carcerário para neutralizar os considerados
indesejáveis, apontam sua virtude na regulação do mercado de trabalho
nas sociedades capitalistas e na contenção dos dissidentes políticos40. O
trabalho de Rusche e Kirchheimer sustentará a perspectiva de Foucault em
Vigiar e Punir (1975)41, criando condições de possibilidade de avanço da
crítica criminológica às demais instituições do controle social.
Em paralelo ã discussão inaugurada por R usche e Kirchheimer em
relação ã instituição carcerária, E rvingG o^m anpublica, no início dos anos
1960, o referencial estudo Manicômios, Prisões e Conventos (1961). A obra de
Goffman agrega ao cárcere o asilo manicomial, possibilitando um a com ­
preensão global do funcionamento das instituições correcionalistas, seja
relativamente aos seus cerimoniais (ritos) deteriorantes, seja no que tange
ao discurso normalizador e moralizador que atinge não apenas os internos,
mas todos os demais membros do corpo de atores que habitam o local de
internação ( s t ^ institucional). N o ano anterior ã publicação de Goffman,
discussão semelhante é proposta por Thom as Szasz (O M ito da Doença
M ental, 1960), no texto que inaugura a série de obras do antipsiquiatra
sobre os processos de construção artificial dos conceitos de doença e saúde
mental e os efeitos perversos da psiquiatrização do delito.
Conforme lembram Zaffaroni e Batista, os estudos realizados pelas
ciências sociais, em sua maioria a partir de observações empíricas do fun­
cionamento do sistema punitivo, demonstraram os efeitos deteriorantes e
mortificadores da prisionalização, notadamente o da fixação de papéis que
induzem desempenhos de acordo com estereótipos que ressignificam a
identidade criminosa e retroalim entam a violência. Concluem os autores
que é de conhecim ento geral “(...) que a prisão compartilha as características
das instituições totais ou de seqüestro e a literatura aponta unanimemente seu efeito
deteriorante, irreversível a longo prazo”, feto que torna “ insustentável a pretensão
de melhorar mediante um poder que impõe a assunção de papéis conflitivos e que
o sfix a através de uma instituição deteriorante, na qual durante prolongado tempo

40 RUSCHE e K IR CH H EIM ER , Punição e Estrutura Social, p. 100.


Não obstante a relação entre a prisão e o sistema econômico, Rusche e Kirchheimer
analisam o caráter dissuasivo e os usos políticos das sanções carcerárias, sobretudo sua
integração com os regimes fascistas (RUSCHE e K IR CH H EIM ER , Punição e Estrutura
Social, pp. 182-272).
41 Foucault, diferentemente do seu estilo usual, reconhece explicitamente a influência de
Rusche e Kirchheimer na construção da tese sobre as instituições prisionais (FOU­
CAULT, Vigiar e Punir, pp. 50-52).
tofa a respectiva população é treinada reciprocamente em meio ao contínuo reclamo
desses papéis”42.

3.5.2. Do p o n to de vista em pírico , é possível perceber que, no


projeto criminológico popularizado pela estrutura penal-welfare, a lógica de
intervenção correcionalista se instrumentaliza por meio de três indicadores:
(a) a classificação dos delinqüentes; (b) a medição da periculosidade; e (c)
o grau de ressocialização.
A perspectiva de ser o delinqüente um inadaptado, um organismo
disfuncional no interior de uma sociedade harmônica e consensual, impõe
que a resposta do Estado ã transgressão deva ter função eminentemente
corretiva. A possibilidade de correção inicia-se com uma definição cien­
tífica dos critérios de classificação dos criminosos (tipologias delinquen-
ciais). Três indicadores proporcionam a categorização do delinqüente:
características físicas e psíquicas, propensão ao delito (periculosidade) e
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

gravidade do crime cometido.


A criação das tipologias delinquenciais perm itiria reduzir a comple­
xidade dos problemas individuais, de forma a criar códigos gerais de in­
terpretação na investigação criminológica, sobretudo para a reconstrução
da história de vida por meio do estudo empírico do condenado (método
experimental). A classificação (individualização) representa o prim eiro
passo na anamnese do criminoso e perm ite ao crim inólogo um a aproxi­
mação do objeto de investigação (condenado) com as tipologias (estereó­
tipos criminais). Posteriormente, o trabalho é densificado nos laudos e
pareceres criminológicos, instrumentos que demarcam o grau de pericu­
losidade do delinqüente. Individualizado cientificamente segundo a sua
patologia e definida a extensão da potência delitiva, a intervenção penal
(meio) se projeta sobre o condenado (objeto) com o terapêutica reconstru-
tora (fim).
82 A individualização científica do criminoso é uma etapa fundam en­
tal para a definição do projeto correcional. A análise reconstrutiva da vida
do condenado é a diretriz central para a graduação da periculosidade, pois,
conforme aponta Benedicto de Souza, ao descrever a metodologia de tra­
balho da criminologia ortodoxa, “frente ao diagnóstico de suas condições atuais,
se obtém um prognóstico de sua situação futura, traduzida na prática provável de um

iz ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I , p. 126.


crime’*3. O conceito de periculosidade, portanto, “(...) se fu n da no ju ízo de
que o indivíduo, face ao seu d&ajustamento social, tem probabilidade de vir a pra-
titór ou tom ar a cometer um ilícito penal”44.
O corre que a crítica criminológica, notadamente a partir dos estu­
dos de Goffinan e de Foucault, demonstrou ser o conceito periculosidade
caracterizado por uma profunda anemia significativa, ou seja, trata-se de
uma categoria vazia e isenta de conteúdo cientificamente válido, pois ca­
rente de qualquer possibilidade empírica de (a) demonstração e, sobretudo,
de (b) refutação45. Entretanto, no interior do modelo correcionalista, a
categoria periculosidade adquiriu uma alta funcionalidade na resolução dos
problemas apresentados na execução da pena, exatam ente em razão desta
porosidade. Isto porque a maleabilidade conceituai perm ite vincular qual­
quer disfuncionalidade do condenado — nos âmbitos orgânico, afetivo,
familiar ou disciplinar —ã possibilidade de prática de futuros delitos, situação
que cria uma ferramenta ótima de controle (carcerário) da individualidade.
Assim, apesar de os critérios de classificação e d e o conceito de pe­
riculosidade serem elementos isentos de qualquer objetividade fática,
tornaram-se, ao longo do século passado, as principais regras de interpre­
tação e de resolução de problemas no interior das instituições punitivas,
orientando as decisões judiciais e administrativas, tanto para definir os
critérios de ingresso quanto para determ inar sua permanência.
Todavia, a ausência de verificabilidade (dados objetivos) dos instru­
mentos de análise utilizados pela criminologia ortodoxa perm itiu ã crítica
identificar no conteúdo dos laudos classificatórios e de aferição de periculo­
sidade interpretações moralizadoras sobre a personalidade e o estilo de vida
dos condenados. Conforme demonstrado de forma exaustiva pela literatura
criminológica a partir dos trabalhos de Foucault e Goffman, o padrão das
técnicas de avaliação em sede de execução penal provoca um a abertura do

‘3 SOUZA, A Influência da Escola Positiva no Direito Penal Brasileiro, p. 79.


“ SOUZA, A Influência da Escola Positiva no Direito Penal Brasileiro, p. 78.
‘5 Ao responder à indagação sobre o motivo de sua crítica ã criminologia ortodoxa ser tão
intensa e radical, Foucault afirma que o discurso criminológico, exposto em laudos e
pareceres, "não têm pê nem cabeça (...). Tem-se a impressão — prossegue —de que o discurso da
criminologia possui uma tal utilidade, de que ê tão fortemente exigido e tornado necessário pelo fu n ­
cionamento do sistema, que não tem nem mesmo necessidade de se justificar teoricamente, ou mesmo
simplesmente ter uma werência ou uma estrutura. Ele ê inteiramente utilitário” (FOUCAULT,
Sobre a Prisão, p. 138).
sistema para o ingresso de julgamentos essencialmente morais pautados por
imagens preconcebidas (rótulos e estigmas) do sujeito crim inalizado46.
Neste aspecto, Hoenish, seguindo as lições de Foucault47, percebe
que a técnica de reconstituição da vida pregressa, primeira etapa na elaboração
das perícias criminológicas, via de regra apenas confirma ou reforça o
rótulo de criminoso anteriormente atribuído (self-fiulfilling profecy), pois “a
elaboração dos exames psiquiátricos obedece a um determinismo causai onde o ‘no-
sólogo’ não só descreve a doença/delito do paáente/preso, mas também prescreve a
sua condutafiitura ’*8. E a aferição de periculosidade, encoberta pela im uni­
dade (neutralidade) do discurso científico49, transforma a técnica crim i­
nológica em um exercício de projeção —“a noção de periculosidade está indis-
sociavelmente ligada a um certo exerdáo defuturologia pseudamente científico”*0.

46 Segundo Vera Malaguti Batista, “estes quadros técnicos, que entraram no sistema para 'huma­
nizá-lo’, revelam em seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobn as sentenças a serem
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

proferidas) conteúdos moralistas, s^regadores e racistas, cangados daquele olhar lomhrosiano e darwi-
nista social erigido na virada do século X IX e tão presente até hoje nos sistemas de controle social”
(BATISTA, O Proclamado e o Escondido, p. 77).
47 Foucault é preciso ao demonstrar como "o exame [criminológico] permite passar do ato à
conduta, do delito à maneira de ser, e de fazer a maneira de ser se mostrar como não sendo outra
coisa que o prfyrio delito, mas, de certo modo, no estado de generalidade na anduta de um indivíduo.
Em segundo lugar, essa série de noções tem porfunção deslocar o nível de realidade da infrafao, pois
o que essas condutas infringem não é a lei mas, porque nenhuma lei impede ninguém de ser desequi­
librado afetivamente, nenhuma lei impede ninguém de ter distúrbios emocionais, nenhuma lei impe­
de ninguém de ter um orgulho pervertido, e não há medidas legais contra o erostratismo. Mas se não
é a lei que essas condutas infringem, é o que? Aquilo contra o que elas apaream, aquilo em nlação
ao que elas apancem, é um nível de desenvolvimento ótimo: 'imaturidade psialógia’, ‘personalida-
<k poua estruturada’, ‘profundo desequilíbrio’. Ê igualmente um critério de realidade: 'má apreciação
do real’. São qualifrafaes morais, isto é, a modéstia, a fidelidade. São também regras éticas. Em
suma, o exame psiquiátrico permite constituir um dupk psicológico-ético do delito. Isto é, deslegalizar
a infração tal comoformulada pelo código, para fazer aparearpor trás dela seu duplo, que am ela se
parece como um irmão, ou uma irmã, não sei, e que fa z dela não mais, justamente, uma infração no
sentido legal do termo, mas uma inegularidade em reltqão a certo número de regras que podem ser
fisiológias, psicológicas, morais, etc.” (FOUCAULT, Os Anormais, p. 20).
48 HOENISH, Divã de Procusto, p. 110.
49 Maria Palma W olfflembra que "esta discricionariedade dos profissionais embasada em critérios,
que não são tão neutros e científicos como pretendem ser, fa z a m que, muitas vezes, o parecer técni­
co ajigure-se quase como um exerckio <fe suposições, defuturologia. Isto, a partir de um discurso que
já está dado como única wrdade, bastando ajustá-lo a cada caso avaliado” (WOLFF, Antologias de
Vida e Histórias na Prisão, p. 93).
40 R A U TER , M aniâmios, Prisões, Reformas e Neoliberalismo, p. 74.
A gramática (estética discursiva) dos diagnósticos (class^cação) e
dos prognósticos delitivos acabou por universalizar a imagem (estética
fisiológica) de um a espécie de criminoso ideal, no qual a periculosidade
identificaria o resquício de barbárie daquele hom em selvagem (homo crimi­
nalis) que não conseguiu alcançar o status civilizado51. Todavia, apesar da

51 Inegavelmente o positivismo criminológico cria uma estética do crime, não apenas no


plano discursivo, mas na imagem de homem que projeta como criminoso. O criminoso
será o inverso do civilizado. A imagem do homem burguês do século XVIII representa,
no imaginário ocidental, o ápice da cultura romântica, na qual a beleza emerge como um
valor análogo á verdade, àjustiça e á bondade. Assim, "neste imaginário, ao polido homem da
cultura é mntraposto seu outro: o báúaro. A negado do convívio amistoso e a ruptura com as regras
e os limites impostos pela civilização caracterizam os atos daquele que, por atavismo ético ou estético,
não ultrapassou a infância da humanidade e, em conseqüência, não atingiu a segunda natureza, a
natureza domada pelas disciplinas da cultura. A representação do bárbaro como estetiamentefeio e
moralmente conompido, como perwno de^rovido defreios inibitários cuijo habitat é estabelecido nas
margens da cultura, solidifim a imagem do civilizado como virtuoso freqüentador do cotidiano urbano,
de suas instituições e dos locois de socialização” (CARVALHO, A Hipótese do Fim da Violênaa
no Discurso da Modernidade Penal, p. 167).
Spencer e Darwin fornecerão importantes recursos teóricos para esta clivagem firn-
damental da criminologia clássica: criminoso bárbaro versus cidadão civilizado.
O estigma do bárbaro irá identificar, portanto, aquela minoria de pessoas que não
ultrapassou as necessárias etapas de evolução. Sem transpor definitivamente a primeira
natureza, estão condicionadas a romper, a qualquer momento, as regras do convívio pací­
fico, pois são estrangeiros e não fezem parte da cultura. N a criminologia de Garófalo, seja
do ponto de vista ético —"há indivíduos moralmente inferiores, assim como os há e houw sempK
superiores (...)” (GARÓFALO, Criminologia, p. 14) —ou desde perspectiva estética —"se é
certo que o senso moral é um produto da evol^ão, natural admitir que ele seja menos apetfeiçoado
nas classes que r^Ksentam um grau inferior de desenvolvimentofísico” (GARÓFALO, Crimino­
logia, p. 16) —, o homo criminalis, perdido no abismo do atraso antropo-psicológico, estará
eternamente vinculado às noções de anomalia moral, fisiológica e sexual. Nas palavras de
Ferri, “o criminoso nato pode ser um assassino tranquilamente selvagem, um d^ravado violenta­
mente bmtal, um refinado obsceno por anta de uma pewenão sexual proveniente de uma defeituosa
organizaçào fisica. Ele pode também ser um ladrão ou falsário. A repugnância em apropriar-se do
bem alheio, esse instinto lentamente desenvolvido pela vida social na coletividade, falta-lhe em abso­
luto (...). Tive ocasião de demonstrar, no estudo psicológico de um homicida nato, que a aparente
regularidade de sua inteligência e de seus sentimentos pode enmbrir tão completamente sua profunda
insensibilidaik moral, que seu verdadeiro caráter escapa àqueles que ignoram a psicologia experimen­
tal” (FERRI, Os Criminosos na Arte e na Literatura, p. 32).
Nas palavras de David Sánchez Rubio, “(...) a aparência branca se converteu no molde, o
referencial e a sacrossanta maneira do ser humano modemo capitalista. N ão se trata apenas de uma
brancura racial, mas ético, cultural e civilizatória”. Assim, a respeito dos critérios de inversão
denúncia realizada pela crim inologia crítica de que os laudos crim inoló-
gicos, sobretudo as técnicas de averiguação de periculosidade, sustentam­
-se em valorações porosas e em juízos essencialmente morais, esta ferra­
menta correcionalista acabou sendo universalizada como o procedimento
científico válido em sede de execução penal, notadamente em razão da alta
funcionalidade nos processos de seletividade criminalizadora52.

3.5.3. Do p o n to de v ista te ó ric o -n o rm a tiv o , as críticas ã ilegi­


timidade do modelo de prevenção especial positiva não são menos con­
tundentes que aquelas advindas da criminologia, sobretudo em razão de o
correcionalismo cancelar a fronteira entre as sanções aplicadas para os
imputáveis (penas) e as terapêuticas direcionadas aos inimputáveis (medi­
das). A pena, ao converter-se gradualmente em uma forma peculiar de
medida de segurança, produz dois efeitos na estrutura normativa: primeiro,
no plano do direito material, institui modelos antisseculares de direito penal
de autor; segundo, na perspectiva do direito processual, fomenta práticas in-
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

quisitórias com a redução progressiva do controle jurisdicional da deter­


minação e da execução das sanções penais.
A principal característica dos sistemas penais de autor é a ruptura
com o princípio da legalidade, porque os processos de criminalização e de

ideológica e das formas de valorização de alguns direitos humanos em detrimento de


outros, “a branquidão passou a ser o próprio conceito de direitos humanos e seu princípio de hierar­
quização” (SÁNCHEZ RUBIO, Invenión Ideológica y Deredo Penal Minimo, Decolonial,
Intermltural y Antihegemónico, p. 149).
52 Embora a análise do conteúdo dos laudos criminológicos ocorra em momento posterior
(etapa de execução da pena), é importante destacar que o tipo de fancionalidade que o
laudo adquire na execução é aquele relativo ao amparo e à legitimação ‘científica’ da
decisão judicial. Este papel de legitimação das decisões judiciais exercido pelos laudos
criminológicos foi percebido com precisão por Foucault. Segundo o autor, a utilidade
86 seria aquela de fornecer argumentos para a decisão, permitindo aos magistrados uma ‘boa-
-consciência’ ao julgar e, em conseqüência, isentar-se da responsabilidade pelo ato —“o
ju iz de nossos dias — magistrado ou jurado —fa z outra coisa, bem diferente de 'julgar'. Ele não julga
mais sozinho. A o longo do proasso penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instân­
cias anexas. Pequenas justiças e juizes paralelos se multipliam em torno do julgamento principal:
peritos psiquiátricos e psicólo^s, magistrados da aplicação da pena, eduadores, famcionàrios da ad­
ministração penitenciária fracionam o poder legal de punir; dir-se-á que nenhum deles partilha Kal-
mente do direito de julgar; que uns, d^ois das sentenps, só têm o direito de fazer executar a pena
fixada pelo tribunal, e principalmente que outros — os peritos — não intervém antes da sentença para
fazer um julgamento, mas para eschrecera decisão dos jutees” (FOUCAULT, Vigiar e Punir, p. 24).
punição não são direcionados às conseqüências de um feto previamente
proibido como lesão de um bem jurídico tutelado, mas são voltados ã con­
versão da identidade e ao julgam ento moral do criminoso. N ão por outra
razão, neste m odelo repressivo proliferam os juízos sobre a personalidade
do réu e do condenado, tanto na forma de decisões judiciais (sentenças con-
denatórias) quanto de pareceres técnicos (laudos e exames criminológicos).
A crise gerada no sistema de legalidade decorre do feto de que des­
de o postulado da secularização que orienta os modelos de direito penal
de garantias, “a interioridade de um homem — o seu caráter, a sua moralidade, os
seus precedentes penais, as suas inclinações psicofisicas — não deve interessar ao di­
reito penal senão para daí induzir o grau de culpabilidade das suas ações criminosas.
Compreende-se que num sistema garantista assim configurado, não encontrem espa­
ço nem a categoria periculosidade, nem outras tipologias subjetivas ou de autor ela­
boradas pela criminologia antropológica e p e h criminologia eticista, como capacidade
criminal, reincidência, tendência a delinquir, imoralidade e semelhantes”53.
Inegavelmente um dos principais efeitos da laicização do direito
penal foi blindar a liberdade interior do acusado e resguardar sua persona­
lidade de qualquer tipo de intervenção punitiva. Exatamente por esta razão
a resposta penal é direcionada ao feto proibido (malum quia prohibitum), e
não ã conversão moral do seu autor (malum quiapeccatum). O princípio de
separação entre direito e moral institui a autonomia da consciência indi­
vidual e impede que o sistema de proibições penais converta-se em uma
pauta ética de julgamento.
Segundo Ferrajoli, o julgam ento moral ou a diminuição da liberda­
de interior do acusado ou do detento “ (...) viola o primeiro princípio do libe­
ralismo: o direito de &da um ser e permanecer ele mesmo; e, portanto, a negação ao
Estado de indagar sobre a personalidade psíquica do cidadão e de transformá-lo
moralmente através de medidas de premiação ou de punição por aquilo que ele é e
não por aquilo que ele fe z”54. Em sentido similar, ao analisar a incorporação
das teorias de prevenção especial positiva no discurso jurídico-penal,
Fabrizio R am acci sustenta que “a exasperação da ideia de correção, {nsita na
doutrina de emenda, é bloqueada pela proibição constitucional de tratamento con­
trário ao senso de humanidade, tanto nas form as de violência à pessoa, quanto nas
de violência à personalidade (v.g. lavagem cerebral) porque contrastante com a

13 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 505.


14 FERRAJOLI, Quattro Proposte di Ri/erma delle Pene, p. 46.
dignidade humana e com a liberdade de desenvolver e inclusive m anter a própria
personalidade”6".

3.5.4. Outrossim, a adesão formal dos sistemas jurídicos ao correcio­


nalismo provoca uma potencialização da lógica processual inquisitória.
Ferrajoli, ao descrever as espécies de valoração judicial no processo
penal, nom ina dois modelos inquisitoriais: os substancialistas e os isentos
de culpabilidade. Apesar de as doutrinas correcionalistas se aproximarem
do tipo ideal substancialista, ambos os modelos caracterizam-se por “pres-
ríndir da lesão de bens jurídicos concretos, reprimindo antecipadamente a sua sim pltt
e abstrata possibilidade de perigo ou penalizando puramente o desvalor social ou
político da ação, além de qualquer função penal de tutela”'’6. O autor sustenta,
portanto, que estes discursos que instituem procedimentos de subjetivação
do delito e da pena com prometem não apenas a legalidade em sentido
estrito, no âmbito do direito penal material, mas sobretudo a jurisdiciona-
lidade na órbita processual, em razão de submeter o juízo “a critérios arbi­
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

trários de avaliação da anormalidade ou da periculosidade do réu, [situação que]


inevitavelmentefrustra o conjunto das garantias processuais”57.
Neste sentido, a crítica proveniente da criminologia (argumentos
empíricos) e do direito penal (argumentos normativos) converge em apon­
tar a arbitrariedade dos juízos sobre a identidade dos réus ou dos condena­
dos, seja na forma de sentença judicial ou na de perícia técnica.
Conform e destacado, estas valorações adquirem natureza substan­
cialista ou potestativa em razão de o seu conteúdo estar desvinculado de
qualquer possibilidade de demonstração fôtica e, portanto, de válidos pa­
râmetros processuais de controle58. As valorações judiciais sobre a perso­
nalidade do réu ou os laudos técnicos sobre a periculosidade do condena­
do estabelecem um a situação processual de inverificabilidade empírica e

88 55 RAM ACCI, Corso di Diritto Penale, p. 133.


Em sentido similar, RIVACOBA Y RIVACOBA, Funcián y Aplicacián de la Pena,
pp. 50-52.
56 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 77.
51 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 77.
58 Segundo Ferrajoli, valorações probatórias desta natureza "determinam um poder em bran­
co na abeça dos inquisidotvs [juizes e crim indogos], defato ilimitado e incontrolável, completa­
mente incompatível com o modelo garantista de jurisdição penal” (FERRAJOLI, Crisis dei Siste­
ma Politico yJurisdicción, p. 119).
de irrefutabilidade argum entativa, desvinculando o juízo da ideia de
contraditório, pedra angular do processo penal democrático. Se a efetiva­
ção do contraditório implica exatamente a possibilidade de experimentação,
demonstração e refutação dos elementos de prova trazidos ao processo (de
conhecim ento ou de execução), o que perm ite que a decisão judicial seja
fundada em juízos verdadeiros ou falsos demonstráveis e passíveis de
contra-argumentação, a subjetivação da decisão abre espaços ao decisio-
nismo judicial.
Conforme se percebe, os institutos processuais que operacionalizam
o sistema penal no correcionalismo, fundamentalmente aqueles relativos
aos critérios de aplicação e de execução da pena, instigam a formação de
uma estrutura lingüística (gramática penal) sedimentada em categorias
abertas que perm item que sejam recorrentem ente ultrapassados os limites
da legalidade. Neste cenário, as metarregras de interpretação baseadas nos
estereótipos criminais se constituem como critérios de decisão paralelos às
regras instituídas. E não esporadicamente esta série de códigos paralelos
(second code) constitui-se como o principal parâm etro de decisão para o
julgam ento da biografia moral do acusado. Assim, estes mecanismos ex-
traoficiais que atuam invisivelmente “passam a integrar objetivamente o con­
ju n to de metarregras e a interferir na ação dos operadores jurídicos, tanto na produ­
ção dogmática, como na aplicado das normas, m ultando daí uma influência maior
do que aquela prevista no Direito Positivo”1®.

3.5.5. Em síntese, é possível dizer que a sedimentação do sistema


punitivo correcionalista defiagra efeitos au to ritário s nas distintas es­
feras de n o rm ativ id ad e.
D o ponto de vista do direito penal material, a incorporação da pers­
pectiva de prevenção especial positiva rom pe com o postulado da secula­
rização, instituindo sistemas penais de autor que “ inspiraram, no melhor dos
casos, modelos penais de legalidade atenuada, isto é, caracterizados por figuras de
crime eUstiMs e indeterminadas por espaços de fato, se não de direito, abertos à
analogia in malam partem, abrindo caminho, nos piores casos, às muito mais
nefastas doutrinas antiformalistas que constituíram a base teórica dos ordenamentos
penais totalitários”60.

i5 BISSOLI Filho, Estigmas da Criminalizado, p. 109.


60 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 372.
Na esfera do direito processual penal, os princípios do correcionalismo
obstaculizam a consolidação de práticas acusatórias orientadas pelo prin­
cípio do devido processo legal, visto im pedirem a efetividade dos instru­
mentos de limitação do arbítriojudicial e do controle jurisdicional dos atos
administrativos. A recorrência de juízos baseados em categorias abertas
como periculosidade e personalidade delitiva amplia de forma superlativa
os níveis de decisionismo judicial, situação que legitima práticas caracte­
rísticas de sistemas inquisitórios.
N o campo da execução das penas, a gramática correcionalista molda
um saber criminológico causal-determinista no qual a lógica psiquiátrica
se constitui como discurso (moral) de legitimação que coloniza as práticas
dos atores do sistema punitivo, subordinando m aterialmente as decisões
judiciais. Igualmente, apesar da ausência de acordo sobre o conteúdo das
metas de ressocialização61, o sistema correcionalista prolifera instrumentos
de controle moral em afronta ao paradigma constitucional de tutela dos
direitos fundamentais.
P E N A L ! R A S IL E IR O
NO DIREITO
DE SEGURANÇA
E MEDIDAS
PENAS

90

61 "O s problemas começam mm a falta de acordo sobre o conteúdo da meta 'socialização' ou 'resso­
cialização’, acordo que tampourn e fácil que se possa conseguir em curto prazo” (HASSEMER,
Fundamentos dei Dencho Penal, p. 355).
4
4

4 - MODELOS CONTEMPORÂNEOS DE JUSTIFICAÇÃO

ri

4.1 . Revitalização das Grandes Narrativas nos Discursos


Contemporâneos de Justificação da Pena

4.1.1. C om a crise do discurso correcionalista que caracterizou a


segunda modernidade penal, o mainstream das ciências criminais —term o
utilizado para identificar o pensamento dom inante que define os limites
e os horizontes daquilo que é possível (lícito) investigar no campo de saber1

1 Entende-se que o termo mainstream criminológico fornece maiores possibilidades de


compreensão do que as ideias de comunidade cientifica e de ciência normal propostas por
Thomas Khun. Ao entender inexistente ‘a’ ciência como atividade homogênea de deter­
minada forma de produzir conhecimento, o autor considera que a realização, a produção
e a reprodução da ciência estão sempre resttitas ao consenso ou mnjunto de compromi&os teóricos
básicos existentes numa comunidade científica. Haveria ciência apenas quando um pes­
quisador utiliza os instrumentos oferecidos pelo modelo vigente, compartilhando objeto,
métodos e fins: “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham.
E, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que compartilham de um paradigma
(...). Um paradigma got^ma, em primeiro lugar, não um objeto deestudo, mas umgrupo de prati­
cantes da ciência" (KHU N, A Estrutura das Revoluções Científicas, pp. 219-224).
Consolidado, o paradigma passa a ser irrefietidamente repassado aos demais pesqui­
sadores por meio de específicos modos de produção do saber. Essa ciência normal acaba por
determinar o que é lícito ou ilícito, o que é ou não admissível em determinada disciplina,
dirigindo e impondo os resultados finais, bem como constituindo as formas e os campos
^ssíveis do conhuimento (FOUCAULT, Vigiar e Punir, p. 30). Todavia, a partir do momen­
to em que a comunidade científica identifica problemas nos objetos estudados ou que as
suas respostas não correspondem às expectativas do grupo, emerge a crise paradigmátia.
—procurou ressignificar a pena desde as mais distintas hipóteses. O pro­
cesso de relegitimação fez-se necessário inclusive em decorrência da pro­
jeção, no universo acadêmico, das diversas tendências do pensamento
abolicionista2.
Logicamente que os discursos que se moldaram ao longo das últimas
três décadas, ao tentarem conceber novas formas teóricas dejustificaçâo
das penas, seguiram o padrão e a tradição iluminista das grandes narrativas
que caracterizam a primeira e a segunda modernidade penal. Em grande
parte advindos da filosofia, do direito e das ciências sociais, as narrativas
de legitimação procuram , em foce da crise de leg itim id ad e das penas,
readequar suas análises e encontrar novas fórmulas explicativas.
Para além das opções ecléticas (teorias unificadoras da pena) que
potencializam distintas teorias das penas a partir da ideia de polifunciona-
lidade, as ciências criminais atuais se esforçam para oferecer novos discur­
sos de justificação. Todavia, as principais hipóteses contemporâneas de
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

justificação são baseadas na renovação ou readequação dos antigos discur­


sos, como, p. ex., as tendências neorretributivistas da teoria do merecimento
(Tonry, Hirsch e Ashworth), a perspectiva neoutilitária da teoria garantista
(Ferrajoli), os modelos preventivos especiais da teoria neocorrecionalista

Haveria crise paradigmática neste momento intermediário em que o paradigma vigente


não consensualiza mais a comunidade cientifica e o novo modelo ainda não está plena­
mente consolidado. A identificação dos elementos externos não absorvidos ou internos
desconfortantes é fruto de verdadeira atividade subversiva, marginal e sediciosa desde a
perspectiva da ciência normal, configurando uma ciência extraordinária, alternativa.
O objetivo da ciência extraordinária é impor novos limites, métodos e fins à ciência,
instaurando-se como o novo paradigma. Este processo é definido por Khun como revo­
lução cientifica. O efeito da crise não é, porém, a necessária substituição de um paradigma
por outro. Reordenações e relegitimações ocorrem com frequência.
O problema da proposta de Khun é induzir uma ideia de desenvolvimento linear e
progressivo das ciências, insuficiente para pensar as ciências na contemporaneidade —so­
bre o tema, importantes as reflexões de SOUSA SANTOS, Um Discurso sobw as Ciências,
pp. 36-58; e, em sentido similar, CARVALHO, Como (não) sefa z um Trabalho de Conclusão,
pp. 8-12.
Neste cenário, pensar o corpo teórico (pesquisadores oficiais) que define os parâmetros
científicos a partir da categoria mainslKam parece ser menos equivocado. Sobre o tema,
importantes as reflexões de SOUSA SANTOS, Um Discurso sobw as Ciências, pp. 36-58.
2 Sobre o movimento abolicionista e sua pluralidade de discursos, conferir CARVALHO,
Antimanual de Criminologia, pp. 125-132.
(Garland) e as teses incapacitadoras e dissuasórias da teoriafuncionalista-sistê-
mitó Qakobs) e das teorias atuariais do cálculo racional (W ilson e Keeling).
Importante frisar, contudo, que na sua integralidade estas teorias
seguem o padrão das metanarrativas, ou seja, em maior ou m enor grau de
complexidade optam pela criação de discursos altamente abstratos de jus­
tificação dos quais deriva cadeia de princípios e de pressupostos delinea-
dora da intervenção punitiva em todos os níveis do direito penal. Buscam,
prioritariam ente, a criação de sistemas universais de legitimação dotados
de harm onia e de completude (ausência de contradições ou de lacunas).
Em regra são discursos que embora reconheçam a crise do sistema puniti­
vo (e, inclusive, das ciências criminais contemporâneas) são reticentes ou
negam a possibilidade de abdicar das fórmulas tradicionais de resposta ao
crim e, ã crim inalidade e ã pena.
4.1.2. Questão introdutória relevante é a da diferença dos processos
de desenvolvimento, de incorporação político-crim inal e de crítica nas
distintas tradições jurídico-penais (civil law e common law). E mbora se saiba
que no campo teórico inexiste processo linear de substituição de modelos,
ocorrendo na maioria dos casos justaposição e/ou coexistência de discursos
—circunstância que na atualidade caracteriza a fragmentação da crim ino­
logia, p. ex. —, no plano político-crim inal é possível identificar tendências
que se estabelecem como preponderantes e que definem diferentes rumos
de incidência do sistema punitivo.
Assim, nos p a í s e s d a com m on la w , em paralelo ã desconstrução
teórica proveniente do pensamento criminológico crítico, é possível per­
ceber que a primeira mudança político-crim inal no sistema penal-welfare
será proposta pelas teorias do m erecimento, cuja incorporação trouxe
significativas alterações nas práticas das agências punitivas, sobretudo com
a formação do sistema de penas determinadas (guideline sentendng).
N o entanto, apesar da institucionalização do novo sistema moldado
pela teoria do justo merecimento, a partir da década de 1980 emergem
inúmeros discursos punitivos de corte autoritário cujas premissas serão
rapidamente consumidas pelo mainstream político-crim inal — p. ex., as
teorias atuariais de incapacitação, as teorias do agir cotidiano e as teorias
neurocriminológicas. Conforme destacam Blomberg e Lucken, estas pers­
pectivas criminológicas neoconservadoras, ao propiciarem releituras do
positivismo ortodoxo moralista e biológico, fornecem certificação acadêmi­
ca aos projetos de lei e ordem e relegitimam teorias punitivas retributivis-
tas, dissuasórias e incapacitadoras3. Não por outro motivo é que se assiste
nas três últimas décadas, como efeito do consumo político-crim inal destas
teorias, ao vertiginoso aumento dos índices de encarceramento mundiais.
Detalhe fundamental a ser notado, portanto, é o da coexistência,
nos países da common law, destas distintas perspectivas prático-teóricas. Além
de a edificação correcionalista não ser absolutamente abandonada, a polí­
tica de penas determinadas segue, na atualidade, orientando os juízos
criminais na determinação da pena e, de form a agudizada, o pensamento
atuarial incrementa alterações legislativas que potencializam o punitivismo4.

4.1.3. Nos p a í s e s d a civil law são inúmeras as variáveis que tornam


distintos os processos de alteração das políticas punitivas. N o entanto, em
foce da capacidade de circulação do conteúdo das políticas criminais nos
países de tradição rom ano-germ ãnica, esta rica pluralidade será homogenei­
zada, sendo consciente a redução do objeto de análise e os riscos decorren­
tes desta opção. O objetivo desta abordagem é que se possa, mesmo que
*4*5 FU'. DlQU Dí éM lW j, NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

de forma parcial, apresentar uma leitura panorâmica das alterações do


pensamento penológico e dos seus efeitos no campo da punitividade.
A principal característica que diferencia a forma de determinação da
pena (aplicação e execução) nas tradições da common law e da civil law é a de
que os sistemas romano-germãnicos estão estruturados sob o império do
princípio da legalidade penal. O apego à legalidade formal impediu a dis—
cricionariedade no processo de individualização que conduziu os sistemas
jurídicos anglo-saxões correcionalistas ao extrem o da pena indeterminada.
Na maioria dos sistemas rom ano-germ ãnicos, a individualização
inicia-se no procedim ento legislativo, com a determinação de penas m í­
nimas e máximas para cada delito e com a fixação de circunstâncias gerais
e especiais de aumento e de diminuição da sanção conforme o desvalor da
conduta e do resultado. Em um segundo momento, a pena se estabelece na
esfera judicial, na qual o juiz, dentro dos parâmetros fixados previamente
pelo legislador, determina a quantidade da resposta punitiva de acordo com

3 BLOMBERG e LUCKEN, American Penobgy, p. 173.


4 Neste sentido, a declaração de princípios do Federal Sentencing Guidelines Manual de 2011,
que atualiza o Sentencing Reform Act de 1984, ao estabelecer as guias de aplicação da pena
{guidelines), aponta como finalidades da punição a dissuasão/neutralização {detenence), a
incapacitaçâo {incapacitation), ajusta retribuição ^u st punishment) e a reabilitação {rehabili-
tation) (United States Sentencing Commission, Federal Sentencing Guidelines M anual, p. 1).
a culpabilidade do réu. O terceiro m omento da individualização ocorre na
fase de execução, local em que atuam os técnicos das agências penitenciárias
(profissionais da criminologia), informando e orientando as decisõ^ judiciais
sobre progressão de regime, saídas temporárias e livramento condicional.
Neste sentido, é possível perceber algumas importantes diferenças
nos discursos da crítica criminológica ao modelo penal-wlfare. Nos sistemas
da common law a crítica central ao correcionalismo decorreu da edificação
de um sistema de penas indeterminadas m uito similar, talvez idêntico, ao
das medidas de segurança. A indeterm inação das penas gerou situações de
absoluta ausência de garantias como, p. ex., quanto ao tem po de perm a­
nência do condenado nas instituições punitivas. Nos países da rívil law, em
razão de a legalidade estabelecer o prazo máximo de duração da pena,
foram enfatizadas outras particularidades do modelo de prevenção especial,
como a incapacidade de as instituições totais alcançarem o ideal de resso­
cialização em razão da produção da despersonalização (mortificação) do
apenado e da proliferação de estereótipos delinquenciais.
Outrossim, os distintos sistemas jurídicos produzem diferenciados
cenários de reformas político-crim inais. É significativa, p. ex., a ausência
do discurso do justo m erecimento no campo acadêmico e político dos
países rom ano-germ ãnicos, feto que não impede, porém, sua aproximação
com a teoria garantista, seja nas críticas ã estrutura substancialista do cor­
recionalismo, seja nas resistências ao incremento do punitivismo.
Além disso, as reformas políticas nos países latinos nas últimas dé­
cadas do século passado determ inaram trajetórias político-crim inais pró­
prias. Na m aioria dos países ibero-am ericanos, os regimes ditatoriais
perduram durante a década de 1970 e os processos de redemocratização
que ocorrem nos anos 1980 são seguidos da promulgação de Constituições
democráticas. Com a nova perspectiva política, os direitos fundamentais
são afirmados em sua intensidade, feto que, no aspecto norm ativo, criou
algumas importantes barreiras ao punitivismo. Em inúmeras Constituições,
porém, o ideal ressocializador da pena é incorporado como princípio
fundamental, o que consolida políticas públicas de corte correcionalista no
campo da execução penal.
Por outro lado, a partir da década de 1990, o alto im pacto publici­
tário do pensamento gerencialista-atuarial e os processos de globalização
neoliberal no capitalismo periférico proporcionarão, na esfera político-
-crim inal, uma certa harmonização entre os países rom ano-germ ãnicos e
os anglo-saxões, como a proliferação da lógica punitivista e o incremento
dos índices de encarceramento. Igualmente no final do século passado são
agregados aos modelos gerencialistas as perspectivas funcionalistas sistêmi­
cas de incapacitação que, em razão do seu diálogo transversal com a dog­
mática penal, serão facilmente digeridas nas ciências criminais.
A dificuldade de apresentar um conjunto harm ônico e homogêneo
sob a denominação teorias contemporâneas da pena é, portanto, notória. Em
face da pluralidade de perspectivas, serão expostos os modelos teóricos
considerados de maior relevância e aqueles que, na esfera política, apresen­
taram maior influência. A ordem de apresentação destas teorias não é
necessariamente temporal, embora se tente seguir relativamente o percur­
so apresentado nesta explicação preliminar.

4 .2 . Teoria da Pena Merecida: Fundamentos e Crítica do


Neorretributivismo
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

4.2.1. O principal programa político-crim inal que se desdobrou da


crítica ao correcionalismo nos países anglo-saxões, provocando efetivas
alterações no sistema de administração dajustiça crim inal, foi derivado da
t e o r i a d o j u s t o m e r e c i m e n t o (justd&erU).
O modelo correcionalista, baseado no discurso da ressocialização,
havia produzido, sobretudo nos Estados Unidos, um sistema de individua­
lização baseado na pena indeterm inada. A partir da ideia da impossibili­
dade da determinação ex ante do tempo de tratamento, não caberia aos
legisladores ou aos juizes a fixação do período de internação do sujeito
condenado por atos ilícitos. Conforme visto anteriormente, o procedimen­
to de individualização científica exige do corpo clínico-crim inológico a
realização do diagnóstico do condenado de forma a estabelecer classifica­
ção conforme seus déficiu individuais e, posteriormente, acompanhar a
terapêutica, indicando o m omento em que se efetiva a ressocialização e em
que são minim izados os riscos de reincidência.
Desde a perspectiva dos direitos e das garantias individuais, o m o­
delo de pena indeterm inada proposto pelo discurso correcionalista obsta-
culiza quaisquer limites ã intervenção estatal, tanto os limites quantitativos,
por m eio do estabelecimento de tem po m áximo de pena, quanto os lim i­
tes qualitativos, com a proibição do uso de determinadas técnicas invasivas
para atingir o objetivo de reabilitação do condenado.
Destaca Garland que os métodos de tratam ento penal compulsório
geraram profunda desconfiança nas práticas punitivas, m orm ente no que
tange ao desrespeito à dignidade da pessoa humana e à liberdade de ex­
pressão do condenado. Segundo o autor, im portantes docum entos no
início dos anos 1980 destacavam “a preocupação com a autenticidade e com o
direito à diferença do ‘homem comum’, assim como o temor pelo autoritarismo po­
tencial do govem o e da ciência (...)”; Lembra, inclusive, as significativas re­
presentações literárias e cinematográficas da forma institucional de trata­
m ento por m eio da intervenção punitiva, como Laranja Mecânica (filme de
Stanley Kubrick baseado na obra hom ônim a de A nthony Burgess) e Um
Estranho no N inho (filme dirigido por Milos Forman).
D entre os principais trabalhos de crítica ao modelo correcional é
significativa a publicação de D oingjustice: T he Choice o f Punishments — The
R eport o f the C om itte fo r the Study o f Incarceration (1976), de Andrew von
Hirsch. Seu conteúdo demonstrava “(...) repúdio às leis de condenação indeter­
minada; restrições à aplicação da liberdade condicional [parole]; incentivo & sanções
fix a s e proporcionais voltadas ao delito e não ao delinqüente; definição de guias para
aplicação de penas que auxiliariam as decisões judiciais e reduziriam a disparidade
nas condenações”6.
Elena Larrauri aponta três problemas centrais que atingiram a ideo­
logia da reabilitação e a prática das sentenças indeterminadas (indetermina-
te sentencing), situação que possibilitou a emergência do discurso do justo
merecimento (just deserts) na tradição jurídica e criminológica da common
law. prim eiro, a disparidade de condenações em casos de prática de seme­
lhantes delitos; segundo, a discricionariedade dos critérios de definição do
tempo de pena (como, p. ex., a possibilidade de reincidência, a periculo­
sidade, a reinserção do condenado); e, terceiro, as crescentes demandas por
endurecim ento das penas e o custo relativamente alto das políticas de rea­
bilitação. Leciona a autora que “no fin a l década de setenta, portanto, em
decorrência deste acúmulo de circunstâncias, se produ z um movimento direcionado
para condenações determinadas em lei (determinate sentencing)”7.
Os resultados das pesquisas acadêmicas na deslegitimação do corre­
cionalismo; o aumento do nível de crítica e de insatisfação dos profissionais

5 GARLAND, The C ultua of Contml, p. 57.


6 GARLAND, The Culture of Control, p. 59.
7 LA R RA U R I, Control dei Delito y C asti^ en Estados Unidos, p. 13.
das agências de controle; e a demanda político-crim inal para definição de
regras para o cum prim ento das condenações são fatores que podem ser
apontados com o im pulsionadores do novo sistema de resposta penal.
N este cenário, a teoria do merecimento (just deserts) emerge com o discurso
viável para definição de critérios precisos, hom ogêneos e equânimes de
aplicação das sanções, baseados, fundam entalm ente, na censura pelo dano
causado.
O princípio orientador da teoria do m erecimento é o do estabele­
cimento de mecanismos de orientação (guidelines) para aplicação judicial
(sentencing) de penas proporcionais ã gravidade do crime cometido. A de­
limitação de parâmetros de proporcionalidade perm itiria criar escalas de
sanções conform e a lesão provocada pelo infrator, de forma a estabelecer
paridade quantitativa (tempo) e qualitativa (espécie) entre penas decorren­
tes de infrações de natureza semelhante. Definida antes da prática do de­
lito, a guia penológica, direcionada ao juiz, substituiria os juízos e os
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

prognósticos de reincidência elaborados pelo corpo clínico criminológico


que atuava no interior do sistema prisional.
Possível afirm ar que a teoria do m erecim ento se diferencia dos
demais discursos dejustificaçâo mais pela sua natureza pragmática do que
pelo seu conteúdo teórico, ou seja, caracteriza-se mais como um a técnica
de definição de limites de quantificação regrados pela distribuição pro­
porcional de sanções do que como teoria dejustificaçâo da legitimidade
das penas.
Segundo Hirsch, o princípio da proporcionalidade, que im põe que
as sanções sejam adequadamente severas ã gravidade das infrações, surge
como exigência de justiça ^usto m erecimento), traduzindo-se, conforme
destaca Ashworth, “no conceito-chave da teoria do merecimento ”8. Assim, con­
trariam ente ã tradição filosófica, “que se limitou à justificação geral do castigo,
ao ‘p orque’ deveria existir o castigo”, sustenta a necessidade de discutir “a rela-
98 fão entre ajustfrcação da existência do castigo com a questão de quanto Mstigo deve
receber o infrator”9.
Diferentemente do modelo correcional, ã teoria do merecimento é
imprescindível perceber o infrator como sujeito livre que realizou volun­
tariam ente o dano, isto é, como responsável pela sua conduta, como indi-

8 ASHW ORTH, Sentencing, p. 992.


5 H IR SC H , Censurar y Castigar, p. 31.
víduo com capacidade de compreender a reprovabilidade inerente à norma
punitiva que im põe o castigo10.

4.2.2. Para definição dos critério s de p rop orcio nalidad e, Hirsch


utiliza fórmula que concilia dois vetores: proporcionalidade ordinal (relativa)
e proporcionalidade cardinal (não relativa). A proporcionalidade ordinal se
estabelece na comparação entre as penas, de forma que delitos que provo­
cam semelhantes lesões aos direitos recebam castigos similares. As exigên­
cias de proporcionalidade ordinal “se fundam entam na concepção reprobatória
do castigo” 11 e definem a necessidade de respeito ã paridade, ã graduação e
ao escalonamento das penas conforme a gravidade do delito —“em teoria,
a proporcionalidade ordinal requer a criação de escala de valores, a qual pode ser
usada para verificar a gravidade de cada tipo de crime; culpabilidade, conjuntamen­
te com drcunstãncias agravantes e atenuantes, podem ser assimiladas nesta escala” 1 2 .
O critério cardinal indica limites ã gravidade de penas de acordo com a
ideia geral de reprovação, de forma a criar condições de adequação por
m eio da definição de um índice m áxim o de punição, da criação de sanções
intermediárias e da proposição de substitutivos (alternativas) às penas de
prisão. Ambos os parâmetros objetivam estabelecer critérios de hierarquia
de penas para distintas condutas e fórmulas de isonomia entre as sanções.
A ideia central de Hirsch é a da criação de mecanismos limitadores
do poder de punir a partir da definição de precisos critérios quantitativos
(temporal) e qualitativos (espécie). Contra a flexibilidade do sistema san-
cionatório correcionalista, o autor modela um a estrutura punitiva, tendo
como base a previsão legal de sanções (princípios da legalidade e da ante-

10 "Os pemlistas tendem a ver com exassivafacilidade os delinqüentes epotenciais delinqüentes wmo
espécies distintas do cidadão obediente, como pessoas que são bastante impermeáveis aos mandados
morais e que necessitam ser intimidados ou penados para respeitar a lei. N ão aceito esta visão. Um
sütema de penas não deve ser desenhado como algo que ‘nós’fazemos para pKvenir que ‘eles’ delin-
quam. Deveria ser algo que os cidadãos livres desenham para Kgular sua própria conduta. Deveria
admitir-se que ambos somos pessoas que (ao menos sob detenninadas cmunstâncias) podemos ofender
outras e, ao mesmo tempo, somos capazes de entender osjuízos morais que o castigo penal expressa.
Um sistema penal, em uma sociedade democrática, deveria ser do tipo que as pessoas aceitariam como
forma de ajudá-las a vencer suas próprias tentações, ao mesmo tempo que Kspeite sua capacidade de
eleição” (HIRSCH, Censurar y Castigar, p. 28-29).
11 HIRSCH, Censurar y Castigar, p. 46.
12 ASHW ORTH, Sentencing, p. 993.
rioridade), aplicadas conforme a reprovabilidade da conduta (direito penal
do foto) praticada por sujeito com capacidade de compreensão do ilícito
(princípio da culpabilidade). Q uanto ao juízo, as regras de orientação
(sentencing guidelines)13 perm item a redução do grau de discricionariedade
e, consequentemente, o exercício do controle da atividade jurisdicional.
Correlato ao program a de erradicação das penas indeterminadas,
Hirsch projeta um modelo político-crim inal fundado no princípio de m í­
nima intervenção com a perspectiva do uso subsidiário da pena carcerária,
no qual o “aprisionamento deve ser limitado apenas aos casos de graves ofensas; ( . . . )
a prisão, portanto, deve ser a sanção aplicada apenas em crimes que causem ou possam
causar graves danos — tais como roubo com emprego de arma, tttupro ” w .
Não obstante a definição de critérios de igualização e de proporcio­
nalidade da quantidade das penas de prisão e a proposição de sanções al­
ternativas ao cárcere para os casos de delitos leves, Hirsch sustenta como
imprescindível a redução quantitativa do tempo da pena em limites tole­
ráveis. Ao defender-se da acusação de que a teoria do justo m erecimento
*4*5 FU'. DlQU Dí éM lW j, NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

seria responsável pelo avanço do punitivismo e pelas altas taxas de encar­


ceramento, nas últimas décadas, nos Estados Unidos, lembra Hirsch que
em D oingjustice havia proposto que o uso da pena de prisão fosse “ limitado
para delitos graves fundam entalm ente para delitos violentos e para os casos mais
graves de criminalidade de ‘colarinho branco’); e a duração da privação de liberdade
para estes delitos deveria ser até três anos — exceto para o caso de homicídio, cujo
limite normal seria o de cinco anos”15.

13 A incorporação gradual da teoria do merecimento pelos distintos sistemas de justiça


criminal dos Estados Unidos e, posteriormente, do Canadá e da Inglaterra fomentou a
criação de Comissõespara determinação dos critérios de aplicação das penas determinadas,
introduzindo na cultura jurídica da common law aprática de sentencing orientadapelas guide­
lines. Conforme destaca Hirsch, “a ideia de propomonalidade ou de pena memida [‘deserved’
sentence] tem tido considerável influência ao longo das duas últimas décadas”, tendosido adota­
da em várias jurisdições nos Estados Unidos —Oregon e Minnesota, exemplarmente —,
no Canadá (1986) e em alguns países europeus da common law — Finlândia (1976), Suécia
(1988), Inglaterra e Gales (1991) (HIRSCH, 'Hie F uíuk of the Pm^rtionate Sentence, p. 271).
14 HIRSCH, Giving Criminais '^ e ir ju st Deserts, p. 347.
13 H IRSCH , Censurar y Castigar, p. 80.
Sobre os argumentos de Hirsch contra a assertiva de ser a teoria do merecimento
responsável pelo avanço do punitivismo, conferir, sobretudo, HIRSCH, t t e Future o f
Proportionate Sentena, pp. 278-285. Sobre o papel exercido pela teoria do merecimento e
sua relação com o incremento dos índices de encarceramento, conferir BLOM BERG e
LUCKEN, Amerirnn Penology, pp. 177-188.
4.2.3. As premissas que norteiam o projeto político-crim inal da
teoria do justo merecimento são, inegavelmente, inspiradas na tradição
ilustrada do direito penal que moldou os sistemas normativos dos países
ocidentais da civil law. Algumas variáveis do m odelo de Hirsch, sobretudo
suas críticas ao correcionalismo, assemelham-se m uito particularm ente ao
sistema de garantias, embora esta revitalização das teorias absolutas tenha
perm itido que a proposta do justo m erecimento fosse identificada por
Ferrajoli com o um equívoco teórico de corte autoritário16.
O sentido retributivista da teoria encontra-se, fundamentalmente,
na negativa de qualquer finalidade da pena para além da reprovação do
autor pela lesão causada. Neste aspecto a ideia de retribuição recapacita um
modelo de responsabilização jurídica centrado na culpabilidade, critério
que dimensionará a proporcionalidade da pena. A perspectiva de imposição
de sofrimento por meio da sanção como uma resposta proporcional ao dano
provocado, pressupondo que “os indivíduos devem ser tratados como responsáveis
(eventualmentefalíveis) agentes morais”17, redimensiona o pensamento kantia­
no e abre espaço para o que poderia ser denominado n eo rretrib u tiv ism o .
A mudança no sistema punitivo nos Estados Unidos e na Inglaterra
durante os anos 1980 produziu um interessante fenômeno a ser avaliado que

DE JU S T IF IC A Ç Ã O
é o oposto movimento teórico e político-crim inal nos países anglo-saxões
e nos romano-germânicos. Isto porque no auge da crítica ao correcionalis­
mo an^o-saxão, situação que fomentará a incorporação do modelo do
justo merecimento, na década de 1960, sobretudo na Alemanha, estabelece­

C O N TEM PO R Â N EO S
-se uma importante corrente teórica cuja centralidade das propostas é exa­
tamente a substituição do modelo de penas centrado na retribuição ã cul­
pabilidade em prol da adoção de perspectiva relativa voltada ã tutela de bens
jurídicos (prevenção geral negativa) e ã ressocialização do condenado (pre­
- M ODELOS

venção especial positiva). Esta corrente teórica liderada por R oxin e que se
consolidará com a redação do Projeto Alternativo de Código para a Alema­
nha (1966) será a responsável pela incorporação das premissas de prevenção
especial positiva na dogmática penal romano-germânica no momento em
que este sistema apresentava notórios sinais de crise nos países anglo-saxões18.

16 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, pp. 240-245.


17 ASHW ORTH, Sentencing, p. 992.
18 O modelo teórico funcionalista de R oxin e a forma de incorporação dogmática do
correcionalismo no sistema da civil law serão apresentados posteriormente, no momento
da análise dos vinculos entre pena e culpabilidade.
4 .3 . Teorias Penológicas Neoconservadoras: Discursos Atuarial e
FuncionaLista-Sistêmico: Fundamentos e Crítica

4.3.1. Se nos países anglo-saxônicos a década de 1980 é marcada pela


predominância da teoria do justo m erecimento e a conseqüente transfor­
mação do sistema punitivo correcionalista (modelo penal-welfare), os perío­
dos subsequentes assistirão ã emergência de discursos político-criminais de
corte autoritário que consolidarão o cenário punitivista contemporâneo.
O substrato teórico e ideológico destas políticas conservadoras dos anos
1990 é fornecido pelos m o d e l o s a t u a r i a i s e g e r e n c i a l i s t a s .
Nos países latinos, especialmente o Brasil, o processo de redem o-
cratização política e a afirmação do constitucionalismo criaram significa­
tivas barreiras ao avanço do punitivismo. N o entanto, os discursos e as
práticas políticas de defesa dos direitos humanos apenas retardaram o im ­
pacto dos projetos atuariais. Isto porque, ao longo dos anos 1990, a políti­
ca crim inal nacional aderiu ao processo de globalização dos discursos
gerencialistas, notadamente dos modelos de tolerância zero, gestados nos
Estados Unidos. Além disso, no âmbito acadêmico, as teorias funcionalis-
tas-sistêmicas, em razão do seu intenso diálogo com a dogmática jurídica,
passaram a ser acriticamente consumidas pelo mainstream penalístico.
A proliferação de projetos punitivistas no âmbito político-crim inal,
associada ã incorporação de um modelo dogmático autoritário na academia,
produziu um cenário novo no qual, em muitas ocasiões, políticas populis­
tas anteriormente desqualificadas pela ausência de fundamentação teórica
apresentam-se como legítimos discursos científicos, encobrindo sua fun­
cionalidade criminalizadora e seletiva em parâmetros de objetividade e
neutralidade axiológicas.
4.3.2. A partir da década de 1970, os discursos penal e crim inoló-
gico assistem ao declínio do ideal reabilitador. A crise do correcionalismo
representa a própria crise dos paradigmas nas ciências criminais, pois os
modelos de prevenção especial positiva representam a última grande nar­
rativa penológica da modernidade. Após o correcionalismo, o cenário
teórico de fragmentação —proliferação de teorias híbridas e reposiciona­
m ento de perspectivas desgastadas — é atravessado pela emergência do
populismo punitivo e a consolidação do grande encarceramento. Nesta
lacuna entre o esgotamento das políticas de prevenção especial positiva e
a edificação do punitivismo, surge a n o v a p e n o l o g i a (new penolo^).
Nas palavras de Pavarini, trata-se de uma penologia fandamentalista
que opera por meio da difusão de uma cultura populista sobre a pena e se
legitima desde baixo, isto é, mediante o senso comum. Segundo o autor, a
nova penologia se desenvolve a partir da pulverização da cultura repressi­
va nas falas da população, difundida pelos meios de comunicação e incor­
porada por importantes teóricos da comunidade acadêmica (legitimidade
científica). Configura-se, portanto, como uma nova forma de perceber
punição; como uma política penal com forte apelo populista e que não
pode ser classificada exclusivamente como uma política de direita, pois com ­
partilhada por inúmeras administrações de esquerda e de centro-esquerda
(p. ex., algumas experiências do novo realismo de esquerda)19.
O novo discurso penológico que emerge a partir da década de 1990
nos Estados Unidos —(a) politicamente inspirado na m áxim a da tolerância
zero, (b) academicamente ancorado nas teorias situacionistas autoritárias
(teoria das janelas quebradas, p. ex.) e (c) norm ativam ente densificado com
a institucionalização do three-strikes20 nos regramentos penais de im portan­
tes estados norte-americanos —procura recuperar o prestígio da instituição
carcerária a partir do abandono das finalidades tradicionais atribuídas ã

DE JU S T IF IC A Ç Ã O
pena (correção, intimidação ou retribuição). O apelo romântico ã resso-

19 PAVARINI, E l Grotesco de la Penologia Contemporânea, p. 264. No mesmo sentido,

C O N TEM PO R Â N EO S
PAVARINI, Pmtzssi d iR i-C a r^zza zio n e e 'Nuove' Teorie Giustijicative dela Pena, pp. 95-124;
PAVARINI, La Pena 'Utik', lasua Crisi e il Disinanto: veno una pena senzascopo, pp. 279-309;
PAVARINI e GIAM BERA RD INO, Teoria da Pena e Execução Penal, pp. 37-56.
20 As Three-Strikes Laws foram adotadas nos Estados Unidos ao longo da década de 1990
e um dos primeiros estados foi W ashington (1993). Trata-se da transposição de uma co­
- M ODELOS

nhecida regra do baseball: se a pessoa for condenada por três crimes graves receberá pena
de prisão perpétua, sem possibilidade de liberdade condicional (parole).
Em 1994, a "ttree-Strikes Law foi aprovada na Califórnia e, em 1997, vinte e quatro
estados norte-americanos possuíam leis desta natureza. N a maioria dos casos, a regrase
aplicava em casos de delitos graves como homicídio, estupro e roubo com emprego de
arma de fogo. No entanto, em alguns estados foram incluídos delitos não violentos, como
comércio de entorpecentes. N a Califórnia a regra da gravidade do delito se aplica apenas
aos dois primeiros delitos, sendo o terceiro strike aplicávelpara qualquer ilícito, grave ou
não. Conforme descrevem Blomberg e Lucken, nosprimeiros seis meses que se seguiram
ã publicação da lei californiana, mais da metade dos casos de three-strikes envolviam delitos
de pequenopotencial ofensivo como cheques desprovidos de fundos e fortos de automó­
veis, de cigarros, de produtos em lojas e, no caso mais contrastante, o forto de umapizza
(BLOMBERG e LUCKEN, American Penology, pp. 215-216).
cialização é renunciado em favor da ideia de controle e de gestão dos riscos
gerados por determinadas pessoas ou certos coletivos.
Garland, ao analisar os modelos gerencialistas, percebe a existência
de um complexo teórico, que designa como teorias de transformação, que
altera a perspectiva punitiva ao m odificar os fundamentos do discurso
criminológico em seus aspectos mais significativos, quais sejam, as funções
da pena e a im agem do hom em criminoso. Segundo Garland, “uma das
características desta nova penologia é que o discurso criminológico tom a-se mais es­
tatístico, mais atuarial, inclusive mais preocupado em agregar grupos e populações,
reduzindo o interesse no indivíduo como mso clínico”21. A dim inuição ou o
abandono da preocupação com a ressocialização por meio do tratam ento
penal decorre da substituição da concepção do agir criminoso. Se no cor­
recionalismo o hom em delinqüente era caracterizado por uma patologia
individual, as teorias atuariais sustentarão ser a sua conduta regida por uma
lógica econômica na qual se estabelece um cálculo racional entre o ônus da pena
e o bônus do crime.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

C om a publicação dos trabalhos de James Q. W ilson, nos Estados


Unidos, e R on Clarke, na Inglaterra, “(...) a ideia de delinqüente mal-adap-
tado, com carênrías de socialização (undersocialized) e com tendências crimimis,
é questionada pela concepção de criminoso como autor de cálculo racional”22. Em
oposição ã perspectiva correcionalista na qual o autor do delito deveria ser
integrado por meio de um programa de reabilitação, o delinqüente passa
a ser considerado “(...) para fin s políticos, como um agente racional que reponde
a estímulos e desestímulos, deform a a aproveitar ou abandonar as oportunidades
conforme a perspectiva de dissuasão ou de prevenção existentes”21.
A intensidade da punição nas teorias gerencialistas do cálculo racional
é vinculada, portanto, ao m enor ou maior nível de dissuasão que a pena pro­
vocará no infrator. Em decorrência de o agir delitivo im portar em uma
análise utilitária própria da lógica economicista, a pena deve necessariamen­
te ser apresentada aos grupos criminosos como uma desvantagem. Em uma
avaliação objetiva entre custos e benefícios, a vantagem do produto do crime
representa o bônus a ser eliminado pelo ônus da possibilidade da pena24.

21 GARLAND, Penal Modemism and Postmodemism, p. 55.


22 GARLAND, Penal Modemism and Postmodemism, p. 55.
23 GARLAND, Penal Modemism and Postmodemism, p. 55.
24 Interessante perceber a lógica utilitarista que informa o pensamento atuarial. Bentham
(1748-1832), ao tratar do fim das penas, sustenta que “todo homem se governa nas suas ações
O criminoso atuaria sob a lógica de um consumidor oportunista,
“cujas atitudes não podem ser modificadas, mas cujo acesso a bens sociais pode ser
obstaculizado. N este tipo de delinqüente — algumas vezes definido como ‘homem
situacional' — estão ausentes limites morais ou quaisquer controles internos efetivos,
além de sua capacidade de dlculo racional e da vontade de obter prazer”25.
Sustenta James Q. W ilson que, diferentemente da maior parte dos
sociólogos que analisam o problema do crim e e do controle social, alguns
acadêmicos, principalmente economistas, comungam da visão popular que
entende ser possível compreender como as pessoas se transformam em cri­
minosos da mesma forma como é possível explicar como se tom am carpin­
teiros ou compram um carro26. A hipótese compartilhada com o senso
comum estaria sedimentada em uma teoria da natureza humana que entende
que as pessoas reagem a partir de uma estimativa entre custos e benefícios
— “as pessoas conduzem suas vidas a partir de eleições de recompensas e de penalidades
de todo o tipo”21. N o caso do agir delitivo, os criminosos atuariam conforme
percebem as possibilidades de imposição da penalidade. A alta probabilidade
de prisão, em conseqüência, dim inuiria as taxas de criminalidade, pois
“quando a pena se tom a mais pmvável, o crime se torna menos comum”2*.

DE JU S T IF IC A Ç Ã O
por um cálculo bem ou malfeito, sobre prazeres e penas (...), lembra-se, por exemplo, de que a pena
vai ser a ansequência de uma ^ã o que lhe agrada, esta ideiafa z um certo abalo em seu espírito para
retirar o prazer. Se o valor total da pena lhe pam e maior, se pesa mais do que o valor total do prazer,

C O N TEM PO R Â N EO S
é natural que aforça que o afasta do crime venhaporfim vencer, e que não tenha lugar o desatino que
formava no seu pensamento” (BENTHAM , Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas
Políticos, p. 23).
2i GARLAND, The C ultun of Control, p. 129. - M ODELOS

25 Embora Wilson, ao vincular sua ideia de cálculo racional ao pensamento do “homem


médio” (senso comum), indicie que seumodelo é isento de influências teóricas, é possível
verificar, nas lições de Michelle Brown, que esta criminologia gerencialista pode ser
compreendida como uma convergência de várias escolas de pensamento, incluindo a so­
ciologia econômica, os estudos atuariais, a literaturasobre governabilidadee a sociologia
da punição e do risco, indicando uma espécie de sintoma da contemporaneidade: "os
elementos essenciais desta 'nova' penologia, centrada no gerencialismo correcional, na justiça atuarial
e na ênfase do encarceramento, emergem no contexto dos impasses da m od^idade tardia: a inabili­
dade do Estado prover o efetivo controle do delito, o crescimento na percepção do aumento das taxas
de delitos em detrimento da apanntefragilidade da punição, o endurecimento dos posicionamentos
populares em rel^ão aos criminosos e a emergência de um vasto complexo de indústria prisional em
meio às políticas de lei e ordem" (BROW N, The N ew Penology in a Critirnl Context, p. 105).
27 W ILSON, On Deterrencz, p.336.
28 W ILSON, O n Deterrence, p.337.
A equação entre os custos da pena e os benefícios do crime, isto é,
a análise dos riscos da punição, converte-se na premissa fundante da teoria
do cálculo racional e é consolidada como uma fórmula palpável de alta
demonstrabilidade estatística. N o entanto, destaca W ilson que a fórmula
que orienta a economia do delito não seria aplicável em alguns casos ex­
cepcionais como, p. ex., no das personalidades patológicas, visto não pos­
suírem freios inibitórios29.
Os efeitos desta nova forma peculiar de conceber a prevenção geral
negativa (dissuasão) são, evidentemente, o aumento das penas em abstrato
e o acréscimo dos índices de encarceramento em concreto. Ao estabelecer
uma relação de simetria entre crime e pena, aliando fenômenos de natu­
rezas distintas30, qualquer elevação nos índices de delito provoca, como
resposta natural e necessária, o aumento da quantidade e a substancializa-
ção das formas de punir. Paradigmática, neste aspecto, a experiência de
densificação do punitivismo norte-am ericano com revitalização da pena
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

de m orte e da prisão perpétua, m ormente nos Estados que adotaram a


política do three-strikes.

25 W ILSON, On Deterreme, p. 338.


30 A literatura criminológica, não apenas de orientação crítica, tem demonstrado com
muita propriedade serem distintos os fenômenos pena e crime, sobretudo o feto de ine-
Mstir relação de causalidade entte nível de encarceramento e número de delitos. Nota-se
que "historicamente não ha significante corwlação entK índias de criminalidade e taxas de encara-
ramento — esta é uma das mais significativas contribuições da penologia para nossa wmpreensão do
fenômeno punição”, conclui Michelle Brown (BROW N, The N ew Penology in a Criticai
Context, p. 102). No mesmo sentido, Larrauri afirma que "ofato de que o aumento da prisão
não se produza deforma wrrelacionada com os índices de delitos é uma conclusão majoritariamente
aceita por toda a literatura criminológica, seja qual for sua orientação ideotôigica” (LA RRA U RI,
La Economia Política dei Castigo, p. 4).
Assim, diferentes sociedades apresentam fenômenos próprios como (a) altas taxas de
encarceramento e expressivo índice de criminalidade; (b) elevada taxa de encarceramen­
to e baixo índice de criminalidade; (c) baixo nível de prisionalização e expressivo núme­
ro de delitos; ou (d) reduzidas taxas de encarceramento e reduzido nível de delito.
Especificamente sobre a relação entre crime e encarceramento nos Estados Unidos,
conferir BROW N, The N ew Penology in a Criticai Context, p. 101-103, e WACQUANT,
O Lugar da Prisão na Nova Administração da Pobwza, pp. 9-19. Sobre o tema no contexto da
Europa continental, conferir LA R RA U R I, ^ Economia Política dei Castigo, pp. 1-22. No
Brasil, CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo, pp. 15-25.
4.3.3. A tônica economicista dos discursos do cálculo racional não
apenas gera um novo idealismo fundamentalista em relação ã capacidade
da pena como mecanismo de dissuasão, restaurando os discursos de pre­
venção geral negativa, como desdobra, em termos político-crim inais,
novas abordagens criminológicas sobre o fenômeno da crim inalidade31.
Em paralelo ã concepção de indivíduo racional que se utiliza de uma
fórmula de custo e benefício para realizar o ilícito, os novos discursos
gerencialistas ampliam e recriam instrum entos de controle social no sen­
tido de identificar grupos de risco formados por potenciais infratores ou
criminosos profissionais. Ao invés de atomizar a aplicação da pena nas
pessoas que praticam crimes, as políticas atuariais procuram reconhecer e
neutralizar coletivos desordeiros que ameaçam a estabilidade e a segurança
pública. Opera-se, inegavelmente, um a redefinição da ideia de periculo­
sidade individual para a de periculosidade coletiva.
A pena criminal, neste sentido, além de estar justificada devido aos
seus propósitos de prevenção de novos delitos — “nestes casos — expõe
Ashworth —os direitos das vítim as em potencial ganham pre ferência em relação aos
direitos dos ofensores”32 —, é visualizada como um instrumento de i n c a p a c i -
t a ç ã o d a s p e s s o a s o u d o s g r u p o s p e r i g o s o s que, ao apresentarem riscos
elevados de com etim ento de crimes, justificariam a restrição da liberdade.
As novas doutrinas da pena, diferentemente dos discursos tradicio­
nais que propugnavam fins e funções em harmonia (coerência) com os
sistemas dogmáticos de direito penal, operam a partir de uma lógica uti­
litária em inentem ente política. E, distanciando-se do m odelo que vigorou
ao longo do século X X (correcionalismo), anulam a preocupação substan­
tiva (qualitativa) com o indivíduo responsável pelo ato criminoso, proje­
tando a pena em term os quantitativos, ou seja, a partir dos resultados
estatísticos e probabilísticos que perm item identificar atores (individuais e
coletivos) de risco e agir profilaticamente para incapacitar suas atividades
indesejadas.
Feeley e Simon sustentam que esta nova penologia emerge com o
objetivo principal de inovar nas técnicas de identificação das subpopulações,

31 Neste aspecto não é demasiado lembrar que desde o advento da criminologia do eti-
quetamento, mas, sobretudo após a criminologia crítica, o enfoque do estudo das ciências
criminais deixou de ser a criminalidade, como um atributo individual do sujeito, para
concentrar-se nos processos de criminalização.
32 ASHW ORTH, Sentencing, p. 995.
definindo grupos-alvo, não apenas indivíduos33. Michelle Brown sustenta
que este foco das teorias gerencialistas nas coletividades desordeiras ou nos
grupos problemáticos retoma uma categoria-chave dos processos de cri­
minalização denunciada pela criminologia radical (criminologia marxista)
que é a de classes perigosas3 4 .
Em um modelo regido pela lógica gerencialista, o mapeamento das
zonas e dos grupos de risco e o cum prim ento de metas político-crim inais
que invariavelmente resultam em encarceramento são os indicadores da
eficiência das políticas de controle. O princípio da eficiência determ ina os
níveis de variação das taxas de performance institucionais e, sobretudo, o
custo de efetivação das políticas, pois a racionalidade sistêmica exige o
m aior controle da criminalidade com o m enor ônus econômico. A inefi­
ciência no cum prim ento das metas, dependendo do nível de aceitabilidade,
é projetada como tolerabilidade sistêmica.
Neste cenário são incorporados novos instrum entos e novas técnicas
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

de vigilância na administração do sistema penal, de forma a aum entar a


performance de gestão, com a conseqüente ampliação do controle das pes­
soas e dos grupos de risco. Assim, os projetos de automação são inseridos
desde a administração dos espaços de encarceramento ã gestão da seguran­
ça pública. Se no projeto penal-welrfare o ideal de ressocialização dependia
da interação entre o condenado e o responsável pelo tratam ento penal
(psicólogo, pedagogo ou assistente social), na lógica gerencialista o ser
hum ano é substituído por câmeras de vigilância, m onitoram ento eletrô­
nico, exames toxicológicos, tomografias computadorizadas, entre outros.
Conforme destacam Feeley e Simon, estas inovações no campo do
controle punitivo provocam a expansão das sanções penais e a inversão na
lógica punitiva, sobretudo no que tange ã avaliação dos níveis de reinci­
dência. N o antigo modelo correcional, “se as altas taxas de retorno à prisão
108 durante o cumprimento da liberdade condicional indicavam falhas no programa;
agora fornecem indicadores de eficiência e efetividade da liberdade condicional como
aparelho de controle”*5.

33 FEELEY e SIM ON, The N ew Penology, pp. 434-435.


34 BROW N, "flie New feno lo ^ in a Critittl Cont&t, p. 107. Conferir, ij^ataente, BROW N,
The Culture of Punishment, pp. 35-37.
33 FEELEY e SIM ON, The N ew Penology, p. 436.
4.3.4. Nos países rom ano-germânicos, os discursos de incapacitação
e de neutralização serão radicalizados pelas teo rias fu n cio n alistas-sis-
têm icas. Este modelo penológico é projetado inicialm ente como um
discurso político-crim inal direcionado aos grupos dissidentes com identi­
ficação terrorista. D entre as principais construções doutrinárias encontra­
-se a formulação de G üntherjakobs sobre o d ire ito penal d o in im ig o 36.
Fundada em uma racionalidade inquisitória de alta intensidade beligeran­
te que sobrepõe a razão de Estado ao Estado de direito —razão de Estado
entendida como um princípio normativo da política que transforma o ente
público em um bem autônomo e próprio de tutela, cujo objetivo prim ário
e incondicionado da ação governamental (meio) é a sua conservação e
ampliação (fim)37 —, a proposta punitiva de neutralização dos grupos de
risco pode ser resumida na máxima de que contra o terror das organizações
criminosas é legítimo o terrorismo de Estado.
Segundo Jakobs, o direito penal de garantias seria aplicável apenas
aos cidadãos que praticaram acidental ou esporadicamente crimes. Para
estes integrantes do pacto social envolvidos em práticas delitivas estariam
resguardados todos os direitos e as garantias inerentes ao Estado de direito
(princípios liberais da modernidade). O cidadão, nesta perspectiva, seria
aquele indivíduo que, mesmo tendo cometido um erro (crime), ainda
oferece garantias cognitivas de comportamentos idôneos para garantir a v i­
gência das normas. Contra os cidadãos infratores a pena representaria uma
resposta desautorizadora do foto, restabelecendo a confiança social na es­
tabilidade da lei penal.
Sustenta Jakobs, porém , ser possível identificar casos em “ (...) que a
expectativa de um comportamento pessoal é reduzida de form a duradoura [ocasião
na qual] diminuem as possibilidades de tratar o delinqüente como pessoa”**. Nas
circunstâncias de rom pim ento com as expectativas sociais, quando inexis-
te um m ínim o de garantia cognitiva sobre as condutas, seria lícita a des-
personalização do desviante com a conseqüente exclusão do status político

36 Apesar de a proposição de Silva Sánchez sobre a expansão da intervenção penal adqui­


rir uma tonalidade descritiva, é possível perceber importantes aproximações entre os
modelos nas estratégias político-criminais apresentadas pelos autores. N estesentido,
conferir SILVA SÁNCHEZ, La Expansión dei Derecho Penal, pp. 161-167 e CANCIO
MELIÀ, Derecho Penal dei Enemigo y Delitos de Terrorismo, pp. 37-43.
3' FERRAJOLI, Diritto e Ragione, pp. 846-850.
38JAKOBS, Dencho Penal dei Ciudadano y Derecho Penal dei Enemigo, p. 38.
da cidadania. Sendo o direito penal de garantias privilégio exclusivo dos
integrantes do pacto social, àqueles que se negam a participar do contrato
ou pretendem destruí-lo seria incabível o qualificativo de pessoa, resultan­
do a legítima destituição dos seus direitos fundamentais39.
A partir de um a classificação binária, o corpo social é cindido po­
liticamente em pessoas e não pessoas, situação que proporciona a elabora­
ção de dois modelos distintos de intervenção punitiva: o direito penal do
cidadão e o direito penal do inimigo. Assim, as funções das agências repressivas
e da pena são redefinidas, pois “o Direito penal do cidatòo mantém a vigência
da norma, o direito penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo o Direito das
medidas de segurança) combate perigos ( . . . ) ” 4 0 ; “no Direito penal do cidadão a
função manifesta da pena é a contradição, no Direito penal do inimigo a eliminação
do perigo"41.

4.3.5. Todavia, como é próprio das construções teóricas e das polí­


ticas autoritárias, o discurso que instrum entaliza suas práticas é altamente
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

volátil42, fator que produz um alargamento das fronteiras de possibilidade


de incidência repressiva. Desta forma, natural que a categoria inimigo que

39 Conforme Jakobs, “quem não apresenta segurança aignitiva suficiente de um comportamento


pessoal, não apenas não pode esperar ser tratado como pessoa, como o Estado não deve tratá-lo como
pessoa, pois, do contrário, vulneraria o direito à s^urança das demais pessoas” (JAKOBS, Deredto
Penal dei Ciudadano y Dere&o Penal dei Enemigo, p. 47).
A atuação do direito penal contra os inimigos se justifica pelas premissas da legítima
defesa: "quem por prindpio se move de modo desviante não oferece garantia de um comportamento
pessoal; por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser rnmbatido como inimigo. Esta
guena se coloca como um direito legítimo dos cidadãos, no seu direito à segurança; e difenntemente
dapena, igualmente não existem Direitos àquele que écondenado;pelo contrário, o inimigo è exduí-
do” (JAKOBS, Demho Penal dei Ciudadano y Derecho Penal dei Enemigo, pp. 55-56).
40JAKOBS, Dere&o Penal dei Ciudadano y Derecho Penal dei Enemigo, p. 33.
41JAKOBS, Derecho Penal dei Ciudadano y D em ho Penal dei Enemigo, p. 55.
42 Do ponto de vista dogmático, é importante perceber a categoria terrorismo como um
tipopolítico-criminal aberto, ouseja, como um elemento conceituai indefinido, semantica-
mente lacunoso e sem qualquer precisão de suas características configuradoras. Neste
sentido, lembram Riquert e Palacios que "entreestas e^ressães que dificultam uma total hege­
monia — se algo assim fosse possível —poderíamos incluir o que os antros de poder chamam 'terroris­
mo' e que é tão difaso e indefinido que devemos colocar entre aspas (...)” (R IQ U ER T e PALA­
CIOS, E l D emho Penal dei Enemigo o las Excepàones Permanentes, p. 3).
Sobre os problemas conceituais do terrorismo, conferir D ’Á VILA et al., Criminal Law
as a Counterterrorism Tool, pp. 531-563.
identifica o objeto de intervenção seja flexibilizada, ampliando as possibi­
lidades de criminalização para além dos grupos prim eiram ente rotulados
como terroristas, atingindo todos os coletivos que apresentem algum risco
às garantias cognitivas de m anutenção da vigência das normas.
Os principais indicadores de risco seriam a habitualidade e a profissio­
nalização. A partir destes sinais indicadores do estado de perigo, Jakobs
sustenta que a intervenção penal belicista não deve estar restrita aos sujei­
tos diretamente vinculados aos grupos terroristas, sendo legítima a desper-
sonalização de todos os indivíduos ou grupos cujas atitudes demonstrem
possibilidade de reiteração criminosa (periculosidade social). Os efeitos na
dogmática penal são evidentes: a probabilidade de dano ã ordem ou ã se­
gurança pública (nomem juris do ‘bem jurídico’ Estado) autoriza a inter­
venção penal desde os atos preparatórios da conduta (antecipação da pu­
nição), justificando a supressão das garantias processuais do acusado e a
imposição de sanções rígidas de caráter inabilitador.
Neste cenário de obscurecimento dos limites de intervenção penal,
Jakobs, ao avaliar os fenômenos delitivos contemporâneos, visualiza inú­
meros casos de justificada aplicação do direito penal do inimigo: “ ( . . . ) o
legislador (para ficar primeiro no âmbito do direito material) está construindo uma

DE JU S T IF IC A Ç Ã O
legislação — denominada abertamente deste modo — de luta, por exemplo, no âm bi­
to da criminalidade econômica, do terrorismo, da criminalidade organizada, no caso
dos ‘delitos sexuais e outras infrações perigosas', assim como, em geral, pretende

C O N TEM PO R Â N EO S
combater, em cada um destes casos, indivíduos que nas suas atitudes (por exemplo,
no caso dos delitos sexuais), em sua vida econômica (por exemplo, no caso da crimi­
nalidade econômica, da criminalidade relacionada com as drogas tó x ic a e outras
form as de criminalidade organizada) ou mediante sua incoyoração em organizações - M ODELOS

(no mso de terrorismo, da criminalidade organizada, inclusive na conspiração para


delinquir, § 30 S tG B ), se distanciaram de form a duradoura, de maneira decidida,
do Direito, ou seja, não fornecem garantia cognitiva mínima necessária para ser
tratado como pessoa. A reafio do ordenamento jurídico frente a esta criminalidade
se caracteriza, de modo paralelo à diferenciação de K a n t entre estado civil e estado
de natureza citada anteriormente, pela circunstância de que não se trata em prim ei­
ro plano de uma compensação de um dano à vigência da norma, mas da eliminação
de um perigo ( . . . ) ” 4 3 .
A inevitável ampliação do rótulo de inim igo, agregando ao rol dos
grupos perigosos outros coletivos de risco, possibilita condições altamente

43JAKOBS, D em ho Penal dei Ciudadano y Derecho Penal dei Enemigo, pp. 38-40.
favoráveis para expansão das malhas de punitividade e a inevitável e radi­
cal ruptura com os sistemas normativos que garantem os direitos funda­
mentais. Neste modelo, a categoria pericu lo sid ad e (in d iv id u al ou so­
cia l) readquire fundam ental im portância, visto ser o conceito que
possibilitará agregar sob o mesmo estilo repressivo condutas de natureza
absolutamente diversa como o terrorism o, o comércio de drogas ilícitas, a
imigração ilegal, o tráfico de pessoas, os crimes econômicos, entre outros.
As doutrinas penais autoritárias de corte funcionalista-sistêmico, ao
propugnarem pela reafirmação da validade da lei penal por meio da neu­
tralização ou da incapacitação do (grupo) delinqüente, concretizam as teorias
de prevenção geral positiva apresentadas por Durkheim . Contudo, con­
forme destaca Ferrajoli, na teoria sociológica do desvio de D urkheim
havia apenas uma descrição da punição como um fator de estabilização social
e de reafirmação dos sentimentos coletivos, o que propiciaria coesão ao
corpo social. D urkheim não pretendia oferecer um a justfírnção à punição,
apenas um a explicação sobre os efeitos das práticas punitivas. Ao contrário,
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

na formulação de Jakobs, o modelo belicista converte-se em um a ideologia


de legitimação apriorística do direito penal e da pena.
Em conseqüência, assinala Ferrajoli, “ao reduzir o indivíduo a um ‘s ub-
sistemafisico-psíquico', funcionalmente subordinado exigências do sistema social
geral, tal doutrina é acompanhada inevitavelmente de modelos de direito penal
máximo e ilimitado, pmgramaticamente indiferentes à tutela dos direitos d u pessoa”**.
N o mesmo sentido Baratta sustenta que “a teoria da prevenção-integração é
funcional em relação ao atual movimento de expansão do sistema penal e de incre­
mento, tanto em extensão como em intensidade, da resposta penal”4*.
Os discursos criminológicos de dissuasão (cálculo racional), incapa­
citação (gerencialismo atuarial) e neutralização (funcionalismo-sistêmico),
embora sejam repetitivos e ambíguos em termos teóricos, concentram-se
pragmaticamente na redução da ideia de controle social aos instrumentos
112 de segurança pública. A política crim inal é convertida em uma função
instrum ental de identificação dos riscos sociais; a pena é potencializada
como ferramenta de neutralização ou eliminação dos dissidentes. Neste
cenário, a razão de Estado (racionalidade punitiva) justifica qualquer rup­
tura com os limites de intervenção, pois os direitos e as garantias funda-

“ FERRAJOLI, Diritto eRagione, p. 264.


45 BARATTA, Integmción-PKvención, p. 15.
mentais são percebidos exclusivamente como óbices ou estorvos ã efetivi­
dade (eficiência) repressiva.

4 .4 . Teoria Garantista da Pena: Fundamentos e Crítica

4.4.1. Os discursos neoconservadores de retribuição, dissuasão, in-


capacitação e neutralização moldaram as teorias de m áxim a intervenção
punitiva nas últimas décadas. Em termos político-crim inais, as narrativas
do punitivismo foram consumidas e proliferadas pelos movimentos de lei
e ordem e de tolerância zero, cujos efeitos, na atualidade, são refletidos nos
altos índices de encarceramento mundiais.
Nas ciências criminais nos países latinos, a resistência ao punitivismo
foi, em grande medida, proporcionada pelas teo rias g aran tistas de base
constitucional. Se a teoria do justo merecimento recupera a fundamentação
ilustrada da pena, mas traz consigo germens autoritários em decorrência
de optar por uma justificativa autorreferencial; a teoria garantista, de na­
tureza em inentem ente normativa, igualmente retoma argumentos ilum i-
nistas. Contudo, redimensiona o sentido liberal das teorias relativas com
o objetivo central de limitação do poder punitivo.
Os tradicionais modelos do iluminismo penal justificaram a pena
desde a perspectiva utilitarista da garantia da ‘m áxim afelicidade possível aos
que não delinquem’. Na introdução do manifesto D os Delitos e das Penas,
Beccaria afirma que “as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre
homens livres, não foram, o mais das vezes, senão o instrumento das paixões da
minoria, ou o produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente ob­
servador da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade
com este único fim : todo o bem-estar possível para a maioria”46. A imagem do
delito é representada como a ação de uma minoria desviante que impõe
m al-estar ã m aioria não delinqüente.
A partir de um a releitura do aforismo ilustrado, a teoria do garan-
tismo postula um utilitarismo reformado que se projeta como modelo de
mitigação e de controle das penas. À premissa utilitarista clássica Ferrajo­
li adiciona um segundo aforisma, não relacionado ao objetivo de garantir
a felicidade das pessoas que não cometem crimes, mas voltado ã defesa dos

46 BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, p. 26.


direitos dos indivíduos que violaram as leis, isto é, os destinatários da pena.
A m áxim a do utilitarismo reformado é centralizada na perspectiva de
redução quantitativa e qualitativa da dor imposta pela pena aos que come­
teram crimes. Desta forma, a teoria garantista da pena é exposta na expres­
são “máxima felicidade possível para a maioria não desviante e mínimo sofrimento
necessário para a minoria desviante”.
A segunda parte do postulado normativo garantista delineia um
modelo minimalista de redução da incidência do direito penal por meio
do m áxim o controle possível da quantidade e da qualidade das penas,
rompendo, portanto, com a tradição dos discursos relativos de legitimação
que direcionam as sanções exclusivamente ã prevenção de novos delitos,
seja pela intervenção individual (prevenção especial positiva), seja pela
coletiva (prevenção geral negativa).

4.4.2. Conforme demonstrado anteriormente, para Ferrajoli um dos


* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

grandes problemas do por que castigar? estaria radicado na confusão entre


funções, motivações e finalidades da pena, por meio da substituição de
argumentos e^ licativos por teses justificativas. A pergunta por que punir?
teria dois significados diversos: o sentido científico de indagação e o pro­
blema filosófico da existência da pena.
As dificuldades decorrentes das teorias absolutas e das teorias rela­
tivas estariam centradas nesta confusão metodológica entre função (descri­
ção histórica ou sociológica) ou motivação (descrição jurídica) com o dever
ser axiológico da pena, ou seja, a tomada da explicação como justificativa e
vice-versa: “é d a te modo que falam , sobre os objetivos da pena, de ‘teorias abso­
lutas' ou ‘relativas’, de ‘teorias retributivistas' ou ‘utilitaristas’, de ‘teorias da pre­
venção geral' ou ‘teorias da prevenção especial', entre outras, sugerindo a ideia de
que a pena tem um efeito (aliás, um objetivo) retributivo ou reparador, e que esta
previne (em v e z de deve prevenir) os crimes, ou que reeduca (em v e z de deve reedu-
114 car) os apenados, ou que dissuade (em v e z de deve dissuadir) a maioria dos propen­
sos a cometer delitos, entre outras”47.
Sustenta Ferrajoli, adotando o pressuposto metodológico da Lei de
Hum e, que estas doutrinas não se constituiriam verdadeiramente como
teorias da pena, mas como discursos normativos sobre a sua finalidade ou
descrições sobre as suas funções. Portanto, estes discursos seriam incom -

47 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 315.


patíveis com a necessidade teórica imposta pela ciência dogmática do di­
reito, pois confundiriam esquemas de explicação com modelos de justifi­
cação, em ofensa ao postulado de Hum e. Em sentido idêntico afirma
existirem vícios similares nas doutrinas criminológicas abolicionistas que
discutiriam fundamentos valorativos da punição a partir de argumentos e
de exposições empíricas, confundindo dever ser e ser da pena.
Apesar dos problemas que marcam a tradição jurídica de fundamen­
tação das penas em grandes teorias de legitimação, Ferrajoli entende ser
possível construir um modelo normativo de controle das violências desde
uma perspectiva político-crim inal minimalista. O prim eiro requisito para
redefinição dos pressupostos de legitimação das sanções pressuporia a acei­
tação do princípio da secularização, que determ ina uma rígida separação
entre direito e moral e direito e natureza, de maneira que “nem o crime seja
considerado como um mal em si quia prohibitum , m m a pena seja considerada
como um bem em si quia peccatum ”48.
O segundo requisito seria expresso na possibilidade de a pena atingir
suas funções declaradas, o que possibilitaria estabelecer um a relação de
simetria entre os meios e os fin s. N estesentido, Ferrajoli estrutura seu m o­
delo de u tilita rism o re fo rm a d o a partir do argum ento da pena m ínim a
necessária, concebendo como fim da punição não apenas a prevenção de
injustos delitos, mas, principalm ente, a prevenção da reação informal,
selvagem, espontânea, arbitrária que a sua feita poderia ensejar (injustos
castigos).
Desde este ponto de vista, a pena seria apresentada como um ins­
trum ento norm ativo de garantia do direito do infrator em não ser punido
senão pelo Estado. Os m ecanismos do direito penal não estariam direcio­
nados exclusivamente ã tutela social, mas igualmente ã proteção da pessoa
que infringiu as regras de convívio. A prevenção dos injustos delitos e dos
injustos castigos institui a máxima de maior felicidade possível aos não
desviantes com o m enor sofrimento necessário aos desviantes. Prevenção
da violência privada do crime, no m om ento da ofensa; prevenção da vio­
lência pública do Estado ou privada da vítima, no m om ento da punição.
A teoria garantista da pena agregaria ã prevenção geral negativa a
perspectiva da sanção como mecanismo de obstaculização da vingança
desmedida da vítima ou de forças solidárias, evitando, ao mesmo tempo,

48 FERRAJOLI, Diritto eRagione,p. 320.


o excesso punitivo do Estado: “garantias penais e processuais, de/ato, não são
mais do que técnicas que têm por objetivo m inim izar a violênáa e o poder punitivo;
isto é, reduzir ao máximo a previsão dos crimes, o arbítrio dos ju ízo s e o tormento
das penas”".
Prevenção dos delitos e prevenção dos castigos conform ariam o
modelo garantista de direito penal como proteção do mais fraco —vítima
no m om ento do crime, réu no processo e condenado na execução da pena.
A centralidade da pessoa em seus direitos fundamentais estaria recuperada
nesta dupla função penológica, legitimando a necessidade política da pena
como ferramenta norm ativa de limitação30.

4.4.3. Na concepção de Ferrajoli, a teo ria g aran tista d a p en a


estaria aliada aos postulados da democracia substancial, exercendo um
importante papel contramajoritário de proteção do mais fraco. Garantismo,
portanto, “significa precisamente a tutela dos valores ou direitos fundam entais cuja
satisfação, ainda contra os interesses da maioria, é o fim justificante do direito penal:
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

a imunidade dos rídadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defe­
sa dos fracos mediante rngras do jogo iguaü para todos, a dignidade da pessoa do im ­
putado e, portanto, a garantia da sua liberdade através do respeito pela sua verdade”51.
N o modelo garantista, a pena é transformada em um instrum ento
político-crim inal de negação da vingança; em um limite form al ao poder
punitivo estatal; um m al m enor em relação às possibilidades vindicativas
que se produziriam na sua ausência.
Ferrajoli entende que o m odelo normativo garantista satisfez os
requisitos para a adequada justificação, m orm ente no que diz respeito ã
observância da Lei de Hume. Primeiro, porque ao orientar o direito penal
ã prevenção geral negativa, excluiria a confusão entre direito e moral, que
caracteriza as doutrinas retribucionistas e de prevenção; segundo, porque
ao im por um duplo fim ã sanção — ‘máximo bem-estar possível aos que não
delinquem e o mínimo sofrimento mcessário aos desviantes’ — (a) responderia às

49 FERRAJOLI, La Pena in una Società Democrática, p. 529.


i0 “É sobre esta base que as duas finalidades preventivas — a prevenção dos crimes e a prevenção das
penas arbitrárias — são conexas entre si: ambas legitimam a 'necessidade política' do direito penal
como instrumento de tutela dos direitos fitndamentais, os quais definem normativamente o âmbito e
os limites enquanto bens que não se justifica ofender, nem com crimes, nem com punições” (FER­
RAJOLI, Diritto e Ragione, pp. 329-330).
91 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 330.
questões por que proibir e por que castigar, (b) excluiria autojustificações aprio-
rísticas por meio de motivações a posteriori baseadas em modelos reduzidos
que reconheceriam o caráter aflitivo e coercitivo da pena, (c) propiciaria
um modelo de legitimação e de deslegitimação da atuação do sistema pe­
nal, e (d) subtrairia os custos do direito penal ante a possível anarquia
política resultado da ausência de respostas punitivas (abolicionismo penal).

4.4.4. Apesar do esforço de Ferrajoli para definir um novo sentido


às penas, em razão de seguir os esquemas narrativos típicos da m oderni­
dade, seu modelo de justificação apresenta, com o nas demais teorias,
p ro b lem as de o rd e m n o rm a tiv a e em pírica.
A primeira ordem de questões (normativas ou teóricas) a ser enfren­
tada pelo modelo garantista é a relativa ã retomada do sentido intimidatório,
mesmo após as substanciais críticas realizadas ao longo do século passado.
Isto porque, ao agregar ã prevenção geral negativa (coação psicológica) um
sentido de tutela do delinqüente contra os excessos públicos e privados, o
modelo garantista não exclui a perspectiva coativa do seu projeto legitimador.
Neste sentido Gim bernat Ordeig afirma que “apesar de sua critica à
prevendo geral negativa, Ferrajoli, de form a inconseqüente, retoma-a posteriormen­
te para justificar a existência do Direito penal, acrescentando, como segundo critério
explicativo e racional, essa existência com a qual o Direito penal também preveniria
outra espécie de mal [o da anarquia punitiva]”52.
A crítica de Ordeig permite verificar que a composição de Ferrajoli
para justificar a pena a partir da cisão do modelo relativo em duas formas
distintas de prevenção (prevenção dos injustos delitos e prevenção dos
castigos desproporcionais) não elide as possibilidades de conversão de um
pretenso sistema minimalista em um modelo maximalista de intervenção
punitiva.
Se uma das críticas apresentadas por Ferrajoli em relação aos m ode­
los de coação seria a tendência de o sistema penal se converter em uma
espécie de terrorismo punitivo (Radbruch) —a inocorrência da percepção da
diminuição dos delitos levaria ao gradual aumento das penas —, a associação
ã prevenção dos injustos castigos ã prevenção das penas desproporcionais
pode conduzir ao mesmo raciocínio: a experiência social em relação às
distintas formas de vingança privada justificaria a expansão da punitivida-

i2 GIM BERNAT O RDEIG, D ereáo y Razón, p. 21.


de. Nota-se, assim, que o esforço teórico para construir um modelo isen­
to de críticas, sobretudo no que tange às eventuais violações à Lei de Hume,
acaba esbarrando exatamente na sua incapacidade de cum prir as funções
declaradas.
Ademais, no que diz respeito à refutação das críticas criminológicas
na construção da proposta garantista —independência do modelo norm a­
tivo em relação à experiência empírica —, entende-se que desprezar a rea­
lidade viva de violências inerentes aos sistemas punitivos, cuja conseqüên­
cia se m ede no custo de vidas hum anas que produz, sobretudo na
realidade periférica, é, no m ínim o, um a inconsequência teórica.
Conclui Paulo Q ueiroz que a proposta de Ferrajoli segue a tradição
da impossibilidade de averiguação empírica presente nos demais modelos
dejustificaçâo e que a exclusão da vingança privada e a autolimitação das
agências no exercício do poder punitivo configuram-se como um a falsa
promessa53. Lembra os argumentos de Zaffaroni acerca da seletividade
inata do direito penal para demonstrar os equívocos da narrativa: “o argu­
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

mento iluminista da necessidade do sistema penal para prevenir a vingança pública


ou privada jam ais se confirmou, pois no plano real ou social a experiência indicaria
que já parece estar bem demonstrada a danecessidade do exercício do poder do siste­
ma penal para evitar a generalização da vinganp, porque o sistema penal só atua
em reduzidíssimo número de casos e a imensa maioria de crimes impunes não gene­
raliza vinganças ilim itafas. Adem ais, na América Latina foram cometidos cruéis
genocídios queficaram praticamente impunes, sem que tenham ocorrido episódios de
vingança massiva”i4.

118

i3 Q U EIR O Z, A Justificativa do Direito de Punir na Obra de Luigi Ferrajoli, pp. 117-128.


s‘ Q U E IR O Z , Direito Penal, p. 114.
4
4

5 - TEORIAS DE JUSTIFICAÇÃO NA
CONTEMPORANEIDADE: CRISE, FRAGMENTAÇÃO
E SIGNIFICADOS DA PENA E DA PUNIÇÃO NO GRANDE
ENCARCERAMENTO

5 .1 . Teorias Ecléticas e Revitalização das Teorias de Justificação:


Sintomas da Fragmentação das Narrativas Penológicas

5.1.1. Conforme trabalhado em outro m om ento1, é possível dizer


que as grandes narrativas da m odernidade produziram , no âm bito geral
das ciências criminais, duas conseqüências evidentes: primeira, a essenciali-
zafão do criminoso; segunda, a edificação de soluções universais para o pro­
blema do crime, traduzidas, na dogmática penal, pelas teorias da pena.
A essencialização do c rim in o so havia sido denunciada pela teo­
ria do etiquetam ento quando expôs com o as instituições e os discursos
configuradores do sistema penal amplificam o ato ilícito, estabelecendo
uma redução patologizante da história do desviante, de forma a conceber
todos os momentos signtâcativos de sua vida como elementos encadeado-
res e preparatórios do grande ato: o crime. A potência crim inal (periculosi­
dade), que inevitavelmente se traduz no ato ilícito, passa a constituir,
neste modelo de interpretação, a essência do criminoso. Com a realização
do ato, o passado e o futuro do crim inoso ficam comprometidos com o
impulso delituoso —o passado, na reconstrução historiográfica do crime;
o futuro, na projeção de sua inexorável repetição.
N o entanto, em bora a questão da essencialização esteja entrelaçada
com o problema da pena e seja fundamental para compreender as inúm e­
ras formas de interpretação do fenôm eno delitivo, é especificamente o

1 CARVALHO, Antimanual de Criminologia, pp. 29-32.


segundo produto da m odernidade ( e d i f i c a ç ã o d e s o l u ç õ e s u n i v e r s a i s )
que adquire relevância neste estudo.
O padrão científico (positivista) desenvolvido na m odernidade2 induz
o campo das ciências criminais a simplificar ao extremo a questão criminal.
Esta redução de complexidade implica que a pena crim inal seja proposta
como mecanismo exclusivo de controle social. Independente da diversida­
de do ilícito praticado, as doutrinas penais, notadamente os modelos dog­
máticos ortodoxos, projetaram como solução única e universal ao proble­
ma do crim e a pena criminal.
Contudo, desde a criminologia crítica —com especial ênfase às leitu­
ras abolicionistas e à contribuição do pensamento crítico pós-modemo —,
percebe-se a insuficiência desta redução da pluralidade das condutas ilíci­
tas em uma unidade interpretativa (crime) e da proposição da pena como
solução exclusiva — a fórmula dogmática reduz os problemas em casos-
-padrão (crime), vinculando-os a um a resposta-receituário (pena). A
crise da pena está vinculada, em muito, ã incapacidade de produção de
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

soluções inovadoras no interior deste modelo simplificador.


Os sintomas de esgotamento das fórmulas ortodoxas da dogmática
penal são percebidos em algumas indagações relativamente simples pro­
postas desde a emergência do paradigma rotulacionista: primeiro, quais os
critérios que perm item agregar condutas significativamente díspares no
mesmo rótulo (crime); segundo, como se justificam respostas padronizadas
(pena) para problemas distintos. Ao abstrair o processo artificial de tipifi­
cação penal, resta o questionam ento dos pontos de convergência que
perm item que condutas humanas distintas sejam reunidas sob o mesmo rol
de incriminação. Pense-se, p. ex., nas marcantes autonomias entre os atos
de violência física contra a pessoa e as condutas de gestão de risco de ins­
tituições financeiras; as violências praticadas nas relações afetivas e os atos
de desvio de valores de órgãos públicos; a violência contra o patrim ônio e

2 O significado atribuído ao termo padrão científico da modernidade — que igualmente pode­


ria ser designado como hábito mental ou firm a mentis moderna, nas palavras de Alexandre
Pandolfo (PANDOLFO, A Criminoloigia Traumatizada, p. 95) - é o de identificação de um
modelo narrativo (ou padrão epistemológico), de inspiração positivista, que se caracteri­
za pela construção de sistemas teóricos universais para análise (explicação) e solução dos
mais distintos fenômenos da vida, como o agir e a condição humana; a relação do homem
com a natureza, com a sociedade e com as instituições; as formas de construção, de ftm-
damentação e de edificação dos sistemas sociais e do Estado. Assim, ao referir a ‘crise dos
paradigmas modernos’, delimita-se o ponto de exaustão (fragmentação) deste modelo de
pensar e fazer ciência por meio de metanarrativas.
as condutas danosas ao meio ambiente; o abuso sexual e a omissão de in­
formação de renda aos órgãos competentes. Comparações que podem ser
propostas ad infinitum, chegando às fronteiras entre os atos lícitos e ilícitos
estabelecidas pela legislação penal.
O atual cenário científico e político-crim inal, após a consolidação
das hipóteses apresentadas pelas correntes críticas, aponta para a insuficiên­
cia deste modelo reducionista e a necessidade urgente de as ciências cri­
minais reconhecerem em seu universo de análise os elementos de comple­
xidade que marcam as relações contemporâneas. Em relação ao campo do
controle punitivo, reconhecer a complexidade dos problemas que envolvem
as violências (interpessoais, institucionais e simbólicas) significa perceber
a diferença substancial entre os inúmeros atos desviantes criminalizados; a
seletividade do sistema punitivo; a vulnerabilidade de determinadas pes­
soas e grupos sociais; a incapacidade de as penas cum prirem suas funções
declaradas; a violência inerente às agências de punitividade —violência do
sistema penal, conforme destaca David Sánchez Rubio, que não é m era­
mente conjuntural, mas estrutural3. A percepção destas variáveis é requisito
essencial para que possam ser oferecidas novas respostas, formais e infor­
mais, para o exercício democrático e não violento do controle social.
A possibilidade de superar a crise do direito penal —que é a própria
crise das narrativas legitimadoras da pena —é reconhecer que para inter­
pretar os problemas complexos que envolvem as violências contemporâneas
são necessários instrumentos igualmente complexos de análise, avessos às
respostas binárias, unívocas e universais. Mais especificamente, estilos de
pensar que sejam alheios ã pretensão de verdade inerente ã vontade de
sistema que orientou os m odelos científicos modernos.
A propósito, im portante lembrar que esta reivindicação do reconhe­
cimento do delito como ato complexo é um dos postulados fundacionais
do paradigma do etiquetamento: “ao perceber o desvio como ação coletiva a ser
investigada em todas as suas dimensÕK, como qualquer outra form a de atividade
coletiva, notamos que o objeto do nosso estudo não é o ato isolado cuja origem deve­
mos descobrir. A o contrário, o ato que se alega ter ocorrido, quando ocorreu, se situa
em uma rede complexa de atos que envolvem outros, assumindo parte desta comple­
xidade em razão da maneira como distintas p asoa s e grupos o definerí'1'.

3 SÁNCHEZ RUBIO, Inversión Ideológica y Dereiho Penal Mínimo, Decolonial, Intenultural


y Antihegemónico, p. 144.
* BECKER, Outsiders, p. 189.
5.1.2. Em relação às narrativas de legitimação da pena, a desconstru-
ção operada pela criminologia crítica atinge, fundamentalmente, as doutri­
nas de prevenção especial positiva; sobretudo porque o paradigma do
correcionalismo representa a última grande narrativa da modernidade penal.
Após sua desconstrução acadêmica e o seu colapso político-criminal, emer­
giram inúmeras tentativas falhas de compreensão, explicação e justificação
da pena que, em última análise, apenas reforçam o diagnóstico de crise.
Conform e foi possível perceber, com o esgotamento do modelo
correcional na década de 1980, inúmeras proposições penológicas são apre­
sentadas como alternativas. N o entanto, se a principal característica da
primeira e da segunda modernidade penal foi a adoção de um modelo
explicativo fundamental sobre o crime, o criminoso e a pena5, o cenário
das últimas décadas é o de total f r a g m e n t a ç ã o d a s t e o r i a s d a p e n a .
Emergem e coexistem distintos discursos, na maioria das vezes contradi­
tórios, sem que se tenha um consenso m ínim o sobre o papel da sanção
*4*5 FU'. DlQU Dí éM lW j, NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

penal (e do próprio direito penal) na contemporaneidade.


O prim eiro sinal do esgotamento das grandes narrativas penológicas
é o do inconseqüente recurso, utilizado pela dogmática penal, aos s i s t e m a s
m i s t o s d e j u s t i f i c a ç â o (teorias unificadoras, ecléticas ou polifuncionais)6.
A opção por teorias unificadoras ou polifuncionais, que inclusive caracte­
riza grande parte das reformas legislativas do final do século passado, é
uma das heranças modernas de crença fundamentalista nas metanarrativas
e nos sistemas integrais. Isto porque é possível perceber nos discursos uni-
ficadores a ideia de que, ao atribuir ã pena funções plurais, o sistema (mis­

5 Importante lembrar que nos discursos tradicionais os horizontes do sistema punitivo são
definidos a partir da exposição da imagem sobre a conduta humana e as finalidades da
pena, o que inexoravelmente é desdobrado em princípios configuradores da criminaliza­
ção e requisitos e pressupostos de responsabilidade penal. Os princípios configuradores
permitem que os sistemas sejam dotados de harmonia e coerência.
6 Note-se, p. ex., a opção de R oxin que, após realizar narrativa e crítica das tradicionais
teorias da pena, expõe distintas formas de modelos ecléticos (teorias unificadoras retri-
butivas e preventivas) para, ao final, defender sistema misto de prevenção especial e de
prevenção geral delineado a partir do conceito de culpabilidade —"A teoria penal aqui de­
fendida pode ser resumida como a seguinte afirmação: a pena serve aos fins de prevenção espeàal e
geral. Se limita em sua magnitude através da medida da culpabilidade, mas pode ficar aquém deste
limite quando necessário às exigências preventiw-especiais e não se oponham exigências preventivo-
-gerais mínimas” (RO XIN, Derecho Penal, p. 103).
to) anularia as lacunas e as contradições parciais das teorias individuais,
(re) estabilizando a estrutura punitiva.
N o entanto, esta vontade de sistema não soluciona a questão e apenas
oculta outro problema das grandes narrativas penológicas, qual seja, o de
que a fusão de sistemas parciais deficitários não gera automaticamente sua
correção, mas, ao contrário, patologiza suas crises. A opção das doutrinas
penais pela criação de modelos unificadores parece revelar uma idealização
romântica de que os sistemas são independentes, autônomos e autorrefe-
renciais e, portanto, dotados de um a capacidade autogestionária na qual a
integração de funções autom aticam ente corrige as crises, anulando as
contradições e preenchendo as lacunas. De maneira autofôgica, o que se
propõe como alternativa à incapacidade resolutiva do sistema é mais siste­
ma. E não apenas a substituição de um modelo por outro, mas a fusão de
distintos discursos e de suas funções (declaradas).
Rivacoba y Rivacoba percebe o recurso às teorias ecléticas como
uma solução simplista de resultado plenam ente insatisfatório, pois baseado
exclusivamente no que designa como “magia dos conceitos ou das palavras”.
Segundo o autor, a enunciação dos modelos ecléticos suscita problemas de
duas ordens. O prim eiro seria o da incompatibilidade lógica entre as fina­
lidades propostas e a possibilidade de efetivação. O segundo seria o da
inevitável subordinação de fins secundários ao principal, situação que
implicaria discutir se a realização do objetivo de nível superior não acar­
retaria a frustração dos demais. Assim, “muito longe de resolver o problema, tal
posição [eclética], que, em realidade, não procede por elaboração, mas por acumu­
lação, tem, por força da lógica, que reunir os inconvenientes que é possível detectar
em cada um dosfins que reúne e as críticas que cabe dirigir às teorias que patrocim m
ou multiplicar umas ou outras”7. Conclui, ao dialogar com Roxin, que o
efeito da união de finalidades díspares não é a supressão dos inconvenien­
tes, mas sua multiplicação.
Os efeitos perversos das teorias combinatórias são compartilhados
por Zaffaroni e Batista: “além da incoerência teórica, a gravidade está nas conse­
qüências práticas destas teorias combinatórias ( . . . ) . A s combinações teóricas incoe­
rentes, em matéria de pena, são muito mais autoritárias do que qualquer uma das
teorias puras, pois somam as objeção de todas as que pretendem combinar e perm i­
tem escolher a pior decisão em cada caso”*.

7 RIVACOBA Y RIVACOBA, Función y Aplicación de Ia Pena, p. 31.


8 ZA FFA R O N Iet al., Direito Penal Brasileiro I, p. 140.
5.1.3. O segundo sinal de crise das narrativas de justificação, que
não se diferencia substancialmente da elaboração de teorias ecléticas, é o
da r e v i t a l i z a ç ã o d e d i s c u r s o s d e s l e g i t i m a d o s . Este tipo de proposta,
igualmente apresentada nas últimas décadas, opta, fundamentalmente, por
reconfigurar os tradicionais modelos como, p. ex., a proposição do critério
da pena justa (teoria do justo merecimento) na recomposição do retribu-
tivismo; a redefinição dos modelos de dissuasão (teoria do cálculo racional)
e a reforma do utilitarismo (teoria garantista) para recapacitação da pre­
venção geral negativa (intimidação); a reavaliação dos fundamentos de
incapacitação e de neutralização (teorias atuariais e teorias funcionalistas-
-sistêmicas) na retomada da prevenção geral positiva.
Juntam ente com os modelos polifuncionais, as tendências recons-
trutoras foram as principais respostas fornecidas pelos campos jurídico e
criminológico no cenário de crise. Contudo, a observação crítica perm ite
perceber que no atual estado da arte penológica estão exauridas não apenas
as grandes narrativas justificadoras como estão esgotadas as suas possibili­
dades de reconstrução.
U m dos indicativos da exaustão dos metadiscursos é a ausência, no
mainstreamjurldico-criminológico, de um sistema (unitário ou eclético) razoa­
velmente consensual de explicação ou dejustificaçâo da pena. Em decor­
rência da exaustão dos discursos, presencia-se na atualidade a coexistência
de enorm e variedade de teorias, servidas à la Mrte ao público consumidor
do sistema penal conform e sua opção político-crim inal, com especial
destaque e relevância aos discursos autoritários neoconservadores que efe­
tivam o atual cenário punitivista.
A ausência de consenso m ínim o sobre as funções da pena (e do
direito penal), a proposição de modelos polifuncionais, a revitalização de
discursos deslegitimados, a coexistência de modelos contraditórios e a
predominância de discursos e projetos político-crim inais autoritários ca­
racterizam o cenário de fragmentação das teorias dejustificaçâo.
5.1.4. Segundo Ericson e Carrière, esta f r a g m e n t a ç ã o d o s d i s c u r ­
s o s c r i m i n o l ó g i c o s na contemporaneidade configura-se como um a es­
pécie de condição crônitó, derivada de um processo mais amplo que atinge a
academia, as instituições sociais e, de forma mais ampla, a própria socie­
dade de risco9. Assim, o fenômeno da fragmentação apresenta-se com o um

5 ERIC SO N e C A R R IÈ R E , La Fragmentación de la Criminologia, pp. 157-190.


sintoma, um a situação que evidencia a profunda crise paradigmática e que
representa o ponto de esgotamento da racionalidade crim inológica/peno-
lógica m oderna (instrumental). A crise, porém , aponta a necessidade de
criação de estratégias para salvação, redefinição, reconstrução, abandono
ou esfacelamento deste modelo epistemológico convalescente.
Todavia, se é possível dizer que a fragmentação é um sintoma com um
a todas as ciências, nas ciências criminais a penologia parece ser o campo
de maior sensibilidade. Não apenas por ser a pena o ponto central dos sis­
temas punitivos, mas, sobretudo, pelo fato de os seus discursos de legiti­
mação (teorias absolutas e relativas) terem sido expostos abertamente ã
crítica desconstrutora desde a fundação do correcionalismo. Aliás, possi­
velmente o único consenso que a penologia contemporânea possa susten­
tar é o da evidência empírica da absoluta incapacidade de os modelos
justificacionistas cum prirem suas funções declaradas.
A não correspondência de nenhum a finalidade atribuída pelas teo­
rias da pena, decorrente sobretudo das diversidades de percepção sobre o
impacto que a experiência punitiva gera nos criminalizados e nos distintos
grupos sociais, torna insustentável a crença nas doutrinas de legitimação.
Assim, a tarefa que compete ao pensamento crítico contemporâneo é a de
reivindicar novas perspectivas, distintas da revitalização de antigas teorias
e avessas ã falsa estabilidade anunciada pelos discursos de unificação. N o­
vas perspectivas que tenham como princípio a descrença nos mitos legiti­
mantes e o reconhecim ento da complexidade das relações sociais nesta era
além -da-modem idade.
Fundamental frisar, porém, que reconhecer a fragmentação e a in­
suficiência das grandes narrativas sobre as penas não implica assumir um
relativismo absoluto. Significa, apenas, sustentar que as metanarrativas não
dão conta da complexidade da vida e, no caso das ciências criminais, das
violências que lhes são inerentes.
Registre-se, ainda, que o sintoma da fragmentação atinge o próprio
pensamento crítico, notadamente porque algumas vertentes da crim ino­
logia crítica flertam , para dizer o m ínim o, com as metanarrativas. Assim,
se a criminologia crítica segue fornecendo im portantes recursos teóricos
para analisar a violência estrutural do sistema punitivo, é insuficiente para
compreender, p. ex., toda a extensão da violência de gênero, motivo pelo
qual é necessário recorrer ã criminologia feminista. A criminologia femi­
nista, a seu turno, ao partir de uma clivagem entre os gêneros (masculino
e feminino), é incapaz de responder satisfatoriamente, p. ex., aos problemas
da violência homofóbica. Assim, é necessário agregar uma perspectiva
queer para compreender esta especificidade10. As três perspectivas (crimi­
nologia crítica, criminologia feminista e criminologia queer), porém, não
são conflitantes; inclusive porque todas derivam de um a perspectiva críti­
ca em relação ã violência estrutural e, sobretudo, comungam da descons-
trução do paradigma positivista.
A alternativa crítica ã crise e ã fragmentação pode ser, portanto, a
bricolagem de perspectivas que, apesar de autônomas, compartilhem da
desconstrução dos pressupostos configuradores do positivismo crim inoló­
gico. A ideia de bricolagem, p. ex., pode ser bastante virtuosa como téc­
nica instrum ental de composição de um pensamento de vanguarda.
Logicamente que mesmo a bricolagem de perspectivas com um
horizonte emancipatório com um pode gerar conflitos na resolução de
problemas particulares —p. ex., a tensão entre a criminologia crítica e a
criminologia queer no que tange ã criminalização da homofobia; o choque
entre criminologia crítica e criminologia feminista em relação ã crim ina­
lização da violência doméstica e às especificidades da violência contra a
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

m ulher no sistema penal; a descontinuidade metodológica entre as leituras


estruturais da violência do sistema penal realizadas pela criminologia crí­
tica (macrocriminologia) e as técnicas etnográficas para compreensão dos
desvios cotidianos desenvolvidas pelo interacionismo e pela criminologia
cultural (microcriminologia).
Mas estes conflitos não se constituem como problemas insuperáveis
para os pesquisadores que assumem a radicalidade da complexidade que
caracteriza o contemporâneo. N o entanto, possivelmente sejam insuperá­
veis para quem ainda nutre, explícita ou implicitamente, o sonho positi­
vista das grandes narrativas e necessita de um a teoria completa e coerente
para explicar a realidade —como se completude e coerência fossem situações
atingíveis.

126 5 .2 . Alternativa Inviável: Reconfiguração da Gramática


Correcionalista

5.2.1. Aceitar a convocação da crítica contemporânea no sentido de


incorporar a complexidade dos problemas estudados pelas ciências crim i-

10 Neste sentido, CARVALHO, T ks Hipóteses e uma Provocação sobre Homofobia e Ciências


Criminais, pp. 2-3.
nais, reconhecendo que a diferença entre os atos delitivos requer a inven­
ção de múltiplas respostas para que seja possível criar novas estratégias para
o exercício democrático e não violento do controle social, implica propor
formas não ortodoxas de interpretação. Na penologia, significa superar as
metanarrativas e os seus procedimentos simplificadores de proposição de
respostas unívocas e universais.
Todavia, o mainstream das ciências criminais, preso ã tradição ilum i-
nista das doutrinas de justificação, mesmo reconhecendo as suas crises,
tende a enfrentar a convocação da complexidade de forma reativa. Assim,
como visto anteriormente, as novas narrativas, m esmo confrontadas com
o cenário de crise, acabam readequando antigas fórmulas.
Dentre os principais modelos contemporâneos, o proposto por Gar­
land talvez represente de forma mais evidente os impasses teóricos da pe­
nologia. C om o evidente objetivo de resgatar o projeto político-crim inal
que se desdobra das doutrinas de prevenção especial positiva, Garland cria
dois tipos ideais com a finalidade de comparar as alternativas ã crise dos
discursos de legitimação: modernismo e pós-modemismopenal. O pressuposto
de sua técnica de análise é o da dúvida sobre a efetiva validade e relevância
da crítica pós-moderna, para pensar questões relativas ao crime, ã punição,
ã criminologia e à penologia.
A problematização é colocada a partir da definição da criminologia
modetw como “estrutura de problemas, conceitos eformas de pensamento que emer­
giram no final do século X IX , produzida pela confluência da psiquiatria, da antro­
pologia criminal, das investigações estatísticas e da reforma social e disciplinar nas
prisões — estrutura que elaborou as coordenadas para as instituições do penal-welfa-
re desenvolvidas nos 70 anos seguintes” Posteriormente, ao eleger a pena como
centro nervoso da crise e como o recurso interpretativo dos impasses con­
temporâneos, indaga “se a noção de pós-modemidade mostraria uma descrição
plausível da atualidade da pena e se apresentaria signifitódo de largo akance”u .
A partir desta conceituação e indagação, o autor reconstrói linearm en­
te a cultura punitiva moderna, iniciando com a ruptura provocada pelo
racionalismo penal (Montesquieu, Voltaire, Beccaria, Howard, Bentham
e Mill) e as mudanças ocorridas na década de 1890, quando irrom pe o
modelo de tratam ento com o positivismo correcionalista. Apesar de per-

11 GARLAND eSPARKS, Criminology, Social Theorç* and the Challenge of O ur Tim&, p. 193.
12 GARLAND, Penal Modemism and Postmodemism, p. 47.
ceber a explícita vinculação do modelo de tratamento (correcionalismo)
com a ciência criminológica emergente (criminologia positivista), Garland
vê neste paradigma fortemente inspirado nas políticas intervencionistas do
Wdfare State um a nova racionalidade penal: modernismo penal ou penologia
moderna (penological modemism). A principal função deste modelo punitivo
que orientou os rumos das políticas criminais e da criminologia no sécu­
lo X X seria a de compatibilizar a base principiológica do racionalismo
ilustrado com as demandas de tratam ento penal individualizado.
N o entanto, conform e exposto anteriormente, após quase um sécu­
lo de permattância do correcionalismo13, a partir da década de 1970, a am­
bivalência — contradição ou impropriedade talvez fossem termos mais
adequados —das políticas de intervenção punitiva do discurso penal-welfa-
re produziu o declínio do ideal reabilitador e a crise da modernidade penal.
Garland sustenta, porém , que, apesar da crise, o pós-modernismo
criminológico não oferece alternativas viáveis para enfrentar o declínio do
correcionalismo. O autor sustenta que o pensamento pós-moderno nas
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

ciências criminais aborda as esferas de punitividade como campos sociais em


jlu xo nos quais a pena seria interpretada e representada apenas em seu as­
pecto simbólico, como especial_/ôrma de comunicação, desprendida de suas ca­
racterísticas principais como a violência14. Assim, a pena seria descrita,
pelos pós-modernos, como pós-reabilitadora, pós-disciplinar, pós-crim i-
nológica, pós-industrial, pós-utilitarista.
Garland entende que esta ruptura com o passado evocada pela pós-
-m odernidade crim inológica produziria graves efeitos, pois o reconheci­
m ento do colapso das grandes narrativas e o deslocamento do sentido da
pena para os níveis simbólicos e comunicacionais obstaculizariam a refor­
ma e o progresso da ciência penal. A desilusão com o passado e a exaustão
da tradição configurariam, na visão do autor, um contexto inédito de
ausência de visões projetivas e de teorias filosóficas coerentes, situação que
12g" refletiria um cenário de autoritarismo nas políticas criminais.

13 Percebe Vera M alaguti Batista que o modelo de intervenção punitiva gestado pelo
positivismo etiológico, ao interpretar o delinqüente e a delinqüência a partir da ideia de
degenerescência, ''pressupõe práticas para sua |do criminoso] modificação ou correção; surgem as
estratégias do conecionalismo. Talvez uma das principais permanências dessa racionalidade positivista
esteja no paradigma etiológico, nessa maneira de pensar através das causas, estabelecendo uma meca-
nicidade organicista sem saída” (BATISTA, Introdução Crítica á Criminologia Brasileira, p. 45).
14 GARLAND, Penal Modemism and Postmodemism, pp. 56-60.
Igualmente, ao optar pelos conceitos de alta e baixa modernidade
(high e low modemity, Giddens), Garland agrega outros três problemas ao
discurso pós-m oderno: primeiro, da ambigüidade dos conaitos-chave, o que
produziria análises demasiadamente abstratas e empiricamente indeterm i­
nadas; segundo, de um a espécie de manutenção velada do racionalismo ilustrado,
pois a crítica pós-m oderna não estaria totalm ente desassociada de outros
discursos tipicamente modernos; terceiro, da manutenção e continuidade do
correcionalismo como proposição político-crim inal central, ao menos no
nível discursivo, apesar do ceticismo acadêmico15.
Conclui, portanto, que a crise do sistema penal, identificada no
declínio do ideal ressocializador e na desilusão com o trabalho desenvol­
vido pelas instituições prisionais, não poderia ser vista como um sintoma do
esgotamento da modernidade. Pelo contrário, sustenta que esta crise fomen­
ta a reinvenção do projeto modernidade a partir da reforma do sistema penal16.
5.2.2. É im portante notar, preliminarmente, que a crítica ao que
Garland intitula como pós-modemismo penal acaba sendo um a simples répli­
ca às evidências anteriormente apresentadas pela criminologia crítica; in­
clusive porque há um a im portante zona de convergência entre ambas as
perspectivas teóricas da criminologia crítica e da criminologia pós-m oder­
na: a proposição de um pensamento contraortodoxo.
Segundo Jock Young, os temas enfrentados atualmente pelo pensa­
m ento crítico pós-m oderno estavam presentes na constituição do labeling
approach e foram mantidos no debate proposto pelas tendências do aboli­
cionismo penal. Possível dizer, inclusive, “que a pós-modernidade chegou
comparativamente cedo no desenvolvimento da criminologia do pós-guerra (...)”, pois
“se alguém examina a teoria da rotulação e a sua critica da criminologia tradicional,
pode encontrar a maioria dos temas da pós-modernifade ”17.
Arrigo e Bernard, ao comparar as perspectivas teóricas da criminolo­
gia radical, da criminologia do conflito e da criminologia pós-moderna, sustentam
que esta perspectiva crítica inclusive “abarca, de forma ostensiva, pauta signi­
ficativamente mais critica do que aquela apresentada pela criminologia radical”18.

15 GARLAND, Penal Modemism and Postmodemism, p. 62.


16 GARLAND, Penal Modemism and Postmodemism, p. 66.
17 YO UN G, Escribiendo en la Cúspide dei Cambio, p. 80.
18 A R R IG O e B ER N A RD , Postmodern Criminology in Relation to Radical and Conflict
C riminolo^, p. 39.
Isto porque o pensamento pós-m oderno se desprende das análises da rea­
lidade dominadas por verdades fundantes, por relações de causalidade e
por processos lineares, convenções típicas das ciências m odernas. Em
perspectiva semelhante, W heeldon e H eidt entendem que o “pós-modernis-
mo éfundamentalmente crítica do Iluminismo e do positivismo científico. Enquan­
to alguns pós-modemos negam a possibilidade de verdade, outros a veem como rea­
lidade construída, que pode ser indefinível, sem sentido, arbitrária”19.
Na qualidade de discurso de crítica ao paradigma científico da Ilus­
tração, instrum entalizado nos últimos séculos por meio do positivismo, é
possível verificar identidades substanciais entre o pensamento pós-m oder­
no e as tendências criminológicas contemporâneas que se desdobraram da
criminologia crítica. Aliás, entende-se que em relação aos pressupostos
desconstrutores das teorias de legitimação da pena exista um a harmonia
material entre estas perspectivas. N o entanto, se as correntes mais tradi­
cionais da criminologia crítica mantêm o debate das ciências criminais
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

centrado em temas inegavelmente relevantes como crime, criminalização,


reação social, instituições de controle e poder político e econômico, as tendências
pós-críticas procuram inserir novas perspectivas na investigação, seja em
relação à forma de abordagem, seja em relação aos próprios temas abordados20.

19 W HEELDO N e HEIDT, Bridging the Gap, p. 316.


20 O termo criminologiapós-crítica é utilizadopara designar todas as correntes de pensamen­
to, derivadas do paradigma do etiquetamento e da criminologia crítica, que mantêm consis­
tente a crítica às inúmeras manifestações da criminologia ortodoxa e ao punitivismo. Em
perspectiva primeira, historicamente maispróxima ao momento de consolidação da cri­
minologia crítica, podem ser citadas as correntes do abolicionismo, a criminolotgia feminista,
o realúmo de esquerda, o tealismo marginal, o minimalismo e, inclusive, ogarantismo penal.N o
segundo momento, destacam-se as tendências contemporâneas que resgatam o paradigma
da rotulaçào, como a criminolotgia cultural, a criminologia da não violência (peacfflaking crimino-
130 ^0Sy)< a criminologia pós-mod^na, a criminologia encarcerada (convict criminology) — utilização
parcial da classificação proposta por DeKeseredy sobre as escolas criminológicas críticas
contemporâneas (DeKESEREDY, Contemporary Criticai Criminology, pp. 25-58).
A diferença básica entte os modelos de geração pós-crítica é que, enquanto as tendên­
cia:! da primeira geração mantêm a perspectiva macrocriminológica—crítica estrutural ã
seletividade dos processos de criminalização e ã marginalizaçâo promovidapelo sistema
penal—, as perspectivas de segunda geração, sem abandonai: os temas clássicos, retomam
o olhar etnográfico (microcriminológico) para abordai: os problemas das violências do
cotidiano, produzidas inclusive nas relações interpessoais, e das práticas individuais e
coletivas de resistência ao punitivismo.
A inserção, p. ex., das formas de construção da linguagem da crimina­
lização e dos processos de comunicação da gramátÍM punitiva proporciona
significativos acréscimos na interpretação do fenômeno pena. A pesquisa
sobre a formação lingüística e os mecanismos de produção, de proliferação
e de realo cação dos discursos punitivos de legitimação, inegavelmente
amplia as fronteiras das ciências criminais, potencializando, inclusive, a
superação das narrativas universalistas. Nas conclusões de Arrigo e Bernard,
a incorporação destas variáveis é substancialmente inovadora, pois a lin­
guagem “(...) molda, modifica e define todas as relações sociais, todas as práticas
institucionais e todos os métodos de conhecimento. Fundamentalmente o pós-moder-
nismo argui que a linguagem estrutura o pensamento”2'.
Na qualidade de correntes teóricas que se desdobraram do movi­
m ento da criminologia crítica, duas perspectivas anteciparam as tendências
pós-modernas na denúncia da gramática punitiva: o abolicionismo penal e a
criminologia feminista. Para Louk Hulsman, a alteração da linguagem penal
seria um a das principais estratégias abolicionistas para rom per com a ob­
sessão pelo estilo punitivo e, em conseqüência, com o ciclo de violência
estabelecido nas instituições22. Por outro lado, o feminismo soube dar vi­
sibilidade e trazer ao debate criminológico o m odelo patriarcal que estru­
tura a sociedade ocidental, objetivando desconstruir os discursos sexistas
que culpabilizam, punibilizam ou vitim izam as mulheres, seja na qualida­
de de autoras ou vítimas de crimes23.

Sobre a criminologia crítica como perspectiva macrocriminológica, conferir BA­


RATTA, Criminologia Critica e Critica do Direito Penal, pp. 159-170. Sobre a retomada do
paradigma do etiquetamento e os novos horizontes (miciocriminológicos) da criminolo­
gia contemporânea, inclusive em relação â inovação e ã ampliação dos temas de investi­
gação, conferir CARVALHO, Criminologia Cultural, Complexidade e as Fronteiras de Pesqui­
sa nas Ciências Criminais, pp. 294-338; CARVALHO, Antimanual de Criminologia, pp.
27-42; e CARVALHO, Das Subculturas Desviantes ao Tribalismo Urbano, pp. 149-223.
21 A R R IG O e B ER N A RD , Postmod&n Criminology in Relation to R adial and Conflict
Criminology, p. 39.
22 Nestesentido, HULSM AN eCELIS, Penas Perdidas, p. 100-102; HULSMAN, Temas
e Conceitos numa Abordagem Abolicionista da Justip Criminal, pp. 203-204.
23 Nestesentido, A N D R A D E, Sistema Penal e Violência Sexual contra a Mulher, pp. 81-108;
ANDRADE, Criminologia e Feminismo, pp. 105-117; LA R RA U R I, Violência Doméstica y
Legitima Defensa, pp. 11-88; Larrauri, Criminologia Critia y Violência de Gênero, pp. 55-80;
GELSTHORPE, Feminism and Criminology, pp. 112-143.
Desta forma, se é possível perceber a influência do pensamento pós-
-m oderno na crítica às ciências criminais contemporâneas, o campo da
penologia parece ser o de m aior sensibilidade ao im pacto desconstrutor.
Não apenas em razão de ser a pena o ponto central dos sistemas formais de
controle penal, mas, sobretudo, em decorrência do esgotamento das nar­
rativas de legitimação (teorias da pena). O pensamento crítico pós-m oder­
no perm ite, pois, problematizar exatamente os idealismos presentes nos
discursos de legitimação.
5.2.3. A posição refratária de Garland em relação à crise e à frag­
mentação das narrativas da pena —postura compartilhada por inúmeros
penalistas e criminólogos das mais distintas origens político-crim inais —
acaba por provocar, em prim eiro lugar, a subvalorização da desconstrução
realizada pelo pensamento criminológico crítico e, consequentemente, em
segundo, a revitalização dos modelos de legitimação24.
A postura do autor em relação ao esfacelamento das doutrinas da
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

pena provoca, em realidade, a romantização do m odelo correcionalista


penal-welfare, encobrindo no seu passado autoritário as suas práticas higie-
nistas, os seus regimes de exclusão violenta e os seus discursos inquisitivos
travestidos de friso humanitarismo25. Além disso, na interpretação sobre
as potenciais violências geradas nas práticas correcionais, o autor idealiza

24 Interessante perceber que em relação (a) ã postura reativa quanto aos fenômenos da
fragmentação e da complexidade, (b) ã subvalorização da criminologia crítica e (c) ã re­
vitalização de modelos desconstruídos no confronto entre funções declaradas e fanções
exercidas, Roxin, no campo da dogmática penal, representa o mesmo papel exercido por
Garland na criminologia. O modelo proposto por R oxin será amplamente descrito na
seqüência, na exposição dos vínculos dogmáticos entre culpabilidade e pena.
2i Garland é explícito ao sustentar que o modelo punitivo do Estado de Bem-Estar Social
estava imerso em política estatista progressista, baseada na desejável fanção de reintegrar
132 criminosos e indivíduos desviantes. A idealização do correcionalismo minimiza, inclusi­
ve, o uso perverso de técnicas de profilaxia incorporadas pelo sistema penal: "a aiminolo-
gia correcional que floKsceu em meados do século X X na Grã-Bretanha e nos fetados Unidos não
cornspondia às versões caricaturizadas apresentadas posteriormente pelos seus críticos. A maioria dos
reformadores e criminólogos não tinha ampmmisso sério com o deterninismo, e sequer sustentava que
o delinqüente tipia fosse 'doente' ou ‘profondamente patológico’. Os programas de tratamento que
se Kcomendavam e implementavam eram raramente intrusivos (medidas de 'lavagem cerebral’), im­
postos coercitivamente, e o denominado ‘modelo médico’ de tratamento era, em tvalidade, ponto de
referência menos importante que a ideia de desenvolvimento educativo e assistência social” (GAR­
LAND, The Culture o f Control, p. 43).
os instrum entos liberais do direito e do processo penal como efetivos e
plenamente aplicáveis no controle das irregularidades institucionais26.
O absoluto descarte das evidências empíricas apresentadas pela cri­
minologia crítica no que tange às violências produzidas no e pelo paradig­
ma correcional perm ite não apenas perceber, no discurso de Garland, uma
reapropriação das doutrinas de prevenção especial (neocorrecionalismo),
mas, sobretudo, identificar em seu modelo dejustificaçâo um a defesa do
pensamento criminológico ortodoxo.
Os efeitos desta opção, porém, ultrapassam as fronteiras da formação
teórico-acadêmica e da construção de práticas políticas nas instituições
punitivas. A idealização do modelo correcional mascara a formação de uma
cultura sanitarista de alta intensidade autoritária, sobretudo pelos efeitos que
produziu e produz na realidade periférica. Neste aspecto, as lições de Vera
M alaguti Batista sobre o positivismo no Brasil são irrepreensíveis: “o posi­
tivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente enraizada na in-
telligentsia e nas práticas sociais e políticas brasileiras; ele fo i prinápalmente uma
maneira de sentir o povo, sempre itferiorizado, patologizado, discriminado e, por
fim , criminalizado”27.
Além disso, o resultado prático deste apego rom ântico â autoridade
científica dos modelos liberais e correcionalistas é o d e obstaculizar a cria­
ção de novas formas de enfrentar os problemas contemporâneos, sobretu­
do o das violências institucionais, notadamente porque reforça a crença
fundamentalista na capacidade de as estruturas do sistema penal produzirem
resultados positivos com suas intervenções. Mais: ofuscar a desconstrução

26 Neste aspecto, é fundamental lembrar não apenas a existência de germens antiliberais


no discurso do liberalismo como a incapacidade instrumental (fítica) dos seus institutos
de contrair a violência punitiva. Ensinam Zaffaroni e Batista que “o saber penal da etapa
ftndacional liberal havia alcanpdo um admirável nível de pensamento, mas sob o signo da rnntradi-
fão entre a necessidade discuniva de limitar e a de relegitimar. Camgava em seu ceme o gérmen do
seu fiatesso, pois a legitima(ão do poder punitivo tende sempre a romper com qualquer limite, tendo
em vista não ser nunca racional e sé poder basear-se em racionalizações, as quais, na condição de
falsas razões, estão pwpensas a desencadear e a varrer qualquer limitação aojxder” (ZAFFARONI
et al., Direito Penal Brasileiro I, p. 550).
Sobre o tema, conferir ainda ZAFFARONI, La Rinascita dei Diritto Penale Liberale o
la ‘Croce Rossa’ Giudiziaria, pp. 393-394; FERRAJOLI, Note Critiche ed Autocriti&e intomo
alia Discussione su Diritto e Ragione, pp. 497-499; e BARATTA, Criminologia Crítica e Crí­
tica do Direito Penal, pp. 41-48.
27 BATISTA, Introdução Crítica à Criminologia Brasileira, p. 48.
prática e teórica do sentido e da instrum entalidade da punição, ou seja,
encobrir a deslegitimidade destes discursos de alta abstração que professam
a possibilidade de a sanção crim inal exercer uma função positiva, repre­
senta, em última análise, uma profissão de fé na pena como um fenômeno
natural e insuperável.
Em sentido oposto ao do retom o romântico ao passado, as teorias
criminológicas não ortodoxas (críticas e pós-críticas) apostam em alterna­
tivas que pressupõem o reconhecim ento e o m ergulho vertiginoso na
crise como condição de possibilidade para que dela (crise) se possa sair.
Exatamente como alternativa ao cenário de esgotamento e fragmentação
que envolve as teorias da pena —inclusive para que não se incorra no nii-
lismo que caracteriza algumas correntes do pensamento pós-m oderno —,
emergem os discursos agnósticos.

5 .3 . Hipótese sobre os Significados da Pena e a Experiência da


Punição na Era do Grande Encarceramento: o Caso Brasileiro

5.3.1. As contradições e as inabilidades das teorias dejustificaçâo em


estabelecer um dever-ser compatível com o ser da punição não impede que
se pense sobre os s i g n i f i c a d o s d a p e n a na sociedade contemporânea,
sobretudo quais as funções que exerce na era do grande encarceramento.
Aliás, esta foi uma das importantes tarefes exercidas pela criminologia
crítica desde Rusche e Kirchheim er (Pena e Estrutura Social), Foucault
(Vigiar e Punir) e Melossi e Pavarini (Cárcere e Fábrica).
Neste sentido, Geraldo Prado demonstra, contextualizando a dis­
puta metodológica entre causalismo e finalismo na dogmática, com o os
portadores do capital científico ofiáal no direito penal raramente pauta (ra)m
suas investigações a partir das contradições do funcionamento cotidiano
do aparato repressivo e, não invariavelmente, desenvolvem esquemas com ­
preensivos “desprezando as conseqüências produzidas com a adoção de uma ou
outra maneira de inteipretar/aplicar o direito penal. (...) O positivismo [conclui o
autor] cassa a historirídade das ciências soríais”2*. A conclusão cabe perfeita­
mente na alegoria de M ichel Lowy, ao narrar o esforço do pensamento
positivista em atingir a objetividade, libertando-se das pressuposições
éticas, sociais ou políticas: “é um afapnha que fa z pensar irresistivelmente na

28 PR A D O , Campo Jurídico e Capital Científico, p. 30.


célebre história do Barão de Münchhausen, este herói pitoresco que consegue, através
de um golpe genial, escapar ao pântano onde ele e o seu cavalo estavam sendo tra­
gados, ao puxar a si próprio pelos cabelos... Os que se pretendem ser sinceramente
seres objetivos são simplesmente aquela nos quais as pr&suposições estão mais
profundamente enraizadas”29.
Investigar o papel da pena na conjuntura atual implica, em prim ei­
ro lugar, em inserir a punição nos diferentes contextos geopolíticos dos
processos de encarceramento e perceber os distintos impactos das políticas
punitivas. N o caso brasileiro, requer que o fenômeno (punição) seja con­
frontado com a função que exerce na gestão da miséria criminalizada nos
países do capitalismo periférico, notadamente na América Latina.
As políticas criminais se adaptam às especificidades regionais (cen­
trais e periféricas), aumentando ou dim inuindo sualetalidade conforme o
nível de resistência ao punitivism o presente em cada cultura. Culturas
autoritárias tendem a aderir explicitamente ao punitivismo, enquanto so­
ciedades democráticas são, no m ínim o, mais reticentes em legitimar polí­
ticas de encarceramento massivo. O corre que os fenômenos da punição e
do encarceramento derivam de uma densa e complexa rede de variáveis,
o que dim inui sobremaneira as expectativas teóricas de cunho idealista no
sentido do desenvolvimento de um modelo explicativo universal (teoria
da pena).
N o caso brasileiro, a relegitimação da prisão adquire funções ins­
trumentais na nova lógica do capitalismo. N o entanto, diferentemente de
outros países latino-am ericanos, a vulnerabilidade ao encarceramento
atinge grupos m uito particulares, ou seja, os grupos-alvo identificados
como desajustados que necessitam ser neutralizados possuem um a especi­
ficidade ím par, norm alm ente associada aos rótulos atribuídos à juventude
negra, pobre e socialmente marginalizada, vinculada, direta ou indiretamen­
te, ao comércio varejista de drogas ilícitas das grandes periferias urbanas.

29 Prossegue Lowy, argumentando que a possibilidade de libertação dospreconceitos


pressupõe o seu reconhecimento. A dificuldade reside no fato de que a principal caracte­
rística destespreconceitos é que eles não são considerados como propriamente preconcei­
tos, mas como verdades evidentes e incontestáveis: "em geral eles não são sequerformulados,
e permanecem implicitos, subjaantes à investigação àentifica, ctí v&es ocultos ao próprio pesquisador.
Eles constituem o que a sociologia do mnhecimento designa <nmo o campo do wmprovado como evi-
iknte, um conjunto de wnvicções, atitudes ou ideias (do pesquisador e de seu grupo de referência) que
escapa à dúvida, à distância critica ou ao questionamento” (LOWY, A s Aventuras de Karl M a n
contra o Barão de Münchhausen, p. 32).
Por outro lado, é possível sustentar que na experiência nacional a
punição nunca abandonou uma fanção latente de controle violento dos indiví­
duos e dos grupos perigosos e inconvenientes, mesmo nos períodos de predom í­
nio (formal) do correcionalismo. Na atualidade, com o abandono (material)
das políticas penal-weljare e a ressignificação da prisão como mecanismo de
exclusão e controle, as violências institucionais acabam sendo potenciali­
dades em níveis indecentes.
A perversa equação que agrega a histórica omissão de políticas sociais
integradoras com a ingerência ativa na ampliação das hipóteses de crim i­
nalização (primária e secundária) obtém, como resultado, a barbarização
dos espaços de encarceramento —barbarização das prisõte significa a m anu­
tenção, pelo poder público, de locais totalm ente inadequados ã implemen­
tação dos programas de ressocialização divulgados pelas próprias agências
oficiais; locais precarizados que, em razão dos déficits de investimentos,
sequer propiciam condições de sobrevivência m ínim a aos apenados em
cárceres, manicômios judiciais e instituições juvenis. Os limites da urgên­
cia no sistema prisional foram ultrapassados há décadas e, dia a dia, são
acumulados fatos que revelam a indecência da wecução penal no Brasil, nos
precisos termos utilizados por Geraldo Prado30.
5.3.2. Sobre esta realidade é que impactam os novos discursos de
ju stific a ç ã o das prisõ es e de le g itim a ç ã o das penas (newpenology).
É possível sustentar, portanto, que a nova penologia (gerencialismo) em er­
ge com as políticas do Estado Penal. A propósito, não é dtôcil perceber
que este novo discurso penológico é exatamente o desdobramento acadê­
mico das políticas criminais instituídas no Estado Penitência.
A ampliação do encarceramento é a decorrência de um modelo
político-econômico que necessita neutralizar em guetos os consumidores
falhos, não esporadicamente identificados como grupos de risco.
O controle e a neutralização dos coletivos de risco são importantes
dispositivos na construção da cultura punitivista, pois dialogam facilmen­
te com o senso com um (populismo punitivo), obtendo, como resultado, a
relegitimação das penas e das prisões. Assim, a nova penologia define o
objeto de incidência das políticas punitivas (indivíduos e grupos de risco)
e apresenta um a nova hipótese de sustentação teórica (teoria dejustificaçâo
da pena).

30 PRADO, Campo Jurídico e Capital Cientifico, p. 26.


A convergência da explicação m acrocriminológica acerca da edifi­
cação do m odelo político de Estado Penal, com a perspectiva político-
-crim inal de consolidação teórica da nova penologia, perm ite sugerir al­
gumas hipóteses explicativas sobre a pena, a punição e o encarceramento
na contemporaneidade: primeira, a nova penologia esvazia a criminologia
como campo teórico de análise crítica dos fenômenos do crim e e da cri­
minalização, reconfigurando-a em termos de governamentalização ou
segurança pública (gerencialismos de direita e de esquerda)31; segunda, a
nova penologia, ao operar no âmbito do controle atuarial dos sujeitos pe­
rigosos, ingressa no cam po do controle biopolítico da população.
5.3.3. A questão acerca da gestão atuarial dos indivíduos e dos co­
letivos de risco perm ite que a criminologia crítica supere um a espécie de
fixação na crítica da p risão c o m o in stitu içã o d isc ip lin a r e atualize a
perspectiva foucaultiana a partir da ideia de biop olítica.
A crítica de Foucault ao carcerário possui um a precisa delimitação
temporal: é direcionada à instituição prisional inserida na lógica correcio­
nal do capitalismo industrial. A apropriação das teses expostas em Vigiar e
Punir p e h crirnnologia crítica possibilitou desnudar o discurso correcional,
sobretudo ao opor as funções oficiais veiculadas pelas teorias de prevenção
especial positiva (ressocialização do condenado) às funções reais exercidas
pelo poder institucional. Lembre-se, p. ex., da contundente afirmação de
Melossi e Pavarim de que penitenciária, como aparato disciplinar, seria uma
hipótese que se impõe em termos quase definitivos, resultado da análise
da estrutura organizativa dos cárceres norte-americanos do século X IX 32.
N o entanto, apesar de a hipótese ter sido extrem am ente útil para
consolidar a crítica ao correcionalismo, na atualidade a ideia da discipli-
narização por meio do confinamento carcerário não pode ser irrestritamen-
te compartilhada. Com a crise do Estado Social as políticas de intervenção
terapêuticas foram corroídas, situação que levou ao colapso do modelo de
prevenção especial positiva. Além disso, na reconfiguração geopolítica e
econômica do capitalismo globalizado do século X X I, as prisões não desem-

35 Vera Batista demonstra comexatidâo como parte da esquerda foiseduáda pelo geren-
cialismo, situação que permite verificar como alguns (criminólogos críticos incorporaram­
-se nas estruturas do poder e passaram a colaborar com a governamentalização do Estado
Penal (BATISTA, Introdução Crítica á Criminologia Brasileira, p. 104).
32 MELOSSI e PAVARINI, Cárcere e Fábrica, p. 259.
penham as mesmas funções que lhes eram atribuídas no modelo penal-
-welfare. Significa dizer que os espaços prisionais e o sentido da punição
não podem ser interpretados essencialmente com o dispositivos de disciplina.
Demonstra Vera Batista que as políticas neoliberais trouxeram o
sistema penal para o epicentro da atuação política: “aprisão não perdeu sen­
tido (...), o singular do neoliberalismo foi conjugar o sistema penal com novas tecno­
logias de controle, de vigilânría, de constituição dos bairros pobres do mundo em
campos de concentração”33.
A questão a ser enfrentada, portanto, não é a de como adaptar a ideia
foucaultiana de disciplina ã nova ordem geopolítico-crim inal. Mas, de
outra forma, perceber como as disciplinas que fundaram as grandes insti­
tuições de controle social (prisão, manicômio, escola, fábrica) integram,
na atualidade, de forma destacada, um a complexa rede política de adm i­
nistração dos corpos e de gestão calculista da vida. Neste aspecto, é im ­
portante perceber que Foucault visualiza duas formas de exercício de
poder sobre a vida que se entrelaçam. Dois polos que não são antitéticos.
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí éM lW j, NÍ R F IT O I I W lS h ^ B L Í lV I

O prim eiro se forma em torno do cotpo-mâquina e projeta a necessidade do


seu adestramento (hipótese correcionalista). Todavia, em paralelo ã ideia
de disciplinarização, Foucault refere um segundo polo, centrado no cotpo-
-espéríe (população) e nos seus processos biológicos (proliferação, natalidade,
mortalidade, saúde, longevidade, p. ex.). A segunda forma de intervenção
visa aos controles reguladores e é constituída como u ^ bioipolítica da popu­
lação. Assim, “as disciplinas do coipo e as regulação da população constituem os
dois polos em tomo dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida

O enlace das disciplinas e da biopolítica, ou seja, o exercício dos poderes


sobre o corpo-m áquina e o corpo-espécie, pode ser percebido na revita­
lização dos espaços prisionais pelas políticas punitivas contemporâneas.
Apesar da crise, algumas práticas correcionais permanecem ativas como
dispositivos de controle, m antendo um resíduo m ínim o disciplinar. Neste
138 aspecto, apesar de a prisão ser cada vez mais identificada como um espaço
de neutralização e contenção, é possível notar a manutenção de alguns
procedim entos próprios das políticas correcionalistas. Não apenas para
m anter um a certa aparência de utilidade social ou um certo pudor hum a­
nitário como fundam ento da pena crim inal, mas, sobretudo, para que

33 BATISTA, Introdução Crítica à Criminologia Brasileira, p. 99.


34 FOUCAULT, História da Sexualidade, p. 152.
determinadas técnicas de controle sigam sendo utilizadas para a neutrali­
zação dos sujeitos perigosos. Neste cenário, os laudos criminológicos e os prnce-
dimentos administrativos disciplinares (sanções disciplinares) são altamente
funcionais para a vigilância do preso, retardando a sua saída da instituição
ou controlando o seu retorno ã liberdade.
Em paralelo ao controle do corpo-m áquina, a lógica carcerária ul­
trapassa as fronteiras das prisões e ingressa no cotidiano como (ou por meio
da) política de segurança. Assim, o gerenciamento e o controle punitivo
atuarial, legitimados pela nova penologia, parecem ser a grande novidade
poHtico-criminal na era do grande encarceramento. Os objetivos de identi­
ficação e de gestão dos grupos de risco potencialmente criminosos são os
parâmetros que orientam este procedim ento de extensão do cárcere para
a vida da população não encarcerada. A rede de controle tecnocrático
perm ite, portanto, não apenas m anter sob vigilância o condenado que
cum priu sua pena, mas, fundamentalmente, identificar os sujeitos ou os
coletivos de risco (potencialidade delitiva —periculosidade social) e elabo­
rar ações neutralizadoras que resultem em índices satisfatórios de segrega­
ção. Conforme descreve Foucault, esta rede é ampla e complexa, e integra
a série de agências governamentais, ou seja, não se limita às tradicionais
políticas punitivas.
Não por outra razão, a ideia de segurança pública, na atualidade, pa­
rece exercer um alto poder de atração, convertendo-se em um a espécie de
estuário no qual desaguam as principais ações políticas. Trata-se de um
conceito-chave na instrumentalização das políticas gerenciais. N o campo
teórico, a concentração biopolítica dos procedimentos punitivos na ideia
de segurança pública provoca, como afirmado anteriormente, um esvazia­
m ento da criminologia —se a criminologia for entendida como campo do
conhecim ento voltado para o pensamento reflexivo e crítico das práticas
punitivas (criminologia crítica). A reflexão crítica e a exposição das vio­
lências institucionais são substituídas por um a diretriz bastante nítida:
elaboração de projetos de análise atuarial ou de programas de gestão e
controle da crim inalidade (tecnocracia). Compartilhadas por tendências
políticas de direita ou de esquerda, as experiências contemporâneas de
ênfase na gestão da segurança interditam quaisquer possibilidades de que
sejam pensadas alternativas concretas ou modelos que superem a lógica
carcerocêntrica, pois os fundamentos do punitivismo não são problemati-
zados e os seus pressupostos são naturalizados.
P arte I I
FUNDAMENTOS DA TEORIA AGNÓSTICA
DA PENA
4
4

6 - TEORIA AGNÓSTICA (OU NEGATIVA) DA PENA:


PRESSUPOSTOS, PRINCÍPIOS E TELEOLOGIA

ri

6 .1 . Fins no Direito Penal e Pressupostos da Teoria Agnóstica

6 .1 .1. A construção, o desenvolvimento e a consolidação da dogmá­


tica como estatuto científico da ciênciajurídica ocorrem a partir da pro­
jeção de finalidades ao direito. Os fins atribuídos ao direito delimitam,
pois, os horizontes da sua ciência (dogmáticajurídica). A projeção aos fins
é o pressuposto que caracterizará a ciênciajurídica m oderna como em i­
nentemente instrum ental (racionalidade instrumental). Definido o obje­
tivo a ser alcançado, a estrutura e os institutos (meios) do sistema são de­
senhados a partir de uma perspectiva, e qualquer folha (lacuna) ou
conflito interno (contradição) deverão ser necessariamente resolvidos a
partir da expectativa de melhor adequação ao ideal fundante (fim).
A f i n a l i d a d e d o d i r e i t o constitui-se, portanto, como o princípio
unificador ou o motivo conceituai do sistema. Neste aspecto são precisas
as lições de Jacinto C outinho no que tange ã relevância das finalidades na
composição dos sistemas Qurídicos): “os diversos ramos do Direito podem ser
organizados a partir de uma ideia básitó de sistema: conjunto de temas colocados em
relação por um princípio unificador, que formam um todo pretensamente orgâni­
co, destinado a uma determinadajinalidade ”'.
Em Ihering, sobretudo com a publicação de O Fim no Direito (1877),
é inaugurada a fase dogmática do pensam entojurídico, com a afirmação
do direito como um a ciência instrum entalm ente projetada (direcionada

1 CO U TIN H O , Inirndução aos Prindpios Gerais do Pmcesso Penal Brasileiro, p. 165 (pífou-se).
aos fins). Segundo o autor, o direito existe para e em razão d o sjtm , ou seja,
“o Direito não é mais do que uma criação única do jim (...). O homem que pensa,
que medita, encontrará sempre, no terreno do Direito, o fim de cada uma das suas
instituições. A investigação deste fim constitui o objetivo mais elevado da ciênría
jurídica, tanto do ponto de vista da dogmática do Direito, quanto da sua história”2.
Sob esta orientação imposta na matriz da teoria geral, aos campos
especfâcos do direito resta apenas o processo de adequação, ou seja, mol­
dar e direcionar as ferramentas de acordo com uma teleologia específica.
Na esfera crim inal, as finalidades que orientam a aplicação do direito
inexoravelmente serão propostas a partir da pena, sobretudo em razão de a
sanção crim inal estar consolidada historicam ente como a categoria de
diferenciação do direito penal dos demais ramos. Segundo Rivacoba y
Rivacoba, “quaisquer que sejam osfin s a que se propõe o Direito punitivo, devem
ser propostos e perseguidos através da pena, ou, colocado com maior precisão, através
dos Jtns da pena; devem ser osfin s da pena, os que esta se proponha ou persiga”3.
A pena não representa apenas o instrum ento mais radical e potente do
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

direito penal; é aquele que o caracteriza como espécie do gênero direito.


Apesar de ser um fenômeno distinto do delito, a pena constitui-se na
modernidade como a única respostajurídica possível em face do reconhe-
crnento da existência do crime. Assim, seja na órbita normativa ou na
esfera empírica, a pena crim inal apresenta forma e conteúdo distintos das
sanções aplicáveis aos ilícitos extrapenais.
O papel desempenhado por Ihering na constituição da dogmática
como ciência do direito voltada aos fins será realizado, no âmbito criminal,
por Franz von Liszt, sobretudo a partir da publicação de A Ideia de Fim em
Direito Penal (1883)4. Conforme sustenta o autor, a experiência histórica

2 A pud RIVACOBA Y RIVACOBA, Función y Aplitóción de la Pena, p. 9.


3 RIVACOBA Y RIVACOBA, Función y Aplicación de la Pena, p. 9.
4 Liszt é explícito ao aderir à proposição de Ihering: "na mesma relação —explica Liszt ao
tratar da pena (primitiva) como ação instintiva de caráter social —se encontra a pena no
Direito. N o Direito existe a ideia de adequação ao fim ; constitui a essência do Direito. Este é o
pensamento básico da con^ção de Ihering. Mas a ação instintiva é conceitualmente ind^endente da
ideia de adequação ao fim que lhe precedeu. D o exposto não cabe deduzir a incompatibilidade da
minha concepfio de pena com a ideia de Ihering, de adequação a fim ; ao contrário, aquela obtêm
atratás desta uma nova aclaração e confirmação e vice-versa. Como afirma Ihering, a experiência é
afonte, tanto do Direito quanto da moral. A pena primitiva, no entanto,fia antes de toda a expe­
riência; não apenas antes da moral, como também antes do Direito. Apenas em um grau mais alto
dos sistemas punitivos perm ite concluir pelo c a r á t e r f i n a l i s t a d a p e n a ,
cujo efeito é atribuir à sanção um objetivo e um a medida que se desenvolvem
nos seus pressupostos (delito), no seu conteúdo e no seu âmbito de inci­
dência (sistema de penas). Assim, “sob o predomínio da ideia defim , a violência
punitiva se converte em Direito penal”5. Ao incorporar como diretriz a ade­
quação do direito penal aos fins, Liszt sustenta a tese da pena com o prote­
ção jurídica de bens6, situação que perm itirá projetar a construção de um
sistema com instrumentos voltados ã sua garantia —no modelo de Liszt, a
efetividade teleológica (finalidade de tutela de bens jurídicos) ocorre a
partir da correção, da intimidação e da neutralização dos delinqüentes7.
Por suposto, o m om ento não é o de descrever e analisar as projeções
penológicas das obras de Ihering ou de Liszt —inclusive porque na prim ei­
ra parte do trabalho foi destacada a relevância deste autor na consolidação
dogmática do sistema correcionalista. A ideia central desta breve introdu­
ção é demonstrar como historicamente o d i r e i t o p e n a l s e i n s t r u m e n ­
t a l i z a a p a r t i r d o s f i n s d a p e n a , independentem ente de quais sejam os
objetivos punitivos perseguidos, apesar do problem a apresentado pela

de ewlução, como pena objetivada, se assenta na experiência; apenas como pena de Direito jurídica)

(OU NEGATIVA) DA P E N A
assume a ideia de adequação a fim ” (LISZT, La Idea de Fin en Dewcho Penal, p. 80).
i LISZT, L a Idea de Fin en DeKcko Penal, p. 63.
6 “A ideia de adequação ao fim , que nos conduziu felizmente até aqui, deve seguir sendo nossa guia.
Nossa conapção de pena como protego jurídica de bens &ige, inexorawlmente, que, no caso concK-
to, a pena aplicada (em conteúdo e alcance) seja a necessária para que, através dela, se proteja o
AGNÓSTICA
mundo dos bensjuridicos” (LISZT, La Idea de Fin en Dewcho Penal, p. 106).
7 “Correção, intimidação e neutralizado são Kalmente os possíveis efeitos da pena e com eles as
possíveis formas <k protefio de bens jurídirns mediante a pena” (LISZT, La Idea de Fin en Derecho
S - TEORIA

Penal, p. 114).
A partir desta constatação, Liszt, aderindo ao positivismo criminológico (especifica­
mente à antropologia criminal), entende necessário que a pena seja adequada a cada es­
pécie de criminoso. Se “a pena se dirige contra eles [criminosos] e não contra asfiguras do de­
lito” e sendo “o delinqüente o titular dos bens cuija lesão ou destruição constituem a essência da
pena”, os três tipos de pena deveriam corresponder a três categorias de criminosos: os
irrecuperáveis, os que precisam de correção e os delinqüentes ocasionais.
Para cada tipologia criminosa uma pena individualizada: "1) correção dos delinqüentes
que necessitam correção e apazes de serem corrigidos; 2) intimidado dos delinqüentes que não ne­
cessitam de correção; 3) neutralização dos delinqüentes não suscetíveis de correção” (LISZT, La Idea
<k Fin en Derecho Penal, p. 115). Corrigíveis, ocasionais e irrecuperáveis, respectivamente.
Sobre as características de cada grupo delirivo e os efeitos da sanção em cada grupo, con­
ferir LISZT, La Idea de Fin en Derecho Penal, pp. 115-126.
criminologia crítica acerca da (in) adequação dos fins sancionatórios ã real
experiência punitiva.
A exposição anterior sobre as teorias da pena parece ter evidenciado
como a adoção de determ inada perspectiva não constitui apenas um a
expressão de desejo, um ideal ou um a declaração de princípios sugerida
no processo político-crim inal. É fundam ental perceber que por mais
(in)adequados ou ingênuos que possam parecer os fins atribuídos ou por
mais (ir)realizáveis que sejam os objetivos designados às penas, os instru­
m entos dogmáticos do direito penal serão naturalm ente moldados e ade­
quados a partir destas orientações. Isto porque é ínsita ã ideia de finalidade
a busca de sua operacionalização por meio de instrum entos (meios).
A compreensão deste vínculo entre os instrum entos dogmáticos
(meios) e os fins atribuídos às penas é fundamental para que se possa apre­
sentar argumentos de maior qualidade na desconstrução e reconstrução
críticas do discurso jurídico-penal.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

Neste aspecto Rivacoba y Rivacoba é preciso ao afirm ar que o


conceito de fim pressupõe, por sua própria índole, o de meio8. Os fins da
pena, independente de quais sejam ou quais possam ser, requerem meios
(instrumentos) adequados e oportunos para a sua consecução. Instrum en­
tos que serão manipulados pelos atores do sistema penal nos procedim en­
tos de imputação do delito e de aplicação concreta da sanção; especifica­
mente nas operações judiciais e executivas) que efetivam a expectativa (ou
ameaça) da pena, ou seja, no m om ento em que transformam a potência
(potentia puniendi) em exercício ou ato concreto de poder (potestas puniendi).

6.1.2. Neste ponto —sobretudo após o extenso debate sobre as tra


dicionais teorias da pena e os discursos de atualização que tomaram a cena
jurídico-penal e criminológica no final do século passado —, a questão que
merece ser destacada é a de que é possível apontar nas distintas perspectivas
140 absolutas e relativas (inclusive as híbridas) um ponto de convergência entre
as narrativas penológicas: a fin alid ad e po sitiva a trib u íd a à pena. Todos
os discursos de justificação, que caracterizam o direito penal dogmático e
a crim inologia como ciências m odernas, exatamente por serem projetos
epistemológicos fruto da Ilustração, atribuem virtudes civilizatórias ã sanção
penal e, a partir de expectativas otimistas, projetam instrum entos de

8 RIVACOBA Y RIVACOBA, Función y Aplicación de la P ena,p. 13.


concretização. Mesmo os discursos de retribuição, que tenderiam a ser os
mais céticos em relação ã capacidade de a pena produzir efeitos externos,
projetam-se desde um a perspectiva positiva de a sanção penal possuir a
virtude de reafirmar a ordem jurídica ou de restabelecer a ordem moral
violada.
Assim, se a perspectiva que orienta o trabalho é calcada na descons-
trução crim inológica dos ideais metafísicos atribuídos ã pena criminal,
necessária a exclusão desta variável de fundam entação positiva que se
m antém inalterada nos discursos penológicos da modernidade. E, dentre
os discursos penológicos críticos, a teoria agnóstica revela-se como o m o­
delo mais adequado, em termos de sustentação dogmática e em fundamen­
tação criminológica, para interpretar o fenômeno punitivo.
N o entanto, como forma de introduzir a estrutura de princípios que
orientam a sua instrumentalização dogmática, convém destacar os pressu­
postos sobre os quais é construída a te o ria ag n ó stica da pena, a partir
dos elementos fornecidos nas obras de Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar.

(a) O pressuposto primeiro da teoria agnóstica é ofundamento político da


pena. As teorias dejustificaçâo invariavelmente atribuem um fundamento
jurídico para a sanção criminal. Na qualidade de conseqüência do delito,
a natureza da pena é afirmada como jurídica. A proposição agnóstica sub­
verte este vínculo naturalizado entre crim e e pena e transfere a sanção
criminal para o âmbito da política, designando-lhe um novo e diverso
fundamento. Ao reconhecer a pena como um instrumento para o exercício do
poder punitivo instituído, o discurso agnóstico nega sua constrição ao jurídi­
co, sobretudo porque esta perspectiva tradicional que aprisiona o funda­
m ento das sanções ao direito (ls) pressupõe a apoliticidade (neutralidade)
do fenômeno punitivo, cujo efeito é o de (2 °) obscurecer a seletividade
penal. Portanto, a pena, como um ato de coerção imposto pela agência
punitiva, legitima-se e realiza-se no campo da política, e não no do direito.
Desde a proposição agnóstica, a relação entre a pena crim inal e o
direito penal não é a de legitimação. Pelo contrário, a função do discurso
e das práticas jurídicas é a de deslegitimação dos excessos inerentes ao
exerddo político do poder de punir, o que revela uma relação tensa e não har­
mônica entre direito e pena criminal. Se nas democracias a racionalidade
jurídica deve assumir o papel de restrição e de controle dos poderes, esca­
pa ao direito a missão de legitimação da sanção penal. A justificação ju rí­
dica dos atos de poder, dentre eles a pena crim inal, é natural apenas nos
Estados autoritários, nos quais o direito assume a titularidade da função
fundamentadora. N o entanto, ao incorporar o papel de legitimação, o
discurso jurídico cria uma situação na qual o poder de punir é confundido
ou é afirmado como direito de punir, o que, em última análise, significa a
redução da razão de direito ã razão de Estado.

(b) O segundo pressuposto da perspectiva negativa é o de que a sanção


criminal, nos Estados democráticos de direito, exerce em inentem ente uma
fu n fio de controle social. Com o instrum ento da política, exercido nas e pelas
agências punitivas, o sentido inerente ã pena é o de presentificação do
Estado, isto é, o de demonstração da existência de um poder político cons­
tituído com capacidade de concretização por m eio de ingerências violentas
na sociedade civil. Não por outra razão, sobretudo na filosofia política, o
Estado m oderno será caracterizado pela detenção do monopólio do exer­
cício legítimo da coação (Weber). A coação, que se constitui fundam en­
talm ente como ato de violência, encontra na pena o mecanismo ótimo de
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

controle dos violadores da ordem social interna. N o âmbito das relações


internacionais, a coação aos dissidentes é efetivada por m eio da guerra
(sanção penal internacional).
(c) O terceiro pressuposto agnóstico, que deriva fundam entalm ente do
legado proporcionado pela criminologia crítica na análise desmistificado-
ra da experiência punitiva, é o de que a pena, na qualidade de instrum en­
to da política, é um fenômeno incancelável nas sociedades atuais. Não se
trata, logicamente, de negar os avanços prático-teóricos proporcionados
pelos discursos abolicionistas. Pelo contrário, a perspectiva agnóstica é
nutrida pela crítica abolicionista, sobretudo em razão da sua alta densidade
na desconstrução dos mitos legitimantes do sistema penal. Igualmente, o
pensamento agnóstico compartilha da expectativa abolicionista de supera­
ção da pena crim inal, sobretudo na sua espécie carcerária (privação de
liberdade). N o entanto, seria ilógico negar, contrariando os dados da rea­
lidade, que a experiência punitiva contemporânea aponta para uma densi-
ficação do punitivismo, inclusive no campo das ciências criminais, com a
construção de novos discursos de legitimação (discursos neoconservadores).

(d) O quarto pressuposto da teoria negativa se estabelece como uma


conseqüência do reconhecim ento do fundam ento político da pena, da
função instrumental no controle social e da impossibilidade de cancelar o
fenômeno punitivo: a sanção crim inal, como um ato político de coação
contra os dissidentes, é um fenômeno da realidade, constante em socieda­
des de cultura punitivista, que necessita urgentem ente ser contido (teleolo­
gia redutora) em razão de sua pulsão violenta (tendência ao excesso).

Destes quatro pressupostos decorre a única finalidade possível de ser


atribuída a um m odelo agnóstico de pena: a c o n t r a ç ã o d o potestas p u ­
niendi ( p o d e r p u n i t i v o ) . Trata-se, pois, de uma teoria que, ao mesmo
tempo em que nega a função de legitimação ou de fundamentação —exa­
tamente por este motivo é adjetivada como negativa ou agnóstica —, reco­
nhece a natureza política do fenômeno punitivo. E, como expressão da
violência política, a pena, na perspectiva agnóstica, é incapaz de cum prir
quaisquer funções ou de exercer quaisquer finalidades positivas.
A finalidade almgada pela teoria agnóstica não é realizada pela ou com
a pena, mas por meio dos instrumentos jurídicos de controle (dogmática
penal conseqüente). Trata-se de um evidente equívoco ou de uma opção
ideológica bastante clara fundamentar o direito penal a partir das finalidades
designadas ã pena. N o entanto, para efetivação da democracia, a relação
entre direito penal e pena deve ser de outra ordem, constituindo-se como

(OU NEGATIVA) DA P E N A
uma relação de tensão na qual o direito exerce o papel de limitação da
coação política (pena). Neste aspecto, a postura agnóstica apresenta-se como
uma alternativa teórica capaz de propor, criar e potencializar instrumentos
jurídicos, não necessariamente jurídico-penais, para m inim izar a incidência
negativa da sanção criminal na sociedade (dogmática redutora).
AGNÓSTICA
O esforço de construção do modelo agnóstico é direcionado, por­
tanto, ao saber jurídico. Frise-se, vez mais, que a teoria agnóstica não é uma
teoria da pena, mas um modelo dogmático crítico que objetiva, por meio
S - TEORIA

da manipulação virtuosa das ferramentas jurídicas pelos atores do sistema


penal, restringir a potentia puniendi (potência punitiva ou punitividade).

6 .2 . Teoria Agnóstica da Pena: Dogmática Conseqüente


6.2.1. Os fenômenos de esgotamento e de fragmentação que atingi­
ram as narrativas penológicas no final do século passado provocam, inega­
velmente, um sentim ento de ceticismo em relação ã possibilidade de
proposição de novos modelos teóricos de legitimação. Não por outra razão,
a desconstrução realizada pela crim inologia crítica fomentou inúmeras
correntes abolicionistas que optaram não apenas por abdicar das sanções
institucionais, mas, em algumas perspectivas, por superar o próprio sistema
punitivo e a linguagem penal9.
N o entanto, para além da discussão entre abolicionismo e justifica-
cionismo —debate que se projeta fundam entalm ente nas esferas crim ino­
lógica e político-crim inal —, um discurso comprometido com a efetivida­
de dos direitos humanos não pode exim ir-se dos problemas que emergem
no campo do direito penal. A expansão do punitivismo torna urgente a
construção de alternativas dogmáticas capazes de im por limites ao potestas
puniendi. Alternativas que reconheçam a ilegitimidade e a crise das teorias
da pena e, ao mesmo tempo, sejam instrumentais na contenção dos exces­
sos punitivos. Desta forma, para modelar um d iscurso d o g m ático re -
du to r, cabe indagar o tipo dejustificaçâo possível desde um a p ersp ecti­
va negativa.
Zaffaroni, em inúmeros momentos da sua obra, questiona a real
necessidade (teórica e prática) de adoção de modelos de justificação. O
problema da legitimação é direcionado, em primeiro lugar, ao operador
do direito, principalmente o juiz. A questão colocada é se o julgador teria
condições de tom ar decisões sem ter como referência uma doutrina de
fundamentação da pena. Posteriormente o problema é deslocado para a
academia, de forma a questionar a possibilidade de o professor lecionar sem
esquemas de legitimação, sem estruturas teóricas voltadas ã racionalização
dos procedimentos de imposição das sanções.
Ao resgatar a práxis republicana de M agnaud10, Zaffaroni sustenta
que o magistrado, ao enfrentar os casos que lhe são propostos, pode pres­
cindir de qualquer referência às teorias justificacionistas, notadamente em
decorrência da possibilidade de atuar de maneira razoavelmente intuitiva no
controle das violências com a limitação da coação imposta pelas agências
de punitividade. Nesta perspectiva a atuação judicial ganha relevância e
adquire respaldo (legitimidade) com a observância dos princípios penais
liberais e humanistas positivados nas Constituições democráticas".

9 Sobre as vertentes do abolicionismo, conferirCARVALHO, Antimanual de Criminolo­


gia, pp. 131-138.
10 Sobre a atuação do bom ju iz Magnaud, conferir ZAFFARONI, E m Busca das Penas
Perdidas, pp. 218-219; Carvalho, Em Nome do Pai, pp. XIII-XX; CARVALHO, O Fenô­
meno Magnaud, pp. 177-197.
11 ZAFFARONI, La Rinascita dei Diritto Penale Libemle o la 'Croce Rossa' Giudiziaria, p. 391.
O trabalho mais complexo, porém, seria o do professor ou do juris­
ta teórico: “como lecionar sem uma ‘teoria dapena’, sem reconhecer o ‘direito de
punir’, sem admitir o ‘direito penal subjetivo do Estado’?”. O questionamento é
condicionado, porém, a um a indagação anterior de m aior complexidade:
“como seria possível ao investigador do direito racionalizar uma teoria dos exercícios
irracionais do poder após o processo de desvelamento operado pela crítica
criminológica?”'2. O problema é colocado em razão do reconhecim ento da
irreversibilidade das denúncias realizadas pela criminologia crítica — “o
Direito Penal do nosso tempo sofreu o impacto criminológico devastador da crimino­
logia da reação social, que submeteu à análise o próprio sistema dejustiça punitiva”'3,
ensina Fragoso.
Percebe-se, nesta dupla ordem de questões, que o problem a da jus­
tificação da pena é m uito mais de natureza filosófica do que dogmática.
Se o objetivo da dogmática jurídica é, por m eio das fontes de interpretação
do direito, harm onizar o ordenam ento de forma a fornecer aos atores
processuais parâmetros para o julgam ento dos casos, o trabalho de justifi­
cação do poder de punir ultrapassa suas fronteiras. Se a função da dogmá­
tica jurídico-penal tem como destinatários os operadores do direito, so­
bretudo o julgador, e não o sistema punitivo, as narrativas legitimadoras
da pena realizam um a tarefe evidentemente estéril, conforme indica Za­

(OU NEGATIVA) DA P E N A
ffaroni. Em outros termos, a legitimidade fornecida pela dogmática penal,
na qualidade de estatuto científico do direito penal, é direcionada ao poder
do ju iz, e não ao poder de punir, ou seja, a ciência jurídica envolve-se com
os critérios dejustificaçâo dos atos de decisão, e não com a fundamentação
da pena propriamente dita.
AGNÓSTICA
Diferentemente do que é sugerido, muitas vezes subliminarmente,
pelas narrativas dejustificaçâo da pena, o poder punitivo não é exercido
S - TEORIA

pelo magistrado, mas pelos aparatos da burocracia punitiva. Ao julgador


cabe o reconhecim ento da existência do delito e a determinação da pena.
Não por outra razão a dogmática penal concentra esforços em estabelecer
os critérios de imputação do delito e os parâmetros (limites) da responsa­
bilização penal.

12 ZAFFARONI, La Rinascita dei Diritto Penale Liberale o la 'Croce Rossa’ Giudiziaria, p. 392.
13 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 546.
Em sentido idêntico, BARATTA, Criminologia Critica e C ritia do Direito Penal, pp.
159-170; ANDRADE, Sistema Penal e Violência Sexual contra a Mulher, pp. 39-56; A N ­
DRADE, A Ilusão de Segurança Jurídica, pp. 198-233.
Na estrutura do sistema punitivo, a agência legislativa produz ori-
ginariamente os critérios gerais de criminalização (criminalização prim á­
ria); a agência policial efetiva o processo de criminalização (criminalização
secundária); e as agências carcerárias executam a pena. Nesta teia de cri­
minalização, o trabalho do juiz é condicionado por um a série de filtros de
seletividade que evidencia as ações concretas do sistema punitivo, isto é,
as atividades políticas do exercício de criminalização das pessoas ou dos
grupos vulneráveis ã incidência do controle penal. Assim, no que tange ã
produção da criminalização, a atividade dos operadores do direito ju lg a ­
dor, acusador e defensor) é sempre residual, constituindo-se como uma
pequena engrenagem no fluxo contínuo do punitivismo —“as agênrías ju ­
rídicas dispõem de um limitado poder de contendo do exercício do poder punitivo,
que devem administrar racionalmente”u.
Se é evidente a lacuna entre a criminalidade real (totalidade das ações
criminalizáveis praticadas no cotidiano) e a criminalidade oftríal (número de
registros incorporados no sistema com o estatística), e se a seletividade que
*4*5 FU'. DlQU Dí éM lW j, NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

produz as áfras ocultas da criminalidade é condicionada pela desigual distri­


buição da criminalização entre os grupos sociais, um modelo (a) descren­
te na capacidade de a pena gerar resultados positivos e (b) dotado de teleo­
logia dogmática redutora deve ser orientado por critérios de graduação da
vulnerabilidade.

6.2.2. Embora sejam evidentes os números relativos ã seletividade


penal, ã vulnerabilidade e às chras ocultas, a ampliação superlativa nos
níveis de encarceramento nas duas últimas décadas 13 demonstra que a atua­

14 ZAFFARONI et al., Manual de Derecho Penal, p. 512.


15 Sobre o aumento das taxas de encarceramento mundiais nas últimas décadas, conferir
ANITUA, A Amérirn Latina wmo Instituição de Seqüestro, pp. 67-83; GARLAND, t t e
152 Culture o f Control, pp. 174-182; GIORGI, A Miséria G o v ^a d a Atraws do Sistema Penal, pp.
92-114; PAVARINI, O Enmrceramento de Massa, pp. 293-312; PAVARINI, E l Grotesa> de
la Penologia Contemporânea, pp. 230-279; PAVARINI e GIAM BERA RD INO, Teoria da
Pena e ^ e c u tfo Penal, pp. 37-56; TAGLE, A ^periência Punitiva na Condição Pós-Modema,
pp. 57-66; W ACQUANT, Punir os Pobres, pp. 205-262; W ACQUANT, As Pruões da
Miséria, pp. 77-122.
Sobre o impacto das políticas encarceradoras no Brasil, conferir ABRAMOVAY, O
Grande Enrnr&nmento como Produto da Ideologia (Neo)Liberal, pp. 9-27; ANDRADE, Hori­
zonte de Projeto do Controle Penal no Capitalismo Globalizado Neoliberal, pp. 253-270; BA­
TISTA, Introdução Crítica ã Criminolotgia Brasileira, pp. 99-111; BATISTA, D ^ o u do Gran-
ção dos operadores do direito, apesar de residual, produz importantes
impactos no processo de criminalização16, isto é, esta residualidade não
significa insignificância. Exatam ente pela im portância da atuação dos
atores processuais na formação da cultura jurídico-penal —sempre tensio-
nada entre as perspectivas inquisitivas ou garantistas —é imprescindível que
sejam propostos instrumentos dogmáticos de redução dos efeitos danosos
gerados pelo punitivismo.
A conclusão perm ite destacar, portanto, o caráter virtuoso da pro­
posição de um modelo dogmático crítico ou, nas palavras de Zaffaroni e
Batista, de uma d o g m átic a co n seq ü en te’7, orientada por uma teleo lo ­
gia re d u to ra 18, por meio da qual os atores processuais sejam capacitados
para a contenção do punitivismo, sobretudo em decorrência da inerente
tendência do potestaspuniendi ao excesso e à expansão (potentiapuniendi).
Ao com partilhar as denúncias produzidas pela criminologia crítica
—reconhecimento do processo de criminalização seletiva operacionalizado
pelas agências da repressão penal —, Zaffaroni entende ser absolutamente
dispensável qualquer teoria (positiva ou fundamentadora) da pena. Nesse

de Encarceramento, pp. 29-36; CARVALHO, O Papel dosA tons do Sistema Penal na Era do

S - TEORIA AGNÓSTICA (OU NEGATIVA) DA PEN A


Punitivismo, pp. 32-46; CARVALHO, Substitutivos Penais na Era do Grande Encaxeramento,
pp. 357-382; CARVALHO e W EIGERT, A Punição do Sofrmento Ríquiw no Brasil (prelo);
CARVALHO e W EIGERT, A s Alternativas às Penas e às Medidas Socioeducativas, pp. 227­
257; RA UTER, Discunos e Práticas Psi no Contexto do Grande Encaneramento, pp. 195-205.
16 Sobre o tema, conferir CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Pu­
nitivismo, pp. 73-111.
17 O termo dogmátia conseqüente é utilizado por Zaffaroni e Batista quando projetam a
teleologia redutora ao interior da teoria do delito. A instrumentalização de um discurso
redutor se realiza a partir da resposta positiva ã seguinte indagação: “uma metodologia que
permitiu a racionalização do poder punitivo pode ser utilmente empwgada na contenção dele, no
momento de Kconstruir o dimto penal liberal a partir de uma teoria negativa tfa pena?” (ZAFFA-
R O N I et al., Direito Penal Brasileiro II, v. I, p. 24).
18 A ideia de que o saber-atuação crítico no direito penal deve ser informado por uma
teleologia redutora constitui-se como premissa primeira do modelo negativo ou agnóstico
delineado por Zaffaroni e Batista: "quem, como nós, valore negativamente o poder punitivo em
geral e a pena em particular (a partir de uma negação de suasftnçòes manifestas, calcada nofracasso
de suas teorias legitimantes), e atribua ao direito penal a tarefa política de, como uma banagem
pndisposta pelo estado de direito, conter o caudal punitivo do estado de polícia, não pode fiigir à
conseqüência de que a construfio conaitual do delito [e dapena, consequentemente] deve emp^ender-
-se como um sistema orientado pela ideia reitora de uma intencionalidade adutora do poder punitivo,
que influenciará, portanto, todas as particularidades construtivas que pretendam integrar-se ao siste­
ma” (ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro II, v. I, p. 60).
cenário, o exercício teórico urgente seria o de reconstrução dos discursos
e das práticas dos atores do direito penal (dogmática conseqüente) em uma
única e exclusiva direção: a redução da violência no exercício dos poderes (teleo­
logia redutora).
Reduzir o sofrimento seria a única justificativa válida para a atuação
dos operadores do direito nas atuais condições em que a punição é exer­
cida, principalmente na realidade marginal latino-americana. Conforme
argumenta Zaffaroni, “a doutrina penal pode reconstruir o seu discurso sobre esta
base, sem qualquer necessidade de uma ‘teoria da pena'; pode retomar o pensamen­
to liberal e excluir ‘as sementes do mal’ que o pensamento dos nossos ingênuos
‘antecessores liberais' continha (...). A estratégia é clara: salvarvidas, diminuir a
desigualdade, evitar o sojrimento (...). Para lograr reduzir o poder punitivo deve ser
progressivamente liberal, e para ser ‘progressivamente liberal’ deve prescindir de
qualquer ‘teoria da pena”" 9.
Assim, na concepção de Zaffaroni, seria possível retom ar os princí­
pios humanistas de limitação do poder punitivo foqados no discurso penal
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

iluminista, desde que fossem extirpados seus germens antiliberais. E den­


tre as principais sementes antiliberais destaca-se esta tendência perm anen­
te de legitimação do poder punitivo por m eio de narrativas justificacionis-
tas (teorias da pena). Negar as teorias da pena possibilitaria, portanto, (a)
concentrar esforços para m inim izar os efeitos danosos produzidos pelo
punitivismo, (b) eliminar do discurso penal seu viés declarado e não cum ­
prido e (c) afirm ar a natureza política do potestas puniendi. A pena, isenta
de qualquer fundamentação jurídica e órfo de qualquer finalidade, é re­
conduzida ao campo da política como uma representação concreta do
poder. Com o a guerra, sanção imposta nas relações internacionais, a pena
criminal estaria exposta publicamente como uma manifestação extrema e
cruel do poder punitivo, isenta de quaisquer justificativas ou idealizações,
m otivo pelo qual sua contenção se tom a imperativa.
Neste aspecto, inspirados nas lições da criminologia crítica, a teoria
agnóstica (ou negativa) da pena e o garantismo penal convergem ao iden­
tificar a lógica punitivista (defensivismo) presente em todos os modelos
justificacionistas. Especialmente porque qualquer finalidade positiva tende
a conduzir o sistema punitivo ao excesso. Ferrajoli, apesar de construir um
modelo dejustificaçâo (garantismo penal), ao analisar os distintos objetivos
e formas de instrumentalização da pena nos projetos liberais e correciona-

19 ZAFFARONI, L aR inaxitadel Diritto Penale Liberale o la ‘Croa Rossa’ Giudiziaria , p. 393.


listas, percebe claramente esta variável constante nas teorias dejustificaçâo:
“todas estas teorias da pena são, ao jinal, doutrinas de direito penal máximo,
orientadas unicamente à máxima utilidade do não desviante e ignorando os direitos
do desviante, percebido, no máximo, como objeto de prátitós corredonais ou de in­
tegração coercitiva”20.

6 .3 . Teoria Agnóstica da Pena: Teleologia Redutora


6.3.1. A te o ria ag n ó stica d a pen a, inserida na perspectiva do
realismo criminológico marginal, passa a ser o ponto de partida para pro­
jeção de discursos e de práticas concretas voltadas à redução dos danos
causados pela violenta incidência dos sistemas punitivos. A postura agnós­
tica ou negativa, ao reconhecer a fragmentação das teorias contemporâneas
e a exaustão das narrativas idealistas, e sem incorrer na tendência rom ân­
tica de retom o ao passado ilustrado, procura oferecer um novo tipo de
discurso e uma alternativa político-crim inal para enfrentar o problema da
violência da pena.
A verificação empírica da urgente necessidade de dim inuir o sofri­

(OU NEGATIVA) DA P E N A
m ento imposto pelas atuais formas de punição delimita este projeto que
parte da explícita negativa de qualquer discurso de justificação. Se “para
todas estas teorias ^ustificacionistas] a pena cumpre uma fançãopositiva, ou seja,
repr&enta um bem para alguém ”21, a proposição agnóstica reconhece que (a)
as funções declaradas não são efetivamente cumpridas, que (b) a pena se
AGNÓSTICA
concretiza como ato de violência contra os direitos fundamentais e que (c)
a experiência concreta da punição produz distintos significados nas pessoas.
Esta complexidade que envolve o fenômeno punitivo evidencia a impos­
S - TEORIA

sibilidade de universalização de determinados fins e, m uito menos, de


construção de sistemas normativos centrados em falsas expectativas.
N o campo da incidência concreta do poder punitivo, os critérios de j 55
limitação são especificados no interior da estrutura dogmática da aplicação
e da execução das penas e das medidas de segurança. Será, pois, a noção
de redução de danos (teleologia redutora) que orientará toda a interpreta­
ção na dogmática da determinação da pena. Esta explícita posição ideoló-

20 FERRAJOLI, Note Crittáe ed Autocritiche intomoaüaDiscussionesuDiritto e Ragione, p. 498.


21 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I, p. 93.
gica e político-crim inal perm ite que nas frlhas (lacunas) e nas contradições
do sistema normativo as únicas coerências buscadas sejam as da m inim i-
zação do sofrimento hum ano e as da limitação do poder punitivo. Neste
sentido, a harm onia que postula o m odelo agnóstico não é aquela exclusi­
vamente teórica que marca as tradicionais teorias da pena. O motivo concei­
tuai ou princípio que fornece unidade e coerência ã perspectiva agnóstica é
o da redução de danos; todos os demais representarão apenas variáveis secun­
dárias e incidentais.
6.3.2. Do p o n t o d e v i s t a t e ó r i c o , a proposição agnóstica encontra
importante antecedente na literatura jurídica brasileira. Ao delinear a teo­
ria agnóstica como um discurso de negação das narrativas justificacionistas,
Zaffaroni retoma o legado de Tobias Barreto, autor que, segundo Nilo
Batista, “se antecipava extraordinariamente às concepções jurídicas no Brasil de sua
fyoca"22.
Em seu texto seminal, intitulado Fundamentos do Direito de Punir
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

(1884), Tobias Barreto problematiza a legitimidade do ius puniendi, afir­


mando que “quem procura ofundamento jurídico da pena deve também procurar,
se é que já não encontrou, ofundamento jurídico da guerra”22. Para o autor exis­
tem certos teóricos do direito que possuem o dom especial de tornar in­
compreensíveis as coisas mais simples do m undo24. Dentre as inúmeras
‘questões sem saída', tornada um a ‘&pécie de adivinha’ proposta com nuances
de erudição pelos mestres aos seus discípulos, encontra-se a célebre inda­
gação ‘quais osfundamentos do direito de punir?’.

22 BATISTA, Introdutfo Critica ao Direito Penal Brasileim, p. 19.


23 B A R R E T O , Fundamentos do Direito de Punir, p. 650.
24 "Há homens que têm o dom especial de tomar incompreensíveis as coisas mais simples deste mun­
do, e que ao conceito mais claro que se possa formar sobw esta ou aquela ordem de fatos, sabem dar
sempre uma feição pela qual o axioma se converte de repente n’um enigma d'esfinge. A esta dasse
156 pertenam os metafisicos do direito, que ainda nesta hora presente encontram não sei que delícia na
discussão de problemas insolúveis, cmjo manejo nem sequer tem a vantagem comum a todos os exer-
dcios de equilibrístia, isto è, a vantagem de aprender a cair a m certa graça. N o meio de tais questões
sem saída, parvamente resolvidas, ocu.pa lugar saliente a álebre questão da origem e dos fundamentos
do direito de punir. E uma espéàe de adivinha, que os mestres creem-se obrigados a pmpor aos discí­
pulos, acabando por ficanm uns e outros no mesmo estado de perfeita ignorância (...). Eu não sou
um daqueles, è bom notar, não sou um daqueles, que julgam fazer ato de adiantada cultura científi­
ca, elidindo e pondo de parte todas as questões de caráter másculo e sério, sob pretexto de serem outras
tantas bolhas de sabão teontios, outros tantos quadros defantasmagoria metafoica” (BARRETO,
Fundamentos do D inito de Punir, p. 640).
Com refinada ironia Tobias Barreto desvela o caráter metafísico do
enigma jurídico: “o centro de gravidade do direito criminal está na pena, como o
do direito civil está na execução. Ora, ainda não se buscou saber qual a razão f i ­
losófica do direito de exequir; para que buscá-la para o direito de punir? D e
todas as bolhas de sabão metafísicas é talvez &sa a mais Jütil, a que mais facilmen­
te dissolve ao sopro da crítica”25. A conseqüência da proposição é a redefinição
do campo de análise da pena: “o conceito de pena não é um conceito jurídico,
mas um conceito político. Este ponto é aipital. O defeito das teorias correntes em tal
matéria consiste justamente no erro de considerar a pena como uma conseqüência do
direito, logicamente fundada (...). Que a pena, considerada em si mesma, nada tem
que ver com a ideia do direito, prova-o de sobra o fato de que ela tem sido muitas
vezes aplicada e executada em nome dareligião, isto é, em nome do que há de mais
alheio à vida jurídica " 26.
A deslegitimação dos fundamentos metafísicos da sanção penal e a
transferência da pena, do plano dogmático do direito (ius puniendi) para o
da política (potestas puniendi), implicam um radical deslocamento na aná­
lise do fenômeno punitivo. Em termos qualitativos, esta nova perspectiva
assemelha-se ã estridente denúncia da natureza política dos processos de
criminalização realizada pela crítica criminológica. Não por outro motivo

(OU NEGATIVA) DA P E N A
que a proposição de Tobias Barreto estaria perfeitamente representada em
paráfrase no subtítulo da expressiva obra de Augusto Thompson, Quem são
os Criminosos (1983): “o crime, o criminoso [e a pena], entes políticos"27.
Interessante perceber, ainda, que do ponto de vista da gramática p u ­
nitiva esta conversão da pena em um fato político igualmente produz uma
AGNÓSTICA
significativa mudança. Substituir a ideia de ius puniendi (direito de punir)
pela de potestas puniendi (poder de punir) ou de potentia puniendi (potência
punitiva ou punitividade )28 implica em reconhecer a inexistência de um
S - TEORIA

25 BA R RETO , Prole^menos do Estudo do D im to Criminal, p. 110.


26 BA R RETO , Fundamentos do Direito de Punir, pp. 649-650.
27 Augusto Thompson, um dos maiores criminólogos nacionais, foi autor de duas obras
que marcaram a literatura crítica brasileira: A Questão Penitenciária (1976) e Quem são os
Criminosos: o crime e o criminoso, entes políticos (1983). Segundo Vera Batista, ''Augusto Thomp-
sonfoi o mais brilhante e conseqüente leitor do labeling approach. Sua militância como advogado li­
bertário, como diretor do departamento prnitenciário do Rio de Janeim e seus livros são um legado mí­
tico para a criminologia brasikira” (BATISTA, Introdução Crítica à Criminologia Brasdeim, p. 78).
28 O termo potentia puniendi é utilizado por Zaffaroni e Batista quando verificam a ne­
cessidade de constante renovação e readequação dos princípios limitadores da pena: "os
direito estatal à punição. Ao definir o fenômeno punitivo como um ato de
coação im posto pelas agências punitivas, a relação de dependência entre
pena e direito é rompida. Assim, o binômio crim e-pena não se estabelece
em uma relação horizontal de necessidade, em que a sanção é percebida
como uma conseqüência natural do delito. Na perspectiva negativa, esta
relação se tom a vertical, na qual a pena, como uma decorrência política
do processo de criminalização, deve ser controlada pelo direito.

6.3.3. Com o recurso interpretativo voltado a intensificar a percepção


dogmática na perspectiva redutora, Zaffaroni resgata a identificação pro­
posta por Tobias Barreto das práticas punitivas domésticas com os atos de
guerra. Se ambos os fenômenos têm existência real, e se a pena, assim como
a guerra, não se legitima no direito, mas é uma das expressões violentas da
política, cabe ã dogmática penal a f u n ç ã o h u m a n i t á r i a de contrair suas
hipóteses de incidência —“inventamos a pena como uma necessidade para legi­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

timar o exercício de um poder político corporativista e verticalizador da sociedade.


(...) A o considerar a pena como um fato do poder, como um foto político, podemos
reduzir a esfera do poder punitivo, postular a redução do poder punitivo como um
objetivo político bastante claro”29.
Os discursos de racionalização da pena (ou de legitimação da guer­
ra) servem exclusivamente para justificar a expansão do poder punitivo. As
narrativas fundamentadoras se transformam sempre em mecanismos de
potencialização das retaliações aos dissidentes (inimigos internos ou ex­
ternos). O exercício do poder de punir, na forma de pena ou de guerra,
simboliza a negação do direito.
Neste sentido, como a guerra, que “é um exercício de poder que está
deslegitimado inclusive normativamente no plano inten cio n al”30, mas que possui

princípios limitadoKS impostos ao sistema, derivados da privia decisão política indicativa de sua
junção, não apenas são inacabados em sua elaboração como também abertos em seu enunciado. A
pKtensfo de catalogá-los foi baseada em um su^sto jus puniendi ou direitosubjetivo de punir,cujo
titular seria o Estado. Não existe este jus puniendi, mas sim uma potentia puniendi cannte de
contendo e redução e, por conseguinte, esses princípios não podem ser enumerados exaustivamente,
pois novos conflitos, tecnologias, pretextos, violações, discursos e aportes de outras disciplinas, assim
como o feito do seu próprio avanço realizador, demandam sua permanente atualização (...)” (ZA-
FFA R O N Iet al., D íkíío Penal Brasileim I, p. 201).
29 ZAFFARONI, Sentido y fustificación de la Pena, p. 40.
30 ZAFFARONI, Sentido yfustificación de la Pena, p. 38.
uma existência concreta, a pena deve ser enfrentada “como um dado da rea­
lidade, como umfato político, como um fato depoder"M. Entretanto, o problema
decorre do fato de que o direito internacional hum anitário, apesar da
violência inerente à guerra, não consegue anular sua existência, apenas cria
mecanismos e inventa práticas de contenção da sua incidência letal —“nin­
guém duvida da legitimidade nem da racionalidade do direito internacional huma­
nitário, precisamente porque se trata de um programa de limitação e redução de um
acontecimento irracional e deslegitimado”22.
A perspectiva agnóstica, na delimitação da teleologia redutora, mes­
mo ciente de que a guerra e a pena são fenômenos impossíveis de serem
cancelados no atual m om ento histórico, reconhece a legitimidade das
técnicas de interdição dos aspectos mais violentos, mais inumanos e mais
terroríficos dos atos punitivos. A tarefe redutora compreende, pois, “rede­
fin ir o direito penal da mesma forma que o direito internacional humanitário, con­
cebendo-o como um discurso para limitar, para reduzir e, eventualmente, se possível,
para cancelar o poder punitivo ”33. Nessa perspectiva, o direito e o processo
penal são recapacitados como instrum entos estratégicos de um a política
hum anista preocupada exclusivamente com a dim inuição do sofrimento
das pessoas envolvidas no conflito criminalizado (réus, vítimas e corpo

S - TEORIA AGNÓSTICA (OU NEGATIVA) DA PEN A


social)34.

6.3.4. Projetar um modelo dogm ático amparado por um a visão


realista do fenômeno punição implica a recusa desta espécie de esquizofrenia
secular, que embriaga o discurso penal, na qual são propostos modelos
teóricos metafísicos de legitimação do ilegítimo.

31 ZAFFARONI, Sentido y Justficaciin de la Pena, p. 38.


32 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I, p. 109.
33 ZAFFARONI, <&é Hacer con la Pena?, p. 3.
34 Zaffaroni e Batista são precisos ao identificar que os danos provocados pelo sistema
penal não afetam apenas os direitos humanos dos réus e condenados, mas também das
vítimas. Em relação às vítimas do delito, porém, as teorias de fundamentaçào da pena
operam uma espécie de inversào ideológica do discurso, pois ao mesmo tempo em que a
evocam para legitimar a pena, a abandonam sem propor formas de proteçàojurídica: "as
teorias manifestas da pena legitimam, junto ao poder punitivo, a otfendade da vitima e o ansequen-
te direito do estado a desprotegê-la. A evocação da vitima é discursiva, mas o modelo a abandona sem
solução” (ZAFFARONI et al., Direito Penai Brasileiro I, p. 110).
As teorias idealistas da pena, que durante séculos procuraram legi­
tim ar o poder de punir, atingiram seu ápice nos modelos prevencionistas
da primeira e da segunda modernidade penal. N o entanto, atuaram fun­
dam entalmente como anestésicos das práticas autoritárias dos atores do
sistema punitivo, sendo estratégicas “para que os operadores da execução não
tenham uma má consciênáa”35. Ademais, conforme evidenciado pela crim i­
nologia crítica, os discursos punitivos fundamentadores, sobretudo os que
estruturaram a ideologia do tratam ento (correcionalismo), ao invés de
capacitar os atores jurídicos para a proteção dos direitos das pessoas, legi­
timaram os ‘melhoradores da humanidade’ (Nietzsche) para intervir violenta­
mente contra os direitos fundamentais.
Ao abdicar do justificacionismo e assumir a pena como uma reali­
dade (fenômeno) da política, as estratégias de m inimização dos poderes
arbitrários surgem como um a reação ou um a resistência igualmente polí­
tica. A p o stu ra agnóstica permite, portanto, que o operador jurídico atue
consciente da institucionalização deteriorante do cárcere, voltando o seu
*4*5 FU'. DlQU Dí éM lW j, NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

saber e a sua atuação para a m áxim a neutralização possível dos efeitos da


prisionalização e para a dim inuição da vulnerabilidade dos indivíduos e
dos grupos criminalizados. Tais premissas, conforme pondera Zaffaroni,
seriam orientadoras de uma prática sem pretensões impossíveis ou utópicas36.

160

33 ZAFFARONI, Sentido yJustificación de la Pena, p. 40.


36 ZAFFARONI, Sentido yjusttficación de la Pena, p. 41.
4
4

7 - PROJEÇÕES DA CONCEPÇÃO AGNÓSTICA


(OU NEGATIVA) DA PENA NA CULPABILIDADE

ri

7.1. Vínculos entre Pena e Culpabilidade na Dogmática Penal:


Formação do Juízo de Reprovabilidade

7.1.1. Assim como a relação entre o crim e e a pena, os vínculos


entre as teorias do delito e da pena são fictícios, estabelecidos exclusiva­
mente no plano discursivo dogmático. Lógico que desde o ponto de vista
teórico, um sistema cientfâco de direito penal deve procurar harm onizar
suas três estruturas narrativas (teoria da lei penal, teoria do delito e teoria
da pena) a partir de um mesmo princípio unificador (motivo conceituai).
Apesar de o trabalho não ter a pretensão de ingressar na teoria do
delito —discurso dogmático que ganhou a m aior atenção dos juristas no
século passado, provavelmente pelo seu evidente apelo metafísico —, o
esforço de proposição de um a dogmática conseqüente da pena exige a
incursão, ainda que breve, neste campo do saber jurídico-penal, em espe­
cial na t e o r i a d a c u l p a b i l i d a d e .
Se a pena é a conseqüência jurídica do delito, é a culpabilidade que
na atual estrutura dogmática se estabelece como o elo entre os distintos
fenômenos (crime e castigo). Desta forma, a construção de um modelo
negativo de pena não poderia prescindir de um a proposição agnóstica de cul­
pabilidade, ou seja, de um modelo de culpabilidade que não esteja orienta­
do ã fundamentação, mas ã exclusiva constrição das práticas punitivas.
Em um certo aspecto o conceito jurídico de culpabilidade exerce
esta função de limitação da pena quando traduzido no princípio da culpabi­
lidade. Conforme a designação dogmática, o princípio da culpabilidade
teria distintas funções, como as de (a) restringir a responsabilidade penal
apenas ao autor do delito (vedação da responsabilidade penal coletiva ou
por ato de terceiro) e de (b) excluir qualquer possibilidade de incidência
da sanção penal quando inexistente um vínculo subjetivo (consciência e
vontade) entre o sujeito ativo da conduta e o resultado produzido (exclusão
da responsabilidade penal objetiva).
N o entanto, se a culpabilidade, como um dos princípios delineadores
do sistema constitucional de direito penal, opera como uma categoria garantis­
ta de limitação do poder punitivo, ao ser traduzida em elemento da analítica
do delito e em circunstânciajudicial de aplicação da pena, tem sua funcionalida­
de convertida em fundamento e grau da sanção criminal. Neste aspecto, é
possível identificar uma instrumentalidade relativamente contraditória da
culpabilidade no discurso penal: limitação,fundamentação egraduafio da pena
—entenda-se, logicamente, este qualificativo (contraditório) desde o pon­
to de vista crítico no qual o sistema dogmático de direito penal é regido
pela teleologia redutora; pois, ao contrário, nos sistemas ortodoxos tradi­
cionais, as funções de limitação e fundamentação coabitam harm onica-
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

mente, sem maiores crises.


Neste sentido, em razão dos sólidos vínculos entre pena e culpabi­
lidade estabelecidos pela dogmática penal ao longo do século passado,
m orm ente no que tange ã identificação da culpabilidade com o um juízo
de reprovação do autor do fato delitivo, o exercício proposto é o da sua
decomposição teórica. A desconstrução da culpabilidade perm itirá identi­
ficar as suas potências punitivas e redutoras, de forma que sejam mantidas
apenas as últimas, com o objetivo posterior de reconstruir a categoria
desde um a perspectiva agnóstica.

7.1.2. Zaffaroni demonstra que no período de formatação da dog


mática do delito, notadamente no sistema Liszt-Beling, a culpabilidade,
diferentemente do que acontece atualmente, não se projetava sobre a pena.
^^2 ' A ausência de um a intim a r e l a ç ã o e n t r e a c u l p a b i l i d a d e e a s a n ç ã o
p e n a l deriva de duas razões distintas. A primeira, de ordem intradogm á-
tica, diz respeito ao feto de que, para a teoria psicológica, a culpabilidade
era concebida como uma categoria m eram ente descritiva (empírica) do
elemento subjetivo do crime, não sendo admissível qualquer espécie de
graduação. A culpabilidade, integrada pela imputabilidade, pelo dolo e pela
negligência, representava o vínculo psicológico (subjetivo) entre a condu­
ta e o resultado, pois vínculo causai (objetivo) será definido no âmbito do
injusto (conduta típica e ilícita). A segunda razão, externa ã teoria do de­
lito, é decorrência da preponderância do positivismo criminológico na
fundamentação e na determinação das penas. Sob a regência do paradigma
criminológico determinista, a graduação e a medida da sanção penal ocor­
riam desde o critério da periculosidade do agente, segundo os parâmetros de
referência utilizados no positivismo etiológico e incorporados na teoria do
direito penal por meio da dogmática da pena1.
Assim, na sistematização primeira da teoria do delito, moldada a
partir da concepção causai da ação, ao serem consolidados os elementos
(requisitos) configuradores do conceito de crime 2 —redução do fenômeno
normativo ã fórmula abstrata conduta típica, antijurídica eculpâvel—, a culpa­
bilidade é percebida como a estrutura psíquica do ilícito, composta, em

NA C U L P t W U D A D E
sua base empírica, pela imputabilidade, pelo dolo e pela negligência.
O naturalism o que m arcou o sistema Liszt-Beling —“(...) próprio da
história do pensamento de começos do século X IX , que procurava submeter às ciên­
cias do espírito o ideal de exatidão das ciências naturais e reconduzir consequente­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
mente o sistema de Direito Penal a componentes da realidade mensuráveis e empi-
ricamente verificáveis”3 - produziu esta primeira versão da teoria do delito
que fixava uma fronteira bastante clara entre os elementos objetivos e
subjetivos do c rm e 4. O dolo e a negligência, considerados modalidades de

O Ó S T IU
1 ZAFFARONI et al., Manual de Derecho Penal, p. 523.
Conforme visto anteriormente, um dos maiores exemplos desta instrumentalização

DA CONCEPÇÃO
dogmática do positivismo criminológico pela dogmática é a construção de distintos critérios
de responsabilização para os diferentes tipos de criminosos: corrigíveis, ocasionais e irre­
cuperáveis, na formulação de Liszt (LISZT, La Idea de Fin en Derecho Penal, pp. 115-126). - P R C JEÇ Õ E5

2 O recurso ao termo elementos do crime serve apenas como um critério de identifica­


ção na teoria do delito, visto sua ampla utilização na literatura penal. N o entanto, é
fundamental a referência de Fragoso no sentido da inadequação do termo, pois “o crime ê
um todo unitário, insusatível de fragmentação. Não ê possível imaginà-lo composto de elementos,
como partes de um todo. A análise, ponm , não tem por objeto uma fragmentação, embora envolva,
em gemi, uma ideia de decomposição, opondo-se <1síntese (...). A e^nssã o ‘elemento’ è inadequada,
pois dá ideia de partes simples de um composto. Seria mais adequado falar em 'características' ou em
'requisitos'. A questão, sendo puramente terminológica, não afeta a essência das aisas. É feliz a
e^ressão que alguns autores empregam, segundo a qual, se se concebe o crime como umprúm a, seus
componentes devem ser r^resentados por suas faces e não am o suas partes” (FRAGOSO, Lições
de Direito Penal, p. 178).
3 R O X IN , Derecho Penal, p. 200.
* Sobre a influência do naturalismo, os reflexos na dogmática do delito e as críticas ao
sistema Liszt-Beling, conferir TANG ERINO , Culpabilidade, pp. 56-63.
culpa, estabeleciam a relação subjetiva (psicológica) entre o sujeito e o
resultado produzido. A imputabilidade, por seu turno, caracterizava-se
como pressuposto da culpabilidade (capacidade de culpabilidade) ou, em
algumas formulações teóricas, como pressuposto da própria pena.
A estrutura dogmática do delito limitava-se, portanto, ã descrição
destes vínculos (objetivos e subjetivos) entre a conduta e o resultado, em -
piricam ente verificáveis na realidade. Nas palavras de Jescheck, a concep­
ção psicológica da culpabilidade traduz-se como “uma atitude básica do po­
sitivismo, orientada ao fático ”5.
Apenas com R einhart Frank a culpabilidade deixará de ser um ju í­
zo estritamente descritivo para, além disso, transformar-se em u m ju izo de
valor ^u ízo de r^rovação). Com a publicação de Sobre a Estrutura do Concei­
to de Culpabilidade (1907), Frank sintetiza a culpabilidade como r^mvabilidade,
promovendo uma viragem normativista da categoria6. A normativização da
culpabilidade representa exatamente este processo gradual de exclusão dos
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

elementos psicológicos, com a transferência do dolo e da culpa para o in ­


justo (tipicidade), e a sua transfiguração em índice de reprovabilidade a partir
da fórmula da exigibilidade de conduta7, situação que irá proporcionar sua
projeção sobre o fenôm eno da pena. Nota-se, portanto, que o vínculo
entre pena e culpabilidade é relativamente recente na dogmática penal.
Logicamente que a transposição da teoria psicológica para a teoria
normativa pura da culpabilidade não ocorre de forma abrupta ou linear,
como um a mecânica superação paradigmática. Exatamente por este m oti­
vo a literatura penal apresenta, como modelo intermediário, a teoria psi—
cológico-normativa, na qual o dolo, a culpa e a exigibilidade coabitam
internam ente o elemento da teoria do crime.
A ruptura com o naturalismo, operada pelo sistema neoclássico, é
decorrência da incorporação da filosofia dos valores neokantiana pelo
direito penal nas primeiras décadas do século passado. Ao distanciar-se do
modelo naturalista, a teoria do delito procura um fundam ento autônomo,

4JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 378.


6 BATISTA, Cem Anos de R^rovação, p. 161.
1 Apesar de promover a despsicologização, Frank resguarda um fandamento material do
juízo de culpabilidade em torno daquilo que Enrique Cury irá designar como concepção
livre-arbitrista limitada ou determinismo relativista (CURY, Culpabilidade e Criminolotgia,
p. 20).
próprio das ciências do espírito, capaz de garantir ao injusto e à culpabili­
dade formas de interpretação da realidade a partir de determinados valores,
para além da limitação m eram ente descritiva dos fenômenos empíricos.
Neste cenário, leciona R oxin que seria im portante “(...) inte^retar o injus­
to e a culpabilidade a partir dos critérios valorativos da danosidade ou da nocividade
social e da r^rovabilidade, como ocorre até os dias atuais de modo a produzir im­
portantes efeitos práticos na maioria dos projetos sistemáticos [sistemas dogmáticos
da teoria do delito]”8.
Assim, se é possível dizer que no âmbito intrassistemático o debate
entre psicologismo (teoria causai da ação) e normativismo (teoria final da
ação) foi centrado na disposição geográfica do dolo e da negligência9, é
igualmente lícito afirm ar que o efeito do processo de despsicologização e

NA C U L P W L I D A D E
de homogeneização da culpabilidade resultou em uma forma qualificada
de análise dogmática na compreensão dos elementos do delito e, conse­
quentemente, da aplicação da pena. Os vínculos entre culpabilidade e pena
são definidos com a conversão da análise descritiva em um juízo de valor.

( 0 . NEGATIVA) D APENA
A noção de reprovabilidade instituída por Frank 10 constituirá a cha­
ve de interpretação desta projeção da culpabilidade sobre a pena, consoli­
dando, na dogmática jurídico-penal, o elo entre a teoria do delito e a teoria
da pena. A normativização proporciona, inclusive, resgatar para o direito
penal as conseqüências jurídicas do crim e que se encontravam aprisionadas

íC N Ó S TIC i
nos muros periculosistas da criminologia determinista (paradigma etioló­
gico) . Posteriormente, com Goldschmidt, a reprovação será detalhada como

DA CONCEPÇÃO
infração a um a específica norma de dever, como um juízo “(...) sobre as ca­
racterísticas defeituosas da vontade da ação"", contribuição que proporcionará
- PRC JEÇSCS

8 R O X IN , Derecho Penal, p. 201.


5 “(...) o grande debate de meados do século X X , ou seja, dos anos de di^uta entK finalismo e
causalismo, se estabeleceu com a localização generalizada do dolo e da culpa no injusto, o que homo­
geneizou o conteúdo da culpabilidade, embora sua natuKza não tenha se alterado muito nas distintas
proposições” (ZAFFARONI et al., Manual de Derecho Penal, p. 526).
10 Frank conclui que a culpabilidade não estava integrada somente pela relação psíquica
do sujeito com o resultado, mas por três elementos de ordem semelhante: “1) pela norma­
lidade mental do sujeito, 2) por uma concreta relação psíquica do sujeito com o fato ou ao menos a
sua possibilidade (dolo ou imprudência) e 3) pela normalidade das circunstâncias que atua o sujeito.
Como laço de união, como 'breve síntese dos elementos concretos da culpabilidade’ encontrou o con­
ceito de reprovabilidade: 'a culpabilidade é reprovabilidade...: se deve imputar uma conduta proibida
à culpabilidade de uma pessoa quando é possível reprová-la” (RO XIN, Derecho Penal, p. 795).
11 GOLDSCHM IDT apud JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 379.
im portante desenvolvimento ao conceito normativo, reforçando a função
instrum ental como juízo de valor. A últim a conseqüência do conceito
normativo é apresentada, porém, por Freudenthal, com o reconhecim en­
to da inexigibilidade de com portam ento adequado ã norm a como causa
geral de exclusão da pena12.

7.1.3. Após este processo de redefinição das estruturas internas das


categorias do delito, a teoria normativa pura se consolida sob a égide do
finalismo. A perspectiva finalista buscou redefinir o conceito de delito a
partir da afirmação de elementos pré-jurídicos para compreensão da con­
duta humana. Ao conceber o agir hum ano como ontologicamente orien­
tado — ou seja, que todas as condutas humanas, lícitas e ilícitas, seriam
direcionadas por uma vontade (finalidade) posta e representadas mental­
mente antes da movimentação corpórea (causalidade biomecânica) —, o
finalismo procura conferir um a base antropológica ã teoria do crime.
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

Conforme destaca Roxin, “(...) a teoria finalista da ação sefundamenta flo so -


ficamente em teorias ontológicofenomenológicas que intentavam colocar em relevo
determinadas leis estruturais do ser humano e convertê-las no fundamento das ciên-
aas que se ocupam do homem. Para esta concepção seria lógico colocar um conceito
básico antropológico e pré-jurídico como o de ação humana no centro da teoria geral
do delito (,..)”13.
N o que tange ã teoria da culpabilidade, as influências ontológico-
-fenomenológicas que moldam a concepção finalista de ação possibilitaram,
em definitivo, “ (...) excluir desse juízo qualquer base empíriw, concebendo a
culpabilidade como um puro juízo de valor, decorrente de enfoques categoriais e rea­
lizado sobre o poder de agir de outro modo”14.

12JESCHECK, Tratado de DeKcho Penal, p. 379.


13 R O X IN , Derecho Penal, p. 201.
14 TAVARES, Culpabilidade e Individualização da Pena, p. 126.
Juarez Tavares explica que, diferentemente da posição neokantiana que mantinha
elementos empíricos na culpabilidade, o finalismo “(...) quis empreender que os enunciados
sobw a Ksponsabilidade seriam ensequência da ordem jurídica, e não, propriamente, do fato injusto,
este último já caracterizado no âmbito da tipicidade e da antijuridicidade. D ai se dizer que a culpa­
bilidade havia se transladado da cabeça do autor para a cabeça do ju iz. Com a normatização do ju í­
zo de culpabilidade, opera-se, então, não apenas um embate de concepções, mas também de metodo­
logias, entrejuizos de constatado ejuizos de valor" (TAVARES, Cul^bilidade e Individualizado
da Pena, p. 127).
O resultado deste processo de purificação (homogeneização) e de
normativização da culpabilidade é a sua consolidação como juízo de valor,
como repro v ação do sujeito que, embora na situação concreta pudesse
agir conform e a expectativa do direito, optou pelo ilícito13. Interessante
notar que com o finalismo, notadamente a partir de Graf Z u Dohna, fica
delimitada dogmaticamente a diferença entre o objeto de valorado (dolo e
negligência) e a valoração do objeto (culpabilidade). A vontade de ação como
objeto é aquela deslocada ao tipo subjetivo na m odalidade de dolo e de
negligência; a valoração do objeto, que consiste em u m ju ízo sobre a motivação
do autor, traduz-se como reprovabilidade, no m om ento da avaliação da
culpabilidade16.

NA C U L P W L I D A D E
Assim, o processo de superação da culpabilidade como relação psí­
quica entre o sujeito e o foto foi possível, conform e ensinajuarez Tavares,
quando “agregaram-se a esta base empírica elementos normativos, de modo a retra­
tar a culpabilidade como um juízo de valor sobre o comportamento injusto, conclu­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
dente de uma reprovabilidade jurídica imposta ao autor do fato praticado. Em face
disso, a culpabilidade não seria mais somente um objeto a ser constatado, mas
também a ser criado”17.
N o entanto, para além dos esforços teóricos de normativização com
a redefinição dos fundamentos e dos elementos da culpabilidade, é possível

íC N Ó S TIC i
perceber, no pensamento dogmático do delito, a manutenção da imagem
ilustrada sobre a condição humana. M esmo com a viragem normativista,

DA CONCEPÇÃO
o pressuposto que fundam enta o conceito de culpabilidade —e, consequen­
tem ente, delim ita os elementos que a com põem —é o do sujeito responsá­
vel que atua livremente18. A representação do hom em como livre e racio­ - PRC JEÇSCS

15 Emjescheck, p. ex., ojuízo de culpabilidade significa “(...) que devem ser valorados nega­
tivamente os prindpios orientadoKS pelos quaú o autor deixou de observar naforma&o da vontade e
que, por isso, cabe provar-lhe pessoalmente pelo fato, ou sinteticamente: culpabilidade é provabi-
lidade naformação da vontade" UESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 364). 167
16 DO H N A apwdJESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 379.
Sobre a contribuição de Graf Zu D ohna em distinguir a reprovabilidade como valo­
ração e o dolo (conteúdo da vontade) como objeto dojuízo de valor, SANTOS, Culpa­
bilidade, p. 55 e SANTOS, Direito Penal, p. 275.
17 TAVARES, Culpabilidade e Individualização da Pena, p. 126.
18 Segundo Roxin, “(...) parte-se de que o imputàvel, no sentido exposto, deve ser tratado ao
nível da sua conduta privada e social como uma pessoa capaz de uma actuafio livre e Ksponsãvel”
(RO XIN, Problemas Fundamentais de Direito Penal, p. 69).
nal (capaz de escolhas) é a tradução da imagem oitocentista que a teoria
do delito congela em suas edificações metafísicas19. Na precisa conclusão
de Davi Tangerino, tanto para o finalismo quanto para as atuais tendências
funcionalistas, são “alterados os nomes dos atributos daquele homem iluminista,
mantendo-o, no essencial, inalterado. Em uma palavra, trata-se do homem ilumi­
nista usando novas v&íes’’20.
O corre que serão exatamente a manutenção da imagem de hom em
racional e a transfiguração da análise descritiva em juízo de reprovação que
desencadearão as principais críticas ã culpabilidade nos últimos anos. C rí­
ticas que atualmente consolidam o seu estado de crise.

7.2. Vínculos entre Pena e Culpabilidade na Dogmática Penal:


Culpabilidade como Limite e Medida da Pena

7.2.1. Após os embates teóricos do século passado entre naturalismo


(teoria psicológica), neokantismo (teoria psicológico-normativa) e onto-
logism o-fenom enológico (teoria norm ativa), notadam ente acerca dos
elementos internos e da extensão e da forma de abordagem das categorias
do delito, a principal alteração na concepção de culpabilidade foi a da sua
percepção como limite e medida da pena. Logicamente que esta duplicidade
de funções que a culpabilidade desempenhará a partir da década de 1970
somente foi possível por meio da consolidação do vínculo e da projeção da
culpabilidade sobre a pena.
Importante ressaltar que a ideia de c u l p a b i l i d a d e c o m o l i m i t e e
m e d i d a d a p e n a é construída sob a base de um pensamento que de certa
forma antecipará as narrativas funcionalistas contemporâneas. Isto porque
os esquemas teóricos funcionalistas atuais reforçam sobremaneira a relação
entre culpabilidade e punição, vinculando a culpa a um sentido (positivo)
da pena e, em última instância, às finalidades político-crim inais do direi­

19 Davi Tangerino demonstra que este sujeito culpãvel desenhado na ilustração, incorpo­
rado na teoria do delito por Binding, caracteriza-se a partir de um duplo atributo ideali-
zador: “em primeiro lugar, trata-se de indivíduo igual e livre (...); em segundo lugar é raàonal, isto
é, capaz de compreender todos os valoKS protegidos pelo Ditzito natural a partir de sua razão, bas­
tando, para tanto, a vida em sociedade. Em outras palavras: o sujeito iluminista conhece o Direito
natural. Sempre" (TANGERINO, Culpabilidade, p. 47).
20 TA N G ERIN O , Culpabilidade, p. 107.
to penal. Por esta razão, o modelo desenhado originariam ente por R oxin
em meados dos anos 1960 e posteriormente atualizado sob a perspectiva
funcionalista apresenta-se como altamente relevante para análise e crítica21.
Lecionajuarez Tavares que um dos principais méritos de R oxin foi
o de elim inar da culpabilidade aquela base supostamente ontológica for­
necida pelo finalismo22, que, em modelos político-crim inais autoritários,
justificaria o juízo de reprovabilidade com o valoração da conduta de vida
do autor do ilícito. Outrossim , segundo o autor, a construção de R oxin
perm ite que o juízo de culpabilidade tenha como ênfase a capacidade de
motivação do agente para o foto, avaliada a partir dos apelos conduzidos
pela ordem jurídica (proibições). R oxin pretenderia, portanto, “contextua-

NA C U L P U J H .ID A D E
lizar o poder agir de outro modo como fundamento da culpabilidade, substituindo
seu enunciado puramente normativo, destituído de qualquer conteúdo empírico, por
um critério em função do que o sujeito poderia efetivamente fazer ou não fazer,
quando submetido a uma twrma vinculante de sua conduta”23.

( 0 . NEGATIVA) DA PENA
Conforme designado por Roxin, a culpabilidade não seria um juízo
compreensivo dos elementos subjetivos do tipo, segundo a tradição causai;
assim como não se constitui com o um juízo de reprovabilidade, conforme
a teoria norm ativa e o finalismo; tampouco, segundo a vertente funciona­
lista de Jakobs, converte-se em um a forma de im putação adequada e sub­

(C N ÓSTIC *
missa aos fins estatais24. A culpabilidade, identtâcada como juízo de res­
ponsabilização, refere u m ju ízo de valor sobre a motivação do agente, a partir da

21 A ênfase na versão originária proposta por Roxin diz respeito não apenas ao seu im­ DA CONCEPÇÃO
- PR O JEÇ Õ ES
portante papel político-criminal na redação do Projeto Alternativo (1966) de Código para
a Alemanha, mas, sobretudo, ao impacto da sua teoria na dogmática alemã contemporâ­
nea. Conforme antecipado, o caráter inovador da sua construção que abrirá caminho,
inclusive, para as inúmeras vertentes funcionalistas da atualidade.
As demais versões do foncionalismo serão abordadas como variáveis. Especificamen­
te em relação ao modelo de Jakobs (culpabilidade como infidelidade ao direito), a relevância
dos seus efeitos para o presente trabalho foi analisada anteriormente, no momento da
crítica às teorias da prevençào geral positiva.
22 Importante registrar que, apesar das críticas de R oxin ao finalismo, o autor reconhece
que ambas as perspectivas seriam complementares, sobretudo no que tange (a) ã nào ex­
clusão dos pressupostos de imputação objetiva e (b) ã racionalidade político-criminal da
teoria da culpabilidade (RO X IN , Finalismo, pp. 19-25).
23 TAVARES, Culpabilidade e Individualização da Pena, p. 127.
24 R O X IN , Reflexões sobn a Construção Sistemática do Direito Penal, p. 41.
verificação concreta do nível de acesso que o sujeito teve às regras que
im põem condutas.

7.2.2. N o que tange aos seus vínculos com a sanção, R oxin percebe
que o conceito de culpabilidade havia cum prido duas funções práticas
distintas na história do direito penal: a primeira, de justificar o fim retribu-
tivo da pena25; a segunda, de limitar a imposição das sanções criminais26. Em
termos de garantias, esta segunda função exerceria a tutela dos direitos
fundamentais do autor do delito contra os excessos e as ingerências puni­
tivas indevidas.
Narra R oxin que a ideia de culpabilidade como reprovabilidade, incor­
porada no século passado pela dogmática penal alemã, transformou-se no
fator decisivo de determinação da quantidade da pena. O critério de re­
provação, contudo, havia sido estabelecido a partir da fundamentação re-
tributivista de inspiração kantiana e hegeliana. Esta concepção, denom i­
nada bilateral, foi consolidada na noção de que a pena, por um lado,
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

pressupõe a culpabilidade; e, por outro, que a culpabilidade é compensada

2i A primeira função que R oxin attibui ã culpabilidade é aquela derivada do pensamento


da Ilustração, na qual a culpa decorre da ideia de dívida. A pena, portanto, justifica-se
como uma rettibuição jurídica ou moral pelo não cumprimento do contrato social: “uma
retribuição no sentido de infligir um mal compensatório da culpabilidadepnssupõe logicamente uma
culpabilidade que pode ser compensada (‘saldada’, ‘expiada’’) . Neste sentido traduz-se então a cul­
pabilidade como desvantagem para o acusado, pois legitima o mal que se lhe inflige” (RO XIN, A
Culpabilidade como Critério Limitativo da Pena, p. 8).
Segundo o autor, a teoria da retribuição seria, do ponto de vista científico, insusten­
tável e, desde o plano político-criminal, danosa. A primeira crítica exposta é centtada no
caráter irracional do retributivismo: “a teoria da retribuído é tampoua aceitável, porque sua
pwmissa, de que o injusto cometido pelo agente é compensado e saldado pela pena retributiva, é ina­
cional e incompatível com os fundamentos teórico-estatais da Democracia. O u seja, que um mal (o
fato punível) possa ser anulado pelo fato de que agregue um segundo mal (apena), é uma suposição
metafísica que somente pode-se fazer plausível por um ato defé” (ROXIN, A Culpabilidade como
Critério Limitativo da Pena, p. 9).
Do ponto de vista político-criminal, a teoria seria danosa em razão de a pena esgotar-se,
como finalidade, em si mesma, sendo ausente qualquer perspectiva preventiva, pois “ (...)
inogar um mal não conduz a nenhum caminho para a execução moderna da pena que sirva a uma
fetiva prevenção do delito” (ROXIN, A Culpabilidade am o Critério Limitativo da Pena, p. 9).
26 “Consiste [a função da culpabilidade] em que limita a pena, ou seja, põe uma baneira à fa ­
culdade de intervenção estatal, pois a medida de cufabilidade indica o limite superior da pena”
(ROXIN, A Culpabilidade como Critério Limitativo da Pena, p. 8).
(retribuída) pela imposição da pena27. A relação biunívoca estabelecida
entre pena e culpabilidade geraria um a espécie de autolegitimação recí­
proca, com fundam ento no retributivismo: não há pena sem culpabilidade
e a culpabilidade se redime na pena.
A proposta do autor de ren ú n cia à re trib u iç ã o e de adeq uação
da p en a às necessidades preven tivas pressupõe, portanto, a superação
do modelo bilateral, com redefinição das metas político-crim inais e com
a readequação das formas de intervenção punitiva. Como alternativa ao
retributivismo, R o xin propõe um duplo sentido preventivo ã pena, com
prevalência da prevenção individual (ressocialização).
É possível perceber, portanto, que o m ovim ento de reforma da

NA C U L P U H U D A D E
dogmática penal alemã, nas décadas de 1960 e 1970, que influenciará sobre­
maneira o direito penal dos países romano-germânicos no final do século
passado, ocorre sob a forte influência da ideologia correcionalista. Os fins
da pena aos quais o direito penal se vinculará nesta nova reconfiguração

( 0 . NEGATIVA) D APENA
sistemática são os da correção dos déficits de socialização dos criminosos.
Assim, embora ao longo da década de 1970 sejam consolidadas as
teses críticas da criminologia ao modelo correcionalista na tradição da
common faw, nos países romano-germânicos o tema se presentifica em razão
de sua incorporação no campo dogmático (teoria do delito). Em meio ã

(CNÓSTICA
crise criminológica, a dogmática recupera a perspectiva da prevenção es­
pecial e instrumentaliza suas categorias sobre este fundamento.
Percebe-se, pois, que, ao ignorar totalm ente os dados de realidade

DA CONCEPÇÃO
apresentados pela criminologia (crítica) em relação ã ilegitimidade teórica
e ã incongruência prática dos discursos de ressocialização, o mainstream
dogmático consome naturalm ente o discurso correcionalista, redefinindo
- P R C JEÇ Õ E5

as bases da teoria do delito sob pressupostos deslegitimados empiricam en-


te. Neste cenário, a culpabilidade será inegavelmente a categoria dogm á- ^
tica mais vulnerável ao impacto das críticas criminológicas, não apenas em

27 Roxin expõe a concepção bilateral em um fértil diálogo com Arthur Kaufmann, autor
de “O Princípio da Culpabilidade” (1961). Segundo Roxin, “Kaufmann chega, inclusive, a re­
clamar uma vigência absoluta, fandada no Direito Natural, para a tese de 'que a pena tem que cor­
responder à culpabilidade, mas também a culpabilidade exige em prindpio pena’” (RO XIN,
Conapcián Bilateral y Unilateral dei Prindpio de Culpabilidad, p. 188). Esclarece, contudo,
que na segunda edição do livro (1976) Kaufmann agrega àjustificativa da pena baseada
na culpabilidade exigências de tutela de bensjurídicos. Neste sentído, conferir igualmen­
te R O X IN , Reflexiones Político-Criminales sobre el Prindpio de Culpabilidad, p. 49.
razão da readequação das suas funções, mas, sobretudo, pelo consolidado
vínculo com a punição e os seus fins.

7.2.3. Apesar de fundar seu sistema em bases penológicas que na


época já apresentavam sinais de consolidada crise, na teoria do delito a
inovação proposta por R oxin 28 consiste em ampliar o sentido dogmático
de culpabilidade para a ideia de resp on sabilid ade e, ao harmonizá-lo ãs
perspectivas político-crim inais preventivas, agregar as distintas funções de
limitação e de graduação da pena. Se a perspectiva tradicional de culpabili­
dade, delineada pela noção de retribuição, estabelecia um parâm etro ine­
gociável na definição da sanção —a quantidade de pena deveria correspon­
der exatam ente ao grau de culpa —, ao incorporar as perspectivas de
prevenção especial (ressocialização) e de prevenção geral (tutela de bens
jurídicos), R o xin opera uma readequação da culpabilidade às novas dire­
trizes político-crim inais em renúncia ao retributivismo.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

Segundo o autor, a polifuncionalidade preventiva, mediada pela ideia


de culpabilidade como exponencial m áxim o da sanção, perm itiria a cria­
ção de um a espécie de sistema autogestionado no qual a pena seria lim ita­
da pela coalizão de forças entre as distintas funções político-crim inais.
Sustenta o autor que “(...) à culpabilidade como condição impr&cindivel de toda
a pena se deve acrescentar sempre a necessidade preventiva (especial ou geral) da
sanção penal, de tal modo que a culpabilidade e as necessidades de prevenção
se lim item reciprocamente e, conjuntamente, deem lugar à ‘responsabilidade'
pessoal do sujeito, que desencadeia a imposição da pena"29.
A tese que será o sustentáculo do sistema consiste em que “o conceito
de culpabilidade comofundamento da retribuição é insuficiente e deve ser abandona­
do, mas o conceito de culpabilidade como prindpio limitativo da pena deve ser
mantido e pode serfundamentado teoricamente nesta segunda função”20. A função

28 Leia-se inovação no campo da culpabilidade, pois, segundo Roxin, sua primeira pro­
posta inovadora ocorreu no campo da teoria da imputação do tipo objetivo. Se nos siste­
mas clássico, neoclássico e finalista o tipo objetivo ficava reduzido, essencialmente, ã mera
causalidade, a proposta teleológico-foncionalista torna a imputação de um resultado típi­
co dependente da "Kalizafio de um perigo não permitido dentm da finalidade de proteção da
norma, substituindo pela primeira a categoria científico-natural ou lógica da ausalidade por um
conjunto de regras orientado ãs valorações jurídicas” (RO X IN , Derecho Penal, p. 204).
29 R O X IN , Derecho Penal, p. 204 (grifou-se).
30 R O X IN , Reflexiones Político-Criminales sobre el Principio de Culpabilidad, p. 43.
de limitação da intervenção punitiva será instrumentalizada pela adequação
da pena às finalidades preventivas (geral e especial). Nesta composição de
um modelo regido por distintos objetivos sancionatórios (sistema polifun-
cional), a missão prim ordial (hierarquicamente superior) do direito penal
seria a de ressocialização: “a execução da pena só pode ter êxito enquanto procu­
re corrigir atitudes sociais deficientes que levaram o condenado ao delito”3'.
A tradução do correcionalismo ã teoria do delito será realizada pela
concepção unilateral do princípio da culpabilidade, defendida não apenas por
Roxin, mas pelos demais reformadores do direito penal alemão. A propo­
sição unilateral procura m anter o sentido garantidor da culpabilidade como
limite da pena. Assim, a sanção criminal teria como lim ite quantitativo o

NA C U L P W L I D A D E
grau de culpabilidade pelo ato32. N o entanto, ao princípio de garantia
seria agregada segunda diretriz: “as penas e as medidas servem à proteção dos
bens jurídicos [prevenção geral negativa] e à reintegração do agente à comunida­
de jurídica [prevenção especial positiva]” (§ 2-, inciso 1° do Projeto
Alternativo)33.

( 0 . NEGATIVA) D APENA
A ideia central do modelo unilateral exposto no Projeto Alternativo
(1966) de Código para a Alemanha é a de que o juiz, ao definir a quanti­
dade de pena (tempo), não poderia, em qualquer hipótese, ultrapassar o
m áximo estabelecido pelo grau de culpabilidade. O princípio da culpabi­

ÍCNÓSTICA
lidade permaneceria, pois, no sistema, como um mecanismo liberal e
psicológico-social adequado para a restrição da pena estatal34. Mas se a
culpabilidade fixaria os limites máximos contra o excesso punitivo, as

DA CONCEPÇÃO
finalidades preventivas possibilitariam quantificar a pena abaixo dos refe­
renciais mínimos, sempre que visualizada a possibilidade de atingir aque­
les objetivos (preventivos) com o m enor grau de aflitividade. - P R C JE Ç fE S

Assim, exemplifica R o xin que, se “(...) o grau de culpabilidade corres­


pondesse à pena privativa de liberdade de um ano, o ju iz pode, não obstante, pres­
cindir totalmente de uma pena privativa de liberdade, se issofor adequado por razões

31 R O X IN , A Culpabilidade como Critério Limitativo da Pena, p. 9.


32 O postulado é expresso no § 2a, inciso 2a, do Projeto Alternativo, epigrafado como r'ftrn
e limites das penas e medidas de segurança”.
33 O princípio é complementado pelo § 59, inciso 2a, do Projeto Alternativo, com a cria­
ção de uma formula de aplicação da pena: "o grau determinado pela cufabilidade do ato deve­
rá ser abanado em sua totalidade, somente quando seja necessário para a reintegração do agente à
comunidade juridia ou à proteção dos bens juridiws”.
34 R O X IN , Derecho Penal, p. 100.
de prevenção esperíal, não se opondo necessidades de prevenção gemi. A culpabili­
dade, então, não exige nunca uma pena de determinada magnitude. Só determina
o limite que a pena não deve ultrapassar, determinada, quanto ao mais, de acordo
com critérios de prevenção especial e geral”35. Se a pena não tem como missão
compensar uma dívida (finalidade retributivista defendida pela concepção
bilateral de culpabilidade), são as finalidades de prevenção especial e geral
que orientariam o processojudicial de adequação da sanção.
Anota, ainda, Roxin, ser irrealizável a definição precisa da m agni­
tude da pena exclusivamente com base no princípio da culpabilidade em
razão da inexistência de uma correspondência exata (relação de causalida­
de) entre pena e culpa36. De forma ilustrativa, exemplifica com uma situa­
ção na qual a pena adequada ã culpabilidade oscilasse entre dois e três anos
de privação de liberdade. Indaga como deveria proceder o juiz nestes casos
em que, analisando apenas a pena cabível, qualquer um dos marcos fosse
aceitável, isto é, se no caso concreto dois ou três anos de privação de liber­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

dade fossem absolutamente equivalentes em termos de adequação ao grau


de culpabilidade. Sustenta que em situações como estas o juiz deveria
m anter-se no lim ite m ínim o indicado pela culpabilidade, sendo inadequa­
do im por a sanção acima dos dois anos, pois um a pena longa não assegu­
raria maiores vantagens preventivas que a de m enor duração. Se a pena
atinge sua suficiência em termos de culpabilidade com a fixação no patamar
m ínimo, qualquer excedente seria inadequado37. Outrossim, se por razões
de prevenção especial fosse demonstrado que a pena correspondente ã
culpabilidade poderia, mesmo se aplicada em seu grau m ínim o, gerar efei­
tos dessocializadores, entende plenamente cabível im por abaixo do m íni­

35 R O X IN , A Culpabilidade como Critério Limitativo da Pena, p. 14.


36 Neste sentido é esclarecedora a problematizaçâo proposta por R oxin entre a ‘teoria da
pena exata’ e a ‘teoria da m a^em de liberdade’. A determinação de uma pena específica com
um grau máramo de exatidão somente poderia ser pensada desde a lógica bilateral, na qual
a pena expressa a relação precisa de retribuição ã culpabilidade. No entanto, se a culpabi­
lidade for interpretada desde os fins preventivos, a definição de sanção exata demonstra­
-se absolutamente inviável, pois desde os critérios preventivos “o ju iz pode impor qualquer
pena que esteja dentro do limite que permite o maKO da culpabilidade, elegendo em cada aso aquela
que lhe pança mais conveniente, sobntudo para alcançara nssocialização" (ROXIN, La Determi-
nación de la Pena a la L uz de la Teoria de los Fines de la Pena, p. 100).
37 ROXIN, La Determinación de la Pena a la L u z de la Teoria de los Fines de la Pena, p. 127.
mo indicado pela culpa38, inclusive porque na aplicação da pena o sentido
preventivo especial se sobrepõe ao geral39.
A absoluta renúncia ao sentido retributivista significa, portanto,
desde o ponto de vista da determinação da pena: (Ia) a inviabilidade de
estabelecer um a pena fixa, devendo o juiz operar em um a certa margem
de liberdade definida pelo grau de culpabilidade do agente (culpabilidade
como medida da pena); (2 a-) a impossibilidade de aceitar imposição de pena
acima do lim ite m áxim o estabelecido pelo grau de culpabilidade (culpa­
bilidade como limite da pena); (3a-) a possibilidade de fixar a pena abaixo
do lim ite indicado pela culpabilidade caso seja indicado para a ressociali­
zação do réu (culpabilidade adequada aos fins preventivos especiais); (4a)

NA C U L P I W U D A D E
o m ínim o de pena adequada ã culpabilidade satisfaz, por si só, as necessi­
dades de tutela do ordenamento jurídico (culpabilidade adequada aos fins
de prevenção geral).
Com o resultado destas reflexões, conclui R oxin que “ (...) a pena
adequada à culpabilidade deve ser entendida no sentido da teoria da margem de li­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
berdade e que a pena definitiva a ser imposta, dentro do marco da culpabilidade, deve
satisfazer somente as exigêndas preventivo-espeáais, pois a pena adequada à culpa­
bilidade, inclusive a imposta em seu grau mínimo, cobre as necessidades de prevenção
geral entendida como prevenção integradora sodalmente, sendo que tampouco a lá

(CNÓSTICA
prevê uma prevenção intimidatória geral que pem ita ir além do limite máximo”40.

7.2.4. Interessante perceber, ainda, que a proposta de s u b s t i t u i ç ã o

DA CONCEPÇÃO
d o c o n c e i t o d e c u l p a b i l i d a d e p e l o d e r e s p o n s a b i l i d a d e , em razão do
- P R C JEÇ Õ E5

38 "Nesteponto creio ter demonstrado que a lei normalmente obriga levarem considerado as neces­
sidades pKventivas nos limites da cufabilidade, mas que o § 46, inaso 1-, sec. 2 Í, StG B, permite
exc^cionalmente impor uma pena inferior à conespondente ao grau de cufabilidade, até o limite do
indúpensável para a ‘defesa do ordenamento jurídico’, quando a imposição de uma pena conespon-
dente à culpabilidade possa ter um efeito daramente contrário à socialização” (RO XIN, La Deter-
minaciin de la Pena a la L uz de la Teoria de los Fines de la Pena, p. 117).
35 "Ao contrário do § 2 a A E (Projeto Alternativo], no § 59, inciso 2B, A E a 'reintegração do
agente’ está mencionada antes da 'pmteção da amunidade jurídica’. Com isto quer-se e^K ssar que,
na determinação da pena, dew-se ter em conta, no que for possível, preferentemente a prevenção es­
pecial, antes da geral. Assim: o máximo de Kssocialização possível; o máximo de prevenção geral
necessário, ponm ambos aquém do grau de culpabilidade do fato delituoso em que se insew o caso
individual” (RO XIN, A Cul^bilidade como Critério Limitativo da Pena, p. 14). No mesmo
sentido, R O X IN , Derecho Penal, p. 98.
40 RO XIN , La Determinacién de la Pena a la L u z de la Teoria de los Fines de la Pena, p. 103.
abandono do fundamento retributivista (teoria bilateral41), ocorre com uma
certa preservação da liberdade de ação como pressuposto, interpretada dog­
m aticam ente na fórmula poder de agir de outro modo.
Ressalta R oxin que a aceitação da possibilidade de atuar de modo
distinto decorre de um a proposifio normativa, de um a regra do jogo social,
que não indaga como está configurada a liberdade hum ana em sua essên­
cia, mas que apenas prescreve ao Estado que o homem deve ser tratado como
livre e, portanto, w paz de responsabilidade42. Segundo o autor, a idoneidade
para responsabilização, ou seja, a possibilidade de que um sujeito seja des­
tinatário de normas, advém, fundamentalmente, das condições pessoais de
compreensão das proibições e dos mandatos penais e da possibilidade de
orientação do comportam ento de acordo com tais prescrições43.
Um a das notórias vantagens da adoção da liberdade de agir como
pressuposto nomativo é a d e o direito penal exim ir-se do áspero problema
da liberdade de vontade como fundam ento material da culpabilidade, isto
é, trabalhar a liberdade como uma designação jurídico-constitucional
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

perm itiria exim ir-se do tenso e interminável debate entre indeterministas


e deterministas. A propósito, este é exatamente um dos pontos de crise
dogmática da culpabilidade que propiciará pensar a possibilidade de uma
teoria agnóstica: tensão e sobreposição das falácias metafísicas (livre-arbí­
trio) e das falácias naturalistas (determinismo).
Entretanto, igualmente é possível perceber que esta proposição da
liberdade de agir com o pressuposto normativo acaba sendo interditada pela
própria adoção do modelo polifuncional da pena. Se as funções político-

41 “O mnceito de re^onsabilidade compreende o de culpabilidade, mas é mais amplo que este, ao


serem incluídos os pnssupostos preventiws de naessidade dapena. O que o legislador alemão não
levou em conta, e por isso refira apenas ‘culpabilidade’, se deve ao fato de não ter percebido com
claridade teórica os efeitos dogmátirns que se deve extrair da ^ssagem de uma concepção bilateral para
uma unilateral do principio da cufabilitfade. Mas não por isso mença reprovação, tendo em vista que
o tratamento cientifirn do problema iniciou nos últimos anos. O que se dew ter ciam é que onde o
legislador alemão refere ‘culpabilidade’, tacitamente em muitos casos está rnnsiderando e pensando
também nos elementos preventivos da responsabilidade” (RO X IN , Concepción Bilateral y Unila­
teral dei Principio de Culpabilidad, p. 193). Os elementos do delito seriam, portanto, reade-
quados em tipicidade, antijuridicidade e responsabilidade.
42 Neste sentido, R O X IN , Derecho Penal, p. 101; RO XIN , Concepción Bilateral y Unilateral
<kl Principio de Culpabilidad, p. 192; R O X IN , Reflexiones Político-Criminales sobm el Principio
de Culpabilidad, pp. 54-56.
43 R O X IN , Reflexões sobrn a Construção Sistemática do Direito Penal, p. 41.
-crim inais híbridas da pena (prevenção geral e especial) atribuem signifi­
cado dogmático ã culpabilidade, a tendência mais coerente — inclusive
insinuada pelo autor 44 —seria de adesão a um sistema híbrido de compreen­
são da conduta humana. Neste caso, a tensão entre liberdade e determ ina­
ção acabaria sendo resolvida com a adoção de versões compatibilistas ou
conciliatórias. Todavia, como é próprio dos modelos híbridos, as dificul­
dades de harmonização são notórias e, não invariavelmente, conforme
exposto no debate sobre as teorias polifuncionais da pena, a tendência é a
de potencialização e não a de correção dos vícios dos sistemas particulares.

7.3. Vínculos entre Pena e Culpabilidade no Direito Penal

NA C U L P W L I D A D E
Brasileiro

7.3.1. O m odelo correcionalista baseado na teoria da prevenção es­


pecial, que emerge como m ovim ento de reforma do direito penal ociden­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
tal após a Segunda Guerra, adquiriu inúmeras vertentes. Conform e desta­
cado anteriorm ente, são distintos os percursos do correcionalismo na
tradição penológica anglo-saxã e no modelo rom ano-germ ânico, sobretu­
do na form a pela qual cada versão correcionalista irá se instrumentalizar

í CNÓSTICA
nas estruturas normativas. Pense-se, p. ex., na radical diferença entre os
modelos correcionalistas de pena indeterminada, que orientaram as práti­
cas punitivas nos países da common law, e a versão hibridizada da rívil law,

DA CONCEPÇÃO
em que o projeto de prevenção especial positiva (ressocialização) se insere
na racionalidade dogmática regida pelo princípio da culpabilidade.
Todavia, independente da feição normativa no direito penal interno, - PR C JEÇ llES

as premissas da reforma político-crim inal que se estruturam a partir dos


anos 1950, desenvolvem-se nos 1960, consolidam-se nos 1970 e entram em
colapso nos 1980, serão, em sua maior extensão, transnacionalizadas pelo
m ovim ento da Nova Defesa Social, articulado teórica e politicamente por
Marc Ancel no pós-guerra45. A partir da década de 1950, o m ovim ento da

u R O X IN , Reflexões sobre a Construção Sistemática do D im to Penal, p. 41.


Conforme leciona R ealejr., são sobretudo as ideias de Garófalo que inspiram os pos­
tulados teóricos da ‘velha’ Defesa Social, notadamente sua construção sobre o delito natu­
ral e a periculosidade (REA LEJR., Instituições de Direito Penal I, pp. 50-53).
No entanto, é do ponto de vista político-criminal, como movimento de reforma, que
o movimento se destaca. Conforme visto anteriormente, a partir da fundação da Vnião
nova Defesa Social universalizará políticas punitivas que se situam entre
o filantropismo e o controle social intensivo, a partir da compatibilização
dogmática de modelos repressivos aparentem ente ambíguos com as po­
líticas intervencionistas do Estado Social preventivo. A explícita recusa
ao retributivism o e a assunção da função ressocializadora (terapêutica)
da pena proporcionarão um a (auto) representação hum anitária ao m ovi­
m ento, im agem que facilitará im ensam ente o consumo político do pro­
jeto transnacional.
A in c o r p o r a ç ã o d o s p o s tu la d o s d e fe n s iv is ta s p e la s a g ê n c ia s
i n t e r n a c i o n a i s possibilitou que o projeto de reforma alcançasse o status
de política internacional oficial. Não por outra razão sistemas jurídicos tão
distintos como os da common e da rívil law, a partir de meados do século
passado, adequaram-se a programas similares de reestruturação das formas
punitivas, inclusive com reflexos na construção científica (dogmática) dos
distintos modelos de direito penal.
*4*5 FU'. DlQU Dí éM lW j, NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

Jescheck, ao analisar o sistema de sanções desde a perspectiva com ­


parada, relata que “a reforma alemã do Direito Penal se conecta com o movimen­
to reformador internacional que se iniciou no final dos anos cinqüenta”46. Segundo
o autor, o processo de aprendizado e a troca de conhecimentos possibili­
taram ã teoria penal germânica superar velhos preconceitos (retributivismo)
para aderir a perspectivas mais ‘progressistas’ (prevencionismo). Para Jes­
check, “sem os congressos, conferências, colóquios e relações pessoais no marco das
Associações Internacionais do Direito Penal e da Criminologia, do Conselho da
Europa e das Nações Unidas, não teria sido possível uma superação tão rápida de

Internacional de Direito Penal, em Berlim (1889), o movimento de Defesa Social —identi­


ficado nas figuras de Prins e Grammatica —se concentta na reforma penal, objetivando a
construção de mecanismos de identificação dos sujeitos perigosos. Como conseqüência,
a pena adquire sentido de reabilitação, desde uma preocupação moral de emenda sob o
enfoque médico-psiquiátrico. No campo dogmático, Liszt, no Programa de Marburgo
(1882), e Rocco, na Prolusão Sassarena (1910), organizam as relações entre o direito
penal dogmático (normativo) e a criminologia (empírica), de forma a adequar as estru­
turas penológicas aos novos postulados político-criminais (CARVALHO, Pena e Garantias,
pp. 68-76).
Sobre a incorporação dos postulados da Defesa Social nas legislações contemporâneas,
conferirsobretudo a contribuição de Marc Ancel, A Violência do Discurso de Defesa Social
ea Política Criminal do Inimigo, pp. 53-64.
46JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 686.
algumas ultrapassadas concepções do pensamento jurídico-penal alemão’H1. Inega­
velmente o penalista está se referindo ao apego da tradição penal germ â­
nica ao fundam ento retributivista consolidado na perspectiva bilateral do
princípio da culpabilidade e ã incorporação dos fundamentos preventivos,
conforme apontados anteriormente.
Em sentido similar, destaca R ealejr. que, com a explícita proposição
da prevenção especial como finalidade da pena pela nova escola da Defesa
Social, “tomou foro de verdade a ideia do tratamento, e sob os auspíáos da O N U ,
foram realizados Congressos Intencionais tendo como tema a prevenção do crime
e o tratamento do delinqüente ”48. Os ecos do movim ento repercutiram im e­
diatamente no Brasil, com a publicação, em 1957, sob recomendação da
O N U , das Norm as Gerais do R egim ento Penitenciário (Lei n. 3.274/57),

NA C U L P W L I D A D E
e, posteriorm ente, influenciaram a redação da Lei de Execução Penal.
Nos exemplos relatados das experiências alemã e brasileira, os postu­
lados do correcionalismo são gradualmente adequados às estruturas liberais
do direito penal da culpabilidade. N a especificidade das estruturasjurídi-

( 0 . NEGATIVA) D APENA
cas de cada país, os fins preventivos são incorporados, alterando as feições
do campo punitivo. Mas, por mais distintos que sejam os sistemas e os
ordenamentos internos, o correcionalismo representou a grande perm anên­
cia, em termos dejustificaçâo da pena, nos países ocidentais nas décadas
de 1970 e 1980. E, apesar da fragmentação dos discursosjustificacionistas a

ÍCNÓSTICA
que o m undo ocidental assistiu na década de 1990, é neste período anterior,
de consolidação do correcionalismo, que foram edificados os principais

DA CONCEPÇÃO
Códigos Penais do século X X , dentre eles a Reform a brasileira em 1984.
7.3.2. A R e f o r m a P e n a l d e 1 9 8 4 , seguindo as perspectivas teóricas - PRC JEÇSCS

vigentes na época, é marcada por duas tendências complementares. N o


campo da teoria do delito, a necessidade de superação da estrutura causalista
do Código Penal de 1940 impôs a adoção explícita do finalismo49. N o
âmbito da teoria da pena, um passo adiante do modelo finalista, é afirmado
o vínculo com a culpabilidade, sendo esta entendida como pressuposto,
medida e limite da sanção penal.

‘'JESC H ECK , Tratado de Derecho Penal, p. 686.


‘a R EA LE JR ., Instituições de Direito Penal II, p. 5.
‘9 “Relativamente à estrutura do fato delituoso a nova legislação adota no conamente à ação um
entendimento finalista, incoyorando neste particular as concepfies de Hans Welzel, Reinhardt
Maurach e outros criminalistas tedes&s” (LUISI, A Nova Legislação Penal Brasileira, p. 124).
Neste sentido é altamente esclarecedora a notícia histórica redigida
por Reale Jr., D otti, Andreucci e Pitombo. Segundo os redatores da R e­
forma, desde os anos 1970 surgiram no país movimentos tendentes a re­
formar o sistema positivo, visto que com as “frustradas tentativas de imposição
de um novo Código (1969/1973) como obra revisionista iniciada pelo anteprojeto
Hungria (1963), envolveram-se os penalistas com as investigações e os trabalhos de
denúncia da crise do sistema, lutando pela reforma setorizada do Código Penal de
1940, ou seja, pela mudança do sistema de penas e das medidas de segurança”1’0.
A análise dos temas que m otivaram os inúmeros eventos acadêmicos
e profissionais ao longo dos anos 197051 — todos voltados à redação dos
princípios que deveriam orientar a elaboração sistemática das penas e das
medidas de segurança no novo Código Penal (1984) e registrados em uma
série de moções e cartas de recomendações —perm ite perceber a tendência
de incorporação e, sobretudo, de adequação das diretrizes do movim ento
transnacional de reforma às especificidades político-crim inais nacionais.
Aliás, o relato elaborado pelos reformadores perm ite perceber, com preci­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

são, como é construída a opção por um a justifrcativa polifuncional da pena


regida pelo principio da culpabilidade.
A síntese das orientações que definiram os princípios gerais da re­
forma, realizada por Ricardo Antunes Andreucci, é esclarecedora, nota-
dam ente quando “(...) destaca a natureza ideológica da reforma penal caracteri­
zada por uma triade de vertentes distintas porém confruentes: uma opção pelo
liberalismo como valor politico condicionante do Direito Penal, vale dizer, uma
opfio antiautoritária que resgata o homem como realidade e valorfrente ao poder e
à opressão do Estado; a culpabilidade como fimdamento e limite da pena, e sua
função retributiva que justifrtó o julzo de censura e intensifrca o sentido ético do
Direito Penal. E a propósito da prevenção especial através da emenda, poderá ela
ocorrer ou não ‘p osta como livre opção do homem diante dos valores, pelo que se
propiciará ensino normal, trabalho, assistência médica, ambiente carcerário isento de
fatores criminógenos”52.

7.3.3. Neste sentido, algumas peculiaridades merecem destaque na


nova estrutura de penas e de medidas de segurança adotada pela legislação

50 R E A L E JR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo C ó d i^, p. 3.


51 R EA LE JR . et al., Penas e Medidas de Segurança no N ovo Código, pp. 3-34.
52 A N D R EU C CI apud R E A L E JR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo Código,
p. 30.
nacional em 1984 e que, apesar das inúmeras reformas ocorridas ao longo
dos anos 1990 e da primeira década dos anos 2000, permanece como conso­
lidadas guias normativas, sobretudo na fase de aplicação judicial das sanções.
O prim eiro ponto a ser observado é o da a d e s ã o a o l i b e r a l i s m o
p o l í t i c o refletido no sistema de penas por m eio dos vínculos com o prin­
cípio da legalidade. Destaca Luiz Luisi, nos comentários à legislação penal
de 1984, que entre as principais nuances está a evidente inspiração em uma
ideologia liberal e humanista, na qual “o crime é f rndamentalmente e necessa­
riamente um ilítito típico e culpável. A tipicidade decorre do apotegma político da
reserva legal. E fa z do direito penal não apenas o direito destinado à punição dos
criminosos mas o instrumento de garantia do cidadão contra o arbítrio, principalmen­
te o judicial "53.

NA C U L P U H U D A D E
A opção explícita por um regime de estrita legalidade dos delitos e
das penas marca uma im portante diferença da legislação penal brasileira
no processo de internacionalização política do correcionalismo por meio
do m ovim ento da Nova Defesa Social. Não é excessivo relembrar que o

( 0 . NEGATIVA) D APENA
modelo correcionalista baseado na lógica do tratam ento ressocializador,
sobretudo nos países da common law, havia instituído um sistema de penas
indefinidas, caracterizado pela exclusiva limitação do tempo mínimo de
cum prim ento. Desde a lógica correcional, seria inviável estabelecer o
quantum m áximo da sanção em razão de ser inconcebível um diagnóstico

(ONÓSTICA
ex ante do condenado, ou seja, o tem po do tratam ento dependeria, subs­
tancialmente, da resposta positiva do paciente durante o processo terapêu­

DA CONCEPÇÃO
tico (tratamento penal).
O Código Penal, ao vincular-se ao liberalismo político, exclui qual­
quer possibilidade de pena indefinida, sendo sua quantidade e qualidade - PR O JEÇ Õ ES

definidas judicialm ente dentro dos marcos que corresponderiam ao des-


valor da conduta e do resultado fixados pelo Legislador. N o entanto, duas
aberturas antiliberais são realizadas no sistema em razão da incorporação
da lógica correcional: (a) a extrem a volatilidade da pena no âmbito da
execução (sistema progressivo da individualização científica) e (b) a inde- 181
finição temporal das medidas de segurança.
O segundo ponto que merece reflexão é o relativo ã incorporação
do p r i n c í p i o d a c u l p a b i l i d a d e c o m o f u n d a m e n t o e l i m i t e d a p e n a ,
justificado a partir da função retributiva e da satisfação aos critérios de pre­
venção geral e especial.

33 LUISI, A Nova Legislação Penal Brasileira, p. 130.


A adoção de um modelo polifuncional de justificação vinculado ã
culpabilidade é evidenciada na redação do art. 59, Código Penal, no m o­
m ento em que a atuação judicial de determinação da pena é conduzida
pelo critério da culpabilidade com o objetivo de atingir, conforme a ne­
cessidade e a suficiência, a reprovação (retribuição) e a prevenção (geral e
especial) do crim e34. De elemento (requisito) de qualificação do crime —
função exercida na teoria do delito —, a culpabilidade atua, na teoria da
pena, de forma dúplice, como limite e como medida da sanção. Nas palavras
de Luisi, “a culpabilidade não admite restrições. O agente só é punível se existente
a mesma e nos seus limites”55.
O delineamento do sistema de aplicação da pena a partir da culpa­
bilidade é apresentado de forma bastante clara pelos redatores da Reform a.
Segundo Reale Jr., D otti, Andreucci e Pitombo, a culpabilidade é o cri­
tério básico e principal na fixação da pena, razão pela qual é referida em
primeiro lugar. Assim, “a culpabilidade é entendida em termos de culpabilidade
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

normativa, ou seja, importando tanto no exame da reprovabilidade do ato como na


do seu autor”’’6. Ademais, restam explicitados os sentidos qualitativos (teoria
do delito) e quantitativos (teoria da pena), pois, “enquanto juízo de valor,
pode vir excluída se o ato não é reprovável visto a presença de requisitos objetivos
(...). A culpabilidade normativa, contudo, não se limita às hipóteses de ‘reprovação’
e ‘não reprovação’, pois se culpável a ação é imprescindível saber em que medida
merece censura, reprovação”57.
A segunda referência do Código Penal ã culpabilidade como índice
da pena ocorre no tratam ento do concurso de pessoas (art. 29, Código
Penal). Segundo o dispositivo legal, quem concorre para o crim e incide
nas penas cominadas na medida da culpabilidade. O Código prevê, inclu­
sive, aos casos de participação de m enor importância expressiva diminuição
da pena (art. 29, § l 9, Código Penal), e “o reverso da medalha da causa de
diminuição está nas circunstâncias agravante do concurso de pessoas, estatuída no
182
i4 “O ju iz, atendendo á culpabilidade, aos antecedentes, á conduta social, à personalidade do agen­
te, aos motivos, às cinunstáncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima,
estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a r^rovação e pnvenção do crime (...)” (art.
59, caput, Código Penal).
ss LUISI, A Nova Legislação Penal Brasileira, p. 131.
is REALE JR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 160.
sí R EA LE JR . et al., Penas e Medidas de S^urança no Novo Código, p. 160.
art. 62 da Nova Parte Geral”**. Neste aspecto, conforme indica N ilo Batis­
ta, a Reform a de 1984 representou um im portante avanço, sendo destaca­
do o aprimoramento no campo das penas, visto que a regra básica parifi-
cadora, de fondo causai, da primeira parte do caput do art. 29 (“quem, de
qualquer modo, concone para o crime inríde nas penas a este cominadas”), é lim i­
tada pela expressa referência à culpabilidade de cada um dos concorrentes39.
Nesta compatibilização das ideias de retribuição com as de preven­
ção, ambas orientadas pelo princípio da culpabilidade, o sistema de penas
brasileiro se aproxima de forma marcante da estrutura proposta pelos au­
tores do Projeto Alternativo de Código Penal para a Alemanha; inclusive,
como ocorreu no direito penal germânico, estabelecendo uma marcante

NA C U L P I W U D A D E
diferença com as tendências internacionais de adesão irrestrita ao corre­
cionalismo, no qual os limites às penas estariam subjugados exclusivamen­
te ã perspectiva de prevenção especial60.
Mas, para além da virtude da culpabilidade como um limite às san­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
ções desproporcionais, um dos problemas centrais será o da sua instrumen­
talização como medida da pena. Resum indo em uma indagação, os pro­
blemas em ergem na identificação de quais elementos serão objeto de
valoração para estabelecer o índice (grau) da culpabilidade. Ainda, como
identificar elementos que não convertam o sistema de culpabilidade pelo

(CNÓSTICA
foto em um sistema de culpabilidade de autor? Os questionamentos indicam
algumas armadilhas que o modelo híbrido dejustificaçâo pode apresentar.

DA CONCEPÇÃO
O terceiro ponto de destaque é o da incorporação dos f i n s p r e v e n ­
t i v o s , marcadamente a p r e v e n ç ã o e s p e c i a l p o s i t i v a , como justificativa
da pena. É interessante perceber que a incorporação do correcionalismo - P R C JEÇ Õ E5

não ocorre no Brasil sem um a profunda reflexão crítica sobre os limites


do tratamento e os riscos autoritários de transformação da sanção penal em

48 R EA LE JR . et al.. Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 181.


45 BATISTA, Concurso de Agentes, p. 24.
60 O modelo diferenciado adotado pelo direito penal alemão pode ser verificado nas
considerações de Jescheck: “apolitica alemã de sanções se difenncia das tendências internacionais
sobretudo pela marcante acentuação do principio da culpabilidade. Este aparece acolhido pela Lei
Fundamental, que considera todo cidadão como pessoa livre, capaz de autorresponsabilidade e convo­
cado a exercê-la; efrente ao qual a pena só pode ser entendiik como uma reprovação merecida em sua
classe e medida. Para além de sua conformidade decomnte do Direito constitucional, o principio da
Mlpabilidade tem também grande importância como protego do indivíduo contra as intewenções
excessivas do Estado ” JESCH EC K , Tratado de Derecho Penal, p. 687).
um instrumento de terapêutica social ou individual. Aliás, é relevante a
presença, nas discussões que resultaram na nova parte geral, das principais
indagações realizadas pela crim inologia crítica do final dos anos 1970 e
início dos 198061.
A encruzilhada em que se encontraram os reformadores foi eviden­
ciada pela necessidade de frear as tendências autoritárias sem excluir a
possibilidade de o Estado garantir ao condenado o direito á educação.
Segundo Reale Jr., D otti, Andreucci e Pitombo, “não é, todavia, por se
acautelar contra a visão totalitária que preside à ideologia do tratamento, que a nova
legislação rfasta da junção da pena a possibilidade de promover a educação do con­
denado, por meio da assistência eduMcional, social e do trabalho. Educação no
sentido de suscitar novos comportamentos, de aumentar o repertório de respostas do
condenado às dificuldades naturais da vida, e cuja limitação se constitui em/ator da
prática delituosa. N ão se visa transformar cientificamente o criminoso em não crimi­
noso, mas emjacilitar a vidajutura, criando a possibilidade de adesão a novas ati­
tudes, com respeito à livre autonomia individual (...)”62.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

Mas se a justificada preocupação dos limites de intervenção do Es­


tado na esfera da autonomia e da consciência individual, premissa elemen­
tar do direito penal decorrente da incorporação do princípio da seculari­
zação, é resolvida, p. ex., na obra de R oxin pela voluntariedade de o
condenado aderir ao tratam ento63, na Reform a de 1984, para além deste

61 “ (...) ha uma pretensa sabedoria dos engenheiros sociais, que se aworam em manipuladores das
consciências alheias, transformando o direito penal em instrumento de mediciniz^ão, sem indagar,
deforma critica, o que constituiria efetivamente esta pretendida ressocializ^ão?
Necessárias em matéria de tratamento e prevenção especial são algumas perguntas que os pena-
listas, mormente nos fins da dkada de 70 e na presente década, vêm sefazendo: Kssocializar peran­
te o quê? Ressocializar perante que conjunto normativo? Ressocializar perante que ideologia? Que
normas? Que conjunto de valoKS? O mnjunto de valores próprios de uma comunidade? O conjunto
de valores defendido por um deteminadopensamento politico? O conjunto de valoKS propugnado por
uma religião? Ou o conjunto de valores que se enmntra encartado na legislado penal? (...).
Mas ao se admitir que ele [condenado] possa ser cientificamente transformado, para se amoldar
ao mundo Hvk e à socieifade, se está assumindo um papel muito pourn critiw e muito mais totalitário
do que se imagina; totalitário na medida em que se vé o delinqüente como patológico, em que se vé o
delito como anormal, em que se atribui ao condenado aposição irremediável de errado (...)” (REA­
L EJR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 167).
62 R EA LE JR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 167.
63 "Em k Ic^ íw aos esforços para a socialtzaçw preventivo-e^ecial, sem dúvida se elimimm as objeçòes
pela necessidade de uma colaborado wluntária e autorresponsável do proassado” (ROXIN, Dew-
cho Penal, p. 102).
pressuposto (voluntariedade), a possibilidade de educação é vista como um
direito do condenado que deve ser garantido pelo Estado64. Neste aspecto,
os lim ites de intervenção parecem ser mais bem resolvidos, aliando-se ã
perspectiva de um direito penal de nunim a intervenção, com a obstaculi-
zação de qualquer possibilidade de ingerência involuntária na vida privada
(princípio da secularização), a garantia de um direito social máximo, por
meio do oferecimento ao condenado de possibilidades de crescimento
individual. N a proposição da Reform a, a (re)educação é um direito do con­
denado, passível de ser exigido do Estado, de forma que a administração
forneça os meios adequados para o seu aprim oram ento individual. Não se
trata, pois, de um direito do Estado em executar ou im por um a terapêutica
transformadora. O limite ã intervenção associado ã garantia ao desenvol­

NA C U L P W L I D A D E
vim ento pessoal inverte a máxima correcionalista da unilateralidade do
tratam ento ressocializador que, em realidade, revela-se como terapêutica
coercitiva.
N o entanto, se do ponto de vista teórico-norm ativo as questões

( 0 . NEGATIVA) D APENA
parecem estar devidamente colocadas, inclusive com um a relativa adequa­
ção da perspectiva ressocializadora ao princípio da secularização e o pre­
ciso apontamento dos problemas gerados pelo correcionalismo, inúmeras
armadilhas surgirão na instrumentalização do sistema, tanto na fase judicial
de aplicação da pena quanto najudicial-adm inistrativa de execução. C on­

ÍCNÓSTICA
form e destacado anteriormente na crítica ao m odelo penal-welfare, um dos
problemas da adesão ã polifuncionalidade da pena com preponderância

DA CONCEPÇÃO
ressocializadora é o da abertura do sistema para práticas autoritárias, pon­
tos que serão novamente explorados no m om ento da aplicação e da exe­
cução das penas. Todavia, parece evidente, inclusive pelo conteúdo refle­ - PRC JEÇSCS

xivo apresentado, que os problemas derivados da Reform a não podem ser


imputados aos reformadores, mas aos intérpretes (dogmática penal) e aos
atores jurisprudência) do sistema penal que posteriormente a efetivaram.
185
7.4 . Problemas Derivados da Finalidade Polifuncional da Pena e
Reflexos na Culpabilidade

7.4.1. As críticas às teorias justificadoras da pena e aos modelos po­


lifuncionais foram am plamente expostas, de form a individualizada, a

64 REALE JR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 168.


partir de dois eixos: primeiro, desde o ponto de vista normativo (dogmá­
tico), das inadequações das teorias positivas (fundamentadoras) com os
preceitos configuradores de um direito penal de garantias; segundo, desde
o campo empírico (criminológico), dos efeitos perversos (funções reais)
que a sua instrumentalização pelas agências de punitividade produz em
termos de inefetividade dos direitos e de ampliação dos poderes (violências).
Conforme exposto, a crítica criminológica e a teoria crítica do di­
reito penal demonstraram, desde a década de 1970, que os modelos poli­
funcionais, ao invés de corrigirem as lacunas e/ou as contradições dos
projetos singulares, potencializam suas crises normativas e empíricas,
criando um a estrutura autorreferencial na qual a debilidade de um argu­
m ento justifica a intervenção desde a perspectiva complementar. Ao ana­
lisar as teorias combinatórias (ou mistas), Nilo Batista assinala que “qualquer
fragilidade no imperativo retributivista é logo suprida pelas exigênáas preventivas (e,
dentro dessas, as gerais suprem toda d&necessidade preventivo-espeáal); ao contrário,
porém com o mesmo tfeito, afalta de necessidade preventivo-^peáal não pode jamais
Pl 1*5 F U '. II,LU Oí a s u ^ ú ta -ju %:■ H hm- H M L H U H I t t B

conduzir à dispensa da pena, ‘para que o crime não recaia sobre o povo’, como disse
Kant a propósito da execução do último condenado já depois da dissolução da socie­
dade rívil”6’’.
A questão que merece ser colocada, portanto, a partir da visualização
do recente processo histórico de vinculação entre o fenômeno político pena
e a categoria normativa culpabilidade, é se o feto de agregar as teorias jus-
tificacionistas da pena ao fundamento da culpabilidade produz efetivamen­
te o efeito de limitação da intervenção punitiva. A resposta parece ter sido
antecipada, pois, desde a perspectiva agnóstica que orienta o trabalho,
atrelar a legitimidade da pena aos fundamentos da culpabilidade produz
um aprofundamento da crise dos discursos justificacionistas em razão da
ampliação do seu horizonte de projeção. Parece razoável sustentar que a
i m e r s ã o d a c u l p a b i l i d a d e n a s t e o r i a s d a p e n a significa sua imersão
186 nas crises do justificacionismo, o que implica trazer os problemas teóricos
e empíricos dos modelos de legitimação da sanção para a teoria do delito.
Neste aspecto os desdobramentos são inúmeros, a começar pela
mudança de rum o que a teoria do delito tomou ao longo do século passa­
do, notadamente quando se vincula de forma inquestionável ã pena, por
meio desta ponte que representará a culpabilidade. Frise-se que a vincula-

6i BATISTA, Cem Anos de R^rovação, p. 174.


ção entre (teoria do) delito e (teoria da) pena implicará a transferência das
crises da punição para a dogmática do crime.
Se forem tomadas como exemplo as perspectivas funcionalistas nas
quais a pena é instrumentalizada pela política criminal, sua conexão com
o delito determ inará idêntico efeito, qual seja, a submissão da teoria do
crime aos preceitos político-crim inais. Esta situação, que é possível perce­
ber nas proposições de flexibilização da função de garantias de inúmeros
institutos, provoca um enfraquecimento da dogmática do crime, sobretu­
do em sua pretensão de fixar limites ã imputação (objetiva e subjetiva). Os
efeitos são tão extensos que geram inclusive problemas de ordem episte-
mológica, pois o ideal de cientificidade da dogmática é ofuscado em uma
im agem na qual a ciência é reduzida a um a simples técnica adequada aos

NA C U L P U H .I D A D E
fins da política governamental.
Justificar a pena e a culpabilidade a partir de modelos teóricos que em
realidade são eles mesmos opções político-crim inais, pressupondo que a
política é guiada pela racionalidade científica, implica incorrer em um

( 0 . NEGATIVA) D APENA
idealismo dogmático que supervalora um a capacidade que a ciênciajurí­
dica não possui, que é a de restringir os excessos da política. Por outro
lado, este tipo de profissão de fé no direito reedita determinados mitos do
positivismo jurídico, como o do legislador racional, suficientemente des-
construídos pela teoria crítica do direito e pelas próprias teorias pós-posi-

(ONÓSTICA
tivistas (p. ex., o garantismo jurídico).
Neste aspecto, um modelo agnóstico ou negativo de pena, baseado

DA CONCEPÇÃO
na experiência criminológica e na crítica dogmática, parece indicar os
equívocos da hibridização (polifuncionalidade) e da instrumentalização
político-crim inal. - PR O JEÇ Õ ES

As perspectivas contem porâneas parecem seguir outros rumos.


Veja-se, p. ex., a reivindicação de R oxin ao analisar o famoso aforismo de
Liszt —“o Direito Penal é a intransponível barreira da Política Criminal”. C on­
form e destaca o autor, a dogmática tradicionalmente localizou a política
(criminal) em um polo oposto do qual deveria defender-se e nunca como
uma aliada ou parceira que compartilha os mesmos fins. Reclama, pois,
que “se o Direito Penal deve, sem dúvifa, o seu nascimento àsfinalidades político-
-criminais do legislador, somente poderia ser entendido e corretamente inte^retado
como um instrumento para a realização destas finalidades e não — ou pelo menos
não exclusivamente — como um poder oposto”66.

66 R O X IN , Conc^ción Bilateral y Unilateral dei Principio de Culpabilidad, p. 198.


Em sentido contrário, o pensamento crítico parte da necessidade do
reconhecim ento da inerente pulsão inquisitiva dos poderes punitivos. Este
pressuposto conduz a definição de um modelo de dogmática conseqüente
no qual é assumida explicitamente como pressuposto político-m etodoló-
gico a desconfiança em qualquer forma de intervenção, tanto no âmbito
da criminalização prim ária (elaboração das leis penais) quanto no da cri­
minalização secundária (atuação das agências) e no da punição.
Em termos específicos, decorre da adoção da perspectiva agnóstica
o reconhecim ento de que, para conferir ã culpabilidade um a finalidade
constritiva (limitadora) da intervenção, é totalm ente prescindível vinculá­
-la a qualquer teoria positiva da pena. Pense-se, por exemplo, nas estrutu­
ras da tipicidade, categoria da teoria do delito com o maior potencial li­
mitativo, e da ilicitude. A função dogmática de garantia exercida pelo
injusto penal independe de qualquer vinculação com modelos de funda­
mentação da pena ou perspectivas político-crim inais.
M unoz Conde, de forma precisa, conclui que na estrutura do direi­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

to penal nos Estados Democráticos a culpabilidade deve ser o final de um


processo de elaboração conceituai destinado a explicar por que e em que
medida se deve recorrer a uma forma de intervenção tão grave como a
pena. Em hipótese alguma, contudo, deve ser utilizada como um meio
para o atingimento de determinadas metas político-criminais. Assim, “m o
apenas a culpabilidade, mas todas as demais categorias da teoria geral do delito
devem servir para realizar esta tarefa [limitativa] do Direito Penal”61.

7.4.2. É possível perceber, no rol das teorias absolutas e relativas d


justificação, que os programas político-crim inais que menos amplificam a
intervenção punitiva são aqueles derivados do neorretributivism o (teoria
do justo merecimento) e do prevencionismo garantista (teoria utilitarista
reformada). Entretanto, mesmo no interior destes modelos altamente cons-
tritivos existem espaços férteis para a expansão da punitividade. Em sen-
188 tido oposto, dentre todas as teorias legitimadoras, os modelos positivos de
prevenção (especial e geral) são aqueles que de forma mais contundente
agudizam a intervenção. Coincidência ou não, são estes os modelos que
estruturam as principais perspectivas funcionalistas contemporâneas.
Neste cenário, questão im portante a ser enfrentada é se a culpabili­
dade, desde uma p e r s p e c t i v a r e d u t o r a , efetivamente é capaz de se har-

6' M U N O Z CONDE, Introducción, p. 27.


monizar aos fins da pena, sobretudo os preventivos. As críticas apresenta­
das na primeira parte do trabalho parecem fornecer, à exaustão, respostas
negativas ã indagação, pois, se os fins preventivos justificam expansão, sua
hibridização com pautas restritivas dificilm ente produzirá um m odelo de
limitação dos excessos punitivos.
Mesmo pensando na culpabilidade como mecanismo capaz de fixar
um lim ite m áxim o ã sanção —questão bastante complexa pela variedade
de institutos legais que, por meio da interpretação judicial, podem ser
manipulados inclusive para ultrapassar as barreiras fixadas pela legalidade
(v.g., no direito penal brasileiro, a imprecisão terminológica de inúmeras
qualificadoras e o distinto tratamento das causas especiais de aumento) —,

NA C U L P U H .I D A D E
as zonas de manipulação são sempre altas, situação que, na operacionali-
dade do direito, amplia o decisionismo judicial.
Os problemas que os modelos hibridizados com prevalência corre­
cionalista geram são tantos que é possível afirmar, inclusive, como “contra­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
ditória a tentativa de assentar a p em sobre a prevenção especial (que é tão dogmá­
tica como a geral), de cunho determinista, para depois limitá-la por uma ficção
indeterminista,,6S.
A experiência histórica demonstrou como os sistemas estruturados
na prevenção especial positiva possibilitaram intervenções ilimitadas, so­

(ONÓSTICA
bretudo no campo da execução da pena. E é exatamente em decorrência
das práticas que se produziram nestes espaços de exercício pleno do poder
punitivo que é altamente questionável o discurso de legitimação do cor­

DA CONCEPÇÃO
recionalismo pela voluntariedade, com o apresentado por R oxin. É inegá­
vel que a garantia da voluntariedade do tratam ento é um dos aspectos de
democratização de qualquer forma de intervenção estatal. N o entanto, no
- PR O JEÇ Õ ES

campo das práticas punitivas, tratar fenômenos como penas e medidas


(medidas de segurança e medidas socioeducativas) implica reconhecer a
marca da coercitividade. Esta natureza coercitiva por si só reduz em de­
masia qualquer possibilidade de expressão crítica e de concordância (vo­
luntariedade) com o tratamento penal. A propósito, Goffinan 69 e Foucault70
demonstraram ã exaustão como as instituições totais produzem saberes que
qualificam qualquer forma de discordância como um ato de indisciplina,

68 ZAFFARONI et al., Manual de Derecho Penal, p. 527.


65 GOFFM AN, Manicômio, Prisões e Conventos, pp. 84-108.
70 FOUCAULT, Vigiar e Punir, pp. 153-172.
o que signtâca dizer que pressupor liberdade de vontade em ambientes
regidos por níveis intensos de coercitividade e de violência institucional é,
no mínimo, ingenuidade criminológica.
Neste ponto em que pena e culpabilidade convergem, interagem
ou se confundem , a crítica de Zaffaroni é precisa, no sentido de identi­
ficar neste m odelo um obscurecim ento dos limites entre culpabilidade e
punibilidade71.
Assim, com a intenção exclusiva de restringir o poder punitivo (te­
leologia redutora), a proposta de abdicar dos fins legitimadores das penas
implica, ao mesmo tem po, exim ir-se de qualquer instrum entalidade posi­
tiva da culpabilidade. Se nas teorias gerais do direito penal contemporâneo
este vínculo tom ou-se necessário, moldar um sistema restritivo requer
isentar ambas as categorias de um fundam ento material legitimador, cir­
cunstância que perm ite pensar em um m o d e l o n e g a t i v o o u a g n ó s t i c o
d e c u l p a b i l i d a d e adequado aos parâmetros constitucionais.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

7.5. Construção do Modelo Agnóstico a partir das Crises da


Culpabilidade: Constitucionalização do Principio, Funções
e Conceito de Referência

7.5.1. Os principais modelos jurídicos ocidentais, sobretudo os ro­


m ano-germ ânicos do pós-guerra, foram construídos de forma complexa.
Esta complexidade decorre fundam entalm ente da constitucionalização de
uma variedade de temas e de uma multiplicidade de mecanismos projeta­
dos para assegurar (garantir) a efetividade dos direitos individuais, sociais
e transindividuais. Neste perfil se enquadra a Constituição da República
brasileira de 1988.
N o campo do direito penal, esta complexidade acaba sendo refieti-
190 da no conteúdo muitas vezes contraditório dos dispositivos constitucionais,
pois ao mesmo tempo em que, por um lado, a Constituição incorpora
princípios de limitação da intervenção, por outro projeta formas de am­
pliação da ingerência punitiva 72 —embora seja evidente que “o relevo cons­
titucional de um bem não se reflete como dever do legislador ordinário de

71 ZAFFARONI et al., M anual de Dere&o Penal, p. 527.


72 Nestesentido, CARVALHO, Pena e Garantias, pp. 160-162.
criminalização”73. É preciso reconhecer, pois, que as Constituições contem ­
porâneas não se limitam, exclusivamente, ao papel político-crim inal libe­
ral de fixar barreiras ao poder punitivo, em bora seja indiscutível residir
nesta imposição de limites aos poderes sua principal virtude.
Nas palavras de R ealejr., o sistema de direito penal está ancorado
constitucionalmente e, desta forma, “(...) está limitado negativamente pela
Constituição, devendo ater-se aos prindpios, não violando os valores constitucionais,
mas sim por eles pautando-se” 74. A ancoragem constitucional do direito penal
—sobretudo pelo alto poder normativo das Constituições contemporâneas
—implica seja o sistema de delitos e de penas regido por princípios confi­
guradores. Dentre os princípios configuradores do direito penal constitu­

NA C U L P W L I D A D E
cional destaca-se o p r i n c í p i o d a c u l p a b i l i d a d e .
Conforme será trabalhado de form a sistemática na terceira parte do
livro, m om ento em que será harmonizado com os demais princípios que
regem o sistema de penas e de medidas de segurança, a constitucionaliza­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
ção da culpabilidade definiu um novo padrão de responsabilidade penal e,
consequentemente, de sanção ao desvio punível. Sua projeção na teoria do
delito e na teoria da pena não apenas exige um esforço para a conformação
dos estatutos hierarquicamente inferiores, marcadamente o Código Penal,
mas tam bém impõe aos atores do sistema punitivo formas muito particu­

ÍCNÓSTICA
lares de interpretar e de aplicar o direito penal. Neste quadro, o esforço
que se coloca para a efetivação de um direito penal de garantias é o de que

DA CONCEPÇÃO
sua interpretação e sua efetivação ocorram em absoluta harmonia com os
demais princípios republicanos —como, p. ex., os princípios de seculariza­
ção e de tutela da intim idade e da vida privada —, de forma a resguardar a
culpabilidade de qualquer tendência ou tentação autoritária, como, p. ex., a
- PRC JEÇSCS

conversão da culpabilidade de feto em culpabilidade de autor.

7.5.2. Assinalajescheck que o conceito de culpabilidade se manifes­


ta segundo o contexto em que a categoria é utilizada75. Desta forma, a jgj
i n s t r u m e n t a l i z a ç ã o d a c u l p a b i l i d a d e ocorre ( I a ) com o um principio
de status constitucional para conformação das diretrizes delineadoras do
sistema jurídico-penal; (2 a) como um a categoria de fundamentação da

73 R EA LE JR ., Instituições de Direito Penal I, p. 28.


74 R EA LE JR ., Instituições de Direito PenalI,] p. 27.
7i JESCHECK, Tratado de Dencho Penal, p. 364.
pena, desde a lógica da teoria do delito, qualificando determinadas con­
dutas como culpáveis e indicando a responsabilidade penal individual; e (3a)
como critério de medida da sanção punitiva, no interior da teoria da pena,
determinando graus que orientam a quantificação do nível de responsabili­
dade pelo foto. Na operacionalidade dogmática, a culpabilidade atua, con­
forme destacado, como uma ponte entre o ilícito penal e a sanção punitiva.
A primeira instrumentalização da culpabilidade é aquela que a vin­
cula ao princípio “nulla poena sine culpa” (princípio da culpabilidade), na qual
cum pre a função política de excluir qualquer forma de responsabilidade
penal objetiva. Assim, o sujeito não pode ser responsabilizado criminalmen-
te apenas pela produção de um evento danoso previsto em lei como crime.
Além do nexo causai entre a conduta e o resultado, é fundamental verifi­
car um a relação subjetiva que vincula este autor ao dano (ou ao perigo de
dano) produzido. Nesta mesma perspectiva, como delineador negativo das
hipóteses de habilitação do poder punitivo, o princípio da culpabilidade
exclui a possibilidade de responsabilização penal por ato de terceiro.
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

Sua constituição como um princípio reitor para definição dos requi­


sitos de responsabilização pessoal adquire im portante função instrum ental
em um segundo âmbito de incidência, que é o da teoria dogmática do delito.
Nesta esfera, a culpabilidade compõe, juntam ente com a tipicidade e a
ilicitude, a estrutura analítica do crime, perm itindo a responsabilização do
sujeito imputável (com capacidade para a culpabilidade )76 que praticou o
injusto penal e que, ao tempo da ação ou da omissão, possuía potencial
consciência da ilicitude do foto, sendo-lhe, portanto, exigível conduta
diversa. Cum pre, pois, na teoria do delito, como elemento ou requisito do
crime, a função dogmática de delimitação qualitativa. Em razão de ser o
crim e um a construção jurídica (ente jurídico), delineado de forma escalo­
nada, na qual o requisito posterior é dependente do anterior, após a afir­
mação da tipicidade e da ilicitude da conduta é imprescindível que seja
reconhecida a culpabilidade. Ausente um dos três elementos normativos
que com põem a culpabilidade (imputabilidade77, potencial consciência da

,s A questão da capacidade para a culpabilidade será retomada criticamente em dois mo­


mentos: (a) na exposição dos efeitos da reformapsiquiátrica na estrutura da culpabilidade;
(b) na definição dos critérios de aplicação das medidas de segurança.
’’ Nesta questão específica nãose desconhece que para a doutrinapenalística majoritária,
sobretudo os atores da teoria do delito, a imputabilidadeconstitui pKssuposto, e não el^w n-
to da culpabilidade. Assim, negar a imputabilidade como pressuposto, afirmando a inim-
ilicitude e exigibilidade de conduta diversa), incabível afirmar a responsa­
bilidade penal do autor da conduta punível, sendo, consequentemente,
inaplicável a pena.
Assim, apesar de se aderir à tese de que “(...) o delito não é um concei­
to composto pela agregação de elementos, mas sim um duplo jogo de valorações
acerca de uma conduta humana, que em cada caso a pretensão de exercício do poder
punitivo deve superar, para que os juizes possam habilitar sua passagem de certa
forma e em determinada quantidade"™, entende-se, juntam ente com Juarez
Tavares, que o juízo de culpabilidade é delimitativo, e não afirmativo, e
neste m om ento opera “como instrumento de veriftwção se a conduta do autor pode
ser desculpada, em face da inimputabilidade, consdênda da ilicitude e capacidade de

NA C U L P W U Q A l l E
motivação perante a proibido e determinação”79.
A temeira inserção da culpabilidade é na teoria da pena, na qual adquire
as funções de limitação e de medida da sanção. Verificada em um momento
anterior (teoria do delito) a responsabilidade do autor pelo foto, a culpabi­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
lidade atuaria dogmaticamente como um índice de análise quantitativa,
definindo os parâmetros de adequação da dosagem (quantum) da sanção.

putabilidade, impediria analisar os elementos da culpabilidade (potencial consciência da

íC N Ó S TIC i
ilicitude e exigibilidade de conduta diversa).
Todavia, conforme será desenvolvido posteriormente na crítica da culpabilidade a
partir da reforma psiquiáttica e, sobretudo, na aplicação das medidas de segurança, enten­

EÇÕER DA CONCEPÇÃO
de-se que os avanços da antipsiquiattia e do movimento antimanicomial, importantes na
área da saúde mental, impõem uma nova forma de olhar o problema da inimputabilidade.
Isto porque as irreversíveis lições da antipsiquiatria e do movimento antimanicomial ne­
gam a absoluta incapacidade de compreensão e de vontade do portador de sofrimento
psíquico. Neste aspecto, conforme será desenvolvido, reconhecer um âmbito diferenciado
- PR

de responsabilização (culpabilidade suigeneris) é imprescindível para garantir a posição do


inimputável como sujeito de direitos, responsável pelos seus atos e ator no seu tratamento.
Fundamental, portanto, ã dogmática penal, adequar-se ã nova realidade de compreen­
são do fenômeno do sofrimento psíquico, redefinindo, no que for necessário, suas estru­
turas conceituai e categorial, o que implicaria, no tema específico, deslocar a categoria
imputabilidade de sua função de pressuposto para a de elemento da culpabilidade. Sobre o
tema, conferir QUEIROZ, Direito Penal, pp. 450-453; M ATTOS, Crime e Psiquiatria, pp.
166-169; CARVALHO e W EIGERT, A Punição do Sofrimento Psíquico no Brasil, pp. 26-34.
78 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro II, v. I, p. 29.
No mesmo sentido, conforme visto anteriormente, FRAGOSO, Lições de Direito Penal,
p. 178.
79 TAVARES, Culpabilidade e Individualização da Pena, p. 136.
Neste m om ento a culpabilidade praticamente instrum entalizaria o princí­
pio da proporcionalidade das penas, atuando como critério de proibição
do excesso punitivo.
7.5.3. A proposição de um m o d e l o d e c u l p a b i l i d a d e a d e q u a d o
à t e o r i a a g n ó s t i c a d a p e n a , em sentido estrito, e a uma perspectiva
dogmática garantista (dogmática conseqüente), em sentido amplo, deve
necessariamente adquirir um formato negativo de desconstrução e não de
fundamentação do potestas puniendi. Como disposto em relação aos m ode­
los de justificação da pena, a opção político-crim inal é a de abstenção de
qualquer espécie de legitimação do poder punitivo em razão de a experiên­
cia histórica demonstrar sua inerente tendência ao agir irregular (princípio
da irregularidade dos atos dos poderes punitivos). Neste cenário, uma
abordagem agnóstica da culpabilidade reclama um sistema elaborado
desde as suas crises, de forma a estabelecer um a pauta m ínim a negativa
(barreiras de contenção). A proposição do modelo agnóstico decorrerá,
portanto, fundam entalm ente da identificação das folhas e das contradições
teóricas e normativas que, ao longo do últim o século, perm itiram que o
juízo de culpabilidade ultrapassasse as fronteiras de garantia e habilitasse
de forma autoritária a intervenção penal.
O c o n c e i t o d e c u l p a b i l i d a d e , que será o ponto de partida do
trabalho, é o proposto por Zaffaroni: “ [culpabilidade] seria o juízo necessá­
rio para vincular deforma personalizada o injusto ao seu autor e, em cada caso,
operar como principal indicador do máximo da magnitude do poder punitivo que se
pode exercer sobre este sujeito. Este juízo resulta da síntese de um juízo de reprova­
bilidade baseado no âmbito de autodeterminação da pessoa no momento do fato
fornulados conforme elementos formais proporcionados pela ética tradicional) com o
juízo de rtyrovação pelo esforço do agente para alwnçar a situação de vulnerabilida­
de em que o sistema penal concretizou sua periculosidade, descontando o corr^pon-
dente ao seu estado de vulnerabilidade”80.
Do complexo, porém completo, conceito sugerido, é im portante
destacar alguns aspectos preliminares que auxiliarão o desenvolvimento
das hipóteses e que proporcionarão sanar eventuais incompreensões:
(Ia) O juízo personalizado é realizado conforme o âmbito de auto­
determinação do sujeito na prática da conduta.
(2 a) A autodeterminação não se confunde com livre-arbítrio, mas
significa a m argem de decisão (ou de liberdade) empiricamente constatada

80 ZA FFA RO N Iet al., Manual áe Derecho Penal, p. 520.


que o sujeito possuía, dentre o catálogo de condutas possíveis, no m om en­
to da ação ou da omissão.
(3-) A autodeterminação é um princípio jurídico regulativo ou uma
‘ficção jurídica necessária’ que perm ite compreender o sujeito como capaz de
eleição.
(4-) A capacidade de eleição (ou a autodeterminação) é um a condi­
ção jurídica indispensável, definida pelas Constituições modernas, para
qualificar o sujeito como pessoa, como cidadão.
(5°) A capacidade de eleição não significa, nos term os metafísicos
do livre-arbítrio, liberdade absoluta, bem como não exclui fatores de risco
(pessoais ou socioeconômicos) que tornam determ inada pessoa mais ou

NA C U L P U H .I D A D E
menos vulnerável ao processo de criminalização. Por outro lado, a capa­
cidade de eleição não é condicionada, nos termos naturalísticos do deter­
minismo criminológico, por fatores de ordem biopsicossocial.
(6a) As características pessoais e biográficas (personalidade, experiên­
cias) inexoravelmente integram o âmbito de autodeterminação, mas são

( 0 . NEGATIVA) D APENA
dados que não são passíveis de reprovação em si, pois atípicos.
(7a) O índice de responsabilização pela vulnerabilidade ocorre a
partir da análise do maior ou m enor esforço pessoal do autor do delito para
alcançar uma situação-limite em que o poder punitivo se habilita ao exer­

(ONÓSTICA
cício, norm alm ente em razão da adesão (in)voluntária a determinadas
características externas (estereótipos) atribuídas aos desviantes ou pela
prática de atos delituosos grosseiros.

DA CONCEPÇÃO
(8 a) A culpabilidade pela vulnerabilidade pressupõe a culpabilidade
pelo foto e refuta qualquer forma de culpabilidade transpessoal baseada na
razão de Estado ou de culpabilidade de autor indicativa de periculosidade. - PR O JEÇ Õ ES

(9a) A periculosidade analisada é a do sistema punitivo em atuar


seletivamente contra pessoas que se colocam em situação de vulnerabili­
dade, e não a periculosidade do autor em cometer delitos, pois reeditaria
um modelo de direito penal de autor.
(10 a) O juízo personalizado de culpabilidade indica o nível m áxim o
de responsabilização possível e, portanto, a quantidade de sanção habilita­
da pelo poder punitivo.
A partir destas diretrizes serão analisadas as principais crises que
atingiram a construção dogmática da culpabilidade, de forma a evidenciar
uma pauta negativa indicadora daquilo que não pode, desde uma perspec­
tiva garantista, ser incorporado no juízo de responsabilização.
7.6. Conteúdo Metafísico da Culpabilidade: Questão do Lívre-
-Arbítrio

7.6.1. A prim eira crise da categoriajurídica culpabilidade diz respei­


to à consolidação de sua fundamentação (conteúdo material) na capacida­
de de livre decisão do sujeito, afirm ando ou reeditando a perspectiva
ilustrada do liv re -a rb ítrio . A tentativa de definir um conteúdo material a
partir de uma fundamentação ontológica e consequentemente pré-jurídi-
ca reduziu o âmbito de possibilidades de análise da condição humana em
duas distintas imagens: o homem livre (livre-arbítrio) ou o homem con­
dicionado (determinismo).
Juarez Cirino dos Santos demonstra, inclusive, como a necessidade
de fundamentação da culpabilidade na ideia de liberdade real (poder con­
creto) de decisões induziu a edificação do seu oposto, a ideia de periculo­
sidade (determinismo) —“a exclusão dialética dos conceitos de culpabilidade e de
perigosidade criminalfavorece esse radicalismo imediato ”81, produzindo substan­
H M L H U H IttB

ciais efeitos na fundamentação da pena: “a perigosidade criminal excluiria o


caráter punitivo do Direito Penal (expresso na pena expiatória culpabilidade)
para fundamentar um complexo normativo instrumentado por medidas exclusiva­
mente preventivas de ações antissodais”82.
hm-

O processo ilustrado de racionalização do poder punitivo pelo Es­


%:■ H

tado m oderno se solidifica com o gradual fortalecimento do vínculo entre


a s u ^ ú ta -ju

os fenômenos crime e castigo, culpa e pena. Os binômios de justificação


habilitam a atividade coercitiva estatal, consolidando na sociedade a ideia
de ser a pena uma decorrência natural da culpa, de ser o castigo algo ínsi-

to ao delito. A propósito, não se pode esquecer que nas culturasjudaico-


U '. II,LU

-cristãs a noção geral de culpa ocupou o lugar central na legitimação das


Pl 1*5 F

sanções83, fundamentalmente em razão da sua intrínseca relação com a ideia


de dívida64.
196 ________________
81 SANTOS, Culpabilidade, p. 59.
82 SANTOS, Culpabilidade, p. 59.
83 Leciona Juarez Tavares: “ajusão da culpabilidade juridica e da cufabilidade moral ainda é um
resquício da concepção religiosa de culpa, entendiik como o mal que se agrega ao autor como uma
mácula indelével, mas que deve ser sempre descartada em uma ordem juridica laica” (TAVARES,
Culpabilidade e Individualização da Pena, p. 133).
84 Segundo Zaffaroni, "a expKssão 'culpa' tem sentido de ‘divida’, ainda que em castelhano este­
ja em desuso (conserva-o no 'Pai-Nosso”). Em alemão tem este duplo sentido (Schuld) na linguagem
Na filosofia política da Modernidade, os fundamentos do liberalis­
mo solidificam a possibilidade de atribuição de culpa ao livre-arbítrio, pois
somente o sujeito que adere com consciência e vontade ao contrato social
pode violar livremente suas norm as e ser responsabilizado. A capacidade
de aderir livrem ente às obrigações, de criar vínculos obrigacionais, é o
pressuposto que viabiliza a estruturação ilustrada da teoria do contrato
social85. Assim, idealizada a possibilidade de atribuição de culpa ã liberda­
de de vontade (livre-arbítrio), coube ao direito (penal) sua racionalização
como fundam ento material da responsabilidade penal. Com o todo o m ito
que sustenta o direito, o da liberdade de vontade requer uma ritualização
nas formas jurídicas.

NA C U L P t W U D A D E
A im agem ilustrada do hom em pressupõe, pois, esta capacidade
absoluta de conduzir sua vontade. Lembre-se de que é no cenário ilum i­
nista que o hom em do medievo preso aos desígnios divinos ^usnaturalis-
mo teológico) reclama um a liberdade inata ã sua própria condição de

( 0 . NEGATIVA) D APENA
hom em ^usnaturalism o antropológico). Desprendido do dom ínio divino,
o hom em do ilum inism o dem onstrará sua capacidade de dom inar a natu­
reza, sobretudo a natureza individual da qual será refém com o advento do
paradigma determinista. Desta forma, as conseqüências do delito são con­
cretizadas neste sujeito reconhecidamente livre que atuou voluntariam en­

(ONÓSTICA
te contra o dever contratual de observância das regras sociais.
7.6.2. Ocorre que na virada do século X IX para o século X X , exa­

DA CONCEPÇÃO
tamente no período em que as ciências crim inais iniciam seu processo de
sistematização dogmática, as teses filosóficas de valorização do livre-arbí- - PR O JEÇ Õ ES

com nte e jurídica. Falar em ‘culpabilidade’, pois, implica que se deve ‘algo’, e nos discursos legiti-
mantes do sistema penal considera-se que esse ‘algo’ í o injusto e que se ‘cobra’ com a pena” (ZA-
FFARONI, Em Busca das Penas Perdidas, p. 267).
Sobre a relação entte culpa e dívida — a partir de uma leitura transversal com a filosofia
(Nietzsche) e a psicanálise (Freud), bem como da relação destes conceitos (culpa e dívida)
com os de mal-estar e ressentimento —, conferirCARVALHO, Antim anual de Criminologia,
pp. 221-225.
8i Há um a im portante diferença entre livre-arbítrio e liberdade que merece ser destacada
neste momento. A fórmula ilustrada do livre-arbítrio significa, em síntese, a opção de
escolhas entrepossibilidadespostas. Isto no direito penal significa a escolha ‘livre’ entre
o lícito e o ilícito. A noção de liberdade é mais ampla e abarca não apenas esta capacida­
de de escolha entre possibilidades dadas como a de invenção e de construção de novas
possibilidades.
trio são radicalmente contrapostas pelo emergente positivismo naturalista.
De controlador da natureza, este hom em livre será reduzido ã condição de
mero fantoche dos fatores endógenos e exógenos que o dom inam e con­
trolam as suas ações.
O elemento apriorístico da l i b e r d a d e é substituído pelo da c a u s a ­
l i d a d e ( d e t e r m i n a ç ã o ) neste m om ento de popularização e de consoli­
dação do naturalismo como paradigma das ciências. O impulso naturalis­
ta proporcionado pelo evolucionismo biológico de D arw in (A Origem das
Espéríes, 1859), sua posterior transmutação em evolucionismo social com
Spencer (O Indivíduo Contra o Estado, 1884) e a aceitação dos estudos de
Pavlov, base da psicologia behaviorista, sobre os reflexos condicionados dos
animais (Psicologia e Psicopatologia Experimental dos Animais, 1903), definirão
novos rumos no estudo da condição humana que, inevitavelmente, irão
desestabilizar as teses jusnaturalistas do livre-arbítrio.
O cenário é propício para a emergência do paradigma etiológico da
criminologia positivista italiana, que encontrará em Ferri (Soríologia Cri­
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

minal, 1884), Garófalo (Criminologia, 1885) e Lombroso (O Homem Delin­


qüente, 1886) seus principais expoentes. Em solo nacional, seguindo os
passos de Lombroso e dos demais autores da Escola italiana, N ina R odri­
gues publica A s Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil (1894),
obra que inaugura uma série de textos de inspiração crim inológico-posi-
tivista como Criminologia (1896), de Clóvis Beviláqua, Classificação dos
Criminosos (1897), de Cândido M otta, Epilepsia e Crime (1898) e Psicopato­
logia Forense (1916), de A frânio Peixoto, dentre outros86.
A emergência do pensamento criminológico ortodoxo baseado nas
premissas do determinismo causai de ordem antropológica (Lombroso),
psicológica (Garófalo) e social (Ferri) atinge diretamente a construção li­
beral do livre-arbítrio como fundamento da culpabilidade: contra a noção
de delito como ente jurídico a concepção de crime como ente natural, contra o
livre-arbítrio o determinismo; contra a culpabilidade a periculosidade; contra as
198 penas as medidas de segurança; contra a reprovação jurídita (retributivismo) ou
a coação psicológitó (prevenção geral negativa) a reforma física e psíquica do
homem (prevenção especial positiva).
A polarização dos discursos sobre a condição humana a partir da
dicotomia entre racionalismo e positivismo marcará o direito penal do

86 Sobre o impacto da escola positiva italiana no Brasil, conferir CARVALHO, Pena e


Garantias, pp. 62-68.
início do século XX. Inevitavelmente um dos temas centrais deste con­
fronto de paradigmas será o do conteúdo material da culpabilidade.
7.6.3. N o Brasil, a Nova Escola Penal (criminologia positivista),
capitaneada por Nina Rodrigues, encontrará em Tobias Barreto um dos
principais obstáculos teóricos á consolidação do m odelo determinista.
Contudo, Tobias Barreto não limitará sua crítica ao causalismo. De forma
inovadora, antecipando problemas que serão debatidos ao longo do século
X X , o autor defenderá que ambos os fundamentos da condição hum ana
(liberdade e determinismo) são derivados de m odelos metafísicos que ne­
cessitam ser superados.
Em Menores e Loucos (1884), Tobias Barreto analisa a estrutura do

NA C U L P U H .I D A D E
juízo de imputabilidade do Código do Império e problematiza esta tensão
entre d e t e r m i n i s m o e i n d e t e r m i n i s m o . N o início do ensaio, o autor
questiona as formas de definição da imputabilidade com intuito de respon­
der aos problemas da responsabilidade penal dos portadores de sofrimento

( 0 . NEGATIVA) D APENA
psíquico. A questão se tom a relevante em decorrência do que considera
uma insuficiente fundamentação do conceito de loucura no campo da psi­
cologia, que teria sido apropriado pelo Código. Aduz o autor que a estru­
tura de im putabilidade psicológica estabelecida pelo legislador estaria
restrita a três ou quatro noções pouco confiáveis, como vontade (“pressupos­

(ONÓSTICA
to indispensável do crime nas expressões ação ou omissão voluntária”), má-fè
(“alianp binária de conhecimento do mal e intenção de o pratica^’) e dücemimento87.

DA CONCEPÇÃO
A partir desta verificação da carência teórica do Código no uso de
elementos pouco sofisticados da ciência psicológica para compreender a
‘insanidade’, Tobias Barreto desenvolve sua crítica aos fundamentos do - PR O JEÇ Õ ES

conceito de culpabilidade. Segundo o pensador, as condições do agir hum a­


no seriam várias e complexas, podendo o sujeito sofrer influências por
perturbações das mais distintas ordens, desde angústias espirituais até os
fatores orgânicos. O dijtdlimo pmblema da perquirição das influências en-
dógenas ou exógenas sobre a liberdade do indivíduo decorreria da com - 199
plexidade da organização da vontade —“o caráter e a altura individual do livre-
-arbítrio produtos da organização cerebral originária e das influências exteriores,
antagônicas ou sinérgicas, que afetaram &ta organização”; “as condições da possibi­
lidade de obrar livremente podem, pois, ser alteradas ou extintas”88.

87 BARRETO, Menores e Loucos, p. 44.


88 BA R RETO , Menons e Loucos, p. 60.
Ao abordar o problema da liberdade de vontade e analisar os fatores
que poderiam influenciar o agir humano, Tobias Barreto não segue os
caminhos mais evidentes da filiação ã tradição jurídica com a afirmação
do livre-arbítrio (metafísica dogmática )89 ou o da ruptura com o direito
penal liberal e a assunção da perspectiva determinista enunciada pela cri­
minologia etiológica. De maneira radicalmente distinta, abdica do debate
sobre os fíndam entos (ou o conteúdo material) da responsabilidade penal,
voltando sua preocupação para o im pacto da legislação na vida cotidiana.
Salienta que “no terreno empírico do direito, pouco importa que o homem sqa livre,
ou deixe de sê-lo, segundo fabulam, de um lado, os meta físicos do espírito, e, de
outro, os metafísicos da matéria. Parafírmar a doutrina da imputação, o direito
aceita a liberdade como um postulado de ordem social; e isto lhe é bastante”913.
O giro que o autor opera provoca um duplo efeito nos debates sobre
a culpabilidade: primeiro, exime o direito penal do debate ontológico que
pretende descrever uma qualidade inerente ou uma natureza humana;
segundo, reconhece a liberdade como um postulado, ou seja, como um
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

pressuposto (normativo), que atribui uma qualidade ao sujeito. Assim, para


além do debate metafísico, não interessaria ao direito se o homem é livre ou
determinado, mas que a liberdade é um postulado de ordem que permite
imputar (atribuir) responsabilidade. O consciente distanciamento dos m o­
delos metafísicos de compreensão do agir humano perm ite ao direito penal
distanciar-se deste terreno de adivintwções jurídicas, fílosófícas ou naturalistas.
Segundo as lições anteriormente apresentadas, em paralelo ã negação
dos fundamentos materiais da culpabilidade, Tobias Barreto desenvolverá
crítica radical aos discursos que procuram encontrar a origem e os funda­
mentos da pena. O resultado lógico desta rejeição aos fundam entos m eta­
físicos da culpabilidade é o desenvolvimento da tese sobre a ausência de
justificativa do poder de punir, conclusão apresentada no ensaio Fundamen­
tos do Direito de Punir — o artigo, publicado com o apêndice da segunda
edição de Menores e Loucos em 1889, será inserido posteriorm ente no m a­
nuscrito Prolegômenos do Estudo do Direito Criminal e na obra póstuma Estu­
dos de Direito (1892), organizada por Silvio Romero.

89 "A teoria da imputação, ou psicologia aiminal, como a denominam os juristas alemães, apoia-se
no fato empírico, indiscutível, de que o homem normal, chegando a uma txrta idade, legalmente es­
tabelecida, tem adquirido a madureza e capacidade precisas, para conhecer o valor juridia de seus
atos, e determinar-se livremente a praticá-los” (BA RRETO, Menores e Loucos, p. 44).
90 BA R RETO , Menores e Louas, p. 44 (grifou-se).
Se Tobias Barreto, ao negar a possibilidade de fundamentação do
direito de punir, produz o prim eiro influxo de um a teoria agnóstica dapena-,
entende-se legítimo afirmar que a abstenção aos discursos idealistas sobre
o homem na análise dos pressupostos da imputabilidade induz a construção
de uma teoria agnóstica da culpabilidade. A culpabilidade, desvinculada dos
fundamentos metafísicos do espírito (livre-arbítrio) ou da m atéria (deter­
minismo), adquire uma tonalidade em inentem ente normativa.

7.6.4. Mas se é Tobias Barreto quem proporciona um giro interpre-


tativo no debate sobre o fundam ento material da culpabilidade no direito
penal nacional, no campo da criminologia, o debate antimetafísico será

NA C U L P W L I D A D E
fomentado por R oberto Lyra Filho, em escritos que podem ser considera­
dos os marcos fundacionais da crim inologia crítica na América Latina91.
Embora seus primeiros trabalhos, durante a década de 1950, tenham sido
desenvolvidos no campo da dogmática penal92, com especial ênfase ã teoria

( 0 . NEGATIVA) D APENA
do delito, durante a década de 1960, quando assume a cátedra na Univer­
sidade de Brasília, Lyra Filho dedica-se com profundidade aos estudos de
crim inologia, filosofia e sociologia do direito, o que perm itirá realizar
um a densa revisão dos fundam entos do direito penal, notadam ente o da
culpabilidade.

íC N Ó S TIC i
A redação de Panorama Atual da Criminologia (1966) antecipa a pu­
blicação de um dos mais inovadores textos da criminologia crítica brasi­

DA CONCEPÇÃO
leira, que é Criminologia Dialétitó (1972). Elaborado a partir de um trabalho
homônimo, escrito como estudo comemorativo do bicentenário de Hegel,
publicado na Revista de Direito Penal em 1971, Criminologia Dialétitó sinte­ - PRC JEÇSCS

51 Segundo Zaffaroni, Lyra Filho, juntamente com o criminólogo colombiano Luis Car­
los Pérez, até o momento do desembarque da criminologia da reação social por obra de
Lola Aniyar de Castro e de Rosa dei Olmo, são os expoentes do pensamento político mais
progressista na criminologia da América Latina (ZAFFARONI, ^ Palabra de los Muertos,
p 139).
52 Lyra Filho inicia sua carreira acadêmica na Faculdade Nacional de Direito, no R io de
Janeiro, em 1950, como professor substituto das disciplinas de direito penal e direito
processual. Seus primeiros trabalhos na década de 1950 são eminentemente dogmáticos,
com forte preocupação nas alterações da teoria alemã do delito —neste sentido, Novas
Posipes da Dogmàtim Alem ã (1951), O Novo Direito Penal Alemão (1952), Omissão de Socomo
(1954) e Esquemas de D in ito Processual Penal (1961), compilação dos fascículos de Direito
Judiciário Penal, volumes 1, 2 e 3, redigidos durante a década docente.
tiza o processo de ruptura do pensamento criminológico 93 com os funda­
mentos ortodoxos das ciências criminais94.
Lyra Filho sustenta a necessidade de um pensamento crítico que
demonstre e supere as abordagens a-históricas e reificadas do direito, fun­
dam entalmente porque tais perspectivas provocam a alienação do saber
jurídico dogmático da vida das pessoas e das demandas sociais —“a aliena­
ção pode ocorrer, tanto na teoria, desligada de suas projeções sociais, quanto nos
‘dogmatismos brutos’ duma práxis acrítica. Os dois polos equivalem-se: basta trocar
o sinal”9’’.
Para além dos inúmeros elementos que disponibiliza para delinear a
construção do pensamento jurídico crítico no Brasil, Lyra Filho constrói
os argumentos de Criminologia Dialética a partir de duas discussões centrais
sobre culpabilidade. Em prim eiro lugar, no capítulo denominado A Cri­
minologia e a Imagem do Homem, o autor reforça a necessidade de superação
das com p reen sõ es m etafísicas que obscurecem o hom em no nebuloso
debate entre livre-arbítrio e determ inism o, destacando, sobretudo, os
processos científicos de produção da imagem das classes trabalhadoras como
classes perigosas96. N o segundo momento, em A Criminologia e os Conceitos
de Direito e de Crime, Lyra Filho desenvolve a ideia de pluralismo jurídico
—com especial êráase às teses criminológicas das subculturas criminais —
em detrim ento da concepção dogmática monista. A construção teórica da
ideia de pluralismo perm itirá problematizar a homogeneidade dos valores

93 Nas advertências iniciais o autor vincula a proposição dialética ã criminologia crítica:


"o ponto de partida é a criminologia critica; a sugestão apresentada é a criminologia dialética, em que
ela se consuma” (LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 9).
5‘ 0 esforço pessoal que L ^ a Filho expõe em relação ao processo de desconstrução da
formação dogmática, nas primeiras linhas de sua Explicação Pessoal, espécie de justificati-
vapolítico-afetiva do trabalho, parece resumir os dilemas da prqpria criminologia crítica:
“éste livro assinala um movimento de reconstrução intelectual (...). Primeiro, porque ela Kssalta do
esfoqo para vencer pKconoitos e reorientar o produto de longo estudo e reflexão (...). Segundo, porque
esta disposição positiva exige, apesar de tudo, certa coragem, a uma altura da vida em que se costuma
deixarmoner a inquietação” (LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 9).
9Í Lyra Filho, Criminologia Dialética, p. 10.
56 "Szabojã lembrava que, no século X IX , as classes laboriosas eram sinônimo de classes perigosas;
e os pobres, como 'criminosos natos’, foram considerados 'inimigos da sociedade’, aos quais se aplica­
vam os rigores da lei, a titulo de 'eugenia'. Ainda hoje, a criminologia, realmente cientifica, precisa
lutar contra o 'estereótipo do criminoso'” (LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p.23).
tutelados pelo direito e a pretensão de a culpabilidade legitimar-se como
juízo de reprovabilidade.
Conform e destaca W olkmer, as bases teóricas de Lyra Filho estão
fundadas na dialética como opção àentífico-metodológica e no socialismo demo­
crático como opfio política91. M ergulhado no pensamento dialético, o autor
encontra elementos suficientes para superar as concepções idealistas sobre
a condição humana e, consequentemente, projetar esta crítica às bases de
sustentação do direito penal. Assim, ensina Lyra Filho que se a Escola
Clássica instigara a criação de um modelo de responsabilidade penal pelo
ato fundado na liberdade do agir (o livre-arbítrio é o conteúdo da culpabili­
dade que justifica a pena), e se a reação do positivismo criminológico pa-

NA C U L P U H U D A D E
tologiza o delinqüente nas teses atávicas —o determinismo é o conteúdo da
periculosidade que justtâca as medidas de segurança—, necessariamente a supe­
ração destes modelos idealizadores deve ocorrer desde uma perspectiva que
considere ser “o homem, ao mesmo tempo, determinado e livre, ente, cognoscente
e agente — dentm dos limita progressivamente alargados, de seu potenríal de autoco-

( 0 . NEGATIVA) D APENA
nhecimento e remodelado, como espécie e como pessoa. A s éticas idealistas é que
cavam abismos entre dado e valor, porque absolutizam o valor para querer que o dado
se conforme a e/e”98.
Ancorado em Engels, sustenta que é exatamente o conhecimento

(ONÓSTICA
dos fatores que condicionam o agir que possibilita ao hom em adquirir e
realizar sua liberdade, não apenas como ente e cognoscente, mas como agente
e protagonista de sua história —“é a assunfio e, não, a rejeição do determinismo,

DA CONCEPÇÃO
que dejine o homem como ser livre — termos absolutamente incompreensíveis para
quem careça de elementar iniríação dialética (...)”".
Os pressupostos teóricos solidificados por Lyra Filho perm item ã - PR O JEÇ Õ ES

dogmática penal e ã criminologia não ortodoxas projetar críticas ao con­


teúdo metafísico do agir hum ano e às constantes renovações do raciona-
lismo indeterminista e do naturalismo causai —principalmente o último,
f—

em briagado nos últimos anos pelo avanço das pesquisas nas neurociências.
203

57 W OLKM ER, Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, p. 111.


58 LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 62.
55 LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 59.
Em outro momento, sustenta que "a assimilação dá-se tão espontaneamente que não seria
pKciso rewrrer a Engels para r^etir o que ele já exprimia, nestes termos: ‘o conhecimento e a utili­
zação do determinismo são instrumentos de libertação do homem. A necessidade sé é aga, quando
não é e n te n d id a (LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 60).
Resta claro perceber que os dogmas do determinismo e do livre-arbítrio pro­
duziram um a assustadora redução da condição humana, não invariavel­
mente inspirada na cisão cartesiana entre res cogitans (razão) e res extensa
(corpo). O efeito das interpretações polarizadas que categorizam o agir
hum ano nestes dois estereótipos (tipos ideais) é o da produção de uma
visão simplificada da realidade, conflitante com a complexidade que ca­
racteriza o viver e que exige o reconhecim ento da condição plural das
pessoas — reconhecim ento dos sujeitos plurais que habitam sociedades
plurais e que são constantemente atravessados por uma heterogeneidade de
valores que produz formas múltiplas de subjetividade.
N o entanto, as direções teóricas metafísicas criaram, segundo Lyra
Filho, uma espécie de hom em fragmentário e fragmentado, no qual as
partes são cultuadas como o todo. Logicamente que as imagens do homem
despedaçado são produzidas por saberes igualmente partidos que se defron­
tam nos protocolos das competências científicas e das especializações. A
ausência de um a visão complexa de hom em —Lyra Filho utiliza o term o
visão global — conduziria o pensamento ao refúgio dos circos científicos, no
qual se reproduzem de forma alucinada imagens falsificadas.
N o pensamento criminológico não faltam exemplos deste tipo de
falsificação da im agem do homem: “delinqüência? E a tradução de um senti­
mento de culpa ou de complexo de inferioridade, conforme a &cola psicanalítica
preferida (atrás disso, está a redufio do homem a mecanismos psicológicos, numa
estrutura social m o questionada, que funciona como uma espécie de superego, extra­
polado e imobilizado em parâmetm); é, conforme a direção biológica adotada, o re­
sultado de uma disfanção endócrina, duma diencefalose criminógena, de aberrações
de cromossomos (atrás disso, está a redução mecanicista do homem aos dados de sua
biologia, mais uma vez tomado o crime como algo estável, parafazê-lo ‘corresponder’
a um elemento da estrutura e processo somáticos); é o produto de associação diferen­
cial ou inadaptação psicossocial, manifestando uma espécie de anomia, conforme o
gosto dosformalismos sociológicos (atrás disso, está um relativismo, que, pelo avesso,
é conservador, pois esvazia o conceito de crime e não vê suas relações com os conteú­
dos concretos de superação dialética das estruturas consideradas)” 100.
Para Lyra Filho, a negativa destas falsas oposições e das fragmentações
conduz a uma percepção de hom em como um sujeito consciente de sua
condição no mundo, das circunstâncias que o expõem aos riscos, dos fato­
res que o influenciam, das dinâmicas que o tornam vulnerável, das situa­

100 LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 48.


ções que o fragilizam. E é neste universo de circunstâncias (daquilo que o
circunda) que o hom em exerce a sua liberdade, inserido em um sistema
social heterogêneo101.
7.6.5. Outra questão central que ocupa o tema do conteúdo material
da culpabilidade diz respeito à indemonstrabilidade das hipóteses de fun­
damentação. Exatamente por força de sua natureza metafísica, as teses
sobre o livre-arbítrio e o determ inism o carecem da possibilidade de de­
m o n stra çã o em pírica.
Percebe-se que mesmo na atualidade, com os avanços das neurociên-
cias e a conversão de muitas disciplinas criminológicas ortodoxas em
modelos neurocriminológicos, seguem inconsistentes as teses que inter­

NA C U L P U H .I D A D E
pretam ser a conduta humana o resultado causai de defecções ou déficits
orgânicos. Não apenas pelo foto de que os modelos criminológicos pós-
-positivistas, dentre eles os neurocriminológicos, assentam-se em pressu­
postos mecânico-causalistas — em uma era em que as próprias ciências naturais

( 0 . NEGATIVA) D APENA
abandonaram a crença na causalidade e incorporaram em seus estudos
circunstâncias altamente relevantes como risco, imprevisibilidade, impondera­
bilidade e acaso —, mas, sobretudo, porque desconsideram quaisquer tipos de
relação de poder que se constituíram como fatores inerentes aos processos
de criminalização —fundam entalm ente após os efeitos irreversíveis provo­

(ONÓSTICA
cados pela Escola de Chicago, notadamente Sutherland 102 e Becker103, e sua
posterior densificação pela crim inologia crítica104.

DA CONCEPÇÃO
Na literatura das ciências criminais, a criminologia crítica produziu
im portante inversão na análise do fenômeno criminal, alterando a concep-
- PR O JEÇ Õ ES

101 Nas palavras de Lyra Filho, "toda a éticafonda-se na liberdade, mas, salvo velhas dirqòes, já
superadas, lida com sujeitos conscientes (de suas determinantes) e livres (dentro do quadro que as I—

determinantes podem traçar). Esses sujeitos defrontam-se com um sistema ético normativo, que cons­
titui a sup&estrutura de seus padrões básicos de convivência soaal. Por outm lado, o rfrerido sistema não
é único, m& vrn wntrastar-se, na dialética degmpos e classes, dentro da sociedade chamada global, com 205
outros padrões, que disputam a hegemonia” (LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p.61).
102 SUTH ERLAND , m úte-C ollar Criminality, pp. 1-12.
103 BECKER, Becoming aMarihuana User, pp. 235-242; BECKER, Outsiders, pp. 1-39.
104 Uma das teses centrais de Alessandro Baratta é a de que os estudos etnográficos e a
conttibuição do interacionismosimbólico estabeleceram um marco irreversível na crimi­
nologia contemporânea de superação da criminologia etiológica derivada do positivismo
naturalista (BARATTA, Criminologia Crítica e Critica do Direito Penal, pp. 112-114; A N ­
DRADE, A Ilusão de Segurança Jurídica, pp. 203-212).
ção positivista de criminalidade — crim e como um a condição natural ine­
rente a determinadas pessoas —para a de processos de criminalização — crime
como uma construção artificial regida por interações criminalizadoras
seletivas e desiguais. A superação do crim e como ente natural, a partir da
consolidação do delito como um ente jurídico (direito penal dogmático) ou
um ente político (criminologia crítica), denuncia as reedições dos determ i-
nismos mecanicistas como tentativas de revitalização do positivismo causai.
É fundamental registrar que esta superação paradigmática do positivismo
ocorreu nos mais distintos campos das humanidades, como nas ciências
jurídicas, com o advento da criminologia crítica; no terreno da psicologia
e da psiquiatria, com a consolidação da psicologia social e da antipsiquiatria;
no âmbito da antropologia, a partir dos estudos culturais. Na atualidade,
esta superação se projeta inclusive no campo das práticas institucionais,
com a efetivação das políticas alternativas, dos programas de redução de
danos e do m ovim ento antimanicomial.
Todavia, mesmo após o amplo processo de desconstrução operado
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

pelo pensamento crítico, a perspectiva etiológica (causai) ainda exerce


enorme fascínio nas ciências penais. A possibilidade de controlar os pro­
cessos causais que prom ovem o crim e ainda anima o sonho ortodoxo-
-positivista, situação que possibilitaria, por m eio da demonstração empí­
rica, a compatibilização das hipóteses deterministas e indeterministas105.

7.7. Juízo de Reprovabilidade em Tensão: Pluralismo Jurídico e


Subculturas Criminais

7.7.1. Para além dos evidentes avanços na construção do sistema


dogmático de delito que o processo de normativização possibilitou, o

105 Roxin, ao propor a adoção de um modelo compatibilista ante o debate do determinis-


206 mo e do indeterminismo, elenca especificamente esta possibilidade a partir do que nom i-
na como resultados das atuais perspectivas das neurociências — “(...) eu tendo para uma
versão ‘compatibilista’, em grande parte defendida na moderna filosofia, que entende senm compatí­
veis a liberdade do agir humano e o condicionamento neurofisiotógico das daisòes humanas. Quando
uma pessoa é idônea para ser destinatária de nornas, isto é, quando ansegue em princípio se orientar
por normas, então um fato que ocorra sem coação e que conesponda ao seu desejo deve ser a ela
imputado como ação Uvk e punivel, se tiver ocorrido a violtqão de uma norma penal, ainda que essa
ação seja, de alguma forma, condicionada pela estrutura do seu cérebro. Afinal, uma decisão que não
esteja andicionada por nada é o acaso e, por isso mesmo, não pode ser imputada a um autor" (R O -
XIN, Refiexões sobre a Construção Sistemática do Direito Penal, p. 41).
problema da instrumentalização da c u l p a b i l i d a d e c o m o r e p r o v a b i l i ­
d a d e é o de que não esporadicamente o juízo de reprovação ultrapassa as
fronteiras da análise singular da conduta punível (culpabilidade pelo ato)
para concentrar-se em um juízo de valoração do autor do fato, sua perso­
nalidade, suas opções pessoais, seu estilo de vida, seus vícios, suas relações
com o ambiente social e familiar, entre outras formas essencialmente m o-
ralizadoras de julgam ento (culpabilidade de autor). A conversão da culpa­
bilidade de foto em culpabilidade de autor representa um a das principais
ofensas ao postulado que delineia os sistemas penais democráticos, que é
o da secularização do direito.
Leciona Nilo Batista que, no Brasil e na grande maioria dos países

NA C U L P W L I I H 1 E
latino-americanos, o conceito normativo de culpabilidade ancorado na
ideia de reprovação ingressa na literatura penal com a tradução da obra de
Mezger, por Rodríguez M unoz, em 1935. Mas em solo nacional houve
alguma resistência, sobretudo com Nélson H ungria, que percebia a base
autoritária do conceito106: “a partir da obra de Aníbal Bruno, tomar-se-ia abso­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
lutamente predominante no pensamento penalístico brasileiro uma culpabilidade que
consiste, essencialmente, em um juízo de r^mvação, mesmo entre autores influen­
ciados por tendências pós-flnalistas (...). Aníbal Bruno ocupa, na literaturajurídico-
-pem l brasileira, posição atáloga — suprimida a veneração à suástica — àquela de

ÍCNÓSTICA
Mezger na doutrina alemã”107.
Não se desconhece o esforço da teoria do delito pós-guerra, sobre­
tudo da dogmática alemã a partir da elaboração do Projeto Alternativo de

EÇÕEE DA CONCEPÇÃO
Código Penal108, para depurar os efeitos moralizadores que a ideia de re­

íoí "Nélson Hungria relutou em incoyorar a novidade. Afirmando que uma nova concepção de
culpabilidade surgia 'por influência do Estado totalitário (...) findada no estranho postulado de que
- PR

o indivíduo deve prestar contas também de sua personalidade’, Hungria buscou neutralizaros efeitos f—

da novidade (...)” (BATISTA, Cem Anos de Reprovado, p. 168).


107 BATISTA, Cem Anos de Reprovação, p. 169. 207
108 Lembra com precisão Juarez Tavares que "o grande mérito do Projeto Alternativo e da mn-
cepção moderna de culpabilidade proposta por R oxinfoi eliminar desse enunciado uma base suposta­
mente ontológica, que poderia justificar uma culpabilidade pela conduta de vida, para enfocá-la
conforme a capacidade de motivação do agente para o fato por ele realizado, em face dos apelos nor­
mativos da ordem jurídia que tivera acesso. Com isso, pKtende contextualizar o poder agir de outro
modo como flndamento da culpabilitfade, substituindo seu enunciado puramente normativo, destituí­
do de qualquer conteúdo empírico, por um critério em finção do que o sujeito poderia efetivamente
fazer ou não fazer, quando submetido a uma norma vinculante de sua conduta” (TAVARES,
Culpabilidade e Individualização da Pena, p. 127).
provação consolidou no juízo de culpabilidade. Todavia, os ecos da con­
cepção de culpabilidade como reprovabilidade seguem produzindo efeitos
moralizadores notórios, em uma espécie de giro inquisitório laico em
sentido oposto ao da laicização do direito penal moderno.
Assim, seguindo as linhas metodológica e argumentativa que vêm
sendo desenvolvidas neste trabalho, quais sejam, as da absoluta inobservân­
cia da Lei de Hume, a crítica ã culpabilidade como juízo de reprovação
terá como base dois critérios distintos: primeiro, os diagnósticos empíricos
apresentados pela sociologia do direito e pela criminologia crítica; segun­
do, os argumentos normativos desencadeados pela teoria crítica do direito
penal (garantismo penal).

7.7.2. A percepção do fenômeno jurídico desde uma perspectiva


monista é um dos pontos centrais de crítica ao positivismo jurídico que
proporcionará um a releitura da questão da reprovabilidade, fundam ental­
m ente porque a redução das fontes de emanação do direito ao estatalismo é
* 4 * 5 F U '. DlQU Dí a S d S a liH NÍ R F IT O I I W l S h ^ B L Í lV I

um dos inúmeros espaços de convergência entre a teoria crítica do direito


e a criminologia crítica. Na teoria crítica do direito, a noção de p lu ralis­
m o ju ríd ic o perm itirá contrapor os efeitos alienantes da produção dog­
mático -fòrmalista do saber; na criminologia crítica, o conceito de subcul-
tura criminal possibilitará analisar as distintas formas de expressão social das
experiências individuais e coletivas e, notadamente, como são definidos os
processos de criminalização (seletividade) promovidos pelo sistema penal
a partir da hierarquização moralizadora destas experiências.
Na literatura nacional, R oberto Lyra Filho se destaca por propor­
cionar a aproximação dos conceitos da teoria geral do direito (pluralismo
jurídico) e da criminologia (subculturas criminais). Ao posicionar-se em
radical oposição a qualquer espécie de formalismo, o autor desenvolve
im portante crítica às formas positivistas de interpretação do direito que
conferem ã lei um status superior, quase sagrado, na hierarquia das fontes,
restringindo o horizonte da produção jurídica ao material legislado109. A

Interessante atualização das teorias da culpabilidadepós-finalismo, comprofunda aná­


lise das variações dos discureos funcionalistas, em TANGERINO, Culpabilidade, pp. 84-105.
109 “O positivismo legalista wlla-se para a lei e, mesmo quando incoyora outro tipo de norma —
como, por exemplo, o costume — dá à lei total superioridade, tudo ficando subordinado ao que ela
determina e jamais sendo permitido — de novo, a titulo de exemplo — invowr um costume contra a
lei" (LYRA FILHO, O que é Direito, p. 31).
tensão entre monismo e pluralismo será proposta por Lyra Filho, a partir
da análise do direito soviético pós-revolução, sobretudo o debate entre as
teses de Stucka e Pasukanis. A partir de um a im portante e marcante apro­
xim ação com o pensamento da Escola de Frankfurt110, denuncia o forma­
lismo do modelo moldado por Vyshinsky, foto que conduz, inevitavelmen­
te, ã denúncia do dogmatismo que a experiência jurídica soviética e a
própria filosofia marxista incorreram 1
O ponto de partida para a crítica ao monismo é a superação dos dois
principais modelos de ideologia jurídica: jusnaturalism o e positivismo112.
Conforme destaca W olkmer, no campo da teoria geral do direito, a obra
de Lyra Filho provoca uma ruptura na visão distorcida e simplificadora

NA C U L P W U 1 H I E
que reduz as formas de interpretação dos fenômenos jurídicos ao binômio
direito natural versus direito positivo113; sendo exatamente na superação
dialética do positivismo e do jusnaturalism o que em erge a proposição
pluralista114. Em Criminologia Dialética, a problematização do m onismo
jurídico é inserida no debate das subculturas criminais, sendo um dos efeitos

( 0 . NEGATIVA) D APENA
a projeção do tema sobre questões nitidam ente dogmáticas como a antiju-
ridicidade material e a culpabilidaden i.
A premissa de que parte o autor é a de que “as normas jurídicas e morais
têm a mesma origem social, e se diversificam nos processos deformalização e aplica-

ÍCNÓSTICA
110 Nestesentido, LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 97 e LYRA FILHO, Para um

EÇÕER DA CONCEPÇÃO
Direito sem Dogmas, p. 25.
111 “Durante certo tempo, a filosofia maixista — cuja vitalidade é sublinhada por um adversário do
porte de Raymond Aron —perdeu o gume dialético e crítico, numa crise de dogmatismos brutos, para
usar a expressão, já citada, de Henri Lefebvre (...). Está claro que, em outra época, o marxismo,
tmnsfiormou-se em 'teologia’, teve a sua ‘escolàstica’, inclusive com ‘p apa’, 'ind& 'e 'inquisiçm'— o
que não escapou à crítica de muitos dos seus próprios adeptos e simpatizantes” (LYRA FILHO,
- PR

f—
Criminologia Dialética, p. 31).
112 Sobre a design a ^ o ideológica do positivismo e do jusnaturalismo, conferir LYRA FILHO,
O que é Direito, pp. 25-48. 209
113 “Entretanto, permanece o dualismo — direito positivo e dinito natural — como uma antinomia
(uma antradição insolúvel), que parte o Direito num ângulo que só vê a ordem e noutro que invoca
um ajustip, cujo fundamento não é adequadamente assentado nas próprias lutas sociais e, sim, em
princípios abstratos” (LYRA FILHO, O que é Direito, p. 44).
”4 W OLKM ER, Pluralismo Jurídico, p. 190.
115 Importante destacar que, desde o ponto de vista da teoria geral do direito, Lyra Filho
trabalha detalhadamente o tema do pluralismo jurídico em obras como Para um Direito
sem Dogmas (1980) e O que é Direito (1982).
ção — as primeiras, heterônomas, e x te ^ m e n te coerdveis, mediante sanções organi­
zadas, e bilateralmente atributivas; as segundas, relativamente autônomas, difusa­
mente sancionadas e unilaterais. Ambos os tipos de normas geram, em seus âmbitos
comunicanttt, uma pluralidade de ordenamentos, que disputam a hegemonia. H á
sempre mais de um modelo em vias de positivação. D al os conflitos de ‘cultura’ e
‘subcultura’ entre si e até mesmo internamente”" 6.
A assertiva gera, no m ínim o, duas questões relevantes: a primeira,
relativa à tensão entre cultura e subcultura (desviante); a segunda, acerca
da legitimidade do ordenamento jurídico hegemônico.
Porém, de forma preliminar, é im portante registrar que o reconhe­
cim ento de que a sociedade em m ovim ento cria e recria direitos para além
do direito positivado (direito hegemônico) não implica atestar como legí­
tima qualquer forma de juridicidade extralegal. Se efetivamente existem
esferas alternativas de produção do direito, a legitimidade destes direitos
emergentes está necessariamente vinculada ao caráter democrático dos seus
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

pressupostos e dos seus postulados. A questão é bastante nítida na análise


da ilegitimidade de práticas punitivas denominadas pela criminologia como
direito penal subterrâneo - p. ex., gestão ilegal da violência realizada por
agentes do poder público (grupos de exterm ínio, milícias) ou por grupos
criminosos. Nestes casos não é difícil perceber a ausência de legitimidade
das esferas ilegais de jurisdição, circunstância que interdita qualquer possi­
bilidade de que suas práticas sejam incorporadas como direitos emergentes.
Mas excetuando os casos-limite de direito penal subterrâneo, o
reconhecim ento do pluralismo jurídico conduz ã percepção de que as
normas “(...) não são apenas as da sociefade global, mas também as da própria
subcultura, onde ele [homem] esteja eventualmente imerso”1'7. Em efeito, os
valores que guiam as interpretações julgam entos) no interior da ordem
jurídica instituída, apesar de aparentemente homogêneos, não são repre­
sentativos das inúmeras manifestações culturais que coexistem. A conse-
210 quência, no âmbito do direito penal dogmático, é a verifícação de que o
juízo de reprovação pelo ilícito é, necessariamente, uma inteyretação moral
sobre um com portam ento dissidente, isto é, a afírmação da validade (ou
da supremacia) de determ inado valor moral instituído sobre outro, insti-
tuinte ou inferiorizado.

116 LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 121.


117 LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 62.
Embora Lyra Filho questione a noção criminológica de subcultura,
notadamente em razão do excessivo formalismo e conservadorismo118, sua
leitura conjugada com a categoria pluralismo jurídico fornece interessantes
elementos para descaracterizar o juízo de culpabilidade como juízo de
reprovação (moral).
Assim, se o prim eiro problema da culpabilidade foi em relação ao
seu conteúdo material, em decorrência da assunção dos idealismos do livre-
-arbítrio e do determinismo, a demonstração da insuficiência do monismo
jurídico para interpretar o fenômeno jurídico desencadeará sua segunda
crise: a adoção, não menos idealista, de valores morais superiores, pre-
tensam ente universais, para realizar o juízo de reprovação do autor do

NA C U L P U H U D A D E
ilícito punível.
É fundamental frisar, porém , que esta crítica aos efeitos da reedição
de modelos de direito penal do autor em razão da adoção de um modelo
de culpabilidade como reprovabilidade não se limita ao debate teórico no
âmbito dogmático ou criminológico. Embora o prim eiro influxo da uni­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
versalização e da hierarquização axiológicas ocorra no processo de crim i­
nalização primária, traduzido pela doutrina penal no conceito de bem
jurídico119, a instrumentalização dogmática do juízo de reprovação perm i­
te que no cotidiano forense sejam realizados julgamentos marcadamente

(CNÓSTICA
inquisitórios, baseados em códigos de valores idealizados. Um a análise
cuidadosa nas pesquisas criminológicas sobre a atuação dos atores do sis­
tema penal — em temas gerais como aplicação 120 e execução da pena 121 e

DA CONCEPÇÃO
prisões cautelares122; ou em situações específicas como tráfico de drogas 123
e crimes violentos 124 perm ite perceber, de forma bastante evidente, como
- P R C JEÇ Õ E5

118‘M noção de ‘subcultura’ é: a) formalista (pela hierarquização acrítica dos elementos, conforme
arranjo dominante); b) meramente conservadora (pela admissão de uma espécie de homeostase, no
próprio sistema)" (LYRA FILHO, Criminologia Dialética, p. 122).
115 TANG ERINO , Cul^bilidade, pp. 63-69 epp. 139-143. 2fl
120 CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo, pp. 165-228.
121 BUJES, Entre Sagrados e Profanos, pp. 98-159.
122 VASCONCELLOS, A Prisão Preventiva como Mecanismo de Controle e Legitimação do
Campo Jurídico, pp. 173-216.
123 ALVES, Entre a Cultura do Controle e o Controle Cultural, pp. 177-211; BOITEUX e
CASTILHO, Tráfico de Drogas e Constituição, pp. 92-196; W EIGERT, Uso de Drogas e
Sistema Penal, pp. 96-110.
124 IBCCrim & IDDD, Decisões Judiciais nos Crimes de Roubo em São Paulo, pp. 4-39.
o discurso punitivista se legitima a partir de um ideal de moralidade que
se concretiza na reprovação das pessoas e dos grupos criminalizados.

7.7.3. Em bora sejam fenômenos distintos, a noção de p lu ralism o


ju ríd ic o —reconhecimento da produção de direitos em distintas instâncias
de juridicidade para além da atividade normatizadora das agências estatais
—se associa com as pesquisas criminológicas sobre sub culturas crim in ais
na compreensão dos limites de interpretação da legalidade regida pelo
positivismo dogmático.
A constatação de que a sociedade civil cria novos direitos praeter ou
contra legem — de maneira organizada por meio dos movimentos sociais 123
ou de form a espontânea e involuntária, coletiva ou individualmente —evi­
dencia a perda do monopólio do Estado na elaboração do direito e deses-
tabiliza a fonte primária que orienta o processo normatizador, no caso do
direito penal a crim inalização prim ária. A demonstração empírica da
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

existência de uma heterogeneidade de normas sociais e de juridicidades


para além dos horizontes estatais coloca em crise a concepção tradicional
de que existem determinados valores consensuais que seriam o fundamen­
to inform ador da criação do direito. N o plano da criminalização secun­
dária, a crise do monismo jurídico se reflete no juízo de culpabilidade,
a p o n d o a instrumentalidade antissecular da reprovabilidade: hierarquizar,
reforçar ou solidificar determinadas concepções morais como universais.

126 O tema do pluralismo jurídico, desde a perspectiva do reconhecimento dos movimen­


tos sociais organizados como novos sujeitos de direito, encontra importantes consttuções
na sociologia e na filosofia do direito.
Segundo José Carlos Moreira da Silva Filho, “(...) com base nas análises politico-socioló-
gicas dos Novos Movimentos Sociais, é perfeitamente possivel identificar um processo pelo qual as
canncias vivenciadas <nletivamente se transformam em exigência de direitos e a partir dai possibilita
a construção teárirn de um ‘sujeito coletiw de dim to”’ (SILVA FILHO, Filosofiajurídia da Al-
teridade, p. 208).
O tema igualmente encontra eco na teoria antropológica. Conforme destaca José
Guilherme Magnani: “(...) os grupos tradicionalmente estudados pela Antropologia — indios,
negros, camponeses, favelados, etc. —passam de ‘minorias’, ‘desviantes’, ‘marginais’ a 'novos atores
políticos’, protagonizando movimentos sociais, exigindo participação na sociedade. O mesmo ocorre
com temas caros à nflexão antropMgiai como nligião, sexualidade, papel da mulher nafamília e na
sociedade, a cultura popular e outros: são pensados como formas de resistência’, de contestação, de
luta” (MAGNANI, Quando o Campo é a Cidade, p. 28).
Para aprofundar o tema, W OLKM ER, Pluralismo Jurídico, pp. 107-153.
A perspectiva pluralista, ao evidenciar que o Estado não é a única
fonte produtora de normatividade e que determinados coletivos criam e
recriam direitos independentem ente dos processos formais, constrói um
canal de visibilidade no qual os direitos produzidos na m argem ou fora da
legalidade estatal (direitos insurgentes), derivados norm alm ente de déficits
materiais provocados pelo próprio Estado, emergem como legítimos pos­
tulados democráticos. A adoção de um a perspectiva pluralista implica re­
conhecer, portanto, “a constituição de normatividade não mais e apenas das
fontes ou canais habituais clássicos representados pelo pro&sso legislativo ejurisdi-
donal estatais, mas captar o conteúdo e a forma do fenômeno jurídico mediante a
informalidade de ações concretas de atores coletivos, consensualizados pela identida­

NA C U L P U H .I D A D E
de e autonomia de inter&ses do todo comunitário, num lócus político, independente
dos rituais formais de institucionalização ” 126.
O problema que o reconhecimento do pluralismo jurídico e das
subculturas aporta ao direito penal é o da legitimidade dos juízos de re­
provação em um cenário em que são múltiplas as expressões culturais e

( 0 . NEGATIVA) D APENA
distintos ou conflitivos os valores vigentes na sociedade. Se uma das variáveis
da categoria culpabilidade implica a definição de um juízo de reprovação
sobre a conduta individual, im porta indagar quais são os critérios de defi­
nição dos valores que inform am este julgamento do autor do ilícito em um

(ONÓSTICA
contexto de complexidade cultural. De forma mais contundente, a per­
gunta recai sobre a legitimidade dos critérios orientadores do julgam ento
(reprovabilidade) de pessoas com diferentes estilos de ser.

DA CONCEPÇÃO
Note-se que o problema não recai apenas nos casos mais agudos,
como, p. ex., a diferença de valores culturais (e todas as implicações no que
tange ã compreensão do ilícito) entre as comunidades do mono e os moradores - PR O JEÇ Õ ES

do asfalto — para utilizar as categorias propostas por Boaventura de Souza


Santos em sua pesquisa de vanguarda sobre pluralismo jurídico nas favelas f—
cariocas127. A tensão entre os distintos códigos de valores, visivelmente
perceptível nos julgamentos penais (sentenças judiciais), é refletida coti-
dianamente em temas da agenda pública, como o com ércio e porte de 213
drogas para consumo pessoal, as terapêuticas para dependentes químicos,
a interrupção voluntária da gravidez, as relações homoafetivas, o tratam en-

126 W OLKM ER, Pluralismo Jurídico, p. 107.


127 Sobre o tema, SANTOS, O Discurso e o Poder, pp. 62-78; SANTOS, Sobre a História
Juridico-Social de Pasá^ada, pp. 42-47; LYRA FILHO, Normas Jurídicas e Outras Normas
Sociais, pp. 51-56.
to de portadores de sofrimento psíquico, a violência doméstica, entre outras
inúmeras questões polêmicas que mobilizam diferentes grupos sociais.

7.7.4. Na crim inologia, o fenômeno das su b cu ltu ras c rim in a is foi


levantado na publicação de Delinquent Boys: The Culture of the Gang (1955),
de Albert Cohen128. O autor desenvolve os estudos sobre a complexidade
dos códigos de valor a partir de sua experiência de trabalho com jovens
em conflito com a lei nas escolas de Indiana (EUA). Na investigação, des­
creve as características dos comportamentos delitivos e antissociais de um
grande núm ero de grupos jovens urbanos.
O objetivo central da pesquisa, estruturada a partir da teoria da
anom ia (Merton), da teoria da associação diferencial (Sutherland) e da
teoria da desorganização social (Shawn e M cKay’s), é explicar a formação
das subculturas das gangues juvenis, tema bastante caro ã crim inologia e
ã sociologia norte-am ericana. Para tanto, Cohen compara os códigos de
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

valores dos jovens das classes urbanas médias e baixas, sugerindo que quan-

128 Nas ciências em geral, especialmente nas humanidades, a atividade de demarcação da


‘origem’ de determinada escola ou de um paradigma é sempre nebulosa e fluida, sendo
sempre possível apontar múltiplas fontes. Em relação ã noção de subcultura criminal, vários
são os indicativos de autores que trabalharam com esta hipótese antes de Cohen.
Na tradição dos estudos norte-americanos, p. ex., Davi Tangerino apontará os estudos
de Alfred McKung Lee, "tte L ew ls o f CultuK as Leveis o f Social Cenenalization (1945), como
a primeira formulação do conceito de subcultura (TA NG ERINO, Culpabilidad, p. 143).
Hebdige, ao analisar a tradição britânica dos estudos culturais, afirma que a investi­
gação neste campo “ (...) evoluiu a partir de uma tradição etnográfica urbana cujo inkio remete ao
século X IX : os trabalhos de H enry M ayhew e Thomas Archer, e as novelas de Charles Dickens e
A rthur Morrison. N o entanto, até a década de 1920, não surgiria uma aproximação mais 'cientlfi-
ca! à subcultura, com uma metodologia própria (a observação participativa); fo i então quando um
grupo de sociólogos e criminólogos de ChiMgo iniciou a recompilação de dados sobre gangues de rua
214 de jovens e grupos marginais (delinqüentes profissionais, contrabandistas etc.)” (HEBDIGE, Sub­
cultura, p. 106).
M attelart e Neveu destacam como fontes primeiras de referência as obras de Carlyle
(Past and Pwsent, 1843) e Arnold ( Culture an A nanhy, 1869). Todavia, é nos textos de
Hoggart ( The Uses ofLiteracy, 1957), de Williams (Culture and Society, 1958) e de Thom p­
son (T h e M aking o f the English Working-Class, 1963) que parece residir, de forma razoavel­
mente consensual, a gênese dos estudos culturais e, consequentemente, das subculturas.
Neste sentido, M ATTELART e NEVEU, Introdução aos Estudos Culturais, pp. 19-54;
ESCOSTEGUY, Uma Introdução aos Estudos Culturais, pp. 87-89 e PRYSTHON, Estudos
Culturais, pp. 135-137.
do alunos de distintas classes interagem na mesma comunidade, notada-
m ente quando freqüentam as mesmas escolas, há um a certa padronização
no julgamento das condutas cotidianas (sobretudo das condutas desviantes),
sendo os critérios de valoração (standards) relativamente comuns, apesar das
diferenças. N o entanto, nos ambientes escolares socialmente favorecidos,
verifica haver um a m aior dificuldade de os jovens das classes baixas reco­
nhecerem os standards valorativos. Com o resultado deste estranhamento,
Cohen descreve a tendência de estes jovens perderem status no grupo, com
o conseqüente desenvolvimento de sentimentos de inferioridade e de di­
minuição da autoestima. Os múltiplos efeitos do conflito cultural induzi­
riam estes jovens, que já se encontravam em um a situação de inferiorização
econômica, a criar subculturas próprias em que os seus comportamentos
são julgados por valores compartilhados —neste complexo processo, Cohen
destaca, p. ex., o reforço simbólico dos valores de masculinidade como
negação dos standards inferiorizadores. A construção de uma nova imagem
do grupo se solidifica no m om ento em que há, por parte de outros cole­
tivos, o reconhecim ento em forma de status e de respeitabilidade129.
Baratta, ao comentar a obra de Cohen, assevera que a “subcultura
representa a solução dos problemas de adaptação, para os quais a cultura dominante
não oferece soluções satisfatórias” 130. Todavia, em razão do confronto com a
cultura oficial, a subcultura seria “ (...) caracterizada por elementos de ‘não
utilitarismo', de ‘malvadeza’ e de ‘negativismo’ que permitem, aos que dela fazem
parte, exprimir e justificar a hostilidade e a agressão contra as causas da própria
frustração social”131.
Apesar da investigação inovadora de Cohen, o grande impacto do
estudo das subculturas criminais no campo criminológico ocorrerá com a
publicação de Outsiders (1963), de Howard Becker. Após apresentar os
fundamentos teóricos para superação da perspectiva causal-determinista,
Becker apresenta o resultado de duas etnografias realizadas na década de
1950 com distintos grupos urbanos: usuários de drogas ilícitas e músicos
de ja zz.

129 As conclusões da pesquisa de Cohen são oferecidas sobretudo no capítulo final de


Delinquent Boys, intitulado A Solução Criminosa’, quando o autor analisa quais as vantagens
oferecidas pela subcultura criminal (CO H EN , Delinquent Boys, pp. 121-137). Sobre o
tema, YOUNG, Albert Cohen, pp. 105-115; PRESS, Delinquent Boys, p. 1.174-1.175.
130 BARATTA, Criminologia C rltia e Critica do Direito Penal, p. 73.
135 BARATTA, Criminologia Critica e Critica do D ireito Penal, p. 73.
Sustenta Becker que “o marginal — o desviante das regras do grupo — tem
sido objeto de muitas &peculações, teorizações e estudos científicos. O que os leigos
querem saber sobre o desviante é: por que desviam? Como podemos e^licar seus
desvios? O que há neles que os conduz ao comportamento proibido? A investigação
científica procurou encontrar respostas para estas qutttões. Ao realizar esta tarefa
aceitou a premissa do senso comum de que há algo intrinsecamente dttviante (qua­
litativamente distinto) nas condutas que violam (ou violam aparentemente) as regras
sociais. Aceitou, de igual forma, a hipótese do senso comum de que os atos desvian­
tes ocorrem porque certas característitós da pessoa tomam necessária ou inevitável a
conduta. Os cientistas dificilmente criticam o rótulo ‘desviante’ quando é aplicado
para determinados atos ou pessoas em particular. A o contrário, partem do rótulo como
algo dado. M as ao agir assim, aceitam os valores do grupo que julgam os critérios de
rotulação",32.
A abordagem etnográfica utilizada por Becker possibilita um a pes­
quisa de aproximação das subculturas com intuito de compreender os usos,
os rituais e os costumes dos grupos em conflito com a lei. A perspectiva
etnográfica provoca espécie de transvaloração dos valores (morais) que definem
as regras de ilicitude133, situação que perm ite ao investigador a criação de
um espaço privilegiado de encontm com os grupos desviantes (outsiders) e
de compreensão dos valores da subcultura. Na pesquisa-intervenção, o
autor enfatiza a necessidade de olhar os usos e as práticas de distintas iden­
tidades coletivas que, para além das práticas ilícitas, produzem rótulos
sociais de desvio em razão do seu estilo de vida alternativo. A forma cole­
tiva de ser dos músicos de ja z z , p. ex., seria “suficientemente exótica ou m o
convencional para serem rotulados como outsiders pela maioria convencional dos
membros da comunidade”134.
O procedim ento de investigação do autor demarca novas formas de
olhar, interpretar e interagir com diferenças dissidentes. Ao contrário das
formas ortodoxas de interpretação do crim e e do desvio, que transforma­
ram o desviante em objeto de pesquisa estranho ao sujeito da investigação,
a abordagem de Becker perm ite reconhecer este desviante como um sujei­
to de diálogo e de interação e, desta forma, estabelecer um a escuta privi­
legiada marcada pelo respeito ã diversidade. Em efeito, esta perspectiva

132 BECKER, Outsiders , pp. 3-4.


133 Sobre a perspectiva nietzscheana de transvaloração dos valons morais na criminologia,
conferir CARVALHO, A ntim anual de Criminologia, pp. 47-66.
134 BECKER, Outsiders, p. 79.
criminológica não teria como objetivo identificar, classificar e controlar (recu­
perar), mas encontrar grupos, OMvirseus integrantes, observar e compreender seus
hábitos rituais e seus valores. Segundo Becker, esta forma de interagir
perm itiria compreender m elhor os problemas que surgem dos processos de
etiquetamento e de estigmatização das subculturas, de m odo a criar novas
perspectivas para interpretar os problemas que os desviantes em geral en­
frentam ao serem tratados como marginais (outsiders)13>.
A tradição da Escola de Chicago e dos estudos sobre etiquetamento
(labeling approach) será atualizada, a partir da década de 1970, pelas pesqui­
sas desenvolvidas no Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, da U niver­
sidade de Birmingham (Inglaterra). Os pesquisadores ingleses propõem
uma nova forma de abordar o fenômeno da cultura juvenil, em oposição ã

NA C U L P U H U D A D E
visão conservadora que cristalizava imagens estereotipadas de consumo e
de alienação como os padrões dominantes dos comportamentos desviantes.
Conforme destaca Freire Filho, o direcionamento do culturalismo
britânico era no sentido de perceber os comportamentos disruptivos da

( 0 . NEGATIVA) D APENA
juventude como fenômenos culturais desvinculados das visões patologi-
zantes que compreendiam os desvios como sintomas de demência, dege-
neração ou perversão moral. Os estudos culturais, portanto, “(...) rechaçavam
a noção (em voga m retórica política, acadêmica e jornalística) de que a crescente
tfuência do pós-guerra teria redunfado na assimilação dos jovens da classe traba­

(ONÓSTICA
lhadora em uma cultura de consumo juvenil homogênea (...)”136.
Assim, opondo-se ã patologização e ã estereotipação dos com porta­

DA CONCEPÇÃO
mentos desviantes, os investigadores procuram com preender os grupos e
os seus atores nos espaços de vivência da juventude, ou seja, por meio da
análise das suas distintas dinâmicas, na identificação das suas diversificadas - PR O JEÇ Õ ES

procedências, no reconhecimento da pluralidade de identidades dos seus


integrantes — identidades de classe, gênero, etnia, orientação sexual. A
orientação teórica se consolida no sentido de interpretar as diferentes for­
mas de manifestação cultural de acordo com as variáveis socioeconômicas
e político-culturais que as atravessam e que, inexoravelmente, produzem 217
distintas subjetividades, em alguns casos subjetividades altamente vulne­
ráveis ã seletividade das agências punitivas137.

135 BECKER, Outsiders, p. 83.


136 FR EIR E FILHO, Das Subculturas às Pós-Subculturasjuvenis, p. 140.
137 O giro metodológico imprimido por Becker e revigorado pela Escola de Birmingham
será redefinido pela teoria pós-moderna por meio do conceito de tribos urbanas. Na cri-
7.7.5. O conhecimento produzido sobre as subculturas criminais não
apenas perm ite uma viragem paradigmática na criminologia (criminological
turn) como instiga a problematização de conceitos dogmáticos do direito
penal como o da culpabilidade. Aliás, um dos principais méritos das for­
mulações da criminologia crítica foi o de estabelecer parâmetros de ava­
liação da falibilidade das edificações teóricas do direito penal, metodologia
que orienta a presente investigação.
Neste sentido, o estudo etnográfico dos grupos desviantes desesta-
biliza a forma usual do pensamento dogmático, sobretudo da teoria do
delito, que é a de atomizar o autor do foto, descontextualizando-o do
ambiente sociocultural em que vive. Qualquer fator externo ao sujeito
tende a ser interpretado pelo direito penal como uma variável secundária,
valorada no m áxim o como circunstância secundária para a modulação da
pena. Os estudos criminológicos críticos interditam esta perspectiva orto­
doxa obcecada pela atomização do crim e e do crim inoso e conduzem o
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

pesquisador em uma trajetória na qual o im portante é olhar e interpretar


o sujeito em seu contexto, percebendo que seus atos não são isolados, mas
sempre inseridos nas redes de interações que produzem sua subjetividade.

minologia, a perspectiva etnográfica na análise das tribos urbanas será retomada pela
criminologia cultural.
A ressi^ificação das subculturas criminais como tribos urbanas permite compreender
o universo heterogêneo das formas de manifestação da juventude urbana sem estabelecer
uma hierarquia axiológica que inferioriza a subcultura desviante. Em realidade, os estudos
contemporâneos rompem com a fixidez do conceito de subcultura, inserindo as variáveis
do pluralismo cultural na complexidade das sociedades além-da-modernidade. Frise-se,
portanto, que a perspectiva que informa os estudos atuais não significa uma mera reade­
quação terminológica. O abandono da análise verticalizada que contrapõe cultura e
subcultura opera uma radical alteração nas formas de compreensão dos processos de
construção das identidades desviantes. Assim, os códigos culturais das tribos passam a ser
significados na sua experiência cotidiana, no encontro dos sujeitos que integram os dife­
rentes coletivos que compõem a fauna urbana. Conforme percebe Escosteguy, "o estudo
etnográfico acentua a importância nos modos pelos quais os atoKS sociais definem por eles próprios as
condições em que vivem. Com a extensão do signficado de cultura de textos e apresentações para
práticas vividas, considera-se em fo w a produção de sentido” (ESCOSTEGUY, Uma Introdução
aos Estudos Culturais, p. 90).
Sobre a transposição do conceito de subcultura para o de tribo urbana, com especial
ênfase na criminologia, conferir CARVALHO, D as Subculturas Desviantes ao Tribalismo
Urbano, pp. 149-223.
Becker percebe como as investigações científicas sobre crime e des­
vio são quase exclusivamente dedicadas ao sujeito isolado que violou as
regras. N o entanto, sustenta que, para alcançar um a compreensão mais
qualificada sobre o problema, é necessário conceber o desvio e os desvian­
tes como um a conseqüência do processo de interação entre pessoas: pes­
soas que por interesses próprios ou de seus grupos de referência criam e
impõem regras; pessoas que por interesses próprios ou de seus grupos
violam as regras, praticando atos rotulados como desviantes138.
N o jogo sutil de intercâmbios entre culturas não há, conforme le­
ciona Escosteguy, um confronto bipolar e rígido, “elas [culturas] não são
vistas como exterioKS entre si mas comportando cruzamentos, transações, interseqões.
Em determinados momentos, a cultura popular resiste e impugna a cultura hegemô­

NA C U L P W L I D A D E
nica, em outros mproduz a concepção de mundo e devida das classes hegemônicas”139.
Nesta perspectiva, Baratta desenvolverá a tese de que o reconheci­
m ento do pluralismo cultural e das subculturas desviantes resulta na n e ­
g a t i v a d o p r i n c í p i o d a c u l p a b i l i d a d e compreendido como juízo de

( 0 . NEGATIVA) D APENA
reprovabilidade. A tese trabalhada pelo autor é a de que o com portam en­
to desviante não deve ser interpretado como expressão única de um com­
portam ento interior dirigido contra os valores sociais, sobretudo porque
inexiste um sistema homogêneo de valores. Nas sociedades plurais e complexas
coexiste uma série infinita de valores que são transmitidos e compartilha­

ÍCNÓSTICA
dos pelos indivíduos e pelos grupos sociais nas mais diversas dinâmicas.
Conclui Baratta que “não existe, pois, um sistema de valores, ou o sistema de

DA CONCEPÇÃO
valores, em face dos quais o indivíduo é livre de determinar-se, sendo culpável a
atitude daqueles que, podendo, não se deixam 'determinar pelo valor’, como quer
uma concepção antropológica de culpabilidade, cara principalmente para a doutrina - PRC JEÇSCS

penal alemã (concepção normativa, concepçãofinalista) (...). Só aparentemente está


à disposição do sujeito escolher o sistema de valores ao qual adere. Em realidade,
condições sodais, estruturas e mecanismos de comunicação e de aprendizagem deter­
minam a pertença de indivíduos a subgrupos ou subculturas, e a transmissão aos
indivíduos de valores, normas, modelos de comportamento e técnicas, mesmo 219
ilegítimos”" 0.
Conforme leciona Davi Tangerino, estes valores universais, tradu­
zidos dogmaticamente como bens jurídicos, são decompostos a partir das

138 BECKER, Outsiders, p. 163.


139 ESCOSTEGUY, Uma Introdução aos Estudos Culturais, p. 91.
140 BARATTA, Criminologia C rítia e Crítica do Direito Penal, p. 74.
teorias subculturais e do etiquetamento em dois processos distintos: pri­
m eiro, as teorias subculturais demonstram a constituição heterogênea do
corpo social e a necessidade de contextualização para emissão de juízos de
valor; segundo, a teoria do etiquetamento denuncia os filtros do sistema
punitivo, revelando que o delito é um rótulo desprovido de valor univer­
sal e conteúdo ontológico141. Outrossim, conforme destaca Zaffaroni, a
teoria do etiquetam ento associa aos processos de rotulação a verificação
empírica da seletividade do sistema penal, situação que neutraliza qualquer
legitimidade de um juízo de reprovação, pois o arbitrário processo crim i-
nalizador não perm ite perceber no crim inalizado um reforço ou uma
consolidação de valores universalmente válidos e aceitos142.
Embora a interação entre criminologia e dogmática penal se esta­
beleça m etodologicamente em planos distintos (Lei de Hum e), um a teoria
do delito que se pretenda democrática e adequada ao seu tem po não pode
encobrir a realidade pulsante da contemporaneidade marcada pelo plura­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

lismo cultural. Neste sentido, Márcia Dom etila Lima de Carvalho indica
que “a dogmática jurídica não pode ignorar a integração do direito em formações
sociais determinadas. O dogma da culpabilidade, quando da sua concretização, não
pode deixar de ter em mira, por exemplo, que o fato de um certo infrator participar
de uma certa subcultura, com determinados sistemas de valores, diversos dos eleitos
constitucionalmente, não pode, muitas vezes, ser-lhe imputado, porque resultante
das carências dos direitos soríais, necessários à soríalização, na cotformidade das
normas jurídicas impositivas” 143. D o contrário, a aplicação do direito penal
não será distinta das sanções militares executadas nas zonas de conflitos
armados, locais em que o único critério de legitimação da pena é o foto
de que o direito válido a ser aplicado é o determ inado pelos Tribunais dos
vencedores. A metáfora de Tobias Barreto da pena como guerra ganha uma
nova dimensão nesta representação.

141 TANG ERINO , Culpabilidade, p. 258.


142 Zaffaroni é provocativo ao confrontar o valor da reprovação com os dados da crimi­
nalização: “o rnmxito de culpabilidade normativa — a reprovação personalizada — entrou em crise
com a destyitimação do exerício do poder prnal. A seletividade do sistema penal neutraliza a rqrro-
vaçw: ‘Por que a mim? Porque não a outros quefizeram o mesmo?’ são perguntas que a r^mvação
normativa não pode Ksponder” (ZAFFARONI, Em Busca das Penas Perdidas, p. 259).
143 CARVALHO, Fundamentação Constitucional do Direito Penal, p. 72.
7.8. Juízo de Reprovabilidade em Tensão: Secularização do
Direito

7.8.1. Se no plano filosófico o problema da culpabilidade está radica­


do no seu conteúdo material pela tensão entre livre-arbítrio e determinismo; se
no campo criminológico a crise da culpabilidade se verifica no monismo dos
códigos valorativos que orientam o juízo de reprovabilidade; na esfera jurídico-
-penal o questionamento da culpabilidade decorre da ausência defiltros efi­
cazes que garantam a sua laiadade.
Conforme é possível vertôcar na literatura crítica, a identificação da
culpabilidade como juízo de reprovação operacionalizou um giro inquisi-

NA C U L P W L I D A D E
tório na dogmática do delito no qual a reprovabilidade do ato se converteu
na possibilidade do julgam ento da personalidade do autor (suas opções,
suas crenças, seu com portam ento social, sua form a de ser).
Os modelos penais de autor são construções inquisitórias caracteri­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
zadas pela inobservância da s e c u l a r i z a ç ã o d o d i r e i t o e se manifestam
de duas formas bastante nítidas. Na primeira, a concepção de crime é
substancializada por premissas de ordem eminentemente moral, ou seja,
há um a fusão entre direito e moral que gera, no campo do ilícito, um a asso­
ciação entre delito e pecado. A pena, portanto, converte-se em um instrumen­

ÍCNÓSTICA
to de redenção aplicado contra o pecador, o herege, o itfiel, o inimigo da fé.
Apesar de esta forma de instrumentalização do direito penal reme­
ter em termos históricos ao medievo, fundamental lembrar que a grande

DA CONCEPÇÃO
maioria, senão a integralidade, dos sistemas penais vigentes nas ordens
políticas totalitárias do século passado foi estruturada sobre esta base.
Substitui-se a moral eclesiástica pela autoridade imposta pela ideologia
- PRC JEÇSCS

política dom inante e o herege se converte no subversivo, no inimigo interno.


Em modelos políticos de democracia débil regida pelo populismo punitivo,
a substancialização moral do delito pode ser percebida na identificação dos
autores de delitos como inimigos públicos, infames morais, párias ou vermes 221
sociais, não cidadãos. Assim, a punição é operacionalizada não contra o autor
de um fato extemo reprovável, mas dirigida contra um a identidade reprovável
apesar ou para além do foto.
A segunda possibilidade de experim entação de formas jurídico-
-penais não secularizadas é por m eio da edificação de modelos que aliam
direito e natureza, o que resulta, no campo do ilícito, na conversão do crime
em um a doença, isto é, em uma patologia individual. A sanção crim inal ad­
quire caráter em inentem ente profilático, voltada ã cura individual e à
higienização social. O sujeito é compreendido como detentor de persona­
lidade doentia que deve ser submetida à análise do laboratório crim inoló­
gico. Esta forma de compreensão do delito e do delinqüente encontra nos
modelos do positivismo criminológico correcionalista seu tipo ideal. A
atualização destas práticas ainda é perceptível na proliferação das imagens
dos desviantes como sujeitos perigosos, pessoas que têm um a natureza antis-
social potencialm ente inclinada para a prática de crimes.
Mas se as imagens históricas (tipos ideais) dos modelos jurídico-
-penais antissecularizados nos rem etem às experiências autoritárias, ao
mesmo tempo nos fornecem chaves de leitura para perceber formas sutis
pelas quais esta pulsão inquisitória se infiltra nas construções normativas e
teóricas aparentemente secularizadas (garantistas).
Neste sentido, é sempre salutar frisar que o inquisitorialismo — enten­
dido como tipo ideal contraposto ao garantismo — se constituiu, ao longo
da história dos sistemas penais, como o padrão, como a mais evidente
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

permanência nas formas de atuação punitiva. Diferentemente do que pos­


sa aparentar, a constância das práticas punitivas é a da reprodução das
formas inquisitoriais. Não por outra razão a inquisitio emerge como potên­
cia punitiva (potentia puniendi) em cada lacuna aberta e em cada contradição
aparente dos sistemas normativos, pois é o próprio fundam ento que estru­
tura a lógica tforma mentis) penal. A decorrência deste diagnóstico é a
pressuposição de que o exercício do poder punitivo, independente da boa
ou da má intenção dos seus atores, é potencialmente atentatório aos direitos
humanos, foto que reforça a necessidade do desenvolvimento de um a con­
cepção pessimista em relação aos poderes.
Conform e destacado em outro momento, pensar a lógica inquisitó­
ria como variável constante na configuração da estrutura penal repressiva
possibilita, inclusive, substituir a aparente dicotomia entre sistemas penais
inquisitivos e garantistas. Constatar a lógica inquisitória como a mais evi-
222 dente permanência possibilita identificar, nos sistemas jurídicos, nos seus
discursos de legitimação e nas suas práticas, graus de inquisitorialismos
(inquisitorialismo de alta e de baixa intensidade)144.

7.8.2. A potência antissecular da compreensão de culpabilidade como


juízo de reprovação é perceptível com maior nitidez na produção das regras

144 CARVALHO, Antimanual de Criminologia, pp.65-85.


e das metarregras de avaliação m o ra l do a u to r d o ilícito, ou seja, na
construção daquilo que pode ser definido com o m odelo de culpabilidade
pela conduta de vida. Neste aspecto, a hibridização das funções da pena
(modelos ecléticos) e a indexação da culpabilidade aos fins sancionatórios
correcionalistas representam um dos principais giros inquisitivos da dog­
mática penal m oderna.
Ferrajoli destaca que o correcionalismo provocou uma crise regressiva
no conteúdo da culpabilidade em decorrência de sua gradual substituição
pela noção de periculosidade145. A avaliação é possível de ser verificada em -
piricam ente sobretudo nos países de tradição jurídica da common law, que,
ao longo do século X X , adotaram sistema de penas indeterminadas, uni­

NA C U L P U H U D A D E
versalizando a lógica das medidas de segurança aos imputáveis.
Nos sistemas da civil law, notadamente em razão do apego ao prin­
cípio da legalidade, a estrutura da culpabilidade foi m antida em sua dupla
instrumentalidade: lim ite e medida da pena. A manutenção do sistema de

( 0 . NEGATIVA) D APENA
penas fundado na culpabilidade não significa, porém, sua imunização em
relação ao projeto político-crim inal correcionalista, muito menos a inter­
dição de aberturas ao modelo de periculosidade. Pelo contrário, a definição
da culpabilidade como reprovabilidade perm itirá que as premissas do
correcionalismo periculosista sejam gradualmente incorporadas no sistema

(ONÓSTICA
da teoria do delito e, consequentemente, no da teoria da pena.
A conversão da reprovabilidade em um juízo eminentemente moral,

DA CONCEPÇÃO
em ofensa ao postulado da secularização, é denunciada com precisão por
N ilo Batista: “Frank não ignorava que aquela palavrafeia (reprovabilidade), que
ele parecia recolher da linguagem da vida cotidiana, mas que instalava imediatamen­ - PR O JEÇ Õ ES
te uma conotação ética no juízo sobre a conduta do sujeito, estava emfranca colisão
com um dos pilares do penalismo ilustrado: a radical separação entre direito e
moral”™6. E conclui de forma taxativa: “não; simplesmente não é possível ope­ f—
rar uma culpabilidade &sencialmente concebida como reprovabilidade”,47.
Os temas relativos (a) à laicização do direito penal, (b) à inserção 223
constitucional do princípio da secularização, e (c) à tensão entre culpabi­
lidade de autor e culpabilidade de foto serão retomados no m om ento da
determinação da pena. O deslocamento deste debate para a fase dogmáti­

145 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 492.


146 BATISTA, Cem Anos de R^rovação, p. 170.
147 BATISTA, Cem Anos de Reprovação, p. 179.
ca de aplicação da pena se justifica, em primeiro lugar, em razão da m elhor
percepção, neste local, de sua instrum entalidade na efetivação de um
modelo de garantias. Em segundo lugar, im portante lem brar que a legis­
lação penal brasileira explicita, como prim eiro critério judicial de aplicação
da pena, a circunstância culpabilidade. Desta forma, em face da necessária
retomada da questão na dogmática da pena, o tratam ento destes relevantes
temas ocorrerá em meio ao debate das formas de controle da atuação ju ­
dicial na eleição dos parâmetros para imposição da sanção penal.

7.9. Bases para Delineamento da Concepção Agnóstica


(ou Negativa) da Culpabilidade: da Coculpabilidade
à Culpabilidade pela Vulnerabilidade

7.9.1. O desnudamento dos discursos de sustentação do sistema penal,


por meio da contraposição entre funções reais e funções declaradas, pro­
vocado pelas inúmeras vertentes da crítica criminológica e da dogmática
crítica deflagrou o desgaste e o esvaziamento dos modelos dejustificaçâo.
Neste cenário, uma c o n c e p ç ã o a g n ó s t i c a d e p e n a e d e c u l p a b i l i d a d e
orientada por uma política de r e d u ç ã o d o s d a n o s do punitivismo impli­
ca abdicar das aporias estabelecidas pelos discursos dejustificaçâo (questão:
por que punir?) com intuito exclusivo de delinear instrumentos de controle
das formas de punição (questão: como punir?).
A perspectiva agnóstica se sustenta na negativa de qualquer crença
no poder punitivo, sobretudo porque, na história dos sistemas penais, as
teorias legitimadoras da pena, por mais nobres e humanitárias que tenham
sido na sua apresentação teórica, sempre agudizaram violências em sua
operacionalidade. Agregado ao fim nobre sempre houve um correspon­
dente meio (instrumental) espúrio. As intervenções na identidade dos
criminalizados, justificadas pelo (falso) humamsmo das teorias correcio­
nalistas — “a psicologia dos ‘melhoradores’ da humanidade”148 (Nietzsche) —,
fornecem todos os elementos de sustentação desta tese.
A observação da realidade punitiva demonstrou que os ideais justi-
ficacionistas, por serem universalizadores de perspectivas idealistas (meta­
físicas), nunca encontraram conformidade com as práticas mundanas. Os

148 NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, p. 55.


objetivos retributivos ou preventivos invariavelmente geraram aporias,
questões sem saída, pois, além de suas premissas não serem passíveis de
comprovabilidade, o cumprimento dos seus fins sempre dependeu de como
o sujeito concreto que sofre o castigo (ou sua expectativa) transforma a sua
experiência (punitiva) individual em ação. A propósito, lembra Nietzsche
que o sentido do castigo é fluido e pode ser interpretado e utilizado para os
mais diversos propósitos: “cristaliza-se em uma espécie de unidade que dificil­
mente se pode dissociar, que é dificilmente analisável e, deve ser enfatizado, inteira­
mente indefinível —hoje é impossível dizer ao certo porque se castiga (...)”149.
Neste aspecto, nenhuma finalidade universalista e totalizante sobre­
viveria ã crítica; nenhuma função restaria im une ã constatação da produção
superlativa da violência unilateral das agências penais. Portanto, o meio,

NA C U L P U H U D A D E
por concretizar a incidência de violência institucional no sujeito, deve
receber maiores cuidados que os fins idealizados da pena150.
Conclui-se que, sendo os instrum entos punitivos (meios) em si
mesmos violentos, as suas justificativas (fins) acabam operando como nar­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
cóticos racionalizadores de sua programação. Abdicar das funções e cen­
tralizar a preocupação nas formas de punir, a partir do horizonte projeta­
do pela principiologia constitucional, talvez seja um a das únicas formas de
contração do poder irracional bélico (política redutora dos danos punitivos).
Redução de danos nos meios, a partir da absoluta descrença nos louváveis

(ONÓSTICA
fin s e nas romântiMs origens, representa a possibilidade de uma proposição
concreta de ação desconstrutora da lógica punitivista, pois “(...) quanto mais

DA CONCEPÇÃO
o conhecimento dispõe de meios, menos importa a preocupação com o objetivo, com
a jtnalidade. Para tantos fins, tantos meios”1=1.
- PR O JEÇ Õ ES

7.9.2. O últim o passo para superar o idealismo e o moralismo dos


modelos de culpabilidade elaborados no século passado, a partir de uma
f—

145 NIETZSCHE, Genealogia da Moral, p. 68.


225
150 A explicação que Klossowski procura dar ao et&no ntomo nietzscheano é significativa
para compreender o argumento: "os meios são mais importantes que o próprio sentido dado pela
consciência ao objetivo desejado, a inconsciência do objetivo o toma mais importante do que aquele
que foi conscientemente fixado. Isso explica porque a consciência dos meios é mais importante que a
consciência de um fim , sé os meios são wnscientes: ofragmento de wnsciência é apenas mais um meio
no desenvolvimento e na extensão da vida” (KLOSSOWSKI, Nietzsche e o Circulo Vicioso, p.
138). Em outra paráfrase, a de Camus sobre o niilismo de Nietzsche, épossívelsustentar
que “ser livre é justamente abolir osfin s” (CAMUS, O Homem Revoltado, p. 94).
151 KLOSSOWSKI, Nietzsche e o Círculo Vicioso, p. 168.
espécie de chamamento da teoria para a realidade marginal dos sistemas
penais latino-am ericanos, é a incorporação dos dados em p írico s de
seletividade na estrutura conceituai, notadamente dos filtros da crim ina­
lização secundária gerados pelo sistema punitivo.
A observação e a incorporação dos dados de seletividade do poder
punitivo —lente investigativa norm alm ente proporcionada pelas pesquisas
criminológicas —perm item dotar o sistema de garantias de ferramentas
úteis para identificar o nível de vulnerabilidade de determinadas pessoas
ou grupos ao processo criminalizador. A potencial vulnerabilidade decor­
re, na maioria das vezes, (a) do processo interativo de distribuição de eti­
quetas e de constituição de estereótipos e/ou (b) da espécie de crime ou
da forma pela qual a conduta é praticada.
Em relação ao prim eiro aspecto, a ideia de vulnerabilidade sofistica
a análise proporcionada pela teoria do etiquetamento. Na perspectiva do
labelling approach, o rótulo delitivo é designado ao indivíduo pelos veículos
*4*5 FU'. DlQU Dí éM lW j, NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

criminalizadores que configuram formal e informalmente o controle social


—p. ex., meios de comunicação, veículos culturais, agência policial, estru­
turas judiciais. A identificação do autor do delito com o rótulo promove
a essencialização do criminoso, ou seja, o sujeito é esquecido e no lugar da
sua identidade histórica é congelada a memória do ato delitivo. O efeito é
o de que o episódio crime se confunde com a própria vida do seu autor.
O rótulo do crime totaliza o passado, o presente e o futuro, sendo toda a
complexidade do homem reduzida a um único e exclusivo ato. Nas palavras
de Jock Young, estes mecanismos de essencialização procedem a partir de
uma ênfase hiperbólica a determinadas características individuais que per­
m item traçar contornos claramente delineadores que sugerem que o s a do
sujeito essencializado é fixo e irresoluto152.
Entretanto, este processo de rotulação não é unilateral; o rótulo não
é exclusivamente atribuído ao autor do delito como um status negativo
imposto. A ideia de vulnerabilidade percebe este processo como recíproco.
O sujeito não é necessariamente passivo ou omisso nesta relação, muito
menos o poder estigmatizador seria exercido unicamente pelas agências
formais e informais de punitividade sem um a correspondente contrapar­
tida da pessoa rotulada.

YOUNG, A Sociedade Exciudente, p. 143.


Conforme destaca Zaffaroni, em inúmeros casos há um esforço
pessoal para a vulnerabilidade153. Se por um lado o estado de vulnerabili­
dade é mais alto ou mais baixo conforme a correspondência ao estereótipo,
por outro “ninguém é atingido pelo poder punitivo por causa deste estado, mas sim
pela situação de vulnerabilidade, que é a posição concreta de risco criminalizante que
a pessoa se coloca”,54; “a seleção se produz em razão de uma situação de vulnerabi­
lidade, na qual, sem dúvida, o estado de vulnerabilidade exerce um importante
papel, mas não é suficiente. A periculosidade do poder punitivo se concretiza em
uma situafio particular, ou seja, quando uma pessoa atua para alcançar a situafio
concreta de vulnerabilidade”155.
A seletividade do sistema opera, portanto, não apenas em razão da

NA C U L P W L I D A D E
adequação de determ inadas pessoas aos estereótipos; igualmente ocorre a
habilitação do poder punitivo em casos grosseiros (criminalidade violenta).
Zaffaroni e Batista concluem que algumas condições facilitam o aumento
do índice individual de vulnerabilidade ao processo de criminalização,

( 0 . NEGATIVA) D APENA
porque “(a) suas características pessoais se enquadram nos estereótipos criminais;
(b) sua educação só lhes permite realizar ações ilícitas íosms e, por conseqüência, de
fácil deteqão e (c) porque a etiquetagem suscita a assunção do papel conespondente
ao estereótipo, com o qual seu comportamento acaba correspondendo ao mesmo (a
profecia que se autorrealiza) ” 156.

íC N Ó S TIC i
O grau de vulnerabilidade decorre, portanto, do maior ou menor
esforço individual de exposição ao processo criminalizador. Esforço que

DA CONCEPÇÃO
deflagra formas distintas de habilitação da periculosidade do poder punitivo.
Segundo Zaffaroni, em certas situações, determinadas pessoas realizam um
esforço muito grande para alcançar uma situação de vulnerabilidade, ou - P R C JE Ç fE S

seja, mesmo não havendo uma correspondência do status individual com


f—
153 Explica Zaffaroni que a periculosidade do sistema penal é maior contra homens, ado­
lescentes, jovens, desempregados, sem inserção estudantil, imigrantes, pessoas menos
inteligentes, ou seja, aqueles que correspondem melhor ã imagem negativa produzida 227
pelos meios de comunicaçâo.No entanto, não é em decorrência do fato de que a maioria
daspessoasse encontra em posição de vulnerabilidade que opoderpunitivo é habilitado
contra a população como um todo: “isto indica que não é o mero status ou estado de vulnera­
bilidade o que decide a seletividade criminalizante” (ZAFFARONI et al., M anual de DereAo
Penal, p. 516).
134 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I, p. 49.
133 ZAFFARONI et al., M anual de Derecho Penal, p. 517.
136 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I, p. 47.
os estereótipos delitivos, há um processo de exposição notável que viabi­
liza que o sujeito transponha as malhas de seletividade —p. ex., grandes
genocídios, grandes delitos econômicos. Zaffaroni menciona que, norm al­
mente, nestes casos, há uma retirada da cobertura, isto é, a blindagem
contra a incidência criminalizadora é desabilitada. Em outros casos, apesar
do alto grau de vulnerabilidade individual, são praticadas condutas que,
pela sua natureza, indicam um esforço para a seletividade criminalizante
—p. ex., homicídios brutais e agressões sexuais (atos toscos da crim inali­
dade). Por fim, o autor nota que a maior parte dos criminalizados não
realiza grandes esforços para alcançar a situação concreta de vulnerabili­
dade, pois parte de um estado bastante elevado que, por si só, viabiliza a
concretização do poder punitivo —p. ex., autores de crimes patrimoniais,
comércio de drogas.
7.9.3. U m dos prim eiros impulsos, no interior da teoria do delito,
com objetivo de compensar a desigualdade dos processos de criminalização
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

(seletividade) foi a elaboração da t e o r i a d a c o c u l p a b i l i d a d e . Baseado no


pressuposto de que a desigualdade do sistema é revigorada na operaciona-
lização do juízo de reprovação, Zaffaroni sustentava a possibilidade de
reduzir os espaços de punitividade a partir da constatação de que “reprovar
com a mesma intensidade pessoas que ocupam situações de privilégio e outras que se
encontram em situaçÕK de extrema pobreza é uma clara violação do princípio da
igualdade corretamente entendido, que não significa tratar todos igualmente, mas
tratar com isonomia quem se encontra em igual situação”157.
Assim, somente poderiam ser estabelecidos juízos isonômicos de
reprovabilidade individual pelo ato delitivo se, na análise do autor social­
mente referido, fosse constatado que existiu, por parte do Estado, ação
efetiva na distribuição de oportunidades, com a satisfação m ínim a dos
direitos fundamentais dos acusados. D o contrário, verificadas situações de
manifesta desigualdade, sobretudo de carências materiais (socioeconômi-
H8 cas), os parâmetros de valoração da culpabilidade se diferenciam em de­
corrência da diminuição do grau de autodeterminação do sujeito.
Na legislação penal latino-am ericana, inúmeros dispositivos legais
teriam incorporado a ideia da coculpabilidade138, entendida como um

187 ZAFFARONI, Sistemas Penales y Dere&os Humanos en América Latina, p. 59.


158 Segundo o relatório coordenado por Zaffaroni, os dispositivos legais que incorporaram
a coculpabilidade estabelecem causas de redução da pena em face da situação econômica
mecanismo de corresponsabilização do Estado pelo injusto em razão da
omissão na efetivação dos direitos fundamentais do autor do delito. A
responsabilização compartilhada se materializaria legalmente como causa
de dim inuição da pena. Nestas situações, “costuma-se dizer que há uma cocul­
pabilidade com a qual a prípria soríedade deve artór”1;>9.
Na legislação penal brasileira, não são poucos os institutos que re­
ferem, expressamente, a situação econômica do acusado como critério de
atenuação da pena. Mas em sua maioria dizem respeito às penas pecuniá­
rias. Em relação ã pena de m ulta, p. ex., o Código Penal (art. 60, caput e §
1-) possibilita ao juiz aumentar a pena em até o triplo quando constatado
que, em virtude de condição econômica favorável, a pena resultasse inefi­

NA C U L P t W U D A D E
caz. Em sentido idêntico os dispositivos do art. 10, Lei n. 8.137/90, que
define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações
de consumo —“caso o ju iz, considerando o ganho ilícito e a situação econômitó do
réu, verifique a insuficiência ou excessiva onerosidade das penas pecuniárias previs­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
tas nesta Lei, poderá diminui-las até a décima parte ou elevá-las ao décuplo”. O
art. 33 da Lei n. 7.492/86 estabelece que nos casos de crimes contra o
sistema financeiro, mesmo se a pena de multa for aplicada no máximo,
poderá o juiz estendê-la até o décuplo, se entender suficiente para repro­
vação e prevenção do delito.

(CNÓSTICA
Em apenas um caso a legislação penal brasileira define critérios
gerais de atenuação da pena em razão de déficits materiais decorrentes das

DA CONCEPÇÃO
omissões estatais. O art. 14, I, da Lei n. 9.605/98, dispõe que nos crimes
ambientais são circunstâncias que atenuam a pena o baixo grau de instrução
ou escolaridade do agente. N ote-se que, neste caso específico, o critério - PR O JEÇ Õ ES

ou dos déficits sociais do acusado — o art. 64, Código Penal colombiano, determina a f—
atenuação da pena em fece da indulgência; o art. 41, Código Penal argentino, prevê dimi­
nuição da sanção quanto maior for a dificuldade do autor para prover seu sustento ou de
famliares; o art. 38, Código Penal da Bolívia, art. 52, Código Penal do México e art. 51, 229
Código Penal do Peru, mencionam situações de diminuição de pena nos casos de dificul­
dades econômicas e sociais do réu; o art. 29, Código Penal do Equador, refere a indigência,
família numerosa e a feita de trabalho do imputado como causa atenuante; o art. 30,
Código Penal do Paraguai, estabelece vínculo entte a conduta do indivíduo e o seu estado
de miserabilidade. As referências são exemplificativas e remetem à legislação penal latina
da década de 1980, motivo pelo qual pode haver alguma desatualização dos dados. Sobre
o tema, conferir ZAFFARONI, Sistemas Penales y Deredws Humanos en A m ^ w Latina, p. 59.
159 ZAFFARONI e PIERANGELI, Direito Penal Brasileiro, p. 611.
sequer é econômico, mas socioeducativo160. Não obstante, na legislação
processual, a Lei n. 10.792/2003, ao reformular as regras do interrogatório
do acusado, estabelece a necessidade de o juiz perguntar sobre as oportu­
nidades sociais oferecidas ao acusado, indagação que, im plicitam ente,
projeta-se sobre a pena161.
Conclui Zaffaroni que “ao lado do homem culpado por seu fato, existe
uma coculpabilidade da sociedade, ou sqa, há uma parte de culpabilidade — da re­
provação pelo fato — com a qual a sociedade deve arcar em razão das possibilidades
sonegadas (...). Se a sociedade não oferece a todos as mesmas possibilidades, que
assuma a parcela de responsabilidade que lhe incumbe pelas possibilidades que negou
ao itfrator em comparação com as que proporcionou a outrns. O infrator apenas será
culpável em razão das possibilidades sociais que se lhe ofereceram”162.

7.9.4. A tese da coculpabilidade, porém, apesar de representar um


notório avanço no que tange ã análise da seletividade do sistema punitivo
e operar a partir de um necessário critério de justiça social na quantificação
da pena das pessoas e dos grupos marginalizados que com eteram delitos,
apresentou insuficiências significativas. Em decorrência destas insuficiên­
cias a c u l p a b i l i d a d e p e l a v u l n e r a b i l i d a d e apresenta-se como um cor­
retivo ã teoria da coculpabilidade.
Zaffaroni apresenta os eixos problemáticos da construção teórica
sobre a coculpabilidade. O prim eiro seria em decorrência de um a simpli­
ficação na relação entre pobreza e delito: “em principio, evoca o preconceito
que a pobreza é a causa do delito, ignorando que desde Sutherland (e m&mo antes),
sabemos que o delito permeia todas as camadas sociais” 163. Esta premissa, confor­
me o próprio autor reconhece, é tributária do pensamento etiológico so­

160 Sobre a aplicação do princípio da coculpabilidade no direitopenal brasileiro, inclusive


sobre formas de interpretação extensiva do critério de redução da pena, conferir CAR­
VALHO e CARVALHO, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 70-89, e CARVALHO, A
Co-re^onsabilidade do Estado nos Crimes Econômicos, pp. 149.
161 “Art. 187. O intenogatório será rnnstituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os
fatos. § lfi N a primeira parte o intenogando será perguntado sobre a nsidênàa, meios de vida ou
proftssw, oportunidades sociais, lugar onde exene a sua atividade, vitfa pregressa, notadamente sefoi
pKso ou pwcessado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve su^ensão
condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familians e sociais”
(Redação dadapela Lei n. 10.792, de ls.12.2003).
162 ZAFFARONI, Política Criminal Latinoamericana, p. 167.
163 ZAFFARONI et al., Manual de Derecho Penal, p. 513.
cialista do século passado. Embora enfatize importantes e relevantes ques­
tões sociais, que inclusive aum entam o grau de vulnerabilidade — a
culpabilidade pela vulnerabilidade não nega, mas aprimora a teoria da
coculpabilidade —, não deixa de se sustentar sobre um modelo causai de­
term inista (deteminismo economicista), em vários aspectos renovado pela
própria crítica criminológica dos anos 1970 e 1980.
A redução, sobretudo nos crimes patrimoniais, do fenômeno crime
ã explicação causai provocou um a espécie de romantização do delinqüen­
te, seja como um herói que resiste ã desigualdade do sistema econômico,
seja como uma vítim a do mesmo sistema capitalista excludente164. Inegável
que um dos efeitos do modelo econômico capitalista, em sua versão neo-

NA C U L P U J H .ID A D E
liberal globalizada, é a agudização da miséria e o aumento da m arginali-
zação social, situação que se projeta na amplificação do Estado penal e no
atual hiperencarceramento. N o entanto, embora a situação econômica seja
um dos fatores que efetivamente aumentam a vulnerabilidade para a prá­
tica de condutas contra o patrimônio, a redução da leitura do fenômeno ã

( 0 . NEGATIVA) D APENA
simplificação causai é deficitária. Aliás, conform e tem sido reiterado,
qualquer redução causal-mecanicista é insuficiente para com preender fe­
nômenos complexos como os derivados da criminalização.
Por outro lado, o olhar causal-economicista produz um efeito per­

(CNÓSTICA
verso que é o do aum ento dos níveis de criminalização, com a habilitação
do poder punitivo contra as pessoas de nível social mais alto, em um a in­
conseqüente (e tam bém simplificadora) inversão de seletividade. O fenô­

DA CONCEPÇÃO
meno da inversão da seletividade, bastante com um em projetos político-
-crim inais de algumas agências de punitividade, acaba sendo pautado pela
pressuposição de que as classes políticas e econômicas mais favorecidas
- P R C JEÇ Õ E5

seriam as responsáveis diretas pela miséria social, m otivo pelo qual devem
ser responsabilizadas de forma mais contundente. Trata-se, segundo a de­
signação de Scheerer, da manifestação dos empresários morais atípicos165 ou,

16‘ O diagnóstico é realizado com precisão porElena Larrauri: “a adoção do mawismo, com
sua primazia nas nlações materiais, leva em determinadas ocasiões a afim ar que este sistema econô­
mico é, porfim , o responsável pelo desvio. O capitalúmo aparece como causador da delinqüência, ao
basear-se em uma estmtura sodal desigual que marginaliza um amplo setor dapopultyifa do mercado
de trabalho e consequentemente do menado de consumo” (LA RRA URI, La Herencia de la Cri­
minologia Critica, p. 120).
165 O texto de Sheerer, denominado Empresários Morais Atípicos (1986), identifica como
alguns movimentos ou grupos sociais de defesa de processos de emancipação social e dos
segundo popularizado na literatura criminológica nacional, do fenômeno
da esquerda punitiva166. Zaffaroni verifica que este tipo de discurso produz
um direito penal de duas velocidades: “mais garantias (mais contenção do
poder punitivo) para o delito comum e menor& (menos contenção do poder punitivo)
para o delito organizado”167.
Ocorre que se o objetivo de um modelo agnóstico de pena (e de
culpabilidade) é o de desabilitar o poder punitivo, estabelecendo apenas
critérios de constrição da sua atuação irracional, incabível absorver qualquer
discurso orientado ao aumento dos níveis de punitividade, independente­
m ente do status socioeconômico do criminalizado. D o contrário, sempre
o sistema será orientado pela lógica bélica dos Tribunais de vencedores,
nos quais o grupo social ou a classe política que se encontra no poder ma­
nipula as regras político-crirnnais para crirnnalizar os inimigos vencidos.
Por outro lado, consigna Zaffaroni que a experiência histórica de­
m onstra que a excepcional habilitação do poder punitivo sempre acaba
sendo naturalizada, pois ao ser incorporada no fluxo com um da política
tem os seus efeitos banalizados. Por isso, “(...) toda dermgação de limitação ao
poder punitivo é um passo atrás em direção ao inquisitorialismo ”168.
Neste quadro, a tese da coculpabilidade é superada em direção ã
culpabilidade pela vulnerabilidade, em uma análise de responsabilização
baseada na relação entre dois fatores centrais: (1-) a posição de vulnerabi­
lidade do sujeito; (2 -) o seu esforço para atingir a situação de vulnerabili­
dade habilitadora da seletividade criminalizadora. A situação concreta de
vulnerabilidade —incluindo neste juízo a análise de maior ou m enor ade­

direitos humanos (p. ex., grupos feministas, movimentos ecológicos, coletivos em defesa
da igualdade racial, movimentos contra a homofobia) passaram, em determinado momen­
to, a defender o uso simbólico do direito penal, a partir de postulados eminentemente
morais. Segundo Larrauri, o que os converte em atípicos é o redirecionamento ocorrido
no seio destes grupos, pois de críticos do sistema punitivo “estes novos empresários morais
passaram a difindiro discutvo dominante (...) e a defenikro direito penal como um meio de proteção
— em vez de algo melhor que o direito penal — e a aceitar o papel preponderante do Estado para
configurar e impor um tipo de sociedade — em vez de conquistar e^aços de atuação autônomos da
inteijirência estatal” (LA RR A U R I, L a Herencia de la Criminologia Critica, p. 218).
166 KARAM , A Esquerda Punitiva, pp. 79-92.
167 ZAFFARONI et al., M anual de Derecho Penal, p. 514.
168 ZAFFARONI et al., M anual de Derecho Penal, p. 514.
quação do sujeito aos estereótipos que produzem criminalização 169 acres­
cida do esforço para a vulnerabilidade —m aior ou m enor risco de exposi­
ção ã crim inalização em decorrência do com portam ento pessoal 170
redefine os parâmetros de análise da culpabilidade a partir da integração
dos dados empíricos de seletividade.
N o entanto, conforme destacado anteriormente, é exatamente este
esforço pessoal realizado para atingir um a situação de vulnerabilidade na
qual o poder punitivo se concretiza que se tom a passível de análise no
juízo de responsabilização (ou de reprovação), pois ninguém pode ser re­
provado pela sua situação ou estado pessoal de vulnerabilidade171.
Assim, a culpabilidade pela vulnerabilidade, ao incorporar a ideia
de coculpabilidade e pressupor a culpabilidade de foto, apresenta-se como

NA C U L P W L I D A D E
uma alternativa ã culpabilidade como reprovação em todas as suas crises
(idealista e moralista).
7.9.5. O prim eiro caminho para delinear um a concepção ag n ó s­

( 0 . NEGATIVA) D APENA
tica de cu lp ab ilid ad e percorreu as crises dos seus fundam entos e os
efeitos decorrentes da instrumentalização dogmática. A exposição da cri­
se forneceu uma pauta negativa daquilo que não poderia ser incorporado
ao juízo de responsabilização em um sistema jurídico-penal de garantias
conformado ao paradigma do Estado dem ocrático de direito. Esta prim ei­

íC N Ó S TIC i
ra tarefo metodológica procurou construir hipóteses mínimas para a defi­
nição de um modelo de responsabilidade penal em harm onia com a princi-

DA CONCEPÇÃO
piologia republicana, que delimita a estrutura secularizada dos modelos de
direito penal do fato.
Conform e foi possível perceber nas inúmeras perspectivas de crítica - PRC JEÇSCS

ã culpabilidade, alguns pontos de debilidade ganharam certa estabilidade


f—
169 A posição de vulnerabilidade consiste "no risco ou perigo que a pessoa corre só por pertencer
a uma classe, grupo, estrato soáal, minoria etc., sempre mais ou menos amplo, am o também por se
encaixar em um estenótipo, devido às caracterkticas que a pessoa recebeu” (ZAFFARONI, Em 233
Busca das Penas Perdidas, p. 270).
170 O esforço para a vulnerabilidade corresponde aos comportamentos particulares que
aumentam o risco da criminalização como, p. ex., o contato anterior com osistema penal:
"considerando que o contato com o sistema penal, geralmente, costuma fixar papéis, os contatos an­
teriores com o sistema penal tomam cada vez menor o esforçopara alcançar a situação vutneráwl, pelo
que, menor resposta criminalizante arresponderá por parte da agência judicial (ao contrário do que
normalmente se defende)" (ZAFFARONI, Em Busca das Penas Perdidas, p. 273).
171 ZAFFARONI, Culpabilidad por la Vulnerabilidad, p. 7.
na teoria crítica do direito penal e na crítica criminológica. O primeiro diz
respeito à dificuldade de fundamentar um conteúdo material de culpabilidade
em decorrência dos idealismos e da indemonstrabilidade das teses deter­
ministas e indeterministas; o segundo é relativo à insustentabilidade da ideia
de reprovabilidade (a) em razão da dificuldade de sustentação de valores
universais em sociedades pluralistas e multiculturais e (b) em face do seu
desvirtuamento antissecular em formas de culpabilidade de autor.
As críticas ã construção do conceito de culpabilidade pela dogmá­
tica penal ao longo do século passado podem ser identificadas, portanto,
em dois polos específicos: idealismo e moralismo.ldealista, porque os proble­
mas relativos ã tensão liberdade versus determinação adquirem o mesmo
caráter metafísico da tentativa de estabelecer um juízo de reprovabilidade
a partir da consagração de determinados valores como universais. Note-se,
inclusive, que esta forma mentis metafísica é um a constante na teoria dog­
mática do direito penal, especialmente na teoria do delito, desde a form u­
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

lação da concepção de bem jurídico, como síntese dos valores sociais a


serem protegidos pelos processos de criminalização (materialização na ti­
picidade do sentido de reprovação universal)172, ã invenção do homúnculo
normalis173, como padrão de referência para o juízo de reprovação. Moralis­

1,2 Nestesentido, pertinentes as considerações de Davi Tangerino ao deslocar para a con­


cepção de bem jurídico as críticas criminológicas da teoria do etiquetamento: “á ideia de
pluralidade normativa, desenhada pelas teorias das subculturas criminais, adidona ao labeling ap-
proach um novo ingrediente: não existem pmpriamente valores perse, porém valores de quem observa
contrastados com os daquele que é observado. Essa mudança paradigmática desloca ofom da axiologia
para o do poikr de definir situações <nmo desviantes ou não. Reforça, assim, a aítica à universalida­
de axiolégica dos bens jurídicos, na medida em que despe ainda mais o fenômeno criminal de quali-
tfaiks intrínsecas, a saber, essendalmente, do crime wmo lesão a um valor que ‘é’, adotando-se antes a
perspectiva do crime como sendo uma ação 'tomada como’ lesiva àquilo que se mostra, do ponto de
vista discursivo, como um valor 'assumido como sendo’” (TANGERINO, Culpabilidade, p. 154).
173 Em relação ã ideia de homem médio a própria dogmática penal operou a desconstrução
desta concepção metafísica. Segundo Hassemer, "o homem médio, pelo qual se mede a capa­
cidade do awsado no momento da valoração de sua culpabilidade, não é um homo, mas um ho-
munculus, uma imagem ideal, e somente no sentido metafísico podemos considerá-lo como um 'fe­
nômeno (HASSEMER, Fundamentos dei Detvcho Penal, p. 288).
R ealejr. sustenta que “o homem médio é um homem impossíwl, omado por qualidades e
defeitos desrnnexos, distante da situação concKta na qual se realizou a ação que se julga. O ju iz
deveria sair de si mesmo para construir um homem médio, colocá-lo na situação concreta e julgar,
paradoxalmente, à luz deste critério, qual o poder de um ente ideal, a fim de estabelecer a exigibi­
ta, porque determ inado código de valores é transfigurado politicamente e
instrumentalizado dogmaticamente para estabelecer os critérios do juízo
de reprovabilidade. Critérios que invariavelmente são estabelecidos a par­
tir de premissas extra ou metajurídicas (metarregras) baseadas em estereó­
tipos que incidem sobre a identidade do autor.
Neste sentido, operando nas lacunas e nas contradições dos discur­
sos de fundamentação, foi possível extrair um a pauta negativa (agnóstica)
que se constitui a partir do abandono da reprovabilidade e da afirmação
da ideia de responsabilidade penal. Responsabilidade penal desvinculada,
porém, de qualquer finalidade sancionatória positiva.
A guia orientadora é proposta por Juan Bustos Ram írez: “culpabili­

NA C U L P U H U D A D E
dade é responsabilidade, não reprovabilidade”m . Neste sentido, Nilo Batista
afirma que “(...) nada perderíamos se passássemos a designar, na teoria do delito,
a culpabilidade por qualquer outro rótulo, como responsabilidade ou imputabilidade
jurídiw, desde que integrada p eh imputabilidade, p eh consáétáa (ao menos potenáal)

( 0 . NEGATIVA) D APENA
da ilicitude e pela exigibilidade da conduta juridicamente requerida (ou seja, pelos
mesmos elementos que hoje integram a culpabilidade). Seja como princípio básico a
orientar toda a construção teórica, isto é, como estrato autônomo do conceito analíti­
co de crime, habilitador e limitador da pena para o sujeito do injusto, os conteúdos
daquilo que se chama tradicionalmente culpabilidade são indeswrtáveis. Mas outor­

(ONÓSTICA
gar ao juízo de culpabilidade o sentido de reprovação, isso é mais do que deswrtável:
atraiu um moralismo vulgar inadmissível no estado de direito erigido a partir da
dignidade da pessoa humana, cuja pedra angular reside em sua autonomia moral”175.

DA CONCEPÇÃO
Nas lições de Nilo Batista a estratégia resta claramente demonstrada:
extrair as hipóteses de julgam ento moral não significa extirpar os elemen­
tos que atualmente compõem a culpabilidade. Todavia, filtrar a culpabili­ - PR O JEÇ Õ ES

dade dos juízos morais implica necessariamente em abdicar da orientação


antissecular fornecida pelo modelo de reprovabilidade. f—
O segundo esforço, após a delimitação da pauta negativa e da pro­
jeção da culpabilidade como responsabilidade, foi o de incorporação da
235

lidade ou não do agir concreto do agente. Tal operação resultaria em um abstracionismo, passando
por várias etapas, o que desfigura o real” (REALE JR ., Instituições de Direito Penal I, p. 182).
Na mesma linha de raciocínio, TOLEDO, Princípios Básicos de Direito Penal, p. 232;
TAVARES, Direito Penal da Negligência, p. 137; DÁVILA, Crime Culposo e a Teoria da
Imputação Objetiva, pp. 92-98.
174 A pud BATISTA, Cem Anos de Reprovado, p. 180.
175 BATISTA, Cem Anos de Reprovação, p. 180.
experiência empírica da seletividade do sistema penal, geralmente exposta
pela criminologia, nas categorias dogmáticas. Neste sentido, a adesão ã
perspectiva da culpabilidade pela vulnerabilidade representa um chama­
m ento da dogmática penal ã realidade na qual o sistema opera.
A tese da culpab ilidad e pela v u ln erab ilid ad e se estabelece a
partir de dois pressupostos. Primeiro, pela afirmação da culpabilidade pelo
fato; segundo, com o reconhecim ento do legado positivo da teoria da
coculpabilidade. Neste sentido, segundo Zaffaroni e Batista, se a culpabi­
lidade pelo fato indica o limite m áximo do poder punitivo habilitável,
atuando como mecanismo de contenção quantitativa da irracionalidade
punitiva, a culpabilidade pela vulnerabilidade fornece elementos para re­
dução de sua incidência. Apresenta, pois, inegáveis vantagens em relação
aos demais sistemas de culpabilidade: “(a) modifica a indicação que resulta da
pura culpabilidade de ato sem afetá-la quanto àfunção redutora que deve cumprir
na teoria do delito; (b) prescinde de indagar-se se é culpabilidade de ato ou de autor,
*4*5 FU'. DlQU Dí aSdSaliH NÍ RFITO I IWlSh^BLÍlVI

uma vez que só pode dispor de efeito redutor; (c) não legitima o exercício do poder
punitivo, mas tão somente — ao implicar o esgotamento do espaço de poder dedsório
da agência — a decisão” 176.
Em síntese, ao agregar os dois movimentos anteriormente expostos
—apresentação das crises e adesão ã culpabilidade pela vulnerabilidade —,
é possível definir alguns critérios delineadores de uma concepção agnós­
tica (ou negativa) de culpabilidade, visualizada como responsabilidade ou
imputabilidade e que incorpore os dados empíricos da seletividade crim i­
nalizante do sistema penal:

(Ia) Entender a arbitrariedade da eleição de valores universais: os valores


traduzidos dogmaticamente como bens jurídicos (criminalização primária)
ou como critérios de valoração da reprovabilidade (criminalização secun­
dária) não se sustentam nas sociedades complexas pluralistas e m ulticultu-
230 rais, conforme destacado pela teoria do pluralismo jurídico, pela teoria do
etiquetamento e pela criminologia cultural.
(2a) Admitir a seletividade da programação criminalizante do sistema penal :
o processo de imputação de comportamentos ilícitos (criminalização se­
cundária) ocorre a partir dos filtros estabelecidos pelas agências penais
(cifras ocultas da criminalidade), fator que descarta qualquer possibilidade

1,6 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro II, v. I,p . 65.


de responsabilização fundada na aparente igualdade da criminalização,
segundo demonstrado pela criminologia crítica.
(3-) Aceitar a vulnerabilidade de pessoas e de grupos sociais: é perceptível
empiricamente nos dados de prisionalização que a criminalização (secun­
dária) realizada pelas agências do sistema penal atinge pessoas e grupos
sociais vulneráveis —vulnerabilidade que se estabelece em decorrência de
condições socioeconômicas, etárias, étnicas, de gênero e de opção s^ u a l —,
condições que interditam juízos paritários de responsabilização.
(4a) Verificar o distinto impacto que a (possibilidade da) pena produz nas
pessoas: a sanção como expectativa é uma dentre as inúmeras circunstâncias
que podem influenciar a prática ou a abstinência de atos ilícitos, sendo que

NA C U L P U H .I D A D E
a sua experiência concreta produz distintos efeitos nas pessoas, constituin­
do-se a relação entre a pena e o seu destinatário um processo personalís­
simo que torna insustentável qualquer fundam ento universalista ou tota-
lizador (corretivo, intim idatório, dissuasivo).
(5a) Reconhecer a violência produzida com a aplicação e a execução da pena:

( 0 . NEGATIVA) D APENA
se qualquer forma de sanção, em decorrência do seu caráter coercitivo,
implica em violência, a pena criminal caracteriza-se como o ato de maior
conteúdo aflitivo na programação das agências de controle social formal,
motivo pelo qual necessita ser considerado no processo de responsabilização.

(ONÓSTICA
( ^ ) Compreender o caráter paternalista e higienista da pena correcional: o
desenvolvimento e a consolidação do correcionalismo no século passado
induziram a teoria penal a produzir um significado positivo para as penas,

DA CONCEPÇÃO
ocultando os dados empíricos revelados pela criminologia crítica que de­
m onstraram que esta forma de justificação legitimou a intervenção do
laboratório criminológico na personalidade do sujeito criminalizado, fator - PR O JEÇ Õ ES

que potencializou, na esfera da teoria do delito, o entendim ento da culpa­


bilidade como juízo de reprovabilidade. l—

O reconhecimento dos critérios acima exige que qualquer forma de


intervenção no campo punitivo, no âmbito da criminalização prim ária ou 237
secundária, deva ser pautada pelo absoluto respeito à identidade moral e à inte-
gridadejlsica do sujeito responsabilizado. Esta é a diretriz ou a hipótese central
que guiará o desenvolvimento dos critérios de aplicação e de execução da
pena.
Desde estes pressupostos é possível retom ar a definição de culpabi­
lidade sugerida anteriorm ente por Zaffaroni: “ [culpabilidade] seria o juízo
necessário para vincular de forma personalizada o injusto ao seu autor e, em cada
caso, operar como prinápal indicador do máximo da magnitude do poder punitivo
que se pode exercer sobre este sujeito. Este juízo resulta da síntese de um juízo de
reprovabilidade baseado no âmbito de autodeterminação da pessoa no momento do
fato formulados conforme elementos formais proporcionados pela ética tradiríonal)
com o juízo de reprovação pelo esforço do agente para alwnçar a situação de vulne-
rabiliifade em que o sistema penal concretizou sua periculosidade, descontando o
correspondente ao seu estado de vulnerabilidade”177.

V1 ZAFFARONI et al., Manual de Dere&o Penal, p. 520.


P arte I I I
PENA E CONSTITUIÇÃO: FUNDAMENTOS
CONSTITUCIONAIS DE LIMITAÇÃO DO
PODER DE PUNIR
4
4

8 - PRINCÍPIO DA SEC U LAR IZA Ç ÃO : CONFIGURAÇÃO


DO SISTEM A DE PENAS E DE MEDIDAS DE
SEGURANÇA NO DIREITO PEN A L B RASILEIRO

8 .1 . Principio da Secularização e o Direito Penal na Modernidade

8 .1 .1 . O term o s e c u l a r i z a ç ã o designa os processos pelos quais a


cultura ocidental, a partir do século XV, produziu uma cisão entre a m o­
ral eclesiástica e as doutrinas filosóficas - processo igualmente nom inado
como laicização do saber. N o campo do conhecimento científico m oder­
no (inclusive nojurídico), significa a ruptura, (em tese) radical e irrever­
sível, com a legitimação teológica das formas de produção do saber.
Enrique Dussel, ao realizar a genealogia da categoria secularização,
delimita como m arco fundamental do movim ento de laicização do saber
científico a obra de Nicolau de Cusa, D eD octa Ignorantia (1440), posterior­
mente densificado na Crítica da Razão fara (1781), de Kant, atingindo seu
apogeu nos trabalhos de Feuerbach, A Essência do Cristianismo (1841), e de
Nietzsche, Assim falou Zarathustra (1883)1.
N o campo dos saberes e das práticas punitivas, o processo seculari-
zador que emerge com a M odernidade é resultado, sobretudo, da reação
hum anista contra o estilo inquisitório. A explicação dos fenômenos m unda­
nos por meio das doutrinas eclesiásticas e as fundamentações teológicas do
poder político e do saber científico (jusnaturalismo teológico) vincularam,
ao longo do medievo, as categorias direito e moral, resultando, no campo
particular do saber penal, a associação entre delito e pecado. A conseqüência

1 DUSSEL, Da Secularização ao Secularismo da Ciência Européia, desde o Renascimento até


o Iluminismo, pp. 265-267.
desta justificação moral da política crim inal, característica dos procedi­
m entos persecutórios inquisitoriais, perm ite com preender a lógica dos
sistemas penais autoritários, sobretudo das formas de sua instrum entaliza­
ção pelos atores das agências punitivas.
O processo secularizador perm itiu, na M odernidade, um a refunda-
ção antropológica da legitimidade do político jusnaturalism o antropoló­
gico), circunstância que, segundo Canotilho, conduz ao reconhecimento
dos direitos naturais do indivíduo e, em conseqüência, a um a concepção
universalizadora de direitos hum anos2"3.
8.1.2. Os valores da tolerância e do respeito ã diversidade, que se
desdobram da ideia de secularização, definem uma nova racionalidade
jurídico-penal que será moldada a partir de um a m atriz radicalmente
oposta ao inquisitorialismo, identificada como s i s t e m a d e g a r a n t i a s ou,
simplesmente, garantismo penal.
A justificação e a configuração do direito a partir da moral ( s i s t e m a
i n q u i s i t o r i a l ) não apenas possibilitaram a ingerência do sistema punitivo
na vida íntima e privada das pessoas, mas ampliaram as teias da persecução
crim inal ã esfera do pensamento, das convicções, das crenças e das opções
individuais. Assim, ao agregar moral e direito, o estilo inquisitório consagrou
uma espécie híbrida de ilícito, parcialmente eclesiástico (pecado) e par­
cialmente civil (delito), representada pelo conceito de heresia. O crim ino­
so (ou o herege) seria, portanto, um objetor de consciência, alguém que
professa uma verdade estranha e que, por ser oposta àquela consagrada pela
ordem, revela a sua perversidade (periculosidade). Não por outra razão o
significado de heresia aposto no Directorium Inquisitorum (Manual dos In­

2 CANO TILHO , Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 351.


3 Embora sejam utilizadas, em alguns momentos, a divisão dos direitos humanos em ge­
rações (eras) e a ideia de universalização, a orientação do trabalho compartilha a perspec­
tiva crítica (teoria crítica dos direitos humanos), desenvolvida, sobretudo, por Joaquín
Herrera Flores e David Sánchez Rubio. Neste sentido, conferir SÁNCHEZ RUBIO,
A cera de la Democracia y los Derechos Humanos, pp. 63-99; H E R R E R A FLORES, Hacia
una Visián Com plya de los Dere&os Humanos, pp. 19-78; e SENENT DE FRUTOS, Notas
sobre una Teoria Critica de los Derechos Humanos, pp. 117-129.
Sobre o diálogo entre a perspectiva crítica dos direitos humanos e o direito penal (de
garantias), conferir CARVALHO, A ntim anual de Criminologia, pp. 107-130; SÁNCHEZ
RUBIO, Inversión Ideológica y Detvcho Penal M ínimo, Decolonial, Intenultural y Antihegemó-
nico, pp. 137-162; W U N D ER LICH , Sociedade de Consumo e Globalização, pp. 41-61.
quisidores, 1376) —obra de referência dos Tribunais do Santo Ofício na
Península Ibérica —é o de eleifio, de adesão de uma doutrina falsa em de­
trim ento da verdadeira.
Segundo Nilo Batista, “ (...) o direito penal da Inquisição épor excelência
o direito penal da intervenção moral, que muitos séculos antes da lobotomia viveu
a mesma perigosissima aventura de propor-se uma cirurgia comportamental. A cri­
minalização da heresia e seu tratamento procedimental e penal correspondem exem­
plarmente a essa aventura, porém o mais permanente de seus efeitos nada tem a ver
com os variados conteúdos das ofensas ao pensamento ortodoxo, e sim com a afirma­
ção da legitimidade e do sucesso intervenção penal em tais tzsos”4.
Se na lógica inquisitorial o hom em pode ser punido pelas suas con­
vicções pessoais (malum quia peccatum), o pensamento laicizado restringe
aos aparatos formais de controle social a possibilidade de punir exclusiva­
mente as condutas externas, previamente definidas como ilícitas (malum
quia prohibitum) e que resultam em efetivo dano. Em contraponto ã con­
cepção substancialista de ilícito (mala in se), o direito penal da M oderni­
dade consagra, como mecanismo de controle dos direitos contra os poderes,
um m odelo formal e restrito (mala prohibita) de criação das possibilidades
de incriminação (criminalização), sua comprovação (processamento) e sua
conseqüente punição.
Destaca Luis Alberto Warat, ao analisar os princípios axiológicos
derivados do princípio da culpabilidade, que este “(...) prindpio de Índole
liberal [princípio da secularização], efundamentador do modelo napoleônico de
direito, desqualifca a imposição de pena baseada na culpabilidade estabelecida pela
conduta de vida, pela persomlidade ou pelo caráter do autor”5.
A laicização do direito penal impõe, portanto, um interdito de or­
dem política. Na política criminal, a conseqüência primeira da incorpora­
ção do princípio da secularização é a projeção de um m odelo minimalista
de intervenção. Se a ingerência punitiva na esfera do pensamento passa a
ser ilegítima, sendo admissível apenas a incriminação e o julgam ento de
condutas externas que provocam dano efetivo a bens jurídicos concretos,
o horizonte de criminalização passa a ser significativamente reduzido.
A perspectiva de um direito penal laico se consolida na imunização
da esfera da consciência. O direito de a pessoa ser (e continuar sendo) torna­
-se o postulado configurador de um a ordem política baseada na tutela da

* BATISTA, Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro, p. 240.


4 WARAT, Introdução Geral ao Direito I, p. 218.
intim idade e no respeito à diversidade. O direito à diferença, que nos
primeiros momentos de reivindicação da laicidade é identificado com a
possibilidade de livre desenvolvimento da personalidade na esfera privada,
posteriormente invade o espaço público, consolidando-se como direito de
m anifestar e de professar livremente verdades outras.

8.1.3. Conforme leciona Ferrajoli, a s e p a ra ç ã o e n tre o d ir e ito e

a consolida um sentido axiológico no campo do direito penal que


m o r a l

pode ser instrumentalizado em três perspectivas distintas, referentes ao


delito, ao processo e ã pena. Q uanto ao delito e aos problemas de justifica­
ção da lei penal, o princípio da secularização obstaculiza que o direito
penal nutra como finalidade a imposição ou o reforço de determinada
concepção moral, lim itando-se exclusivamente ã punição de condutas
danosas para terceiros. Afirm a Ferrajoli que “para que se possam proibir e
castigar condutas, o princípio utilitarista da s^aração entre direito e moral exige como
necessário o dano de um modo concreto a bens jurídicos alheios, cuja tutela é a úni­
PENAL B R A S IL E IR O

ca justificação das leispenais como técnicas de prevenção de sua lesão. O Estado,


em suma, não deve imiscuir-se coerdtivamente na vida moral dos cidadãos nem
tampouco promover coativamente sua moralidade, mas apenas tutelar sua segurança
impedindo que se lesem uns aos outros”6.
NO 3REIID

Em relação ao processo penal e aos problemas dejustificaçâo da juris­


dição, o caráter normativo da separação entre o direito e a m oral exige que
DE S EG U R A N Ç l

o juízo crim inal não verse sobre a personalidade do réu, mas apenas sobre
os fetos penalmente proibidos, passíveis de comprovação e de refutação
empírica. Portanto, o julgador “ (...) não deve submeter à indagação a alma do
imputado, nem deve emitir vereditos morais sobre sua pessoa, mas apenas investigar
FTNAS • MED WS

seus comportamentos proibidos. E um cidadão pode serjulgado, antes de ser castiga­


do, apenas por aquilo que fez, e não, como no juízo moral, também por aquilo
que é”7.
N o que diz respeito ã justificação da pena e ã sua execução, salienta
2W Ferrajoli que o princípio da laicização determ ina que a sanção penal não
deve ter fins ou conteúdos morais: “do mesmo modo que a previsão legal a apli­
caçãojudicial da pena não deve servirpara sancionar ou determinar a imoralidade, não
deve tampouco tender sua execução à transformação moral do condenado”8.

6 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 207.


7 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 208.
8 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 208.
8 .2 . Inserção Constitucional do Princípio da Secularização

8.2.1. Os constitucionalistas frequentemente entendem a seculari­


zação do direito como um a das principais características dos r e g im e s

sobretudo porque seria ínsita a esta forma de governo a


re p u b lic a n o s ,

ideia de lim ita ç ã o d o Segundo Dalmo de Abreu Dalla-


p o d e r p o lític o .

ri, para além de constituir-se como uma forma de governo que se opõe ã
M onarquia, o modelo republicano guarda estreita relação com o signifi­
cado de democracia substancial, indicando a necessidade de participação
popular ativa nas decisões políticas e de criação de formas de controle dos
atos dos poderes constituídos. Assim, contrária ã concepção ilimitada do
poder político, “a Repúblitó era expressão democrática de governo, era a limitação
do poder dos govet^ntes e era a atribuição de responsabilidade política, podendo,
assim, assegurar a liberdade individual”9.
Os vínculos entre os valores republicanos e o princípio da seculari­
zação são estabelecidos p o rj. J. Gomes Canotilho e Vital M oreira: “a se­
cularização do poder político e das instituições do Estado é um dos componentes mais
eminentes da herança cultural do prindpio r^ublicano” 10. Ao analisar a cadeia
principiológica que estrutura a Constituição portuguesa, os autores perce­
bem que o prim ado da laicidade do poder político não vem expressamen­
te afirmado, de forma autônoma, no texto constitucional, mas se desdobra
como uma dimensão ou um valor constitutivo da República, em que “os
principais corolários lógico-materiais do laicisismo surgem plasmados inequivocamen­
te na Constituição: a separação e neutralidade do Estado perante as Igrqas, a liber­
dade de consciênda, religião e culto, a não confessionalidade do ensino público ”".
Compartilha desse entendim ento Zaffaroni, ao sustentar ser a secularização
um princípio metajurídico, um referencial de legitimidade externa do
direito cuja caracterização é dada fundamentalmente pela adoção das for­
mas de governo republicanas12.
Não obstante ser compreendido como um metaprincípio de legiti­
midade ínsito às Constituições dos Estados republicanos e democráticos de
direito, é possível perceber, no ordenamento jurídico brasileiro, a incor­

5 DALLARI, Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 192.


10 CA NO TILHO e M O R EIR A , Fundamentos da Constituição, p. 89.
11 CA NO TILHO e M O R EIR A , Fundamentos da Constituição, p. 89.
12 ZAFFARONI, Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina, p.27.
poração formal da secularização por meio de uma cadeia de princípios
constitucionais correlatos que lhe conferem um significado explícito inti­
mam ente relacionado aos mecanismos de constrição dos poderes.

8 . 2 .2 . O p rin cíp io d a secularização n o d ireito brasileiro pode


ser associado não apenas ao pluralismo, ã fraternidade, ao pacifismo e ã
igualdade, afirmados no preâmbulo da Constituição, mas aos demais va­
lores considerados como fundamentos da República: soberania, cidadania,
dignidade da pessoa humana e pluralismo político (art. I 2 da Constituição).
Integra, pois, esta cadeia de princípios e de valores que constituem o núcleo
substancial do ordenamento jurídico nacional. Outrossim, em seu signifi­
cado particular de tutela das diferenças (igualdade material) contra as de­
sigualdades (igualdade formal), o princípio da secularização é concretiza­
do em inúmeros princípios referentes aos direitos e garantias fundamentais
que operam como verdadeiros interditos ã ingerência estatal na esfera do
FíMAS i MED IUS DE S E G U R «(JI ND 3REIID PENAL BRASILEIRO

íntimo. Neste sentido, os princípios da inviolabilidade da intim idade e o


respeito ã vida privada (art. 5S, X), da livre manifestação de pensamento
(art. 5° IV), da liberdade de consciência e de crença religiosa (art. 5° VI),
da liberdade de convicção filosófica ou política (art. 59, VIII) e da livre
manifestação do pensamento (art. 5e, IX). A integração destes valores e
princípios cria uma espécie de blindagem aos indivíduos contra qualquer
forma de intervenção direcionada a reforçar valores ou a im por um a moral
como dominante.
A configuração constitucional perm ite que, no campo do direito
penal, o princípio da secularização atue como um instrumento de obsta-
culização de ingerências moralizadoras, tanto no campo da criminalização
prim ária (elaboração de tipos penais criminalizadores) quanto no da cri­
minalização secundária (valoração judicial). Neste quadro, exerce im por­
tante função como ferramenta de avaliação dos níveis de legitim idade dos
atos dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), desqualificando
intervenções indevidas do sistema penal na esfera do íntim o decorrentes
(a) da criminalização de condutas que não afetam bens jurídicos de tercei­
ros, (b) de valorações judiciais sobre a personalidade ou as opções pessoais
do autor da conduta ilícita e (c) da imposição de sanções que objetivam a
reforma moral do condenado. Neste sentido, é possível afirm ar a compa­
tibilidade da ideia de laicização com a cadeia de princípios que conformam
os direitos de personalidade.
N o campo político-crim inal, os direitos de personalidade podem
ser identificados em duas dimensões: a esfera individual e a esfera da vida
privada. N o âmbito individual, o objeto de tutela é a livre manifestação
do pensamento, da liberdade de consciência, de crença religiosa, de con­
vicção política ou filosófica. N o âm bito da vida privada, o objeto de pro­
teção é a própria intim idade, a inviolabilidade do hom em no seu local de
vida. Conforme Cernicchiaro e Costa Jr., “os direitos concernentes à esfera
individual se destinam à proteção da personalidade dentro da vida pública. Trata-se
do ddadão no mundo, do ‘eu social’, rehdonado com seus semelhantes. N a vida
privada, cogita-se da inviolabilidade da personalidade dentro de seu retiro, em seu
mundo particular, ã margem da vida exterior. Trata-se do ddadão na intimidade ou
no recato, em seu isolamento moral, convivendo com a própria individualidade”13.

8 .3 . Principio da Secularização, Culpabilidade de Ato e


Culpabilidade de Autor

8.3.1. Durante a narrativa sobre os discursos penológicos foi possível


perceber que todas as teorias da pena, por serem teorias de justificação,
mesmo as mais limitadoras como a teoria do garantismo penal, geram um
aumento nos níveis de punitividade. Por maiores que sejam as restrições
impostas pelos sistemas teóricos ou normativos, quando as circunstâncias

- PRINCÍPIO OA SECULA RIZA ÇÃO


do caso concreto se subsumem aos discursos legitimadores, a tendência do
sistema punitivo é o excesso. A conclusão deriva, inclusive, de um alerta
posto como premissa fundante do garantismo que é o de que os poderes
punitivos se estruturam a partir da violação e não da garantia dos direitos
fundamentais.
Para Ferrajoli existe uma natural vocação antigarantista na gestão do
sistema penal, obscurecida pela “ideia de que basta um bom poder para satisfazer
as função de tutela auferidas ao direito” u. Esta assertiva configura uma lógica
inquisitiva que “exprime uma confiança ilimitada na bondade do poder e em sua 2 4 7
capaddade de atingir a verdade”, oposta ao pensamento garantista, que é pau­
tado pela “desconfiada ilimitada no poder como fonte autônoma de verdade”15.

13 C ER N IC C H IA R O e C O STA JR ., Direito Penal na Constituído, p. 221.


14 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 985.
15 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 619.
Exatamente em decorrência desta constatação, uma postura reticente e de
desconfiança no poder punitivo pode ser caracterizada em uma máxima ou
um princípio de inegularidade dos atos dos poderá punitivos 16.
Neste cenário é que a opção por uma teoria agnóstica da pena ex-
surge como possibilidade efetiva de constrição dos excessos punitivos. N o
entanto, para além dos possíveis efeitos práticos que decorrem de propostas
de resistência ao punitivismo, na realidade do sistema penal são as tradi­
cionais teorias dejustificaçâo, revisitadas e atualizadas pelos novos discur­
sos político-crim inais, que sustentam as práticas dos atores nas esferas le­
gislativa, judicial e executiva.
A relação visceral entre as teorias da pena e as teorias da culpabili­
dade —relação, segundo a dogmática penal, dejustificaçâo e de fundamen­
to da punição, respectivamente —perm ite indagar qual o tipo de perspec­
tiva que orienta o juízo de culpabilidade no atual estado do direito penal
ocidental marcado pela crise das narrativas de legitimação.
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

Na construção dos tipos ideais que representam os sistemas de di­


reito penal, Ferrajoli, a partir do princípio da secularização, contrapõe dois
modelos: garantismo e inquisitorialismo. Conforme visto anteriormente, estes
estereótipos de intervenção penal são projetados e instrumentalizados na
cadeia de intervenção punitiva a partir de dois polos político-crim inais:
direito penal mínimo e direito penal máximo. A característica do direito penal
de garantias, regido pelo princípio da separação entre direito e moral, seria,
portanto, a da constrição da habilitação do poder punitivo aos casos em
que se verifica um resultado externo produzido pela ação consciente do
autor de uma conduta punível, o que moldaria um modelo de d ireito
p en al do foto. Em sentido oposto, o sistema inquisitório seria identificado
nas práticas de criminalização e de valoração de atitudes internas do sujei­
to para além do feto e do seu resultado, isto é, os processos de crim inali-

248 16 Conforme destacado em outro momento, “como hipótese heurística de resistência à constân­
cia da inquisitio, o recurso á inversão dos pressupostos tradicionais fomece interessante chave de
leitura e instrumento sensível de avaliação da potência punitiva. Pwssupor a tendência constante das
agências de punitividade em violar os direitos fiindamenlais talvez seja a única forma de criar blin­
dagem prático-teérica contra as violações mesmas. Logo, em sendo o poder fandamentalmente exer-
dào e as práticas penais eminentemente violentas, a perspeãiva garantista seriafotjada pelo prindpio
da irregularidade dos atos dos poderes, expresso no absoluto pessimismo em relação ao agir persecutó-
rio. A pd-compreensão do sentido e do direcionamento do sistema r^ressivo possibilita aguçar a
sensibilidade e denunciar as lesões ã legalidade penal e processual penal decorrentes de inteyretações
narcotizadas pela falácia politicista” (CARVALHO, Antimanual de Criminologia, p. 82).
zação incidiriam diretamente sobre a identidade moral do infrator, situação
que configuraria um modelo de d ireito pen al d o autor.
Interessante perceber que esta categorização proposta por Ferrajoli
perm ite classificar as teorias dejustificaçâo da pena para além de suas fi­
nalidades sancionatórias imediatas, vinculando-as a m aior ou a menor
projeção do horizonte de criminalização. Desta forma, se é possível cons­
tatar a marca inquisitória nos modelos punitivos correcionalistas, notada-
m ente em razão de estarem ancorados em premissas contrasseculares que
autorizam o julgam ento moral do sujeito criminalizado, igualmente será
possível esta identificação (inquisitorialismo) nas doutrinas gerencialistas
e no funcionalismo-sistêmico contemporâneo, cuja centralidade punitiva
está na identificação dos riscos gerados por pessoas ou grupos. Em reali­
dade, os modelos de justtâcação (correcionalismo, gerencialismo e funcio­
nalismo), por mais distintos que possam parecer em seu desdobramento
prático-teórico, sustentam-se na categoria substancialista e antigarantista
periculosidade, marcador que de forma mais explícita identifica os modelos
inquisitórios.

8.3.2. U m dos principais sintomas diagnosticados pela teoria crítica


do direito penal, e que conduz ã verificação da constante crise da culpabilida­
de, é a ininterrupta reinvenção de práticas fundadas na culpabilidade de
a u to r (direito penal do autor), inclusive nos sistemas normativos delinea­
dos por um a concepção de culpab ilidad e de foto (direito penal do feto).
O alerta é realizado por Zaffaroni, quando verifica que “o conceito
de culpabilidade — como qualquer outm — pode adulterar-se e inclusive converter-se
em um engendro perigosissimo para as garantias individuais. Uma das adulterações
mais comuns consiste em olvidar que a culpabilidade é uma reprovação do ato e não
da personalidade do sujeito, r^rovação do que o hom em fez e não do que o homem
é, tentação na qual comfiequência se cai"17. Em sentido similar, Palazzo adver­
te que esta situação de crise da culpabilidade provoca o aumento dos “ (...)
riscos de eventuais involuções, riscos não menores do que os que podem conduzir, no
extremo oposto e segundo a perspectiva retributivista, a uma radicação da culpabili­
dade no comportamento intemo do réu, com uma conseqüente indiferença pelo mo­
mento objetivamente ofensivo do de/iío”18.

ZAFFARONI, Política Criminal Latinoamericana, p. 166.


18 PALAZZO, Valores Constitucionais e Direito Penal, p. 54.
O corre que, se a ideia de culpabilidade no Estado democrático de
direito se vincula a uma forma de responsabilização do sujeito imputável
pela prática de uma conduta lesiva, seria inexoravelmente ilegítima qualquer
espécie de juízo de censura moral. Todavia, apesar dos limites traçados pela
estrutura constitucional, o juízo de culpabilidade, no atuar cotidiano dos
atores do sistema penal, não raras vezes ingressa na esfera do íntim o como
juízo de reprovação e, no lim ite da patologia, opera como instrum ento de
valoração do caráter e/ou da periculosidade do autor do fato. E esta ten­
dência inquisitória de julgar moralmente o autor do fato, e não normativa-
mente o fato do autor, ganha especial relevo no direito penal brasileiro no
m om ento da aplicação da pena. Neste sentido destaca Rosa M aria Cardo­
so da Cunha que “no âmbito da individualizado da pena, a qual deveria se re-
laáonar com a culpabilidade pelo fato, examina-se sempre a rnlpabilidade do autor,
a sua personalidade culpável”19.
O princípio da secularização impõe, porém, que a culpabilidade
deva ser concebida como “(...) um elemento normativo (não do réu mas) do
PENAL B R A S IL E IR O

delito, a qual designa, antes de uma conotação psicológica, uma modalidade deônti-
ca (...)”20. A culpabilidade corresponderia, portanto, ao fato, e não ao ser,
constituindo-se em um juízo sobre o resultado lesivo, e não sobre a pessoa.
A propósito, neste cenário, Ferrajoli afirm a que seria inadmissível susten­
NO 3REIID

tar que “A é culpado”, mas tão somente que “A é culpado de uma ação”, visto
que a interioridade da pessoa não deve, em hipótese alguma, interessar ao
DE S EG U R A N Ç l

direito penal. A culpabilidade, conclui o autor, “não é nem um pensamento,


nem um aspecto interior da pessoa, como pretenderiam as orientações puramente
subjetivistas, mas um elemento de fato
FTNAS • MED WS

250

19 C U N H A , O Caráter Retórico do Prindpio da Legalidade, p.47.


20 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 499.
21 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 506.
4
4

9 - OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE
LIMITAÇÃO DAS PENAS E DAS MEDIDAS DE
SEGURANÇA NO DIREITO BRASILEIRO

9.1. Princípios Configuradores do Sistema de Garantias


9.1.1. Embora estruturado em um modelo positivo de justtâcação
da intervenção penal, o g aran tism o ju ríd ic o oferece im portantes instru­
mentos para modelar um a dogmática (conseqüente) das penas e das m edi­
das de segurança orientada ã limitação e ao controle do poder punitivo,
ou seja, para a tutela das pessoas contra o exercício das violências (pública
ou privada).
O modelo teórico garantista apresenta um a estrutura de princípios
que pretende assegurar o m aior grau de racionalidade possível ao sistema
jurídico-penal, dotando os aplicadores do direito de ferramentas idôneas
para assegurar o m áxim o grau de proteção dos direitos fundamentais.
Segundo Ferrajoli, o modelo de garantias seria caracterizado por
uma cadeia de princípios ou máximas que corresponderiam às restrições
necessárias ao poder punitivo nos Estados democráticos de direito. Assim,
não seria admissível a imposição de um a pena sem que tenha sido com eti­
do um feto, previsto legalmente como crime, de necessária proibição,
gerador de efeitos danosos a terceiros, caracterizado por um a conduta
humana exterior provocada por um a pessoa culpável. Imprescindível,
ainda, que o feto seja demonstrado e comprovado empiricamente pela
acusação, perante um juiz imparcial, em um processo público realizado em
contraditório, mediante procedimentos de controle formalmente estabe­
lecidos em lei1.

1 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 80.


A cadeia principiológica estabelecida por Ferrajoli concretiza-se em
onze categorias do direito penal material e do direito processual penal:
pena, delito, lei, necessidade, ofensividade, conduta, culpabilidade, juízo, acusação,
prova e defesa. As categorias seriam pré-requisitos, implicações deônticas ou
princípios sem os quais seria ilegítima a atribuição de responsabilidade e,
consequentemente, a aplicação de um a sanção, pois delas depende a idonei­
dade dos métodos de constatação do fato-crim e e de irrogação das penas.
O sistema de garantias seria estruturado, seguindo a tradição esco-
lástica, em dez princípios: nullapoena sine crimine; nullum crimen sine lege;
nulla lex (poenalis) sine necessitate; nulla necessita sine iniuria; nulla iniuria sine
actione; nulla actio sine culpa; nulla culpa sine iudicio; nullum iudicium sine accu-
satione; nulla accusatio sine probatione; e nulla probatio sine defensione. Decodi­
ficados pela dogmática, os princípios estruturam a teoria do direito penal
[teoria da lei penal (princípio da legalidade e princípio da necessidade); a
teoria do delito (princípio da lesividade e princípio da culpabilidade) e a teo­
PENAL B R A S IL E IR O

ria da pena (princípio da reprovação e da prevenção)] e a teoria do processo


penal (princípio do devido processo legal, princípio da inércia da jurisdição,
princípio do contraditório e princípio da ampla defesa).
Os princípios corresponderiam às regras do jogo do direito penal
NO 3REIID

nos Estados democráticos de direito e, em decorrência de sua gradual in­


corporação pelos textos constitucionais a partir de 1948, estabeleceriam
vínculos formais e materiais de validade das normas e das decisões sobre a
DE S EG U R A N Ç l

responsabilidade penal e a aplicação da pena.

9.1.2. M iguel Reale Júnior, consolidando a ideia de an co rag em


FTNAS • MED WS

co n stitu cio n al do sistema jurídico, sustenta que “o Direito Penal está limi­
tado negativamente pela Constituição, devendo aíer-se a estes princípios, não vio­
lando os valores constitucionais, mas por eles pautando-se”2.
A principiologia constitucional que modela o sistema garantista
252 define uma estrutura limitada de poder (princípio de intervenção m ínim a
ou minim alism o penal), opondo-se aos modelos de direito penal autori­
tários caracterizados “(...) pela debilidade ou ausência de algum ou de alguns
destes limites à intervenção estatal”3. Se a ausência de freios à atuação do sis­
tem a punitivo é oposta ã ideia de Estado de direito —“entendendo-se com esta

2 R EA LE JR ., Instituições de Direito Penal I, p. 27.


3 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 81.
expressão [Estado de direito] um tipo de ordenamento no qual o poder público, e
especificamente o poder penal, é rigidamente limitado e vinculado pela lei sob o
aspecto substanríal (ou dos conteúdos penalmente relevantes) e sob o aspecto proces­
sual (ou das formas processualmente vinculantes)” —, em sentido reverso estaria
intim am ente harmonizada com os Estados absolutos ou totalitários —
“entendendo-se com tais opressões qualquer ordenamento onde os poderes públicos
sejam ‘legis soluti’ ou totais, isto é, não disciplinados pela lei, logo, destituídos de
limites e condições”4.
Os distintos modelos jurídicos traduzem opções político-crim inais
bastante evidentes em relação aos ônus e aos custos em jogo na atuação das
agências punitivas: “a certeza perseguida pelo direito penal máximo é que nenhum
culpado fique sem punição, à custa da incerteza de que algum inocente possa ser
punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo é, ao contrário, que nenhum
inocente seja punido, à custa da incerteza de que algum culpado reste impune. Os
dois tipos de certeza, e os custos ligados às respectivas incertezas, rfletem interesses
e opções políticas contrapostas: de um lado a máxima tutela da segurança pública
contra as ofensas ocasionadas pelos crimes, por outro, a máxima tutela das liberdades
individuais contra as ofensas geradas por penas arbitrárias"*.

9 - OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE LIM ITAÇÃO


9.2 . Principio da Legalidade dos Delitos e das Penas
9.2.1. A partir da experiência da Segunda Guerra, a elaboração da
carta de Direitos Hum anos da O N U (1948) representou um a resposta
hum anitária ao totalitarismo incorporada por praticamente todas as Cons­
tituições ocidentais. Assim, com a formalização dos d ir e ito s e g a r a n tia s

in d iv id u a is e como princípios fundamentais —direitos ante­


c o le tiv o s

riorm ente situados fora dos sistemas jurídicos e concebidos apenas como
direitos naturais —, é redefinida a teoria da validade das leis e dos demais
atos dos poderes públicos. Paralelamente, os clássicos princípios do direito 253
penal e do direito processual penal, voltados especialmente ã tutela das
liberdades individuais, são densificados. Estrutura-se, portanto, um a com ­
plexa cadeia de princípios de garantia voltada ã efetivação dos direitos
humanos (direitos individuais, sociais e transindividuais).

* FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 80.


5 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 83.
N o campo do sistema punitivo, a principal virtude da reafirmação
e da incorporação constitucional das garantias individuais foi a elaboração
de critérios negativos (limitadores) da atuação das agências punitivas (agên­
cias legislativa, judiciária e executiva). Isto não significa que pontualm en­
te os textos constitucionais tenham sido incapacitados de habilitar o poder
punitivo —aliás, na experiência constitucional brasileira esta questão fica
bastante clara com a presença de inúmeras cláusulas de criminalização,
como, p. ex., a punição da discriminação atentatória dos direitos e liber­
dades fundamentais (art. 5a, XLI); a inafiançabilidade e a imprescritibili-
dade da prática de racismo (art. 5° XLII) e da ação de grupos armados
contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5a, XLIV); a
vedação de direitos aos crimes definidos como hediondos (art. 5° XLIII);
a punição severa (qualificativo constitucional) do abuso, da violência e da
exploração sexual da criança e do adolescente (art. 227, § 4a), entre outros.
N o entanto, apesar das projeções criminalizadoras, fundamental perceber
que a cadeia de princípios garantistas que modela a estrutura normativa
PENAL B R A S IL E IR O

designa funções (dogmáticas) fundam entalm ente constritivas da atuação


punitiva do Estado.
A preocupação central na edificação de um m odelo jurídico-penal
de garantias, portanto, é a de delimitar estratégias normativas e dogmáticas
NO 3REIID

idôneas para m axim izar os direitos fundamentais, reduzindo o impacto


(danos) provocado pela incidência do poder punitivo na sociedade. Neste
sentido, o princípio da legalidade representa o primeiro e mais potente ins­
DE S EG U R A N Ç l

trumento (ou a primeira garantia) de controle dos atos dos poderes punitivos.
9.2.2. O art. 5a, X X X IX , da Constituição ancora o sistema jurídic
FTNAS • MED WS

brasileiro de crimes e de penas no p r in c íp io d a N o referido


le g a lid a d e .

dispositivo, a Constituição vincula a existência do delito e a possibilidade


da punição do ilícito ã lei anterior —“não há crime sem lei anterior que o defi­
na, nem pena sem prévia cominação legal”. É possível dizer, inclusive, que o
254 princípio da legalidade, em sua dimensão formal e material, é o pressupos­
to ou a condição sine qua non de um sistema jurídico democrático.
Ferrajoli entende o princípio da legalidade como um a “regra semân­
tica que identfica o direito vigente como objeto exaustivo e exclusivo da ríência penal,
estabelecendo que somente as leis (enão a moral ou outras fontes externas) dizem o
que é crime, e que as leis dizem somente o que é crime (enão o que é petódo)”6.

6 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p.370.


O princípio da legalidade pode ser desdobrado em duas regras de
legitimação (legitimação formal e substancial). A primeira, que pode ser
identificada como princípio da legalidade em sentido amplo, vincula a possibi­
lidade de reconhecim ento do crime à existência da lei penal, ou seja, a
previsão anterior da conduta proibida é a condição necessária e insubsti­
tuível para atribuição de responsabilidade penal e aplicação da sanção.
Trata-se de uma regra de divisão do poder punitivo que prescreve ao juiz
a possibilidade de declarar como delito somente as condutas que foram
reservadas ao legislador determ inar como puníveis. A segunda, denom i­
nada princípio da legalidade em sentido estrito (ou princípio da taxatividade),
define um conjunto de técnicas e prescrições semânticas para a qualificação
de um a conduta como punível. Seriam preceitos normativos de formação
da linguagem penal que prescrevem ao legislador o uso de termos de ex­
tensão determ inada na construção dos tipos penais para que, em m om en­
to posterior, seja possível sua aplicação judicial. Segundo Ferrajoli, “o
prindpio convenciomlista da mera legalidade [legalidade em sentido amplo] é
uma norma dirigida aos juizes, a quem prescreve que considerem crime qualquer
fenômeno livremente qualificado como tal pela lei; o prindpio cognitivo de estrita

- OS PRINCÍPIOS c o n s t it u c io n a is de l im it a ç ã o
legalidade é uma norma metalegal dirigida ao legislador, a quem prescreve uma
técnica específica de qualificação p em l idônea que deverá garantir, com a taxativida­
de dos pressupostos dapena, a decidibilidade da verdade de sua enundação”7.
Logicamente que a redução das hipóteses de incriminação à matéria
legislada não exclui o uso das demais fontes do direito da interpretação
jurídico-penal. O recurso ao direito consuetudinário, à jurisprudência e
ao direito comparado é plenamente adrnssível em direito penal. Sua ve­
dação, porém, é restrita aos casos de interpretação criminalizadora ou
penalizadora, e não às técnicas de descaracterização do delito ou de exclu­
são da pena, possibilidades perfeitamente compatíveis com o princípio da
legalidade no Estado de direito.
Assim, é absolutamente lícito afirm ar a possibilidade de flexibiliza- 255
ção ou relativização da legalidade penal; no entanto, apenas se esta flexi­
bilização projetar um a ampliação dos horizontes de liberdade. Neste sen­
tido não se podem esquecer as inúmeras construções dogmáticas que
potencializam o uso das fontes materiais e da analogia in bonam partem,
como, p. ex., as causas supralegais de exclusão da tipicidade (princípio da

7 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 71.


insignificância e da adequação social), da ilicitude (consentimento do
ofendido) e da culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa e direito
de resistência).
Desta forma, uma construção dogmática ancorada na Constituição
possibilita, ao mesmo tempo, a afirmação e a flexibilização da legalidade
instituída. Nas palavras de A m ilton Bueno de Carvalho, a interpretação
garantista do princípio da legalidade opera em dúplice diretiva: (a) na
direção punitiva, a interpretação tem força centrípeta, isto é, a imantação
hermenêutica é para o núcleo do texto, com o uso restritivo da legalidade;
e (b) na direção libertária, a força hermenêutica deve ter potencialidade
centrífuga, dirigida para fora, com olhar extensivo dos direitos e garantias8.
Segundo W underlich, esta (re)interpretação criativa dos direitos e
das garantias constitucionais fonda uma dogmática crítica problematiza-
dora que contextualiza o objeto de intervenção no seu tem po e no seu
espaço, circunstância fundamental para a edificação de uma práxis judicial
PENAL B R A S IL E IR O

condizente com a tutela das liberdades públicas no Estado democrático de


direito9.

9.3. Principio da Responsabilidade Penal Pessoal


NO 3REIID

O foi consagrado no
DE S EG U R A N Ç l

9 .3 .1 . p rin c íp io d a p e s s o a lid a d e d a p e n a

direito constitucional brasileiro na Constituição de 18 2 4 e previa que


“nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. Por tanto não haverá em caso
algum corfiscafio de bens, nem a injamia do Réo se transmittirá aos parentes em
FTNAS • MED WS

qualquergráo, que seja” (art. 1 7 9 , X X , Constituição Imperial de 1 8 2 4 ) (sic).


O dispositivo opunha-se às formas de aplicação e de execução das penas
dispostas no Livro V das Ordenações Filipinas Posteriormente, o
(16 0 3 ).

princípio constitucional relativo ã limitação da responsabilidade penal ao


256 autor do crim e foi reproduzido, não exatamente nos mesmos termos, em
todas as Constituições brasileiras —v.g. art. § Constituição de7 2 , 19 , 18 9 1;

art. X X V III, Constituição de


1 1 3 , art. 19 3 4 ; Constituição de
14 1, § 3 0 ,

e art.
19 4 6 ; Constituição de
15 0 , § 13 , —, excetuando a Carta de
19 6 7 19 3 7.

8 CARVALHO, Lei para que(m)?, pp. 142-146.


5 W U N D ER LICH , Por um Sistema de Impugnações no Pmcesso Penal Constitucional Brasi­
leiro, pp. 18-19.
As vedações previstas no inciso XX, do art. 179, da Constituição de
1824, advêm do feto de que o sistema de penas cominadas nas Ordenações
Filipinas possibilitava não apenas (a) a apropriação dos bens pessoais e da
família pela Coroa, mas (b) a proscrição da memória do condenado e (c)
a imposição do estigma de infem ia aos seus descendentes. A m orte, pre­
vista como sanção em grande parte dos delitos, era graduada conforme o
grau de lesividade da conduta, podendo ser aplicada em forma de m orte
cruel, m orte atroz, m orte simples ou m orte civil. As duas primeiras m o­
dalidades, além da previsão da irrogação de suplícios ao longo da execução,
caracterizavam-se pela transcendência, ou seja, pela imposição do esque­
cim ento público da identidade do sujeito (eliminação da m em ória do
condenado) e pela transmissão dos efeitos da pena aos familiares do con­
denado (confisco dos bens e estigma da infemia às gerações subsequentes).
Veja-se, p. ex., nos crimes de lesa-majestade: “(...) o erro da traição condena
o que commette, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que m o
tenhão culpa” (Ordenações Filipinas, Livro V, inciso VI, caput) (sic).
Interessante referir que, mesmo após a promulgação da Constituição
de 1824, o Livro V das Ordenações permaneceu em vigor até a elaboração
do Código Crim inal do Império (1830), quando finalmente a lei penal
brasileira incorpora as diretrizes do liberalismo e, no caso específico, ins­
titui o prim ado da intranscendência das sanções criminais.

9.3.2. Na Constituição de 1988, o art. 5S, XLV, estabelece que “ne­


nhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano
e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores
e contra el& ^ecutadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.
O princípio da pessoalidade (ou princípio da responsabilidade penal
pessoal) se alia às noções de legalidade ampla e estrita na configuração de
uma estrutura norm ativa de garantias dos direitos fundamentais. Com o
fechamento do horizonte de incriminação ã lei penal anterior, estrita e
taxativa, a possibilidade de aplicação da pena é condicionada ao estabele­
cimento de um vínculo concreto entre o autor do feto e a conduta incri­
minada, pois a imputação recai apenas sobre aquela pessoa que deu causa
ao resultado típico.
A condição ou a p o s s ib ilid a d e d e no
r e s p o n s a b iliz a ç ã o p e n a l

direito m oderno não é apenas vinculada ã provocação do resultado previs­


to em lei como ilícito (relação de causalidade), mas é fundamental que o
autor da conduta tenha optado livre e conscientemente pela violação do
preceito incrim inador ou, no m ínim o, que tenha produzido o resultado
de forma negligente, com a violação dos deveres objetivos de cuidado
inerentes às condutas sociais de risco (elemento subjetivo). O efeito da
vinculação da responsabilidade penal aos pressupostos objetivos e subjetivos
exclui qualquer possibilidade de imposição de sanções, principais ou aces­
sórias, a terceiros alheios ao com etim ento da conduta punível e a pessoas
que tenham produzido resultados previstos com o crim e sem a existência
de um vínculo psicológico. Assim, correlatos ã proibição constitucional da
imposição de pena além do autor do feto punível figuram os parâmetros
limitadores de responsabilidade (requisitos objetivos e subjetivos).
O requisito objetivo de responsabilização é descrito nas regras refe­
rentes ã relação de causalidade, previstas no art. 13, caput, do Código Penal:
“o resultado, de que depende a existênría do crime, somente ê imputâvel a quem lhe
deu causa”. Desta forma, somente o sujeito da ação ou da omissão que pro­
duziu o resultado pode ser responsabilizado crim inalm ente. Além de
im pedir qualquer espécie de legado sancionatório em matéria crim inal, o
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO DREITD PENAL BRASILEIRO

princípio da pessoalidade, vinculado ã relação de causalidade, exclui toda


espécie de responsabilidade por ato de terceiro ou responsabilidade penal
solidária, “quepode existir no direito privado, mas não no penal ”1011.
Se os critérios objetivos de delimitação de responsabilidade penal
pessoal concretizam-se na relação de causalidade, os parâmetros subjetivos
serão estabelecidos no art. 18, Código Penal —“diz-se o crime: I — doloso,
quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II — culposo,
quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperíría”.
O requisito da vinculação subjetiva entre autor e resultado igualmente
adquire uma conotação negativa em termos de atribuição de responsabili­
dade, pois exclui do ordenam ento jurídico brasileiro quaisquer hipóteses
de responsabilidade penal objetiva (nullum crimen sine culpa).
D o quadro traçado, possível visualizar as três dimensões restritivas
do princípio constitucional da responsabilidade penal pessoal: (1®) vedação
de imposição de pena (ou de efeitos acessórios da sanção criminal) a ter­
ceiros alheios ao processo de realização do delito; (2 -) restrição da respon­

10 TAVARES, Teoria do Injusto Penal, p. 207.


11 Note-se a distinta extensão da responsabilidade penal paira terceiros nas esferas penal e
extrapenal. No campo da improbidade administrativa, p. ex., a Lei de Improbidade esta­
belece que “o sucessor daquele que causar lesão ao patrimônio público ou se enriquecer ilicitamente
está sujeito ás cominações desta lei até o limite do valor da herança” (art. 8°, Lei n. 8.429/92).
sabilidade criminal ao autor da ação ou omissão típica; (c) negação de
qualquer modalidade de responsabilidade penal objetiva (sine culpa) ou
solidária.

9.3.3. As d ir e tr iz e s d a p e s s o a lid a d e e d a in tr a n s c e n d ê n c ia d a s

são consolidadas em praticamente todas as ordens jurídicas dem o­


p e n a s

cráticas e nas principais cartas internacionais de afirmação de direitos


fundamentais.
A Convenção Americana de Direitos Hum anos (Pacto de São José
da Costa Rica, 1969), promulgada no Brasil pelo Decreto n. 678/92, define
a pessoalidade das penas como um dos direitos fundamentais ã integridade
pessoal —“a pena não pode passar da pessoa do delinqüente” (art. 5e, 3). A tra­
dição em restringir as sanções aos autores do delito é reproduzida, p. ex.,
na Constituição de Portugal, que define que ‘‘a responsabilidade penal é in-
susceptlvel de transmissão” (art. 30, 3). A estrutura normativa é igualmente
presente na Constituição da Itália —“a responsabilidade penal é pessoal” (art. 27,
primeira parte). Em relação aos estatutos propriamente penais, o Código
Penal espanhol (Ley Orgânica 10/1995) estabelece que “são responsáveis
criminalmente pelos delitos e pelas faltas os autores e os cúmplices” (art. 27) e, ao

9 - OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE LIM ITAÇÃO


definir os parâmetros de aplicação da sanção, prevê que “quando a Lei &ta-
belece uma pena, se entende que impõe aos autows da infrqão consumada” (art. 61).
É possível notar, portanto, que n a maioria dos países democráticos
de tradição rom ano-germ ânica as regras de atribuição da responsabilidade
penal são bastante similares, sendo harmônica a compreensão de que a
restrição da pena ao autor da conduta delitiva é um princípio configurador
dos modelos de direito penal hum anitário ou, simplesmente, direito penal
de garantias.

9.4 . Principio da Individualização da Pena 259


9.4.1. A matéria relativa ã aplicação individualizada de penas será
incorporada no direito penal brasileiro nos Códigos Penais de 1830 e de
1890. Embora o Código do Império preserve, para alguns delitos, a tradi­
ção das Ordenações de penas fixas, o art. 63 definia que, nos casos em que
houvesse previsão de quantidades máximas e mínimas, deveriam ser con­
siderados “(...) tr&gráos nos crimes, com attenção h suas circumstancias agravan­
te ou attenuante, sendo o maximo o de maior gravidade, á que se imporá o maxi-
mo da pena; e o mínimo, o da menor gravidade, á que se impora a pena mínima; o
médio, o que fica entre o maximo e o mínimo, á que se impora a pena no termo
médio entre os dous extremos dados” (sic). O estatuto crim inal de 1830 reforça,
ainda, a ideia de individualização, com a previsão de circunstâncias agra­
vantes e atenuantes (arts. 15 a 19).
O Código de 1890 antecipa a estrutura de princípios que orientará,
na m atéria penal, a Constituição de 1891. A perspectiva republicana pro­
move a abolição das penas de morte, galés e banim ento, sendo definida a
prevalência da pena de prisão sobre as demais sanções penais. Neste cená­
rio, a noção de individualização reforçará o sistema de penas variáveis
entre mínimos e máximos, previamente definidos pelo Legislativo, que se
solidificou na tradição do direito penal brasileiro.
Para além do sistema de patamares legais m ínim os e máximos, o
Código republicano agrega inúmeras variáveis relativas ã individualização
no campo da aplicação judicial do direito penal e da execução das sanções.
N o que tange ã aplicação da pena, o Código de 1890 m antém o sistema
FíMAS i MED IUS DE S E G U R « (JI ND 3REIID PENAL B R A SILEIR O

de agravantes e de atenuantes (arts. 36 a 42) inserido no Código imperial,


porém agrega causas especiais de diminuição nos crimes tentados (art. 63)
e nos casos de cumplicidade (art. 64) e cria regras específicas para os con­
cursos de crimes (concursos material, formal e crime continuado, art. 66 ).
Em relação ao procedimento de execução, o estatuto define regras para os
regimes (arts. 47 a 49) e prevê a possibilidade de sua modificação gradual
com a transferência (progressão) para estabelecimentos menos severos (art.
50), bem como insere no direito penal brasileiro o instituto do livramen­
to condicional (arts. 51 e 52). Estabelece, ainda, a limitação do tempo
m áximo de cum prim ento das penas em 30 anos (art. 44).
É possível afirmar, portanto, que o modelo forjado pelo Código de
1890 projeta as formas atuais de individualização das penas, reforçadas nas
Constituições de 1946 e de 1988 e instrumentalizadas na Reform a Penal
de 1984 (parte geral do Código Penal e Lei de Execução Penal).
260 A incorporação da in d iv id u a liz a ç ã o d a como principio
p e n a

constitucional ocorre, porém, apenas na Carta de 1946, em dispositivo que


igualmente regulamenta a incidência da lei penal no tempo (princípio da
irretroatividade de lei penal mais grave). Segundo o art. 141, § 29, da
Constituição de 1946, “a lei penal regulará a individualizado da pena e só re-
troagirá quando beneficiar o réu”. A reforma constitucional de 1967 optou por
reproduzir, no mesmo artigo, os princípios de pessoalidade e de individua­
lização das penas (art. 150, § 13), estrutura normativa que será alterada no
texto constitucional precedente.
Na Constituição de 1988, a individualização da pena aparece vin­
culada às espécies de sanção adotadas no Brasil. O art. 5", XLVI, define
que “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social
alternativa; e) suspensão ou interdigo de direitos”.
Percebe-se, portanto, que a constitucionalização do princípio da
individualização das sanções criminais é um a das decorrências do modelo
de aplicação personalíssima da resposta penal. A necessidade de limitação
da sanção ao grau de culpabilidade dos autores, dos coautores e dos partíci­
pes do delito impõe um a adequação quantitativa e qualitativa em todos os
níveis de habilitação do poder punitivo (Legislativo, Judicial e Executivo).

9.4.2. A doutrina aponta três dim ensões do p rin cíp io da in d i­


vidualização da pena. A primeira, denominada individualização legislativa,
seria identificada no processo de criação dos tipos penais incriminadores
(criminalização primária), com a delimitação da conduta ilícita, a defini­
ção da espécie de pena cabível e sua respectiva quantidade m ínim a e má­
xima. O princípio da individualização opera, nesta fase, como uma guia

- OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE LIM ITAÇÃO


orientadora da atividade do legislador que determ ina a necessidade de
previsão de sanções adequadas e proporcionais às condutas incriminadas.
Em bora a Constituição não tenha definido expressamente uma
fórmula de determ inação legal das sanções criminais, a tradição do direito
penal brasileiro consagrou alguns critérios técnicos de limitação, notada-
mente a prevalência da pena de prisão em relação às demais modalidades
sancionatórias e a fixação de patamares temporais m ínim os e máximos
para o seu cumprimento. Definidos pelo legislador os horizontes punitivos,
inclusive com a previsão de circunstâncias de aumento e diminuição, a
concretização da pena é realizada em um a segunda etapa, no julgam ento
do caso penal, quando da elaboração da sentença condenatória (individua­
lização judidal).
Importante referir que, mesmo com previsão constitucional de penas
alternativas ao encarceramento (substitutivos penais), a privação de liber­
dade m antém-se no centro do sistema punitivo, pois, mesmo sendo cabível
a aplicação de penas restritivas de direito, o julgador, no procedimento
individualizador, deve necessariamente calcular o tem po de privação de
liberdade para, em um segundo mom ento, verificar a possibilidade de
aplicação de outra espécie de sanção.
A individualização judicial é instrumentalizada na sentença criminal
condenatória, etapa final do juízo de responsabilização pelo ilícito, em uma
operação altamente complexa em face das exigências legais de análise cir­
cunstanciada impostas pelo Código Penal brasileiro. C om a proscrição das
penas fixas e a gradual ampliação das hipóteses de penas não carcerárias
(penas restritivas de direito) em decorrência da crise da pena privativa de
liberdade, a partir de meados dos anos 1980 se verifica o aumento dos es­
paços de discricionariedade judicial na determinação da pena ao autor do
fito punível —“o alargamento do poder discricionário do magistrado é, aliás, decor­
rência obrigatória da criação de um leque de oppesgraç& às penas substitutivas (...)”12.
Embora seja tema específico da m atéria subsequente, é possível an­
tecipar as quatro etapas de individualização judicial estabelecidas pelo
Código Penal: (là) o estabelecimento da espécie de pena aplicável entre as
cominadas (art. 5 9 ,1) nos casos de previsão alternativa entre pena privati­
va de liberdade, pena restritiva de direito ou pena de multa; (2~) a quan­
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

tificação da pena dentro dos limites m ínim os e m áximos previstos (art. 59,
II c/c art. 68 ) a partir da avaliação das circunstâncias judiciais (art. 59,
caput), das circunstâncias agravantes e atenuantes (arts. 61 a 66 ) e das cau­
sas especiais de aum ento (majorantes) e de diminuição (minorantes) dis­
postas na parte geral e especial do Código e nas leis extravagantes; (31) a
definição do regime inicial de cum prim ento da pena (art. 59, III c/c art.
33); e, se cabível, (41) a substituição da pena de prisão por outra m odali­
dade de sanção restritiva (art. 59, IV c/c arts. 44 e 60, § 2a).
Transitada em julgado a sentença penal condenatória, a última fase
do processo de pessoalização da pena é o da individualização executiva.
A Reform a de 1984 estabeleceu o controle jurisdicional da execução
da pena para efetivação dos direitos dos condenados. A atuação judicial em
sede executiva compreende um a dupla tarefa. A primeira, nitidam ente
voltada ã individualização, de análise e decisão sobre as possibilidades de
202 alteração da quantidade (remição, detração e comutação) e da qualidade
(progressão e regressão de regime, livram ento condicional e conversões)
da pena, bem como de análise das hipóteses de sua extinção, pelo cum pri­
m ento integral ou em decorrência da incidência de alguma causa de ex­
clusão da punibilidade (prescrição, indulto, novatio legis benéfica). Em face
da adoção de um modelo de pena flexível, cuja qualidade e quantidade são

12 R EA LE JR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 159.


constantemente alteradas durante o seu cumprim ento, o sistema jurisdi-
cionalizado exige que o juiz exerça um im portante papel na efetivação do
devido processo de execução penal, com a garantia da ampla defesa, do
contraditório, do duplo grau de jurisdição, da publicidade e da paridade
de armas.
A segunda tarefe compreende a tutela dos condenados contra os
desvios e os excessos praticados por ação ou por omissão pela administra­
ção penitenciária. Trata-se, fundam entalm ente, do papel ativo do Poder
Judiciário como garantidor das condições materiais mínim as de perm a­
nência dos condenados nos estabelecimentos prisionais. Esta atribuição
legal implica o exercício do papel de fiscalizador e de interventor, assegu­
rando que o cum prim ento da pena ocorra em estabelecimentos de acordo
com a natureza do delito, idade e sexo do(a) apenado(a) (art. 5S, XLVIII),
de forma a respeitar sua integridade física e moral (art. 5S, XLIX).
Assim, em razão da alteração promovida pela Lei de Execução Penal
(1984) no sistema de execução, consagrando sua natureza jurisdicional,
aliada ã consagração na Carta constitucional de 1988 de inúmeros direitos
ao cidadão preso, notadamente ao condenado ã pena de prisão, resta supe­

- OS PRINCÍPIOS c o n s t it u c io n a is de l im it a ç ã o
rada a antiga concepção de existir, na esfera penitenciária, absoluta sujeição
do condenado ã administração carcerária (modelo administrativo de exe­
cução da pena). Conclui-se, pois, que na atualidade a execução penal
tornou-se “(...) matéria regida pelo principio da legalidade e de competência da
autoridade judiciária" 13, motivo pelo qual os excessos e os desvios que infe­
lizmente caracterizam a realidade carcerária nacional não podem ser natu­
ralizados pelos órgãos competentes, sejam administrativos ou jurisdicionais.
9.4.3. Nos países ocidentais democráticos, sobretudo nos de tradição
jurídica rom ano-germ ânica, a ideia de in d iv id u alização está indissocia-
velmente coligada às funções d a pena. Na Constituição espanhola “as
penas privativas de liberdade e as medidas de segurança são orientadas à reeducado 263
e à reinserção social e não poderão consistir em trabalhos forçados” (art. 25, 2). A
Constituição italiana estabelece que “as penas não poderão consistir em trata­
mento contrário ao sentido de humanidade e devem ser orientadas à reeducação do
condenado” (art. 27). N o mesmo sentido o art. 5e, 6 , do Pacto de São José
da Costa Rica (Decreto n. 678/92): “as penas privativas de liberdade devem

13 LUISI, Prindpios Constitucionais Penais, p. 55.


ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”. Em
Portugal, embora o princípio de individualização não seja explícito, é
possível perceber seu desdobramento a partir do sentido geral de delimi­
tação temporal das sanções criminais, previsto no art. 30, 1 : “não pode
haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com
caracter peyétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”.
N o Brasil, conforme exposto anteriormente, a ordem constitucional
abdicou de atribuir qualquer sentido positivo (fundamentador) ã sanção
penal. N o entanto, criou uma rígida cadeia de princípios limitativos den­
tre os quais preponderam os princípios da pessoalidade, da individualização
e da humanidade das penas, cenário que perm ite afirmar uma orientação
político-crim inal redutora (política de redução de danos).

9 .5 . Principio da Humanidade das Penas


PENAL B R A S IL E IR O

9.5.1. A v e d a ç ã o d e p e n a s na Constituição
in fa m a n te s e c ru é is

de 1824 representa uma das principais conquistas da reforma penal brasi­


leira, com a explícita adesão aos princípios do liberalismo político —“ desde
NO 3REIID

jáficam abolidos os açoites, a tortura, a marca deferro quente, e todas as mais penas
cruéis" (art. 179, XIX).
A negação de práticas punitivas inquisitórias será um dos valores
DE S EG U R A N Ç l

centrais cultivados pelo constitucionalismo brasileiro, pois nitidam ente


relacionado com os valores de tutela dos direitos individuais. Com a im ­
plementação da República em 1890, os princípios delineadores de um
FTNAS • MED WS

direito penal secularizado orientarão a estrutura normativa das práticas


punitivas, reforçando a ideia da efetivação de um sistema de garantias. A
repulsa às formas inquisitivas de sanção estará presente, portanto, em todas
as Cartas constitucionais, de forma mais ou menos intensa conforme a
experiência política da época. Nota-se, inclusive, que mesmo nos períodos
políticos mais tensos e delicados, nos quais a democracia restou seriamen­
te abalada, no plano norm ativo-constitucional são mantidas as restrições
aos procedimentos desumanos — embora, como se sabe, na operacionali-
zação do sistema, os limites impostos pelos princípios humanitários tenham
sido explicitamente violados, como no caso das torturas, dos sequestros e
dos desaparecimentos forçados realizados pelas agências punitivas das di­
taduras militares.
9.5.2. A consolidação dos preceitos humanitários em matéria puni­
tiva, densificada pelas Cartas de Direitos H um anos dos séculos X IX e X X ,
reflete-se no ordenamento jurídico interno no art. 52, XLVII, da Consti­
tuição —“não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos
termos do art. 84, X IX ; b) de caráter peyétuo; c) de trabalhos forçados; d) de ba­
nimento; e) cruéis”.
Como foi possível perceber no debate sobre as teorias da pena, ape­
sar de a Reform a Penal de 1984 ter moldado a estrutura do sistema puni­
tivo brasileiro a partir da noção de ressocialização (prevenção especial
positiva), aderindo às teorias da pena que pautaram as reformas dos sistemas
punitivos nos países Ocidentais na segunda metade do século XX, a Cons­
tituição brasileira se absteve de eleger qualquer finalidade sancionatória.
N o entanto, apesar de não projetar quaisquer sentidos (finalidades) às
penas, a Constituição consagrou princípios negativos que estabelecem
formas (espécies) e limites ã intervenção. Não por outra razão é lícito
afirm ar que o texto constitucional abdica da resposta ã questão “por que
punir?” (modelo agnóstico), preocupando-se prioritariamente com o “como
punir?” (política redutora).
A postura absenteísta em relação aos discursos dejustificaçâo é subs­

- OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE LIM ITAÇÃO


tituída pela consagração de princípios orientadores da garantia dos direitos
e de constrição da violência institucional (vedações de penas degradantes
e cruéis). Esta opção constitucional produz, no cenário punitivo brasileiro,
um modelo político de redução dos danos provocados pela ingerência
punitiva, marcado pelo humanitarismo. Assim, a Constituição parece ter
adotado um a postura de reconhecim ento das violências inerentes às práti­
cas do sistema penal, m arcadam ente os processos de mortificação provo­
cados nas instituições totais.

9.5.3. Os princípios de garantia contra os excessos punitivos apare­


cem na Constituição, em sua integralidade, direcionados ã limitação das jgg
penas — princípios da legalidade (art. 52, X X X IX ), da irretroatividade (art.
52, XL), da pessoalidade (art. 52, XLV), da individualização (art. 52, XLVI)
e da humanidade (art. 52, XLVII). Ocorre que o sistema sancionatório não
é configurado exclusivamente pelas penas aplicáveis aos imputáveis, mas é
igualmente integrado pelas m e d id a s d e e pelas
s e g u ra n ç a m e d id a s

respostas jurídicas aos inimputáveis etários (adolescentes


s o c io e d u c a tiv a s ,

em conflito com a lei) e psicológicos (portadores de sofrimento psíquico)


que praticaram fato previsto como crime.
Verifica-se, pois, neste particular, um a injustificável omissão cons­
titucional no regramento da m atéria relativa às medidas (socioeducativas
e de segurança). Note-se, p. ex., o exemplar caso das medidas de seguran­
ça que, segundo a metodologia do Código Penal, não são limitadas tem -
poralmente como as penas (art. 75), perdurando enquanto não for decla­
rada judicialm ente a cessação da periculosidade (art. 97, § 1° Código
Penal). Lacunas desta ordem acarretam, na realidade m anicom ial brasilei­
ra, a possibilidade de imposição de sanção perpétua aos usuários do sistema
de saúde mental que incorreram em condutas previstas como delito, den­
tre outras limitações de direitos que não alcançam os imputáveis. Logica­
m ente que a jurisprudência tem avançado no sentido de assegurar aos
inimputáveis um tratam ento isonômico, alcançando-lhes os direitos ga­
rantidos aos imputáveis, sobretudo após o advento da Lei de Reform a
Psiquiátrica (Lei n. 10.216/2001), que im põe aos Poderes constituídos o
dever de criar mecanismos de desinstitucionalização das pessoas em regime
manicomial. N o entanto, a ausência de princípios explícitos enfraquece
sobremaneira o estatuto jurídico de garantias dos inimputáveis, situação
que, na prática, legitima inúm eros excessos e violações de direitos.
Na experiência constitucional comparada, inúmeros textos consti­
tucionais garantem direitos isonômicos aos condenados às penas e àqueles
sujeitos às medidas de segurança —v.g. arts. 29 e 30, Constituição de Por­
tugal; art. 25, Constituição da Espanha; art. 25, Constituição da Itália. N o
que tange especificamente ã vedação da perpetuidade das penas e medidas
de segurança, p. ex., a Constituição portuguesa é explícita ao prever que
“não pode haver p em s nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liber­
dade com caracterpet^étuo ou de duração ilimitada ou indefinida” (art. 31, 1).
Neste sentido, o indicativo garantista parece ser o da interpretação
do term o constitucional penas como sanfio penal, incluindo, portanto, todas
as expressões punitivas das agências de controle social, ou seja, agregando
ã pena crim inal as medidas de segurança e medidas socioeducativas14.

9.5.4. Questão específica que merece destaque é relativa ao tema da


p e n a d e m o r te . M antida pela Constituição e pelo Código do Im pério, a

14 Neste sentido será estabelecida a cadeia de princípios limitadores às medidas de segu­


rança e às medidas socioeducativas (CARVALHO & W EIGERT, A s Alternativas às Penas
e às Medidas Socioeducativas, pp. 227-257).
pena capital foi executada pela última vez no Brasil em 185515. A partir da
Constituição de 1891, esta m odalidade de sanção penal é proscrita do sis­
tema jurídico pátrio, tendo sua aplicação restrita aos casos previstos na
legislação militar, especificamente nas situações de guerra declarada (art.
72, § 21, Constituição de 1891). A tradição constitucional brasileira, desde
então, consolidou a abolição da pena capital, adm itindo-a apenas nos casos
de conflitos internacionais.
N o entanto, conforme lem bra Fragoso, “as ditaduras têm irrecusável
pendor para a pena de morte” 16. Não por outro motivo é possível perceber a
tentativa de sua reintrodução na Constituição de 1937, com a sua previsão
para os crimes políticos e para o homicídio qualificado pelo m otivo fútil
ou praticado com requintes de crueldade (art. 122 , 1 3 ,^ .
A Constituição de 1967 (art. 150, § 11) estabelecia a possibilidade
de pena de m orte nos casos de guerra externa declarada. Todavia, o Ato
Institucional n. 5 reintroduziu a pena capital para os crimes políticos nas
hipóteses de guerra psicológica adversa, revolucionária ou subversiva. Em
1978, a Emenda Constitucional n. 11 revogou os Atos Institucionais e,
consequentemente, a extensão autorizadora para aplicação da pena de
morte, m antendo-a exclusivamente aos casos de conflito externo.

- OS PRINCÍPIOS c o n s t it u c io n a is de l im it a ç ã o
A Constituição de 1988 m antém sua vedação e a exceção aos con­
flitos militares. Ademais, é fundam ental registrar que, com a promulgação
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica) pelo Decreto n. 678/92, está vedada a possibilidade de sua
reintrodução em razão de cláusula de proibição de retrocesso: “não se pode
restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido” (art. 4S, ‘3’).
A vedação da pena de m orte e do tratam ento cruel apresenta-se, na
Constituição de 1988, como um desdobramento do princípio de respeito
ã dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1° III),
harm onizando-se com os demais dispositivos relativos ã vedação da tortu­
ra e de qualquer tipo de tratam ento desumano ou degradante (art. 5° III),
bem como às prescrições de respeito ã integridade física e moral dos presos
(art. 5S, XLIX). Esta variedade de dispositivos conforma um a cadeia de
princípios humanistas que deve orientar as práticas punitivas, reforçando
a ideia da instrumentalidade redutora (redução de danos) da dogmática
penal (dogmática conseqüente).

15 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 351.


16 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 352.
9.5.5. O utro aspecto relevante, que ganhou visibilidade com a apro­
vação do Decreto n. 4.388/2002, que aprovou o Estatuto de R om a no
Brasil, é relativo ã questão da p r i s ã o p e r p é t u a . D entre as inúmeras po­
lêmicas produzidas a partir do referido Decreto — p. ex., a previsão da
entrega de nacionais (art. 58), o exercício da jurisdição independentem en­
te das imunidades e prerrogativas de foro (art. 27), a violação do princípio
da coisa julgada (art. 20 ) e a imprescritibilidade dos delitos contra a hu­
manidade (art. 29) —, a previsão de prisão perpétua (art. 77) obteve desta­
que em decorrência da taxativa proibição constitucional17.
Apesar de a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional ter
concluído “(...) pela inexistência de óbices, quanto à constitucionalidade, que
possam impedir a adesão do Brasil ao Estatuto de R om a" 18, sob o argum ento de
o art. 7 - do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias prever que
“o Brasil propugnarâ pela formação de um Tribunal Internacional dos Direitos
Humanos”, a questão da vedação da perpetuidade das penas mantém-se
como um problema real da adesão do Brasil ao Estatuto de Rom a.
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO DREITD PENAL B R A SILEIR O

A doutrina que se debruçou sobre o tema e tentou compatibilizar


os princípios constitucionais com as regras do Tribunal Penal Internacional
(TPI) propõe avaliar o problema a partir do instituto da comutação da
pena. A Lei n. 6.815/80, que dispõe sobre a situação jurídica do estrangei­
ro, impõe como condição para deferimento do pedido de extradição que
o Estado requerente assuma o compromisso de “comutar em pena privativa
de liberdade a pena colorai ou de morte, ressalvados, quanto à última, os casos em
que a lei brasileira permitir sua aplicação” (art. 91, III). Em foce de o Estatuto
de Rom a (art. 110, 5) prever a revisão e a redução das penas (art. 110, 3)
em sede de execução, afirm am os autores que haveria a possibilidade de
compatibilização, desde que fosse estabelecido como dever ao Estado re­
querente, em caso de pedido de extradição por condenação pelo Tribunal
Penal Internacional, converter a pena de caráter perpétuo, adequando-a
aos ditames das regras constitucionais (art. 5S, XLVII, b) e legais (art. 91,
^ III, Lei n. 6.815/80 e art. 75, Código Penal) brasileiras19.

17 Sobre a questão da inconstitucionalidade, verificar BITEN CO U RT, Tribunal Penal


Internacional, pp. 85-94.
18 Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, Parecer n. 448/2002, Relator ad
hoc Senador Lúdio Coelho, D S F 28.05.2002.
19 Neste sentido, conferir RAM OS, O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a Consti­
tuição Brasileira, pp. 267-279.
Nesta perspectiva, sustenta R ealejr. que “ (...) asolução está na ratifi­
cação vir acompanhada de declaração inteyretativa, tal como se deu na Espanha, na
qual se afirme que a ratificação ocorre com a condição de que a pena não exada ao
máximo legal da reclusão, realizando-se a revisão prevista no art. HO do Estatuto.
Além do mais, segundo o art. 80 do Estatuto, as suas regras sobre penas não afetam
a mudança do sistema de penas do Estado-Membro, nem se impõe que não existin­
do determinada pena no direito inteim do Estado-Membro venha esta a ser por ele
aplicada" 20.

9.5.6. O p rin c íp io d e representado em sua


h u m a n id a d e , d u p la

—vedação da pena de m orte e proibição de penas desumanas e


d im e n s ã o

cruéis —, é incorporado em praticamente todos os textos constitucionais


contemporâneos.
A Constituição portuguesa estabelece que “a vida humana é inviolável”
(art. 24, 1) e que “em caso algum haverá pena de morte" (art. 24, 2), acrescen­
tando ser inviolável a integridade moral e física das pessoas (art. 25, 1),
sendo vedada a tortura, os maus-tratos ou as penas cruéis, degradantes ou
desumanas (art. 25, 2). N o texto constitucional espanhol, a orientação das
penas e das medidas de segurança ã reeducação e à reinserção social des­
dobra-se na proscrição dos trabalhos forçados e na afirmação de que o
condenado ã prisão m antém incólumes seus direitos fundamentais, exceto
aqueles limitados pela sentença condenatória, sendo garantidos direitos
sociais ao trabalho e à previdência e os direitos culturais ao pleno desen­
volvim ento da sua personalidade (art. 25, 2). A Constituição da Itália re­
produz um a estrutura m uito similar ã brasileira e estabelece que as penas
não podem consistir em tratam ento contrário ao sentido hum anitário,
sendo vedada pena de m orte, excetuando os casos previstos na legislação
de guerra (art. 27).
Na América do Sul, o texto constitucional da Argentina determina
a abolição para sempre da pena de m orte por razões políticas e toda a espé­
cie de torm entos e os açoites. Ademais, prevê que as prisões devem ser
limpas e voltadas ã segurança e não ao castigo dos detidos, determ inando
ser responsabilidade judicial o controle de qualquer medida que conduza

20 R EA LE JR ., Instituições de Direito Penal I, p. 121.


à mortificafio21 dos condenados (art. 18). A negativa da pena de m orte e a
repulsa aos procedimentos punitivos de mortificação são igualmente previs­
tos na Constituição do Uruguai (art. 26).

9.6 . Espécies de Penas Adotadas pela Constituição


9.6.1. A Constituição, após estabelecer com o direito fundamental a
pessoalidade e a individualização das penas, elencou as e s p é c ie s d e s a n ­

ç õ e s admissíveis no direito penal brasileiro: (a) privação ou


c r im in a is

restrição da liberdade, (b) perda de bens, (c) multa, (d) prestação social
alternativa e (e) suspensão ou interdição de direitos.
A previsão de distintas espécies de pena alterou a tradição constitu­
cional brasileira, pois, desde a Constituição do Império, todos os textos
estavam limitados a vedar ou a restringir determinadas sanções, procedi­
PENAL B R A S IL E IR O

m ento igualmente reproduzido na Carta de 1988, no inciso XLVII do art.


52 (princípio da hum anidade das penas). Contudo, de forma inovadora, o
constituinte apresentou extenso rol de medidas punitivas alternativas ã
privação de liberdade, possibilitando, inclusive, a criação de novas formas
NO 3REIID

de sanção, não elencadas na Constituição, pela legislação ordinária. A re­


dação do dispositivo constitucional é nitidamente exemplificativa, ficando
aberta a possibilidade de inovação em m atéria de penas desde que respei­
DE S EG U R A N Ç l

tados os limites negativos impostos pelo princípio da humanidade (vedação


de pena de morte, prisão perpétua, trabalhos forçados, banim ento e penas
degradantes ou cruéis).
FTNAS • MED WS

O Código Penal de 1940, ainda imerso na centralidade da prisão


como sanção criminal, previa como penas principais a reclusão, a detenção
e a multa (art. 28). A Reform a de 1984, alinhada aos preceitos hum aniza-
dores do direito penal garantista e ciente dos malefícios do encarceramen-
270 to denunciados pela criminologia crítica nas décadas de 1960 e 1970,
unificou reclusão e detenção sob o rótulo de pena privativa de liberdade e
incorporou, junto com a multa, a pena restritiva de direitos como sanção
autônoma (art. 32, II). Ao regrar as espécies de penas restritivas, previu a

21Apesar do uso normativo do termo nas Constituições argentina e uruguaia, o conceito


de mortificação por meio das instituições totais foi definido por Go^man. Neste sentido,
conferir GOFFM AN, Asylums, pp. 48-56.
prestação de serviço ã comunidade, a interdição temporária de direitos e
a limitação de final de semana (art. 43, I, II e III).

9.6.2. As p e n a s s u b s titu tiv a s na modalidade de prestação


à p ris ã o ,

de serviços ã comunidade, foram criadas pelo Código Penal soviético de


1926 (art. 20, d e art. 30). Reproduzidas nos ordenamentos penais do
leste europeu —Código Penal búlgaro (art. 24), Código Penal polonês (art.
33) —, posteriorm ente foram transnacionalizadas para os demais países
ocidentais — v.g. Bélgica (1963), França (1970), Alemanha (1975), Itália
(1975), Portugal (1977) e Espanha (1980). O entendim ento prevalecente
de que “a experiência com o sistema institucional resultou, sabidamente, negativa,
restando a prisionalização como deletéria, até porque componente causai da
reincidênría”22, projetou a tentativa de “humanizar o Direito Penal recorrendo a
novas medidas que não o encarceramento"23.
A constitucionalização das alternativas ao cárcere não apenas fomen­
tou a redação da Lei n. 9.714/98 (Lei das Penas Alternativas), que ampliou
o rol exposto na Constituição, mas possibilitou a elaboração de mecanismos
de substituição do próprio processo penal (diversificação processual), como
a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do proces­
so, instituídos pela Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais).
A Lei n. 9.714/98, ao regulamentar o inciso XLVI do art. 5S, inovou
em matéria de penas, incluindo no art. 43 do Código Penal a prestação
pecuniária, a perda de bens e valores, a prestação de serviço ã comunidade
ou a entidades públicas, a interdição tem porária de direitos e a limitação
de fim de semana. Ademais, ampliou as hipóteses, prevendo a aplicação
dos substitutivos penais em quaisquer hipóteses de condenação por crime
culposo ou, nos casos de fixação de pena privativa de liberdade não supe­
rior a quatro anos, para os réus cujas circunstâncias fossem favoráveis (art.
44, I, II e III). Igualmente relativizou o instituto da reincidência, adm i­
tindo a aplicação nos casos em que a medida descarcerizante fosse social­
mente recomendável (art. 44, § 4°)24.

22 THOM PSON, A Questão Penitenciária, p. 5.


23 R EA LE JR ., Novos Rumos do Sistema Criminal, p. 48.
24 As espécies de penas substitutivas, os critérios de substituição e a questão da relativi-
zação da reincidência serão tratados em tópicos especificos relativos ã aplicação da pena
provisória e ã possibilidade de aplicação das penas alternativas.
Na abertura proporcionada pela Constituição, a Lei n. 11.343/2006
(Lei de Drogas), que instituiu a nova política crim inal de drogas, previu,
p. ex., como sanção autônoma, independente (não substitutiva) da pena
privativa de liberdade, aplicáveis às condutas relacionadas ao consumo
pessoal de drogas, as penas de (a) advertência sobre os efeitos das drogas
(admoestação verbal), (b) prestação de serviços ã comunidade e (c) m edi­
da educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
A principal conclusão sobre a técnica adotada na Constituição é a
do explícito reconhecim ento da inadequação da pena de prisão para atin­
gir os fins propostos, sejam quais forem (retribuição proporcional, preven­
ção geral ou prevenção especial). Com o corolário lógico, o texto perm ite
verificar a compreensão do constituinte em relação aos efeitos deletérios
do cárcere. O extenso rol de sanções alternativas previstas na Constituição
e o posterior incremento de medidas substitutivas pela legislação ordinária,
aliados ã expressa vedação de penas cruéis, criam um corpo interpretativo
PENAL B R A S IL E IR O

que direciona os atores do sistema penal (legisladores, operadores do di­


reito e agentes executivos) a atuar na redução dos danos provocados pela
pena de prisão.
NO 3REIID

9.7. Responsabilidade Penal e Penas Aplicáveis às Pessoas


DE S EG U R A N Ç l

Jurídicas

9.7.1. A construção histórica dos princípios liberais de direito penal


FTNAS • MED WS

notadamente o princípio da pessoalidade da pena, além de excluir a pos­


sibilidade de responsabilização penal de terceiros não envolvidos no caso
penal, centralizou a aplicação da sanção crim inal nas pessoas físicas,
pessoas de carne e osso (Ferrajoli). N o entanto, a Constituição de 1988, ao
272 disciplinar duas matérias distintas (ordem econômica e financeira e meio
ambiente), referiu a possibilidade de r e s p o n s a b i l i z a ç ã o p e n a l d e p e s ­
s o a s j u r í d i c a s , situação que fomentou a discussão acerca da incorporação,
no direito penal brasileiro, desta modalidade suigeneris de responsabilida­
de criminal.
Em relação ã ordem econômica e financeira, a Constituição estabe­
leceu que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da
pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições com-
patlveis com sua natur&a, nos atos praticados contra a ordem econômica efinancei­
ra e contra a economiapopuhr” (art. 173, § 5a). A regulamentação da previsão
constitucional de sanções em casos de crimes contra a ordem tributária,
econômica e contra as relações de consumo (Leis ns. 8.078/90, 8.137/90
e 8.176/91) seguiu a tradição do penalismo liberal, restringindo a respon­
sabilidade penal aos representantes das empresas e possibilitando a responsa­
bilização civil e administrativa das pessoas jurídicas. Com a posterior
criação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) pela
Lei n. 8.884/94, a regulamentação do dispositivo constitucional quanto às
sanções cabíveis nos casos de ilícitos econômicos e financeiros foi delimi­
tada em razão da compatibilização da pena com a natureza ou o status
jurídico do sujeito ativo da infração: responsabilidade penal direcionada à
pessoa física e responsabilidade administrativa e/ou civil à pessoajurídica.
N o entanto, em relação ao meio ambiente, a dubiedade do texto
constitucional não perm itiu solução similar, que seria, inclusive, a mais
adequada desde o ponto de vista da estrutura clássica do direito penal de
garantias. Segundo o art. 225, § 3S, da Constituição, “as condutas e ativida­
des consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou

- OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE LIM ITAÇÃO


jurídicas, a sanções penais e administrativas, indtyendentemente da obrigação de
reparar os danos causados”. Em princípio, inclusive pela sistemática e pela
resolução adotadas na m atéria econômica e financeira, a doutrina visuali­
zou um a estrutura bipartida de responsabilização, sendo aplicáveis as san­
ções penais às pessoas físicas e as sanções de natureza indenizatória e repa-
ratória (civil e administrativa) às pessoas jurídicas.
Todavia, a regulamentação do art. 225, § 3a, da Constituição pela
Lei dos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98) rom peu com esta lógica, pois
o art. 3a, Lei n. 9.605/98, prevê expressamente a possibilidade de respon­
sabilização crim inal da pessoa jurídica —“as pessoas jurídicas serão responsa­
bilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos
em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual,
ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade” (art. 3a, caput,
da Lei n. 9.605/98) —, independentem ente da sanção à pessoa física —“res­
ponsabilidade das pessoas jurídirns não exclui a das pessoasfísicas, autoras, coauto-
ras ou partícipe do mesmofato” (art. 3a, parágrafo único, da Lei n. 9.605/98).
Em relação aos critérios objetivos de imputação do delito ambiental,
doutrina e jurisprudência estabeleceram como condição de responsabili­
zação a demonstração de um vínculo entre a pessoa jurídica e as pessoas
físicas que efetivamente atuaram em seu nome, nos termos do art. 2- da
Lei dos Crimes Ambientais23. Assim, fundamental, para configuração do
delito, uma conduta (ação ou omissão) concreta, de uma pessoa natural,
de catw e osso, que dê causa ao resultado, nos termos do art. 13, caput, do
Código Penal. Além disso, para imputação da pessoa jurídica, necessário
o estabelecimento de um vínculo entre esta conduta hum ana e o interesse
da pessoa jurídica no resultado lesivo, situação que pode ser representada
nas modalidades do tipo subjetivo (dolo ou negligência).
N o que diz respeito às sanções penais, a Lei n. 9.605/98 definiu um
rol específico de penas aplicáveis ao ente jurídico. Em bora as sanções em
espécie tenham o mesmo nomenjuris das penas não privativas de liberdade
aplicáveis às pessoas físicas —multa, penas restritivas de direito e prestação
de serviço ã comunidade, nos termos do art. 21 da Lei n. 9.605/98 —, sua
forma de execução foi adequada ã natureza do ente abstrato (arts. 22, 23
e 24, da Lei n. 9.605/98)26.
PENAL B R A S IL E IR O

9.7.2. Apesar da inovação legislativa e da consolidação jurispruden-


cial em relação ã possibilidade de responsabilização crim inal das pessoas
jurídicas, o tema segue gerando inúmeras controvérsias, sobretudo na
ND 3REIIU

dogmática penal.
As teses contrapostas ã possibilidade de atribuição de responsabili­
DE S EG U R A N Ç l

dade crim inal às pessoas jurídicas invariavelmente são colocadas a partir


FTNAS • MED WS

25 "Art.2 ! Quem, de qualquerforma, concone para a prática dos crimes pnvistos nesta Lei, incide
nas penas a estes comina/fas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administra­
dor, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou man­
datário de pessoajurídica, que, sabendo da conduta criminosa deoutrem, deixar de impedir a sua
prática, quando podia agir para evitá-la” (art. 2a, Lei n. 9.605/98, grifou-se).
26 ‘A rt. 22. A s penas restritivas de direitos da pessoa jurídia são: I — suspensão panial ou total de
atividades; I I — interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; I I I —proibição de a n -
tratarcom o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações (...).
Art. 23. A prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em: I — custeio de
programas e de projetos ambientais; I I — execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III
— manutenção de espaços públicos; I V — contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.
Art. 24. A pessoa ju rídia anstituífa ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir,
facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu
patrimônio será ansiderado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciá­
rio Nacional" (Lei n. 9.605/98).
da natureza dos entes coletivos, notadamente pela discussão entre as teorias
da ficção (Savigny) e da realidade (Gierke). O debate, pois, acaba restrito
ã oposição entre conceber a pessoa jurídica como uma criação artificial,
uma abstração legal que perm itiria apenas o exercício de direitos patrim o­
niais (teoria da ficção) ou em ver o ente coletivo como dotado de existên­
cia real, cuja vontade poderia ser equiparada àquela dos entes naturais
(teoria da realidade).
Contudo, para além da assunção da teoria da ficção ou da teoria da
realidade como fundam ento da natureza jurídica das pessoas coletivas, os
problemas em relação ã atribuição de responsabilidade penal são derivados
dos lim ites estabelecidos pelo p rin c íp io d a p erso n alid ad e d a p en a
e, em decorrência, pelo princípio da culpabilidade.
Importante referir, preliminarmente, que não parecem sólidos os
argumentos negativos ã atribuição de responsabilidade penal às pessoas
jurídicas exclusivamente em razão da sua impossibilidade de cum prir pena
privativa de liberdade. O argum ento é falho em razão de o texto consti­
tucional, ao definir as espécies de pena, criar um rol m eramente exempli-
ficativo e aberto (art. 5° XLVI). Conforme exposto, a Constituição é

9 - OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE LIM ITAÇÃO


taxativa apenas em relação às penas proscritas, às sanções term inantem en-
te vedadas (art. 5a, XLVII); não por outra razão a própria Lei n. 9.605/98
criou sanções razoavelmente adequadas aos entes abstratos.
As questões fundamentais a serem enfrentadas quando se discute a
constitucionalidade da Lei n. 9.605/98 no ponto relativo ã responsabilida­
de penal da pessoa jurídica são, portanto, de outra ordem, e podem ser
expostas da seguinte forma: (l1) se a pessoa jurídica é capaz de ação ou
omissão para efetivação do resultado penalm ente relevante (pressuposto
objetivo da imputação); (2 -) se esta ação ou omissão pode ser qualificada
pelos elementos subjetivos da tipicidade (condutas dolosas ou culposas); e
(3à) se ao ente coletivo é possível atribuir o qualificativo culpabilidade,
fundam ento da punibilidade, entendido em sua dupla dimensão: (a) na
teoria do delito, se a pessoa jurídica preenche os requisitos da capacidade
para a culpabilidade (potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de
comportamento) e (b) na teoria da pena, se é possível realizar, na com ina­
ção da sanção penal ao ente coletivo, a graduação do nível de responsabi­
lidade exigido pelo princípio da individualização.
Não obstante a análise da possibilidade de o ente coletivo cum prir
os requisitos constitucionais de atribuição de responsabilidade moldados
pelos princípios da pessoalidade e da culpabilidade instrumentalizados pela
dogmática do direito penal, im portante ainda indagar se a Lei n. 9.605/98
estabeleceu critérios para processar e julgar crim inalm ente a pessoa ju rí­
dica de forma a perm itir a plena observância do devido processo legal27.
Desta forma, em foce das exigências constitucionais em relação à
atribuição da responsabilidade penal, somente a satisfação destes requisitos
materiais e processuais criaria condições m ínimas de possibilidade para que
se exercesse a punição da pessoa jurídica em observância aos princípios
constitucionais penais.

27 Nestesentido, SCHECAIRA, Re^onsabilidade Penal da Pessoajurídica por Dano Ambien­


tal, pp. 145-172.
4
4

10 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS INSTRUMENTAIS


DA DOGMÁTICA DA DETERMINAÇÃO DAS PENAS E
DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO DIREITO
BRASILEIRO: MOTIVAÇÃO E NE BIS IN IDEM
rl

10.1. Fundamentação como Mecanismo de Controle da Aplicação


da Pena

10 .1 .1. A possibilidade de aplicar e de executar um a pena requer não


apenas a existência de uma lei penal criminalizadora, mas de procedim en­
tos concretos previam ente regulados para imputação do crim e e para a
constatação da responsabilidade penal.
A imputação de um delito, ou seja, a atribuição do com etim ento de
um foto ilícito a determ inada pessoa, será realizada com exclusividade
pelos titulares da ação penal. Por meio da denúncia ou da queixa-crime, o
representante do M inistério Público (ação penal pública )1 ou ofendido
(vítima) ou seu representante legal (ação penal pública condicionada ou
ação penal privada )2 serão os sujeitos com capacidade de direcionar, em
juízo, a responsabilidade penal a alguém e postular a sua condenação.

1 "São fm çães institucionais do Ministério Público: I — promover, privativamente, a ação penal


pública, na forma da lei” (art. 129, Constituição).
2 "Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas depen­
derá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de r^resentação do ofendido ou
de quem tiver qualidade para r^resentá-lo” (art. 24, Código de Processo Penal).
“Será admitida ação privada nos crimes de ação públia, se esta nrn for intentada no pr& o legal,
cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, r^udiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir
em todos os termos do pmcesso, fornecer elementos de prova, inteyor k c u t s o e, a todo tempo, no caso
de negligência do querelante, retomara ação como parte principal” (art. 29, Código de Processo
Penal).
A condenação do acusado somente será possível (Ia) se o juiz receber
a queixa-crim e ou a denúncia após a análise das condições da ação (art.
395, Código de Processo Penal)3; (2a) se o juiz não absolver sumariamen­
te o acusado em decorrência da constatação de alguma manifesta causa de
exclusão do delito ou da punibilidade (art. 397, Código de Processo Penal)4,
(3a) se houver regular trâm ite procedimental com instrução probatória
fundada no respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa; (4a-)
se não sobrevier, durante o processo, nenhum a causa de exclusão da puni­
bilidade (art. 107, Código Penal)5; e, finalmente, (5a) se o juiz, no ato de
sentença, após análise do material probatório, entender existente o crime
e ser o réu o autor da conduta imputada. Após a ultrapassagem destes filtros
de ordem penal material e processual, é na última fase da s e n te n ç a p e n a l

que o magistrado determ ina a sanção, condição necessária


c o n d e n a tó r ia

para que, após o trânsito em julgado da decisão, seja iniciado o processo


de execução penal.
PfWAS t MED nus DE SEGURANÇl NO : 'REini PENAL BRASILEIRO

Da mesma forma que não há crim e e não há pena sem lei anterior
que defina a conduta como ilícita (nullum crimen, nulla poena, sine lege), não
há quaisquer possibilidades de se afirmar a existência do delito senão por
meio do devido processo penal, entendido como um procedim ento reali­
zado em pleno contraditório (nulla culpa sine iudicio; nullum iudicium sine

"Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo mberá intentara a ^o privada” (art.
30, Código de Processo Penal).
“Se o ofendido fo r menor de 21 e maior de 18 anos, o direito de queixa poderá ser exernido por
ele ou por seu ^resentante legal” (art. 34, Código de Processo Penal).
3 “A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I —for manifestamente inepta; I I —faltar pressupos­
to processual ou condição para o exerí,cio da ação penal; ou III —faltar justa causa para o exercido
da ação penal” (art. 395, Código de Processo Penal).
4 “Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o ju iz deverá absolver
sumariamente o acusado quando verificar: I — a existência manifesta de musa excludente da ilidtude
do fato; I I — a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputa­
bilidade; I I I — que o fato narrado evidentemente não mnstitui crime; ou I V — extinta a punibilidade
do agente” (art.397, Código de Processo Penal).
5 "Extingue-se a punibilidade: I — pela morte do agente; I I — pela anútia, graça ou indulto; I I I —
pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso; I V — pela pKscrição, deca­
dência ou perempção; V — pela tvnúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de
ação privada; V I — pela retratado do agente, nos casos em que a lei a admite; I X — pelo perdão
judicial, nos casos previstos em lei” (art. 107, Código Penal).
acusatione; nulla accusatio sine probatione; nulla probatio sine defensione)6. A hi­
pótese de existência do delito, concretizada como imputação na denúncia
ou na queixa — peças processuais que fixam os horizontes da tipicidade
atribuídos ao acusado será negada (absolvição) ou afirmada (condenação)
em termos de responsabilidade criminal na sentença penal.
Segundo o Código de Processo Penal, o juiz absolverá o acusado
(sentença absolutória) quando (a) constatada a inexistência do delito —inci­
dência de qualquer das causas de exclusão da ação, da tipicidade, da ilici­
tude ou da culpabilidade; (b) averiguada a não participação do réu no fito;
ou (c) verificada existência de dúvida razoável em relação ao crim e ou ã
participação do imputado7. Todavia, se comprovada na instrução proces­
sual a autoria de uma conduta típica, ilícita e culpável, determ ina o Códi­
go Processual que o juiz proferirá sentença condenatória, aplicando as sanções
cabíveis (art. 387, III) a partir da análise das circunstâncias judiciais e legais
de aplicação da pena (art. 387, I e II)8.
A aplicação da pena integra, portanto, a sentença penal condenató­
ria e, na qualidade de decisão judicial, carrega consigo todos os deveres

10 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS IN STRU M EN TA IS


6Sobre a ideia de processo como procedimento em contraditório e os princípios funda­
mentais que regem o sistema acusatório garantista, conferir C O U T IN H O , Introdução aos
Prindpios Ceraú do Proasso Penal Brasileiro, pp. 183-198.
7 "O ju iz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I — estar
provada a inexistência do fato; I I — não haver prova da existência do fato; I I I — não constituir ofato
infr^ão penal; IV — estar provado que o réu não conconeu para a infrtqão penal; V — não existir
prova de ter o réu concomdo para a inficqão penal; V I — existirem amnstâncias que excluam o
crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e§ l ! do art. 28, todos do Código Penal),
ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência; V I I — não existir prova suficiente para a
condenado” (art. 386, Código de Processo Penal).
8 “O ju& , ao proferir sentrnça condenatória: I — mencionará as circunstâncias agravantes ou atenuan­
tes definidas no Código Penal, e cuja existência rewnhecer; I I — mencionará as outras circunstâncias
apuradas e tudo o mais que deva ser levado em conta na aplicação da pena, de acordo com o disposto 279
nos arts. 59 e 60 áo Decnto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 — Código Penal; I I I — apli­
cará as penas de acordo com essas conclusões; IV —fixará valor mínimo para r^aração dos danos
causados pela infração, wnsiderando os p^juizos sofòdos pelo ofendido; V — atenderá, quanto à
aplicação provisória de interdições de direitos e medidas de segurança, ao disposto no Titulo X I deste
Livm; V I — determinará se a sentença deverá ser publicada na integra ou em resumo e designará o
jom al em que seráfeita a pubUc^ão (art. 73, § 1-, do Código Penal). Parágrafo único. O ju iz de­
cidirá, fundamentadamente, sobw a manutenção ou, sefo ro caso, imposição de prisão pKventiva ou
de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser inteyosta” (art.
387, Código de Processo Penal).
constitucionais inerentes ao ato processual, fundamentalmente a obrigação
da exposição das razões que demonstram estar suficiente e convincente­
m ente motivadas. Em caso de inobservância do dever de fundamentação,
a decisão judicial será nula —“todos os julgamentos dos ó^ãos do PoderJudiciá­
rio serão públicos, efundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, poden­
do a lei limitar a presença, em determinados atos, & próprias partes e a seus advo­
gados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade
do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” (art. 93,
IX, Constituição Federal). N ote-se que mesmo nos julgamentos proferidos
pelo Tribunal do Júri, instituição reconhecida constitucionalmente para
julgam ento dos crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio,
aborto e instigação ao suicídio)9, em caso de decisão condenatória profe­
rida pelo Conselho de Sentença formado por juizes leigos, é o juiz togado10,
a partir da análise das circunstâncias judiciais objetivas e subjetivas, das
agravantes e atenuantes e das causas especiais de aumento e diminuição,
PfWAS t MED nus DE SEGURANÇl NO : 'REini PENAL BRASILEIRO

quem efetivamente determ ina a pena.


O dispositivo constitucional do art. 93, IX, potencializa e redim en­
siona a noção de fundamentação prevista na redação original do Código
de Processo Penal, quando determ ina que a sentença penal deve conter,
dentre outros elementos, a e^osição dos motivos defato e de direito que em -
basam o julgam ento11.

10.1.2. Conforme destaca Jacinto Coutinho, a instrução probatória


no processo penal é dirigida ã formação da convicção judicial a respeito da
existência ou da inexistência dos fetos e das situações relevantes expostas
na inicial acusatória12. Assim, é im portante notar que no processo penal

9 “£ nconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) aplenitu-
de defesa; b)o sigilo das votações; c) a soberania dos vendidos; d) a competência para o julgamm-
to dos crimes dolosos contra a vida” (art. 5S, XXXVIII, Constituição Federal).
10 “O Tribunal do Júri ê composto por 1 (um) ju iz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco)
jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho de Senten­
ça em cada sessão de julgamento” (art. 447, Código de Processo Penal).
” “A sentença conterá: I — os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias
para identijtcá-las; I I — a ex^sição sucinta da acusação e da defesa; I I I — a indicação dos motivos de
fato e de direito em que se fundar a decisão; I V — a indicação dos artigos de lei aplicados; V — o
dispositivo; V I — a data e a assinatura do ju iz ” (art. 381, Código de Processo Penal).
12 C O U TIN H O , Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro, p. 195.
contemporâneo, orientado pela carga principiológica constitucional que
fundamenta a ideia de devido processo, a prova a ser valorada judicialm en­
te não é destinada apenas aos juízos absolutos e binários de condenação ou
de absolvição. Em caso de condenação, é com base nas provas válidas
produzidas durante a instrução que o juiz irá m otivar a sanção (fu n d a ­

m e n ta ç ã o d a indicando os dados empíricos trazidos


a p lic a ç ã o d a p e n a ),

ao processo que direcionam sua decisão no sentido do aumento ou da


diminuição da sanção, dentro dos lirntes constitucionais e legais previstos,
da definição dos regimes e da possibilidade de aplicação dos substitutivos
ã pena privativa de liberdade.
Demonstra Jacinto C outinho que há historicam ente três princípios
que regem a apreciação da prova: “(i) o valor das provas é dado pelo ju iz que,
livremente, empresta a ela a sua subjetividade: trata-se do prindpio da convicção
intima ou arteza moral; (ii) o valor das provas é atribuido taxativamente pela lei:
trata-se do princípio da certeza legal ou tarifamento legal; (iii) o valor das provas é
atribuído livremente pelo ju iz , a partir de sua convicção pessoal, porque não há como
ser diferente, na estrutura atual do processo, mas todas as decisões devem serfunda­
mentadas: trata-se do princípio do livre convencimento ou da convicção racional”13.

10 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS IN STRU M EN TA IS


N o sistema de processo penal moldado pela Constituição brasileira,
cabe ao juiz, na análise do caso, valorar livremente a prova, justificando
de forma motivada, com base nos elementos colhidos na instrução, as suas
opções. A ideia de livre valoração deve ser interpretada, porém, em um pri­
meiro momento, de forma negativa, o que implica um a dupla conseqüên­
cia: primeira, estar vedado ao juiz tom ar quaisquer decisões sem expor
racionalmente os motivos do convencimento (sistema da íntima convicção);
segunda, dever o juiz form ar a sua convicção com base no conjunto pro­
batório, notadamente por não existir um a hierarquia legal entre as provas
(sistema da prova tarifada). A partir desta pauta negativa, o livre conven­
cimento é qualificado positivamente pela noção de fundamentação, enten­
dida como argumentação coerente dos motivos que orientam a decisão a 201
partir da demonstração suficiente dos dados empíricos que sustentam as
hipóteses conclusivas.
Assim, m otivar significa expor de form a clara os elementos concre­
tos produzidos como prova no processo que perm itiram ao julgador de­
term inada conclusão. Além disso, implica em expor como esta conclusão

13 C O U T IN H O , Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro, p. 196.


está juridicam ente adequada, isto é, em apresentar os fundamentos norm a­
tivos, constitucionais e legais que amparam e autorizam a decisão. A fina­
lidade do princípio da fundamentação, portanto, é a criação de mecanismos
de controle e de fiscalização do ato judicial, como forma de m inim izar o
arbítrio e, consequentemente, os efeitos violentos da decisão, m ormente
nos casos de sentença penal condenatória.
Segundo Ney Fayet, é pela motivação que se aprecia “se ojuizjulgou
com conheámento de causa, se sua convicção é legítima e não arbitrária”, pois “in­
teressa à soáedade e, em particular, às partes saber se a derísão foi ou não acertada.
E, somente com a exigência da motivação, dafiundamentação, se permitiria à socie­
dade e às partes a fiscalização da atividade intelectual do magistrado no caso
decidido”14. O dever de motivação decorre, conforme ensina R u i Portano-
va, “(...) de uma imposição do princípio do devido processo legal em que se busca a
exteriorização das razões de decidir, o revelar do prisma pelo qual o Poderfudiciário
interpretou a lei e os fatos da causa”, visto que, “do ponto de vista mais jurídico,
NO : 'REIII1 PENAL B R A S IL E IR O

a motivação é importante, pois viabiliza aferir a vinculação do ju iz à prova (...)”15.


Conclui-se, pois, que a harm onia (ou não contradição) dos argu­
mentos judiciais às hipóteses normativas e ã prova processual representa a
condição de validade da decisão.
Lógico que inexistem mecanismos absolutos de controle da ativida­
de judicial, fundamentalmente porque o julgador opera a partir e dentro
da linguagem. A teoria crítica do direito há m uito tempo demonstrou as
: MED II» S DE S EG U R A N Ç l

inúmeras técnicas (conscientes ou não) utilizadas para dar aparência de


constitucionalidade às decisões, quando, em realidade, determinados atos
ultrapassam ou simplesmente contrariam os limites juridicam ente admiti­
dos16. Todavia, a inexistência de ferramentas, além das normativas, que
Pm »

14 FAYET, A Sentença Criminal e suas Nulidades, p. 49.


282 15 PORTANOVA, Princípios do Processo Civil, p. 248.
16 Ensina Nilo Bairros de Brum que "em um sistema processual baseado no livre convencimen­
to, não e fácil (diríamos impossível) reconstituir os reais motivos que levaram um ju iz a decidir
conforme decidiu. N o que se refere à avaliação daprova, os códigos são lacônicos; a doutrina, extre­
mamente plástica, e a juri^rudência, vacilante. Com tais instrumentos, os juizes podem manipular
os fatos segundo seu temperamento, sua form ado pessoal, sua ideologia, enfim, o que não implica
que isso seja feito deforma consciente e premeditada” (BRUM , Requisitos Ideologias da Senten­
ça Criminal, p. 71).
O estudo referido integra a série de pesquisas de vanguarda realizada no Brasil por
Ney Fayet de Souza (A Sentença Criminal e suas Nulidades, 1980), Rosa Maria Cardoso
vinculem o juiz à Constituição é parcialmente suprida pela exigência de
fundamentação razoável, que perm ite um controle m ínim o do ato pelas
partes por meio dos mecanismos recursais e de impugnação17. Isto porque,
conforme destaca Perfecto Ibanez, o conhecimento judicial pertence sem­
pre ã classe do conhecimento provável, e a decisão não é derivada, neces­
sariamente, de premissas lógicas, em bora se expresse desta forma na sen­
tença. Assim, “os riscos desse tipo de conhecimento somente podem ser
minimizados adotando-se determinadas precaução de métodofrente ao possível erro,
como as que são implícitas no modelo de processo acusatório ou contraditório"18. No
mesmo sentido Cordero, ao defender ser imprescindível que a sentença
contenha argumentos admissíveis, logicamente fundados e suficientemen­
te razoáveis: “o importante é que as razões adotadas sejam objetivamente plausíveis:
não se pode pretender mais [nem menos, acrescente-se] do ju iz ”19.
A instrução (processo de cognição) deve ser entendida, portanto,
como um espaço ou um campo de realização do contraditório, no qual as
partes, por meio do diálogo e do enfrentamento, produzem informações
qualificadas e relevantes acerca do conteúdo da imputação, objetivando
dar substância às suas teses. A sentença finaliza este procedim ento e se

10 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS IN STRU M EN TA IS


estabelece como um ato privilegiado que garante o m om ento de feia (pro-
tagonismo) do juiz. Assim, se a estrutura do sistema acusatório prevê que
durante o procedim ento instrutório o protagonismo seja exercido pelas
partes (acusação e defesa), em paridade de armas — a posição inerte do
julgador ^uiz-espectador) é fundamental nesta fase probatória para garan­
tir a imparcialidade do juízo —, no m om ento da sentença, encerrada a fase

Cunha (O Caráter Retórico do Prindpio da Legalidade, 1979) e Nilo Bairros de Brum {Requi­
sitos Retórias da Sentença Penal, 1980), a partir da orientação crítica de Luis Alberto Warat
{E l Derecho y su Lenguaje e A Definição Juridica, ambos de 1977).
O legado waratiano de crítica à dogmática, sobretudo na área do direito e do proces­
so penal, encontra eco na atualidade em profícuos estudos sobre a construção e a produ­ 283
ção de sentido nas decisões judiciais. Dentte os trabalhos, destacam-se os de Lenio Stteck,
Hermenêutirn Juridica e(m) Crise (1999) e de Alexandre Morais da Rosa, Decisão Penal:
Bricolage de Significantes (2005).
17 Sobre a construção de um sistema recursal adequado ao paradigma acusatório, conferir
W U N D ER LICH , Por um Sistema de Impugnações no Processo Penal Constitucional Brasileiro,
pp. 15-45.
18 PERFECTO IBANEZ, Sentenp Penal, p. 18.
19 C O R D E R O , Ideologie dei Processo Penale, p. 224.
probatória, o magistrado toma para si a palavra, encena o personagem
principal e encerra a trama judiciária.
A sentença, ao ser concretizada como discurso, torna-se um instru­
m ento de intermediação entre o julgador e as partes, bem como de diálo­
go do julgador com o réu, a defesa, a acusação e, em term os mais amplos,
com a própria sociedade. Não por outro m otivo a principiologia que sus­
tenta o sistema acusatório impõe que todas as decisões sejam fundam enta­
das, ou seja, a exposição dos argumentos que orientaram o julgado é a
própria condição de validade do ato judicial. Postura distinta da adotada
no m odelo inquisitório, no qual o m agistrado atua ininterruptam ente
durante a instrução (ativismo judicial) e, não esporadicamente, é omisso
na sentença —omissão referente aos fundamentos da decisão.
Assim, o dever constitucional de fundamentação atinge o procedi­
m ento judicial de individualização da pena, não sendo possível adm itir
neste m om ento de alta complexidade uma m inimização da potência dos
princípios constitucionais. Factível, portanto, a preocupação enunciada por
Fragoso: “não há aqui um poder arbitrário e oju iz não podefixar a pena a seu ca­
pricho (...). A motivação é o diafragma que separa o poder dúcriciotário do arbítrio'’20.
A conclusão lógica da análise dos princípios que orientam a decisão
judicial é a de que no processo crim inal o livre convencimento motivado
não se restringe apenas ã valoração da prova. Atinge com igual vigor a fase
da individualização da pena, exigindo não apenas argumentação convin­
cente dos motivos que levaram ã definição da espécie e da quantidade de
sanção aplicadas, mas a explícita demonstração probatória das circunstân­
cias apontadas como idôneas ã exasperação punitiva.
Am ilton Bueno de Carvalho e Henrique M arder da Rosa fornecem
importantes chaves de leitura para compreensão do grau de importância
da fundamentação das decisões e as dimensões que este ato encerra: “mo­
tivar é (a) dar respostas às indagações fritas durante o pro&sso; (b) dizer o porquê;
e (c) dar as razões de fato e de direito. Dar as razões de direito, aqui, não deve ser
compreendido simplesmente como demonstrar obediência à lei; a motivação da deci­
são judicial deve assumir a lei, confrrmá-la, como em ‘um ato de inteyretação
reinstaurador' Qacques Derrida)” 21. Na construção das hipóteses de controle
do ato judicial, os autores salientam a função de garantia do princípio da

20 FRAGOSO, A Motivação da Sentença na Aplicação da Pena, p 17.


21 CARVALHO e ROSA, A Radicalização Garantista na Fundamentação das Decisões, p. 5.
motivação —“Um — do saber sobre o não saber, como diminuição do poder pelo
poder; Dois — do ddadão em relação ao arbítrio judicante: receber respostas às inda­
gações expostas no decorrer do feito. Em outras palavras, ciência de que o ‘p orquê’
está aríma do simples ‘é assim' — este como conseqüência e não como causa; Três
— da corte superior em relação à inferior: possibilidade de o cidadão demonstrar a
falibilidade do saber quefunda a decisão da qual se recorre; Quatro — mas acima de
tudo, porque é compromisso social — neste momento sublime da ‘novela’, o ju iz sela
seu compromisso com a sociedade: ‘o mundo deve saber das opções do ju iz aojulgar',
ou seja, todos, absolutamente todos, têm o direito de saber por que o Estado-julgador
tomou determinada opção!”22.

10.1.3. Segundo Ferrajoli, a virtude do p r in c íp io d a m o tiv a ç ã o

se expressa por sua natureza cognitiva, que afasta juízos potestativos ao


estabelecer duplo vínculo à decisão: a prim eira vinculação, na esfera do
direito, com a estrita legalidade (motivação de direito); a segunda, na es­
fera fetica, com a prova das hipóteses acusatórias (motivação de feto).
Desta forma, “a motivação permite a fundamentação e o controle das decisões
tanto em direito, pela violafio da lei ou defeitos de inteipretação ou de subsunção,

10 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS IN STRU M EN TA IS


como em fato, por defeito ou insuficiência de provas ou por imdequada e^licação
do nexo entre convicção e provas”23.
A fundamentação deve cumprir, portanto, requisitos nos campos do
direito penal material e do processo penal. N o juízo condenatório ou ab-
solutório deve haver um a harm onia (correspondência) dos argumentos
elencados na sentença (a) com a estrutura norm ativa que define a im puta­
ção, sobretudo a tipicidade, e (b) com o material probatório colhido no
procedim ento público e contraditório.
A obrigatoriedade da dupla referência encontra amparo no art. 381,
III, do Código de Processo Penal, que im põe ao ju iz o dever de indicar,
na sentença, aquilo que a tradicional doutrina processual nom ina como os
motivos de fato e de direito que embasaram a decisão. Porém, como ressal- 285
tado, este dever não obriga que apenas os juízos binários de absolvição ou
de condenação estejam sustentados em prova válida (motivo de feto) e em
hipóteses legais (motivo de direito). Vincula, em idêntica intensidade, o
procedimento de aplicação da pena. Cabe ao magistrado, portanto, na fase

22 CARVALHO e ROSA, A Radicalização Garantista na Fundamentação das Decisões, p. 9.


23 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 640.
final da sentença penal condenatória, indicar as circunstâncias jurídicas que
entende cabíveis para graduar a pena (motivo de direito) e apresentar o suporte pro­
batório que sustenta o seu argumento (motivo de fato).
A Reform a do Código Penal de 1984, ao adotar o modelo escalo­
nado trifosico para aplicação da pena (art. 68 , Código Penal), procurou
dim inuirão m áxim o as possibilidades de arbítrio judicial, fixando rígidos
parâmetros formais que se inobservados conduzem ã nulidade da decisão24.
Porém, a constrição dos espaços de arbitrariedade pela formatação de um
modelo complexo com inúmeras fases e pressupostos (pena-base, pena
provisória e pena definitiva) não foi nem será suficiente para o controle do
arbítrio, sobretudo se for mantida a tradição autoritária do uso excessivo
de termos de alta volatilidade —notadamente dos tipos penais abertos que
constituem as circunstâncias subjetivas de aplicação da pena (p. ex., culpa­
bilidade, antecedentes, personalidade, conduta social, motivos, entre ou­
tras). D e qualquer forma, apesar dos espaços abertos, o critério geral
normativo impõe, sob pena de nulidade, que “o ju iz tem que dizer não so­
mente por que razão condena, mas também por que aplica determinada pena, espe-
ríalmente no que respeita à quantidade”23.
Neste cenário, se a forma é predeterm inada no modelo trifosico, o
conteúdo dos argumentos judiciais igualmente deve ser controlado, sobre­
tudo para que os espaços abertos pelas circunstâncias de aplicação da pena
não convertam a sentença em um juízo de reprovação m oral, em oposição
ao princípio da secularização. O controle material-substantivo dos argu­
mentos cabíveis na aplicação da pena, ou seja, daquilo que pode ou não ser
objeto de valoração, é imprescindível nos sistemas orientados pelo princí­
pio da motivação. Assim, mesmo as circunstâncias subjetivas (referentes ao
autor do foto), que apresentam m aior dificuldade de comprovação, devem
necessariamente ser demonstradas a partir de dados processualmente váli­
dos, ou seja, elementos empiricamente refutáveis. Em outros termos, as
circunstâncias subjetivas, para terem seu conteúdo validado na decisão,
devem ser objetivadas na prova, concretizadas em elementos comprováveis.

24 “Sobre o tema, pode-se afirmar que a jurisprudência dos tribunais brasileiros tem sido criteriosa e
exigente, estabelecendo como principio a nulidade da sentença condenatória sempK que não seja ob­
servado o referido critério trifásico, ou não devidamente justijirnda a imposição da pena acima do
mínimo legal, bem como a fixação de regime inicial mais grave, quando admissível outro mais favo­
rável ao condenado” (GOMES FILHO, A Motivação das Decisões Penais, p. 217).
N o mesmosentido, G RIN O V ER et al., A s Nulidades no Pro&sso Penal, pp. 260-267.
2i SCHECAIRA, Cálculo da Pena e Dever de Motivar, p. 175.
D o contrário, produz-se “uma perversão inquisitiva do processo, dirigindo-o não
mais à comprovação defatos objetivos, mas para a análise da interioridade da pessoa
julgada”, cujo corolário é a degradação “ (...) da verdade proc&sual (empírica,
pública e intersubjetivamente controlável) em convencimento intimamente subjetivo
e, portanto, inefatável do julgador"26.
Na estrutura do direito penal constitucional, a possibilidade de
controle razoável do arbítrio judicial ocorre a partir da obrigatoriedade de
que na sentença crim inal os atores judiciais exponham exaustivamente os
argumentos que embasaram as suas conclusões. N o caso específico da
aplicação da pena, significa a exigência de que o magistrado apresente os
parâmetros normativos e os elementos probatórios por meio dos quais (a)
valorou determinadas circunstâncias como favoráveis ou desfavoráveis e
(b) definiu a espécie, a quantidade e a qualidade da pena. A obrigação de
exposição suficiente perm ite analisar o raciocínio utilizado para o preen­
chim ento das lacunas geradas pelos tipos penais abertos e as formas encon­
tradas para a solução das contradições inerentes ao sistema de aplicação e
dosagem da pena, conforme será posteriorm ente exposto.
Se a motivação qualifica como válidas as decisões judiciais nos sis­
temas garantistas, possível notar que a omissão na fundamentação reproduz

10 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS IN STRU M EN TA IS


uma lógica inquisitiva na qual o ato dejustificaçâo representa uma espécie
de formalismo incômodo — “o devido proceso legal aplicado em sua integralidade
passou a ser considerado como um formalismo incômodo para o direito brasileiro,
esquecendo-se a lição de Hassemer, ao tfirmar que as formalidades do prncedimento
penal não são meras formalidades”27. Não por outro motivo Fauzi Choukr
diagnosticará na cultura processual penal inquisitória e emergencial brasi­
leira a pauperização da garantia da motivação das decisões, provocando,
em relação ã aplicação da pena, injustificadas incompreensões sobre o
significado e o alcance do princípio constitucional da individualização28.

10. 2. Ne Bis in Idemcomo Mecanismo de Controle dos Excessos


207
na Aplicação da Pena

10 .2 . 1. É possível afirmar, com razoável m argem de precisão, a par­


tir da revisão bibliográfica e da análise jurisprudencial realizada sobre a

26 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 15.


27 C H O U K R , Processo Penal de Emergência, p. 139.
28 C H O U K R , Processo Penal de Emergência, pp. 157-161.
m atéria29, que os problemas centrais na aplicação judicial da pena estão
relacionados diretamente com a violação dos princípios constitucionais
instrumentalizadores, ou seja, as nulidades mais freqüentes são decorrentes
da ausência de fundamentação e da sobreposição ou supervalorização das
circunstâncias incriminadoras (bis in idem). Importante dizer que os pro­
blemas processuais ganham maior evidência em razão de sua maior con-
cretude. Além disso, qualquer violação ã forma implica, necessariamente,
em um a violação ao conteúdo dos direitos protegidos.
Assim, os levantamentos metodologicamente orientados possibilitam
perceber que as principais fontes de nulidades na fase de aplicação da pena
decorrem (a) da ausência de motivação do conteúdo das circunstâncias de
aumento e (b) da dupla valoração de elementos normativos ou de dados
feticos30.
A prim eira diretriz estabelecida pelo p rin cíp io ne bis in idem é a
da vedafio da múltipla persecufio penal, ou seja, não é lícito que o titular da
ação penal pública ou privada reahze imputações sucessivas ou simultâneas
PfWAS t MED nus DE SEGURANÇl NO : 'REini PENAL BRASILEIRO

referentes a um mesmo caso penal. Aliás, a própria concepção de dueprocess


of law carrega consigo a orientação da proibição da persecução crim inal
múltipla.
Embora a Constituição brasileira não seja explícita quanto ã vedação
da dupla persecução, esta dimensão processual pode ser extraída dos prin­
cípios do devido processo legal 31 e da garantia da coisa julgada32. Isto por­
que a proibição da persecução penal múltipla é um postulado universal de
justiça consolidado nos distintos sistemas do direito ocidental: na tradição
anglo-saxônica por meio da fórmula do double jeopardy33 e na cultura ro-
m ano-germ ânica na máxima relativa ao ne bis in idem.

29 Sobre o diagnóstico apresentado, conferir CARVALHO, O Papel dos A íoks do Sistema


Penal na Era do Punitivismo, pp. 165-228.
30 Neste sentido, conferir CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do
Punitivismo, pp. 165-228.
31 “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5a, LIV,
Constituição).
32 “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico peifeito e a coisa julgada” (art. 5a,
XX XV I, Constituição).
33 A cláusula do double jeopardy é prevista na 5! Emenda da Constituição Norte-America­
na: “nor shall any person be subjectfor the same offence to be twice put in jeopardy o f life or limb”.
Segundo LaFave, Israel e King, a vedação da dupla incriminação é voltada tanto ã tutela
A ausência de um princípio explícito na Constituição brasileira de
1988 foi suprida com o Decreto n. 678/92, que, ao prom ulgar a Conven­
ção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica),
previu em seu art. 8 9, 2 , 4 que “o acusado absolvido por sentença passada em
julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”. Neste sen­
tido, esclarece Binder que o princípio ne bis in idem: “significa que a pessoa
não pode ser submetida a uma dupla condenação nem correr o risco de isto acontecer.
Entretanto, pode ser submetida a um segundo processo se o motivo deste último
consiste em revisar a sentença condenatória do primeiro para determinar se é ad­
missível uma revogação da sentença ou uma absolvição. O inadmissível, portanto,
não é a repetição do processo, mas uma dupla condenação ou o risco de que este
fato ocorra”34.
N o ordenamento jurídico brasileiro, a restrição do submetimento
de alguém a um novo processo, nos casos de sentença penal condenatória,
é regulada pelo Código de Processo Penal. Apesar de sua localização no
título relativo aos recursos, a revisão crim inal é um a verdadeira ação, vol­
tada ao questionamento da sentença condenatória transitada em julgado
nas hipóteses de (a) decisão contrária ao texto de lei ou ã evidência dos
autos (art. 621, I); de (b) julgam ento fundado em provas falsas (art. 621,

10 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS IN STRU M EN TA IS


II); ou em caso de (c) surgimento de novas provas que inocentem o con­
denado ou de circunstância que reduza a pena (art. 621, III).
A impossibilidade de revisão criminal em desfavor do condenado
(revisãopro societate) é garantia que se alinha ã noção de vedação da refotma-
tio inpejus, ou seja, a proibição de o Tribunal, em caso de recurso exclusi­
vo da defesa, reformar a sentença absolutória ou aumentar a pena imposta,
nos term os do art. 617 e do art. 626, parágrafo único, do Código de Pro­
cesso Penal33.

contra os custos de uma litigància redundante, quanto à proteção dos acusados contra os
excessos (opressões) da acusação (LAFAVE et al., Criminal Procedure, p. 1.162).
Explica Adauto Suannes que "o sistema anglo-saxão alude à impossibilidade do double 289
jeopardy, isto é, um mesmofato típico somente pode dar origem a um único pmcesso criminal contra
o mesmo réu, garantia que provém das primeiras contemplafies da due process clause (51 Emenda
ã Constituição Norte-Americana]” (SUANNES, Os Fundamentos Éti&s do Devido Proces­
so Penal, p. 245).
3‘ B IN D ER, Introdução ao Direito frocessual Penal, p. 125.
35 “O Tribunal, Câmara ou Turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e
387, no que for apliável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver
apelado da sentença” (art. 617, parágrafo único, Código de Processo Penal).
As lógicas de proibição da múltipla persecução penal e de impossi­
bilidade de revisão contra o réu, características dos sistemas processuais
penais acusatórios, serão instrumentalizadas e potencializadas no direito
penal material pelo princípio da vedação da dupla incriminação. Em sín­
tese, são as duas dimensões (material e processual) do princípio ne bis in
idem coráorm e ensina Alberto Silva Franco: “o significado^fulcral do princípio
constitucional ne bis in idem reside no seu caráter bifronte: uma face pro&ssual e
outra material. Sob a primeira pernpectiva, o princípio inadmite uma persecução
penal múltipla, isto é, que uma mesma pessoa e um m&mofato sqam, de novo,
tferidos judicialmente. Com razão, assevera-se que tal princípio ‘representa fechar
definitivamente as portas de um episódio que já foi objeto de um pmcesso penal’.
Sob a angulação material, proíbe a dupla valoração penal na medida em que obsta
que o delito anterior produza, de novo, conseqüências penais”36.

10.2.2. N o caso específico da aplicação da pena, a v ed ação da


du pla in crim in ação —ou a vedação do duplo efeito sancionatório de uma
mesma circunstância punitiva — é prevista no art. 61, caput, do Código
Penal. Ao regular a segunda fase da aplicação da pena (pena provisória), o
Código Penal estabelece a possibilidade de o juiz agravar a sanção penal em
razão da incidência das circunstâncias agravantes desde que não constituam ou
qualifiquem o delito. Em outros termos, o Código Penal determ ina que as
circunstâncias configuradoras do tipo penal principal (circunstâncias ele­
mentares) ou aquelas que compõem o tipo qualificado (circunstâncias
qualificadoras) cum pram o papel de delimitação dos horizontes de incri­
minação, trazendo consigo, portanto, as conseqüências imediatas previstas
no preceito secundário do tipo legal de crime. Assim, qualquer decisão
penal incorreria em dupla incriminação (bis in idem) se a circunstância
elementar ou qualificadora im putada fosse revalorada no processo de deter­
minação judicial da pena.
Im portante destacar que a lógica de não proliferação da valoração
das circunstâncias não é residual e m uito menos se encontra isolada na
arquitetura da aplicação da pena no Código Penal brasileiro. O art. 6 8 ,

"Julgando procedente a revisão, o tribunal poderá alterar a classificação da infração, absolver o


réu, modijtar a pena ou anular o processo. Parágrafo único. D e qualquer maneira, não poderá ser
agravada a pena imposta pela decisão revista” (art. 626, parágrafo único, Código de Processo
Penal).
36 FRAN CO , Sobre a Não Recepção da Reincidência pela Constituição Federal de 1988, p. 8 .
que define o m étodo trifèsico, em seu parágrafo único prevê que “no con­
curso de Musas de aumento ou de diminuição previstas na parte geral, pode o ju iz
limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a cau­
sa que mais aumente ou diminua”. Note-se, pois, que mesmo em caso de
circunstâncias autônomas o Código faculta ao juiz a aplicação de apenas
uma causa de aumento, situação jurídica que reforça o significado da proi­
bição da dupla valoração.
Em termos pragmáticos, alguns exemplos podem ser elucidativos da
extensão do princípio que veda a dupla incriminação.
N os crim es de tráfico de entorpecentes (art. 33 da Lei n.
11.343/2006), o bem jurídico tutelado pelo tipo penal incrim inador é a
saúde pública, conforme indicam doutrina e jurisprudência majoritária37.
Assim, a ofensa ã saúde pública, concretizada, p. ex., na potencialidade de
a droga gerar dependentes, é o elemento que constitui o tipo penal incri­
m inador (elementar do tipo), ou seja, é a própria razão de ser da incrim i­
nação. Incorreria em bis in idem (dupla incriminação), portanto, a senten­
ça que aumentasse genericamente a pena em decorrência de o tráfico de
entorpecentes gerar danos sociais como a dependência. No mesmo sentido
nos crimes patrimoniais como o furto (art. 155, Código Penal) e o roubo
(art. 157, Código Penal), em que o valor protegido pelo tipo penal é o
patrimônio, situações que podem ser definidas como bis in idem são os
casos de aumento genérico de penas em razão de a conduta causar dim i­
nuição patrimonial da vítima ou de o crim e ser praticado com a intenção
de lucro fècil. Note-se, ainda, que o crime de roubo se diferencia do crime
de furto pela presença das circunstâncias de grave ameaça ou violência.
Estas distintas situações determ inam que as penas de reclusão previstas
sejam elevadas de 1 (um) a 4 (quatro) anos (furto) para 4 (quatro) a 10 (dez)
anos (roubo), ou seja, a presença de violência ou grave ameaça no crim e
patrimonial estabelece que o m áxim o de pena prevista para o furto seja o
m ínim o do roubo. Assim, o agravamento genérico da pena do roubo pela
violência da conduta evidenciaria, de igual forma, bis in idem.

37 Desde uma perspectiva crítica a questão é controversa —neste sentido, CARVALHO,


A Política Criminal deDrogas no Brasil, pp. 141-188 e, de forma mais específica, BIZZOTTO
et al., Comentários Críticos ê Lei de Drogas, pp. 41-43. No entanto, a utilização das hipóte­
ses de tráfico de entorpecentes como exemplo é relevante em decorrência dos problemas
concretos gerados pela confusão entre as elementares do tipo (bem jurídico) e as circuns­
tâncias do delito. Sobretudo em razão das perspectivas moralistas que a questão envolve.
Em relação aos tipos penais qualificados, o excesso da dupla incri­
minação parece mais evidente. São circunstâncias que qualificam o hom i­
cídio (art. 121, § 2°, IV, Código Penal), dentre outras, o agente agir me­
diante traição ou por meio de emboscada. Desta forma, manifesta seria a
dupla incriminação em caso de aumento da pena em razão de a conduta
dificultar ou tom ar impossível a defesa do ofendido. N o crime de lesão
corporal, o Código prevê como qualificadora (lesão corporal de natureza
grave), dentre outras, o feto de a ofensa gerar incapacidade para as ocupa­
ções habituais por mais de 30 (trinta) dias (art. 129, § l s, I, Código Penal).
Logo, incabível no procedim ento de definição da pena aum entar sua
quantidade em decorrência de a vítim a ficar afastada do trabalho pelo
período de tem po previsto.
Neste sentido, concluem Grinover, Fernandes e Gomes Filho que
“sob pena de nulidade, m o pode uma rírcunstânría, que serviu como qualificadora
ou possibilitou a desclassificação para tipo privilegiado, ser utilizada também para
agravar ou atenuar a pena. Seria ela utilizada duas vezes"38.
Embora uma m elhor visualização da questão seja proposta ao longo
da descrição das fases da dosimetria, é possível antecipar a conclusão de
que a violação ao princípio da proibição da dupla incriminação (ne bis in
idem) na dogmática da aplicação da pena poderá ocorrer em dois planos
distintos. A prim eira incidência de bis in idem poderia ser identificada no
plano vertical, como exposto nos exemplos referidos anteriormente, isto é,
quando (a) há sobrevaloração de circunstâncias elementares do tipo penal
nas diversas fases de quantificação da pena —reprodução de circunstâncias
elementares na pena-base, na provisória ou na definitiva —ou quando (b)
existe revaloração de circunstâncias em duas ou mais fases —repetição da
agravação da pena-base na pena provisória e/ou definitiva. A segunda
incidência, mais difícil de ser detectada, seria no plano horizontal, quando
se percebe a duplicação de efeitos entre as próprias circunstâncias, isto é,
quando um a circunstância atua como conteúdo de outra e sustenta novo
juízo de agravação —p. ex., uma circunstância da pena-base (personalida­
de) é utilizada para valorar outra (conduta social).
Por fim, outra conclusão possível de ser antecipada é a de que os
casos mais comuns de bis in idem na aplicação da pena ocorrem na prim ei­

38 G R IN O V ER et al., A s Nulidades no Processo Penal, p. 262.


ra fase de determinação da sanção (pena-base), em decorrência de (a) so-
brevalorização de elementares do tipo (plano vertical) ou de (b) duplicação
de conteúdo entre as circunstâncias judiciais (plano horizontal)39. Nestas
situações, a violação da dupla incriminação é fomentada pela estrutura
normativa porosa (tipicidade aberta) que caracteriza as circunstâncias de
aplicação da pena.

35 Sobre o tema, conferir CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Pu­
nitivismo, pp. 165-228.
P arte I V
DOGMÁTICA DA APLICAÇÃO DAS PENAS E
DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
4
4

11 - DOGMÁTICA DA SANÇÃO PENAL E ESTRUTURA


NORMATIVA DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO

ri

11.1. Crise da Dogmática e Dogmática das Penas e das Medidas


de Segurança

11 .1.1 . A forma dogmática de realização do direito é distinta nas três


teorias que sustentam o direito penal: teoria da lei penal, teoria do delito
e teoria da pena. Se a teo ria d a lei é direcionada ao estabelecimento dos
requisitos de validação formal e material para aplicação dos tipos penais no
tempo, no espaço e em relação às pessoas; e se a teo ria d o delito é cons­
truída com o objetivo de delimitar os critérios objetivos e subjetivos de
imputação para atribuição de responsabilidade penal; a te o ria d o g m ática
da pen a, partindo dos pressupostos de validade da lei penal no tempo e
no espaço e de existência da responsabilidade penal de autor pela prática
do injusto, tem como finalidade (Ia) estabelecer os critérios judiciais para
determinação da espécie, da quantidade e da qualidade da sanção penal
(pena ou m edida de segurança) adequada ao delito e (2 a) definir os parâ­
metros para o controle jurisdicional de sua execução (execução penal).
Nota-se, portanto, um a diferença fundamental na abordagem das
teorias que conformam a dogmática jurídico-penal. Se as teorias da lei
penal e do delito são regidas por um a lógica binária ou qualitativa de va­
lidação ou invalidação dos pressupostos de existência da responsabilidade
penal, a teoria da determinação da pena é instrumentalizada por um ra­
ciocínio quantitativo. Assim, p. ex., se a indagação da teoria do delito é se
existiu conduta, se a ação ou omissão é típica e ilícita e s e o autor é res­
ponsável crim inalm ente (culpabilidade), a teoria da pena, pressupondo
como positivas estas respostas, questionará a extensão da responsabilidade
(quantum), isto é, a espécie e a quantidade adequada (razoável) de sanção
penal aplicável como conseqüência jurídica do crime. Em um segundo
m om ento, na fase de execução, a dogmática da pena disciplinará as formas
de cum prim ento das sanções penais e as hipóteses de incidência das causas
de extinção da punibilidade.
A especificidade da teoria (dogmática) da pena em relação às teorias
do delito e da lei penal, no interior da teoria do direito penal, não a isen­
ta, logicamente, das críticas que evidenciaram as crises da dogmática jurí­
dico-penal nas últimas décadas. N o entanto, são exatamente as peculiari­
dades inerentes ã penologia, fundam entalm ente sua proxim idade com a
realidade viva do sistema de justiça criminal, que tom am possível visuali­
zar caminhos bastante profícuos para a construção de alternativas dogmá­
ticas (dogmática conseqüente) orientadas pela perspectiva redutora (redu­
ção de danos).

11. 1.2 . A fin alid ad e d a d o g m á tic a ju ríd ic a é a aplicação judicial


FíMAS i MED IUS DE S E G U R «(JI ND 3REIID PENAL BRASILEIRO

do direito por m eio da criação de técnicas (instrumentos) de interpretação


voltadas ã harmonização do complexo normativo. Harm onização que
significa, em última instância, dotar o sistema jurídico de completude e
coerência de forma a criar condições de previsibilidade m ínim a das res­
postas jurídicas fornecidas aos problemas propostos. É possível dizer, por­
tanto, que a ciênciajurídica (dogmática), assim como as demais ciências
particulares de origem iluminista, é pautada por um ideal ou uma vontade
de sistema(tização).
Apesar dos esforços dogmáticos, sobretudo no século passado, para
unificar em um único corpo a integralidade da matéria jurídica —preten­
são apropriada, p. ex., pela teoria geral do direito e pela teoria geral do
processo —, os sistemas jurídicos contemporâneos cada vez mais se autono-
m izam em seus campos de identidade. A fragmentação do processo de
2 g0 produção do direito ocorre em razão da alta complexidade dos ordena­
mentos atuais, marcados pela descodificação, pela inflação legislativa e pela
crescente criação de ramos autônomos (novos direitos).
Neste cenário em que a im agem geral do direito é representada pela
sua própria expansão, paradoxalmente seus campos específicos procuram
preservar uma relativa autonomia, exatamente com a finalidade de garan­
tir o m áximo possível de coerência interna. Assim, o fenômeno da frag­
mentação amplia superlativamente as dificuldades dogmáticas de harm o­
nizar o sistema jurídico por meio de técnicas capazes de assegurar uma
estabilidade mínima. N o campo da dogmática jurídico-penal, as dificul­
dades de encontrar ferramentas que possibilitem garantir uma aplicação
harmônica e coerente do direito penal não são menores.
A perspectiva novecentista de construção de um sistema jurídico (ou
jurídico-penal), dotado de completude e de coerência, parece, pois, apenas
refletir um a imagem romântica e desbotada, produzida por um modelo de
ciência em crise desgastado pelas turbulências da pós-modernidade.
A crise das grandes narrativas —no caso específico a crise das teorias
da pena —desestabilizou o projeto dogmático de harm onizar o sistema de
aplicação do direito penal aos fins político-crim inalm ente idealizados. Ao

FuíirflG À U I L E R ü
invés de avançar rum o ã plenitude e ã coerência, que assegurariam uma
aplicação equânime do direito penal, a fragmentação teórica e a expansão
legislativa proliferam lacunas e contradições, situação que desestabiliza,
gradual e constantemente, as perspectivas dogmáticas ortodoxas, sobretu­
do aquelas de origem (neo)positivista.
Em comparação com o estado da arte do sistema jurídico-penal

PB U U .: EBTÜJT. li * jftU IIU l ul


contem porâneo, caracterizado pela descodificação e pela expansão legis­
lativa, é possível dizer que até meados do século X X a tarefo dogmática
era relativamente simples, pois as lacunas e as contradições ocorriam em
um horizonte no qual as suas fronteiras eram de perceptível visualização.
N o caso brasileiro, o conjunto de leis que com punha o sistema ju­
rídico era caracterizado pela existência de um corpus normativo relativa­
m ente estável composto por microssistemas plenam ente identificáveis
(Código Civil, Código de Processo Civil, Código Penal, Código de
D4 ÜCfc
Processo Penal, Lei de Contravenções Penais, Consolidação das Leis Tra­
balhistas, entre outros). N o que tange ã matéria penal, após as décadas de ■DQGUM13

1960 e 1970, os sistemas de direito material e processual se fragmentam,


m om ento no qual é possível perceber o início da perda de protagonismo
dos Códigos (Penal e Processual Penal) como fontes privilegiadas de in­
terpretação do fenômeno crim inal —um a das mais marcantes alterações foi
a publicação da Lei n. 6.368/76 (Lei de Drogas), estatuto que inaugura a
descodificação do direito penal brasileiro. A situação se torna patológica
durante a década de 1990, m om ento de plena expansão do direito penal
com a publicação de inúmeras leis penais especiais.
A consolidação do processo de descodificação irá influenciar de
forma decisiva as fontes de produção da dogmática penal (doutrina e ju ­
risprudência) . C om a proliferação de estatutos penais há o deslocamento
dos Códigos para uma função coadjuvante, situação que provoca a despo-
tencialização dos princípios configuradores das teorias da lei, do delito e
da pena, situados na parte geral. Em relação à dogmática da pena este
processo é bastante nítido.

11.2. Estrutura Normativa do Sistema Punitivo Brasileiro


11.2.1. A R e fo rm a P en al de 1984 havia estruturado, sob a pers­
pectiva da ressocialização (prevenção especial positiva), um sistema coe­
rente de penas e de medidas de segurança. Este sistema se instrum entali­
zava basicamente em dois pilares: (a) substitutivos penais; e (b) sistema
progressivo.
N o prim eiro mom ento, de aplicação da pena, o projeto proporcio­
nava ao juiz estabelecer, conforme fosse “necessário e suficiente para r^rovafio
eprevenfio do crime” (art. 59, caput, infiine, do Código Penal), distintas penas
PENAL B R A S IL E IR O

(multa, restrição de direitos ou privação de liberdade). Em caso de prisão,


caberia ao juiz definir o regim e mais adequado (aberto, semiaberto ou
fechado) ou ainda aplicar a suspensão condicional da pena (sursis). N o se­
gundo m om ento, de execução da pena, caberia ao juiz efetivar o sistema
NO 3REIID

progressivo, transferindo gradualmente o condenado ao regime menos


severo ou antecipando a sua liberdade (livramento condicional).
Logicamente que todas estas possibilidades de aplicação de substitu­
DE S EG U R A N Ç l

tivos penais e de execução progressiva das penas ainda se encontram pre­


sentes no ordenamento jurídico nacional. N o entanto, na Reform a de 1984,
havia uma coerência lógica no interior do sistema, exposta exemplarmen­
FTNAS • MED WS

te nos critérios quantitativos (tempo) de determinação das penas, que foi


perdida a partir do processo de descodificação ocorrido na década de 1990.
É possível expor graficamente a estrutura elaborada pelos reforma­
dores em 1984 da seguinte forma (quadro limitado aos requisitos temporais,
excluídos os demais requisitos objetivos e subjetivos):
Figura 1 : S i s t e m a d e P e n a s n a R e f o r m a d e 1 9 8 4
Tempo de
Pena Pena entre 6m Pena entre Pena entre Pena entre Pena acima 8a
(Requisito Pena até 6m e la la e 2a 2a e 4a 4a e 8a
Objetivo)
Pena
Espécie Pena
Multa
de Restritiva de Suspensão Regime
da Pena Aberto
Regime Regime
Semiaberto Fechado
Direito
N ote-se que é possível perceber no projeto a preocupação com uma
rígida proporcionalidade para definir os substitutivos da prisão (pena de
multa, pena restritiva de direito e suspensão condicional da pena) e os
regimes prisionais (aberto, semiaberto e fechado): (1-) pena (de prisão)
aplicada até 6 meses é substituída por multa; (2 -) entre 6 meses e 1 ano é
substituída por restrição de direito; (3a) entre 1 e 2 anos é aplicada a sus­
pensão condicional do processo; (4a) entre 2 e 4 anos o regim e inicial de
pena é aberto; (5a) entre 4 e 8 anos o regime inicial é semiaberto; e so­
mente (6 a) acima de 8 anos o regim e inicial seria o fechado.
Logicamente o sistema continha algumas exceções, dentre as mais

■DQQMÍH rj U Í U W Ç J c r L M l 1 t jífiy l1 H 1 R iH U IIU I D ã Í 1 A - U í i r w í f l A - l L E f t ü


relevantes (a) a possibilidade de aplicação de pena alternativa para qualquer
espécie de crime culposo, independentem ente da quantidade de pena
aplicada; (b) a impossibilidade de substituir a pena de prisão por restritiva
de direito em caso de réu reincidente; (c) a promoção de um grau mais
rigoroso na definição do regime em caso de reincidência (p. ex., conde­
nado reincidente a 3 anos de pena privativa de liberdade o regime inicial
seria semiaberto); (d) a possibilidade de suspensão condicional do proces­
so em caso de reincidente condenado ã pena de multa, entre outros.
N o campo da execução das penas, o sistema de individualização era
orientado fundamentalmente pelo conteúdo ressocializador da medida,
situação que conferia ao corpo técnico criminológico ampla discriciona-
riedade no procedim ento de informação, ao juiz das execuções penais, do
grau de adaptabilidade do condenado ao tratam ento penal. O exame cri­
minológico, transladado ao processo de execução como prova pericial,
converte-se na principal peça de informação dos aspectos subjetivos do
apenado, cabendo ao juiz, na análise da perícia no conjunto com os demais
elementos objetivos e subjetivos (tempo de cum prim ento de pena e con­
duta carcerária, respectivamente), determ inar as progressões (ou regressões)
de regime, converter a prisão em restrição de direito ou conceder o livra­
m ento condicional.
11.2 . 2 . A primeira ru p tu ra co m a coerência in te rn a do sistem a
de penas delineado n a R e fo rm a de 1984 adveio, inegavelmente, com
a Lei n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos). Dentre todos os efeitos que
a Lei que simboliza o ingresso formal do Brasil na era do punitivismo
produziu —seja no âmbito do direito penal material, com o aumento de
penas aos crimes elencados como hediondos e a restrição do indulto, da
anistia e da graça, seja no processual penal, com a vedação da fiança e o
aumento do prazo da prisão temporária o mais sensível em termos pe­
nológicos foi a determinação do cum prim ento em regime integralmente
fechado, independentem ente da quantidade de pena fixada judicialmente.
A determinação do cum prim ento integral da pena no regim e fecha­
do rompe com qualquer possibilidade de se pensar um sistema estruturado
na prevenção especial positiva. Conforme visto anteriormente, é da essência
do correcionalismo o estabelecimento de etapas no processo de execução
da pena de forma que o condenado adquira gradualm ente sua liberdade
conforme o nível de resposta positiva ao tratam ento penal imposto1. Em
sentido inverso, o sistema correcional prevê regressões de regim e nos casos
em que se concretizam negativamente as expectativas estabelecidas pelas
comissões de classificação criminológicas na individualização executiva da
pena.
O ponto-chave do sistema ressocializador é a possibilidade de fle­
xibilização da sanção ao longo da execução, conforme a adequação do
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

condenado ao tratamento, motivo pelo qual a pena se torna altamente


volátil em sua quantidade e na sua qualidade. Ao condenado que se adéqua
aos princípios correcionais é garantida a transferência para um regime
prisional menos severo e com maiores espaços de liberdade (regimes aber­
to e semiaberto), assim como poderá dim inuir a própria quantidade de
pena imposta (p. ex., com remição da pena pelo trabalho). N o entanto, se
o apenado for resistente e não aceitar o regime disciplinar imposto, o sis­
tema igualmente se flexibiliza, mas por meio da regressão, ou seja, com o
enrijecimento do regime de cum prim ento da pena.
O problema gerado pela Lei dos C rrnes Hediondos no sistema bra­
sileiro de prevenção especial positiva é o de que, se a sanção crim inal
objetiva prioritariam ente a ressocialização, seriam exatam ente aqueles
condenados que praticaram os fatos mais graves as pessoas que necessitariam
de maior cuidado no tratamento penal. Se a lógica correcional se estabe-
302 lece a partir da percepção de que o autor do ilícito é um sujeito com défi­
cits de ordem pessoal, familiar ou social e que em razão de falhas na so­
cialização necessita ser recuperado por meio da intervenção do Estado, a
gravidade do delito seria exatamente um dos indicadores que revelariam
problemas existenciais mais profundos e que, consequentemente, justifi-

1 Conforme abordado, sobretudo na crítica ao modelo da prevenção especial positiva,


há uma conttadição em termos lógicos na ideia de tratamento coercitivo (imposto).
caria uma atuação mais específica dos agentes da execução penal (psicólo­
gos e assistentes sociais, sobretudo).
Nota-se, portanto, que a Lei dos Crimes Hediondos, ao vedar a
possibilidade de adequação do condenado ao tratamento penal —ou seja, no
cum prim ento das etapas estabelecidas e no atingim ento dos espaços de
liberdade previstos na estrutura originária do Código e da Lei de Exe­
cução —, desestabilizou o sistema de individualização científica da pena.
Notadamente porque sua fundamentação penológica abdica do pressuposto
básico do ideal penal-welfare, que é acreditar na capacidade de ressocializa­

Í1A -UíirflG éflA-lLEftü


ção do delinqüente.
Logicamente que estes problemas político-crim inais e ideológicos
presentes na Lei n. 8.072/90 foram, conforme será objeto de análise no
m om ento da exposição dos regimes prisionais, amplamente debatidos pela
doutrina e jurisprudência nacionais. A questão colocada, desde a publica­
ção da Lei dos Crimes Hediondos, foi a evidente violação aos princípios
da individualização e da humanidade das penas.


O corre que apesar do enfrentam ento operado pela doutrina e por

■DQQMÍH rj Uí UWÇJC rLM l 1 1 Iín JI !H1 Ri FMm


parte da jurisprudência em relação ã inconstitucionalidade do art. 2-, § l 2,
da Lei n. 8.072/90, somente em 2006, o Pleno do Supremo Tribunal Fe­
deral declarou que a proibição da progressão de regime conflita com a
garantia da individualização da pena (art. 52, XLVI, da Constituição
Federal)2. Esta morosidade do Supremo em analisar a matéria —que em
inúmeros aspectos acena com o negligência —perm itiu que, ao longo dos
15 anos de vigência da obstrução da progressão de regime, houvesse uma
radical alteração nos fundamentos do sistema punitivo nacional. Para além
de ser uma das principais causas da ampliação superlativa do encarcera­
m ento nacional nas últimas décadas, a Lei dos Crimes Hediondos provocou
uma efetiva mudança na cultura punitiva, sobretudo no que diz respeito ã
substituição da perspectiva ressocializadora pelas formas gerencialistas de
controle punitivo. A conclusão possível, portanto, é a de que a Lei dos 303
Crimes Hediondos foi o prim eiro giro do sistema punitivo nacional no
sentido da adesão aos fundamentos neoconservadores da punição que ca­
racterizam o cenário internacional da década de 1990, conforme destaca­
do na prim eira parte do trabalho.

2Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus 82.959, Rei. M in. M arco Aurélio, j.
23.02.2006.
11.2.3. Não obstante o enrijecimento das formas punitivas estabe­
lecido pela Lei dos Crimes Hediondos, outro estatuto que consolidará o
ingresso do sistema de justiça criminal nacional na e r a d o p u n i t i v i s m o
e que marcará o esgotamento do discurso ressocializador será a Lei n.
10.792/2003.
O texto da Lei n. 10.792/2003 é de difícil caracterização ideológi­
ca e retrata, de certa forma, a promiscuidade político-crim inal do proces­
so legislativo brasileiro nas últimas décadas. O adjetivo pode parecer de­
masiado, porém não difere da própria condição de excesso que marca a
política criminal brasileira pós-transição democrática. A falta de coerência
político-crim inal da Lei n. 10.792/2003 é notória, pois o estatuto, ao al­
terar dispositivos do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal,
aponta em direções diametralmente opostas.
E possível identificar a alteração no Código de Processo Penal como
de natureza garantista. Ao redefinir as regras do interrogatório do acusado,
a Lei n. 10.792/2003 instrum entalizou e assegurou a efetividade dos prin­
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

cípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Embora os prin­


cípios regulamentadores do devido processo legal estivessem em vigor
desde a promulgação do texto constitucional em 1988, a doutrina e a ju ­
risprudência ortodoxa, apegadas ã lógica inquisitória do Código de Pro­
cesso Penal do Estado Novo, criavam notórias resistências ã m udança de
perspectiva, edificando barreiras concretas de contenção e de limitação dos
direitos dos acusados. No entanto, a Lei n. 10.792/2003, ao alterar pontual­
mente a m atéria relativa ao interrogatório do acusado, potencializou as
diretrizes constitucionais de ampla defesa, provocando im portante m udan­
ça no rito processual3.

3 Após a Constituição, a doutrina e a jurisprudência processual penal apresentavam uma


clara tensão em relação ã natureza jurídica do interrogatório do acusado. A tendência
m garantista sustentava que, por força dos princípios constitucionais de ampla defesa e do
contraditório, o ato de interrogatório seria eminentemente de defesa, motivo pelo qual,
p. ex., a ausência de defensor geraria a nulidade do ato; o silêncio não importaria em
confissão e não poderia ser utilizado contra o réu. Ao contrário, a dogmática ortodoxa,
amparada nas regras inquisitivas do Código de Processo Penal, entendia que o interroga­
tório consistia em um procedimento de colheita de prova, motivo pelo qual seria um ato
exclusivo do juiz, sem a interferência das partes, situação que caracterizaria uma mera
irregularidade no procedimento, p. ex., a ausência de defensor constituído. A alteração
nos textos do art. 185 ao art. 196 do Código de Processo, operada pelo art. 2- da Lei n.
10.792/2003, consolida a primeira perspectiva.
Em sentido inverso, porém, o mesmo estatuto reforça a perspectiva
punitivista por meio de significativas alterações no sistema administrativo de
feitas disciplinares regrado pela Lei de Execução Penal. Na matéria peniten­
ciária, a Lei n. 10.792/2003 institui um novo regime de cumprimento de
pena, denominado regime disciplinar diferenciado, designado (a) aos ape-
nados, provisórios ou definitivos, que durante o período de permanência
no estabelecimento praticassem crime doloso ou feita grave cujo resultado
consistisse na subversão da ordem ou da disciplina prisional; (b) aos internos
que apresentassem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimen­
to penal ou da sociedade; ou (c) aos presos sob os quais existissem fundadas

-Uíirnn ■íflAãlLEftü
suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organiza­
ções criminosas, quadrilha ou bando (art. 52, Lei de Execução Penal).
A sanção que impõe o cum prim ento da pena em regime diferencia­
do —determ inado por um ato administrativo do diretor do estabelecimen­
to e posterior decisão homologatória do juiz da execução penal —deter­

■DQQMÍH rj Uí UWÇJC rLM l 1 1Iín JI !H1 RüaHIW» D ã Í 1 A


m ina o isolamento absoluto do preso por um período m áximo de 360 dias,
sem prejuízo de prorrogação por igual tem po até o lim ite de um sexto da
pena aplicada —com exceção da possibilidade de receber visitas semanais
de duas pessoas, com duração de duas horas, e o direito ã saída da cela por
2 horas diárias para banho de sol.
Conforme será desenvolvido posteriormente na análise dos regimes
de execução da pena, no aspecto penológico a Lei n. 8.072/90 (Crimes
Hediondos) e a Lei n. 10.792/2003 (Regim e Disciplinar Diferenciado)
rom pem form alm ente com a perspectiva de prevenção especial positiva
que orientou a construção da Lei de Execução Penal, aproximando a es­
trutura normativa penitenciária brasileira dos projetos punitivos neocon-
servadores que emergiram na década de 1990 (gerencialismo). As tendên­
cias inquisitivas de neutralização e de controle atuarial dos grupos de risco
são gradualmente sobrepostas ao ideal ressocializador, situação que deter­
m ina a reconfiguração das práticas do sistema de administração da justiça
crim inal no Brasil. 305
11.2.4. De forma aparentemente paradoxal, a segunda ruptura com
a estrutura de penas desenhada pela Reform a de 1984 advém com a Lei n.
9.714/98, popularizada equivocadamente como Lei das Penas Alternativas4.

* Em realidade, a Lei n. 9.714/98 não cria um novo regime de penas alternativas. Dois são
os motivos que podem ser apontados comojustificadores desta conclusão. Primeiro, por-
O paradoxo (aparente) é relativo à natureza da Lei n. 9.714/98. Se
as Leis ns. 8.072/90 e 10.792/2003 apontam, inegavelmente, para a den-
sificação do punitivismo, o novo estatuto que institui espécies alternativas
de sanção tenderia a ampliar os espaços de liberdade, inclusive estabelecen­
do um contraponto à massiva expansão do encarceramento brasileiro
inaugurada com a Lei dos Crimes Hediondos. N o entanto, a Lei n. 9.714/98
acaba por produzir dois efeitos perversos. O prim eiro, no plano político-
-crim inal, é o da e x p a n s ã o d o c o n t r o l e p u n i t i v o . Conform e é possível
verificar na literatura especializada, a Lei das Penas Alternativas não pro­
vocou a diminuição dos níveis de encarceramento nacional. Os dados
demonstram que os fenômenos (encarceramento e substitutivos penais) são
autônomos, sendo possível perceber que tanto o núm ero de prisões quan­
to o de penas alternativas cresceu de forma constante no Brasil desde 1998,
ou seja, a expectativa anunciada pelos órgãos oficiais de controle de que a
Lei n. 9.714/98 diminuiria o fenômeno da prisionalização não se efetivou5.
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO 3REIID PENAL B R A SILEIR O

Logicamente que qualquer projeto voltado ã substituição da prisão por


espécies menos aflitivas de sanção é relevante. A questão colocada, no
entanto, diz respeito ã efetividade do caráter substitutivo destas espécies de
pena. Em realidade, as pesquisas criminológicas demonstram que os subs­
titutivos configuram-se, na m aioria das vezes, como aditivos sancionatórios
relegitimadores do arquipélago carcerário.
Nos planos norm ativo e dogmático situa-se o segundo efeito per­
verso da Lei n. 9.714/98, que é o reforço da d e s e s t a b i l i z a ç ã o d a e s t r u -

que a Reforma de 1984 havia introduzido no sistema normativo apossibilidade de a pena


de prisão ser substituída por penas restritivas de direito (limitação de final de semana,
prestação de serviços ã comunidade e interdição temporária de direitos) e sanções pecu­
niárias (multa). Segundo, porque o novo estatuto, seguindo a mesma lógica da parte geral
reformada, não estabeleceu penas efetivamente alternativas, mas substitutivas ã pena
2 0 Q privativa de liberdade. Isto significa que no preceitosecundário dos tipospenais é previs­
ta a pena privativa da liberdade como resposta central ao delito. Dependendo da quanti­
dade de pena privativa de liberdade aplicada, após a análise das circunstâncias objetiva:) e
subjetivas, o juiz poderá alterar a espécie de pena a ser executada. No entanto, na lógica
carcerocêntrica que informa o sistemapunitivo nacional, a referência é sempre a pena de
prisão, inclusivepara que a pena substitutivapossaser, posteriormente, em caso de des-
cumprimento das condições impostas, reconvertida em privação de liberdade.
5 Neste sentido, consultar CARVALHO, Substitutivos Penais na Era do Grande Encarcera­
mento, pp. 146-171; CARVALHO, O Papel dosAtoms do Sistema Penal na Era do Punitivismo,
pp. 47-57; LEMOS, Política Criminal no Brasil Neoliberal, pp. 102-113.
t u r a s a n c i o n a t ó r i a projetada na Reform a de 1984. Neste ponto, que diz
respeito à lógica interna do sistema de penas, os efeitos da Lei n. 9.714/98
talvez sejam mais contundentes que os provocados pela Lei n. 8.072/90 e
pela Lei n. 10.792/2003. Im portante referir, novamente, que são louváveis
quaisquer iniciativas cujas finalidades sejam estender os espaços de liber­
dade e restringir encarceramento. Todavia, esta perspectiva é válida apenas
quando efetivamente representa um a alternativa, e não um plus punitivo
ou um lim itador de direitos.
Note-se, p. ex., a situação gerada pela ampliação do requisito obje­
tivo que possibilitou a substituição por pena restritiva de direitos em casos

íflA-lLEftü
de condenação ã pena privativa de liberdade não superior a 4 anos. Inega­
velm ente a dilatação do prazo representou um im portante mecanismo de

DãÍ1A-Uíirw
redução da incidência do carcerário. N o entanto, a ausência de um a per­
cepção global do sistema provocou efeitos secundários que poderiam ser
evitados. Dentre estes efeitos, a Lei n. 9.714/98 tornou inaplicáveis o re­
gime aberto e o instituto da suspensão condicional da pena (sunis), im por­
tantes mecanismos descarcerizadores.

rLM l 1 1jínJl1H1RiHUIIUI
Na estruturação do sistema de penas em 1984, conforme exposto
(Figura 1), a aplicação da pena restritiva se inseria em um a hierarquia de
sanções na qual a pena de multa representava o m enor índice de reprovação
e a pena de prisão, cumprida em regime fechado, a mais severa resposta
punitiva. Neste sistema, a determ inação da pena restritiva precedia a sus­
pensão condicional da pena e a aplicação da pena de prisão em regime
aberto, notadamente porque consistiam em respostas jurídicas mais severas

UÍUWÇJc
—o cum prim ento de pena de prisão em regime aberto implicava em reco­
lhim ento noturno, em casa de albergado, e no controle da atividade ex­ rj
terna (diurna) do condenado (art. 36, Código Penal); a suspensão da
■ DQQMÍH

execução da pena, por período de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, pressupunha


que o condenado cumprisse pena restritiva de direitos no prim eiro ano do
prazo, submetendo-se a um regime de vigilância no restante do período
(art. 78, Código Penal). Exatamente por consistirem em regimes jurídicos ggy
distintos, os critérios para aplicação da pena restritiva, do sunis e do regime
aberto estavam vinculados ã m aior gravidade do delito —no que tange ao
aspecto objetivo (tempo de pena aplicada), a pena restritiva poderia ser
aplicada em casos de condenações até 1 (um) ano; a suspensão condicional
da pena para condenações até 2 (dois) anos; o regim e aberto para conde­
nações até 4 (quatro) anos.
O corre que a Lei n. 9.714/98, de form a assistemática, alterou os
requisitos para a substituição da pena de prisão por restrição de direitos,
ampliando as possibilidades de sanções não carcerárias às condenações até
4 (quatro) anos, m antendo inalterados, porém, os institutos da suspensão
da pena e do regime aberto. Em um regim e escalonado de resposta penal,
em face de a restrição da liberdade im plicar em um a situação jurídica mais
favorável e com critérios de aplicação mais flexíveis, a alteração legislativa
resultou na inaplicabilidade do sursis e na restrição da aplicação do regime
aberto exclusivamente como etapa final do sistema progressivo.
Registre-se que a Lei n. 9.714/98 não revogou expressamente os
dispositivos reguladores da suspensão condicional da pena e da privação de
liberdade em regime aberto, situação que gerou graves antinomias e pro­
duziu um sistema normativo esquizofrênico, como percebe R ealejr6. N o
entanto, esclarece o autor que em razão do prim ado da lei penal mais fa­
vorável o sistema foi naturalm ente readequado7. O efeito prático da rede­
finição da estrutura de penas foi, porém, a revogação tácita do sursis e do
regime aberto.
É possível sintetizar, portanto, a reestruturação do sistema provoca­
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO 3REIID PENAL B R A SILEIR O

da pela Lei n. 9.714/98 nos seguintes term os (quadro lim itado aos requi­
sitos temporais, excluídos os demais requisitos objetivos e subjetivos):
Figura 2 : S i s t e m a d e P e n a s a p ó s a L e i n . 9 . 7 1 4 / 9 8
Tempo de Pena ou
Espécie de Crime Pena até 6m Pena entre Pena entre la Pena entre 4a Pena acima de
8a ou Crime
(Requisito Objetivo) 6m e la e 4a e 8a
Hediondo -H
Multa ou Multa c
Espécie de Sanção Multa Restrição de Restrição ou Regime
Semiaberto
Regime
Fechado
Direito 02 Restrições

Excetuando a sanção pecuniária (multa), o sistema de penas nacio­


nal ficou restrito a três espécies de respostas jurídicas: restrição de direito,
privação de liberdade em regime semiaberto e privação de liberdade em
regime fechado (incluindo nesta espécie as alterações produzidas pela Lei
^gg dos Crimes Hediondos). N ão por outra razão R ealejr. conclui que, apesar
de a ampliação do requisito temporal ter sido positiva, “a Lei 9.714/98 veio
modificar e desfazer o sistema construído pela Reforma de 1984”s.

6 R EA LE JR ., Mens Legis Insana, pp. 23-43.


7 R EA LE JR ., Instituições de Direito Penal II, p. 25.
8 R ealejr., Instituições de Direito Penal II, p. 25.
4
4

12 - SISTEM A DE DETERM INAÇÃO DA PENA NO


DIREITO P EN AL B RASILEIRO

12.1. Espécies de Pena e CentraLidade da Prisão


12.1.1. N a análise dos princípios de delimitação do sistema punitivo,
mais especificamente na narrativa sobre o princípio da individualização,
foi possível verificar que a Constituição, no art. 5° XLVI, elenca algumas
espécies de p en a a serem adotadas pela legislação ordinária: (a) privação
ou restrição da liberdade, (b) perda de bens, (c) multa, (d) prestação social
alternativa e (e) suspensão ou interdição de direitos.
O rol constitucional não diverge daquela estrutura de sanções penais
proposta na Reform a de 1984, pois, segundo o art. 32 do Código Penal,
as penas aplicáveis são (a) privativas de liberdade, (b) restritivas de direito
e (c) multa. Em realidade, a diferença é a de que a Constituição, diferen­
temente do Código, descreve não apenas as espécies, mas também algumas
subespécies de penas. N o entanto, não há qualquer incompatibilidade
entre os referidos dispositivos, inclusive porque o Código, a partir da in­
corporação das alterações realizadas pela Lei n. 9.714/98, adotou os des­
dobramentos sugeridos no texto constitucional.
Desta forma, harm onizando a estrutura codificada ã Constituição,
é possível identificar três classes de penas criminais aplicáveis no Brasil: (l1)
privafio de liberdade, caracterizada pela pena de prisão, reclusiva ou detentiva,
cumprida nos regimes fechado, semiaberto ou aberto (art. 33, Código
Penal); (2-) restrição de direito, cujas modalidades previstas são a prestação
pecuniária, a perda de bens e valores, a prestação de serviço ã comunidade
ou a entidades públicas, a interdição temporária de direitos e a limitação de
final de semana (art. 44, Código Penal); e (c) multa (art. 49, Código Penal).
12.1.2. Todavia, é possível perceber da leitura do dispositivo cons­
titucional que o rol de penas previstas não é taxativo, mas meramente
exemplificativo —não por outra razão o art. 5S, XLVI, utiliza a expressão
“entre outras” —, sendo plenamente admissíveis no direito penal brasileiro
inovações legislativas em matéria de penas, desde que sejam respeitadas as
vedações do art. 5° XLVII (princípio da humanidade) —“m o haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, X IX ; b) de
caráter peyétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”.
A perspectiva de inovação nas espécies e nas formas de execução das
sanções ganha relevo no cenário político-crim inal ocidental a partir do
final da década de 1970, notadamente quando a crise da p en a de p risão
passa a ser um entendimento compartilhado pelas próprias agências oficiais
de controle punitivo.
N o Brasil, a partir da década de 1990, ao mesmo tem po em que se
assiste ao enrijecimento das formas punitivas e à densificação dos níveis de
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO 3REIID PENAL B R A SILEIR O

encarceramento (efeito deflagrado com a Lei dos Crimes Hediondos), é


perceptível a ampliação do controle punitivo não carcerário, com o alar­
gamento d ^ espécies de penas restritivas de direitos e a flexibilização do
princípio da obrigatoriedade da ação penal nos casos de infrações de m enor
potencial ofensivo1. Conform e sustentado anteriormente, esta dupla via do
sistema punitivo nacional (aumento do encarceramento e aumento de al­
ternativas ao encarceramento) é apenas aparentemente paradoxal, pois as
tendências diversificacionistas em matéria penal (substitutivos penais) e
processual (substitutivos processuais) aliam-se ao projeto transnacional de
reconfiguração gerencialista e atuarial da administração da justiça criminal.

1 A Lei n. 9.099/95, que cria os Juizados Especiais Criminais, prevê, nos casos de infra­
ções de menor potencial ofensivo, ou seja, nos delitos cuja pena máxima não ulttapasse 2
(dois) anos, um procedimento pié-processual informal e simplificado no qual o autor do
fito e o ofendido podem realizar composição civil dos danos, com efeito de extinção de
punibilidade do fito. Nos casos em que inexiste vítima ou não havendo composição, a
Lei faculta a transação penal com o Ministério Público (art. 72 e seguintes, Lei n.
9.099/95).
Outrossim, nos casos de crimes de ‘médio’ potencial ofensivo, isto é, aqueles cujapena
mínima não ultrapasse 1 (um) ano, a Lei n. 9.099/95 cria o instituto da suspensão condi­
cional do processo, cujo aceite e posterior cumprimento das condições, por parte do
denunciado, operam igualmente como causa de extinção da punibilidade (art. 89, Lei n.
9.099/95).
Duas conclusões parciais, de naturezas distintas, acerca da ampliação
legal dos substitutivos penais, são possíveis: primeira, de ordem normativa,
as penas restritivas são substitutivas e não verdadeiramente alternativas ã
prisão2; segunda, de ordem empírica, as penas restritivas configuram -se
como aditivos e não alternativas ao encarceramento. Tais conclusões parciais
sustentam a hipótese de que o sistema de penas no ordenamento jurídico-
-penal brasileiro, apesar das inovações realizadas na R eform a de 1984 e da
ampliação das penas restritivas fomentada pela Lei n. 9.714/98, mantém-se
centrado em um a ló g ic a ou seja, toda a instrum enta-
c a r c e r o c ê n tr ic a ,

lidade dogmática de determinação e de execução da pena no Brasil é re­


gida a partir da pena de prisão, motivo pelo qual são constantes as dificul­
dades de superação da perspectiva punitivista.

12.2 . Etapas de Aplicação da Pena

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


12.2.1. Segundo Hassemer, “a determinação da pena é, desde muito
tempo, o muro de lamentações dos penalistas, tanto do campo cientifico como práti­
co. E o lamentável é que a dogmática da determinação dapena, ou seja, a elabora­
ção sistemática dos critérios estabelecidos pela lei, não atingiu um grau de precisão e
transparência como o da dogmática dos pr&supostos da punibilidade”3. A assertiva

y,
do autor procura sustentar a existência de uma profunda disparidade entre

ie eBeHi v. L:
os desenvolvimentos dogmáticos das teorias do delito e da pena —a partir
da pressuposição de que os estudos sobre as categorias que com põem o
conceito analítico de crime (conduta, tipicidade, ilicitude e culpabilidade)
adquiriram, ao longo do século passado, maior densidade e, consequente­
w - rJrfüt
mente, estabilidade —e os relativos ã definição das penas.
Não há dúvidas de que historicamente uma das áreas prioritárias da
dogmática do direito penal foi a N o entanto, a questão
te o ria d o d e lito .

não parece ser tão simples. Isto porque grande parte dos (macro)sistemas 3^

2 Cezar Bitencourt, em comentário realizado logo após a edição da Lei n. 9.714/98, com
a ironia que lhe é peculiar (inclusive por força do título da publicação), sustenta que "para
se falar em 'novas penas alternativas’, deve-se esclarecer, inicialmente, uma pequena curiosidade: em
primeiro lugar, não são 'penas novas’ |em razão de sua previsão no Código Penal de 1984] e,
em segundo, não são alternativas [em razão do seu caráter substitutivo]” (BITENCOURT,
Novas Penas Alternativas, p. 68).
3 HASSEM ER, Fundamentos dei Derecho Penal, p. 137.
de direito penal são estruturados a partir das As teorias
te o ria s d a p e n a .

da pena, tradicionalmente interpretadas como centros de irradiação de


legitimidade da intervenção punitiva, acabam, portanto, por estabelecer os
pressupostos sob os quais a teoria do delito definirá os pressupostos de
imputação e de responsabilização.
N o mesmo sentido merece consideração a ausência de transparência
nos critérios de determinação da pena. O aparente nível elevado de clare­
za da dogmática do delito parece ser uma decorrência da sua natureza
universalista, característica que não pode ser im putada à dogmática da pena.
N ote-se que a teoria do delito, desde a gênese do causalismo, passando
pelo finalismo, até as atuais perspectivas funcionalistas, adquiriu uma vir­
tuosa capacidade de transnacionalização. Não por outra razão causalismo,
finalismo e funcionalismo influenciaram diretam ente as teorias penais dos
países rom ano-germ ânicos e, com m uita frequência, seus pressupostos
foram incorporados nos sistemas normativos.
As teorias dogmáticas de determinação da pena, em sentido inverso,
carecem deste potencial colonizador. Em análise comparativa, se é possível
concluir que as estruturas dogmáticas e normativas dos países da civil law
são similares quanto aos pressupostos de imputação do delito e de definição
da responsabilidade (teoria do delito), esta situação não se reproduz em re­
lação às formas de definição da pena, cujos critérios de análise e de aplica­
bilidade normalmente decorrem de um desenvolvimento das tradições locais.
N o caso brasileiro, a preocupação histórica da dogmática penal com
a precisão e a transparência dos critérios de aplicação da pena resultou na
consolidação de um sistema normativo altamente complexo, dividido em
inúmeras fases, e, exatamente por isso, com várias zonas cinzentas e pro­
blemáticas. Ademais, o alto grau de complexidade deu m argem a distintos
posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, m otivo pelo qual a m a­
téria merece ser estudada cuidadosamente.
12.2.2. O Código Penal brasileiro estabelece, de forma bastante
metódica, as etapas e os critérios que o juiz deve seguir para aplicação da
pena no ato da sentença condenatória. N o entanto, im portante frisar que
estrutura metódica não significa, necessariamente, sistematicidade. A dis­
posição de e ta p a s e c r ité rio s d e na esteira da reda­
a p lic a ç ã o d a p e n a ,

ção original do art. 42, do Código Penal de 1940, é apresentada de forma


bastante confusa na lei penal, m otivo pelo qual pode ser considerada pou­
co didática.
A primeira orientação normativa dirigida ao julgador é a de que o
s is te m a d e d e te r m in a ç ã o d a p e n a é d iv id id o dis­
e m q u a tr o fa s e s ,

postas nos incisos I, II, III e IV do art. 59 do Código Penal. Assim, em um


m om ento preliminar, seria possível ler o art. 59 do Código Penal da se­
guinte forma: “o ju iz (...) estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime: I — as penas aplicáveis dentre as cominadas; 11— a
quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; 111 — o regime inicial de
cumprimento da pena privativa de liberdade; I V — a substituição da pena privativa
da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível”.
A exclusão da primeira parte do caput do dispositivo se justifica
exatamente pela assistematicidade do estatuto penal. N o caso, o legislador
não seguiu a regra elem entar de elaboração normativa, que é partir do
geral (caput) ao específico (parágrafos, incisos e alíneas). Invertendo estas
premissas, conform e será possível perceber, os critérios dispostos no caput
são, em realidade, as circunstâncias de análise de um a das subetapas (pena-
-base) de uma das quatro etapas (quantificação da pena) descritas nos
incisos do art. 59, Código Penal. A afirmação pode parecer confusa, mas
esta parece ser a descrição mais precisa da arquitetura apresentada pelo
Código Penal.
De forma didática, é possível descrever a aplicação da pena no di­
reito penal brasileiro como um sistema composto por quatro operações
necessárias e sucessivas:
a) Primeira etapa, eleição da pena cabível entre as cominadas (pena
privativa de liberdade, pena de m ulta ou pena restritiva de direito).
b) Segunfa etapa, deterrnna^o da quantidade da pena aplicável (tempo).
c) Terceira etapa, fixação do regime inicial de cum prim ento de pena
(qualidade da pena).
d) Quarta etapa, avaliação da possibilidade de aplicação dos substitu­
tivos penais (substituição da pena privativa de liberdade por pena
de m ulta ou pena restritiva de direito).

12.2.3. A primeira operação impõe ao julgador


(e le iç ã o d a p e n a )

o dever de verificar quais as penas previstas no preceito secundário do tipo


penal pelo qual o réu foi condenado e, posteriormente, definir qual a san­
ção adequada.
O m odelo brasileiro de construção dos tipos penais incriminadores
segue a tradição de associar ao preceito prim ário (conduta incriminada)
um preceito secundário descritivo das penas cabíveis. Assim, p. ex., no caso
do homicídio simples (art. 121, uiput, do Código Penal), ao preceito pri­
mário (matar alguém) é vinculado o preceito secundário definidor das penas
cabíveis (pena — reclusão, de 6 a 20 anos). Neste caso, o julgador não tem a
possibilidade de escolher a pena cabível, pois o preceito secundário do tipo
incrim inador apresenta apenas uma hipótese punitiva (pena de reclusão
—privativa de liberdade). Desta forma, automaticamente o juiz passaria à
segunda etapa, que é a de quantificar a pena, dentro dos limites impostos
pelo preceito secundário (entre 6 e 20 anos).
N o entanto, inúmeros tipos penais apresentam duas ou mais hipó­
teses punitivas, cumuladas ou alternadas, motivo pelo qual deve o juiz, no
segundo caso (previsão de penas alternadas), proceder à eleição, justifican­
do a sua escolha nos termos do art. 93, IX, da Constituição (princípio da
fundamentação).
Logicamente que, nos casos em que há previsão de penas cumuladas,
igualmente o juiz deve passar, de maneira automática, para a segunda eta­
pa, procedendo à quantificação de cada um a das penas previstas. N o crime
FíMAS i MED IUS DE S E G U R « (JI ND 3REIID PENAL B R A SILEIR O

de furto, p. ex., o preceito secundário do art. 155 do Código Penal deter­


m ina como resposta jurídica ao ilícito as penas de prisão (reclusão de 1 a
4 anos) e multa. N o mesmo sentido, o crime de roubo (art. 157 do Códi­
go Penal), de apropriação indébita (art. 168 do Código Penal), de estelio­
nato (art. 171 do Código Penal), de corrupção passiva e ativa (art. 317 e
art. 333, ambos do Código Penal, respectivamente), de sonegação fiscal
(art. l s da Lei n. 8.137/90), de evasão de divisas (art. 22 da Lei n. 7.492/86),
entre inúmeros outros crimes. Aliás, em caso de pluralidade de sanções,
esta é um a das mais características formas de construção de preceitos se­
cundários, com a acumulação da pena de multa à pena de prisão (detenção
ou reclusão).
Possível dizer, inclusive, que são esporádicos os tipos penais que
preveem penas alternadas —prisão ou multa; prisão ou restrição de direitos;
restrição de direitos ou multa. M as é exatamente nestes casos que o art. 59,
I, do Código Penal tem aplicabilidade, isto é, quando coexistem duas ou
mais modalidades distintas de penas deve o julgador eleger, motivadamen-
te, uma delas. N o crime de furto privilegiado, p. ex., o § 2s do art. 155 do
Código Penal prevê que em caso de réu prim ário, sendo de pequeno valor
a coisa furtada, “(...) o ju iz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção,
diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa” (grifou­
-se). Importante perceber que, neste caso, o dispositivo legal faculta ao juiz
a substituição (“pode substituir”). Ocorre que esta faculdade não pode ser
interpretada como discricionariedade judicial. Em razão de a multa cons­
tituir-se como a resposta penal menos aflitiva, ingressa na esfera de direi­
tos do condenado, ou seja, se as condições objetivas de substituição estive­
rem presentes (condenado prim ário e objeto de pequeno valor), o réu tem
o direito de ser condenado ã multa. A hipótese de não substituição apenas
é admissível se o juiz justificar convincentemente (princípio da motivação)
as razões da adequação, no caso concreto, da pena privativa de liberdade.
Na legislação penal ordinária, esta espécie alternada de pena pode
ser encontrada em diversos tipos incriminadores, não apenas no Código
Penal (arts. 135, 140,147,150, 163,179, 180, § 39, arts. 184, 233, 246, 280,
286, 331, entre inúmeros outros), mas, p. ex., nos crimes contra o consu­
m idor (art. 63, § 2° art. 66 , § 2° arts. 72, 73 e 74 da Lei n. 8.078/90 e art.
7e da Lei n. 8.137/90), nos crimes contra a ordem econômica (arts. 4° 5e
e 6- da Lei n. 8.137/90), nos crimes ambientais (arts. 33, 34, 38, 39, 42, 49
e 60 da Lei n. 9.605/98), entre outros. Em todos estes casos a estrutura do
preceito secundário é m uito similar: pena —detenção (ou reclusão) de ‘x’
a y anos ^ multa. Com o no caso, p. ex., do crim e de “impedir ou dificul­
tar o acesso do consumidor às informações que sobre ele constem em cadastros, banco
de dados, fichas e registros”, previsto no art. 72 do Código de Defesa do
Consum idor (Lei n. 8.078), cuja pena prevista é “detenção de 6 (seis) meses
a 1 (um) ano ou multa”.
Em alguns casos, como na Lei dos Crimes Ambientais (Lei n.
9.605/98), há previsão de cumulação ou alternatividade entre as penas. O
crime de pesca em período proibido ou local interditado (crime contra a
fauna), p. ex., possui como sanção crim inal a “detenção de 1 (um) a 3 (trfc)
anos, ou multa, ou ambas cumulativamente” (art. 34 da Lei n. 9.605/98). Nes­
tes casos, conforme assinalado anteriormente, em decorrência do direito
do réu ã situação jurídica mais favorável, em qualquer hipótese de eleição
de pena que não seja exclusivamente a multa (pena de detenção isolada ou
de detenção cumulada com multa), é imperativo que o julgador demons­
tre convincentem ente as razões de sua opção, sob pena de nulidade (tópi­
ca) da sentença por ausência de motivação.
Situação similar é a das condutas relativas ao porte de drogas para
consumo pessoal, pois o art. 27 da Lei n. 11.343/2006 estabelece a possi­
bilidade de o julgador aplicar isolada ou cumulativamente as sanções pre­
vistas no art. 28, quais sejam, (a) advertência sobre os efeitos das drogas;
(b) prestação de serviços ã comunidade; (c) m edida educativa de compa-
recimento a programa ou curso educativo. A particularidade do caso resi­
de no foto de o art. 28 da Lei de Drogas prever no preceito secundário do
tipo incriminador, como hipóteses sancionatórias principais, espécies de
penas restritivas de direito e de medidas, situação inédita e que rompe com
a lógica carcerocêntrica da legislação penal nacional4.
Na lei penal brasileira, o registro histórico mais relevante da previ­
são de penas alternadas, sobretudo prisão alternada com m ulta, é o da Lei
de Contravenções Penais (Decreto-Lei n. 3.688/41). Na maior parte das
condutas contravencionais havia possibilidade de substituir a prisão simples3
pela multa6. Este foto revela uma das características principais desta forma
de penalidade: aplicação em casos de baixa lesividade que, consequente­
mente, com portam penas privativas de liberdade menores.
Todavia, é possível encontrar exceções ã regra, como o crim e de
abuso do poder econômico, previsto no art. 4a, I, da Lei n. 8.137/90, cuja

4 Sobre as espécies e a acumulação de sanções (penas e medidas) na Lei de Drogas, con­


PENAL B R A S IL E IR O

ferir CARVALHO, A Política Criminal de Drogas no Brasil, pp.279-282.


5 A Lei de Contravenções Penais estabelecia aprisâosimples como a espécie menos rigo­
rosa de privação de liberdade. Segundo o estatuto, "a pena de prisão simples deve ser cumpri-
<fa, sem rigor penitenciário, em estabeluimento espaial ou seção espaial de prisão comum, em r^im e
semiaberto ou aberto” (art. 6a do Decreto-Lei n. 3.688/41).
NO 3REIID

6 O verbo foi propositadamente conjugado no pretérito (havia) em razão do entendimen­


to de a Lei de Contravenções Penais não tersidorecepcionadapela Constituição de 1988.
DE S EG U R A N Ç l

Embora algumas contravenções (consideradas relevantes tenham sido criminalizadas —p.


ex., o porte ilegal de arma de fogo (art. 12 e art. 16 da Lei n. 10.826/2003), a direção de
veículosem habilitação (art. 309 da Lei n . 9.503/97), direção perigosa em viapública (art.
311 da Lei n. 9.503/97), a crueldade contta animais (art. 32 da Lei n. 9.605/98) —, o ob-
FTNAS • MED WS

jetivoprincipal do estatuto foi o de estabelecerpadrões morais de comportamento. Assim


não apenas eram considerados desvios puníveis estados ou manifestações pessoais —p. ex.,
vadiagem (art. 59), mendicância (art. 60) e embriaguez (art. 62) —e práticas sociais ofen­
sivas ao pudor —p. ex., jogo de azar (art. 50) e jogo do bicho (art. 58) —, condutas capi­
tuladas como ‘contravenções relativas ã polícia de costumes’, como eram consideradas
ilícitas condutas que não causavam qualquer dano ou perigo concreto de lesão —p.ex.,
associação secreta (art. 39), conduta inconveniente (art. 40), perturbação do sossego (art.
42). A natureza comportamentalista da Lei de Contravençõespermite questionar a sua
recepçãopela Constituição, pois se “o Estado Democrátia de Direito produziu a secularização
do D inito Penal (...), delitos ligados 4 moral e aos costumes não são mais compatíveis com a nova
ordem jurídico-política" (STRECK, Tribunal do Júri, p. 65).
No mesmosentido, consultar STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise (b),p. 348;
SCHM IDT, O Princípio da Legalidade Penal no Estado Democrático de Direito, p.287. No
sentido da necessidade de descriminalização das contravenções em razão da escassa lesi­
vidade, COPETTI, Direito Penal e Estado Democrático de Direito, pp. 186-188.
pena prevista é “reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa". Na estrutura
sancionatória do direito penal brasileiro, estes valores de reclusão previstos
não podem ser considerados baixos. É possível afirmar, inclusive, que se
encontram no patamar médio dos crimes previstos na legislação penal
nacional. Note-se que em geral esta variação entre pena m ínim a de 2 (dois)
anos e máxima de 5 (cinco) im poria uma série de restrições: (a) o ilícito
não poderia ser considerado de m enor potencial ofensivo (pena máxima
superior a 2 anos); (b) não seria cabível suspensão condicional do processo
(pena m ínim a superior a 1 ano); e, em tese, se a pena concretizada (indi­
vidualização judicial) ficasse acima de 4 (quatro) anos, (c) seria inaplicável
a substituição por pena restritiva de direito e (d) o regime inicial de cum ­
prim ento de pena seria o semiaberto.
A previsão de sanção privativa de liberdade alternada ã multa gera,
porém, independentemente da quantidade de pena legislativa ou judicial­
m ente imposta, problemas de classificação do ilícito, situação que refletirá
na m atéria processual relativa ã com petência. O art. 2 - da Lei n.

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


10.259/2001, que alterou a Lei n. 9.099/95 e instituiu osjuizados Especiais
Criminais Federais, estabelece que “consideram-se infrações de menor potencial
ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a Lei comine pena máxima não
superior a dois anos, ou multa”. A interpretação mais restritiva tenderia a li-

Í-: y,
rn tar os efeitos da Lei n. 9.099/95 (transação penal e composição civil) aos
casos em que (a) a pena m áxim a não fosse superior a 2 (dois) anos ou que

ie BEtEtai v.
(b) a pena de m ulta fosse prevista exclusivamente como pena autônoma,
sem qualquer previsão de aplicação alternada ou cumulada ã pena privati­
va de liberdade, como ocorria em inúmeras contravenções penais —p. ex.,
w - rJrfUt

“provocar, abusivamente, emissão de fumaça, vapor ou gás, que possa ofender ou


molestar alguém: pena — multa” (art. 38, D ecreto-Lei n. 3.688/41).
O co rre que em p o sterio r alteração, provocada pela Lei n.
11.313/2006, o art. 61 da Lei n. 9.099/95 passou a ter a seguinte redação: 317
“consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta
Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não supe­
rior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa” (grifou-se). A reforma
legal parece ter sido explícita na reclassificação de todos os ilícitos penais
como infrações de m enor potencial ofensivo, sujeitas, portanto, ã incidên­
cia da Lei n. 9.099/95 e dos seus institutos despenalizadores (composição
civil e transação penal), cujo preceito secundário prevê pena de prisão
alternada com multa, inclusive naqueles casos em que a pena máxima do
delito ultrapassa 2 (dois) anos —p. ex., arts. 4S, 5S, 6 S e 7S da Lei n. 8.137/907.
Ao ser proposta a questão ao Supremo Tribunal Federal, o entendi­
m ento que prevaleceu foi no sentido de que nos casos em que há previsão
de pena máxima superior a 2 (dois) anos, mesmo quando alternada ã pena
de m ulta, é incabível a classificação do ilícito como infração de menor
potencial ofensivo. N o entanto, independentemente da quantidade m íni­
ma, entendeu a Suprema Corte ser cabível a suspensão condicional do
processo em razão de a sanção menos aflitiva cominada ser a multa, ou
seja, pena m aterialm ente inferior àquela de 1 (um) ano prevista como re­
quisito objetivo para alcançar o direito ã suspensão condicional do proces­
so, nos term os do art. 89 da Lei n. 9.099/958 —“(...) quando para o crime seja
prevista, alternativamente, pena de multa, que é menos gravosa do que qualquer
pena privativa de liberdade ou restritiva de direito, tem-se por satisfeito um dos re­
quisitos legais para a suspensão condicional do processo”9.
PENAL B R A S IL E IR O

7 Sobre o tema, conferir CARVALHO et al., O s Critérios de Definiçm da Tipicidade Material


e as Infrações de Menor Potencial Ofensirn, pp. 81-98.
NO 3REIID

8 "N os crimes em que a pena mínima cominada fo r igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou
não por esta L ei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do proces­
DE S EG U R A N Ç l

so, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido
condenado por outro crime, presentes os demais Kquisitos que autorizam a suspensão condicional da
pena (art. 77 do Código Penal)” (art. 89 da Lei n. 9.099/95).
FTNAS • MED WS

9 No voto que conduziu o julgamento, o Min. Relator sustenta que “para a suspensão
condicional do proasso, a Lei n. 9 .0 9 9 /9 5 exige que a infração imputada ao ríu tenha mínima la­
minada igual ou inferior a 1 (um) ano. Entendo que entra no âmbito de admissibilidade da su ^en -
são condicional a imputação de delito que comine pena de multa deforma altrnativa à privativa de
liberdade, ainda que esta tenha limite mínimo superior a 1 (um ) ano. Nesses casos, a pena mínima
cominada, parece-me óbvio, é a de multa, em tudo e por tudo, menor em escala e menos gravosa do
que qualquer pena privativa de liberdade ou restritiva de direito. É o que se tira ao artigo 32 do
Código Penal, onde as penas privativas de libetdade, Kstritivas de direito e de multa são capituladas
naordem darescente de gravidade. Por isso, se prevista, alternativamente, pena de multa, tem-se por
satisfeito um dos requisitos legais para a admissibilidade de suspensão condicional do processo (...)”
(Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus 83.926-6, R ei. M in. Cezar Peluso, j.
14.09.2007).
No mesmo sentido, Superior Tribunal de Justiça, Habeas C o y u s 109.980, Rei. Min.
Felix Fischer, j. 04.12.2008; Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus 34.422, Rei.
Min. Ham iltonCarvalhido, j. 22.05.2007.
12.2.4. Na segunda etapa (quan tid ade de pena) do procedimento
de determinação da sanção, compete ao julgador definir, nos termos do
art. 59, II, do Código Penal, o tem po da pena anteriormente eleita como
adequada (privação de liberdade, restritiva de direito ou multa).
Nos casos de determinação de pena de multa, autônoma ou cum ula­
da, os limites rnnim os e máximos, bem como as causas de aum ento e de
diminuição, estão regrados no art. 49 do Código Penal. Em razão de a
regra estar disposta na parte geral, é estabelecido um critério universal
aplicável a todos os delitos em que há previsão desta espécie de pena pe­
cuniária. Porém, alguns dispositivos específicos presentes na legislação
extraordinária excepcionam a regra, estabelecendo, no próprio preceito
incriminador, valores m ínim os e máximos da multa —p. ex., “oferecer dro­
ga, eventualmente e sem objetivo de lucm, a pessoa de seu relacionamento, para
juntos consumirem: pena — detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento
de multa de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa (...)” (art. 33,
§ 3S, da Lei n. 11.343/2006). Mas são casos isolados que não chegam a

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


desestabilizar o sistema codificado.
A centralidade do sistema em torno da pena de prisão torna remota
a possibilidade de definição de outra espécie de pena na primeira fase (art.
59, I, do Código Penal)10. Para além das remotas possibilidades de eleição
(e posterior definição) da m ulta na etapa inicial do procedimento, são os

Í-: y,
critério s de q u an tificação da priv ação de lib erd ad e que conformam
as regras gerais da aplicação da pena no Brasil.

ie eBeHi v.
Na legislação penal brasileira, o desenvolvimento de procedimentos
de quantificação da pena decorre do processo histórico de proscrição das w - rJ rff

10 Conforme visto anteriormente, em toda a legislação penal brasileira efoste apenas uma
possibilidade de definição autônoma de pena restritiv a de direito, ou seja, caso único
em que a restrição não é substitutiva da pena de prisão, mas verdadeiramente alternativa.
Trata-se das condenações por porte de droga para consumo pessoal, segundo o art. 28 da 319
Lei de Drogas. Na hipótese de aplicação das penas previstas nos incisos II (prestação de
serviço à comunidade) e III (medida educativa de comparecimento a programa ou curso
educativo) do art. 28, a Lei n. 11.343/2006 define, como quantidade de tempo mãfomo
de sanção, 5 (cinco) meses, para réu primário (art. 28, § 3a), e, em caso de reincidência,
10 (dez) meses (art. 28, § 4a). OuUas duas peculiaridades são marcantes na Lei de Drogas:
(l1) não é fixado limite mínimo da pena, apenas o máximo; e (2 1) inexistem critérios
específicos (objetivos e subjetivos) para quantificação, como, p. ex., há para definir o
tempo de prisão e a quantidade de multa. A alternativa viável parece ser a aplicação ana­
lógica das variáveis de determinação da pena de prisão.
penas fixas. Sendo adotado um sistema de penas variáveis, fixadas a partir
da proposição legislativa de penas mínimas e máximas no preceito secun­
dário do tipo, cabe ao julgador a adequação individualizada da sanção ao
autor do crime.
Im portante registrar que no ordenamento jurídico nacional apenas
o Código Eleitoral, ao tratar dos crimes eleitorais, apresenta estrutura di­
versa. Em inúm eros tipos penais incriminadores a Lei n. 4.737/65 determ i­
nou somente penas máximas — p. ex., “impedir ou embaraçar o exercício do
sufrágio:pena— detenção até 6 (seis) meses epagamento de 60 (sessenta) a 100 (cem)
dias-multa” (art. 297 da Lei n. 4.737/65); “viofor ou tentar violar o sigilo do voto:
pena — detenção até 2 (dois) anos” (art. 312 da Lei n. 4.737/65). Todavia, o
próprio estatuto retoma a tradição de definição de parâmetros m ínim os e
máximos estabelecidos pelo Legislativo ao indicar que “sempre que a te Có­
digo não indicar o grau mínimo, entende-se que será ele de quinze dias para a pena
de detenção e de um ano para a de Kclusão” (art. 284, Lei n. 4.737/65).
PENAL B R A S IL E IR O

O procedim ento judicial de determinação da quantidade de pena


privativa de liberdade está disciplinado no art. 68 do Código Penal, dis­
positivo que consolidou o m étodo trifesico: pena-base, pena provisória e
pena definitiva. A definição de uma metodologia específica para quanti­
NO 3REIID

ficação da pena na Reform a de 1984 solucionou o debate dogmático ini­


ciado com a publicação do Código de 1940 e polarizado nas teses antagô­
DE S EG U R A N Ç l

nicas de R oberto Lyra e Nélson Hungria. Segundo R ealejr., “o art. 50 do


Código penal de 1940 trouxe imensa dúvida, com duas orientações: a defendida por
Roberto Lyra no sentido de uma operação em dois momentos, o primeiro em que
FTNAS • MED WS

conjuntamente se analisam as circunstâncias judiciais e legais, e o segundo relativo


à incidência das causas &peciais de aumento e diminuição; a defendida por Nélson
Hungria, para o qual o cálculo da pena dever-se-iafazer em três momentos, levan­
do-se em consideração inicialmente as circunstâncias judiciais, dtyois as legais e por
320 f i m as causas de aumento ou de diminuição”n'12.
R oberto Lyra defendia um modelo bifesico no qual o juiz, na pri­
meira operação, fixaria a pena-base a partir de uma avaliação conjunta das

11 R EA LE JR ., Instituições de Direito Penal II, p. 107.


12 “A pena que tenha de ser aumentada ou diminuída, de quantidade fix a ou dentro de determina­
dos limites, é a que o ju iz aplicaria se não existisse causa de aumento ou de diminuição” (art. 50,
caput, Código Penal, revogado pela Lei n. 7.209/84).
circunstâncias judiciais (art. 42)13, agravantes (arts. 44 e 45 )14 e atenuantes
(art. 48)1;>. A segunda operação seria de incidência das causas de aum ento
(majorantes) e de diminuição (minorantes) da pena, dispostas na parte
geral e na parte especial do Código16. N o entanto, a Reform a de 1984
adotou explicitamente o m étodo Hungria (trifísico): “a pena-base serâfixa-
da atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas
as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de
aumento” (art. 68 , caput, do Código Penal)17.

13 “Compete ao ju iz , atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo


ou grau da culpa, aos motiws, às circunstâncias e conseqüências do crime” (art. 42, caput, Código
Penal, revogado pela Lei n. 7.209/84).
14 “São drcunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: I
— a reincidência; I I — ter o agente cometido o crime: a) por motivo fü til ou to^e; b) para facilitar ou
assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime; c) depois de embriagas­
se propositadamente para cometê-lo; d) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro

kl y, ■tAA 4; DffiJ :u Hftlil


recuno que dijicultou ou tomou impossíwl a defesa do ofendido; e) com emprego de veneno, fogo,
explosivo, aflxia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum;
f l wntra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge; g) com abuso de autoridade ou pKvalecendo-se
de Klaçòes domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; h) com abuso de poder ou violado de dever
inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão; i) contra criança, velho ou enfermo; j ) quando o
ofendido estava sob a imediata proteção da autoridade; k) em ocasião de inándio, naufrágio, inun-
dtyão ou qualquer calamidade públia, ou de desgr^a particular do ofendido” (art. 44 do Código
Penal, revogado pela Lei n. 7.209/84).

ie ü f i c i i i t
13 “São circunstâncias que sempre atenuam a pena: I — ser o agente menor de vinte e um ou maior
de setenta anos; I I — ter sido de somenos importância sua coopercqão no crime; I I I — a ignorânáa ou
a ernada compreensão da lei penal, quando escusâveis; IV — ter o agente: a) cometido o crime por '■i - rJrfüt
motivo de relevante valor social ou moral; b) procurado, por sua espontânea rnntade e mm eficiência,
bgo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado
o dano; c) cometido o crime sob coação a que podia Ksistir, ou sob a influênàa de violenta emoção,
provocada por ato injusto da vitima; d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria
do crime, ignorada ou imputada a outrem; e) cometido o crime sob a influência de multidão em tu­
multo, se, licita a reunião, não provocou o tumulto, nem é mncidente” (art. 48 do Código Penal,
revogado pela Lei n. 7.209/84).
16 “Apreciando em conjunto a realidade, segundo os critérios gerais do art. 42 e atendidas sempre as
situações dos arts. 44 e 48 (no caso de concurso de pessoas, atua, também, o art. 45), estabelecerá a
pena-base, sobre a qual incidirá o aumento ou a diminuição especificados, quer na parte geral, quer
na parte e^ecial (...)” (LYRA, Comentários ao C éd i^ Penal, p. 173).
17 Sobre o debate metodológico das correntes capitaneadas por Lyra e Hungria, conferir
BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, pp. 150-154; D O TTI, Cuno de Direito
Penal, pp. 543-544; FAYET, A Sentença Criminal e suas Nulidades, pp. 216-220; LYRA
O debate metodológico pode aparentar ser supérfluo, pois, em uma
análise prim eira, a divergência (método bifesico ou trifásico) não parece
ser substancial. Embora efetivamente o embate seja circunstancial, restrito
à forma e não ao conteúdo da aplicação da pena, a opção da Reform a de
1984 foi bastante adequada. Isto porque é absolutamente relevante aos
sujeitos processuais ter clareza em relação aos procedimentos, e o excesso,
neste ponto, não é supérfluo. Existe um consenso na dogmática penal
contemporânea, ao menos nas tendências críticas, de que os direitos fun­
damentais se traduzem e se viabilizam nas formas, pois forma é garantia.
Logicamente que há uma diferença estridente entre forma e formalismo
—que poderia ser traduzido como a corrupção burocrática da forma ou o
vício do apego irrefletido aos procedimentos. N o entanto, sobretudo no
direito e no processo penal, não há efetividade de direitos sem as garantias,
instrumentalizadas nas formas e nos mecanismos de fiscalização e de tu­
tela. Assim, em temas complexos como o da aplicação da pena, quanto
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO 3REIID PENAL B R A SILEIR O

maiores forem as especificações metodológicas, maiores serão as possibili­


dades de controle, feto que, em última análise, resulta em um a m elhor
qualidade da prestação jurisdicional.
O registro da propriedade na definição de um m étodo de quantifi­
cação não exim e a Reform a de 1984, porém, da crítica quanto ã disposição
assistemática dos próprios institutos que orientam a aplicação da pena.
Zaffaroni e Pierangeli, ao analisarem a complexa estrutura da aplicação da
pena, notam, inclusive, que seria necessário um a melhor “(...) ordenado
sistemática de critérios e regras, porque não se trata de uma síntese ordenada, mas
de elementos um tanto dispersos, e cuja ordem hierárquica se fa z necessário
determinar”™.
Conform e apontado anteriormente, um dos pontos de assistemati-
cidade pode ser visualizado no feto de o dispositivo que determ ina a
quantificação judicial da pena (inciso II do art. 59) ser regulamentado no
322 art. 68, caput, que incorporou o m étodo trifásico de Nélson Hungria, sob
a epígrafe cálculo dapena — “a pena-base será fixada atendendo-se ao critério do
art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e
agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento”. O corre que, ao

FILHO e C ER N IC C H IA R O , Compêndio de Direito Penal, pp. 306-309; R E A L E JR .,


Instituições de Direito Penal II, pp. 106-107.
18 ZAFFARONI e PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 829.
regular a primeira fase (pena-base), o art. 68 reenvia o aplicador da pena
ao caput do art. 59. N o m ínim o há um emprego equivocado da técnica
legislativa, pois o caput do art. 59 —que deveria descrever a orientação mais
genérica —acaba sendo transformado em uma das fases reguladas em um
dos seus incisos (inciso II).
O m étodo trifásico de dosimetria da pena, previsto no art. 68 , caput,
foi incorporado ao Código de Processo Penal com o advento da Lei n.
11.689/2008. Ao redefinir as regras relativas ã sentença penal nos proces­
sos de competência do Tribunal do Júri, o art. 492, I, determ ina que, em
caso de condenação, o juiz togado, presidente do Conselho de Sentença,
“a) fixará a pena-base; b) considerará as circunstâncias agravantes ou atenuantes
alegadas nos debates; c) imporá os aumentos ou diminuições da pena, em atenção às
causas admitidas pelo júri". Embora a redação seja mais clara que a do art. 6 8 ,
caput, do Código Penal, a reforma processual não regulamentou o proce­
dim ento de determinação da pena em toda a sua extensão, visto ter silen­
ciado em relação ã imposição do regime e ã possibilidade de substituição

:u H ftlil
da prisão por restrição de direitos.

12.2.5. A terceira etapa comporta a definição da

nritâ
(r e g im e d e p e n a )

Í-: y, ■w. 4;
qualidade da pena privativa de liberdade, ou seja, a especificação do regime
inicial de cumprimento da sanfio.
A lei penal brasileira prevê três espécies de regimes de pena: aberto,
semiaberto e fechado. A diferença entre os regimes é o maior ou m enor

ie b|3eHi v.
âmbito de liberdade proporcionado aos condenados. Assim, nos term os do
art. 33, § l s, do Código Penal, a execução em regime fechado ocorre em
estabelecimento de segurança m áxim a ou média; o regime semiaberto
w - rJrfUt

im porta cum prim ento em colônia agrícola, industrial ou similar; o regime


aberto possibilita permanência em casa de albergado.
Im portante lembrar que após a declaração de inconstitucionalidade
do art. 2S, § l s, da Lei n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) pelo Su- 323
prem o Tribunal Federal19, que determinava o cum prim ento integral da
pena em regime fechado nos casos de condenação por crimes hediondos e
equiparados, inexiste qualquer outra vedação ã progressividade de regime
no Brasil. Desta forma, a indicação realizada pelo juiz sobre o regime de

19 Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus 82.959, Rei. M in. M arco Aurélio, j.
23.02.2006.
cum prim ento é sempre provisória, pois é durante a execução penal que a
sanção será adequada (individualização executória).
Em realidade, a volatilidade qualitativa da pena garantida no Códi­
go Penal perm ite afirm ar que dificilmente o condenado cum prirá a inte-
gralidade de sua pena em um mesmo regim e. N o entanto, isto não signi­
fica que a flexibilidade da pena ocorra tão somente em benefício do
condenado (progressão de regime). O próprio art. 33, § 2S, do Código
Penal, institui a possibilidade de regressão, ou seja, a hipótese de transfe­
rência do apenado para um regim e mais rigoroso em decorrência, p. ex.,
de condenação por falta grave ou concurso de delitos.

12.2.6. Na quarta etapa (substitutivos penais), é realizada a aná­


lise das possibilidades de substituição da pena de prisão por sanção ratritiva
de direitos.
Conforme amplamente exposto ao longo do trabalho, as penas co-
mum ente denornnadas alternativas operam, em realidade, como substitu­
FíMAS i MED IUS DE S E G U R «(JI ND 3REIID PENAL BRASILEIRO

tivos penais. Assim, mesmo o juiz visualizando a possibilidade de aplicação


de pena restritiva de direito, deve realizar todo o procedim ento descrito
nos incisos II e III do art. 59 do Código Penal: quantificar a pena de pri­
são e determ inar o regim e de cum prim ento. A operação se justifica e re­
força o entendim ento das restrições de direitos como penas substitutivas,
isto porque em caso de descumprimento o juiz da execução reconverterá
em pena de prisão, nos termos quantitativos e qualitativos fixados na sen­
tença, descontado o período já cumprido.
Apenas nos casos de condenação por porte de drogas para uso pes­
soal inexiste hipótese de reconversão. O motivo principal é o de que as
penas restritivas foram estabelecidas com o sanção autônom a no preceito
secundário do art. 28 da Lei n. 11.343/2006. Em caso de eventual des­
cum prim ento, o § 6- do mesmo dispositivo legal prevê sanções específicas
22^" (admoestação verbal e multa), excluindo explicitamente a possibilidade de
conversão da pena restritiva em prisão. Ademais, reforça este argum ento
o feto de a Lei n. 11.343/2006 ter vedado expressamente a possibilidade
de prisão processual (art. 48, § 2°), o que demonstra nitidam ente a inten­
ção de excluir o consumidor de entorpecentes de qualquer regim e prisio­
nal (prisão processual ou prisão-pena).
A Reform a de 1984 elencava apenas três hipóteses de restrição de
direitos: a prestação de serviço ã comunidade ou a entidades públicas, a
interdição temporária de direitos e a limitação de final de semana. C on-
forme será objeto de análise posterior, com o advento da Lei n. 9.714/98
não apenas foram ampliados os critérios para concessão da substituição,
como foram acrescentadas duas novas sanções ao art. 43 do Código Penal:
a prestação pecuniária e a perda de bens e valores. A pena de recolhim en­
to domiciliar, que constava no texto original da Lei n. 9.714/98, foi obje­
to de veto presidencial, o que tornou sem efeito o inciso III do art. 43 do
Código.

1 2 .3 . Pena-Base: Conceito e Caracterização das Circunstâncias


Judiciais

12.3.1. O Código Penal de 1969—revogado após longo período de


vacância —definia, em seu art. 63, a p en a-b ase como aquela “que tenha de
ser aumentada ou diminuída, de quantidadejtxa ou dentro de determinados limita,
é a que o ju iz aplicaria, se não existisse a rírcunstânría ou causa que importe o
aumento ou diminuição da pena”.
Esclarece Paganella Boschi que a pena-base “é aquela que atua como
ponto de partida, ou seja, como parâmetro para as operações que se seguirão.A pena-
-base corresponde, então, à pena inicialjtxada em concreto, dentro dos limites esta­
belecidos a priori na lei penal, para que, sobre ela, incidam, por cascata, as dimi­
nuições e os aumentos decorrentes de agravantes, atenuantes, majorantes ou
minorantes”20. O conceito é preciso e demarca a importância da pena-base
na metodologia de determinação da pena: em decorrência de ser o ponto
de partida, qualquer avaliação equivocada proliferará efeitos cumulativos
nas penas provisória e definitiva e, inclusive, nos momentos de definição
do regim e inicial e da aplicação dos substitutos penais.
Além de ser a referência primeira sobre a qual incidirão as circuns­
tâncias legais (agravantes e atenuantes) e as causas especiais de aumento e
de diminuição (majorantes e minorantes), motivo que por si só aponta para
a necessidade de um rigoroso cuidado técnico do julgador, a pena-base é
composta por inúmeras categorias abertas (circunstâncias judiciais), situa­
ção que aumenta o nível de complexidade e caracteriza a prim eira etapa
da dosimetria como a mais propensa a erros.

20 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 187.


12.3.2. O caput do art. 59 do Código Penal elenca oito c irc u n s tâ n ­

culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade


c ia s ju d i c ia i s :

do agente, motivos, circunstâncias (sentido estrito), conseqüências do


crime e comportam ento da vítima. Dentre elas é possível distinguir duas
espécies: as c irc u n s tâ n c ia s ju d ic ia is que dizem respeito ao
s u b je tiv a s ,

autor do fato (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade


do agente e motivos); e as relativas
c irc u n s tâ n c ia s ju d ic ia is o b je tiv a s ,

ao fato praticado pelo autor (circunstâncias em sentido estrito), conseqüên­


cias do crime e comportamento da vítima).
As circunstâncias judiciais, subjetivas e objetivas, caracterizam o art.
59, aiput, do Código Penal, com o um tip o por duas razões:
p e n a l a b e rto ,

(1®-) a presença marcante de elementos normativos como critérios de determ i­


nação da pena-base e, em conseqüência, (2 ®) a inexistência de indicadores
que inform em como e quanto as circunstâncias operam na maximização ou
minim ização da quantidade de sanção a ser atribuída na pena-base.
Segundo N ilo Batista, “a função de garantia individual exeráda pelo
PENAL B R A S IL E IR O

prindpio da legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que definem


os crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação dos seus elementos”2'.
Logicamente que o autor não limita os problemas da ausência de taxativi-
dade das leis penais aos preceitos primários dos tipos penais incrim inado­
NO 3REIID

res. Problemas idênticos podem afetar os preceitos secundários e as regras


de aplicação da pena. Não por outra razão, N ilo Batista aponta como sérias
DE S EG U R A N Ç l

rupturas na estrutura da legalidade as “formulações típitós ou majorantes de


pena que se valem de enunciação descritiva de alguns elementos, seguida de uma
cláusula de caráter analógico”22. Os recursos ã analogia e ã formulação exem-
FTNAS • MED WS

plificativa são presentes, p. ex., nas agravantes do art. 61, II, alíneas c (“ter
o agente cometido o crime: (...) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação,
ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido”)
(grifou-se) e d (“ter o agente cometido o crime: (...) com emprego de veneno, fogo,
326 explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar peri­
go comum”) (grifou-se), ambas reproduzidas como qualificadoras do crime
de homicídio (art. 121, § 2S, III e IV), todos dispositivos do Código Penal.
Todavia, os tipos penais abertos não são caracterizados apenas pela
presença de elementos exemplificativos ou pelo uso da analogia. A dou-

21 BATISTA, Introdufio Critica ao Direito Penal Brasileira, p. 78.


22 BATISTA, Introdufio Critica ao Direito Penal Brasileiro, p. 82.
trina penal, m ormente a de tradição liberal e garantista, entende que a
constituição de tipos abertos por meio do excessivo uso de elementos
normativos opera um a grave ruptura com a estrutura da legalidade. Luiz
Luisi conceitua os elementos normativos com o “^uelespara cuja compreensão
o intéiprete não pode se limitar a conhecer, isto é, a daenvolver uma atividade me­
ramente cognitiva, subsumindo em conceitos o dado natural, mas deve realizar uma
atividade valorativa. Não são, portanto, elementos que se limitam a descrever o
natural, mas que dão à ação, ao seu objeto, ou mamo às circunstâncias, uma signi­
ficação, um valor. A s opressões ‘honesto’, ‘indevidamente’, ‘sem justa causa’, e
mesmo, ‘cruel’, ‘insidioso’ para qualificar os meios, são exemplares de elementos
típicos normativos”22.
A teoria crítica do direito, notadamente as tendências que dialogam
de forma mais fértil com a semiótica, a semiologia e a hermenêutica filo­
sófica, aponta, desde a década de 1980, que todas as normas jurídicas são
vagas e prescindem de valoração. W arat referia que “diferentemente do que
acontece na lógica simbólica, ou nas matemáticas, que trabalham com uma linguagem
formalizada, todas as normas jurídicas, inclusive as penais, estão expressas em um
tipo de linguagem que se chama natural. Esta linguagem possui como características
inafastáveis a vagueza, a ambigüidade, a anemia de seus termos”2*. Segundo as
lições do autor, para além das expressões de notória vagueza e incerteza
significativa (como ordem pública, segurança nacional, ultraje ao pudor,
ânimo de lucro, entre outras), que se caracterizam por um a anemia cono-
tativa (ambigüidade), mesmo as expressões que parecem aparentar u ^ in­
questionável univocidade padecem de indeterminação como, p. ex., os
termos matar efurtar. O homicídio simples, que apresenta um a das estruturas
típicas mais fechadas do ordenam ento jurídico (“matar alguém”, art. 121 ,
caput, do Código Penal), em certos momentos deixa de ser transparente.
Indaga W arat se estaria adequado ao sentido ordinário de m atar a conduta
do médico que extrai o coração do paciente, para transplante, enquanto
há atividade encefelica25. Assim, mesmo a categoria morte, cuja estrutura,

23 LUISI, O Tipo Penal, a Teoria Finalista e a Nova Legislação Penal, p. 57.


24 WARAT, Introdução Gemi ao Direito I, p. 209.
25 “Também no direito penal positivo todas as expressões são atual ou potencialmente vagas. Não
falemos de termos como mulher honesta, ultraje ao pudor, ânimo de lucro etc. Mas, mesmo expKssões
que parecem caracterizar-se por uma inquestionável unidade significativa como matar ou furtar, pa­
decem de vagueza. Não se discute aqui a multiplicidade de casos em que é clara a aplicação do tenno,
mas aqueles em que o significado de matar deixa de ser transparnnte, como, por exemplo, o caso de
apesar de aparentemente implicar um juízo meramente cognitivo por meio
da subsunção do dado da natureza (morte) ao conceito jurídico (homicídio),
apresenta um inescusável âmbito de vagueza. Basta lembrar, ainda, o de­
bate ético sobre o conceito de m orte e as tentativas de sua regulamentação
no m om ento da perda das funções vitais (orgânicas) ou da atividade cere­
bral. O debate do aborto, p. ex., igualmente se apresenta como complexo
em decorrência da definição do m omento do início da vida humana.
Problematização sem elhante é proposta por A ndrei Schmidt, ao
constatar que o conceito de casa é razoavelmente delimitado por condições
sociais postas e por determinações legais (art. 150, §§ 4- e 5° do Código
Penal). Todavia, “bastaria uma situafio inusitada verificar-se para que surgisse a
possibilidade de uma viragem lingüística”26 — o autor menciona a circunstância
de alguém residir eventualm ente em um automóvel ou, seria possível
acrescentar, a situação bastante comum em determinados países de famílias
residindo em trailers.
A questão central a ser percebida é que o juízo de valoração precede
PENAL B R A S IL E IR O

a própria enunciação dos termos morte,fiurto e casa, não havendo, portanto,


termos dotados de significado em si mesmos que lhe atribuam sentidos e
outras categorias (normativas) carentes e incompletas que requeiram um
exercício hermenêutico.
NO 3REIID

Neste sentido, sustenta Rosa Maria Cardoso Cunha, ao concluir não


serem os tipos penais autossuficientes do ponto de vista significativo, que
é “visivelmente arbitrária a distinçãofeita pelo pensamento dogmático entre elemen­
DE S EG U R A N Ç l

tos descritivos e normativos, com ofim de situar apenas estes últimos como objeto do
juízo valorativo do ju iz. Tal distinção desqualifica a circunstância de que nenhum
elemento do tipo pode ser cognoscível pela simples verificação sensorial”27. Em pa­
FTNAS • MED WS

ráfrase às lições de Streck, seria possível dizer que não há um dispositivo


penal que seja, em si e por si mesmo, descritivo ou normativo, da mesma
forma que não há tipos penais essencialmente fechados ou abertos, pois a
extensão do tipo advém de um trabalho de atribuição de sentido que ine-
328 xoravelmente será feito pelo intérprete28.

um médico que extrai o coração do paciente para transplante, enquanto estão vivas as células de seu
sistema nervoso" (WARAT, Introdução Geral ao Direito I, p. 209).
26 SCHM IDT, O Princípio da Legalidade Penal no Estado Democrático de Direito, p. 262.
22 C U N H A , O Caráter Retórico do Prindpio da Legalidade, p. 64.
28Lenio Streck, ao analisar a ruptura provocada pela hermenêutica nos ‘conceitos-em-
-si-mesmos-das-normas’, questiona o processo de essencialização de conceitos jurídicos
Logicamente que o diagnóstico acerca da abertura das estruturas
típicas não esvazia o princípio da legalidade da sua im portante função
política de garantia. De igual forma, perceber que os tipos apresentam
aberturas intrínsecas em decorrência de estarem condicionados pela va­
gueza inerente ã linguagem natural não perm ite que todas as normas ju ­
rídico-penais sejam analisadas da mesma forma. Se um certo nível de
anemia significativa é inerente ã própria legalidade, o procedimento de
elaboração legislativa (criminalização primária), o controle de constitucio-
nalidade das leis penais e os critérios de interpretação judicial (criminali­
zação secundária) devem ser orientados ã máxima redução possível dos
horizontes de ambigüidade e de vagueza, pois, quanto menores forem os
espaços de incerteza, menores serão os de arbítrio judicial.
Embora seja fictícia a idealização do positivismo jurídico sobre a
capacidade de a dogmática construir uma rígida tecnologia idônea para
assegurar segurança jurídica a partir do estabelecimento de critérios de
interpretação direcionados ã padronização das decisões judiciais29, o prin­
cípio da legalidade desempenha im portantes funções. D entre elas uma
“função retórica que orienta a inteyretação, a aplicafio e a argumentação referida
à lei penal”i0 e que perm ite, ao menos, diagnosticar os casos de notória

e a conseqüente produção de standatds que operam como critérios de legitimação do


discurso mesmo que o significado atribuído represente notória ‘extorsão de sentido’ e
‘abusos significativos’. Assim, ensina que “fazer hermenêutica juridica é realizar um processo de
compKensão do Direito. Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas artezas, é olhar o
dimto de soslaio, rompendo-se com (um)a hermê(nêu)tica juridica tradicional-objetificante prisionei­
ra do (idealista) paradi^a ^istemológico daflosojta da consciência. Com (ess)a (nova) wmpreensão
hermenêutica do Direito recupera-se o sentido-possivel-de-um-determinado-texto e não a K-constru-
(ão do texto advindo de um signifiixnte-primordial-fundante. Assim, por exemplo, não há um dis­
positivo constitucional que seja, em si e por si mesmo, de ejtcácia contida, de eficácia limitada ou de
eficácia plena. A eficácia do texto do dispositivo advirá de um trabalho de adjudicação de sentido, que
seráfeitopelo hermeneuta/intéyrete” (STRECK, HermenêutiaJuridica e(m) Crise, p. 200).
Em sentido semelhante, SCHM IDT, O Prindpio da Legalidade Penal no Estado Demo­
crático de Direito, pp. 260-263.
29Vera Andrade, ao analisar a configuração e a identidade metodológica do paradigma
dogmático, conclui que “a teoria da técnica juridica busm então determinar as condições sob as
quais o Direito seria capaz de cumprir aquele ideal de segurança com um máximo de economia e
celeridade, ind^endentemente ou com abstração dos conteúdos rnncretos de cada ordenamento juridi-
co em particular. Sua Jtnalidade essencial é wnsolidar o princípio da certeza como base para a segu­
rança do tráfego juridico" (ANDRADE, Dogmáticajuridica, p. 51).
30 C U N H A , O Caráter Retórico do Prindpio da Legalidade, p. 128.
abertura dos tipos penais e projetar critérios de constrição, o que significa,
desde dentro do discurso dogmático, desabilitar os excessos inerentes ao
pot^tas puniendi (dogmática conseqüente).
Neste aspecto, a tarefa dogmática na aplicação da pena adquire re­
levância, pois o conteúdo da m aioria das circunstâncias judiciais do art. 59,
caput, do Código Penal, é marcadam ente aberto, situação que tende a
ampliar os horizontes de punitividade nos mais diversos sentidos, como
aquele apontado por Alexandre Morais da Rosa: “a ‘pletora de significantes’
[do caput do art. 59 do Código Penal] é utilizada de maneira antigarantista,
desprezando-se o proasso de secularização da sociedade contemporânea”31.

12.3.3. A denominação das categorias do art. 59, caput, do Código


Penal, como indica a amplitude e a volatilida­
c irc u n s tâ n c ia s ju d ic ia is ,

de dos critérios de modulação da pena-base, notadamente em razão dos


elementos normativos que as compõem.
A doutrina em geral designa co m o judiciais as circunstâncias do art.
59, caput, do Código, em razão de o dispositivo conferir ao juiz amplas
possibilidades de valoração para a concretização da pena. Bitencourt lecio­
na que “os elementos constantes no art. 59 são denominados dmunstâncias judiciais,
porque a lei não os define e deixa a cargo do julgador a função de identificá-los no
bojo dos autos e mensurá-los concretamente”32. A guiar Jr. aduz que “as
drcunstândas classificam-se em judiciais e legais. A s primeiras são as enumeradas
no art. 59, generi^mente mencionadas na lei através do dado objetivo ou subjetivo
que deve ser apreciado, ficando delegado ao trabalho do julgador a identificação do
fato relevante no âmbito referido pela lei. Relativamente a elas, o Código não defi­
ne quais devem ser consideradasfavoráveis ou desfavoráveis ao réu, indicando apenas
a sua natureza, cabendo ao ju iz fazer a investigação pertinente durante a instrução
probatória e d^ois individualizá-las na sentença”33. Boschi esclarece que “assim,
por exemplo, os antecedentes ou a conduta social — como circunstâncias judiciais —
poderão ser valorados positivamente num processo e negativamente em outro proces­
so, tudo dependendo das informações sobre a folha corrida ou o comportamento do
acusado em sociedade, respectivamente”3*.

31 ROSA, Decisão Penal, p. 346.


32 BITENCOU RT, Tratado de Direito Penal, p. 663.
33 A G U IA R JR ., Aplicação da Pena, p. 38.
3‘ BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 161.
As circunstâncias judiciais da pena-base se diferenciam das circuns­
tâncias legais, que operam nos momentos de definição da pena provisória
(agravantes e atenuantes) e da pena definitiva (majorantes e minorantes),
porque nas últimas o valor foi determ inado previamente no procedimento
legislativo (individualização legislativa da pena). Esta determinação legisfati-
va do valor significa, em prim eiro lugar, que o rol de a^avantes e atenuan­
tes está indicado expressamente na lei penal cod^cada ou extraordinária
—“são circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qua­
lificam o crime” (art. 61, caput, do Código Penal); “são circunstâncias que
sempre atenuam a pena” (art. 65, caput, do Código Penal)3a. Assim, ao con­
trário das circunstâncias judiciais, um a circunstância legal não poderia
atuar ora como agravante, ora como atenuante —a embriaguez preordena-
da (art. 61, II, l, do Código Penal), p. ex., em nenhum a hipótese poderia
operar como atenuante de pena, mesmo que no caso concreto a ingesta
voluntária de bebida alcoólica ou de droga para com etim ento do delito,
aliada ã violenta emoção (art. 65, III, c, do Código Penal), indicasse cen­
sura reduzida. Em segundo lugar, designa o feto de que as circunstâncias

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


majorantes e minorantes não apenas estão dispostas em lei como causas
especiais de aumento e diminuição, mas que a própria quantidade de pena
a ser aumentada ou dim inuída está predeterm inada —p. ex., o crim e ten­
tado (“salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena corraponden-
te ao crime consumado, diminuída de um a dois terços”, art. 14, pará^afo único,

Í-: y,
do Código Penal); e a semi-imputabilidade (“a pena pode ser reduzida de um

ie eBeHi v.
a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação mental ou por desenvolvimento
mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter
ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”, art. 26, pa­
rágrafo único, do Código Penal).
w - rJrfüt

N o entanto, esta diferenciação não contempla a inte^alidade das


tarefas cabíveis ao juiz na determinação da pena, ou seja, não cabe exclu­
sivamente ao julgador valorar a circunstância como negativa ou positiva e,
consequentemente, eleger a quantidade de aum ento ou de dim inuição da 331
pena. Aliás, o foco na valoração e na quantificação da circunstância pare­
ce esquecer o principal papel do juiz na fase de individualização da pena,
que é o d e atrib u ição de co n teú d o (sig n ificad o ) às circu n stân cias
e, posteriormente, o de estabelecer os c rité rio s de p rep o n d erân cia.

35Neste sentido, conferir idêntica redação dos arts. 14 e 15 da Lei n. 9.605/98, que es­
pecificam as atenuantes e agravantes nos crimes ambientais.
O procedim ento judicial de aplicação da pena-base adquire, no
direito penal brasileiro, uma complexidade bastante grande, impondo ao
magistrado um a série de tarefas: primeira, de delim itar o conteúdo das
circunstâncias (atribuição de sentido); segunda, de definir o tipo de infor­
mação processualmente válida (prova idônea) que fundamenta o sentido
atribuído; terceira, de valorar positiva ou negativamente as circunstâncias
analisadas; quarta, de determinar a quantidade de aum ento e de diminuição
de cada circunstância; e quinta, de estabelecer critérios de preponderância
entre as circunstâncias favoráveis e desfavoráveis.
Neste sentido, parece haver um certo equívoco conceituai na clas­
sificação das circunstâncias do art. 59, caput, do Código Penal, como cir­
cunstâncias judiciais. Isto porque a valoração de um a circunstância como
positiva ou negativa e a sua posterior quantificação é um trabalho acessó­
rio e decorrente daquele m om ento primeiro e fundam ental que é o de
conferir significado. Ocorre, porém, diferentemente do que comumente
é referido na dogmática penal, que a atribuição de sentido, ou seja, a de­
PENAL B R A S IL E IR O

terminação do conteúdo de cada circunstância, é comum às variáveis da


pena-base, da pena provisória e da definitiva. Pense-se, p. ex., na necessá­
ria predeterminação do conteúdo das circunstâncias motivo/útil (art. 61, II,
a), assegurar vantagem (art. 61, II, b), dissimulado (art. 61, II, c), meio insidioso
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

(art. 61, II, motivo de relevante valor social ou moral (art. 65, III, a), coado
a que podia resistir (art. 65, III, c), influência de violenta emoção (art. 65, III, c),
dentre inúmeras outras previstas no Código Penal (e na legislação extra­
ordinária) como agravantes, atenuantes, majorantes ou minorantes.
Possível concluir que, em regra, todas as circunstâncias de aplicação
da pena são circunstâncias judiciais, pois inexiste um a natureza ou essência
MED IUS

normativa ou descritiva dos elementos típicos. Sempre haverá necessidade de


atribuição de sentido aos elementos que integram o preceito jurídico-penal,
i
FíMAS

mesmo que em alguns casos os espaços denotativos sejam menores do que


em outros.
332 A conceituação dos elementos e a delimitação das etapas de aplicação
da pena parecem reduzir a tarefe dogmática tão somente ao aspecto formal
de designação dos efeitos quantitativos das circunstâncias (variável de au­
m ento ou de dim inuição da pena; quantidade de aumento ou de dim inui­
ção). N o entanto, esta designação m eram ente classificatória relega ao es­
quecim ento ou obscurece o trabalho fundamental da dogmática, que é o
de delimitar os horizontes de atribuição de significado às circunstâncias,
isto é, problematizar o que é razoável aceitar como conteúdo válido e
possível para cada circunstância.
Note-se, portanto, que para concluir se a culpabilidade é uma circuns­
tância que atuará, no caso concreto, como uma circunstância de aum ento
ou de diminuição da pena são pressupostos dois movim entos argum enta-
tivos: o primeiro, de ordem penal material, de significar a culpabilidade, ou
seja, dizer o que é (in)válido analisar como culpabilidade na aplicação da
pena; o segundo, de ordem processual penal, de identificar no processo os
elementos probatórios válidos que concretizam o significado de culpabi­
lidade atribuído, isto é, “que cada referênda feita na motivado exprima um
conteúdo fático extraído das provas existentes nos autos’,i6.

12.3.4. Ao serem analisadas as circunstâncias de aplicação da pena


(circunstâncias da pena-base, provisória e defimtiva), logicamente é pos­
sível perceber que certas categorias apresentam um maior nível de porosi-
dade ou abertura, situação inerente ao uso da linguagem natural. Comparem­
-se, p. ex., os distintos horizontes interpretativos que fornecem a
atenuante da menoridade (“ser o agente menor de 21 anos na data dofato” — art.
6 5 ,1, \ i parte, do Código Penal) e a agravante do meio insidioso (“ter o agen­
te cometido o crime com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum” — art. 61, II, d, do
Código Penal); ou as circunstâncias objetivas conseqüências do crime e subje­
tivas personalidade do agente, ambas presentes no caput do art. 59 do Código.
Em perspectiva comparada, é possível perceber que, geralmente, as
c ir c u n s tâ n c ia s (extrínsecas, relativas ao feto) adquirem um
o b je tiv a s

caráter descritivo m aior em relação às c ir c u n s tâ n c ia s(intrín­


s u b je tiv a s

secas, relativas ao autor do feto). Todavia, como toda regra, a afirmação


não é absoluta, como se verifica no primeiro exemplo apresentado acima:
a atenuante da menoridade, que é uma circunstância subjetiva, pois refere
uma qualidade (idade) do autor do feto, apresenta nenhum a (ou apresenta
baixíssima) porosidade (21 anos na data do feto), diferentemente da agra­
vante do meio insidioso, que apesar de ser objetiva, pois diz respeito às
circunstâncias externas do feto, é caracterizada por uma ampla m argem de
indefinição significativa.
O problema, portanto, não é o da natureza juridica) da circunstância.
O simples feto de uma circunstância ser relativa ao feto não garante que
tenha um maior nível descritivo e, consequentemente, apresente maiores
garantias contra o arbítrio e o decisionismo judicial. A questão a ser tra-

36 GOMES FILHO, A Motivação das Decisões Penais, p. 217.


balhada pelos atores jurídicos é a de como identificar o nível de porosida-
de e estabelecer, por meio de interpretação conforme a Constituição, li­
m ites de tolerabilidade (razoabilidade interpretativa). Os lim ites de
tolerabilidade implicam em (a) definir o que é aceitável (razoável) como
critério de valoração da circunstância e (b) indicar quais os elementos
idôneos para sua demonstração (prova processual). A tarefa é, pois, reduzir
ao m áximo os horizontes de interpretação, o que significa reduzir o arbí­
trio judicial (decisionismo).
Embora seja tema a ser tratado na seqüência, em decorrência de sua
ampla extensão dogmática, o debate sobre antecedentes criminais, p. ex.,
pode ser esclarecedor. A circunstância antecedentes, como inúmeras outras
variáveis de definição da pena-base, é classificada pela doutrina tradicional
como um elemento norm ativo. Isto porque não existem antecedentes
criminais in natura, passíveis de experiência, perceptíveis pela observação
empírica. Trata-se, portanto, de um conceito normativo, que resulta em
juízo de valor processual. A questão prim eira — antes de valorar se os
PENAL B R A S IL E IR O

antecedentes são bons ou maus, positivos ou negativos, favoráveis ou des­


favoráveis, e depois quantificar como circunstância de aumento ou dim i­
nuição da pena-base —seria relativa ao conceito de antecedentes, e, poste­
riormente, ao tipo de informação válida para produzir efeitos processuais.
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

Em sentido amplo, qualquer contato do sujeito com as agências do sistema


penal poderia ser considerado como antecedentes criminais. Assim, p. ex.,
durante m uito tem po se discutiu se os inquéritos policiais em andamento
(ou até mesmo arquivados) poderiam ser considerados como antecedentes
criminais —note-se que não apenas para aplicação da pena, mas, igualmen­
MED IUS

te, para fins de transação penal, suspensão condicional do processo, entre


outros. Após a Constituição de 1988, forte corrente doutrinária defendia
i

que o princípio da presunção de inocência não admitia que esta circuns­


FíMAS

tância (ser investigado ou indiciado em inquérito policial) pudesse ser


22^" valorada como antecedentes. Finalmente a questão foi pacificada com a
publicação da Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça, que veda a
utilização de inquéritos policiais (e ações penais em curso) para agravar a
pena-base.
N otem -se, portanto, as etapas do procedim ento de atribuição de
sentido das circunstâncias em análise. A primeira etapa do procedim ento de
definição do sentido dos antecedentes foi vencida, com a delimitação do tipo
de ittformação que pode compor o elemento normativo. A segunda questão, menos
complexa que a primeira, foi relativa ao tipo de prova processual idônea para
validar a informação. N o caso, a prova processualmente válida seria a docu­
mental: folha de antecedentes criminais. O terceiro passo é o da avaliação ju ­
dicial em concreto, que se resume à análise da folha de antecedentes juntada
no processo específico. Dependendo do tipo de informação, os anteceden­
tes serão favoráveis ou desfavoráveis —em razão da restrição dogmática,
m esmo havendo informação de inquéritos em andamento, p. ex., os ante­
cedentes não poderão ser considerados negativamente, ou seja, tecnica­
mente o réu possui bons antecedentes; ao contrário, se houvesse informa­
ção de condenação transitada em julgado em outro processo, haveria
possibilidade de atribuir ao réu maus antecedentes criminais. O quarto
procedimento é o de quantificação, isto é, determ inar quanto de aum ento
ou diminuição da pena, em decorrência da informação processual sobre
antecedentes criminais (favoráveis ou desfavoráveis).
Logicamente que cada circunstância irá apresentar um nível próprio
de complexidade —a própria questão dos antecedentes, que será analisada,
envolve inúmeras outras nuances. N o entanto, o procedim ento de avalia­
ção das circunstâncias de aplicação da pena, em qualquer que seja a fase

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


(pena-base, provisória ou definitiva), segue, em síntese, o seguinte roteiro:
(Ia) delimitação do conteúdo da circunstância (atribuição do sen­
tido dogmaticamente válido);
(2 a) definição do tipo de informação válida (prova processualmen­
te idônea);

Í-: y,
(3a) valoração positiva ou negativa de cada circunstância;

ie eBeHi v.
(4a) definição da quantidade de aumento e de diminuição de pena
cabível a cada circunstância; e
(5a) estabelecimento dos critérios de preponderância entre as cir­ w - rJrfüt
cunstâncias favoráveis ou desfavoráveis, se cabível.
O cum prim ento das referidas etapas e a sua exposição clara na sen­
tença penal tendem não apenas a imunizar a decisão da nulidade por falta
de fundamentação, mas, sobretudo, a garantir às partes envolvidas a pos- 335
sibilidade do controle do ato judicial.

12 .4 . Pena-Base: Circunstâncias Gerais e Especificas, Elementares


do Tipo e Conflito Aparente de Normas (Bis in Idem)

12.4.1. As três fases de quantificação da pena dispostas no art. 68 do


Código Penal se com unicam em um a relação que parte do geral (abstrato)
ao específico (concreto). Significa dizer que as m ajo ran tes e m in o ra n ­
tes e as ag rav an tes e aten u an tes são espécies do gên ero circu n s­
tân cias ju d iciais. Alguns exemplos bastante singelos podem auxiliar na
compreensão.
Pense-se no caso de imputação do art. 129, § 4° do Código Penal.
O aiput do art. 129 incrim ina a conduta de lesão corporal (“ofender a inte-
gridadefisica de outrem”), estabelecendo pena de detenção de 3 (três) meses
a 1 (um) ano. O referido parágrafo, porém, estabelece um a causa especial
de dim inuição de pena (minorante), se o agente comete o crime impelido
por m otivo de relevante valor social. Ocorre que a circunstância específi­
ca motivo de relevante valor social está igualmente prevista como atenuante no
art. 65, III, a, não obstante ser uma espécie do gênero motivos, nom inado
como circunstância do caput do art. 59, ambas do Código Penal.
N o mesmo sentido, acusação por prática dos fetos descritos no art.
168, § l e, III do Código Penal. O tipo penal trata da apropriação indébita
[“apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção: pena — re­
PENAL B R A S IL E IR O

clusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”], e o inciso terceiro do § 1-


prevê um aumento de pena (majorante) de 1/3 se o agente recebe a coisa
em razão de ofício, emprego ou profissão. A circunstância de aumento está
presente como agravante no art. 61, II, g, e, por força de narrar um a qua­
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

lidade pessoal do sujeito ativo do delito relativa ao exercício profissional,


poderia igualm ente indicar uma m aior consciência da ilicitude do feto a
ser valorada a título de culpabilidade, como circunstância do art. 59, caput,
do Código Penal.
Em ambos os casos, temos a presença da mesma circunstância, pre­
MED IUS

vista de forma específica nos m omentos da pena provisória e definitiva e,


de maneira genérica, na etapa da pena-base.
i

Este tipo de situação (conflito de normas) ocorre com a m aior par­


FíMAS

te, senão a integralidade, das circunstâncias da aplicação da pena: as variá­


veis da pena provisória e da pena definitiva são especificações das circuns­
tâncias genéricas que regulam a dosim etria da pena-base. A título
exemplificativo, tom ando por base apenas algum as circunstâncias da
parte geral do Código Penal: (a) a m inorante do crime tentado (art. 14,
pará^afo único) é uma especificação das conseqüências do crim e; (b) a
causa de diminuição do arrependim ento posterior (art. 16) possui idêntica
natureza da atenuante do art. 65, III, c (reparação do dano ou diminuição
das conseqüências do delito), sendo ambas relativas às conseqüências do
crime; (c) a semi-imputabilidade (art. 26, pará^afo único) e a atenuante
da menoridade relativa (art. 6 5 ,1) são desdobramentos da cláusula geral da
culpabilidade, a prim eira relativa à imputabilidade psíquica e a segunda à
imputabilidade etária (art. 27); (d) a m inorante da embriaguez provenien­
te de caso fortuito ou força maior (art. 28, § 2 -) reflete questões relacio­
nadas à potencial consciência da ilicitude e, portanto, especifica a culpa­
bilidade; (e) a majorante do crime continuado (art. 71) diz respeito às
circunstâncias e às conseqüências do crim e e assim sucessivamente. N ote­
-se, ainda, que por mais peculiar que seja uma circunstância de aumento
ou diminuição de pena, se correspondente ao foto (circunstância objetiva),
poderá, no m ínim o, ser enquadrada como circunstância em sentido amplo; se
relativa ao autor (circunstância subjetiva), a generalidade do conceito de
culpabilidade congloba todas as variáveis que perm item análise da poten­
cial consciência da ilicitude e da (in) exigibilidade de conduta diversa.
12.4.2. A constatação de que agravantes, atenuantes, majorantes e
m inorantes são, na maioria dos casos, espécies do gênero circunstâncias
judiciais rem ete a discussão para a questão do co n cu rso de c ircu n stân ­

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


cias, ou seja, de como proceder quando há circunstância com um em duas
ou nas três etapas de dosimetria da pena.
O problema é relevante em razão da diretriz determinada pelo prin­
cípio da proibição da dupla incrim inação (princípio do ne bis in idem), que,
com o visto anteriormente, não apenas veda a possibilidade de que uma

Í-: y,
pessoa seja processada mais de uma vez pelo m esm o foto, mas exclui a
dupla incidência de circunstâncias com gravames punitivos. N o concurso

ie BEtEtai v.
de circunstâncias, portanto, determ inada causa de aum ento ou de dim i­
nuição atribuída em um caso concreto somente poderá produzir um efei­
to, isto é, somente poderá ser valorada judicialm ente em uma das fases de
w - rJrfUt
quantificação da pena. Note-se que inclusive as causas de dim inuição
atuarão produzindo efeito único.
A doutrina com um ente responde ao questionamento, afirm ando
que, no caso de dupla ou tripla incidência de uma circunstância, o juiz 337
deve resguardar sua aplicação para as fases mais avançadas da dosimetria.
Assim, havendo concurso entre circunstâncias judiciais e agravantes/ate­
nuantes, a causa de modificação da pena seria aplicada na pena provisória;
em caso de concurso de circunstâncias judiciais e/ou agravantes/atenuan­
tes e majorantes/minorantes, o efeito seria produzido na pena definitiva.
A justificativa norm alm ente é ad e que quanto mais próxim a da pena final
m aior será o impacto quantitativo da circunstância em termos de aum en­
to ou de diminuição da sanção.
O raciocínio está parcialmente correto. Efetivamente, em caso de
concurso, a valoração da circunstância deve ocorrer sempre na fase poste­
rior; e igualmente é correto afirm ar que quanto mais próximo da pena
definitiva m aior será a quantidade de aum ento ou de diminuição. N o
entanto, esta m etodologia não se justifica pelo efeito produzido (maior
impacto quantitativo), sobretudo porque este raciocínio não seria condi­
zente com a regra geral da interpretação mais benéfica ao réu, reguladora
dos critérios de interpretação do direito penal de garantias. Se fosse exclu­
sivamente pelo efeito produzido, em um a situação hipotética de concurso
entre uma circunstância judicial e causa especial de modificação da pena,
a resposta ao problema deveria ser distinta: se a circunstância produzisse
aumento, deveria ser analisada na fase anterior (pena-base); se fosse indi­
cativa de diminuição, deveria ser aplicada na pena definitiva como m ino­
rante. D o contrário, estaríamos diante de um a interpretação in malam
partem, vedada pela principiologia penal e processual penal.
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

Em bora a adoção do raciocínio exposto acima seja tentadora na


instrumentalização de um a nova metodologia redutora, há de se reconhe­
cer que os casos de concurso entre as circunstâncias de dosimetria da pena
refietem situações de co n cu rso a p a re n te de tipo s penais (ou concurso
de normas). Assim sendo, estão submetidos às regras dogmáticas de reso­
lução, quais sejam, os princípios de espeáalidade, de subsidiariedade e da con-
sunção. Inegavelmente, conforme exposto, as circunstâncias da pena defi­
nitiva acabam sendo mais específicas que as da pena provisória e estas
menos genéricas que as da pena-base, feto que torna a regra da aplicação
na fase posterior correta. A solução dogmática ao problema, portanto, é
fornecida pela aplicação do princípio da especialidade, única forma de
deslegitimar eventual interpretação desfavorável ao réu.
Nas lições de Fragoso, “há especialidade quando as leis aplicáveis se en­
contram em rehção de geral para esperíal, ou seja, quando ofato [ou circunstância,
338 inclua-se] é enquadrável em uma lei geral e também numa lei especial.Neste caso,
a lei especial derronga a lei geral ^ex speciali derrogat lex generali/’37.
É importante destacar esta natureza do concurso de circunstâncias
porque eventualm ente uma circunstância agravante/atenuante pode ad­
quirir, em razão de uma redação mais cuidadosa, um caráter de especiali­
dade em caso de concurso com uma m ajorante/m inorante. A hipótese não

37 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 452.


é nem um pouco absurda, sobretudo com o processo de descodificação do
direito penal e a criação, cada vez mais comum, de estatutos híbridos e de
alta especificidade. Lembre-se o caso da Lei n. 9.605/98 (Lei dos Crimes
Ambientais), que, em seus arts. 14 e 15, elenca atenuantes e agravantes
próprias para dosimetria da pena nos crimes ambientais; e o art. 298 da Lei
n. 9.503/97 (Código de Trânsito), que estabelece as circunstâncias agra­
vantes nos crimes praticados na condução de veículo. Nada im pediria,
portanto, que, em caso de concurso entre agravante/atenuante e majoran-
te/m inorante, fosse(m) aplicada(s) aquela(s), desde que mais específica(s).

12.4.3. Além do concurso entre as circunstâncias de aplicação da


pena, outra possibilidade é ad a ocorrência de concurso destas com as cir­
cunstâncias elem en tares do tip o ou as q u alificad o ras do crim e.
Paulo Queiroz chama atenção para o fato de que os erros mais fre­
qüentes na aplicação da pena decorrem exatam ente da revaloração dos
elementos inerentes ã estrutura do crime, “tomando como circunstâncias ju d i­
ciais os próprios pressupostos da condenação, incorrendo-se em bis in idem”38. A

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


lição do autor é precisa, pois, se é possível notar uma grave violação ao
princípio da proibição da dupla incriminação por m eio da valoração de
uma mesma circunstância em distintas fases, com m aior intensidade ocor­
rerá quando o juiz utiliza, com o critério de dosimetria da pena, um ele­
m ento constitutivo do delito, notadamente da tipicidade.

Í-: y,
A fórmula para resolução desta espécie de conflito aparente de nor­

■; - rJrfüt ie eBeHi v.
mas é a disposta no art. 61, caput, 2S parte, do Código Penal: “são circuns­
tâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o
crim e” (grifou-se). Apesar de compor a estrutura das agravantes, a exclu­
são da incidência das elementares e das qualificadoras do crime no cálcu­
lo da pena constitui-se em regra geral do sistema de aplicação da pena, que
instrum entaliza no Código Penal o princípio constitucional da proibição
da dupla incriminação (ne bis in idem).
Neste sentido, é fundamental desenvolver uma técnica que possa, 339
de form a precisa, diferenciar as circunstâncias elementares (constitutivas)
daquelas acessórias, pois apenas estas poderão ser valoradas judicialm ente
na quantificação da sanção.
Bitencourt constata que “os tipos penais descrevem as condutas ilícitas e
estabelecem assim os seus elementos essenciais. Estes fatores que integram a descrição

38 Q U EIR O Z, Direito Penal, p.382.


da conduta típica são as chamadas elementares do tipo, ou elementos essenciais
constitutivos do delito”39.
A construção da tipicidade penal por meio da linguagem natural
tem como centro gravitacional a conduta, exposta pelo verbo núcleo do tipo
de forma positiva (crimes comissivos) ou negativa (crimes omissivos). Não
por outra razão Nilo Batista aponta como uma das mais graves violações
ao princípio da legalidade a ocultação do núcleo do tipo, vício em que
incorrem as tipificações construídas exclusivamente sobre o resultado, e
não sobre a conduta40. Assim como não há crime sem conduta (“nullum
crimen sine actione”), inexiste conduta sem um sujeito ativo que promove a
violação do bem jurídico objeto de proteção.
Segundo Luisi, “os elementos constitutivos comuns e necessários a todo tipo
penal são: a) sujeito ativo primário; b) conduta externa; bem jurídico pmtegido ou
tutelado”*''42. Agregados aos elementos constitutivos estariam os elementos
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circunstanciais e normativos, todos, porém, elementares da tipicidade: “aos


elementos necessários se acrescem, em grande número de tipos, outros elementos que,
integrando a estrutura desses tipos, são dela constitutivos”43. A referência é espe­
cífica aos elementos descritivos e normativos, analisados conceitualmente
em m om ento anterior.

39 B ITEN CO U RT, Tratafo de Direito Penal, p. 662.


40 BATISTA, Introdução Critica ao Direito Penal Brasileiro, p. 81.
41 LUISI, O Tipo Penal, a Teoria Finalista e a Nova Legislação Penal, p. 43.
42 Logicamente que inúmeros desdobramentos dos elementos constitutivos são possíveis
como, p. ex., o do sujeito ativo em primário (que realiza a conduta típica) e secundário
(que auxilia ou coopera). De igual forma, nos crimes próprios, ou seja, aqueles de que o
sujeito ativo necessita de uma posição particular, certas características do sujeito ativo são
elementares do tipo —p. ex., médico, no crime de falsidade de atestado (art. 302 do C ó-
34Q dig° Penal), funcionário público, no crime de corrupção passiva (art. 317 do Código
Penal). O mesmo acontece em determinadas incriminações com o sujeito passivo —p. ex.,
gestante, no delito de aborto provocado por terceiro (art. 125 do Código Penal). Em
outros casos, a extensão do dano ao bem jurídico provoca desdobramentos típicos, como,
p. ex., na hipótese da lesão corporal grave (art. 129, § 2S, do Código Penal). Para além
dos elementos constitutivos objetivos, a tipicidade é composta de elementossubjetivos
(dolo e culpa), em respeito à metodologia finalista adotada pela Reforma de 1984. Im­
porta, porém, neste momento, apresentar um quadro geralsobre as elementares que mais
influenciam na fase de determinação da pena.
43 LUISI, O Tipo Penal, a Teoria Finalista e a Nova Legislação Penal, p. 52.
Na estrutura da tipicidade, os denominados elementos descritivos in­
dicam circunstâncias de tempo (quando), local (onde) e a forma de agir
(como). Os elementos descritivos de tem po definem os momentos especí­
ficos de realização da conduta como, p. ex., no caso do infanticídio —“ma­
tar, sob influência do estado pue^eral, o próprio filho, durante o parto ou logo
após” (art. 123 do Código Penal). N o mesmo sentido o art. 304 da Lei n.
9.503/97, que prevê como crim e “deixar o condutor do veículo, na ocasião do
acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo direta­
mente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública” (grifou-se),
e o art. 34 da Lei n. 9.605/98, que proíbe “p&car em período no qual a
pesca seja proibida ou em locais interditados por órfão competente” (grifou-se).
O tipo penal do art. 34 da Lei dos Crimes Ambientais apresenta, em
realidade, dois elementos descritivos, de tempo (período de proibição da
pesca) e de local (local interditado). Nesta segunda espécie de elemento
descritivo, há uma delimitação espacial, específica ou genérica da prática
do delito. Veja-se, p. ex., o dispositivo do art. 176 do Código Penal, que

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


compõe o rol de crimes de estelionato e outras fraudes, que criminaliza
“tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de
transporte sem dispor de recurso para efetuar o pagamento”, e o crim e contra a
flora do art. 44 da Lei n. 9.605/98, que prevê como delito “extrair de flo­

1-: y,
restas de dom ínio público ou consideradas de preservação permanente, sem
prévia autorização, pedra, areia, cal ou qualquer espécie de minerais”.

■; - rJrfüt ie eBeHi v.
Especialmente comuns, porém , são os elementos que descrevem os
meios utilizados e a forma de agir (modusfadendi), como acontece, p. ex., nas
qualificadoras do homicídio (“mediante paga ou promessa de Kcompensa”, “com
emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura”, “à traição, de emboscada, ou
mediante dissimulação”, art. 121, § 2S, do Código Penal), do furto (“com
destruição ou rompimento de obstáculo”, “com abuso de confiança, ou mediante
fraude, escalada ou destreza”, “com emprego de chave falsa”, art. 155, § 4S, do 341
Código Penal) e em um núm ero expressivo de tipos penais incrim inado­
res do Código Penal e da legislação extravagante.
Os elementos normativos — apesar da discordância conceituai com a
dicotomia classificatória (elementos normativos versus elementos descriti­
vos) adotada pela dogmática penal, conforme destacado anteriorm ente —
seriam aqueles que caracterizam os tipos penais abertos, pois remeteriam
o julgador a um a análise extratípica.
Na exposição de Luisi, cs elementos normativos poderiam ser divididos
em dois grupos: jurídicos ou culturais44. Os elementos normativos jurídicos
caracterizariam “juízos valorativos ‘impróprios', porque se trata de elementos do
tipo já valorizados, isto é, de aplicações de valorações já realizadas pelo ordenamen­
to jurídico. São conceitos já egressos em normas jurídicas, e com significações
consagradas’Hd, utilizados indiscriminadamente na lei penal —p. ex., cheque
(art. 171, VI), duplicata (art. 172), sociedade por ações (art. 177), warrant
(art. 178), contrato de trabalho (art. 198), casamento (art. 235), funcioná­
rio público (art. 312), concorrência pública (art. 326), função pública (art.
328), estrangeiro (art. 338), advogado (art. 355), todos do Código Penal,
entre inúmeros outros. Os culturais, inquestionavelmente os mais proble­
máticos em termos de constitucionalidade pela ampla extensão dos signi­
ficados possíveis, remeteriam a valoração jurídica não aos códigos inter-
pretativos formais (sistema jurídico), mas àquelas regras de interpretação
social com um ente atribuídas ã tradição e aos costumes e que tendem a
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universalizar determinados padrões morais46. Expressões como toye,fútil,


insidioso, dissimulação (qualificadoras do homicídio, art. 121, § 2S, do C ó­
digo Penal), dentre as inúmeras trabalhadas anteriormente na crítica das
estruturas típicas abertas, dão a exata dimensão do problema dos elementos
normativos culturais, foto que reforça a necessidade de limitação do espa­
ço de atribuição de sentido, de forma a restringir ao m áximo o arbítrio e
o decisionismo judicial.

12.4.4. O breve quadro conceituai e exemplificativo acerca das ele­


mentares do tipo penal é necessário para que se tenha um a exata dimensão
das circunstâncias que efetivamente podem ser valoradas pelo juiz no

“ A douttina penal comumente aponta uma terceira espécie de elemento normativo, que
seriam aquelas construções típicas que antecipam a ilicitude. Normalmente traduzidas
pelas expressões ‘indevidamente’, ‘sem justa causa’, ‘sem autorização’, entre outras —p. ex.,
art. 28, caput, daL ein . 11.343/2006: “quem adquirir, guardar, tiverem d^ésito, tran^ortarou
trouxer consigo, para consumo pessoal, sem autorização ou em desacordo com determinado legal ou
regulamentar”. Extensa listagem de tipos penais desta natureza, situados no Código Penal,
pode ser encontrada em COPETTI, Direito Penal e Estado Democrático de Direito, pp. 182­
184, e SCHM IDT, O Prindpio da Legalidade no Estado Democrático de Direito, pp. 260-263.
ii LUISI, O Tipo Penal, a Teoria Finalista e a Nova Legislado Penal, p. 58.
46O problema do monismo axiológico foi ttatado amplamente na questão da culpabili­
dade quando debatidos os temas do pluralismo jurídico e da secularização do direito.
m om ento da aplicação da pena e aquelas que tendem a ser revaloradas,
obstaculizando a efetividade do p rin c íp io da p roibição da d u pla in ­
crim in ação . Assim, a vedação da reanálise das elementares típicas pelo
julgador é um dos efeitos mais contundentes da incorporação constitucio­
nal do princípio ne bis in idem na determ inação da pena.
Conforme esclarece A guiar Jr., “as elementares servem para a classifica­
ção do crime, com a qual o ju iz conclui o juízo condenatório, iniciando logo após a
aplicação da pena (art. 59). Uma vez definido certo aspecto como elementar do
crime, não pode ele novamente ser ponderado para afxação dapena em alguma de
suasfaste’*7. A conclusão do autor é precisa, pois indica que aquela circuns­
tância, por ser elementar do delito, integra o juízo de proibição da condu­
ta que tem com o conseqüência a pena cominada legislativamente em
abstrato. Havendo (re)valoração na fase de individualização judicial da
pena, aquele elemento que atuou com o essencial no critério de tipificação
produzirá novo efeito, incorrendo a sentença, consequentemente, em bis
in idem.
U m exemplo bastante simples perm ite perceber com clareza a di­
mensão dos efeitos da dupla incriminação. O Código Penal incrim ina o
furto no art. 155, caput, estabelecendo um a pena em abstrato de reclusão
de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, para a conduta de “subtrair, para si ou
para outrem, coisa alheia móvel”. N o art. 157, caput, o Código prevê o crime
de roubo, cuja pena de reclusão varia entre 4 (quatro) e 10 (dez) anos:
“subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou
violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibi­
lidade de resistência”. Em term os penológicos, as primeiras questões que
chamam a atenção são as da variação e da quantidade da pena: (a) a pena
m áxim a do furto corresponde ã pena m ínim a do roubo; (b) a quantidade
de pena m ínim a do roubo se aproxima ao patamar m ínim o do crim e de
homicídio simples (6 anos), sendo os seus regimes de cum prim ento idên­
ticos (regime semiaberto).
Para além da constatação de a pena do crime de roubo ser relativa­
mente alta no nosso ordenamento jurídico, a questão que permanece seria
a da identificação dos elementos que diferenciam furto e roubo, visto que
ambos são crimes que ofendem o mesmo bem jurídico (patrimônio), que
provocam o mesmo resultado lesivo (diminuição patrimonial da vítima),

4' A G U IA R JR ., Aplicapo da Pena , p. 37.


mas cujas penas são significativamente distintas. A breve leitura dos tipos
indica a diferença: o modus faciendi. Percebe-se, pois, que a elementar do
tipo penal que descreve a form a da conduta determ ina o aumento da pena.
É possível afirmar, inclusive, que o crime de roubo nada mais é do que um
furto qualificado pela violência, grave ameaça ou redução da resistência.
Notório, portanto, que, em caso de condenação pelo crim e de rou­
bo, o juiz estaria proibido de aumentar, de qualquer forma, a pena, pelas
circunstâncias violência, grave ameaça ou redufao da capacidade de resistência,
sob pena de produzir uma dupla incriminação, exatamente em decorrên­
cia do feto de que o legislador já realizou esta valoração ao desdobrar o
roubo do furto e, consequentemente, aumentar os termos mínimos e
máximos da pena.
N esta mesma linha, Paulo Queiroz traz importantes contribuições:
“além disso, ao considerar os motivos do crime aptos a agravar a pena, frequente­
mente são tomadas em consideração motivações inerentes à própria infração penal e,
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

pois, já valoradas por ocasião da tipificação, como, v.g., a ‘libido exacerbada’ ou a


falta de pudor’ nos crimes sexuais; a ‘g anância’, a ‘ambição’, ou o ‘g anho fácil’ nos
crimes patrimoniais ou tráfico de droga; o ‘desprezo à pessoa humana’ nos crimes
contra a vida etc. Também é comum elevar à condição de circunstância judicial as­
pectos jurídico-penalmente irrelevantes, ferindo o prindpio da legalidade, tais como:
a não confissão, o não arrependimento, a fuga do distrito de culpa, a inadequação
da conduta etc. Por vezes, ao valorar negativamente as conseqüências do crime, re­
corre-se aos resultados próprios da conduta criminosa, como, em caso de homiddio,
dizer-se que ‘as conseqüências do crime foram danosas, pois uma vida foi ceifada’,
como sefosse possível homiddio consumado sem a morte da vítima’**.
A metodologia para vertâcação das elementares do tipo, feto que
blindaria a circunstância de análise judicial, é a da eliminação hipotética*9.

48 Prossegue o autor: “(...) ao condenar funcionário público por crime contra a Administração
Pública (v.g. peculato, corrupção passiva), afirmar que 'o nu praticou ação das mais reprováveis,
visto que violou a wnfiança inennte ao exemcio dafuntfo pública’, como se o fato de ser servidor
públirn já não tivesse orientado a decisão polítiw-criminal do legislador de autonomizar/criminalizar
tais condutas, punindo-as deforma mais dura precisamente em razão dos devens inerentes ao cargo/
função pública" (Q U EIR O Z, D inito Penal, p. 382).
49 “Distingue-se a elementar de uma circunstância pelo processo hipotético de eliminação. S e a ex­
clusão de certofator implirn a descaracterização do fato como crime, ou fa z surgir um outro crime, tal
ifado é uma elementar. Ex.: eliminando-se ofator ‘fancionàno público', não há crime de prevaricação,
nem outro qualquer pela demora na movimentação do processo; eliminando-se o mesmo dado, deixa
de existir o peculato e pode haver a apropriação indébita. Logo, ser funcionário público é elemento
Significa dizer que, no caso concreto, o intérprete deve excluir do quadro
das circunstâncias do delito aquelas situações que indiciam ser elementares
do tipo ou qualificadoras. Após a exclusão hipotética, é possível perceber
três efeitos: (a) exclusão da tipicidade da conduta (atipicidade penal) —p. ex.,
a exclusão da circunstância prazo e forma legal na apropriação indébita
previdenciãria (art. 168-A do Código Penal); (b) modificação da tipicidade
— p. ex., a exclusão da circunstância violência no crime de roubo; ou (c)
manutenção da tipicidade —p. ex., a exclusão da circunstância motivo fú til
no crime de maus-tratos (art. 136 do Código Penal). Nos dois primeiros
casos, ou sga, quando ocorre a exclusão ou a modificação do juízo de tipi­
cidade, a circunstância hipoteticamente excluída é classificada como elemen­
tar do tipo, motivo pelo qual não pode ser revalorada na aplicação da pena.
N o terceiro caso, quando não há alteração no juízo de tipicidade, a circuns­
tância é acessória (ou acidental), sendo possível sua análise pelo juiz na
aplicação da pena sem ofensa do princípio da vedação da dupla incriminação.

12.4.5. É possível sintetizar, portanto, a série de circunstâncias in­


tegrantes da tipicidade relativa aos critérios de aplicação da pena da seguin­
te forma:
a) Elementares do tipo: circunstâncias constitutivas da tipicidade penal.
b) Qualificadoras: circunstâncias que alteram a estrutura da tipicidade
e que estabelecem, no preceito secundário, novos limites mínimos
e máximos em abstrato.
c) Circunstâncias judiciais: circunstâncias gerais, moduladoras da pena-
-base (primeira fase), previstas no art. 59, caput, do Código Penal.
d) Agravantes e atenuantes: circunstâncias legais de aumento e de di­
minuição da pena provisória (segunda fase), prevista nos arts. 61,
62, 65 e 66 do Código Penal e, eventualmente, em leis especiais
(p. ex., Leis ns. 9.605/98 e 9.503/97).
e) Majorantes e minorantes: causas «peciais de aumento e de diminuição
da pena definitiva (terceira fase), presentes na parte geral e na par­
te especial do Código Penal e em leis extravagantes, identificáveis
pelo seu conteúdo (fixo ou variável) de modificação da sanção.

essencial dos crimes de prevarimção e de peculato. Se o/ator excluído n<w impede a caracterização do
crime, trata-se de uma circunstância do crime” (AGUIAR, Aplicação da Pena, p. 37).
No mesmosentido, B ITEN CO U RT, Tratado de Direito Penal, p. 663.
Conforme exposto, as duas primeiras espécies (elementares e qua­
lificadoras) são constitutivas do tipo, m otivo pelo qual não podem ser (re)
valoradas na aplicação da pena. Outrossim , frise-se que as demais circuns­
tâncias somente poderão impactar uma vez no sistema trifásico, isto é, como
critério de aumento ou de diminuição da pena-base ou da pena provisória
ou da pena definitiva. D o contrário, a decisão judicial é nula por ofensa ao
princípio constitucional da proibição da dupla incriminação (ne bis in idem).

1 2 .5 . Pena-Base: Circunstâncias Judiciais em Espécie

12.5.1. As circunstâncias dispostas no art. 59, caput, do Código Penal,


dividem-se em subjetivas e objetivas, conforme anotado anteriormente. As
circu n stân c ias subjetivas (culpabilidade, antecedentes, conduta social,
personalidade e motivos) são intrínsecas e dizem respeito ao autor do de­
PENAL B R A S IL E IR O

lito; as circu n stân cias objetivas (circunstâncias, conseqüências e com ­


portam ento da vítima) são extrínsecas e referem as características do fato.
A prim eira questão a ser pontuada é em relação ao caráter taxativo
das circunstâncias judiciais. Apesar de o conteúdo das circunstâncias ser
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

aberto, em decorrência das amplas m argens de atribuição de sentido pro­


porcionada pela presença dos elementos normativos, estas moduladoras não
podem ser ampliadas, ou seja, não é perm itido ao juiz criar outra circuns­
tância para além daquelas dispostas no referido dispositivo legal.
Desta forma, não poderá o juiz, no procedim ento de determinação
da pena-base, inovar no sentido de analisar e, posteriormente, quantificar
MED IUS

uma categoria não prevista em lei, como, p. ex., o clamor social ou a pericu­
i

losidade do réu —inclusive porque a periculosidade, conforme será trabalha­


FíMAS

do, é fundam ento de aplicação das medidas de segurança, situando-se fora


do âmbito de responsabilização penal.
Além disso, outra questão im portante diz respeito ã m eto d o lo g ia
de análise das circu n stân cias e m espécie. O problema da amplitude
dos critérios de interpretação das circunstâncias judiciais impõe a necessi­
dade de determinação de um procedim ento de análise que perm ita veri­
ficar (1-) a validade do conteúdo atribuído ã circunstância e a (2 -) idonei­
dade da inform ação probatória produzida. N este sentido, apesar da
redundância, é fundamental expor novamente cam inho metodológico de
análise de cada vetor da aplicação da pena, sobretudo da pena-base, em
razão da volatilidade dos seus elementos. Assim, a técnica dogmática que
perm itirá a análise das circunstâncias será composta das seguintes etapas:
(là) delimitação do conteúdo da circunstância (atribuição do sentido dog­
maticamente aceitável); (2Í) definição do tipo de informação processual­
mente válida (prova idônea); (3à) valoração positiva ou negativa de cada
circunstância; (4à) determinação da quantidade de aumento e de dim inui­
ção atribuível a cada circunstância; e (5-) estabelecimento dos critérios de
preponderância entre as circunstâncias favoráveis e desfavoráveis.
(a ) C u lp a b ilid a d e
12.5.2. A prim eira circunstância elencada no caput do art. 59 do
Código Penal é a c u l p a b i l i d a d e . A evolução dogmática do conceito e a
reconstrução da categoria a partir da teoria agnóstica foram amplamente
expostas na segunda parte do trabalho (teoria agnóstica da culpabilidade),
motivo pelo qual cabe apenas, neste mom ento, analisar a específica exten­
são do term o na dosimetria da pena.

■tAi 4; DffiJ :u H ftlil


Antes, porém, é im portante lembrar que, na Reform a do Código
Penal de 1984, o sentido atribuído ao term o culpabilidade correspondia a
uma síntese das circunstâncias judiciais, notadamente as subjetivas. Assim,
a culpabilidade conglobaria as demais circunstâncias (antecedentes, con­
duta social, personalidade e motivos do agente), fornecendo ao julgador

Í-: y,
uma espécie de índice ou grau de responsabilidade pessoal pelo injusto.
Nas palavras de R ealejr., D otti, Andreucci e Pitombo, “ [as circunstâncias

ie BEtEtai v.
subjetivas] são, portanto, especificações do termo genérico ‘culpabilidade’, as indi­
cações dos critérios: antecedentes, conduta sodal, personalidade, motivos”50.
Boschi, aderindo ã perspectiva de ser a culpabilidade o índice geral
w - rJrfUt
de dosimetria da pena-base —com importantes efeitos na quantificação das
penas provisória e definitiva, conforme será posteriormente apresentado —,
sugere, inclusive, uma ampliação do seu conteúdo que englobe os próprios
elementos objetivos. Neste sentido, o art. 59, caput, do Código, poderia ser 347
interpretado da seguinte maneira: “o ju iz, atendendo à culpabilidade, estabele­
cerá, conforme seja necasàrio e sufidente para reprovação e prevenção do delito”, as
penas aplicáveis, a quantidade de pena aplicável, o regime inicial e a subs­
tituição da pena privativa de liberdade por outra espécie. Isto porque “as
drcunstândas judiciais não são outra coisa senãofenamentas a serem utilizadas pelo

i0 R EA LE JR . et al., Penas e Medidas de Segurança no N o w Código, p. 160.


ju iz nas investigações sobre todas as particularidades que dizem respeito à
reprovação”51.
A proposição da Reforma, compartilhada por expressivos autores da
doutrina penal brasileira32, parece ser a posição dogmaticamente mais ade­
quada em razão do sentido conferido ã culpabilidade na teoria da pena
contemporânea. Aliás, entende-se que a ideia de culpabilidade como critério
geral de aplicação da pena poderia capacitar a teoria do direito penal na
construção de filtros e de barreiras às tendências antisseculares de conversão
das circunstâncias judiciais em mecanismos de valoração moral do autor
do delito (direito penal de autor), desde que, logicamente, fosse excluído
do seu conteúdo o sentido de reprovabilidade, conforme destacado.
Ocorre, porém , que a forma de redação do caput do art. 59 induziu
a autonomização da culpabilidade na doutrina e na jurisprudência penal
brasileiras, transformando a circunstância geral conglobante em apenas
mais um a circunstância judicial (subjetiva) específica.
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

12.5.3. Diferentemente do papel exercido na teoria do delito (atri­


buição de responsabilidade), na teoria da pena —como critério geral ou
específico —, a cu lp ab ilid ad e perm itirá analisar o grau de responsabilida­
de penal do autor do delito. N o entanto, apesar de atuar de forma distinta
nas teorias do delito (critério qualitativo) e da pena (critério quantitativo),
inexiste diferença nos elementos que integram a culpabilidade: (a) im pu­
tabilidade, (b) potencial conhecimento do delito e (c) exigibilidade de

51 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 191.


52 Zaffaroni e Pierangeli lecionam que “a culpabilidade abarcará tanto os motivos (é inquestio­
nável que a motivação é problema da culpabilidade), como as circunstâncias e conseqüências do delito
(que podem compor também o grau do injusto que, necessariamente, reflete-se no grau de culpabili-
dade). O comportamento da vitima pode aumentar ou diminuir o injusto, e, por rejlexo, ou mesmo
348 diKtamente, a culpabilidade. A personalidade do agente cumpre uma dupla fm ção: wm relc^ão à
culpabilidade, serve para indicar— como elemento indispensável— o âmbito de autodeterminação do
agente. Insistimos aqui ser inaceitável a culpabilidade de autor. A maior ou menor ‘adequação’ da
conduta ao autor, ou ‘comspondência’ rom a personalidade deste, em nenhum caso pode fundamen­
tar uma maior culpabilidade, e, no máximo, deve servir para não baixar a pena do máximo que a
culpabilidade de ato permite (...)” (ZAFFARONI e PIERANGELI, M anual de Direito Penal
Brasileiro, p. 830).
N a mesma linha, Cláudio Brandão sustenta que “a culpabilidade é o único elemento do
delito que mesura a pena, sendo o satélite central das circunstâncias judiciais; todas as demais cinuns-
tâncias gravitam em torno dela” (BRANDÃO, Cuno de Direito Penal, p. 333).
conduta diversa, nos termos do art. 26, caput, do Código Penal. São estes
elementos, portanto, a partir da adoção do finabsmo pela Reform a de 1984,
que podem ser valorados na aplicação da pena.
Logicamente que para chegar na fase de aplicação da pena é impres­
cindível que um juízo anterior e afirmativo sobre a culpabilidade tenha
sido feito. Im portante lem brar que as respostas fornecidas na teoria do
delito são de índole qualitativa, ou seja, as perguntas que perm itiram atri­
buir a responsabilidade penal ao autor do injusto penal foram (a) se o su­
jeito era imputável; (b) se possuía (potencial) consciência da ilicitude do
feto; e, consequentemente, (c) se lhe era exigível conduta distinta daquela
praticada (delito). Qualquer resposta negativa aos interrogantes anteriores
exclui a possibilidade de pena em face da ausência de culpabilidade. Na
aplicação da pena, porém, especialmente nesta fase de análise da circuns­
tância judicial específica, as questões m udam de enfoque, sendo im portan­
te para o juiz verificar (a) qual a extensão da imputabilidade; (b) qual o
nível de consciência da ilicitude; e (c) qual a medida de exigibilidade de
outra conduta.
Interessante notar que, apesar de a circunstância culpabilidade ser
considerada pela doutrina como a mais complexa em term os de operacio-
nalização - e a análise jurisprudencial perm ite perceber a enorm e im pre­
cisão conceituai na sua instrumentalização pelos atores do processo 33 —, a
legislação penal fornece im portantes indicativos dos dados concretos que
o julgador poderia avaliar.
N o que tange ã im p u tab ilid ad e, o Código Penal prevê a sua va­
loração em dois momentos: (a) como atenuante, ao mencionar a menoridade
relativa (art. 65, I); (b) como minorante, ao prever a semi-imputabilidade.
Inegavelmente a menoridade relativa e a semi-imputabilidade são desdobramen­
tos da culpabilidade na metodologia de aplicação da pena, situação que
reforça a tese de que as agravantes/atenuantes e majorantes/minorantes são
especificações dos critérios gerais expostos pelas circunstâncias judiciais.
Logicamente que pelo feto de estarem reguladas como atenuante e m ino­
rante inexiste possibilidade, por força da técnica de resolução do conflito
aparente de normas penais (princípio da especialidade), de sua valoração

43Sobre a imprecisão conceituai da circunstãnciajudicial culpabilidade na aplicação da


pena, conferir o estudojurisprudencial exposto em CARVALHO, O Papel dos geradores
do Direito na Era do Punitivismo, pp. 179-183.
na pena-base. Todavia, estes dispositivos fornecem duas importantes guias
que podem servir como critérios de valoração da culpabilidade.
Prim eiro, em decorrência das regras sobre a (in) im p u tab ilid ad e
etária, há um a presunção norm ativa de que a maturidade amplia o conhe­
cim ento da ilicitude e, consequentemente, aumenta a exigibilidade de
com portam ento conforme o direito. Não por outra razão, em termos
penais, o indivíduo atinge a responsabilidade aos 18 (dezoito) anos, mas,
até com pletar 21 (vinte e um), é amparado pela atenuante da menoridade
relativa. Neste sentido, variações etárias limítrofes às estabelecidas para a
menoridade relativa, sem que haja a aplicação da atenuante, podem ser
analisadas na circunstância culpabilidade. Desta forma, o sujeito que, em
tese, tenha praticado o feto em idade limítrofe àquela da menoridade re­
lativa —p. ex., com 22 (vinte e dois) ou 23 (vinte e três) anos —, poderia
ter a culpabilidade valorada como favorável em razão da diferenciada ca­
pacidade de compreensão e com portam ento conforme o direito. Cumpre
reiterar que o juízo de culpabilidade não corresponde, na teoria da pena,
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

àquele binário que orienta a teoria do delito, correspondendo, neste m o­


m ento de determinação da pena, ã ideia de grau de responsabilidade (e não
de sua presença ou ausência).
Segundo, em relação ã (in )im p u tab ilid ad e psíquica, o Código
prevê situações de exclusão e de dim inuição da responsabilidade penal que
perm item afirm ar que o sofrimento psíquico, em m aior ou m enor escala,
altera a compreensão da ilicitude. Assim, para além dos transtornos que
geram situações de inimputabilidade e de semi-imputabilidade, seria pos­
sível analisar na culpabilidade determinadas alterações de ordem psíquica
que afetam a cognição e o com portam ento, como, p. ex., fobias, pânicos,
depressões, dependências químicas.
Im portante destacar, contudo, que, tratando-se de circunstância
judicial, cabe ao julgador, no caso concreto, verificar processualmente e
demonstrar (motivação) como estes fatores etários e psíquicos prejudicaram
a consciência da ilicitude e alteraram o comportam ento esperado. Tais
variáveis da culpabilidade representam fatores importantes que não devem
ser desprezados, desde que, logicamente, haja elementos probatórios con­
fiáveis para que o julgador ampare sua decisão.
12.5.4. N o que diz respeito ao p o ten cial co n h ecim en to da ili­
citu d e e ã ex ig ib ilid ad e de c o m p o rta m e n to diverso, a legislação
penal recente igualm ente fornece alguns interessantes parâmetros de aná­
lise sobre os dados que podem ser valorados.
É preciso perceber, porém, que conhecim ento da ilicitude é, antes
de mais nada, conhecimento, compreensão em sentido amplo. Além disso,
nos termos do art. 26, caput, do Código Penal, esta compreensão (da ilici­
tude) é a que perm ite um maior ou m enor com portam ento adequado. A
indagação possível, portanto, seria sobre os fatores que perm item avaliar o
nível de conhecimento de um indivíduo, ou seja, quais os dados que pos­
sibilitam verificar se determinada pessoa possui uma compreensão mais ou
menos sofisticada do m undo em que vive e se relaciona.
O art. 14,1, da Lei n. 9.605/98, prevê, como circunstância atenuan­
te nos crimes ambientais, o “baixograu de instrução ou escolaridade do agente”.
Inegavelmente, a instrução e a escolaridade são im portantes indicadores da
capacidade cognitiva. Não que seja possível reduzir a complexa gama de
elementos que perm item o desenvolvimento da intelectualidade de uma
pessoa ã escolarização formal. Determinadas pessoas atingem satisfatórios
níveis de instrução por meio, p. ex., de experiências profissionais, sem que
tenham freqüentado regularmente o ensino formal. Aliás, a própria distin­
ção legal entre instrução e escolaridade esclarece estes distintos canais de acesso
ao conhecimento. Da mesma forma, é possível dizer que a situação econô­
mica, individual ou familiar, é uma variável que pode contribuir decisiva­
mente, positiva ou negativamente, para o desenvolvimento intelectivo.
N o entanto, é im portante destacar que não há uma relação de cau­
salidade entre instrução, escolaridade, profissão ou situação econômica e
o (potencial) conhecimento de um a situação ilícita. O juízo de culpabili­
dade depende, necessariamente, de um a análise concreta de como tais
variáveis influenciaram ou deixaram de influenciar na tomada de decisão.
O feto de um indivíduo possuir, p. ex., titulação acadêmica (mestrado ou
doutorado), por si só, não perm ite afirm ar que tenha, em determinada
situação, maior ou m enor consciência do ilícito, sendo exigível outra con­
duta. O alto grau de escolaridade apenas indicia esta possibilidade. Para
que este fator seja apreciado na qualidade de culpabilidade, é imprescindível
que o julgador demonstre, no caso concreto, haver uma relação entre esta
circunstância (titulação) e o ilícito —p. ex., a inobservância de uma regra
técnica que o sujeito, especialista na área de conhecimento, dominava.
Demonstrada de forma clara na sentença judicial a relação de cau­
salidade entre a circunstância concreta e o delito ou como estes fatores de
alguma form a estão vinculados ou influenciaram (potencializaram) a
conduta, a instrução, a escolaridade, o status profissional, a situação eco-
nômica e a condição social são critérios possíveis de análise na circunstân­
cia culpabilidade; sobretudo porque estas informações perm item avaliar a
v u ln erab ilidad e do sujeito (culpabilidade pela vulnerabilidade), conforme
parece indiciar o Código de Processo Penal ao estabelecer as questões que
devem ser feitas ao réu no momento do interrogatório54. Não basta, porém,
reitera-se, a mera referência abstrata ã instrução ou ã situação econômica
do réu, sendo imprescindível a determ inação de um vínculo m ínim o (re­
lação de causalidade ou influência) com o ilícito ou a relação com a maior
ou m enor exposição pessoal ã incidência do controle social punitivo (cul­
pabilidade pela vulnerabilidade).
Outrossim, determinados elementos que integram a biografia pes­
soal do condenado, com o o seu m odo de vida e os padrões e as inconstân-
cias do seu com portam ento, estão logicamente excluídos da possibilidade
de valoração por força da diretriz imposta pelo prindpio da secularização.
Avaliações judiciais neste nível implicam em valorações morais sobre o
sujeito criminalizado, situação vedada pela Constituição em face da adoção
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

de um m odelo garantista de direito penal dofato.


Todavia, é forçoso reconhecer que “muito embora rechace criticamente
a concepção de culpabilidade fundada no caráter ou na condução de vida do agente,
em favor de uma culpabilidade pelo fato, a dogmática penal moderna brasileira [e
estrangeira, acrescente-se] não se desapega de considerar desfavoráveis determi­
nadas circunstâncias inteiramente pessoais do autor, nem procura questiomr a razão
pela qual estas possuem tamanha proeminência na graduação da resposta estatal por
parte de juizes e tribunais”55.

12.5.5. Em relação aos limites negativos (vedações) na atribuição de


sentido na circunstância culpabilidade, duas questões específicas merecem
análise: (a) valoração da in ten sidad e d o do lo e do g rau de culpa e (b)
valoração da pericu lo sid ad e do réu.

352
í4Segundo o art. 187 do Código de Processo Penal, alteradopela Lei n. 10.792/2003, o
interrogatório do réu será consdtuido de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre
os fatos. Nesse sentido, o § Ia do dispositivo determina que “na primeira parte o intenogan-
do será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais,
lugar onde exerce a sua atividade, vitfa pregressa, notadamente sefoi preso ou processado alguma
vez e, em caso afirmativo, qual o juizo do proasso, se houve su^ensão condicional ou conden^ão,
qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais” (grifou-se).
sí SOARES, Aplic^ão da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Juridico-Constitucional de
Minimização da Afetação Individual, p. 162.
Na redação original da parte geral do Código Penal (Decreto-Lei
n. 2.848/40), inspirada pela teoria causai da ação, o art. 42, caput, que
tratava da determinação da pena-base, referia, juntam ente com as demais
circunstâncias judiciais, a intensidade do dolo e o grau de culpa56. Conforme
trabalhado anteriormente na delimitação dos elementos subjetivos da teo­
ria psicológica, o dolo e a culpa consistiam em formas de culpabilidade,
que eram compostas, ainda, pela imputabilidade. Com a teoria psicológico-
-normativa é integrado o elemento exigibilidade de conduta. N o entanto,
com o advento da teoria finalista da ação, ocorre a normativização plena
da culpabilidade (teoria normativa pura), sendo extirpados os elementos
dolo e culpa, transferidos para a tipicidade (elementos subjetivos do tipo).
Nota-se, portanto, que a redação originária do art. 42, caput, do
Código Penal, obedece ã estrutura metodológica vigente na época: teoria
causai da ação, teoria psicológico-normativa da culpabilidade.
Todavia, a R eform a de 1984 estabelece um giro paradigmático na
teoria do delito nacional, incorporando na nova parte geral os pressupostos
do finalismo. Não por outra razão, o novo art. 59, caput, substitui os termos
intensidade do dolo e grau de culpa pela categoria culpabilidade. Aliás, esta op­
ção fica bastante clara na exposição de motivos da Lei n. 7.209/84 (nova
parte geral): “as diretrizes para a fixação da pena estão relaáonadas no art. 59,
segundo o critério da legislação em vigor, tecnicamente aprimorado e necessariamen­
te adaptado ao novo elenco de penas. Preferiu o projeto a expressão ‘culpabilidade’
em lugar de ‘intensidade do dolo ou grau de culpa’, visto que graduável è a censura,
cujo índice, maior ou menor, incide na quantidade de pena"57.
A exclusão dos elem entos do lo e culpa, com a substituição pelo
term o culpabilidade, decorre exatamente da nova orientação teórica que
passa a viger na legislação penal brasileira. E, desde a perspectiva finalista,
os elementos do conceito normativo são exatamente a imputabilidade, a
(potencial) consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
Neste sentido, embora sejam relevantes os argumentos contrários58,
entende-se incabível a valoração do grau de culpa e da intensidade do dolo

56 “Compete ao ju iz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo


ou grau da culpa, aos motivos, às ànunstâncias e conseqüências do crime: I - determinar a pena
aplicável, dentre as cominadas alternativamente; I I —fixar, dentro dos limites legais, a quantidade
da pena aplicável” (art. 42, Código Penal, redação original).
51 Código Penal, Exposição de Motivos da Nova Parte Geral, § 50.
i8 Sustenta, p. ex., Bitencourt que “o dolo que agora se encontra localizado no tipo penal — na
verdade em um dos elementos do tipo, qual seja, a ação — pode e deve ser aqui considerado para
na circunstância culpabilidade. A primeira razão decorre do foto de que,
se dolo e culpa integram a tipicidade subjetiva, são, necessariamente, ele­
mentares típicas, constituindo sua análise, na aplicação da pena, ofensa ao
princípio ne bis in idem. Constata Paulo Queiroz que “sendo o dolo requisito
dos tipos dolosos, e, pois, pressuposto da própria condenação, considerá-lo para efei­
to de majorar ou atenuar a pena constitui bis in idem Em sentido simi­
lar, Mestieri sustenta que “(...) as realidades do delito, dolo e culpa, além de
serem características típicas e assim deverem ser valoradas, são insuficientemente
abrangentes para a apreciação da individualização sobre a participado do protago­
nista da infração penal. Medir a culpabilidade significa aquilatar o grau maior ou
menor de reprovabilidade, em consonância com a maior ou menor exigibilidade de
conduta conforme a norma, de um autor concreto, no caso concreto”60.
Além disso, segundo motivo é relevante: se dolo e culpa não com ­
põem a culpabilidade normativa, sua valoração implica em um a ampliação
das circunstâncias judiciais previstas no art. 59, caput, do Código Penal, ou
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seja, na criação de categorias praeter legem, hipótese absolutamente vedada


por força da incidência do princípio da taxatividade nos critérios de deter­
minação da pena.

12.5.6. Q uestão menos controversa —mas não menos problemática


—é a relativa ã análise da p ericu lo sid ad e do a u to r no m om ento de apli­
cação da pena-base.
N o momento de apreciação dos vínculos entre pena e culpabilidade na
dogmática penal, foi possível perceber que, sob a égide do sistema causalista
Liszt-Beling, a culpabilidade era concebida apenas como um a categoria
descritiva (empírica) do elem ento subjetivo do crime, composta pela im ­
putabilidade, pelo dolo e pela culpa. Sendo inadmissível qualquer espécie
de graduação, a culpabilidade não se projetava sobre a pena. Não por outro
motivo, a fundamentação e a determinação da pena ocorriam sob a regên-

avaliar o grau de censura da ação tida wmo típica e antijurídica: quanto mais intensofor o dolo, maior
será a censura; quanto menor a sua intensidade, menor será a censura” (BITENCOURT, Tratado
de Direito Penal, p. 664).
N o mesmo sentido, sobre a possibilidade de valoração d o dolo e da culpa nas circuns­
tâncias judiciais da pena-base, conferir FRAGOSO, Lições de D im to Penal, pp.407-408.
55 Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 393.
60 M ESTIERI, Manual de Direito Penal, p. 281.
cia do positivismo criminológico, que se pautava no critério da periculosi­
dade do agente.
Assim, a superação do causalismo e da teoria psicológica não apenas
produziu o efeito intrassistemático de relocação do dolo e da negligência,
como este processo de normativização da culpabilidade foi determ inante
para o resgate da teoria da pena para a dogmática jurídico-penal. Na qua­
lidade de juízo de censura e de reprovação (Frank), a culpabilidade se
vincula ã pena, estabelecendo seus limites e sua medida. A periculosidade
ficará adstrita ao fundam ento e ã determinação das medidas de segurança.
Os dois modelos penais de resposta ao injusto (penas e medidas) são esta­
belecidos, portanto, na cisão relativa ã capacidade de culpabilidade: im pu­
tabilidade e inimputabilidade.
A dogmática da resposta ao ilícito produz, assim, uma radical sepa­
ração entre os dois sistemas, polarizados entre a culpabilidade (autodeter­
minação) e a periculosidade (determinação), entre as penas e as medidas
de segurança. Embora seja fundamental na atualidade a crítica aos critérios

:u H ftlil
e ao próprio conceito de (in)imputabilidade61, os conceitos, as circunstân­
cias e os elementos da culpabilidade e da periculosidade não se confundem.

■tAi 4; nritâ
São sistemas dogmáticos distintos, com distintos critérios de aplicabilidade.
N o entanto, apesar da clareza dogmática quanto ã impossibilidade

Í-: y,
de aproximação destes universos autônomos, as noções de periculosidade
e de sujeito perigoso, derivadas diretamente do positivismo etiológico,

■; - rJrfüt ie eBeHi v.
perm anecem latentes nas entrelinhas doutrinárias e no subterrâneo juris-
prudencial do pensamento ortodoxo, em grande parte alimentadas pelo
senso com um punitivista. Análise crítica das práticas dos atores do sistema
penal, sobretudo a jurisprudência dos Tribunais, perm ite perceber como a
ideia de periculosidade emerge nos discursos dogmáticos, ampliando o
encarceramento por meio de metarregras e de deslocamentos discursivos.
As metarregras se instrum entalizam , p. ex., por m eio de standards decisio- 355
nais nos decretos de prisão preventiva; estereótipos persuasivos na aplicação
da pena; motivações com eixos (conteúdos)flutuantes na avaliação dos requisitos
para progressão de regim e em sede de execução da pena —os exemplos são
inúmeros, como periculosidade do réu, probabilidade de reiteração, inclinação ao

61A problematização da (in)imputabilidade, sobretudo a partir da reforma psiquiatria, será


abordada no capitulo relativo às medidas de segurança.
delito, personalidade voltada à prática do delito, caparídade de delinquir, personali­
dade perigosa, entre inúmeras outras expressões com conteúdo vago62.
Embora na fase de aplicação da pena a noção de periculosidade tenha
maior incidência na análise judicial da personalidade do réu, sua ressigni-
ficação deflagra um processo dogmático de corrupção da categoria culpa­
bilidade. Fundamental repetir, portanto, que culpabilidade e periculosida­
de são conceitos contrapostos. Aliás, evocar a periculosidade como
conteúdo geral da culpabilidade (ou substância da circunstânciajudicial
personalidade), na aplicação da pena, constitui evidente equívoco teórico e
m etodológico. Isto porque ao reconhecer a periculosidade o julgador
estaria, im ediatam ente, excluindo a possibilidade de imposição da pena
e, autom aticam ente, abrindo espaço para a afirm ação da inim putabili­
dade com a conseqüente definição da m edida de segurança como resposta
ao injusto.
Neste aspecto, M estieri resume com propriedade a questão: “a esse
critério de fundamentar-se a base e o limite da pena pela culpabilidade pelo fato
opõe-se o critério da personalidade, de predomitúncia na ciência penal hispano­
-americana: à relafio pena-culpabilidade contrapõe-se a da pena-perigosidade”63.
(b ) A n te c e d e n te s
1 2 .5 .7 . E m sentido amplo, seria possível definir a n t e c e d e n t e s c r i ­
m i n a i s como qualquer registro formal de prática delitiva. O juízo sobre
os antecedentes implicaria, portanto, a análise da integralidade das notifi­
cações contra uma pessoa, incluindo representações criminais, inquéritos
em andamento, indiciamentos, denúncias (ou queixas-crime) e condena­
ções no âmbito dajustiça criminal. Hungria afirmava ser de competência
do juiz criminal “extrair-lhe [do acusado] a conta corrente, para ver se há saldo
credor ou devedor”64.
Na dogmática penal brasileira, com o advento da Constituição em
1988, a extensão do conceito de antecedentes crim inais passou a ser

62 Sobre os deslocamentos discursivos, os standards decisionais, os estereótipos penuasivos e as


decisões com eixos (conteúdos) jlutuantes, conferir BRUM , Requisitos Retóricos da Sentença
Penal, pp. 72-84; FAYET, A Sentença Criminal e suas Nulidades, pp. 23-38; GOMES FI­
LHO, A Motivação das Decisões Penais, pp. 141-145; STRECK, Hermenêutica Juridica e(m)
Crise, pp. 51-62.
63 M ESTIERI, M anual de Direito Penal, p. 281.
6i A pud REA LEJR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 161.
questionada, sobretudo em relação ã valoração de inquéritos e processos
crim inais em andam ento e de condenações judiciais sem trânsito em
julgado. A amplitude dos antecedentes criminais najurisprudência nacional
pré-Constituição passou a ser seriamente confrontada com o princípio da
presunção de inocência — em m uitos casos eram considerados maus
antecedentes sentenças que reconheciam com o preliminar de mérito causas
de extinção de punibilidade (p. ex., prescrição) ou, até mesmo, sentenças
absolutórias motivadas por ausência de provas.
Se o comando constitucional determ ina que “ninguém poderá ser
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art.
52, LVII, da Constituição), o debate centralizou-se nos efeitos jurídicos
im postos pelo estado de inocência, fato que provocou contundente
divergência no plano dogm ático. A corrente ortodoxa, orientada por uma
espécie de análise retrospectiva que tende a interpretar a Constituição por
meio dos preceitos do Código Penal e do Código de Processo Penal,
entendia que o princípio da presunção de inocência resguardava o acusado
apenas contra juízos de antecipação da culpa no caso concreto, ou seja,
como os antecedentes implicariam em valorações de processos anteriores
não vinculados diretamente com o caso em análise, inexistiriam quaisquer
óbices em valorar negativamente registros criminais, mesmo não havendo
condenação estabilizada pela coisa julgada.
Em oposição, importante corrente da doutrina penal pátria defendeu
a efetividade plena do princípio da presunção de inocência, o que implicaria
em considerar como maus antecedentes apenas as condenações criminais
com trânsito em julgado. Por todos, Adauto Suannes sustenta que “somente
a condenação criminal definitiva anterior aofato ora emjulgamento poderia ser levada
em conta pelo magistrado ao cogitar dos chamados (maus) ante&dentes judiciais do
acusado; (...) qualquer outra consideração a titulo de maus antecedentes será, pois,
inconstitucional, por afronta aos princípios constitucionais que impedem a alteração
in pejus do julgado criminal, sem prquízo de prova concreta de ocorrência de mau
antecedente social”6*.
A pós um a tensa dispu ta ju risp ru d e n c ia l e d o u trin á ria , o
posicionamento que garante a efetividade do princípio constitucional da
presunção de inocência consolidou-se na Súmula 444 do Superior Tribunal
de Justiça: “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso
para agravar a pena-base”. Boschi cita que este enunciado não refere

6i SUANNES, Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal, p. 240.


expressamente os processos encerrados com sentenças absolutórias ou
decisões que julgam extinta a punibilidade. Todavia, pondera corretamen­
te que a súmula há de projetar seus efeitos tam bém nestes casos66.
Desta forma, é possível concluir que constituem antecedentes para
fins de análise judicial na aplicação da pena-base aquelas condenações
crim inais com trânsito em julgado que não constituem reincidência. Em
síntese, para configurar antecedentes o trânsito em julgado da sentença
condenatória deve ter ocorrido em data posterior ã da prática da nova
infração; do contrário, ou seja, se o trânsito em julgado for anterior ao
delito que está sendo julgado, incidirá a agravante da reincidência.
O m arco de análise, portanto, é sempre a data dofato que está sendo
julgado —tempo do crime, nos termos do art. 4° do Código Penal. Se o ju l­
gador, no m om ento de determinação da pena-base, verificar na prova do­
cumental (certidão cartorária de antecedentes criminais) que o réu foi
condenado por outro delito, deve, primeiramente, indagar se houve trân­
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

sito em julgado desta decisão. N ão havendo sentença estabilizada pela


coisa julgada, mesmo havendo registro criminal, o réu é tecnicamente
primário e de bons antecedentes, devendo a circunstância judicial antece­
dentes criminais ser valorada favoravelmente. Constatado, porém, que hou­
ve sentença transitada, a segunda pergunta necessária é a relativa ã data do
trânsito em julgado. Se o trânsito for posterior ã data do foto do delito que
está sendo julgado, o réu possui maus antecedentes, motivo pelo qual será
possível valorar negativamente na pena-base (Figura 3). Se anterior, have­
rá reincidência (Figura 4). Apenas na hipótese de haver múltiplas conde­
nações, anteriores e posteriores ã data do novo ilícito, é que o réu será
considerado reincidente e com maus antecedentes (Figura 5)67.
Importante perceber, portanto, que, diferentemente das noções do
senso comum, a relação que configura os antecedentes e a reincidência não
ocorre entre fetos, a partir da simples constatação da prática de novo deli-
358 to. Esta relação se estabelece entre o fato em julgamento e a condenação com
trânsito em julgado derivada de outro delito.
Em termos conceituais e classificatórios, seria possível afirm ar que
os registros criminais analisados na pena-base seriam antecedentes em sentido
estrito (ou antecedentes judiciais), os quais, juntam ente com a reincidênàa,

66 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 167.


t7 As figuras estão dispostas no item relativo ã reincidência.
seriam espécie do gênero antecedentes (em sentido amplo). Isto porque ambas
as categorias, dispostas nos arts. 59, caput, e 61, I, do Código Penal, são
desdobramentos de uma ideia mais ampla que é relativa à análise do passado
criminoso do réu.

12.5.8. Três questões, para além da delimitação do tipo de registro


capaz de configurar maus antecedentes, são de abordagem necessária: (a)
a definição do marco temporal dos antecedentes em sentido estrito; (b) a
exclusão das condenações ã pena de multa do conceito de maus anteceden­
tes; e (c) a (in)constitucionalidade da circunstância de aumento de pena
em foce dos princípios da secularização e da proibição da dupla incrim i­
nação (ne bis in idem).
A necessidade de definir um lim ite te m p o ra l p ara a in cid ên cia
dos an teced en tes decorre de sua perpetuidade. A legislação penal brasi­
leira não estabelece um marco tem poral para cessação dos efeitos da con­
denação transitada em julgado.
Zaffaroni e Pierangeli aduzem que a norm a constitucional do art.

:u H ftlil
59, XLVII, b, que veda a prisão perpétua, não pode ser lida de forma res­
tritiva. Assim, “a exclusão da pena peyétua de prisão importa que, como lógica

■tAi 4; nritâ
conseqüência, não haja delitos que possam ter penas ou conseqüências penais p eyé-
tuas. Se a pena de prisão não pode ser peyétua, é lógico que tampouco pode sereia
a conseqüência mais branda do delito. Isto resulta claro quanto às conseqüências

Í-: y,
acerca da reincidência, que o art. 64 limita em cinco anos"68. Seria, portanto, uma

ie eBeHi v.
conseqüência da norm a constitucional que veda as penas perpétuas “(...)
não se admitir que o autor de um delito perca a sua condição de pessoa, passando a
ser um indivíduo ‘marcado’, ‘assinalado’, estigmatizado pela vida afora, reduzido à
condição de ma^inalizado pe^ètuo”69.
w - rJrfüt

Sendo imperativo delimitar tem poralm ente os efeitos dos antece­


dentes em decorrência do comando constitucional e havendo na legislação
penal nacional previsão expressa em relação a instituto da mesma natureza,
entende-se possível estender aos antecedentes o prazo previsto no art. 64, 359
I, do Código Penal, para cessação dos efeitos da reincidência. Em realidade,
o prazo de 5 (cinco) anos de limitação da reincidência deveria ser compreen­
dido, efetivamente, com o um prazo máximo, pois, em decorrência da
estrutura lógica de aplicação da pena prevista no Código Penal, se a reinci-

68 ZAFFARONI e PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 786.


69 ZAFFARONI e PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 786.
dência (agravante) implica em um maior gravame punitivo na comparação
com os antecedentes (circunstânciajudicial), seria razoável que o prazo
para restringir os efeitos dos antecedentes fosse menor. Todavia, inexistindo
norma que regulamente o instituto, a única analogia possível é com o valor
temporal estabelecido para a agravante.
Paganella Boschi compartilha o entendim ento, referindo que “por
similitude lógica, o decurso do período de cinco anos, que, segundo o art. 64 do CP,
gera o fenômeno da prescrição da reincidência, deveria também arredar os maus
antecedentes. (...) Com feito, carece de sentido que o decurso do tempo produza o
desaparecimento da reinrídência e não tenha a mesma/orça parafazer desaparecer os
efeitos de causa legal de menor expressão jurídica, qual seja, dos antecedentes”70'71.
O segundo tema a ser abordado diz respeito à possibilidade de c o n ­

d e n a ç õ e s a n te rio r e s à p e n a configurarem antecedentes


d e m u lta

criminais. A questão surge da posição consolidada na dogmática nacional


de que as condenações anteriores ã pena de m ulta (substitutiva ou origi­
nária) não podem ser valoradas como reincidência (agravante).
PENAL B R A S IL E IR O

O art. 77 do Código Penal, que estabelece os requisitos para con­


cessão da suspensão condicional da pena, em seu inciso I, veda a concessão
do sursis em caso de reincidência em crim e doloso. Todavia, o § l e do
mesmo dispositivo estabelece que “a condenação anterior à pena de multa não
NO 3REIID

impede a concessão do benefíáo”. Esta exceção acabou por produzir na doutrina


e na jurisprudência o entendim ento de que a condenação por multa não
DE S EG U R A N Ç l

constitui reincidência, pois, conform e destaca Delm anto, “seria incoerente


não considerar a anterior pena de multa como impeditiva do sursis e, ao mesmo
tempo, considerá-la geradora de reincidência”72.
FTNAS • MED WS

70 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 168.


71 O entendimento encontra importante precedente histórico em decisão proferida pelo
Superior Tribunal de Justiça (STJ):
"Direito Penal. Reincidência. Antecedentes. O art. 61, I do C P determina que, para efeito de
reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entn a data do cumprimento ou &tinção da pena
e a infratfo anterior houver deconido período superior a cinco anos. O dispositivo se harmoniza com
o Direito Penal e a Criminologia modernos. O e s tic a da sanção criminal não é penne. Limita-se
no tempo. Transcorrido o tempo referido, evidencia-se a ausência de periculosidade, denotando, em
princípio, aiminalidade ornsional. O condenado quita sua obrigaçM a m aJustiça Penal. A conclusão
é válida também para afastar os anteadentes. Seria ilógico afastar expressamente a agravante e per­
sistir genericamente para recrudescer a sanção aplicada” (Superior Tribunal de Justiça, Recuno
em Habeas Coqius 2.227-2, Rei. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 29.03.1993, p. 5.268).
72 DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 126.
A partir desta constatação, em efetivação ao princípio da proporcio­
nalidade, entende-se possível sustentar que a condenação anterior por pena
de m ulta igualmente não pode ser valorada negativamente como antece­
dentes em sentido estrito. A tese é proposta com pertinência por R odrigo
R oig Soares: “considerando que a condenação anterior à pena de multa não impe­
de a concessão da suspensão condiríonal da pena (art. 77, § 1g, do CP), do mesmo
modo não pode suscitar reincidência ou maus antecedente capazes de autorizar o
acrésrímo penal. Entender dessaforma significa materializar um juízo de proporcio­
nalidade redutora capaz de espraiar a eficácia contentora de certos dispositivos legais
para outras hipóteses ontologicamente ou finalisticamente semelhantes”73.
Aterceira questão a ser problematizada diz respeito ã a d e q u a ç ã o

c o n s titu c io n a l d o s como hipótese de aum en­


a n te c e d e n te s c r im in a is

to de pena. A problematização coloca o debate sob a perspectiva dos prin­


cípios constitucionais norteadores do direito e do processo penal contem ­
porâneos: o princípio do ne bis in idem e o princípio da secularização.
Os efeitos jurídicos da incorporação da proibição da dupla incrim i­
nação foram amplamente expostos, restando evidente tratar-se o ne bis in
idem de um dos principais parâmetros na aplicação da pena. Embora o tema
seja tratado com maior profundidade no debate sobre a constitucionalida-
de da agravante da reincidência —notadam ente em face do reconhecim en­
to, pelo Supremo Tribunal Federal, da repercussão geral em Recurso
Extraordinário que tem com o objeto a discussão acerca da (não) recepção
do art. 61, I, do Código Penal, pela Constituição 74 —, cabe ressaltar que a
dogmática crítica nacional vem sustentando, sobretudo nas duas últimas
décadas, a incompatibilidade da ideia de agravamento de pena pelos ante­
cedentes (antecedentes em sentido estrito ou reincidência) com o princípio
da vedação da dupla incriminação.
O motivo central da crítica é exatamente esta possibilidade de au­
m entar a pena de um delito em face de um a condenação anterior por
outro crim e cuja pena já foi (ou está sendo) cumprida. O plus punitivo
aplicado na fase da pena-base (antecedentes) ou da pena provisória (rein-

73 SOARES, Aplicação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Jurídico-Constitucional de


Minimização da Afetação Individual, p. 171.
MSupremo Tribunal Federal, R^ercussão Ceral em Recurso Extraordinário 591.563-8, Rei.
Min. Cezar Peluso, DJe 24.10.2008.
A Repercussão Geral aguardapautapara julgamento pelo Pleno do Supremo Tribunal
Federal.
cidência) implica, desde a perspectiva crítica, em um acréscimo de pena
derivado de um a circunstância extratípica, ou seja, de uma situação (con­
denação anterior) anterior e estranha ao objeto do processo. Se o conteúdo
da sentença penal está normativamente limitado pelos horizontes de im ­
putação expostos na acusação, devendo o julgam ento guardar uma relação
íntim a com as condutas típicas narradas na denúncia ou na queixa-crim e
(princípio da correlação), fetos concretos independentes da conduta im pu­
tada com o delitiva não fazem parte das circunstâncias a serem valoradas.
Assim, o quantum punitivo decorrente da valoração e da conseqüen­
te censura pelos antecedentes — sobretudo em termos de aumento, mas
igualm ente nos casos de diminuição (bons antecedentes) —implicaria em
uma análise judicial extra petita, visto estar o feto anterior situado em um
âmbito externo ao delito imputado. O efeito desta sobrepenalização é a
violação direta da proibição da dupla incriminação, pois o quantum atribuí­
do advém de um feto anteriormente processado, julgado e punido.
PENAL B R A S IL E IR O

Os argumentos que justificam a legitimidade da valoração dos an­


tecedentes estão centralizados nos critérios de individualização da pena.
Mestieri, p. ex., argumenta que “em um direito penal do fato, em que se julga
o acusado por um átomo de vida, ao menos no momento da determinação da pena
é de se levar em conta os antecedentes, bons ou maus”75. Boschi defende que “não
NO 3REIID

há outro modo de individualizar a pena, isto é, de tomá-la única e singular, semo


mediante a consideração de todas essas particularidades relacionadas ao fato e aos
DE S EG U R A N Ç l

seus personagens: autor e vitima. E graças a isso que o direito penal, conciliando os
extremos (igualdade e diferença) realimenta continuamente a sua legitimidade, evi­
tando padronizações das sentenças e preservando o sentido da equidade nas diferen­
FTNAS • MED WS

ças e aos dferentes ”76.


Im portante notar, porém, que a questão de fundo que parece orien­
tar este posicionamento é a da adoção da ideia de culpabilidade como repro­
vabilidade, conforme amplamente discutido no m om ento das projeções da
362 concepção agnóstica (ou negativa) da pena na culpabilidade. Isto porque é a noção
de culpabilidade como juízo de reprovação ou de censura que legitim a a
análise de circunstâncias (objetivas ou subjetivas) extratípicas, situação que
com um ente transforma a decisão judicial em um julgam ento m oral da
conduta de vida do réu —a afirmação de H ungria no sentido da necessidade

75 M ESTIERI, Manual de Direito Penal, p. 282.


76 BOSCHI, D as Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 168.
de o juiz extrair do réu seu saldo credor ou devedor é exemplar. A lógica
da reprovabilidade fom enta perspectivas eticizantes, corrom pendo o
p rin c íp io da s e c u la riz a ç ã o , m esm o no in te r io r de m o d elo s
constitucionalizados de direito penal do feto.
Problemas similares ocorrerão, inclusive, com as demais circunstân­
cias subjetivas previstas no caput do art. 59 do Código Penal (conduta social,
personalidade e motivos).
Exatamente por isso a necessidade de superação da ideia de repro­
vabilidade a partir da afirmação da culpabilidade como critério (ou juízo)
de responsabilização. Significa, portanto, na especificidade da aplicação da
pena, que os aspectos subjetivos a serem analisados devem ser exclusiva­
mente aqueles que, na teoria do delito, perm item a imputação subjetiva do
delito ao seu autor, ou seja, capacidade, consciência da ilicitude e exigibi­
lidade de comportamento. A limitação da graduação da pena aos elemen­
tos da culpabilidade normativa e às circunstâncias objetivas (circunstâncias
e conseqüências do feto) perm ite um maior controle do arbítrio judicial,
capacitando decisões que poderiam ser definidas como extramorais ou
secularizadas.
A redução das circunstâncias subjetivas aos elementos da culpabili­
dade e a exclusão dos dados extratípicos não retiram o réu do seu contex­
to de vida. Otim izar o princípio da secularização evidentemente limita a
valoração judicial, mas às circunstâncias que influenciaram o autor na
tomada de decisão relativa ao ilícito, nos termos anteriormente expostos
relativos aos aspectos que podem ser valorados pelo juiz na culpabilidade.
Logicamente que seria possível contra-argumentar no sentido de que
os antecedentes criminais influenciam no conhecimento da ilicitude, ge­
rando níveis distintos de exigibilidade de comportamento. E a assertiva é
correta: é inegável que uma pessoa que tenha sido condenada anteriorm en­
te, sobretudo pelo mesmo delito, possua uma maior compreensão do ilí­
cito, diferentemente de um sujeito com bons antecedentes —note-se que
esta é apenas um a das hipóteses, porque na metodologia do Código Penal
qualquer condenação anterior será valorada, mesmo que não tenha qualquer
relação com o feto em julgam ento.
Neste caso específico, porém, o critério de limitação, para além da
incidência do princípio da secularização que im põe a superação do juízo
de censura moral pela conduta de vida (reprovabilidade), é o da proibição
da dupla incriminação, em razão de o feto anterior ter gerado um proces­
so penal específico com suas conseqüências próprias (pena).
(c) Conduta Social
12.5.9. Da análise judicial da circunstância conduta social emergem
problemas m uito similares àqueles expostos anteriormente acerca dos an­
tecedentes. Isto porque, sustenta Fragoso, “os antecedentes praticamente se
confundem com a conduta social, que se refere & relações do acusado com suafamí-
lia e sua adaptação ao trabalho, ao estudo, a um estilo de vida honesto ou
reprovável”77.
Na doutrina penal brasileira, a análise da conduta social do réu
normalmente está vinculada ao seu modo de ser na família e em com unida­
de. Desta forma, segundo a m etodologia proposta no Código, caberia ao
julgador estabelecer m aior ou m enor censura penal conforme a adaptabi­
lidade ou o desajuste social do réu, seu estilo de vida junto à comunidade.
Trata-se, pois, de uma circunstância reveladora do que poderia ser defini­
do como antecedentes sociais do autor do foto, pois representaria a relação do
réu com o seu ambiente, diferentemente do denominado como anteceden­
PENAL B R A S IL E IR O

tes, que seria a relação do réu consigo mesmo, com o seu passado, com a
sua história de vida.
O problema é que os dados de análise sugeridos na doutrina e na
jurisprudência são fundados, em praticamente sua totalidade, em premissas
NO 3REIID

morais. Não por outro motivo, uma avaliação relativamente cuidadosa dos
julgados dos Tribunais 78 perm ite estabelecer um a clara diferença nos valores
(morais) que atestam a boa ou a má conduta entre os gêneros (masculino
OE S EG U R A N Ç l

e fem inino). Assim, se norm alm ente a conduta dos réus (homens) é
valorada a partir das suas relações no espaço público, ou seja, de sua in ­
serção na sociedade (relação com a com unidade, dedicação ao trabalho,
• MEO WS

ausência de vícios, participação em programas de caridade social); os


elementos de análise das rés (mulheres) concentram -se na sua doação â
PfNAS

vida doméstica (integridade e zelo com a prole, fidelidade ao esposo,


dedicação ao lar, proteção da família). A perspectiva sexista nesta form a
3M de abordagem dogmática resta evidente, pois reproduz duas distintas ima­
gens de cidadãos honestos: o homem honesto, representado pelo bom pai de
família sem dívidas na comunidade; a mulher honesta, visualizada na mãe
dedicada e na esposa fiel.

77 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 407.


78 Neste sentido, conferir CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Em do
Punitivismo, pp. 187-191.
O modelo sugerido pelo Código Penal, posteriorm ente instrum en­
talizado pela dogmática nacional (doutrina e jurisprudência), estabelece
uma profunda identidade entre a valoração das circunstâncias judiciais
subjetivas — notadamente culpabilidade, conduta social, antecedentes e
personalidade —e os juízos morais realizados na esfera do leigo. Ambas as
circunstâncias judiciais, em decorrência da centralidade na história de vida
dos acusados, reforçam modelos de direito penal do autor, pois voltadas â
censura do modo de ser do acusado, e não da sua conduta e do dano concreto
produzido ao bem jurídico. Esta espécie de julgamento densifica, pois, uma
lógica ou um padrão inquisitório, situação que, em últim a análise,
potencializa o arbítrio judicial.
Paulo Queiroz percebe que é “diflcil compatibilizar o exame da conduta
social do apenado com a perspectiva de um direito penal dofato, já que o condenado
deve responder penalmente pelo que fe z e não pelo que é” 79. Ressalta, contudo,
que o juiz não poderá ignorar o contexto social em que o acusado está
inserido e as possibilidades reais de comportam ento e de inserção no meio,
“sob pena de se julgar não propriamente um homem, mas um estereótipo”80.

1-: y , ■tAi 4; DffiJ :u Hftlil


A colocação do problema pelo autor é precisa e fornece uma inte­
ressante chave de leitura para resolução desta questão, que é a de como
responsabilizar o sujeito pelo feto sem esquecer do seu contexto, mas, ao
mesmo tempo, excluir ou reduzir ao m áxim o os juízos de censura moral.
A saída para o problema parece estar na análise de vulnerabilidade, con­
forme exposto anteriormente (culpabilidade pela vulnerabilidade). Logi­
camente que seria questionável um m odelo de justiça que desconsiderasse
'; - rJrfüt ie eBeHi
o hom em em seu contexto, inserido no m undo e imerso na sua cultura.
No entanto, em decorrência da adoção de um modelo de garantias, existem
limites para valorar a inserção e a posição deste hom em em sociedade. Os
limites são exatamente aqueles estabelecidos pela acusação, qual seja, o feto
delitivo e suas circunstâncias, sob pena de a extensão da análise incorrer
sobre comportamentos, fetos e circunstâncias extratípicas. Assim, a condi­
ção e a posição sociais da pessoa processada podem (e devem) ser analisadas 365
no m om ento de aplicação da pena, desde que demonstrado que, de alguma
forma, os dados inseridos no julgam ento têm relação ou influência na
prática delitiva, nos termos estabelecidos por um modelo de culpabilidade
pela vulnerabilidade.

79 Q U EIR O Z, Direito Penal, p.395.


80 Q U EIR O Z, Direito Penal, p.396.
A definição de limites ã valoração judicial perm ite um controle
razoável da compreensão das diferenças do sujeito em julgamento, sem que
ocorra, porém, um a interpretação inquisitorial destas diferenças baseada
em códigos e padrões moralistas construídos a partir de imagens ideais
dicotomizadas maniqueistamente entre tipos de indivíduos adaptados ou
desajustados. E os critérios de legitimidade nesta análise parecem bastante
claros: demonstração suficiente (motivação) na sentença criminal da rela­
ção concreta da circunstância analisada com o feto produzido. Do contrá­
rio, perde-se toda a possibilidade de controle do ato judicial arbitrário.

12.5.10. D uas questões concretas, relativas aos efeitos de sua


identidade conceituai com os antecedentes crim inais, merecem estudo
específico, pois dizem respeito exatamente aos limites e às possibilidades
de interpretação da circunstância conduta social: (a) a valoração de
inquéritos policiais ou de processos crim inais em andam ento; (b) a
apreciação de condenações por ato infracional.
PENAL B R A S IL E IR O

Em decorrência da limitação que a jurisprudência havia imposto em


relação ao tipo de registro crim inal válido para valoração de antecedentes
criminais, foi possível perceber que alguns julgados passaram a deslocar o
juízo de censura dos inquéritos policiais e dos processos criminais em
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

andamento para a conduta social.


N o entanto, uma questão que precisa ser esclarecida sobre a análise
das circunstâncias judiciais e legais de aumento e de diminuição da pena é
a de que as informações procexuais que lhe conferem conteúdo dispõem de restrições
conceituais em razão das suas especificidades, por mais que se adaptem genericamente
MED IUS

a outras categorias. Lembre-se, por todos, da lição de Reale Jr. no que tange
ã dimensão conglobante da culpabilidade, que abarcaria antecedentes,
i

conduta social, personalidade e motivos. A forma de aplicação estabelecida


FíMAS

pela dogmática penal, porém, a partir da metodologia definida pelo Código


200 Penal, im põe que cada elemento seja valorado na sua circunstância própria,
fundamentalmente para que seja evitada a dupla incriminação (bis in idem).
Assim, apesar de a constatação de o réu ter um passado marcado por
envolvimentos com fetos delitivos ser um elemento inform ador da culpa­
bilidade, pois indicaria um a maior consciência da ilicitude, e, ao mesmo
tempo, demonstraria as dificuldades pessoais de sua adaptação em com u­
nidade (conduta social), os registros criminais somente podem ser valorados na
qualidade de antecedentes. Do contrário, estar-se-ia legitimando a proliferação
dos mesmos dados como conteúdo de duas ou mais circunstâncias, o que
implicaria igualmente em bis in idem — p. ex., processos anteriores seriam
analisados desfavoravelmente não apenas como antecedentes, mas como
culpabilidade (ampliação da consciência da ilicitude), conduta social (in­
dicação de desajuste) e personalidade (comprovação de traços desviantes).
Note-se que o bis in idem pode ocorrer não apenas entre um a elementar do
tipo e um a circunstância judicial ou legal, mas entre as próprias circuns­
tâncias, no mesmo nível de análise, se um mesmo dado fático alimentar a
valoração de mais de uma categoria.
A propósito, a Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça parece
ter sido editada exatamente para evitar esta espécie de manipulação her­
m enêutica —“é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso
para agravar a pena-base". N ote-se que a súmula não veda apenas a utilização
dos registros criminais como dados para valoração dos antecedentes, mas
amplia os limites para a pena-base, impossibilitando serem analisados em
quaisquer outras circunstâncias judiciais.
O mesmo raciocínio deve inform ar os registros de condenação por
a to nos processos de adolescentes em conflito com a lei.
in fr a c io n a l O

Estatuto da Criança e do Adolescente conceitua normativamente o ato


infracional como “a conduta descrita como crime ou contravenção penal” (art.
103 da Lei n. 8.069/90) e submete o adolescente às medidas socioeducati­
vas análogas às penas, inclusive com regimes de encarceramento próprios
das penas privativas de liberdade (art. 112 da Lei n. 8.069/90)81. Assim, se
o adolescente em conflito com a lei pratica ato previsto como crime, é
submetido a um processo formal (processo infracional), é sentenciado e
cumpre um a medida em regime similar àquele imposto aos adultos, a va­
loração deste registro somente poderia ocorrer na qualidade de antecedentes.
Todavia, se a dogmática penal nacional resiste em nom inar este modelo
juvenil como penal — muito provavelmente para não assumir explicitamen­
te o subm etim ento dos adolescentes ao encarceramento —, incabível o
deslocamento e a inversão do significado desta prática punitiva concreta ã
categoria conduta social.
A conclusão principal a que é possível chegar, por mais evidente que
possa parecer, é a de que existem limites ã intervenção estatal, no caso, ã
interpretação judicial. Especificamente em relação ã aplicação da pena,
determinados dados a Constituição não perm ite que sejam analisados, por

Sobre a identidade dos sistemas punitivos de adultos e adolescentes, conferir CARVA­


81
LHO e W EIGERT, A s Alternativas às Penas e Medidas Soàoeducativas, pp. 227-257.
ofender sua principiologia configuradora —presunção de inocência (p. ex.,
inquéritos e processos penais em curso), ne bis in idem (p. ex., valoração de
registros criminais como conduta social) —ou por ingressar em uma esfera
da individualidade na qual o Estado não tem ingerência, sequer em juízo
de censura, em decorrência da adoção de um modelo de direito penal do
feto (p. ex., o grau de integração social e os ‘vícios morais’).
(d) Personalidade do R éu
12.5.11. Se as circunstâncias antecedentes e conduta social são as que
mais expõem o sistema de aplicação das penas ã degeneração inquisitória
da violação do princípio da secularização, situação que fragiliza os meca­
nismos de controle do ato judicial, a categoria normativa personalidade
do réu reeditará, na estrutura da aplicação da pena, os modelos crim ino­
lógicos do positivismo ortodoxo (crim inologia positivista) baseados na
periculosidade.
Os problemas centrais oferecidos pela circunstância personalidade do
PENAL B R A S IL E IR O

réw são os da ausência de precisão conceituai e da wrfncia de uma metodologia de


análise. Com isso não se está afirmando inexistirem um conceito e uma
metodologia própria de estudo. Ao contrário, é possível identificar na litera­
tura das ciências psi (psiquiatria, psicologia e psicanálise) uma multiplicidade
NO 3REIID

de conceitos e de métodos que permite concluir pela inexistência de um con­


ceito univoco e de um método consensual para análise da personalidade82'83.
DE S EG U R A N Ç l

82 Desde o ponto de vista das ciênciaspsi, Hall, Lindzey e Campbell afirmam que existem
poucas palavras na lingua que geram tanto fascínio como o termo personalidade. Notam
FTNAS • MED WS

os autores que, embora apalavrasejausada em váriossentidos, a maioria dossignificados


popularesse encaixam numa descrição da habilidade ou perícia social do sujeito, ou ain­
da, na impressão mais destacada ou saliente que o indivíduo cria nos outros. Assim, "em
cada caso o observador seleciona um atributo ou uma qualidade altamente típirn do sujeito, que p n -
sumivelmente é uma parte importante da impressão global aiada nos outros, e identifica suaperso-
000 nalidadepor esse termo” (HALL et al., Teorias da Penonalidade , p.32).
No entanto, percebem que “embora a diversidade no uso comum da palavra personalidade
possa pancer considerável, ela ê superada pela variedade de significados atribuídos ao termo pelos
psirfkgos. Em um exame exaustivo da literatura, Aüport extraiu quase cinqüenta definições difetzn-
tes que classificou em categorias amplas”. Dessa forma concluem: "estamos convenádos de que
nenhuma definição substantiva de personalidade pode ser generalizada. Com isso, queremos
dizer que a maneira pela qual determinadas pessoas definem penonalidade dependerá inteiramente
de sua preferência teórica (...). A personalidade ê definida pelos conceitos empíricos específicos que
fazem parte da teoria da personalidade empregada pelo observador” (HALL et al., Teorias da
Personalidade, p. 32 —grifou-se).
Conform e destacam Alberto Silva Franco e Juliana Belloque, o
conceito de personalidade não é um conceito jurídico, mas explorado por
outras áreas do saber (psiquiatria, psicologia e antropologia) e incorporado
pelo direito84. O diagnóstico dos autores evidencia as dificuldades de apre­
ensão e de análise desta categoria na esfera judicial.
N o mesmo sentido, Boschi verifica que “definir a personalidade não é
algo tão simples como pode parecer, sendo especialmente ao ju iz muito tormentosa a
questão, seja porque ele não dom im conteúdos de psicologia, antropologia ou psi­
quiatria, seja porque possui, como todo indivíduo, atributos próprios de sua perso­
nalidade. Por isso, constata-se, na e^eriência cotidiana, que a valoração da perso­
nalidade do acusado, nas sentenças criminais, é quase sempre precária, imprecisa,
incompleta, superficial, limitada a afirmações genéricas do tipo ‘p ersonalidade
ajustada', ‘desajustada’, ‘agressiva’, ‘impulsiva’, ‘boa’ ou ‘má’, que, do ponto de
vista técnico, nada dizem”S:>.
Em decorrência da pluralidade dos significados e das técnicas de
investigação, a possibilidade de o julgador valorar a personalidade do réu

DffiJ id Hftlil
prescindiria, necessariamente, de um a exposição prévia da definição e da
metodologia utilizadas, ou seja, a justificação de qual o ponto de partida
conceituai (teórico), quais os critérios utilizados para análise e quais as

üficiiit v. kl y, ■tAA 4;
etapas de avaliação (metodologia). A estrutura do sistema processual penal
acusatório demanda que para que ocorra um a apropriação de categorias
extrajurídicas, notadam ente de categorias que influenciam na pena, é
fundamental que a valoração judicial seja precedida de um a justificação
convincente e adequadamente orientada, sob pena de serem obstaculizados
o contraditório e a ampla defesa. Assim, na motivação, o julgador deveria ie w - rJrfüt

expor de forma bastante clara os critérios de análise para que possam ser
contrapostos (contraditados) pelas partes (acusação e defesa).

83 Desde a perspectiva jurídico-penal, dialogando com a psicanálise, Juarez Cirino dos 369
Santos constata que “o conceito de personalidade é objeto de enorme controvénia em Psicoloigia ou
Psiquiatria modernas, por causa de seus limites imprecisos ou difusos. Não há consenso sobw as se­
guintes questões: a penonalidade (a) seria delimitada pelo ego, como o perceptivo-consciente Kspon-
sàvel pelas decisões e ações da vida diária? (b) abrangeria o superego como instância de controle ou
censura pessoal? (c) enfim, incluiria as pulsões do id, rnmo fonte inconsaente da energia psíquica,
regida pelo principio do prazer?" (SANTOS, Direito Penal, p.565).
84 FR A N C O e STOCO, Cédigo Penal e sua Inte^retação, p. 345.
85 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de A p lia p o (b), p. 211.
Não basta, pois, o magistrado suscitar um elemento categórico (per­
sonalidade do réu) e atribuir-lhe sentido a partir de termos vagos e im pre­
cisos, norm alm ente apropriados do senso comum (valoração na esfera do
leigo). O requisito constitucional da fundamentação das decisões impõe a
explicitação dos critérios, dos métodos e dos conceitos utilizados, bem
como a apresentação dos elementos empíricos que foram analisados, sob
pena de nulidade da decisão86. Nas palavras de R odrigo Moraes Oliveira,
“(...) a decisão tem de ser verficável, as partes devem poder apreender o processo de
racionalização nela desenvolvido e de todos os elementos por meio dos quais o ju iz
formou seu convendmento”sl.
N o entanto, mesmo se o julgador demonstrasse previamente a base
conceituai e a metodologia de análise, uma nova dificuldade emergiria
(segundo problema), que é relativa ã capacidade técnica do julgador para rea­
lizar um juízo valorativo sobre a personalidade do réu.
Neste ponto convém lembrar Toledo, citando Eysenck, no sentido
de “não acreditar que os penalistas pretendam construir conceitos dogmáticos de
PENAL B R A S IL E IR O

caráter, personalidade etc., usu^ando o oficio dos psicólogos. E se quiserem recorrer


a estes últimos, eis a su^resa que lhes poderá ser reservada: ‘quase todos os conceitos
e termos empregados em psicologia são muito discutidos (...). Mas poucos termos são
objeto de definições tão diferentes como o de personalidade. Quase cada um dos
NO 3REIID

autores que escrevem sobre o tema dá a sua própria definição, seu próprio ponto de
vista, seu método próprio e sua concepção pessoal do que deveria ser o objeto da
OE S EG U R A N Ç l

investigação sobre personalidade. Seria insensato pretender dogmatizar em um cam­


po no qual existem tantas discr^ãncias”88.
A ausência de controle do conteúdo (sentidos possíveis) e a falta de
• MEO WS

capacidade técnica do magistrado para análise do tipo penal aberto perso­


nalidade do réu potencializam nos julgados o uso de termos voláteis, dotados
PfNAS

de profunda anemia significativa (imprecisão semântica), norm alm ente

86 Neste sentido exemplar decisão do Supremo Tribunal Federal: “Penonalidade do agente


voltada para o crime. Base empírim. Inexistênàa. Não caracterizado. Desajudada ou carente de base
factual, é ilegal a majoração da pena-base pelo nconhecimento da personalidade negativa do agente”
(Suprem o T ribunal Federal, Habeas Corpus 97.400, R ei. M in. C ezar Peluso, j.
0 2 . 0 2 .2 0 1 0 ).
Sobre o tema, CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo,
pp. 184-191.
87 OLIVEIRA, Fatores Subjetivos na Medição da Pena, p. 74.
88 TOLEDO, Princípios Bfcicos de D íkíío Penal, p. 253.
apropriados do senso com um 89. A conclusão é compartilhada por Juarez
C irino dos Santos, ao chamar a atenção para o feto da ausência de formação
acadêmica específica dos operadores do direito penal para decidir sobre o
complexo conteúdo do conceito de personalidade. Ao não dom inar as
ferramentas adequadas, os julgadores acabam por atribuir um significado
leigo ao conceito. Em conseqüência, são analisados elementos estranhos
ou tecnicamente contingenciais ã personalidade — p. ex., sentimentos e
emoções pessoais, sociabilidade, agressividade, má-fé, índole, entre outros90.
A conclusão possível de se chegar, portanto, é a de que a análise da
personalidade é um ato de competência exclusiva das ciências psi (psiquia­
tria, psicologia e psicanálise), embora mesmo neste campo do saber ine-
xista consenso m ínim o sobre o seu conceito, os seus elementos e a m eto­
dologia de investigação.
A dubiedade da categoria aliada ã incapacidade técnica dos atores do
sistema penal indicariam, por si só, a necessidade de um a pmdente abstenção
judicial, conforme sugerido por Boschi: “ (...) seria mais Kcomendável que, no
momento da valoração das circunstâncias judiciais, o ju iz se declarasse, simplesmente,
sem condições de emitir juízo crítico sobre a personalidade do acusado”91.

12.5.12. Os dois problemas apresentados anteriormente decorrem


da ausência de critérios formais para análise da personalidade (pluralidade
conceituai, multiplicidade de métodos, incapacidade técnica do julgador).
Todavia, para além das questões formais, resta indagar se a valoração
da personalidade do réu se harmoniza ã estrutura constitucional seculari-

85 Leciona Lenio Streck que "também não se discutem no âmbito da dogmática, ficando, por
conseguinte, eswndidas nas brumas do sentido comum teórico, as wndições de possibilidade que tem
o ju iz para avaliar a personalidade do riu por ocasião da aplicação da pena, em wnformidade dos
ditames do art. 59 do Código Penal (...). Diante da evidente dificuldade de aferição do que seja
'personalidade do delinqüente', é possível colher subsídios na dogmática jurídica tradicional, do tipo
'personalidade é todo complexo, porção herdada e poqão adquirida, como o jogo de todas as forças
que determinam ou influenciam o comportamento humano’ [referência ao conceito de Aníbal
Bruno, repetido constantemente pela teoria do direito penal brasileira]. Ow seja, os proble­
mas do universo fenomênico dão lugar e passagem para a abstração jurídiw-wnceitual-objetificante”
(STRECK, Hermenéuticajuridica e(m) Crise, p. 60).
Em sentido similar, CARVALHO, Garantismo Penal Aplicado, pp. 102-104; ROSA,
Decisão Penal, pp. 348-351.
50 SANTOS, Direito Penal, p. 565.
91 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de A p lia p o , p. 176.
zada que delimita um sistema de direito penal do fato. Em outros termos,
a interrogação poderia ser colocada no seguinte sentido: cumpridos os requi­
sitos formais (conceituais e metodológicos), seria legítimo u m juízo de censura sobre
a personalidade do réu?
Após a problematização das circunstâncias culpabilidade, anteceden­
tes e conduta social, parece evidente ser ilegítimo qualquer tipo de repro­
vação da subjetividade do acusado. O princípio da secularização, ao des­
vincular direito e moral, estabelece uma blindagem da esfera do íntimo,
excluindo as hipóteses de julgam ento da identidade do réu.
Assim, a abertura operada na pena-base pela inclusão da circunstância
personalidade do réu estabelece, segundo ensinamento de R odrigo Moraes
de Oliveira, “verdadeira porta aberta para perversão do prindpio da culpabilidade
pelo fato (...)”92. Não se trata, portanto, apenas de uma imprecisão conceitu­
ai e de um a impossibilidade técnica de o juiz analisar a personalidade do
acusado. O juízo em si é informado por uma lógica inquisitorial que destoa
dos princípios informadores do direito penal democrático.
PENAL B R A S IL E IR O

Lembra Ferrajoli que nas democracias contemporâneas apenas aquilo


que as pessoas fazem, e não aquilo que são, deve ser regulado por lei e
valorado judicialm ente. Desta maneira, sustenta o autor serem legítimas e
admissíveis “apenas normas que proíbem e previnam fatos, e não normas que
NO 3REIID

proíbam ou desmoralizem identidades; apenas juízos que analisem a prova de uma


conduta e não valorações sobre a personalidade do réu; apenas tratamentos punitivos
DE S EG U R A N Ç l

relacionados ao fato previsto como delito e resolvido mediante provas, e não


tratamentos individualizados e modelados sobre a personalidade do imputado ou
recluso”9*. Amparado em term inologia própria da filosofia analítica, Ferra­
joli conclui que os modelos de direito penal do feto adm item apenas nor­
FTNAS • MED WS

mas regulativw de comportamentos lícitos ou ilícitos, e não constitutivas de


estados pessoais morais ou imorais94.
Embora as categorias relativas às circunstâncias judiciais subjetivas,
orientadas pela ideia de reprovabilidade, prom ovam um a constante
3TC capacitação dos modelos penais de autor por meio de violações mais ou
menos explícitas do princípio da secularização, a noção de personalidade
do réu adquire um a certa autonomia ao agregar um distinto elemento de
corrupção da culpabilidade pelo feto. Conform e antecipado na análise da

52 OLIVEIRA, Fatores Subjetivos na Medição da Pena, p. 75.


93 FERRAJOLI, Uguaglianza Penale e Garantismo, p. 41.
94 FERRAJOLI, Uguaglianza Penale e Garantismo, p. 41.
culpabilidade, a circunstância personalidade se aproxima instrumentalmente
da categoria criminológica periculosidade. Não por outro motivo, o sentido
atribuído pela jurisprudência à personalidade evoca, não esporadicamente,
a noção de probabilidade de reiteração criminosa — p. ex., personalidade
perigosa, personalidade desajustada, personalidade voltada ao delito, personalidade
distorcida, personalidade violenta, entre outras95.
A identidade entre as categorias personalidade e periculosidade,
legado do paradigm a criminológico positivista incorporado pela dogm á­
tica penal ortodoxa, perm ite um a segunda espécie de degeneração do
princípio da secularização, que é o da fusão entre direito e natureza. Nes­
ta concepção, a personalidade do acusado é descrita como um dado natural,
estático e imutável. O crime é interpretado como um atributo do sujeito.
O crim e é um a marca identitária, um a patologia que habita o indivíduo,
uma potência que inexoravelmente se transforma em ato. À técnica (dis­
curso jurídico ou psiquiátrico) resta apenas revelar os elementos que estão
dados e disponíveis in naíura.
Embora do ponto de vista criminológico esta concepção de hom em

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


criminoso esteja superada —como foi possível perceber na crítica aos modelos
de prevenção especial positiva —, por meio de aberturas normativas, como a
circunstância judicial personalidade do réu, a tradição etiológica é presen-
tificada na dogmática penal.
Não obstante a própria solução de analisar a periculosidade do réu

Í-: y,
na pena-base a partir da personalidade já ser equivocada — ao afirm ar a

ie üficint v.
periculosidade o julgador deveria im por medida de segurança, e não pena,
segundo os preceitos do Código Penal —, é fundamental reiterar, nas pala­
vras de A m ilton Bueno de Carvalho, que “a valorado da personalidade é '■i - rJrfüt
inadmissível em sistema penal democrático fandado no principio da secularização: o
cidadão não pode sofrer sancionamento por sua personalidade (...). Mais, a alegação
de ‘voltadapara a prática delitiva’ é retórica, juizes não têm habilitação técnica para
proferir juízos de natureza antropológica, psicológica ou psiquiátrica, não dispondo
o processo judicial de elementos hábeis (condições mínimas) para o julgador proferir
‘diagnósticos’ desta natureza ”96.

95 Sobre os termos comumente utilizados na jurisprudência nacional para atribuição de


sentido ã personalidade e a sua identidade conceituai e/ou instrumental com a categoria
periculosidade, conferir CARVALHO, O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Puni­
tivismo, pp. 184-191.
96 A pud ROSA, Deasão Penal, p. 349.
(e) M otivos
12.5.13. Os m o tiv o s são a última circunstância judicial subjetiva
apresentada no caput do art. 59 do Código Penal.
A possibilidade de valoração dos motivos como circunstância de
aum ento ou de dim inuição da pena está inexoravelmente ligada ã ideia de
culpabilidade como reprovabilidade, ou seja, de que determinadas razões
que im pulsionam o agir delitivo indiquem um a maior ou m enor censura
penal.
Delm anto sustenta a necessidade de “se atentar para a maior ou menor
reprovação desses motivos”97. Paulo Q ueiroz destaca que “são mais reprováveis,
por exemplo, os crimes que tenham como motivação a inveja, o ódio gratuito, a
ambição desmedida, a lascívia etc. Contrariamente, são menos censuráveis os crimes
que tenham uma motivação nobre, como a defesa da própria honra injustamente
ofendida, o amor etc.”9S.
Em realidade, estes extremos motivacionais frequentemente referi­
PENAL B R A S IL E IR O

dos pela doutrina (motivos nobres e motivos ignóbeis), na maioria dos


casos aplicados aos crimes contra a pessoa ou contra o patrimônio (privado)
—ou seja, quando é possível identificar um a vítima concreta, de carne e
osso —, costumam integrar a tipicidade, constituindo ou qualificando o
NO 3REIID

delito. Vejam-se, p. ex., no Código Penal, as hipóteses qualificadas do


homicídio praticado por motivo toye (art. 121 , § 2 a) e por motivo fo til (art.
121, II); a razão constitutiva do crim e de exposição ou de abandono de
DE S EG U R A N Ç l

recém-nascido para ocultar desonra própria (art. 134, caput); a elementar com
intuito de obtenfio de vantagem econômica indevida no delito de extorsão (art.
158, caput), entre outras.
FTNAS • MED WS

Em outros casos, motivos específicos são apresentados como cir­


cunstâncias legais agravantes ou atenuantes ou causas especiais de aumento
ou de diminuição da pena. Neste sentido, p. ex., as hipóteses agravantes
de crim e praticado por m otiw fítil ou toye (art. 61, II, a); as atenuantes decor-
374 rentes do motivo de relevante valorsoáal ou moral (art. 65, III, a); o aum ento de
pena do crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio por motivo
^oístico (art. 122 , I); a previsão de causas de diminuição da pena quando o
homicídio ou a lesão corporal são praticados por motiw de relevante valor soáal
ou moral (art. 121, § Ia e art. 129, § 4a), todos do Código Penal, entre outras.

57 DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 111.


58 Q U EIR O Z, Direito Penal, p.396.
Todavia, em um núm ero expressivo de tipos penais incriminadores
a estrutura norm ativa é integrada por motivações intrínsecas, ou seja, a
situação que move a conduta (motivos) não está totalm ente exposta, como
os casos anteriorm ente apresentados, como, p. ex., “a ‘Hbido exacerbada’ ou
a ‘falta de pudor', nos crimes sexuais; a ‘g anância’, a ‘ambição’ ou o ‘g anho fácil’,
nos crimes patrimoniais ou trafico de drogas; o ‘desprezo à p&soa humana’, nos
crimes contra a vida etc.”99.
Porém, em qualquer das hipóteses apresentadas (motivos constituindo
implícita ou explicitamente o tipo penal base ou qualificado; motivos como
agravantes ou atenuantes; ou motivos como causas especiais de aumento
ou diminuição da pena), conforme a metodologia de aplicação da pena, os
motivos não poderão ser valorados na pena-base, em decorrência da
proibição da dupla incriminação. Os motivos a serem analisados, portanto,
seriam exclusivamente aqueles que orbitam , mas não integram o tipo ou
constituem a circunstância legal de aum ento ou de dim inuição da pena.
Igualmente M estieri aponta, de forma bastante apropriada, a neces­

id H ftlil
sidade de distinguir motivo e f m de agir100, ou seja, entre as razões da prática
delitiva e a vontade genérica de violação do tipo penal (dolo). O dolo,
conceituado no sistema finalista como vontade livre e consciente de rea­

■tAi 4; nritâ
lização da conduta típica, é composto pelos elementos cognitivo (conheci­
m ento e representação) e volitivo (vontade). Sobretudo no dolo direto,

1-: y,
“quando o agente se pmpõe a realização da conduta típica, o dolo se confunde com
a intenção. A vontade se dirige à realização dofato que configura o delito”101. Assim,

ie eBeHi v.
p. ex., no crime de homicídio, são distintas duas circunstâncias: ifim lidade,
caracterizada pela vontade livre e consciente de m atar alguém (dolo gené­
rico, animus necandi); o motivo, identificado na razão que deflagra a conduta.
w - rJrfüt

12.5.14. A prova da motivação do crim e norm alm ente é produzida


por meio de depoimentos (testemunhas ou interrogatório) ou de documentos.
Embora os motivos possam ser expostos por terceiros, norm alm ente são 3 7 5
apresentados pelo próprio autor da conduta em decorrência da confissão.
Neste sentido é interessante notar como o sistema processual penal
brasileiro mantém-se obcecado pelo depoimento pessoal. A verbalização

55 Q U EIR O Z, Direito Penal, p.397.


100 M ESTIERI, Manual de Direito Penal, p. 283.
101 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 211.
dos fatos e das suas circunstâncias por meio de testemunhas ou pelo
interrogatório do réu permanece como o principal m eio probatório, muitas
vezes inclusive em detrim ento da técnica (perícia criminal).
A própria metodologia do interrogatório —apesar da garantia de que
o silêncio não im portará confissão (art. 198 do Código de Processo Penal)
— é direcionada ã extração da confissão (art. 187, § 2° do Código de
Processo Penal) e, consequentemente, dos motivos que levaram o acusado
ã prática do delito —“se confessar a autoria, será perguntado sobre os motivos e
drcunstândas do fato e se outras pessoas concorreram para a infração, e quais sejam”
(art. 190 do Código de Processo Penal).
Em decorrência de a exposição dos motivos do delito ser, na maioria
das vezes, um corolário da própria confissão, R odrigo R oig Soares pondera,
de forma bastante coerente, que “se a cottftssão da prática do crime produz efeito
atenuante, não há como a confissão dos motivos servir como meio agravante",
concluindo que “quando os motivos não servirem para mitigar a pena, também
não prestarão a incrementá-la”102.
PENAL B R A S IL E IR O

O raciocínio do autor é correto, pois, nos casos de reconhecimento


de autoria do delito no interrogatório, a externalização dos motivos integra
o ato de corôssão, não podendo (a confissão) ser cindida para atenuar a
pena (art. 65, III, d, do Código Penal) e, ao mesmo tempo, servir como
NO 3REIID

circunstância de aumento na pena-base.


Os efeitos da tese defendida por R odrigo R oig Soares atingem,
DE S EG U R A N Ç l

inclusive, a dimensão processual do ato, pois, por força do nemo tenetur se


detegere, o papel do juiz seria não apenas o de alertar que o réu pode
perm anecer em silêncio e, consequentemente, não ser sua obrigação a
apresentação de elementos que possam agravar sua situação, mas, inclusive,
FTNAS • MED WS

o de alertar que, em caso de confissão, não é obrigado a externar os motivos


do crime e, se assim o fizer, não seriam considerados para efeito de majora­
ção da pena103.
(Q Circunstâncias em Sentido Estrito
12.5.15. As circunstâncias em sentido estrito, referidas no art.
59, caput, do Código Penal, dizem respeito aos aspectos exteriores do delito

102 SOARES, Aplicação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Jurídim-Constitucional de


Minimização da Afetação Individual, p. 197.
103 SOARES, Aplicação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Juridico-Constitucional de
M inim iz^ão da Afetação Individual, p. 197.
(circunstâncias judiciais objetivas), e inform am questões acerca do tempo
(quando), do local (onde) e do m odo de execução do delito (como).
As circunstâncias referidas, porém, não se confundem com as ele­
mentares descritivas do tipo. Conform e exposição anterior, determinadas
circunstâncias de tempo, local e forma de agir integram a tipicidade obje­
tiva e, consequentemente, foram valoradas no procedimento de individua­
lização legislativa, sendo vedada nova apreciação sob pena de ofensa ao
princípio ne bis in idem.
N o entanto, a natureza destas circunstâncias em sentido estrito
modeladoras da pena-base é idêntica àquela que estrutura a tipicidade,
indicando a possibilidade de apreciação destes mesmos dados (tempo, local
e forma de agir), desde que não constituam ou qualtâquem o delito. Trata­
-se da ponderação judicial de determinadas situações que são marginais ou
acidentais ã tipicidade objetiva e que auxiliam na compreensão do ilícito
e na determ inação no nível de responsabilidade do autor.
Para além das questões próprias sobre o m om ento e o local, a aná­
lise das circunstâncias de modo (modusfaríendi) é relevante para determinar,
p. ex., a razoabilidade no uso dos meios; os distintos níveis de autoria e
de participação, no concurso de agentes; a forma de violação do dever
de cuidado objetivo nos crimes culposos (imperícia, im prudência ou
negligência) e ornssivos impróprios; a extensão da execução na tentativa,
dentre outras.
Im portante referir, contudo, que as circunstâncias a serem investi­
gadas dizem respeito ao feto em julgam ento e aos fatores que o influen­
ciaram. Ficam excluídas da análise as circunstâncias posteriores indepen­
dentes, ou seja, sem vínculo causai com o delito, como, p. ex., a conduta
processual do acusado, que “nenhuma relação mais possui com o exaurido ato
delitivo” 104, conforme demonstra R odrigo R oig Soares.
(g) C onseqüências do C rim e
12.5.16. As conseqüências do crim e analisadas na pena-base são
aquelas independentes, que se desdobram e que estão para além do resul­
tado lesivo provocado ao bem jurídico tutelado. O dano ou o perigo de
dano são resultados inerentes ã conduta típica, fundam ento prim eiro da

104 SOARES, Aplicação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Jurídico-Constitucional de


M inim iz^ão da Afetação Individual, p. 203.
própria incriminação, motivo pelo qual sua análise constituiria uma re­
dundância e, consequentemente, uma violação ao princípio da proibição
da dupla incriminação.
Logicamente que há delitos que não provocam resultado naturalís-
tico, isto é, um a modificação perceptível no m undo fenomênico, como, p.
ex., os crimes formais e os crimes de mera conduta. Todavia, todo delito
provoca um resultado jurídico (normativo), que é a lesão ao bem protegi­
do, constitutiva da tipicidade.
Situação m uito utilizada na doutrina para exemplificar os limites da
análise das conseqüências do delito é o caso do homicídio consumado, cuja
conduta, por si só, desdobra um resultado extrem am ente grave, que é a
m orte da vítima, mas que constitui o fundam ento da tipicidade e, portan­
to, incabível sua análise pelo julgador. Nada impede, porém , que os des­
dobramentos relativamente independentes do resultado sejam valorados,
como, p. ex., o foto de a vítima ser arrim o de família.
PENAL B R A S IL E IR O

M estieri explica que as conseqüências do crime são a maior ou a


m enor expressão do dano ou perigo, exemplificando na “dimensão do pre­
juízo patrimonial nos delitos contra o patrimônio; ou a irradiação de outros efeitos
do fato do crime, não necessariamente típicos: homiddio de um pai defamília, dei­
NO 3REIID

xando na otfandade seisfilhos”10:>. Em sentido similar, R ui Rosado de Aguiar


conclui que “as conseqüências do crime podem variar substancialmente sem modi­
ficar a natureza do resultado, ainda que a te integre o tipo. Sob esse tópico, é comum
DE S EG U R A N Ç l

distinguir entre a tentativa de homiddio com lesão qualificada, que tem consequêndas
graves, e a tentativa branca, quando o disparo não atinge a vítima, embora os dois
crimes realizem o m am o tipo e tenham os mesmos limites de pena; também ofurto
FTNAS • MED WS

de pequena quantia de quem pouco possui, ou de quem necessitava do numerário


para a aquisição de remédios, etc.”106.
(h) C om portam ento da V ítim a
378 12.5.17. A última circunstância judicial referida no Código é a do
co m p o rta m en to da v ítim a . Segundo a exposição de m otivos da
Reform a de 1984, esta circunstância, que teria sido incluída a partir da
incorporação dos estudos de vitimologia, possibilitaria ao juiz valorar o
nível de contribuição da vítima para o foto delitivo, ou seja, a forma como

105 M ESTIERI, Manual de Direito Penal, p. 283.


106 A G U IA R JR ., Aplicação da Pena, p. 43.
o seu com portam ento anterior induzira ou fomentara o delito — “fez-se
referênda expm sa ao comportamento da vítima, erigido, muitas vezes, em fator
criminógeno, por constituir-se em pmvocafio ou estímulo à conduta criminosa” (§ 50
da Exposição de Motivos da Lei n. 7.209/84).
Embora seja um aspecto relevante de investigação criminológica
(vitimologia) as formas pelas quais as pessoas se colocam em posições de
vulnerabilidade e se expõem a situações de risco —riscos que em muitos
casos podem deflagrar um processo que resulta em atos delitivos praticados
contra o sujeito vulnerável (vitimização primária) o procedimento e os
critérios judiciais de análise devem ser muito bem dimensionados, sob pena
de a sentença, que é direcionada ao réu, produzir um novo dano ã vítima.
A propósito, não apenas no m om ento do julgam ento, mas, sobretudo, no
dos atos instrutórios, judiciais e administrativos (depoimento policial), há
uma forte tendência de os atores do sistema penal reproduzirem situações
de revitimização (vitimização secundária), norm alm ente em decorrência
da extrema inabilidade em abordar temas delicados que envolvem pessoas
(réus e vítimas) concretas.

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


N o ato de decisão, a produção da vitimização secundária está nor­
malmente associada ã linguagem empregada, frequentemente instrum en­
talizada por padrões morais de julgam ento que ultrapassam a figura do
acusado e atingem a forma de ser e o com portam ento da vítima (direito
penal do autor direcionado ã vítima).

1-: y,
Neste aspecto, é impossível deixar de referir o caráter sexista, sobre­

ie eBeHi v.
tudo nos delitos contra a liberdade sexual, de inúmeras análises doutriná­
rias e jurisprudenciais sobre o com portam ento da vítim a m ulher. Aliás,
esta tendência moral (sexista e misógina) é perceptível na própria exposição w - rJrfüt
de motivos, quando a inclusão da nova circunstância judicial é justificada
a partir da referência ao comportam ento fem inino — “como, entre outras
modalidades, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes” (§ 50 da
Exposição de Motivos da Lei n. 7.209/84). Conforme referido, a produção ~gyg
desta im agem moralizadora da postura feminina como incentivadora do
crime sexual aparece, com muita frequência, nos textos doutrinários e nos
julgamentos.
A construção de um sistema de interpretação extramoral, informado
pelo princípio da secularização, impõe, em últim a análise, um profundo
respeito ã diferença, ã forma como as pessoas são e se manifestam. E se é
ilegítimo ao juiz produzir uma valoração moralizadora no julgam ento do
acusado, m uito mais o será em relação ao com portam ento da vítima.
12.5.18. Os problemas relativos aos critérios de interpretação e de
aplicação das circunstâncias judiciais têm provocado inúmeros debates nas
esferas acadêmicas e jurisdicionais. Com o resultado, alguns projetos de
reform a da estrutura de aplicação da pena-base foram apresentados ã
comunidade jurídica.
D entre os projetos mais relevantes em term os de capacidade crítica
e de qualidade dogmática destaca-se o Projeto Reale Jr., cujo texto ante­
cipa várias conclusões apresentadas ao longo do trabalho. O projeto, pro­
posto na ocasião em que o jurista atuava na titularidade do M inistério da
Justiça, procurava solucionar alguns pontos notadamente problemáticos do
nosso sistema de aplicação da pena, sobretudo o da demasiada abertura das
circunstâncias judiciais.
N o projeto são excluídas do art. 59, aiput, do Código Penal, as cir­
cunstâncias subjetivas personalidade e conduta social, sendo acrescentados dois
importantes elementos de valoração da vulnerabilidade social do acusado,
em sentido m uito similar ao dispositivo do art. 187, § l9, do Código de
FíMAS i MED IUS DE S E G U R « (JI ND 3REIID PENAL B R A SILEIR O

Processo Penal: (Ia) condições pessoais do acusado e (2a) oportunidades


sociais oferecidas. O projeto igualmente dim inuía o impacto da reincidên­
cia na agravação da pena com a sua transferência para a pena-base. Outra
mudança substancial foi a exclusão das justificativas retributivista e preven-
cionista, com a indicação da tarefe judicial preponderantemente individua-
lizadora na determinação da pena.
Na proposta, o caput do art. 59 do Código restaria assim redigido:
“o juiz, atendendo à culpabilidade, antecedentes, reincidência e condições pessoais
do acusado, bem como as oportunidades sociais a ele oferecidas, aos motivos, circuns­
tâncias e consqtuências do crime e ao comportamento da vítima, estabeleará, conforme
sqa necessário e suficiente à individualização da pena”.
Possível perceber que as alterações propostas indicam interessantes
alternativas na delimitação dos critérios de interpretação das circunstâncias
ggg" judiciais, dim inuindo a volatilidade em razão da exclusão de elementos de
alta extensão semântica, situação que produz, em um segundo plano, a
potencialização do princípio da secularização. Interessante registrar que,
na exposição de motivos, a retirada das circunstâncias personalidade e
conduta social é justificada exatamente em decorrência da indemonstrabi-
lidade e da irrefutabilidade empírica dos elementos, situação que, segundo
o projeto, ofenderia os princípios do contraditório e da ampla defesa.
A ideia de dim inuição dos espaços de discricionariedade judicial na
aplicação da pena, com a redução das circunstâncias judiciais, está presen-
te, de igual forma, no projeto de reforma apresentado em 2012 pela C o­
missão de Juristas nomeada pelo Senado Nacional. Segundo o texto suge­
rido, o caput do art. 59 determ inaria que “o ju iz , atendendo à culpabilidade,
aos motivos efins, aos meios e modo de ^ecução, & drcunstãndas e conseqüências
do crime, bem como a contribuição da vítima para ofato, estabelecerá, conforme seja
necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime”.
A retirada dos elementos personalidade e conduta social em ambos os
projetos parece justificar as críticas expostas anteriormente. Juntam ente
com a potencialização de elementos descritivos do foto, os projetos capa­
citam, na determ inação da pena, um m odelo de direito penal do foto
adequado às premissas constitucionais.
O projeto do Senado, porém, em sentido oposto ao texto sugerido
por R ealejr., desloca os antecedentes para o art. 61, II, do Código Penal,
situação que gera um a densificação dos seus efeitos penológicos, pois a
circunstância judicial é transformada em causa legal agravante. A relocação
da circunstância é uma das inúmeras alterações que revelam o sentido

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


político-crim inal punitivista do Anteprojeto.

12.6 . Cálculo da Pena-Base

Í-: y,
12.6.1. Identificados os elementos probatórios de análise e atribuído
o sentido das circunstâncias, cabe ao juiz valorar positiva ou negativamen­

■; - rJrfüt ie eBeHi v.
te os vetores e, finalmente, quantificar a pena-base.
Em decorrência de o Código Penal ter sido omisso em estabelecer
um procedim ento para quantificar a sanção, a doutrina e a jurisprudência
construíram um a série de regras para efetivação da d o sim etria da pena,
que podem ser sintetizadas em quatro premissas:
a) A primeira diretriz jurisprudencial define os limites mínimos e
máximos de variação da pena-base. Neste sentido, na primeira etapa 301
da determinação da pena o ju iz fixará a pena-base entre o mínimo legal
e o termo médio. O term o médio é o valor correspondente ã soma
do m ínim o e do m áxim o legal estipulados no preceito secun­
dário do tipo penal incrim inador dividido pela m etade 107 — p.

107 A ideia de termo médio como índice de reprovabilidade intermediário estava presente
no Código Penal do Império: “(...) tres grãos nos crimes, com attenção ás suas circumstancias
ex., a pena-base no crime de homicídio simples pode variar entre
6 (seis) e 13 (treze) anos (art. 121, caput, do Código Penal); no
crime de furto simples entre 1 (um) e 2 (dois) anos e 6 (seis) m e­
ses (art. 155, caput, do Código Penal); no delito de tráfico de
drogas entre 5 (cinco) e 10 (dez) anos (art. 33, aiput, da Lei n.
11.343/2006).
b) A segunda regra estabelece que em caso de totalidade (ou de subs­
tancial preponderância) de circunstâncias favoráveis, a pena-base
deve ser aplicada no m ínim o legal cominado.
c) Em sentido oposto, a termra orientação dogmática indica que em
caso de integralidade de circunstâncias desfavoráveis, a pena-base
deve ficar próxima do term o médio.
d) A quarta guia estabelece um critério de ponderação, no qual o juiz
deverá fixar um a quantidade razoável e proporcional de pena em
caso de concurso de circunstâncias favoráveis e desfavoráveis.
Im portante referir que, por força do princípio da presunção da
inocência, as circunstâncias consideradas neutras operam com o se fivoráveis
fossem. Entende-se como neutras aquelas circunstâncias em que o juiz
entendeu não haver elementos de prova suficientes para produzir um juízo
favorável ou desfavorável. Sobre o tem a, Schecaira e Corrêa Jr. sustentam
que “se o ju iz, no decorrer da instruçM, não puder fazer vir aos autos elementos
que sirvam de referênría para o cálculo (muitas vezes o agente do delito é desconhe-
rído na rídade em que o crime fo i cometido, ou não se tem conherímento de suas
atividade sociais etc.) (...), dada a impossibilidade de se prqudicar o agente do de­
lito, que não pode sofrer pela ineficiência do Estado, a pena-base deverá serfixada
em seu mínimo legal”'08.
Da série de regras, é possível concluir que a técnica para o cálculo
da pena-base é a do acúmulo de circunstâncias negativas, pois o juiz, sempre
partindo da pena m ínim a em direção ao termo médio, verifica a quanti­
dade de elementos desfavoráveis. Q uanto maior o núm ero de circunstân­
cias negativas, maior a quantidade final de pena aplicada.

agravantes ou attenuantes, sendo o maximo o de maior gravidade, à que se impora o maximo da


pena; e o mínimo, o da menor gravidade, à que se impora a pena mínima; o médio, o quefica entre
o maximo e o mínimo, à que se impora a pena no termo médio entre os dous extremos dados” (art.
63) (sic).
108 SCHECAIRA e C O R R Ê A JR ., Teoria da Pena, p. 279.
12.6.2. As diretrizes jurisprudenciais parecem bastante claras,
oferecendo dificuldade apenas no caso de concurso entre circunstâncias
favoráveis e desfavoráveis. N este sentido, im p o rtan te registrar a
impossibilidade e a inadequação da fixação de critérios exclusivamente
matemáticos para definição da pena-base.
A orientação jurisprudencial acerca do termo m édio induz ao de­
senvolvimento de um raciocínio mecanicista, com objetivo de reduzir a
atividade judicial de fixação da pena-base a um a fórmula matemática que
poderia ser apresentada nas seguintes etapas:
(lâ) Em caso de imputação de furto simples (pena de reclusão de 1
a 4 anos), p. ex., a pena-base, nos termos expostos acima, de­
veria variar entre o m ínim o legal (1 ano) e o term o médio (2
anos e 6 meses).
(2a) Conforme jurisprudência consolidada, se todas as circunstâncias
judiciais forem favoráveis a pena-base deve ser aplicada no
m ínim o; se todas desfavoráveis deve aproximar-se do term o
médio; se houver incidência parcial ser determinada uma quan­
tidade proporcional.
(3*) Em razão de serem previstas 8 (oito) circunstâncias judiciais no
art. 59, caput, do Código Penal, seria possível determ inar para
cada circunstância o valor de 1/ 8 , correspondente ã diferença
entre o m ínim o e o term o médio.
(4-) Assim, no exemplo do furto simples (art. 155, aiput, do Código
Penal), cada vetor corresponderia ã fiação de 1/8 de 1 ano e 6
meses (correspondente ã diferença entre o m ínim o de 1 ano e
o term o médio de 2 anos e 6 meses), o que representaria uma
quantidade de 2 meses e 7 dias de pena. Em caso de evasão de
divisas (art. 22, pará^afo único, da Lei n. 7.492/86), p. ex., a
pena-base seria estabelecida entre o m ínim o 2 e o term o m é­
dio 3 anos (pena m áxim a de 4 anos), e cada circunstância
corresponderia a 1 mês e 15 dias, tendo como base os 12 meses
de variação entre m ínim o e term o médio, divididos pelas 8
circunstâncias.
(5â) Em síntese, partindo sempre do m ínim o em direção ao term o
médio, o juiz acumularia as circunstâncias negativas a partir do
referencial de 1 /8 da diferença entre os dois limites —no exem­
plo do furto, se apenas os antecedentes fossem negativos, a
pena-base ficaria em 1 ano, 2 meses e 7 dias ( 1/ 8 ) (mínimo
mais 1/ 8 ); no caso da evasão de divisas, se fossem negativos a
culpabilidade, os motivos e as conseqüências do delito, a pena-
-base restaria fixada em 2 anos, 4 meses e 15 dias (3/8) (m íni­
m o mais 3/8).
N o entanto, este raciocínio flógica calculadora) não pode ser aplicado no
direito penal e no processo penal contemporâneos. Isto porque a aplicação
da pena integra a sentença crim inal e, como ato judicial, está vinculada
aos princípios constitucionais do devido processo, notadamente o prindpio
da motivação, no qual são observadas as regras de interpretação e de
vinculação ao direito e ã prova.
O equívoco do raciocínio exposto é a revitalização de um m od elo
de p ro v a ta rifa d a (prova legal), típico dos sistemas processuais inquisi-
tivos, em total afronta ao princípio da livre apreciação motivada delineado
pela Constituição (art. 52, LV). Nos termos do art. 155 do Código de
Processo Penal, “o ju iz formará sua convicção pela livre apreciação da prova pro­
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO 3REIID PENAL B R A SILEIR O

duzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusiva­


mente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas
cautelares, não r^etíveis e antedpadas”. Desta forma, caberá ao juiz, no caso
concreto, avaliar as peculiaridades das circunstâncias judiciais e estabelecer
critérios de quantificação da pena, inclusive de preponderânda e de valorado
diferendada entre os vetores, observando, logicamente, o dever constitucio­
nal de fundam entar suas opções. Note-se, inclusive, que o próprio Código
Penal, ao enfrentar o tema do conflito entre circunstâncias agravantes e
atenuantes (art. 67), estabelece critérios de distinção (preponderância das
circunstâncias subjetivas), deixando claro não haver paridade entre os
critérios de aum ento ou diminuição, o que im pede definir um raciocínio
baseado em provas tarifadas109.

3M 105 Para além da invalidação da prova tarifada no discursojurídico, notadamente a partir


da consagração do princípio da livre apreciação motivada, é possível dizer que o proce­
dimento de valoração da prova legal não resiste a uma análise mais apurada de lógica.
M lodinov sustenta, com base na lei da combinação das probabilidades, o equívoco do
sistema da prova tarifada, a partir da análise da estrutura da lei romana. N o entanto, a
avaliação episódica nâo invalida a atemporalidade do raciocínio em decorrência de o
sistema de tarifaçâo probatória ter sido reproduzido no modelo inquisitorial do Baixo
Medievo, revivendo, inclusive, em alguns textos legais contemporâneos. Assim, sustenta
o autor que "no Jtnal das contas, embora a lei romana possuísse arta racionalidade e coenncia legal,
não chegava a ter validade matemática. N a lei romana, por exemplo, duas meias provas constituíam
Por fim, não é forçoso lembrar que não há qualquer óbice ã defini­
ção da pena-base no m ínim o legal mesmo em caso de constatação da
existência de uma ou algumas circunstâncias desfavoráveis, se o julgador
entender que a pena, fixada no m ínim o, é necessária e suficiente para repro­
vado e prevendo do delito ou que esta quantidade é socialmente recomendável,
nos term os do art. 44, § 3S, do Código Penal. Aliás, havendo estas
constatações de suficiência, adequação e recomendação, injustificável seria
o acréscimo sancionatório.

12.7. Pena Provisória: Agravantes e Atenuantes: Características


Gerais

12.7.1. Se as circunstâncias judiciais de determinação da pena-base


são caracterizadas pela sua porosidade, situação que aumenta as margens
de atribuição de sentido pelo julgador, a forma de disposição legal das
circun stâncias legais ag rav an tes e aten u an tes perm ite afirm ar uma
maior adequação ao princípio da taxatividade. Assim, se a fase de aplicação
da pena-base é caracterizada por amplos espaços de discricionariedade, no
qual o juiz deverá seguir um caminho metodológico bastante rígido para
que não viole o princípio da fundamentação — (1-) delimitar o conteúdo
da circunstância; (2a) definir o tipo de informação processual válida; (3a)
valorar positiva ou negativam ente as circunstâncias; (4a) defin ir a
quantidade de aumento e de diminuição; e (5a) estabelecer, se cabível, os
critérios de preponderância —, na determinação da pena provisória há uma
sensível redução de complexidade.

uma prova plena. Isso pode parecer pouco razoável para uma cabeça não acostumada ao pensamento
quantitativo; hoje, estando mais familiarizados com as frações, seriamos tentados a perguntar: se duas
meias provas eqüivalem à certeza absoluta, o que é que representa três provas? D e acordo com a
maneira correta de combinarmos probabilidades, duas meias provas não Aegam a produzir uma cer­
teza absoluta, e, além disso, jamais poderemos somar um número finito de provas paràais para gerar
uma certeza, porque para combinamos probabilidades não devemos somá-las, e sim multiplicá-las”
(MLODINOV, O Andar do Bêbado, p. 42).
O raciocínio é plenamente adequado à pretensão calculadora da simples soma das
circunstâncias parciais, m otivopelo qual, baseado no sistema da livre apreciação, o ma­
gistrado pode estabelecer critérios de preponderância absolutamente válidos, desde que
exponha (fundamente) as razões que justificamsopesar com maior intensidade um a ou
outra circunstância.
Diferentemente das circunstâncias judiciais, as agravantes e atenuan­
tes (Ia) são (pré)valoradas, positiva ou negativamente, em lei (valoração
qualitativa); (2 a) estão quantitativamente delimitadas pela jurisprudência
(valoração quantitativa); e (3a) possuem regras de preponderância específicas.
A primeira diferença diz respeito ã valoração qualitativa. Note-se que os
motivos, p. ex., são um a circunstância judicial que perm ite ao juiz aumen­
tar ou dim inuir a pena, conforme a valoração da prova. As circunstâncias
da pena provisória não perm item esta maleabilidade. As agravantes arro­
ladas no art. 61 atuarão sempre como circunstâncias de aumento e as dis­
postas no art. 65 do Código Penal sempre atenuarão a pena. Inexiste a
possibilidade de uma mesma circunstância legal atuar em um caso como
agravante e em outro como atenuante. Assim, ao mesmo tempo em que a
embriaguez preordenada (art. 61, II, l) somente agravará a pena; a confis­
são (art. 65, III, d) apenas atenuará. O m áxim o que poderá acontecer é,
em caso de controle difuso de constitucionalidade, o julgador afastar a
incidência de uma circunstância, tom ando-a impassível de valoração —
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

como, p. ex., será possível verificar no debate acerca da inconstitucionali-


dade da reincidência. Todavia, não poderá o magistrado, sob pena de negar
vigência ã lei, inverter o valor predeterminado.
A segunda diferença entre as circunstâncias da pena-base e as da pena
provisória é relativa ã quantidade de aumento e de diminuição. M esmo a legis­
lação não tendo determ inado uma quantidade específica de aumento ou
de diminuição, a jurisprudência definiu parâmetros, diferentemente das
circunstâncias judiciais. Desta forma, como será possível perceber com
m aior precisão no item relativo ao cálculo da pena provisória, a quantidade
de aumento ou de diminuição da pena na segunda fase não poderá ser
superior a 1 /6 daquela quantidade estabelecida na etapa anterior (pena-
-base)110. Em term os comparativos, a definição de parâmetros sobre a
quantidade reduz significativamente a discricionariedade judicial.
A terceira diferença versa sobre os critérios de preponderância entre as
circunstâncias em caso de concurso de normas, isto é, incidência de
agravante(s) e atenuante(s) simultaneamente. Conforme será possível ana­
lisar no item concurso entre agravantes e atenuantes, diferentemente da m eto­
dologia de determinação da pena-base, na pena provisória há possibilidade

110 Neste sentido, conforme será trabalhado posteriormente, B ITEN CO U RT, Tratado de
Direito Penal, p. 671; BRANDÃO, Curso de Direito Penal, p. 341; BOSCHI, Das Penas e
seus Critérios de Aplicação, p. 240; e SANTOS, Direito Penal, p. 569.
de compensação de circunstâncias, i.e., atenuante e agravante se anularem
reciprocam ente. Todavia, isto somente poderá ocorrer se não houver
hierarquia entre as circunstâncias, situação regrada pelo art. 67 do Código
Penal (preponderância das agravantes e atenuantes subjetivas sobre as otyetivas).
12.7.2. Não obstante a diferença com as circunstâncias judiciais,
existe um elemento de distinção entre as próprias circunstâncias legais, que
é relativo ao caráter taxativo das agravantes e exem p lificativo das
atenuantes. Implica dizer que na segunda fase de aplicação da pena não
poderá incidir nenhuma causa de aumento de pena que não esteja arrolada
no art. 61 ou no art. 62 (agravante no concurso de pessoas) do Código.
Por força do princípio da legalidade, o rol das agravantes é numerus clausus,
não sendo possível sua ampliação por força da analogia ou de interpretação
extensiva. Diferentemente da atenuante, cuja estrutura é aberta e permite,
inclusive por força de lei (art. 66 do Código Penal), que haja uma especial
referência a fatores relevantes, anteriores ou posteriores ao crime, mesmo
não previstos em lei (atenuantes inominadas).
Desta forma, conclui Paulo Queiroz que “as circunstâncias agravantes
são fados ou fatos acidentais, objetivos ou subjetivos, que, embora não façam parte
da estrutura do crime, são importantes para a verificado da maior culpabilidade do
agente; e diferentemente das atenuantes, o rol das agravantes é taxativo, motivo pelo
qual o ju iz não pode admitir outras que não constem da lei, sob pena de ofensa ao
prindpio da legalidade”Uí.
Importante referir, a título introdutório, que as circunstâncias
agravantes e atenuantes subjetivas são incom unicáveis, ou seja, têm
caráter personalíssimo, salvo quando elementares do crime, nos termos do
art. 30 do Código Penal. O compartilhamento de circunstâncias em c ^ o
de concurso de pessoas, portanto, será possível apenas entre aquelas obje­
tivas, relativas ao feto.

12.8 . Pena Provisória: Agravantes em Espécie


12.8.1. O caput do art. 61 do Código Penal, conforme destacado
anteriormente, consagra o ne bis in idem como a regra geral de determ ina­
ção da pena no direito penal brasileiro. Segundo o dispositivo, as circuns-

m Q U EIR O Z, Díreíío Penal, p. 398.


tâncias agravantes somente podem ser aplicadas quando não constituem ou
qualificam o crime. Assim, se a circunstância agravante tiver correspon­
dência com as elementares do tipo penal imputado (tipo básico ou tipo
qualificado), está vedada a sua valoração na pena provisória, sob pena de
ofensa ao p r in c íp io d a p ro ib iç ã o d a d u p la in c r im in a ç ã o .

N o entanto, na relação entre circunstâncias judiciais e agravantes,


estas adquirem caráter de especialidade em relação àquelas e, segundo os
critérios de resolução do conflito (aparente) de tipos penais, o julgador
deve deixar de avaliá-las na primeira fase para aplicá-las no m om ento da
pena provisória. Estas regras foram amplamente expostas no m om ento de
descrição da pena-base, mas convém sempre reforçar os procedimentos
elementares de determinação judicial da pena.
Antes de ingressar na análise das agravantes em espécie, cabe referir
duas im portantes diretrizes acerca de sua aplicação.
A primeira diz respeito ã e x te n s ã o d o d o loEm ­
às a g ra v a n te s .

bora as causas legais de aumento não sejam nucleares do tipo, sua condição
PENAL B R A S IL E IR O

periférica e acessória não exclui a necessidade da demonstração da consciên­


cia e da vontade do agente em relação às circunstâncias, sobretudo as
objetivas. Assim como as elementares do tipo, as agravantes devem estar
presentes na representação do sujeito no m om ento do agir delitivo. Não
NO 3REIID

apenas o autor deve reconhecer sua presença, mas expressar vontade em


agir amparado pela agravante. Um dos exemplos mais evidentes parece ser
DE S EG U R A N Ç l

o da embriaguez preordenada, situação na qual o sujeito voluntariamente


se coloca em estado inebriante como forma de facilitar o agir delitivo. Não
por outra razão, a embriaguez involuntária, proveniente de caso fortuito
ou força maior, pode excluir a culpabilidade (art. 28, § 1-) ou reduzir a pena
FTNAS • MED WS

(art. 28, § 2°) na qualidade de minorante. Desta forma, a demonstração do


dolo em relação ã agravante é condição necessária ã sua aplicabilidade.
Reale Jr. é preciso ao verificar que nas agravantes há um comando
que se adiciona ã norm a incriminadora. Ao praticar o delito, o autor esta-
388 ria desrespeitando dois valores penalmente relevantes: “o tutelado pela norma
incriminadora e o reconhecido pelo tipo da circunstância reputada agravante""2.
Exatamente por este motivo, “as circunstâncias devem ser queridas e sabidas pelo
agente, pois não subsistem a título de responsabilitfade objetiva”" 3.

112 REA LEJR., Instituições de Direito Penal II, p. 93.


113 R EA LEJR ., Instituições de Direito Pena! H, p. 93.
No mesmo sentido, SCHECAIRA & C O R R Ê A JR ., Teoria da Pena, p. 265.
A conclusão do autor parece ser indicativa das razões pelas quais a
doutrina e a jurisprudência, quase de forma automática, afirm am serem
inaplicáveis as agravantes nos crim es cu lp osos114. A conclusão é ló­
gica, visto que a ausência da vontade de realização das elementares do tipo
penal exclui, automaticamente, as circunstâncias acessórias.
(a) R eincidência
12.8.2. A primeira agravante em espécie nominada no Código
Penal é a reincidência (art. 61, I). Segundo o art. 63 do Código Penal,
“verfíca-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar
em julgado a sentenp que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime
anterior”. Percebe-se que o Código não estabelece um conceito de reinci­
dência, apenas indica as condições de sua verificabilidade e aplicabilidade,
quais sejam: (a) a prática genérica de um (novo) delito —qualquer espécie
de delito, não sendo necessária a violação do mesmo preceito legal ou a
ofensa do mesmo bem ju rídico tutelado (hipóteses de reincidência
específica)115; (b) após o trânsito em julgado de decisão que condena o
autor por outro crime. Ademais, o art. 64, I, do Código Penal, estabelece
que (c) cessam os efeitos da reincidência após o período de 5 (cinco) anos
do cum prim ento ou da extinção da pena. Excluem-se, ainda, os crimes
militares próprios e políticos (art. 64, II, do Código Penal). Assim, conclui
com precisão Zaffaroni que a reincidência, no direito penal brasileiro, “não
é uma relação entre o primeiro e o segundo delito, mas sim entre o segundo delito e
a condenação anterior”116.

114 H á um consenso douttinário no que tange á inaplicabilidade das agravantes nos crimes
culposos, excetuando a reincidência. Neste sentido, BOSCHI, D as Penas e seus Critérios
de Aplicação, p. 198; DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 120; FRAGOSO, Lições
de Direito Penal, p. 415; Q U EIR O Z, D íkíío Penal, p. 298; SCHECAIRA e C O R R Ê A
JR ., Teoria da Pena, p. 265.
Todavia, entende-se que o instituto da reincidência é igualmente inaplicável nos
crimes culposos em decorrência da Lei n. 9.714/98, conformeserá exposto na seqüência.
115 Na fase de aplicação quantitativa da penaprivativa de liberdade (art. 59, II, do Código
Penal), não são diferenciados os efeitos da reincidência geral e específica. A reincidência
específica foi prevista na leipenal brasileira pela Lei n. 8.072/90 e, posteriormente, pela
Lei n . 9.714/98. Os efeitos da reincidênciaespecífica em crimes hediondosserão analisa­
dos em sede de execução penal (progressão de regime) e os da reincidência específica nos
demais delitosserâoproblematizados na fase de substituição da penaprivativa de liberdade
por restritiva de direitos (art.59, IV c/c art. 44, II, do Código Penal).
1,6 ZAFFARONI, Tratado de Derecho Penal V, p. 360.
Conforme exposto na ocasião da análise dos antecedentes criminais,
o m om ento central para análise é o da data do foto que está sob julgam en­
to, ou seja, o tempo do crime, segundo o dispositivo do art. 4 - do Código
Penal. Na sentença crim inal, cabe ao magistrado verificar (certidão de
antecedentes criminais) prim eiram ente se o réu foi condenado e, sendo
positiva a resposta, se houve trânsito em julgado. Inexistindo trânsito em
julgado, não há que se cogitar em reincidência. N o entanto, se houve
condenação estabilizada pela coisa julgada, cabe ao julgador verificar se o
novo crime que está sendo julgado ocorreu antes ou depois da data do
trânsito. Se o novo delito for anterior ao trânsito em julgado, estão confi­
gurados maus antecedentes; se posterior, há reincidência.
Na precisa síntese de Schecaira e C orrêajr., “considera-se ‘tecnicamen­
te’ primário o agente quefo i condenado uma ou várias vezes, sem que nenhuma das
condenações tenha transitado em julgado, bem como o agente que possui condenação
transitada em julgado, mas cometeu o novo crime antes de a sentença anterior tornar-
PENAL B R A S IL E IR O

s e irrecorrível, ainda que isso já tenha ocorrido no momento em que o ju iz analisa


a pena aplicável”U7.
Fundamental lembrar, ainda, que o réu somente será considerado
reincidente e com maus antecedentes em caso de múltiplas condenações
NO 3REIID

transitadas em julgado, anteriores e posteriores ao novo ilícito.


As hipóteses de corôguração de antecedentes criminais em sentido
amplo (antecedentes e reincidência) podem ser visualizadas nos gráficos
DE S EG U R A N Ç l

abaixo. Note-se que o ponto de referência será sempre o prim eiro trânsito
em julgado (grifado). Nas hipóteses desenhadas, pressupõe-se que o ju l­
gador esteja sempre julgando (sentença) o últim o foto (foto 2 , prim eira e
FTNAS • MED WS

segunda hipóteses; foto 3, terceira hipótese).


Figura 3 (maus antecedentes): d e l i t o e m j u l g a m e n t o ( f a t o 2) a n t e r i o r a o
trâ n s ito em ju lg a d o d e s e n te n ç a c o n d e n a tó ria p o r fa to p re c e d e n te (fa to 1).
390 Data Fatol Data Fato2 Trânsito Condenaçãol Sentença

Figura 4 (reincidência): d e l i t o e m j u l g a m e n t o ( f a t o 2 ) p o s t e r i o r a o t r â n s i t o
e m ju lg a d o d e s e n te n ç a c o n d e n a tó ria p o r fa to a n te rio r (fa to 1).
Data Fatol Trânsito Condenaçãol Data Fato2 Sentença

J” SCHECAIRA e C O R R Ê A JR ., Teoria da Pena, p. 266.


Figura 5 (m aus an teced en tes e reincidência): d e l i t o e m j u l g a m e n t o
(fato 3) p o ste rio r ao trâ n sito em ju lg a d o d e s e n te n ç a c o n d e n a tó ria
p e lo fa to 1 (re in c id ê n c ia ) e a n te rio r ao trâ n s ito em ju lg a d o p e lo fa to
2 (m au s a n te c e d e n te s).
Data Fatol Data Fato2 3C ondenaçãol
^ n.S*t 0 _ , Data Fato3 Condcnaçao2_ Sentença (Fato3)
Códigos dc referencia:
D ata Fato: data da açâo ou da omissão, independente do resultado (art. 4o do Código Penal).
Trânsito Condenação: datado trânsito cm julgado da sentença condenatória correspondente ao fato.
Sentença: sentença condenatória correspondente ao fato cm julgamento (momento de valoração).

Na demonstração gráfica, pressupõe-se que o fato novo, cuja sen­


tença reconhece ser o réu reincidente, tenha sido praticado no período em
que se admite a incidência da agravante, ou seja, entre o termo inicial (data
do trânsito em julgado de sentença condenatória decorrente de delito an­
terior) e o term o final (5 anos após o cum prim ento da pena ou extinção
da punibilidade). Ultrapassado o lim ite dos 5 (cinco) anos, a única possi­
bilidade de valorar o registro crim inal seria na qualidade de antecedentes
criminais. Contudo, conform e exposto anteriorm ente, se adotada a pers­
pectiva de que mesmo os antecedentes devem ser limitados tem poralm en-
te, por força da proibição constitucional de efeitos perpétuos da pena, e
utilizando o prazo da reincidência como analogia, após o referido período
o sujeito retom aria a prim ariedade e os bons antecedentes.
Figura 6 (prazo de verificação e cessação da reincidência)
Fato Trânsito em * Início Fim _ Cessação dos Efeitos da
Julgado Execução _ „ + Prazo (5 anos) Reincidência
Execução . .

* T rânsito em
Julgado Fim P razo +
Período dc Apuração da
Reincidência

Os prazo s seguem a regra do art. 10 do Código Penal, que estabe­


lece que a contagem do tem po inclui o dia de início no cômputo —dife­
rentem ente das regras processuais nas quais não se com puta o dia do
começo, incluindo-se, porém, o de vencimento (art. 798, § l s, do Código
de Processo Penal). Além disso, conforme destaca Delmanto, “o período
d^urador de cinco anos é contado da data efetiva do cumprimento ou extin to
da pena, e não da data da sentença queformalmente declara a ^tinção da pretensão
executória”m .

12.8.3. Não são considerados, para fins de reincidência, segundo o


inciso II do art. 64, os crimes militares próprios e os crimes políticos. Como
crim es m ilita re s p ró p rio s entendem-se as figuras típicas dispostas ex­
clusivamente no Código Penal M ilitar (Decreto-Lei n. 1.001/69) e que
descrevem uma especial qualidade do sujeito ativo, ou seja, condutas que
só podem ser praticadas por militares. Denom inam -se crimes militares
impróprios os delitos que, apesar de não estarem incluídos na legislação
m ilitar específica, podem ser “pratitódos por militares, assemelhados e rívis,
contra o patrimônio militar ou administração militar (art. 9-, CPM ). Para feitos
de &cluir a reinrídência — leciona Fragoso —, devem ser considerados apenas os
crimes propriamente militares, pois estes têm índole inteiramente diversa dos previs­
tos no C P comum, atentando contra a disciplina e a hierarquia”119.
N o que diz respeito aos crim es po lítico s, porém, as dificuldades
de identificação são maiores em decorrência de lacuna existente na legis­
lação penal brasileira. Lembra Alberto Silva Franco que o crim e político
tem sido enfocado sob dois ângulos distintos: bem jurídico tutelado (es­
trutura política vigente) ou especial fim de agir (motivação política)120.
Fragoso identifica os crimes políticos como as infrações penais contra a
segurança interna e externa do Estado e divide em duas espécies: crimes
políticos puros, ações que atentam exclusivamente contra os interesses polí­
ticos da nação; crimes políticos relativos, ações puníveis pela lei penal com um
praticados com finalidade política121.
Segundo Reale Jr., a qualificação de crimes puram ente políticos
perde o sentido em um a ordem política democrática, sendo desnecessária
esta especificação122. A propósito, conclui Silva Franco que “a partir da
R efom a da Parte Geral do Código Penal, para efeito de reincidênría, não se con­
sideram nem crime puramente político nem o crime político relativo. O legislador de
84 &cluiu de junto da locução ‘crime político' o advérbio ‘p uramente’, de forma a

118D E L M A N T O , Código Penal Comentado, p. 128.


115 F R A G O S O , Lições de Direito Penal, p. 417.

120 F R A N C O e S T O C O , Código Penal e sua InterpKtação, p. 372.

121 F R A G O S O , Lições de Direito Penal, p. 417.

122 R E A L E J R . , Instituições de Direito Penal II, p. 99.


ampliar sua área de significado, abrangendo também o crime praticado com motiva­
ção políticd ’123.
O corre que, se em term os conceituais a questão parece estar
relativamente estável, permanece uma indagação de índole pragmática: no
sistema jurídico-penal brasileiro quais seriam as figuras delitivas adequadas
ao conceito de crim e político?
Schecaira e C orrêajr. exemplificam como crimes políticos aqueles
referidos na Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/83)’24. Delmanto
amplia este entendim ento, mencionando os crimes políticos próprios, “ que
lesam ou põem em risco a organização política”, e os impróprios, “que ofendem
outros interessa, além da organização política”. Destaca que “os crimes eleitorais,
por exemplo, são crimes exclusivamente políticos”125 (Lei n. 4.737/65).
O problema é superlativamente agravado pelo foto de o legislador
ordinário não ter cum prido o comando constitucional de definição das
ações dos grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional
e o Estado Democrático (art. 5e, XLIV, da Constituição). Isto porque são
substanciais as dúvidas quanto ã recepção, integral ou parcial, da Lei n.
7.170/83 pela Constituição, sobretudo em decorrência do momento político
no qual foi elaborada.
Em face desta lacuna, parece ainda subsistir a exclusão da reincidên­
cia aos crimes previstos na Lei de Segurança Nacional para aquelas condu­
tas que possam ser incluídas no preceito constitucional das ações contra a
ordem constitucional e o Estado Democrático —ao menos em relação aos
tipos penais que subsistirem ao controle de constitucionalidade126. Em
relação aos crimes eleitorais, parece questionável sua inclusão no rol dos
crimes políticos. As infrações previstas na Lei n. 4.737/65 adéquam-se
m elhor ã ideia de ofensa ao sistema eleitoral do que propriam ente ã orga­
nização política do Estado.
O utra hipótese de não aplicação do instituto da reincidência diz res­
peito às condenações anteriores por con traven ção penal. Define o art. 1-

123 FR A N C O e STOCO, Código Penal esua Interpretação, p. 372.


124 SCHECAIRA e C O R R Ê A JR ., Teoria da Pena, p. 267.

123 DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 128.


126 Sobre o tema, conferir BARROSO, A Superação da Idedogia da Segurança Nacional e a
Tipificação dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, p. 71; D’ÂVILA et al., O Direi­
to Penal na Luta contra o Terrorismo, pp. 14-16; W U N D ER LICH , D initos Fundamentais e
Segurança no Estado Constitucional Democrático de Direito, pp. 20-55.
da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei n. 3.688/41) que há rein­
cidência quando o agente pratica uma contravenção penal depois do trân­
sito em julgado da sentença condenatória por crim e ou contravenção. Não
há previsão de reincidência, portanto, quando houve condenação anterior
por contravenção.
Mas se a lei penal exclui a possibilidade de reincidência em relação
às condenações anteriores por crimes militares, crimes políticos e contra­
venções penais, a doutrina e a jurisprudência ampliam este entendim ento
para os casos em que a sentença condenatória fixa exclusivamente p en a
de m u lta , independente do crim e praticado. Em face de o art. 77, § Ia,
do Código Penal perm itir a concessão da suspensão condicional da pena
(sursis) em caso de condenação anterior ã pena de multa, interpretação
analógica estendeu o entendim ento, vedando a incidência da reincidência
em caso de condenação anterior ã pena de multa, autônoma ou substitutiva,
não aditiva ã pena privativa de liberdade.
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

12.8.4. Definidos os critérios de identificação, de aplicação e d


exclusão, im portante referir os efeitos d a rein cid ên cia no direito penal
brasileiro, porque, embora a conseqüência imediata da reincidência seja a
de aumentar a quantidade da pena provisória, existem inúmeros efeitos
subsidiários, todos previstos no Código Penal: (a) definição de regime de
cum prim ento de pena mais severo (art. 33); (b) restrição da substituição
da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44, II); (c)
vedação da substituição da pena privativa de liberdade pela m ulta (art. 60,
§ 2a); (d) obstrução do sursis, em caso de crime doloso (art. 7 7 ,1); (e) au­
m ento do lapso de cum prim ento da pena para obtenção do livramento
condicional (art. 83, II); (^ aumento e interrupção do prazo prescricional
(arts. 110 e 117, VI); (g) revogação do sursis (art. 81), do livramento con­
dicional (art. 87) e da reabilitação (art. 95); e, em delitos específicos dis­
postos na Parte Especial, (h) obstrução de diminuição da pena (art. 155, §
3M 2o; arts. 170 e 171, § Ia).
Os efeitos mediatos e imediato (agravante) provocados possibilitam
a problematização da (in)constitucionalidade da reincidência, a partir da
premissa estabelecida por M aria Lúcia Karam no sentido de que “nenhum
dos argumentos que procuram fundamentar o instituto da reincidência consegue es­
conder sua irracionalidade”127.

127 K A R A M , Aplicação da Pena, p. 125.


Ajustificativa da previsão agravante da reincidência no sistema ju ­
rídico-penal brasileiro decorre, direta ou indiretamente, da vinculação/
aproximação de dois modelos sancionatórios absolutamente distintos: os
sistemas de penas, baseados na responsabilização pela culpabilidade, e os
sistemas de medidas de segurança, estruturados na valoração da periculosi­
dade. A Exposição de Motivos da reforma da parte geral do Código Penal
afirma que “com a extinção, no Projeto, da medida de segurança para o imputâvel,
urge reforçar o sistema destimndo penas mais longas aos que estariam sujeitos à
imposição de medida de segurança detentiva e que serão beneficiados pela abolição
da medida. A Política Criminal atua, neste passo, em sentido inverso, a fim de
evitar a liberação prematura de determinadas categorias de agentes, dotados de
acentuada periculosidade” (Exposição de Motivos, § 59).
Na redação original da parte geral do Código Penal (1940), a rein­
cidência em crime doloso conduzia ã presunção de periculosidade. Assim,
eram presum idam ente perigosos (a) os inimputáveis, (b) os sem i-im putá-
veis, (c) os condenados por crimes cometidos em estado de embriaguez
pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos, se habitual, (d) os reincidentes
em crimes dolosos, e (e) os condenados por crime cometido em associação,
bando ou quadrilha (art. 78 do Código Penal, redação do Decreto-Lei n.
2.848/40).
Da presunção genérica de periculosidade pela reincidência decorrem
os efeitos normativos do estado perigoso. Nas palavras de Hungria, “a reinci­
dência é sinal de periculosidade, como a febre é sinal de infeqão, como a putrefato
é sinal de morte" 128.
Na reforma de 1984, com a vedação da possibilidade de imposição
da medida de segurança (sistema do duplo binário) ao imputâvel reinci­
dente, a circunstância permanece como agravante de forma a prolongar
o cum prim ento da pena. N ote-se, pois, o inexorável vínculo do institu­
to da reincidência com os modelos penais de autor centrados na catego­
ria periculosidade.

12.8.5. Dentre os principais argumentos jurídicos sobre a in co n s-


titu cio n alid ad e da reincidên cia destaca-se a sua contradição lógica com
o princípio da proibição da dupla incriminação (ne bis in idem). Frisou-se
anteriorm ente a incorporação do princípio no ordenam ento jurídico

A p u d M A R Q U E S , Tratado de Direito Penal III, p.


128 121.
brasileiro e a form apela qual o ne bis in idem se instrumentaliza na aplicação
da pena, sobretudo na pena provisória, pois o art. 61 do Código Penal
acentua que as circunstâncias agravantes têm efeito de aum entar a pena
“(...) quando não constituem ou qualificam o delito”.
Neste quadro normativo, marcado pela vedação constitucional e
legal da dupla incriminação, em geral, e da dupla valoração das circuns­
tâncias na aplicação da pena, em específico, emerge a indagação sobre a
constitucionalidade do agravamento da sanção pela reincidência. A questão
que se coloca é se seria admissível o aumento da pena de um crime em razão da
prática de outro fato, anteriormente processado e julgado, cuja pena foi cumprida e
posteriormente extinta.
A tese apresentada pela dogmática crítica nacional afirma que, sob
o ponto de vista do princípio constitucional da coisa julgada e de suas
decorrências penais e processuais penais de vedação da dupla incriminação e
de proibição da dupla valorado de circunstâncias punitivas, a possibilidade do
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

acréscimo sancionatório decorrente da reincidência constitui um a grave


violação ao princípio do ne bis in idem. Segundo o ensinamento de Alberto
Silva Franco, “reconhecer a reinrídência signtfica alargar o raio de abrangência da
decisão de condenação do proceso, em que foi proferida, para o efeito de atingir a
pena a ser fixad a em outro processo, movido em virtude de novo fato criminoso
praticado pelo mesmo condenado”'29.
A sentença penal condenatória é o mecanismo processual penal de
exposição do juízo de responsabilização do autor do injusto. Na decisão
judicial estão contidos todos os elementos de valoração do fato-crim e
praticado pelo autor. Com o trânsito em julgado a responsabilidade crim i­
nal ganha fixidez, im pedindo que nova apreciação sobre a conduta seja
realizada. Desta forma, em um sistema constitucional penal regulado pelo
princípio da coisa julgada, há um a expressa vedação a qualquer espécie
de (re)valoração jurídica de feto anteriormente submetido a julgamento.
Não por outra razão que no direito processual penal brasileiro são vedadas
a reformatio in pejus e a revisão crim inal em desfavor do réu. A conclusão
possível da leitura desta cadeia normativa que sustenta o princípio ne bis in
idem é a da sua incompatibilidade com o instituto da reincidência, motivo
pelo qual a agravante não se harmoniza com a ordem constitucional vigente.

125 F R A N C O , Sobre a Não Recepção da Reincidência pela Constituição Federal de 1988, p. 3.


A tese da inconstitucionalidade da reincidência é amplamente com ­
partilhada pela teoria crítica do direito penal. Zaffaroni constata que “a
agravação da pena do segundo delito é dificilmente e^licável em termos racionais, e
a estigmatização que sofre a pessoa prejudica sua incoyoração à vida livre”130. Com
Pierangeli, ao rejeitar as tentativas teóricas de compatibilizar a reincidência
com os princípios do ne bis in idem e da intangibilidade da coisa julgada,
conclui que “(...) a agravação da reincidência não é compatível com os princípios de
um direito penal de garantias, e a sua constitucionalidade é sumamente discutível”131.
Juarez Cirino dos Santos leciona que “ (...) a reincidênáa ficta ou real) significa
dupla punição do crime anterior: a primeira punição é a pena aplicada ao crime an­
terior; a segunda punição é o quantum de acréscimo obrigatório da pena do crime
posterior, por força da reinrídência”ii2. Lenio Streck pondera que “no nosso Có­
digo Penal, a reincidênáa, além de agravar a pena do (novo) delito, constitui-se em
fator obstaculizante de uma série de beneficios legais (...). Esse duplo gravame da
reincidência é antigarantista, sendo, à evidência, incompatível com o Estado Demo­
crático de Direito (...)”133. Em sentido similar, Alberto Silva Franco alerta que
“a reincidência, enquanto agravante, não apenas aplica oficialmente, através de

'2 - rJrfüt ie eBeHi v. Í-: y , ■tAi 4; nritâ id Hftlil


manifestação judicial no segundo prncesso, o rótulo de reincidente ao condenado por
fato criminoso anterior, como também valora penalmente ofato precedente para efeito
de agregar maior gravidade à pena cominada para o segundo delito, tomando-se a
sentenp condenatória anterior como pressuposto do plus punitivo. É evidente que
um mesmo fato não pode ser duplamente aferido, posto que ‘a maior gravidade da
pena do segundo delito é um plus de gravidade por Musa do primeiro', o que fa z,
‘no fundo, com que o delito anterior surta efeitos jurídicos duas vezes' e que haja
assim ‘uma inadmissível reiteração no exercício do ius puniendi do Estado ”’134.
Na esteira dos autores citados, inúmeros doutrinadores 135 e atores
jurídicos brasileiros136 aderiram à tese da inconstitucionalidade do instituto

130 ZAFFARONI, Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina, p. 89. _____
131 ZAFFARONI e PIERANGELI, M anual de Direito Penal Brasileiro, p. 795. 397
132 SANTOS, Direito Penal, p. 572.
133 STRECK, Tribunal do Júri, p. 66 .
134 FRANCO, Sobre a Não Recepfio da Reincidência pela Constituição Federal de 1988, p . 8 .
133 Adauto Suannes pondera que a reincidência é “ (...) impassível delevar ao agravamento da
nova pena por força do ne bis in idem e da imutabilidade, wmo garantia dos rius, das decisões
penais condenatórias” (SUANNES, Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal, p. 240;
SUANNES, A Reincidência, Autêntico ‘Bis in Idem’, p. 7). Paulo Queiroz conclui que “ (...)
a reincidência não passa, <nmo assinala M unoz Conde, de uma pena tarifada, na medida em que ela
da reincidência. N ão por outra razão, a matéria se encontra, atualmente,
pendente de julgam ento no pleno do Supremo Tribunal Federal em razão
de ter sido reconhecida a Repercussão Geral137.

atua am o au sa de agravamento da pena fundada em fato diverso, gerador de culpabilidade e de


responsabilidade próprias, de modo que o plus de gravidade decorrente da reincidência eqüivale á pena
sem culpabilidade, estranho ao fato e que importa dupla valoração da mesma causa, constituindo bis
in idem” (QUEIROZ, Direito Penal, p. 402). Leonardo Yarochewsky sustenta que "de
acordo com o prindpio do non bis in idem não se deve castigar uma pessoa duas ou mais vezes p e h
mesmo fato, pois isso eqüivale á imposição de mais de uma penalidade. Assim , como conseqüência
deste prindpio, se uma pessoa já fo i devidamente julgada e condenada a cumprir uma determinada
sanção ela não poderá, posteriormente, por qualquer que seja a razão, ser novamente punida por fato
anteriormente cometido e pelo qual já tenha sido andenada” (YAROCHEWSKY, D a Reinci­
dência Criminal, p. 126).
No mesmo sentido, COPETTI, Direito Penal e Estado Democrático de D inito, p. 194;
FíMAS i MED IUS DE SEGUR«(JI ND 3REIID PENAL BRASILEIRO

KARAM , Aptiação da Pena, p. 47; NASSIF, Direito Penal e Processual Penal, p. 198; ROSA,
Decisão Penal, pp. 354-355; SOARES, Aplicação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever
Juridico-Constitucional de Minimização da Afetação Individual, pp. 218-224.
136 Em relação ã posição dos Tribunais nacionais, importante destacar o entendimento
apresentado pela 54 Câmara Criminal do Tribunal de Justiça gaúcho (TJRS). Aliado ao
argumento da ofensa ao princípio da proibição da dupla valoração, osjulgadores enten­
deram que a responsabilidade criminal do autor que comete novamente delito não é ne­
cessariamente mais grave que a do réu primário, e somente o procedimento de individua-
lizaçãojudicial permitiria esta conclusão. Assim, o caráter genérico da agravante, além de
impor dupla punição, inviabilizaria a análise do caso concreto (individualização da pena)
(Tribunal de Justiça do R io Grande do Sul, Apelação 699291050, Rei. Des. Amilton
Bueno de Carvalho,j. 11.08.1999) — “o delinqüente reincidente nem sempre ê mais petverso,
mais culpável, mais perigoso, em confronto com o acusado primário” (Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, Apelação 70001014810, Rei. Des. Sylvio Baptista Neto, j. 08.06.2000).
Atualmente, algumas posições indicam a possibilidade de a Suprema Corte acolher a
tese: “não desconheço a crítica acirrada de parte da doutrina, que inspirada por a fa n s dos princípios
orientador do Direito Penal, notadamente pelo tepúdio do (hnominado direita penal do autar, defende
ser inadmissível o agravamento obrigatório da pena em razão da reincidência. A tese de ineludível
fascínio, jamais obteve, a n tu th , o beneplácito da juris^ndência deste Supremo Tribunal, que sempre
reputou válida a fixação daquela agravante, nconhecendo, inclusive, que, ao contrário do que daidido
pelo Tribunal deJ u stip do R io Grande do Sul, se justificaria o 'izcmdescimento da pena imposta ao
paciente’ em razão da reincidência, pois isto resultaria de sua 'opção por antinuar a delinquir’ (...)
Assim , rendo-me, por ora, á jurisprudência consolidada neste Supnm o Tribunal” (Supremo
Tribunal Federal, Habeas C o ^u s 93969-4/RS, Min. Cármen Lúcia, j. 22.04.2008).
131 “1. Trata-se de R E com fundam ento no art. 102, III, 'd, da CF, antra acórdão da Quinta
Câmara Criminai do Tribunal de Justiça do Estado do R io Grande do S u l que, por sua maioria,
Nota-se que o aumento da pena pela reincidência indica, em reali­
dade, a análise de um status jurídico imposto ao autor do delito em decor­
rência de sua conduta anterior (passado delitual). O corre que esta possibi­
lidade de valoração e de reprovação do autor do delito com base em uma
condido pessoal atribuída normativa ou judicialm ente aproxima o sistema
de aplicação da pena dos modelos de direito penal de autor138. Assim, para
além da expressa violação do ne bis in idem, a ilegitimidade da reincidência
é perceptível nesta ruptura com o único sistema de direito penal compa­
tível com o Estado Democrático de Direito, que é o direito penal do fato,
cuja instrumentalização dogmática estabelece que o imputado deve ser
julgado apenas pela sua conduta externa e pelo evento (dano ou perigo de
dano) produzido; não por um a condição ou um estado pessoal.

12.8.6. Embora o debate sobre a (in)constitucionalidade esteja em


aberto, sobretudo em face do julgam ento da Repercussão Geral pelo Ple­
no do Supremo Tribunal Federal, é fundamental demonstrar como a lei
penal brasileira operou uma verdadeira relativ ização d o in stitu to da
reincidência.
A Lei n. 9.714/98, ao ampliar as hipóteses de aplicação das penas
restritivas de direitos, alterou significativamente o regim e jurídico da
agravante. Além de am pliar o lapso temporal legalmente previsto para que
o condenado possa ter a pena privativa de liberdade substituída pela pena
restritiva de direitos, a Lei n. 9.714/98 alterou os requisitos subjetivos,
dentre eles a reincidência.

entendeu inwnstitucional (não rec^cionada pela Carta Federal de 1988), a agravante da reincidên­
cia (art. 61, I, do CP), bem wmo que presente o direito penal do autor e que sua aplicação r^K sen-
ta 'indisfaqável bis in idem', razão pela qual afastou o acríscimo a ela comspondente. 2. Alega o
recorrente que a decisão recorrida afronta o artigo 5-, inciso X L V I, da Constituição Federal, por
contrariar os prinápios da proporcionalidade e da individualização da pena 3. O Tribunal reconheceu
a existência da repercussão geral da questão constitucional suscitada” (Supremo Tribunal Federal,
Recurso Extraordinário 591563, R el.M in. Cezar Peluso, j. 30.04.2010).
138 “ Trata-se, indubitavelmente, de repugnante caso de direito penal de autor que se opõe ao dim to
penal do fato. O agravamento da pena pela reincidência Klaàona-se com o dim to penal de autor, que
para efeitos de punição considera, basicamente, apenas a pessoa do autor, do agente, por seu modo de
ser ou por sua rnnduta de vida. O direito penal do autor e a culpabilidade do autor pelo modo de ser
do agente constituem, assim, grave violação ao dim to penal de um Estado Democrático de D im to "
(YAROCHEWSKY, D a Reincidência Criminal, p. 120).
Na redação anterior da parte geral do Código Penal, o reincidente,
condenado a nova pena privativa de liberdade, não poderia substituir a pena
carcerária por pena restritiva, mesmo que sua quantidade fosse ínfima. A
única possibilidade de substituição era nos casos de aplicação de pena não
superior a 6 (seis) meses, conforme o art. 60, § 2°, do Código Penal, a partir
da interpretação extensiva das regras da suspensão condicional da pena
(sursis).
Todavia, a Lei n. 9.714/98, ao alterar o art. 44 do Código Penal,
previu duas possibilidades de substituição em casos de reincidência: (1-)
nos casos de reincidência em crime culposo (art. 44, II); e (2Í) nos casos
de reincidência em crim e doloso, não sendo hipótese de reincidência es­
pecífica (“não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime”), se a
medida substitutivafor socialmente recomendável (art. 44, § 3-).
Tratando-se de lei posterior mais benéfica, possível afirm ar que
houve uma relativização na aplicação geral do instituto, não limitada apenas
ã substituição da pena de prisão por pena alternativa. Isto porque uma
FíMAS i MED IUS DE SEGUR«(JI ND 3REIID PENAL BRASILEIRO

alteração significativa em um instituto produz efeitos em todo o sistema


jurídico, sobretudo quando se trata de lei mais favorável (lex mitior). N o
atual estágio da dogmática jurídica, com a consolidação da ideia de sistema,
não existe alteração meram ente tópica, sobretudo nos sistemas democráti­
cos de direito penal fundados na m áxim a de limitação do poder punitivo
que se instrum entaliza nos princípios constitucionais de garantias.
Neste sentido, parece correto afirm ar que o instituto da reincidên­
cia foi relativizado, podendo operar ou não seus efeitos conforme sua maior
ou m enor adequação aos critérios relativizadores estabelecidos na Lei n.
9.714/98: (Ia) inaplicabilidade nos crimes culposos; (2a) inaplicabilidade
em caso de constatação de que a medida seja socialmente recomendável. Sig­
nifica dizer, portanto, na hipótese de ser o instituto constitucional, que a
regra geral é a da aplicação exclusiva da agravante da reincidência nos
crimes dolosos —nos crimes culposos seria inaplicável em decorrência da
4^ interpretação extensiva do art. 44, II, do Código Penal, alterado pela Lei
n. 9.714/98.
Igualmente na linha do § 3 9 do art. 44 do Código Penal, seria pos­
sível o julgador deixar de aplicar os efeitos da reincidência, mesmo nos
delitos dolosos, se entendesse que a medida (não agravação da pena) é so­
cialmente recomendável. Logicamente que a decisão que reconhece a adequa­
ção social da exclusão da agravante implica em fundamentação, visto se
tratar de um tipo penal aberto. Todavia, se o magistrado entender adequa­
da a quantidade de pena aplicada na prim eira fase (pena-base), poderá, no
caso concreto, deixar de aplicar a agravante, notadamente porque uma pena
aplicada além do suficiente e do necessário para estabelecer a responsabi­
lidade crim inal pelo fato é um a pena socialmente prejudicial.
A possibilidade de não aplicação da agravante da reincidência
perm ite, inclusive, um a m elhor adequação do instituto ao princípio da
individualização da pena, conform e o entendim ento de Cernicchiaro139.
(b) M otivo Fútil ou Torpe
12.8.7. Nesta linha, se é um a premissa dos sistemas penais de foto a
exclusão dos julgamentos morais (reprovação), de forma a concentrar a
resposta penal no dano produzido (responsabilização), é possível perceber
outros pontos frágeis na legislação penal brasileira, especificamente em
relação às agravantes.
Estabelece o art. 61, II, a do Código Penal que constitui causa de
aum ento de pena ter o agente cometido o crim e por m otivo fútil ou
torpe. A valoração dos motivos da conduta, com o circunstância de análi­
se para a avaliação da existência do delito ou para a determinação da pena,

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


não constitui, por si só, uma violação aos princípios configuradores do
direito penal do foto. As motivações podem ser inúmeras e, em muitos
casos, expõem circunstâncias foticas bastante representativas, isto é, tradu­
zem os fatores empíricos (exteriores) que potencializaram a conduta —
vejam-se, p. ex., na primeira hipótese referida (análise da constituição do

1-: y,
delito), os casos de condutas motivadas por agressões anteriores injustas

ie BEtEtai v.
(legítima defesa), por situações reais que conduzem ã defesa de um bem
jurídico (estados de necessidade), por fatores que não perm item que o
autor do foto tenha uma plena compreensão da realidade circundante (erro). '■i - rJrfUt

135 Cernicchiaro, em atuação no Superior Tribunal de Justiça, havia proposto a relativi-


zação da agravante, defendendo que a reincidência não poderia ser interpretada de forma
mecânica e, portanto, uma adequação ao princípio da individualização da pena implicaria 401
a facultatividade de sua aplicação: "a KÍncidência, assim, não é imperativo de aumento, baseada
em dados meramente objetivos. Afetaria até o principio da individualização da pena. Não fa z senti­
do a cominação ofertar grau mínimo e grau máximo, e a agravante não ensejar oportunidade de
análise especifica. A reincidência, assim, há de ser analisada pelo ju iz; decidirá ser ou não, no caso
em julgamento, causa de majorafio da pena (...). A s considerafies invocadas são ajustáveis ao C ó­
digo Brasileiro, o texto, sem dúvida, impõe ponderar a condenação anterior. Afaste-se, todavia, a
mera inteyretação literal. A lei deve ser analisada segundo princípios, momento de um sistema. O
j u iz tem a nobre missão de fa zer a tradução sistemática, atualizar, se necessário, a norma posta pelo
legislador (...)” (CER N IC CH IA RO , Questões Penais, p. 221).
Quando circunstâncias exteriores que motivam o agir delitivo não chegam
no lim ite da exclusão do delito, perm item análise na aplicação da pena,
norm alm ente com o causas de diminuição (atenuantes, minorantes). Mas
outras motivações que revelam circunstâncias externas (fáticas) podem
igualmente alterar o juízo de responsabilização, operando no sentido da
agravação da punição.
Neste aspecto, é necessário definir condições de valoração da cir­
cunstância geral motivos, que estejam em compatibilidade com o princípio
da secularização. Parece ser correto afirmar, portanto, que se adéqua ao
modelo de direito penal do fato a análise daqueles motivos que estão vin­
culados aos fatores externos, às situações concretas empiricamente constatáveis que
influenciaram a prática do ilícito. Do contrário, haveria uma forte incom ­
patibilidade com o princípio da secularização.
As estruturas normativas que dependem de valorações sobre a sub­
jetividade do réu im plicam juízos morais sobre a identidade do autor do
foto, como foi amplamente exposto na análise das circunstâncias judiciais.
Ocorre que preceitos legais com este tipo de abertura tam bém são encon­
trados em forma de agravantes, atenuantes, majorantes e minorantes.
A agravante do m o tiv o to rp e, prevista no art. 61, II, a, in fine, do
Código Penal, aproxima-se de forma bastante contundente dos tipos penais
abertos, contrariando a diretriz que determ ina sejam realizados juízos
objetivos, restritos às circunstâncias e aos resultados exteriores da conduta.
A literatura penal brasileira é praticamente unânim e em definir
como torpe o motivo indigno, repugnante, abjeto, e que, por esta razão,
ofenderia gravemente os sentimentos e a moralidade média, os princípios
ou padrões éticos dominantes em sociedade1^. Em que pese alguns exemplos
limítrofes expostos pela doutrina possam apontar um juízo neste sentido —
como, p. ex., os casos de delitos cometidos mediante pagamento —, a
abertura que a circunstância perm ite coloca em dúvida a sua cons-
titucionalidade. A possibilidade de delegar ao julgador a valoração do grau
de ofensa ã ‘moralidade média’ produzida pela conduta ilícita tende a tornar
a decisão incontrolável, sobretudo porque, desde o ponto de vista
probatório, os juízos morais não são empiricamente refutáveis em decor­
rência de não estarem ancorados em dados concretos, mas em hipóteses

140 Neste sentido, exemplificativamente, BOSCHI, D as Penas e seus Critérios de Aplicação,


p. 208; DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 120; D O TTI, Curso de Direito Penal,
p. 520; GALVÃO, Direito Penal, p. '769; M ESTIERI, M anual de Direito Penal,] p. 287.
pessoais (subjetivas). Ademais, a pressuposição idealista da dogmática
acerca da existência de uma m oral m ediana e consensual —mesma pressu­
posição que cria a figura metafísica do homem médio como unidade concei­
tuai de referência e de valor —ignora o feto de existirem nos mais diversos
grupos sociais inúmeros códigos morais que coexistem e que muitas vezes
são confiitivos. Pressupor o monismo axiológico ou a hegemonia de um
código m oral que seria adotado e revelado pelo juiz na sentença como
critério de reprovabilidade ofende a diretriz republicana, consignada no
preâmbulo da Constituição, do reconhecimento de um a sociedade pluralista.
O tipo de análise fomentada pela agravante indica a abertura do
sistema de determinação das penas a “inferências pertencente à escala pessoal
de valor do ju iz, fazendo com que suas próprias pautas éticas prevaleçam (...). N es­
te processo, as pautas éticas do próprio magistrado agiriam como exclusivas Kferências
penais, sem a percepção dafluidez e variabilidade dos sentidos sob os quais a moral
pode revestir-se (,..)”MI.
Diferente parece ser o caso da circunstância m otivo fútil. Embora
o adjetivo (fútil), que qualifica o motivo, seja do ponto de vista lingüístico
amplo, o que perm itiria uma alta extensão gramatical dos significados
possíveis que designaria o caráter frívolo ou leviano da motivação do ilí­
cito, a dogmática penal restringiu seu conteúdo ã análise da desproporcio-
nalidade entre a causa e a conseqüência. Assim, se o sentido penalmente
válido atribuído ao motivo fútil indica a falta de paridade e de adequação
entre o crim e e o m otivo gerador, será possível agravar a pena no m om en­
to em que for demonstrado na sentença qual o dado empírico irrelevante
que se conecta ao delito como seu elemento impulsionador.
Se determinadas causas justificam o delito, ou seja, constituem-se
como motivos razoáveis para a conduta (p. ex., as causas exclusão da ilici­
tude e da culpabilidade), o raciocínio que deve inform ar a agravante do
motivo fútil é o inverso, sendo necessária a exposição da causa despropor­
cional para que seja viável o aumento da pena provisória.
(c) Facilitar ou Assegurar outro D elito
12.8.8. N o art. 61, II, b, o Código Penal estabelece como agravante
a prática do delito com intuito de facilitar ou assegurar a execução, a
ocultação, a im punidade ou a vantagem de outro delito. Neste caso,

141 S O A R E S , ApUcação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Jurídico-Constitucional de


Minimização da Afetação Individual , p. 225.
a agravante igualm ente estabelece um vínculo de causa (finalidade) e
conseqüência (crime) passível de ser verificado empiricamente por meio
dos meios probatórios e exposto como argumento válido na sentença penal.
Trata-se de um especial fim de agir vinculado à conduta: garantir a
execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime. Existe,
portanto, o aumento de pena no crim e-m eio, que é praticado com a fina­
lidade de êxito de um crim e-fim (anterior, concomitante ou posterior).
Não é imprescindível, porém, como condição de aplicação da agravante,
a efetiva realização do crim e-fim .
Contudo, existem determ inados tipos penais dos quais este especial
fim de agir constitui elementar do tipo penal. Pense-se, p. ex., nos casos
de ocultação de cadáver (art. 211 do Código Penal), após os delitos de
homicídio ou aborto. Nesta hipótese, doutrina e jurisprudência entendem
que a incidência da agravante constitui bis in idem 142. Solução idêntica é
aplicável no caso do homicídio qualificado para assegurar a execução, a
ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime (art. 121, § 2S, V do
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

Código Penal).
O delito de lavagem de capitais, p. ex., decorre de opção político-
-crim inal de incriminação de uma conduta posterior cuja finalidade precí-
pua é a de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição,
movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes,
direta ou indiretamente, de crim e (art. 1° aiput, da Lei n. 9.613/98). Trata-se,
pois, de delito praticado para garantir a fruição dos objetos (bens, direitos
e valores) decorrentes do delito anterior. Neste caso é igualm ente
inaplicável a agravante em razão de esta finalidade ser o elemento que
integra o tipo subjetivo.
A doutrina costuma apresentar como exemplos de aplicação da
agravante as hipóteses de ameaça, coação e constrangim ento de testemu­
nhas; ocultação, destruição, alteração e falsificação de provas143. Fernando
Galvão elenca os casos de furto de arma para posterior cometimento de
4M roubo; de incêndio em repartição pública, praticado por funcionário, para
ocultar irregularidades; e igualmente de suborno de testemunhas ou de
destruição de provas a serem produzidas em processo144.

142 Neste sentido, D E L M A N T O , Código Penal Comentado, p. 457; F R A N C O & STOCO,


Código Penal e sua Inte^Ktação, p. 1.012.
143 S A N T O S , Direito Penal, p. 574.

144 G A L V Ã O , D im to Penal, p. 771.


Embora pareçam adequados os exemplos, é necessário extrem o
cuidado ao generalizar determinadas condutas, porque em alguns casos o
especial fim de facilitar ou assegurar outro delito pode constituir-se em uma
elementar do delito, como no caso da ocultação de cadáver em relação aos
delitos de homicídio e aborto. Esta constatação perm itiria, inclusive, pro-
blematizar a adequação do agravamento da pena pelo art. 61, II, b do
Código Penal em algumas hipóteses de crimes contra a administração da
justiça como a coação no curso do processo (art. 344) e de favorecimento
real (art. 349), ambos previstos no Código Penal.
Assim, seguindo o preceito do caput do art. 61 do Código Penal de
que somente será aplicada a agravante quando não constituir ou qualificar
o crime, sendo verificado que a finalidade de facilitar ou assegurar outro
delito constitui elementares do crim e-m eio (anterior, concomitante ou
posterior), a agravante deve ser excluída, pois sua incidência configuraria
bis in idem. Se ambos os delitos (crime-meio e crime-fim) ocorreram, ha­
verá incidência das regras do concurso material, nos termos do art. 69 do

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


Código Penal, sendo cumuladas as penas aplicadas individualmente para
cada figura delitiva.
(d) R ecursos que D ificultam a Defesa: Traição, Em boscada,
D issim ulação

1-: y,
12.8.9. A agravante relativa ã traição, em boscada, dissim ulação
ou outro recurso que d ificu lte ou im possibilite a defesa da vítim a

ie eBeHi v.
(art. 61, II, c), refere formas especiais de execução do crime (modus operan-
dt) caracterizadas pela surpresa ou pela ruptura com uma relação de con­
fiança entre os sujeitos ativo e passivo do delito.
w - rJrfüt
Os conceitos relativos ã traição, ã emboscada e à dissimulação são
relativamente pacíficos, não oferecendo maiores dificuldades na apreensão
dos seus elementos fiticos configuradores. Sintetiza Fragoso que “a traição
caracteriza-se pela pendia epela deslealdade (...). H á emboscada quando o agen- 405
te aguarda, por determinado lapso de tempo, a vinda da vítima ao lugar por onde
deve passar. Há dissimulação quando o agente oculta o propósito hostil”143.
Im portante perceber, portanto, que existem alguns elementos uni-
ficadores destas três formas de realização do delito. Além do agir inesperado
ou desleal, situações que por si sós dificultam ou tornam impossível a defesa

145 F R A G O S O , Lições de Direito Penal, p. 421.


da vítima, existe um terceiro elem ento que pode ser agregado às condutas
baseadas na traição, emboscada e dissimulação, que é o fator premeditação.
Só existe traição, emboscada e dissimulação quando há uma elaboração
preparatória do agir, um m om ento intelectivo anterior que antecipa um
resultado final (representação) facilitado exatamente pela confiança ou pela
surpresa.
A percepção destes três elementos caracterizadores das circunstâncias
previstas no art. 61, II, c do Código Penal, é fundamental para com preen­
der a segunda parte do dispositivo que perm ite sejam incluídos na agra­
vante outros recursos que dificultem ou tom em impossível a defesa do
ofendido. Em prim eiro lugar, fundamental expor a dúvida quanto à cons-
titucionalidade da parte final desta agravante. N ilo Batista há m uito tem ­
po alerta sobre os riscos que a utilização de tipificações abertas e exempli-
ficativas produz na função de garantia do princípio da legalidade penal.
Aliás, o autor refere casos m uito similares de formulações típicas e de
causas de aumento da pena incompatíveis com a legalidade penal exata­
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

m ente em razão da utilização de recursos extensivos à analogia e à exem-


plificação agregados a enunciações descritivas146.
Assim, se for considerada constitucional esta forma de imputação,
fundam ental definir os critérios de aplicabilidade, sob pena de se legitimar
o uso de uma cláusula extremamente aberta que perm itiria incluir qualquer
forma de agir como agravante. A limitação da extensão do significado do
recurso que dificultou ou tomou impossível a defesa da vítima é, pois, imperativa,
sob pena de que qualquer forma de agir que tenha resultado em um crime
consumado seja incluída neste preceito, confundindo-se o próprio agir
delitivo com a agravante (bis in idem). Aliás, não é incom um perceber
abusos e excessos no uso desta cláusula genérica, sobretudo nos crimes de
homicídio, em razão de a circunstância prevista no art. 61, II, c, ser repro­
duzida como qualificadora no art. 121, § 2S, IV do Código Penal.
Desta forma, seguindo a orientação indicada por Boschi, “o ‘outro’
406 recurso a que se refere o texto legal só pode ser aquele que, como a traição, a embos-

146 N ilo Batista menciona os casos do crime de ameaça — "ameaçar alguém, por palavra, es­
crito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico capaz de causar-lhe mal injusto e grave”
(art. 146 do Código Penal, grifou-se) — e da majorante prevista aos crimes sexuais — "a
pena é aumentada: (...) da metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, wn-
juge, companheiro, tutor, curador, p u c^to r ou empregador da vitima ou por qualquer outro títu­
lo tem autoridade sobre ela” (art. 226, II do Código Penal, grifou-se) (BA TISTA , /nfro-
dução Critica ao Direito Penal Brasileiro, p. 82).
cada ou a dissimulação, tenha caráter insidioso, aleivoso, sub-reptiáo, como aconte­
ce no mso em que a vítima ê colhida de surpresa, podendo sê-lo à traição ou mesmo
dissimuladamente ”14?. O planejamento do delito em meio a uma situação
inesperada é o fato que autoriza a incidência da agravante.
(e) M eios Insidiosos ou Cruéis: V eneno, F ogo, E xplosivo,
Tortura
12.8.10. Segue a mesma estrutura anterior a agravante prevista no
art. 61, II, d do Código Penal: em prego de veneno, fogo, explosivo,
tortura ou outro m eio insidioso ou cruel, ou de que podia resul­
tar perigo com um .
O Código Penal prevê como circunstância de aum ento da pena
provisória o em prego de meios que causam especial sofrimento ã vítim a e
que têm a potencialidade de gerar danos a terceiros (perigo comum). O
uso de veneno e a prática de tortura conformam, em princípio, formas de
agir direcionadas exclusivamente ã vítima, diferentemente da manipulação
de explosivos e de fogo, instrum entos que trazem consigo uma probabili­

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


dade de extensão das lesões a terceiros.
Em alguns casos, o emprego de determinados meios arrolados como
agravantes constitui elementares típicas, como, p. ex., o crime de tortura
(Lei n. 9.455/97) e a totalidade dos crimes de perigo com um arrolados no
Código Penal — incêndio (art. 250), explosão (art. 251), uso de gás ou

Í-: y,
asfixiante (art. 252), febricação, fornecimento, aquisição, posse ou transpor­

ie BEtEtai v.
te de explosivos ou gás tóxico ou asfixiante (art. 253), inundação (art. 254),
perigo de inundação (art. 255), desabamento ou desmoronamento (art.
256), subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento, difusão
de doença ou praga (art. 259). Logicamente em nenhum a destas hipóteses
w - rJrfUt

é aplicável a agravante por força da proibição da dupla incriminação.


Especificamente em relação ã tortura, a diferença entre o crime e a
agravante diz respeito ao foto de que, na prim eira hipótese (crime), o
elemento subjetivo do tipo é caracterizado pela vontade livre e consciente 407
de constranger alguém, com em prego de violência ou grave ameaça,
causando sofrimento físico ou m ental, com o fim de (a) obter informação,
declaração ou confissão da vítim a ou de terceira pessoa; (b) provocar ação
ou omissão de natureza criminosa; ou (c) causar discriminação racial ou
religiosa (art. l e, I, da Lei n. 9.455/97). Além disso, prevê a referida Lei

147 B O S C H I , Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 212.


como hipóteses aditivas ao crime (a) submeter alguém, sob sua guarda,
poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou
medida de caráter preventivo (art. l e, II) e (b) submeter pessoa presa ou
sujeita à medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio
da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal (art.
l e, § Ia). Desta forma, qualquer conduta direcionada aos fins arrolados na
Lei n. 9.455/97 constitui crim e em si mesmo. A aplicação da agravante,
portanto, pressupõe um fim diverso, não relacionado na lei específica.
Se verificado que um a ou mais condutas foram realizadas com plurali­
dade de vontade, e sendo esta pluralidade resultado de desígnios autôno­
mos, incidem as regras próprias do concurso de crimes (arts. 69 e 70 do
Código Penal).
Assim como a hipótese final da alínea ‘c’, se for considerada consti­
tucional a abertura do tipo agravante, o outro meio deve estar necessaria­
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO DREITD PENAL BRASILEIRO

m ente associado às características anteriormente descritas pelo legislador,


ou seja, o meio insidioso ou cruel pressupõe a imposição de um especial so­
frim ento ã vítima —p. ex., asfixia (mecânica ou tóxica )148 e afogamento
- e o perigo comum abarca a potencialidade de o dano atingir terceiros. Nas
palavras de Silva Franco, “ao referir-se a outro meio não ficou essa locução em
aberto, idônea para abarmr qualquer instrumento empregado pelo agente. Os exem­
plos identificados pelo legislador constituem os limites que ojulgador deve seguir para
identfitór esse outro meio”149.
(O Parentes e Vulneráveis
12.8.11. Constitui igualmente circunstância agravante ter sido o
crime praticado contra determinadas vítimas a que o ordenamento jurídico
confere um a especial forma de tutela (especial posição do sujeito pas­
sivo). Nesta condição podem ser arrolados dois grupos distintos: parentes
e vulneráveis.
As relações de parentesco estão dispostas no art. 61, II, e, que prevê
aumento de pena para os crimes praticados contra ascendente, descen­

148 “A asfixia é modo cruel de praticar o crime, que qualifica o homicídio, a m o as demais árcunstâncias
pKvistas na letra d, do art. 61, CP. A asfixia resulta de obstáculo à passagem do ar através das vias
respiratórias ou dos pulmões. A asfixia pode ser mecânica (enforcamento, imprensamento, estrangula­
mento) ou tóxica (produzida por gases tóxitvs)” ( F R A G O S O , Lições de Direito Penal, p. 422).
149 F R A N C O e S T O C O , Código Penal e sua Inteyretafoo, p. 361.
dente, irm ão ou cônjuge. A agravante é justificada pela ruptura com a
confiança inerente aos laços de parentesco.
Im portante referir, ainda, que a união estável não foi elencada na
alínea relativa às relações familiares. Apesar do entendim ento consolidado
de que os direitos e os deveres decorrentes da união estável são equivalen­
tes aos do casamento, a violência contra com panheiros é nom inalmente
enquadrada na alín ea/ A proteção jurídica da família se projeta, portanto,
ãs relações dom ésticas, de coabitação ou de hospitalidade (art. 62,
11,^. Implica dizer, portanto, que as causas de aum ento de pena provisó­
ria procuram estabelecer um maior grau de responsabilidade não apenas
ao sujeito que viola os deveres inerentes ao núcleo básico da família, mas
também àquele que ofende as pessoas que participam e freqüentam o am ­
biente familiar (amigos, empregados, hóspedes).
É interessante notar, porém, na linha indicada por Am ilton Bueno
de Carvalho, que o acréscimo de pena seria justificado apenas se esta con­
dição de parente ou de coabitação facilitasse, de alguma forma, a prática
do crime, ou revestisse no descumprimento de um dever jurídico de assis­
tência. Do contrário, “a exasperafio da pena, calcada tão somente no descumpri­
mento de um dever moral de fidelidade de um irmão para com outro [p. ex.],
agride o princípio constituríonal da secularização”l3°.
D entre as principais inovações, é possível destacar a inclusão, na
parte final da a lín e a / dos casos de violência contra a m u lh er pela Lei
n. 11.340/2006. Apesar de a violência contra a m ulher (esposa, compa­
nheira) estar contemplada na ideia geral da agravante, a Lei M aria da Penha
nom inou o sério problema de violência contra a m ulher no âmbito das
relações afetivas. O efeito, portanto, m uito mais do que simbólico, é o de
dar visibilidade a esta forma particular de violência131. O utro im portante
avanço proporcionado pelo estatuto foi o da extensão do conceito de vio­
lência doméstica e fam iliar contra a m ulher às relações homoafetivas (art.
5S, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006)l32.
Neste contexto de tutela diferenciada, em decorrência da reduzida
capacidade de reação defensiva, o Código Penal pune com especial rigor
as pessoas consideradas vulneráveis: criança, m aior de 60 (sessenta)

150 CARVALHO, Garantismo Penal Aplicado, p. 33.


151 CAMPOS e CARVALHO, Tensões A tuais entre a Criminologia Feminista e a Criminologia
C ritia, pp. 143-169.
lsí Nestesentido, conferirCARVALHO, Sobre a Criminalização da Homofobia (prelo).
anos, enferm o (enferm idade física ou psíquica) e m ulher grávida
(art. 61, II, h). O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece um
critério biológico para definição de criança: pessoa até 12 (doze) anos de
idade incompletos (art. 2S, oiput, da Lei n. 8.069/90) - entre 12 (doze) e
18 (dezoito) anos é estabelecido o período de adolescência. Em sentido
similar, o critério dos 60 (sessenta) anos, embora estabelecido antes da
edição da lei especial, segue as regras do Estatuto do Idoso (art. 1- da Lei
n. 10.741/2003).
Fundamental referir, porém, a importância de não serem absoluti-
zados os critérios cronológicos - direção oposta àquela que orienta a apli­
cação das atenuantes por força do princípio da interpretação mais favorável.
Desta forma, em relação ã agravante do crime praticado contra velho, p.
ex., sua aplicação deve estar vinculada às reais condições pessoais do ofen­
dido que denotem uma fragilidade (vulnerabilidade) que justifique o
agravamento da pena153.
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

Conforme exposto, é fundamental que o condenado tenha ciência


da especial condição de vulnerabilidade da vítima, fator imprescindível
para aplicação da agravante.
(g) Abuso de A utoridade e de Poder
12.8.12. A agravante do abuso de autoridade (art. 62, II, f,
prim eira parte) indica aquelas situações nas quais o autor pratica delito
excedendo dolosamente o exercício legítimo de determinados poderes que
dispõe nas relações privadas (familiares, empregatícias). Poder que se esta­
belece, segundo Fragoso, da relação de dependência da vítima com o
agente (empregador, tutor, curador),54.
O abuso de autoridade não se confunde com o abuso do poder,
em bora em ambos os casos a conduta delitiva seja caracterizada pelo exer­
cício desproporcional de um poder no qual o sujeito se encontra investido.
410 Na hipótese do crime praticado com abuso do po d er (art. 62, II, g,
primeira parte), o autor viola os deveres de responsabilidade que pressu­
põem o exercício idôneo de um cargo ou ofício público. Trata-se da mes­
ma lógica que im põe agravamento de pena nos casos de violação de
deveres in erentes a m in isté rio ou p ro físsão (art. 62, II, g, segunda

153 Neste sentido, C A R V A L H O , Garantismo Penal Aplicado, pp. 5-13.

134 F R A G O S O , Lições de Direito Penal,] p. 423.


parte). Determ inadas atividades pressupõem um a relação de confiança
entre as pessoas e é exatamente esta ruptura com o dever que justifica a
penalização. M inistério refere as atividades religiosas e litúrgicas.
Questão específica e que merece atenção é a agravante do art. 62,
II, i, que refere os crimes praticados quando o ofendido estava sob a
im ediata proteção da autoridade. Não se trata de prática de delito pelo
funcionário público responsável pela tutela da vítima, pois neste caso ha­
veria abuso de poder, mas de conduta praticada por particular contra al­
guém protegido por agentes públicos.
(h) C alam idade Pública ou D esgraça Particular
12.8.13. O Código Penal prevê, ainda, casos de agravamento de pena
em decorrência de calam idade pública ou desgraça particular (art.
62, II, j). Os casos de calamidade pública elencados no texto legal são
exemplificativos (incêndio, naufrágio, inundação), motivo pelo qual se
aplica o mesmo raciocínio utilizado para as agravantes previstas no art. 62,
II, c e d, ou seja, o desastre deve ser de natureza similar àquelas situações
descritas, como, p. ex., terremotos, maremotos, deslizamentos, alagamentos.
Entende-se por desgraça particular as situações limítrofes de em er­
gência que não atingem o coletivo social, mas apenas a(s) vítima(s), como
os casos de crimes praticados após acidentes (de trabalho, de trânsito) ou
em m om entos de extrem a fragilidade da vítima decorrente de luto, de
enfermidade ou moléstias graves.
(i) Em briaguez Preordenada
12.8.14. As situações de em briaguez preordenada (art. 61, II, Z)
pressupõem que o sujeito, em um m om ento anterior ao da embriaguez, ou
seja, em estado de sobriedade, opte, livre e conscientemente (actio libera in
causa), por utilizar substância entorpecente (álcool ou outras drogas) como
um meio facilitador da prática delitiva consistente no encorajamento ou na
desinibição.
A agravante descreve situação exatam ente oposta aos casos de em ­
briaguez decorrente de caso fortuito ou força maior, na qual há um a in-
gesta involuntária ou acidental, ou seja, no m ínim o culposa (art. 26, II),
que, dependendo da extensão dos efeitos, pode atuar como causa de ex­
clusão da culpabilidade ou como uma m inorante. A causa de aumento de
pena implica, pois, em uma conduta dolosa prévia, aceita, desejada e re­
presentada na fase intelectiva da conduta ilícita.
C oncurso de Pessoas
12.8.15. O rol de circunstâncias de aum ento da pena provisória é
finalizado com quatro hipóteses específicas de agravantes n o concurso
de pessoas (art. 62 do Código Penal).
A primeira hipótese tratada pelo Código Penal é a do organizador,
aquele que prom ove ou organiza a cooperação no crim e ou dirige
a atividade dos dem ais agentes (art. 62, 1). Segundo as lições de Nilo
Batista, o organizador é necessariamente coautor do delito, ainda que não
tenha qualquer envolvimento na sua execução, a “sua coautoria estáfundada
no domínio funcional do fato, e subsiste se e enquanto detiver este domínio. Não
provém da simples circunstância de organizar a engenharia do empreendimento de­
lituoso (...). É a qualidade de liderança na empresa criminosa, de chefia
(poder) sobre os demais que introduz o dom ínio funcional do feto”155. Nilo
Batista reitera a necessidade de um dom ínio do projeto. A mera organização,
sem o dom ínio do feto, equipararia esta função ã de um m ero técnico,
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

sendo inaplicável a agravante. D otti refere a figura da liderança intelectual,


o exercício de um poder que ordena comportamentos, não obstante ser
indispensável que a liderança se traduza em atos típicos dos verbos indica­
dos na lei (promover, organizar e dirigir)156.
A segunda circunstância de aum ento da pena provisória no concur­
so de agentes é relativa aos casos de coação e in duzim ento na execução
m aterial do crim e (art. 62, II). O Código Penal engloba na agravante
as duas espécies de coação (física e moral), em suas distintas modalidades
(resistível e irresistível). Independentemente da espécie e da modalidade,
o sujeito que coage (constrange, força) terceiro ã prática de delito, apesar
de não realizar m aterialmente a conduta, responde pelo delito e recebe
pena agravada. A diferença da forma (física ou moral) e da intensidade
(resistível ou irresistível) da coação produzirá conseqüências distintas em
relação ã punibilidade do coagido, segundo as regras de exclusão da con-
412 duta (coação física irresistível, art. 13, caput, do Código Penal), de excul-
pação (coação moral irresistível, art. 22, do Código Penal) e de atenuação
da pena provisória (coação física e moral resistíveis, art. 65, III, c, do C ó­
digo Penal). Os casos de coação refletem as situações de autoria mediata, ou
seja, quando “na realização de um delito, o autor se vale de um terceiro que atua

B A TISTA , Concurso d e ty en te s, p. 106.


li6 D O T T I , Cwrso de Direito Penal, p. 526.
como instrumento”'*1. Assim como na organização, o fundamento da agravan­
te reside no dom ínio (físico ou intelectual) que o autor possui sobre o fato.
As hipóteses de in d u ção refletem casos em que a ideia do delito não
está devidamente amadurecida ou sequer foi cogitada pelo autor da con­
duta. Não se trata, portanto, de um m ero apoio intelectual. É imprescin­
dível para a incidência da agravante que o indutor construa ou ajude a
construir no induzido o projeto do crime, não invariavelmente fazendo-o
crer que esta construção foi própria. Nas palavras de Paulo Queiroz, indu­
zir é “instigar, persuadir, incitar outrem a praticar o delito, desde que o induzido
não queria ou não tenha pensado em praticá-lo ou, ainda, não &teja decidido/de-
termimdo a tanto, uma vez que, se já tiver claramente formada a sua intenção de
levar adiante uma empreitada criminosa, a agravante não inrídirá”15S.
As situações elencadas no art. 62, III, do Código, são igualmente
casos de autoria mediata: agravamento de pena para quem in stig a ou d e ­
te rm in a a c o m e te r o c rim e a lg u é m sujeito à sua au to rid ad e ou
n ão punível e m v irtu d e de co n d ição ou qu alidade pessoal. O pri­
meiro caso (instigação ou determinação de sujeito ã autoridade) se enqua­

id H ftlil
dra na ob ediência hierárqu ica, regulada na segunda parte do art. 22 do
Código Penal. Lembra N ilo Batista que, embora concebível em estruturas

■tAi 4; nritâ
privadas de linha ‘mafiosa’, o fenômeno ocorre especialmente em estrutu­
ras estatais, pois a obediência hierárquica pressupõe um a relação de subor­
dinação de direito público. O superior hierárquico — e em alguns casos

1-: y,
inclusive o retransmissor da ordem, se possuir dom ínio sobre o decurso do

ie BEtEtai v.
acontecimento — é o autor mediato, respondendo pelo delito com a pena
agravada159. O executor figura como autor direto (imediato), sendo sua res­
ponsabilidade determinada pelo grau de consciência da legalidade da ordem
e pelas possibilidades reais de oposição ao comando.
w - rJrfUt

A segunda situação descrita no art. 62, III, é relativa ã instigação ou


determ inação de in im p u táv e l, sendo incluídas as duas hipóteses legais de
inim putabilidade referidas no Código: menores (art. 27) e portadores de
sofrimento psíquico (art. 26, caput). Em ambos os casos, o autor mediato 413
se utiliza do inimputável como um mero instrum ento para realização do
delito, respondendo, portanto, pelo resultado produzido com o aumento
de pena respectivo.

157 B A TISTA , Concuno de Agentes, p. 129.


158 Q U E I R O Z ,Direito Penal, p.410.
189 B A TISTA , Concurso de Agentes, p. 137.
C onstitui igualmente agravante no concurso de pessoas o com eti-
m ento de delito com interesse em obter vantagem (executa o crim e, ou
nele p a rtic ip a , m e d ia n te paga ou p ro m essa de reco m p en sa, nos
termos do art. 62, IV). Conform e se denota da leitura do tipo agravante,
não há necessidade de efetivação da vantagem, sendo suficiente para apli­
cação da agravante a simples promessa. Embora norm alm ente a promessa
ou o pagamento estejam vinculados a um a prestação de natureza econô­
mica, é admissível qualquer tipo de vantagem.
Paulo Queiroz indaga se esta agravante, diferente das demais, seria
aplicável exclusivamente ao executor. Segundo o autor, do ponto de vista
da censurabilidade da conduta, é indiferente em term os de responsabilida­
de se o m andante cometeu o crime pessoalmente ou delegou a tarefe para
terceiro. Conclui, portanto, que “só o executor deve responder por ela [agra­
vante], uma vez que a lei quis atingir diretamente o sujeito que, não tendo motivo
algum para cometer o delito, nele intervém por dinheiro, aceitando-o, ou até se de­
dicando, profissionalmente ou não, à atividade criminosa”'60.
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

1 2 .9 . Pena Provisória: Atenuantes em Espécie

12.9.1. Para além dos notórios efeitos na quantificação da pena


provisória que diferenciam as circunstâncias, o sistema de atenuantes não
possui a estrutura herm ética que caracteriza as agravantes. S ign^ca dizer
que a interpretação das atenuantes perm ite aberturas que são vedadas na
aplicação das agravantes. O exemplo mais evidente é o da previsão, no art.
66 do Código Penal, das atenuantes inominadas, estrutura normativa que
perm ite que o juiz, no caso concreto, valore diferentes situações (pessoais,
familiares, sociais, econômicas) e, entendendo serem relevantes, aplique-as
como causa de diminuição da pena provisória mesmo não figurando no
rol do art. 65.
414 A formalização das atenuantes inominadas consagra um a perspecti­
va dogmática direcionada ã flexibilização da interpretação das regras penais
nas hipóteses de favorecimento do réu. Se o princípio da legalidade impõe,
nas causas de agravamento de pena, barreiras para definição do grau má­
xim o de responsabilização, objetivando restringir a interpretação judicial,
em relação às atenuantes (grau m ínim o de responsabilização), estas

160 Q U E I R O Z , Direito Penal, p. 411.


fronteiras são extrem am ente voláteis e porosas. Neste aspecto, cabível
adequar ao tema as lições de Am ilton Bueno de Carvalho 161 acerca da dupla
diretiva na interpretação do princípio da legalidade em matéria penal: (a)
em relação às agravantes, a interpretação tem força centrípeta, direcionada
para o núcleo do texto legal (instrum ento restritivo da punição); e (b) em
relação às atenuantes, a interpretação tem potencialidade centrífuga, dirigida
para fora do texto (instrumento ampliativo dos direitos e das garantias
individuais).
(a) M enoridade R elativ a e V elhice
12.9.2. A prim eira atenuante arrolada no Código Penal é relativa ã
idade do a u to r do ilícito. Segundo o art. 65, I, a pena será reduzida
quando o agente for m enor de 21 (vinte e um), na data do fato, ou maior
de 70 (setenta) anos, na data da sentença.
O sistema de im putabilidade biológica (im putabilidade etária)
estabelecido no direito penal brasileiro pressupõe níveis diferenciados de

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


responsabilização adequados ao grau de maturidade do sujeito. A lei penal
brasileira estabelece uma presunção de que a m aturidade aumenta a
consciência da ilicitude e, consequentem ente, estabelece uma m aior
exigibilidade de conduta. Desta forma, a partir dos 12 (doze) anos de idade
o adolescente pode ser imputado pela prática de foto previsto em lei como

Í-: y,
crime (ato infracional), respondendo judicialmente e sendo sancionado nos
termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). A

ie BEtEtai v.
responsabilidade penal, porém, estabelece-se a partir dos 18 (dezoito) anos
(art. 228 da Constituição e art. T I do Código Penal). Contudo, apesar de
o jovem ser punido crim inalm ente, esta responsabilidade não é absoluta,
w - rJrfUt
pois a lei determ ina que a sanção seja dim inuída aos autores que praticam
delitos (data do foto) na faixa dos 18 (dezoito) aos 21 (vinte e u m ) anos.
Existe responsabilidade, porém o seu grau é reduzido.
A lógica é m u ito sem elh an te ã estabelecida aos casos de 415
in im p u ta b ilid a d e psíquica. O p o rta d o r de so frim en to psíquico
absolutamente incapaz será submetido ã medida de segurança. Sua sentença
é absolutória em razão de não ser responsabilizado criminalmente. Todavia,
se apesar do sofrimento psíquico o agente, no m om ento do foto, tinha
parcial compreensão do ilícito e alguma capacidade de determinação (semi-

161 C A R V A L H O , Lei para que(m)?, pp. 142-146.


-imputabilidade), será submetido à pena, incidindo a causa de redução do
pará^afo único do art. 26 do Código Penal (minorante).
Conform e será possível perceber posteriorm ente, a m enoridade
relativa é a mais relevante de todas as circunstâncias de determinação da
pena provisória, motivo pelo qual, em caso de concurso, deverá prepon-
derar sobre todas as demais.
A situação é distinta em relação aos m aio res de 70 (setenta) anos
na data da sentença condenatória. A previsão da atenuante não refere a
capacidade de compreensão do ilícito, mas decorre de uma opção político-
-crim inal em estabelecer um tratamento penal diferenciado ao idoso, como
ocorre em relação ao sunis etário (art. 77, § 2-, do Código Penal) e aos
prazos prescricionais (art. 115 do Código Penal).
Questão que merece ser refletida é acerca da possibilidade de dim i­
nuição deste lim ite etário estabelecido pelo Código Penal em razão de o
Estatuto ter definido como idosas as pessoas com idade igual ou superior a
60 (sessenta) anos (art. l s da Lei n. 10.741/2003). Conform e destacado
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

anteriormente, a estrutura das atenuantes perm itiria este tipo de interpre­


tação mais benéfica. Mas independentem ente da possibilidade de se
entender o art. 65, I, segunda parte, do Código Penal, revogado pelo art.
I 2 da Lei n. 10.741/2003162, a coexistência dos estatutos perm ite que o
critério dos 60 (sessenta anos) seja utilizado como atenuante inominada, se
dem onstrado que esta circunstância fática (idade) de algum a form a
influenciou na prática do delito ou é relevante na ^aduação da pena.
(b) D esco n h ecim en to d a L ei
12.9.3. Apesar de o art. 21, primeira parte, do Código Penal, esta­
belecer que o d esconhecim ento d a lei é inescusável, quando demonstrado
processualmente atua como atenuante, nos termos do art. 65, II.
Segundo Juarez Cirino dos Santos, a atenuante do desconhecimento
da lei é um legado do sistema causai do Código Penal de 1940, fundado
na dicotom ia erro de feto/erro de direito e regido pelo princípio da
ignorantia legis non excusat. Pondera o autor que o sistema finalista instituído
em 1984 se fonda na relevância do erro de proibição direto (existência,
validade e significado da lei penal), do erro de proibição indireto (existência
e lim ita jurídicos dejustificaçâo) e do erro de tipo permissivo (representação

162 Neste sentido, conferir M A R T Y , O Estatuto do Idoso, o Código Penal Brasileiro e o frin -
cipio Constitucional da Igualdade, p. 12.
errônea de situação justificante), que conduzem aos seguintes resultados:
erro de proibição inevitável (exclusão da culpabilidade); erro de proibição
evitável (redução da culpabilidade); erro de tipo (exclusão do dolo)l63.
Assim, “o princípio da culpabilidade determina a seguinte disciplina do erro
de proibição direto, na modalidade de desconhecimento da lei: a) se inevitável, isen­
ta a pena (...); se evitável, reduz a pena — n&ta hipótese poderia constituir circuns­
tância atenuante, mas razões metodológicas &igem sua valoração como causa espe­
cial de diminuição da pena"'64. O entendim ento é compartilhado por Paulo
Queiroz16^.
O desconhecimento da lei, como hipótese de erro de proibição
direto, estaria submetido, portanto, às regras do art. 21 do Código Penal,
determ inando a exclusão (inevitabilidade) ou a diminuição (evitabilidade)
da culpabilidade. A questão metodológica referida por Cirino dos Santos
diz respeito ao feto de que não sendo caso de exclusão de culpabilidade,
ou seja, sendo o erro evitável, há previsão de incidência da m inorante, nos
termos do art. 21, terceira parte, do Código Penal. Neste sentido, seria
inaplicável a atenuante em decorrência do concurso de causas de redução
entre a segunda (pena provisória) e a terceira (pena definitiva) fases do
sistema de aplicação da pena. Em face do caráter específico do art. 21,
terceira parte, em relação ao 65, II, e em decorrência de a m inorante re­
duzir com maior intensidade a pena do que a atenuante, aquela adquire
preponderância.
(c) M otivos R elevantes
12.9.4. C onfiguram casos de dim inuição da pena provisória os
crimes praticados por m o tiv o de relevan te v a lo r social ou m o ral (art.
65, III, a). Ambas as motivações dizem respeito às convicções pessoais
do(s) autor(es); são questões ideológicas, de foro íntim o, que expressam
posições individuais relativas aos temas afetivos, religiosos e políticos. A
diferença se traduz no valor externo que a conduta pretende tutelar: um
interesse particular ou privado (valor moral); um bem coletivo ou público
(valor social).
Os ilícitos motivados por valores sociais ou morais tangenciam, e
em inúmeros casos se confundem, aquelas condutas que no campo da teoria

163 S A N T O S ,Direito Penal, p.583.


164 S A N T O S ,Direito Penal, p. 584.
163 Q U E I R O Z , Direito Penal, p. 413.
política são denominadas direito de resistência. A própria dogmática penal
incorpora algumas situações mais agudas de colisão de valores como cau­
sas de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade (exercício regular de di­
reito, estado de necessidade justificante ou estado de necessidade excul-
pante). Alguns autores inclusive nom inam o direito de resistência, em suas
subespécies objeção de consciência e desobediência civil, como hipóteses
supralegais justificantes ou exculpantes166. Nas hipóteses em que o sujeito
age no limite da situação de objeção de consciência (valor moral) ou de
desobediência civil (valor social), não sendo casos de exclusão da ilicitude
ou da culpabilidade, opera a referida atenuante167.
Cuervo-Arango define objeção de consciência como a atitude daquele
que se nega a obedecer a um mandato de autoridade ou a um imperativo
jurídico, invocando a existência de um ditame pessoal (“no seio de sua cons-
dênda”) que o impede de realizar o comportam ento prescrito168. O con­
ceito de desobediência civil é similar, diferindo apenas na extensão dos
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

efeitos da conduta que ultrapassa o âmbito individual e atinge o coletivo.


Dois exemplos históricos são clássicos para compreender o direito de resis­
tência: (Ia) as reivindicações coletivas pelo direito de greve (desobediência
civil); (2 a) as manifestações individuais ou coletivas contra a obrigatorie­
dade do serviço m ilitar (objeção de consciência ou desobediência civil).
Na atualidade, inúm eras ações coletivas de desobediência civil sus­
citam debate sobre sua configuração (i)lícita. Alguns temas, inclusive,
chegaram ao Supremo Tribunal Federal —p. ex., a marcha da maconha,
considerada por inúmeros Tribunais estaduais como conduta de apologia
ao crime, foi declarada lícita pelo Supremo Tribunal Federal por constituir
direito ã livre expressão da consciência169. Juarez Cirino dos Santos cita
caso típico situado nesta zona interm ediária entre o lícito e o ilícito: “da­
nificar experimento rural de produção de sementes transgênicas capazes de fanos
indiscriminados à ecolo»gia e à saúde humana, configura ação por motivo de relevan-

166 Neste sentido, conferir C A R V A L H O , Pena e Garantias, pp. 239-255; D O T T I , Curso


de Direito Penal, p. 428; S A N T O S , Direito Penal, pp. 339-340.
167 Alj^ns autores entendem que os casos de direito de resistênciapoderiamser adequados
às atenuantes atípicas (inominadas) do art. 66 do Código Penal ( H E R I N G E R J R ., O b­
jeção de Consciência e Direito Penal, pp. 120-122).
168 C U E R V O - A R A N G O , La Objedén de Condencia al Servido Militar, p. 11.

165 Supremo Tribunal Federal, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 187,


Rei. M in. Celso de Mello, j. 15.06.2011.
te valor soáal, se não constituir ação justificada (estado de necessidade) ou situação
de exculpação supralegal fato de consciência)” 17°.
Situações similares, quando não refletirem condutas lícitas, se m o­
tivadas pelo legítim o fim político de reivindicação de direitos e de cum ­
prim ento da legalidade sonegada pelos agentes públicos, podem ser con­
cebidas com o casos de atenuação de pena como, p. ex., ocupação de terras
improdutivas; ocupação de praças e prédios públicos; marchas e bloqueios
de vias urbanas e de estradas, dentre outras.
Do ponto de vista individual (valor moral), motivações políticas
igualmente merecem m enor índice de responsabilização —p. ex., m ovi­
m ento pacifista de insubmissão ao serviço m ilitar obrigatório (art. 185 do
Código Penal Militar); ação anarquista de perturbação ou im pedim ento
de alistamento eleitoral (art. 293 do Código Eleitoral) ou de sufrágio (art.
297 do Código Eleitoral). São similares os casos em que o garantidor, por
motivação religiosa, nega a possibilidade de transfusão ã pessoa sob a sua
tutela; ou o sujeito que, por piedade, antecipa a morte de outrem (eutanásia).

y, ■tAA 4; DffiJ id Hftlil


Questões de cunho essencialmente afetivo e emocional igualmente
podem justificar a aplicação da atenuante, como, p. ex., ‘‘registrar, como
próprio, filho alheio, para protegê-lo”171 ou o ‘‘seqüestro do estuprador, pelo pai da
vítima da ação de estupro” 172, conforme indicado pela doutrina.
(d) A rrependim ento e R eparação

ie B E t E t a i kl
12.9.5. N a estrutura do direito penal brasileiro, são inúmeras as
normas penais que preveem efeitos positivos para o arrependim ento e a
reparação voluntária do dano. Determ ina o art. 65, III, b do Código,
a dim inuição da pena quando o autor do foto, de forma voluntária e com
'■i - rJrfUt
eficiência, evita ou m inora as conseqüências logo após a prática do crime
(arrependimento) ou repara o dano antes do julgam ento (reparação).
Os arts. 15 e 16 do Código Penal regulam situações similares. Nas
hipóteses de desistênáa voluntária e arrependimento eficaz (art. 15), o agente 419
desiste, por vontade própria, de prosseguir na execução do crim e (desis­
tência) ou im pede que o resultado ocorra (arrependimento). Nos termos
do art. 15, o autor responde apenas pelos atos já praticados. Nos casos de

170 S A N T O S , Direito Penal, p.585.


171 Q U E I R O Z , D ig ito Penal, p. 413.
172 S A N T O S , Direito Penal, p. 585.
arrependimento posterior (art. 16), o Código Penal prevê uma causa especial
de diminuição da pena (minorante) quando, nos crimes cometidos sem
violência ou grave ameaça ã pessoa, o agente, até o recebimento da denún­
cia ou da queixa, de forma voluntária, repara o dano ou restitui a coisa.
Em ambos os casos (desistência voluntária, arrependim ento eficaz e
arrependim ento posterior) existem diferenças significativas em relação ã
atenuante do art. 65, III, b. Em prim eiro lugar, no que tange ao arrepen­
dimento, a aplicação da atenuante não está vinculada ã eficácia do im pe­
dim ento do resultado (requisito presente no art. 15), bastando que haja um
esforço espontâneo para reduzir os efeitos da conduta delitiva. Nas lições
de D elm anto, “a eficiência de que a lei fala deve referir-se ao esforço feito pelo
agente para minorar as conseqüências e não ao resultado efetivo da sua tentativa. Ao
contrário do arrependimento eficaz, para a atenuante deste inciso III, b, não precisa
haver eficácia em seu resultado”173.
Em segundo lugar, relativo ã reparação do dano, a diferença entre a
PENAL B R A S IL E IR O

m inorante do art. 16 e a atenuante do art. 65, III, b — independente dos


distintos impactos na pena final —é de ordem temporal. Para aplicação da
m inorante, a reparação do dano deve ocorrer até a proposição da ação
penal pelo seu titular (denúncia ou queixa-crim e), enquanto a incidência
NO 3REIID

da atenuante pressupõe que o ato voluntário ocorra durante o processo


criminal, desde que em m om ento anterior ao da sentença.
Em bora as hipóteses de reparação de dano sejam mais comuns nos
DE S EG U R A N Ç l

crim es patrimoniais (públicos ou privados), em alguns casos determ inan­


do a própria extinção da punibilidade —p. ex., nos crimes previdenciários,
art. 168-A, § 2- (apropriação indébita previdenciária), e art. 337-A, § ls
FTNAS • MED WS

(sonegação de contribuição previdenciária), todos do Código Penal —, a


atenuante é aplicável em quaisquer espécies de crimes. A propósito, a
previsão legal de extinção de punibilidade para os casos em que ocorra
a reparação do dano, sobretudo nos crim es econôm icos (crim es
420 previdenciários e crimes contra a ordem tributária), perm ite, a partir do
princípio da isonomia de tratam ento, aplicação analógica aos crimes
patrim oniais não violentos como, p. ex., os crimes de furto, apropriação
indébita e estelionato174.

173 DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 131.


174 Sobre o tema, CARVALHO, Teoria e Prátia do Direito Alternativo, p. 176; e STRECK,
A Nova Lei do Imposto de Renda e a Rroteção das Elites, pp. 484-496.
(e) C oação, O rdem Superior e V iolenta E m oção
12.9.6. O art. 65, III, c do Código Penal, indica três possibilidades
de atenuação da pena: (1-) coação resistível; (2-) cum prim ento de ordem
de autoridade superior; e (3à) violenta emoção provocada por ato injusto
da vítima.
Nas hipóteses de c o a ç ã o física ou moral, diferentemen­
r e s is tív e l,

te dos casos de irresistibilidade (exclusão da conduta e da culpabilidade,


respectivamente), há configuração de delito com incidência de atenuante.
A previsão da atenuante engloba os casos em que há coação (física ou m o­
ral), mas, pelas circunstâncias do feto, havia alguma possibilidade real de
resistência, ou seja, de que o agente não praticasse o delito apesar da coação.
Por outro lado, conforme foi exposto anteriormente, a pena do coator é
sempre agravada, nos termos do art. 62, II, do Código Penal.
Ac o a ç ã o implica em emprego de um a força externa por
fís ic a

terceiro que influencia de form a determ inante a realização ou a omissão


de uma ação, invariavelmente obstaculizando a voluntariedade da condu­
ta. Nos casos de coação física são exemplares as situações em que o sujeito
tem o dever legal de agir (posição de garante) e é im pedido de realizar
o ato em decorrência de um fator físico externo — p. ex., o médico, o
socorrista, o bombeiro, o salva-vidas que, em determinada situação de
emergência, em decorrência do emprego de força bruta por terceiros, são
impedidos de prestar o socorro; os profissionais que atuam no controle de
atividades de risco, como, p. ex., os responsáveis pelo trânsito urbano, pelo
tráfego aéreo, pela malha ferroviária que, em razão de força externa, são
impedidos de realizar condutas ou de informar situações que evitem dano
iminente.
Diferente da vis física, na não há o emprego de força
c o a ç ã o m o r a l

bruta, mas de uma grave ameaça que constrange de forma irremediável o


sujeito a fazer ou a deixar de fazer algo (inexigibilidade de conduta diver­
sa). O que diferencia as formas de coação, portanto, é o meio empregado
pelo coator (força física ou grave ameaça). Os mesmos exemplos utilizados
acima podem ser adequados às hipóteses de vis moral, desde que se substi­
tua a força bruta pela grave ameaça. N o entanto, a doutrina apresenta alguns
casos específicos, como o sujeito que é forçado a realizar determ inada
conduta (p. ex., a transferência de valores, o fornecimento de senhas, a
facilitação de entrada em estabelecimentos públicos ou privados ou a exe­
cução m aterial de condutas típicas como homicídio, lesões corporais, furto,
roubo, dentre outras) sob ameaça da m orte de familiar seqüestrado.
Nas situações em que a coação não é absoluta, pois excluiria o deli­
to, haveria a possibilidade de aplicação da atenuante. Seriam aqueles casos
limítrofes de coação relativa, de situações de quase atipia (coação física
resistível) ou quase exculpação (coação m oral resistível)175.
Boschi traça um interessante paralelo entre as hipóteses de coação
absoluta e relativa, indicando os efeitos legais cabíveis: “em ambos os casos
de coação flsica ou moral, o agentejicará livre da pena desde que, é claro, a coação
seja irresistível, insuperável, não podendo ser entendida como tal, se o coacto tiver
chance de pedir socorro ou de levar o fato ao conhecimento e providência das
autoridades”176.
A mesma lógica é aplicável aos casos de c u m p r im e n to d e o r d e m

d e a u to rid a d e Nos termos do art. 22, 2i parte, do Código


s u p e r io r .

Penal, é isento de pena o sujeito que realiza conduta cumprindo uma ordem
não manifestamente ilegal emanada de superior hierárquico. Nestes casos
de exclusão da culpabilidade, há uma real aparência de legalidade na ordem
que, aliada ao comando do superior, torna inexigível uma postura crítica
PENAL B R A S IL E IR O

do subordinado. O comandado acaba sendo utilizado como um instru­


mento, um meio de execução do delito realizado em nom e de terceiro.
Por este motivo, apenas o prolator da ordem é punido, sendo sua pena
inclusive agravada conforme determ ina o art. 62, III, do Código Penal.
NO 3REIID

Todavia, há casos em que a ordem emanada pelo superior hierárquico


apresenta traços de ilegalidade, situação que perm ite a crítica pelo
DE S EG U R A N Ç l

subordinado. Sendo cumprida, respondem ambos pelo delito, aplicada a


atenuante ao autor material da conduta.
FTNAS • MED WS

175 Nos crimes econômicos, p. ex., ajurisprudência nacional consagrou hipóteses de ine-
Mgibilidade de conduta diversa quando o diretor da empresa é impelido a sonegar tributos
em razão da situação econômica da empresa. Assim, aplicável a eximente quando estabe­
lecido o conflito de deveres entre o cumprimento da obrigação ttibutáría e os deveres
trabalhistas (pagamento de salário dos empregados). Logicamente que os Tribunais esta­
beleceram critérios de aplicação da causa de exculpação —p. ex., situação pré-falimentar
da empresa, demonstração de ausência de outros recursos, transferência de patrimônio
pessoal dos diretores para a empresa, inexistência de distribuição de lucro aos proprietários
da empresa no período de descumprimento das obrigações tributárias, entre outras.
N o entanto, é possível dizer que não sendo caso de exclusão da culpabilidade,
demonstrada a dificuldade econômica da empresa e o confiito de deveres, aplicável a
atenuante da coação moral resistível. Neste sentido, CARVALHO, A Co-Responsabilidade
do Estado nos Crimes Econômicos, pp. 142-149.
176 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 231.
A atenuante da influência de violenta em oção provocada por
ato injusto da vitim a engloba os casos em que há uma reação do sujeito
a um ato anterior ilícito realizado pela vítima. Pressupõe, portanto, uma
conduta de oposição a um delito sofrido. Se a conduta for moderada, com
a utilização adequada dos meios disponíveis, repelindo injusta agressão,
atual ou im inente, o autor estaria amparado pela legítim a defesa (art. 25
do Código Penal). N o entanto, não sendo configurada a situação exclu­
dente, em decorrência da ausência de qualquer um dos seus requisitos
objetivos — (a) agressão injusta, atual ou im inente; (b) tutela de direito
próprio ou alheio; (c) uso moderado dos meios —, cabível a atenuação pre­
vista no art. 65, III, c, injine, do Código Penal.
A lei penal brasileira prevê, em alguns tipos penais específicos (ho­
micídio e lesão corporal), a violenta emoção como circunstância minorante.
N o entanto, a incidência das figuras privilegiadoras do art. 121, § 1° in
fine, e do art. 129, requer não apenas a influência, mas que a conduta seja
dominada pela violenta emoção. O dom ínio implica, necessariamente, em
uma intensidade em grau superior ao da influência, “cotfigura emoção que se
apresenta intensa, absorvente, como verdadeiro choque emocional”177. Nas lições de
Boschi, a atenuante se diferencia da m inorante porque “a primeira pressupõe
que o indivíduo atue em condições de poder desistir do projeto criminoso. A última,
própria do homicídio privilegiado, pr^supõe que a violenta emoção comprometa a
vontade criminosa, isto é, obnubile a mente e, assim, exerça um papel coadjuvante
no episódio”™.
C onfissão
12.9.7. A antiga parte geral do Código Penal de 1940 previa como
atenuante de pena ter o agente “confessado espontaneamente, perante a autori­
dade, a autoria do crime, ignorada ou imputada a outrem” (art. 48, IV, d do C ó­
digo Penal, redação original). Neste caso, constituía requisito para aplicação
da atenuante da confissão não apenas a espontaneidade da manifestação,
mas que a autoria do delito fosse desconhecida ou atribuída a terceiro.
Com a Reform a de 1984 a simples confissão da autoria do crime é
suficiente para a atenuação da pena, mesmo que o delito já tenha sido
formalmente imputado ao confidente, por ocasião da investigação policial
(indiciamento) ou da propositura da ação penal (denúncia ou queixa-

DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 248.


1,8 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 232.
-crim e). Decorrência lógica da afirmação é o fato de não haver qualquer
tipo de incompatibilidade da confissão mesmo nos casos em que a pessoa
é presa em flagrante delito179.
De igual forma, não é necessário para a incidência da atenuante o
arrependimento. Aliás, os motivos que levam o sujeito a confessar a práti­
ca do delito são irrelevantes, bastando que a confissão seja espontânea.
Com a reforma do C ódigo de Processo Penal pela Lei n. 11.719/2008,
foi alterado o m om ento do interrogatório do réu. N o regime processual
anterior, a manifestação do acusado ocorria como ato inaugural do proce­
dim ento de instrução, ou seja, o réu era interrogado antes da oitiva das
testemunhas de acusação e de defesa e dos demais procedim entos de
formação da prova (realização de perícia, juntada de documentação, dentre
outros). N o entanto, a Lei n. 11.719/2008 alterou o art. 400 do Código
de Processo, determ inando que “na audiência de instrução ejulgamento, a ser
realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de
declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela
PENAL B R A S IL E IR O

defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos
esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas,
interrogando-se, em seguida, o acusado”. Assim, o depoimento do acusado
ocorre após a consolidação da prova, sobretudo da prova acusatória, e
NO 3REIID

sinaliza o fim do procedim ento instrutório. Embora possa ocorrer em


qualquer fase do procedim ento (depoimento pessoal na fase inquisitorial,
DE S EG U R A N Ç l

p. ex.), na atual realidade do processo penal brasileiro, o m om ento


característico da confissão é o do interrogatório judicial.
Nos term os do art. 186 do Código de Processo Penal, o juiz, depois
de qualificar o acusado e cientificar sobre o conteúdo da acusação,
FTNAS • MED WS

informará ao acusado o direito de perm anecer calado, de não responder às


perguntas formuladas e de que o eventual silêncio não importará em con­
fissão e não será interpretado em prejuízo da sua defesa. Após comunicar
o direito ao silêncio, o julgador deve iniciar o procedim ento do interro-
424 gatório, cuja prim eira parte versará sobre a pessoa do réu — “a primeira
parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão,
oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamen­
te se foi preso ou processado alguma v& e, em caso afirmativo, qual o juízo do
processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a

179 Neste sentido, exemplificativamente, D O TTI, Curso de Direito fònal, p. 531; FRAG O­
SO, Lições de Direito Penal, p. 433.
cumpriu e outros dados familiares e sociais” (art. 187, § 1° do Código de
Processo Penal). N a segunda parte, o magistrado indagará, primeiro, se é
“verdadeira a acusação que lhe éfeita" (art. 187, § 2a, I do Código de Processo
Penal) e, não sendo, a que atribui a acusação (art. 187, § 2a, II e seguintes
do Código de Processo Penal).
A confissão ocorre norm alm ente neste m om ento em que o juiz
indaga ser verdadeira a acusação. Sendo caso de confissão, frequentemen­
te as perguntas subsequentes versam sobre os motivos que levaram ã prá­
tica do delito e as circunstâncias em que o fato ocorreu.
Im portante referir que a confissão da autoria do feto não implica,
necessariamente, a confissão do delito imputado. Significa dizer que é
aplicável a atenuante mesmo nos casos em que o acusado confessa ser o
autor do feto, mas nega que a conduta im putada constitua crime —p. ex.,
réu alega, na seqüência da confissão, que agiu amparado por causa legal ou
supralegal de exclusão da tipicidade, da ilicitude ou da culpabilidade. Em ­
bora existam decisões e posições doutrinárias em sentido oposto, a questão
tende ã pacificação180.
12.9.8. Am ilton Bueno de Carvalho supera os limites tradicionais
do debate sobre o conteúdo da atenuante e propõe uma extensão dos seus
efeitos em analogia ã d e la ç ã o (causa especial de diminuição da
p re m ia d a

pena).
A delação foi incorporada no ordenamento brasileiro em 1990, com
o advento da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90). A justificativa
da institucionalização legal da colaboração processual foi a da necessidade
de sofisticação dos mecanismos de repressão dos crimes realizados por
organizações criminosas. Com o resultado da colaboração, a lei penal bra­
sileira previu inúmeras conseqüências (prêmios): redução da pena, fixação
de regim e menos gravoso para cum prim ento, substituição da pena priva­
tiva de liberdade por restritiva de direito, extinção da punibilidade. Os
efeitos legais foram reafirmados e ampliados em estatutos subsequentes ã
Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 9.034/95, Lei n. 7.492/86, Lei n.
8.137/90, Lei n. 9.613/98, Lei n. 9.807/99 e Lei n. 11.343/2006)18'.

180 Neste sentido, exemplificativamente, BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação,
p. 235; DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 132; Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 415.
181 Sobre os efeitos específicos em cada estatuto penal, conferir LIMA, D elato Premiada e
Confissão, pp. 92-100; CARVALHO e LIMA, Delação Premiada e Confissão, pp. 244-248.
A hipótese defendida por Am ilton Bueno de Carvalho é a de que
há um a paridade de natureza jurídica entre os institutos da confissão e da
delação: tanto um quanto o outro pressupõem a atribuição da autoria do
delito, situação que produz significativos efeitos na instrução processual182.
Neste sentido, ambas atuam como causa de redução da pena atenuante ou
minorante (esfera penal material) e como m eio de prova (esfera processual
penal),83.
Apesar da similar natureza jurídica, os institutos possuem um a dia­
metral oposição de natureza ética: a confissão é baseada na autoatribuição
(assunção) de responsabilidade, o sujeito admite o delito e se submete aos
seus efeitos; a delação se caracteriza pela imputação de responsabilidade a
um terceiro, isto é, o delator intenta eximir-se ou m inorar sua responsa­
bilidade, atribuindo a outrem as conseqüências do ato. Não por outra razão
que a doutrina evoca “uma postura étitó do agente, que reconhece [ao confessar]
o ato ilkito praticado”™*; e é praticamente unânim e em afirm ar o caráter
antiético da delação183.
PENAL B R A S IL E IR O

Neste sentido, parece injustificável que um instituto jurídico espú­


rio confira maiores vantagens jurídicas que outro, da mesma natureza,
reconhecidamente ético. A propósito, se a legislação respeitasse m inim a­
mente uma orientação ética, os efeitos jurídicos da confissão deveriam ser
NO 3REIID

mais benéficos que os da delação.


Todavia, sendo impossível inverter os preceitos legais, entende-se
DE S EG U R A N Ç l

que seja possível m inim izar os efeitos do tratam ento desigual dos institutos
por meio de um a interpretação conforme a Constituição, que atribuiria,
via analogia, ã confissão o mesmo efeito penológico previsto para a delação.
FTNAS • MED WS

Assim, ao invés de a confissão atuar como atenuante, seria capacitada como

182 CARVALHO, Atenuantes (em especial da confissão), p. 123.


183 CARVALHO e LIMA, Delação Premiada e Conjissão, p. 251.
184 BRANDÃO, Curso de Direito Penal, p. 353.
188 Neste aspecto, Munoz Conde adverte que “dar valor probatório à declaração do coimputado
signifiw dar e^aço à violação do direito fandamental de presunto de inocência e a práticas que podem
conmter o pmcesso penal em uma autêntica fonte de chantagens, acordos inteKssados entre os acusa­
dos e a Polida e a Polüia e o Ministério Público, com a conseqüente retirada da acusado contra uns
para lograr a incriminação (e condenação) de outros. Nada bom para o Estado de Direito”
(M UNO Z CONDE, La Búsqueda de la Verdad en el Proceso Penal, p. 88).
No mesmosentido, conferir a extensa pesquisa de LIMA, Delação Premiada e Confissão,
pp. 75-92.
uma causa especial de diminuição de pena, com incidência de redução de
1/3 a 2/3 na pena provisória. Conforme o argum ento de A m ilton Bueno
de Carvalho, “como a confissão aspontânea é a mais preáosa das atenuantes e
possui, em nível analógico, elemento de identidade com a premiação à delafio, o
limite da pena, no reconhecimento daquela, deve obede&r ao fator de redução desta:
máximo de dois terços, inclusive abaixo do mínimo abstratizado”™6.
(g) M ultidão em T um ulto
12.9.9. Aplica-se, igualmente, a atenuante nos casos em que o delito
é cometido sob a influência de m ultidão em tum ulto (art. 65, III, e
do Código Penal). A circunstância refere os casos em que a conduta indi­
vidual segue o impulso ou a orientação imposta pela massa. Nestes casos,
a vontade individual se dilui no conjunto de ações praticado pelo grupo,
atenuando a responsabilidade. O único requisito de aplicação da causa de
diminuição da pena provisória é que o autor não tenha provocado, com
uma atitude anterior, o tum ulto. São situações típicas de ilícitos praticados
em espetáculos de grande porte como shows, comícios e eventos esportivos.
(h) A tenuantes Inom inadas
12.9.10. O art. 66 do Código Penal cria a figura das atenuantes
inom inadas ou atenuantes atípicas, estabelecendo que a pena provisó­
ria poderá ser reduzida em razão de circunstância relevante, anterior ou
posterior ao crime, mesmo não prevista expressamente em lei. A abertura
que as atenuantes inominadas provocam no sistema de penas perm ite a
incorporação de inúmeras situações peculiares, próprias do caso em julga­
mento, no sentido de buscar uma melhor individualização da sanção.
Provavelmente em decorrência do apego dos atores processuais ã
legalidade estrita (dogmatismo), a jurisprudência é bastante pobre no que
diz respeito ã aplicação das atenuantes inominadas, mesmo nos casos em
que há previsão formal de atenuantes em leis especiais e que poderiam ser
apropriadas por meio da analogia in bonam partem (p. ex., art. 14 da Lei n.
9.605/98). A doutrina não difere m uito desta tendência jurisprudencial,
em bora seja um pouco mais generosa na proposição de situações de
atenuantes atípicas. Com frequência as hipóteses de aplicação elencadas
pela dogmática referem casos extremos de vulnerabilidade pessoal —p. ex.,
a m iserabilidade/penúria extrem a nos crimes patrimoniais; acometimento

186 CARVALHO, Atenuantes (em espeaal da confissão), p. 123.


de doença gravíssima ou estado term inal; ou, ainda, hipóteses altamente
moralistas, dificilm ente adequadas aos postulados da secularização do
direito penal como, p. ex., o arrependimento moral; a conversão ã caridade;
a militância religiosa; a adesão a grupos de autoajuda.
Entretanto, a dogmática crítica tem reinterpretado as atenuantes
atípicas e emprestado um sentido social ao processo de individualização da
pena como, p. ex., a adoção de certas situações de coculpabüidade como
fatores de minimização da responsabilidade penal. Juarez Cirino dos San­
tos sustenta que nos “crimes realizados no contexto de condições sociais adversas,
por sujeitos marginalizados do mercado de trabalho e do processo de consumo, insu­
ficientes para configurar o conflito de deveres como situação de exculpação, podem
caracterizar a drcunstância atenuante inominada do art. 66, porque exprimiriam
hipóteses de coculpabilidade da sociedade organizada no poder do Estado, pela so­
negação de oportunidades sociais”197.
Conforme amplamente demonstrado na primeira parte deste estudo,
quando trabalhada a concepção agnóstica de culpabilidade, especialmente
PENAL B R A S IL E IR O

no que diz respeito ao giro conceituai da coculpabilidade à culpabilidade pela


vulnerabilidade, a ideia de corresponsabilidade social e estatal pelo delito,
invocada por Zaffaroni188, perm ite que determinadas situações de preca­
riedade individual e de riscos sociais vivenciados pelo imputado possam
NO 3REIID

ser valoradas e priorizadas como atenuantes na determinação do grau de


responsabilidade criminal.
DE S EG U R A N Ç l

É inegável que em um Estado Democrático de Direito, fundamentado


na cidadania (art. I9, II, da Constituição) e na dignidade da pessoa humana
(art. 1° III, da Constituição), que projeta com o um dos objetivos da
FTNAS • MED WS

República a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais


(art. 39, III, da C onstituição), devem ser criados m ecanism os de
m inimização do impacto da inefetividade da burocracia estatal no que
tange ã satisfação dos direitos sociais, econômicos e culturais. U m destes
^ 2g espaços privilegiados de análise é o processo penal, local em que emergem

187 SANTOS, Direito Penal, p. 588.


188 ZAFFARONI, Política Criminal Latinoamericana, pp. 164-167; ZAFFARONI, Sistemas
Penales y Derechos Humanos en América Latina, p. 59; ZAFFARONI, M anual de Dereiho
Penal, p. 520; ZAFFARONI, E m Busca das Penas Perdidas, p. 268; ZAFFARONI &
PIERANGELI, M anual de Direito Penal Brasileiro, p. 611; ZAFFARONI et al., Dere&o
Penal, p. 626; ZAFFARONI et al., M anual de Derecho Penal, pp. 513-517; ZAFFARONI
et al., Direito Penal Brasileiro I, pp. 47-49.
as principais contradições da sociedade excludente. A análise concreta do
absenteísmo estatal na esfera dos direitos sociais, econômicos e culturais
perm ite, pois, uma valoração compensatória das responsabilidades dos indivíduos
inferiorizados por condições adversas, nos termos apontados por Juarez Cirino
dos Santos189. Na consagrada definição de coculpabilidade de Zaffaroni,
em determinadas situações de sonegação de possibilidades a uma parcela
vulnerável (e não necessariamente m inoritária) da população, existe uma
corresponsabilidade que a sociedade deve assumir, “(...) responsabilidade que
lhe incumbe pelas possibilidades que negou ao infrator em comparação com as que
proporcionou a outros”'90.
N ote-se que, no direito penal brasileiro, a própria legislação impõe
como dever do julgador avaliar as oportunidades sociais oferecidas ao réu
e prevê, expressamente, situações de corresponsabilização do Estado, em
forma de atenuação da pena, decorrente da sonegação de direitos sociais
como a educação, a saúde e o trabalho —p. ex., art. 187, § l 9, do Código
de Processo Penal (inquirição do réu, no interrogatório, sobre os meios de
vida ou profissão e as oportunidades sociais oferecidas); art. 60 do Código
Penal (redução da pena de multa em decorrência da situação econômica
do réu) e art. 14, I, da Lei n. 9.605/98 (atenuação da pena em face do
baixo grau de instrução ou escolaridade)191.
Apesar de fortes resistências ã tese — a maioria fundada em uma
concepção liberal-individualista refratária que não consegue reconhecer
as omissões do Estado em m atéria de direitos sociais, econômicos e cultu­

185 "A abertura do conaito de inexigibilidade para as condições wais de vida do povo pam e alterna­
tiva capaz de contribuir para democratizar o dim to penal, reduzindo a injusta criminalização de
sujeitos já penalizados pelas condições de vida social (...). Hoje, como valoração wmpensatéria da
responsabilidade de indivíduos inferiorizados por condições sociais adversas, é admissível a tese da
coculpabilidade da sociedade organizada, K^onsável pela injustiça das condições sociais desfavoráveis
da população marginalizada, determinantes de anormal motivafio da vontade nas decisões da vida”
(SANTOS, A Moderna Teoria do Fato Punível, p. 269).
A tese de Juarez Cirino dos Santos havia sido exposta e trabalhada em outros dois
momentos de análise da aplicação da coculpabilidade como atenuante atípica (CAR­
VALHO, Pena e Garantias, p. 88; CARVALHO, Aplicação da Pena no Estado Democrático de
Direito, p. 83).
150 ZAFFARONI, Política Criminal ^tinoamericana, p. 167.
151 Sobre a extensão das atenuantes inominadas, a incorporação da tese da coculpabilidade
e os antecedentes legislativos, conferir CARVALHO, Aplicação da Pena no Estado
Democrático de Direito, pp. 74-83.
rais — são significativas as adesões doutrinárias à necessidade de pondera­
ção judicial das situações de vulnerabilidade social do réu no m om ento do
delito e que devem impactar na determinação (individualização) da pena.
D entre os posicionamentos, significativo o entendimento de Alberto Silva
Franco, que sustenta “o Estado é mponsável pela não implementação de políticas
sociais na área da educação e do emprego e dar tratamento igualitário, do ponto de
vista punitivo, tanto àquele que teve garantido, por seu estrato social, todo tipo de
chance na vida, quanto àquele que não dispôs de nenhuma oportunidade social para
realizar seus projetos de vida. Nada mais justo que a segunda situação seja devida­
mente considerada pelo ju iz como uma rírcunstânría beneficiadora do autor da in­
fração penal”'92.
N o entanto, im portante lembrar o debate realizado anteriormente
no sentido de a tese originária da coculpabilidade —sobretudo o sentido
atribuído na teoria da prevenção social de M arat e na prática jurisprudencial
de vanguarda de Magnaud —ter partido de alguns pressupostos já supera­
dos pelas ciências sociais contemporâneas, inclusive pela crim inologia
PENAL B R A S IL E IR O

(crítica)193. Zaffaroni lembra que, em sua formulação prim eira, a tese da


coculpabilidade (a) permanecia extrem am ente vinculada a uma ideia cau­
sai de que a criminalidade seria efeito direto da pobreza (determinismo
economicista), situação que (b) subestimava ou relevava a seletividade
NO 3REIID

crim inalizante do sistema penal, o que pressuporia aceitar o seu funciona­


m ento como igualitário194.
DE S EG U R A N Ç l

Exatamente para superar os problemas derivados da redução causai


do delito ã pobreza e de forma a inserir na análise a valoração da seletivi­
dade do sistema penal, Zaffaroni constrói a hipótese da culpabilidade
FTNAS • MED WS

pela vulnerabilidade, que incorpora os postulados da coculpabilidade e


atualiza a sua interpretação a partir do giro paradigmático operado pela

1,2 FR A N CO e STOCO, Código Penal esua Inteipretação, p. 379.


430 No mesmo sentido, BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, pp. 237-238;
CARVALHO, Fundamentação Constitucional do D im to Penal, p. 72; CARVALHO, Garan­
tismo Penal Aplicado, pp. 75-88; M ARQUES, Uma AnólUe Critim do Jutzo de Censura Penal,
pp. 89-90.
153 Neste ponto, verificar a primeira parte do trabalho, “Bases para Delineamento da
Contxpção Agnóstim (ou Negativa) de Culpabilidade: da Coculpabilidade à Culpabilidade pela
Vulnerabilidade” (item 7.9) e, no mesmo sentido, CARVALHO, Aplicação da Pena no Esta­
do Democrático de D im to, pp. 83-89.
1,4 ZAFFARONI et al., Derecho Penal, p. 626.
criminologia crítica em relação aos modelos etiológicos de explicação do
fenômeno crime. A ideia de culpabilidade pela vulnerabilidade perm ite
ampliar os critérios de verificabilidade das situações de riscos individuais
para além das condições econôm icas e culturais (coculpabilidade),
introduzindo no campo dogm ático a análise do desigual processo de
criminalização secundária (seletividade). Desta forma, conforme destacado
no m om ento de construção dos pressupostos agnósticos da culpabilidade,
a verificab ilidad e do risco (vulnerabilidade) oco rre a p a rtir do
reconhecimento da posição ou do estado de vulnerabilidade do sujeito ou do seu
esforço pessoal para a vulnerabilidade (exposição ã seletividade criminalizante).

12.9.11. As situações de vulnerabilidade, sobretudo as primeiras


(posição ou estado de vulnerabilidade individual), perm item um compar­
tilham ento da responsabilidade individual pelo delito com o Estado, o que
significa, em termos pragmáticos de aplicação da pena, uma atenuação da
sanção. A análise da vulnerabilidade individual e social do sujeito
criminalizado permite, em termos dogmáticos, uma melhor adequação do
procedim ento judicial de determ inação da pena aos princípios da indivi­
dualização. N o sistema penal brasileiro esta possibilidade tam bém se ins­
trum entaliza nas atenuantes atípicas.
N o entanto, é fundamental registrar que para além das situações de
vulnerabilidade individual ou social existem outros elementos relevantes
que merecem ser analisados pelo julgador. Dado im portante de avaliação
na definição da pena, p. ex., é o próprio custo individual derivado do
submetimento ao processo criminal. A dogmática do processo e a teoria
criminológica são unânimes em afirm ar ser o processo penal, na qualidade
de instrum ento da persecução, um a pena em si mesmo. Assim, a não
observância da forma regulam entar de operacionalização do sistema de
administração da justiça crim inal, no caso concreto, pode produzir um
desproporcional efeito punitivo (sobrepunição), situação que deve ser
compensada em term os sancionatórios.
Outrossim, determinadas situações limítrofes traduzem alguns pro­
blemas dogmáticos resolvidos de forma ortodoxa pela teoria do delito,
mas que devem ser considerados de forma bastante cuidadosa na deter­
minação da sanção, sob pena de a valoração do crim e resum ir-se ã lógi­
ca binária de sua afirmação ou negação. Isto porque são inúm eras as si­
tuações fáticas que demonstram, no caso concreto, existir um horizonte
tênue entre tipicidade e atipicidade, licitude e ilicitude, culpabilidade e
inculpabilidade, punibilidade e impunibilidade. São situações limítrofes e
que devem igualmente ser observadas no m om ento de definição do grau
de responsabilidade criminal.
Em termos metodológicos, seria possível classificar dois grupos de
análise aptos a serem valorados como atenuantes inominadas: primeiro, as
situações de vulnerabilidade, decorrentes de vulnerabilidade individual, social
ou processual; segundo, os casos de quase exclusão do delito ou quase extinção da
punibilidade, ou seja, situações fronteiriças entre a existência e a inexistên­
cia do feto típico, ilícito, culpável e punível.
N o prim eiro grupo, relativo ãs situações de vulnerabilidade, são
agregados aos casos de vulnerabilidade individual e social os problemas
decorrentes da inadequada administração da justiça criminal. Assim, seriam
hipóteses de inclusão, como atenuantes inominadas, as seguintes situações:
( l1) S itu a ções de vu ln era b ilid ad e in d iv id u al: problem as
pessoais e familiares do condenado que são relevantes, inclusive
sob o ponto de vista hum anitário, como, p. ex., as hipóteses
elencadas nos Decretos de Indulto: (a) pessoas com filho ou
filha m enor de dezoito anos ou com deficiência que necessite
cuidado (art. I9, VI, do Decreto n. 7.648/2011); (b) pessoas
com paraplegia, tetraplegia ou cegueira (art. 1° X, a e b do
D ecreto n. 7.648/2011); (c) pessoas com doença grave e
permanente que apresentem limitação de atividade e restrição
de participação ou exijam cuidados contínuos (art. 1° X, c do
Decreto n. 7.648/2011). Além dos casos em que a própria lei
prevê redução da pena em sede de execução, conform e
assinalado, outros fatores são possíveis de análise, como, p. ex.,
os casos de (d) dependência química; e de (e) sofrimento ou
desordem psíquica, nas hipóteses em que não se adéquem ao
art. 26, caput e parágrafo único, do Código Penal.
(2-) Situações de vulnerabilidade social: casos tradicionais de
coculpabilidade e que indicam a ausência do Estado na
prestação de serviços básicos determinados em lei, como, p.
ex., os casos de (a) analfabetismo; (b) baixo grau de instrução
ou escolaridade; (c) miserabilidade; e (d) desemprego.
(3-) Situações de vulnerabilidade processual: situações de
ausência ou má gestão na administração da justiça crim inal ou,
ainda, de feita de cuidado processual, como, p. ex., (a) excesso
de prazo na prisão provisória; (b) dem ora na instrução e no
julgam ento do caso penal193; (c) submetimento à prisão provi­
sória em processo anterior que tenha resultado em absolvição196;
(d) descum prim ento estatal dos deveres constitucionais de
garantia de tratamento humanitário em caso de encarceramento
(prisão processual aplicada no processo em julgam ento ou
prisão definitiva no cum prim ento de pena por crime anterior).

19í Segundo Amilton Bueno de Carvalho, "osprazos, contra o ddadão, devem ser obedecidos
diligentemente. Evidente que se admite alguma demora, mas sempK vindo de transtorno importante
não causado pelo achado (o imponderável)” (CARVALHO, Garantismo Penal A pliado,p. 254).
Ao expor caso de negligência judicial, o autor aduz os argumentos que serão paradig­
máticos na formação de precedentesno Tribunal de Justiça do R io Grande do Sul (TJRS):
"depois, o longo e injustificado tempo de tramitação do processo — a denúncia fo i recebida em
07.11.1994 e a sentençasé fo i publicada quase oito anos d^ois, em 10.08.2002—, somado aofato
de o apelante não ter se envolvido em outro tyisódio criminoso, ao meu juizo, se exibe como
circunstância relevante, posterior ao delito, a wnfigurar a atenuante inominada prevista no artigo 66

id H ftlil
do Código Penal. Aqui, ponderei dois a^ectos: Um, que a excessiva duração da demanda penal,
como na espécie pKsente, por rnlpa exclusiva do aparelho judicial, viola direito fitndamental do
homem — o de ter um julgamento rápido (artigo P da Declarado dos Direitos do Homem da

nritâ
Virgínia) —, pelo que tal situação dew ser valorada no momento da individualização da pena. Aliás,

Í-: y, ■w. 4;
já há na jurisprudência europeia decisões no sentido de atenuar o apenamento, em razão da
exorbitante duração do processo criminal (ver Daniel R. Pastor, in 'El Plazo Razonable en el
Processo dei Estado de Dencho’, p. 177/180). Dois, se a pena tem na prevenção e retribuído seus
objetivos, í de se concluir que, na hipótese, a finalidade pKventiva restou atendida só pelo moroso

ie b|3eHi v.
tramitar da lide penal — sem sentido se falar em prevenção de novos delitos, quando, durante os quase
oito anos de 'andamento' do processo, o apelante não cometeu nenhum novo crime. E se isto
aconteceu, evidente que, em respeito ao princípio da proporcionalidade e necessidade, tal deve refietir
na dejmição do apenamento a ser imposto ao acusado” (Tribunal dejustiça do Rio Grande do
w - rJrfUt
Sul, Apelação Crime 7007100902, Rei. Des. .Amilton Bueno de Carvalho.j. 17.12.2003).
Na mesma linha T ribunal de Justiça do R io G rande do Sul, Apelação C rim e
70010735181, Rei. Des. Amilton Bueno de Carvalho, j. 25.08.2005; Tribunal dejustiça
do R io Grande do Sul, Apelação Crime 700262227272, Rei. Des. Amilton Bueno de
C arvalho.j. 08.10.2008; Tribunal dejustiça do R io Grande do Sul, Apelação Crime 433
70037671989, R ei. Des. Amilton Bueno de Carvalho, j. 22.09.2010.
Nestesentido, Lopes Jr. e Badaró sustentam que "assumindo o caráter punitivo do tempo,
não resta outra coisa ao ju iz senão (além de elementar detração em aso de prisão cautelar), compensar
a demora reduzindo a pena aplicada, pois parte da punição já fo i efetivada pelo tempo. Para tanto,
formalmente, deverá lançar mão da atenuante genérica do art. 66 do C P ” (LOPES JR . e
BADARÓ, Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável, p. 124).
196 Neste sentido, SOARES, Aplicação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Jurídico-
-Constitucional de Minimização da Afetação Individual, p. 253.
N o segundo grupo são apontadas como possibilidades de atenuação
da pena as situações de quase exclusão do delito ou quase extinção
da punibilidade. As hipóteses foram detalhadamente trabalhadas por
R odrigo R oig Soares, que entende ser possível aplicar a atenuante inom i-
nada em todos os casos tangenciadores da atipicidade, da licitude e da
inculpabilidade. Segundo o autor, as situações de quase atipicidade, quase
justfícação e quase exculpação não se confundem com a dúvida sobre o reco­
nhecim ento da excludente e conseqüente absolvição em decorrência da
aplicação dos postulados do in dubiopro reo e favor rei. Nestes casos lim ítro­
fes “o caso concreto possui elementos ou ingredientes que o acercam, menos ou mais,
a uma situação excludente (‘estado de exclusão’) ”197. A partir da proposta do
autor, seria possível apontar as seguintes situações:
(Ia-) Situações de quase atipicidade: (a) reduzida ofensa ao bem
jurídico (situação tangenciadora da insignificância ou da ade­
quação social); (b) interpretação equivocada das elementares
do tipo (situações limítrofes ao erro de tipo); (c) dolo eventual
e culpa consciente (situações próximas da atipicidade subjetiva).
(2-) Situações de quase justificação: (a) hipóteses limítrofes das
excludentes legais (situações em que estão presentes inúmeros,
mas não todos, requisitos da legítim a defesa, estado de
necessidade, exercício regular do direito e estrito cumprimento
do dever legal); (b) casos próximos das excludentes supralegais
(consentimento do ofendido, objeção de consciência e desobe­
diência civil).
(3-) Situações de quase exculpação: (a) casos de interpretação
equivocada da licitude do foto (quase erro de proibição); (b)
embriaguez (in)voluntária incompleta (excetuando os casos de
actio libera in causa); (c) situações próximas da inexigibilidade
de conduta; (d) conflito de deveres não exculpantes.
(4-) Situações de quase im punibilidade: (a) casos aproximados
das hipóteses de perdão judicial198; (b) situações temporais que

157 SOARES, Aplicação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Juridico-Constitucional de


Minimização da Afetação Individual, p. 251.
158 “(■••) o ju iz também ^deria, amparado na razão judicial que enseja o perdão judicial e atrndendo
a equidade e a proporcionalidade, abrandar a pena se verijtcar, por exemplo, a presença de
ciKunstância concomitante que cause para o aaisado uma particular desgraça, fora dos msos previstos
em lei” (BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 238).
tangenciam a prescrição e a decadência (quase prescrição e
quase decadência).
A ampliação das hipóteses de aplicação das atenuantes atípicas aos
casos limítrofes de exclusão do delito redimensiona o princípio da indivi­
dualização na segunda etapa da aplicação da pena e, sobretudo, potencia­
liza um instituto injustificadamente excluído da análise dogmática.

12.10. Pena Provisória: Cálculo e Circunstâncias Preponderantes

12.10.1. Assim com o ocorre em relação ã quantificação da pena-base,


ad o s im e tr ia d a p e n a é definida por uma série de regras
p r o v is ó r ia

jurisprudenciais em decorrência da feita de dispositivos legais que especi­


fiquem a matéria.
A regra geral (primeira orientação) é a de que as agravantes e atenuan­
tes incidem sobre a pena-base, isto é, a quantidade de pena fixada na
primeira etapa atua com o o ponto de partida para aplicar as circunstâncias
previstas nas demais fases, em um procedimento seqüencial no qual as
majorantes e m inorantes (terceira fase: pena definitiva) serão aplicadas
sobre a pena provisória.
Neste sentido, de forma prelim inar, duas questões são relevantes em
razão das omissões legais: (a) qual a quantidade de aum ento e de dim inui­
ção compatível às agravantes e às atenuantes? (b) quais os limites (máximo
e mínimo) de aumento e de diminuição? Colocadas as questões de forma
exemplificativa: em um processo decorrente da imputação do crime de
corrupção passiva (art. 317, caput, do Código Penal), o julgador condenou
o réu e, após avaliar as circunstâncias judiciais, reconheceu a presença de
algumas circunstâncias negativas, fixando a pena-base em 2 (dois) anos e
3 (três) meses de reclusão. Neste caso, presente um a atenuante ou uma
agravante, em que valor restaria a pena provisória?
A pergunta contém as duas questões propostas acima.
O prim eiro problema a ser enfrentado parece ser o da quantidade
de aumento ou de diminuição. Embora o Código Penal deixe a valoração
ao “prudente arbítrio do juiz”, não determ inando uma quantidade exata
(diferentemente das circunstâncias majorantes e minorantes), a doutrina e
a jurisprudência são praticamente pacíficas no sentido de que o valor de
acréscimo ou de diminuição não deve ultrapassar 1 /6 da pena-base apli­
cada. A determ inação da quantidade de 1/ 6 , m áximo de agravamento ou
atenuação admitido, decorre de uma leitura sistemática das circunstâncias
legais de aplicação da pena, pois este valor (1/ 6 ) é o valor m ínim o de
aumento ou de diminuição atribuído legalmente às majorantes e m inoran­
tes —p. ex., no crim e continuado (art. 71, caput, do Código Penal), a pena
pode ser aumentada de 1/6 a 2/3; na participação de m enor importância
(art. 29, § l e, do Código Penal), a pena será dim inuída de 1/6 a 2/3; no
erro evitável sobre a ilicitude (art. 21 , caput, 2r parte), a pena será dim inuí­
da de 1/6 a 2/3. O argum ento, que no caso se demonstra razoável, é o de
que se fosse conferido às agravantes ou atenuantes um valor acima de 1 /6
estar-se-ia igualizando as circunstâncias da segunda e da terceira etapa de
determinação da pena — “(...) o critério de 1 /6 è o que melhor se adéqua ao
sistema legal, porque uma quantfícação mais elevada geraria o inconveniente também
apontado por L u iz Régis Prado e C ezar Bitencourt de equiparação das agravantes
e das atenuantes com as causas especiais de aumento e diminuição (...)”'".
Importante sublinhar que este seria o grau m áximo de aumento ou
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO DREITD PENAL B R A SILEIR O

de diminuição, situação que não impede ao julgador, de forma motivada,


atribuir outros valores conforme o maior ou m enor grau de responsabili­
dade penal do autor do foto. Desta forma, parece correto sustentar que a
quantidade atribuível às agravantes e às atenuantes é de até 1 /6 da pena-
-base (segunda orientação).
N o exemplo da corrupção passiva, no qual a pena-base foi fixada
em 2 (dois) anos e 3 (três) meses, a quantidade de aumento (agravante) ou
diminuição (atenuante) seria, pois, de até 4 (quatro) meses e 5 (cinco) dias.
Mas como se chegou a este valor? A regra geral de definição do tem po no
direito penal prevê que nos prazos contam-se os dias, os meses e os anos
(art. 10, 2â parte, do Código Penal). Além disso, o art. 11 do Código de­
term ina que, nas penas privativas de liberdade e restritivas de direito,
desprezam-se as frações de dia (horas). Seguindo esta orientação, caberia
encontrar 1/6 de 2 (dois) anos e 3 (três) meses. Neste caso, a operação mais
436 simples seria a de converter a pena-base em meses, ou seja, 25 (vinte e
cinco) meses —lembre-se de que o cálculo não é decimal, pois a diretriz
orientadora é a de que os meses correspondem sempre a 30 (trinta) dias e
os anos a 12 (doze) meses. A divisão dos 25 (vinte e cinco) meses por 6
(seis) resulta em 4 (quatro) meses [6 (seis) X 4 (quatro) = 24 (vinte e qua­
tro) meses]. Resta, porém, 1 (um) mês. Para realizar esta nova divisão,

199 BOSCHI, Das Penas eseus Critérios de Aplirnfio, p. 240.


converte-se 1 (um) mês em dias. Assim, 30 (trinta) dias divididos por 6
(seis) resultam em 5 (cinco) dias. Em conclusão, o m áximo de aumento ou
de diminuição por cada agravante ou atenuante, no caso exposto, seria de
4 (quatro) meses e 5 (cinco) dias. Lembre-se de que o valor matemático é
referencial e constitui um teto, podendo ser aplicado valor menor, nota­
damente nos casos de agravamento. Em síntese: presente uma agravante,
a pena provisória poderia ser fixada até 2 (dois) anos e 7 (sete) meses e 5
(cinco) dias de reclusão; verificada um a atenuante, porém, resultaria em 2
(dois) anos de reclusão; não havendo agravantes ou atenuantes, a quantidade
de pena-base converte-se na pena provisória.
12 . 10 . 2 . A nova pergunta que poderia ser feita no caso acima
apresentado é a seguinte: por que no caso de aplicação da atenuante a pena
restou em 2 (dois) anos, e não em 1 (um) ano, 10 (dez) meses e 25 (vinte
e cinco) dias, se esta últim a quantidade seria o exato resultado da
diminuição de 1/6 da pena-base?
A pergunta refere-se aos lim ite s m á x im o s e m ín im o s d a p e n a

p ro v is ó ria(terceira orientação). Embora a jurisprudência tenha procurado


pacificar esta matéria, as críticas doutrinárias ao posicionamento dos Tri­
bunais Superiores é bastante contundente (e acertada).
Se na pena-base os limites possíveis de variação são definidos pelo
m ínim o e pelo term o médio, a jurisprudência, a partir da Súmula 231 do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), restringe a pena provisória entre o
m ínim o e o m áxim o legalm ente dispostos. N o exemplo trabalhado
anteriormente (corrupção passiva), a pena prevista para o art. 317, caput,
do Código Penal é de reclusão de 2 (dois) a 12 (doze) anos e m ulta. Em
relação aos limites da dosimetria, duas conclusões são possíveis: (l3) a pena-
base poderá variar entre 2 (dois) e 7 (sete) anos (m ínim o legal e term o
médio, respectivamente); e (2-) a pena provisória restará aplicada entre 2
(dois) e 12 (doze) anos (mínim o e m áximo legal, respectivamente), em
decorrência do entendimento sumulado.
A Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça estabelece que “a
incidência de rírcunstânría atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo
do mínimo legal”. Os argumentos que justificam esta posição referem o feto
de o art. 59, aiput, do Código Penal, prever que o juiz aplicará a quanti­
dade de pena dentro dos limites previstos. Assim, nas primeiras e segundas
etapas, as barreiras seriam rigorosas, não podendo a pena ser estabelecida
aquém do m ínim o ou além do m áxim o determ inado em abstrato. Os li­
mites somente poderiam ser ultrapassados na terceira fase (pena definitiva)
em razão de as majorantes e m inorantes apresentarem um a quantidade
específica (fixa ou variável) de aumento e diminuição.
Bitencourt lembra que este entendim ento é derivado de um a inter­
pretação retrospectiva do Código Penal de 1940, cujo texto original previa
uma atenuação especial: “se o agente quis participar de crime menos grave, a pena
é diminuída de um terço até a metade, não podendo, porém, ser inferior ao mínimo
da cominada ao crime cometido” (art. 48, parágrafo único, do Código Penal,
redação original). A ponta, contudo, os equívocos desta analogia
desautorizadora, sobretudo em decorrência de a Reform a de 1984 não ter
m antido a restrição200. O posicionamento de Bitencourt é compartilhado
por inúm eros autores que, desde a Reform a da parte geral, defendem a
possibilidade de aplicação das atenuantes aquém do m ínim o legal201.
A possibilidade de ultrapassar os limites m ínimos parece ser adequa­
damente justtôcada — logicamente que esta flexibilização das barreiras
legais é inadmissível em relação às agravantes, pois os critérios herm enêu­
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl ND 3REIIU PENAL B R A SILEIR O

ticos decorrentes do princípio da legalidade são bastante claros no sentido


da exclusiva admissibilidade da interpretação em benefício do réu. Juarez
Cirino dos Santos aponta dois motivos de justificação: primeiro, inexiste
qualquer vedação legal; segundo, há determinação legal de que as atenuan­
tes sempre reduzirão a pena (art. 65 do Código Penal). Impedir a aplicação
da pena abaixo do m ínim o, conclui o autor, pode gerar, sobretudo no
concurso de agentes, uma quebra no princípio da igualdade. O argum en­
to perm ite criar algumas hipóteses bastante comuns e que demonstram
como os “direitos definidos em lei não podem ser suprimidos por aplicação inverti­
da do princípio da legalidade”202.
Imagine-se a seguinte análise judicial em uma hipótese de concur­
so de agentes: após condenar os réus, o julgador, na prim eira fase, aplica a
pena-base de ambos no m ínim o legal, pois todas as circunstâncias judiciais
lhes foram favoráveis. N o entanto, ao analisar as circunstâncias agravantes
e atenuantes, percebe que um dos réus é m enor de 21 anos ou confesso. A

200 B I T E N C O U R T , Tratado de Direito Penal, p. 676.


201 Nestesentido, dentre outros, B O S C H I, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, pp. 246­
248; C A R V A L H O , Atenuantes (em especial daconfissão), pp. 107-123; C A R V A L H O , G a­
rantismo Penal Aplicado, pp. 67-73; C I N T R A J R . , Atenuado da Pena Abaixo do Mínimo, p.
65; S A N T O S , Direito Penal, pp. 590-591; T U B E N C H L A K , Atenuantes, pp. 15-17.

202 S A N T O S , Direito Penal, p. 591.


indagação é sobre o procedim ento adequado, pois haveria duas possibili­
dades: primeira, respeitar a Súmula 231 e deixar as penas idênticas para
ambos os réus, desconsiderando a menoridade ou a confissão; segunda, em
sentido contrário, reduzir 1 /6 da pena-base, adequando a pena provisória
às condições pessoais (menor de 21 anos) ou processuais (confissão) do réu.
Parece notório como o argum ento sumulado gera injustificadas
distorções. N o caso do concurso de pessoas, a Súmula 231 simplesmente
impede a aplicação de uma das mais importantes atenuantes legais, im pe­
dindo a própria efetivação da legalidade, pois a atenuação é obrigatória; no
exemplo trabalhado anteriormente (condenação por corrupção passiva), o
efeito da Súmula 231 foi o de estabelecer uma quantidade de diminuição
m enor do que 1 / 6 , o que significa dizer que produziu uma punição maior
àquele sujeito que possui um grau m enor de responsabilidade penal.
Precisa, portanto, a conclusão de Juarez Cirino dos Santos no sen­
tido de que “a proibição de reduzir a pena abaixo do limite mínimo cominado, na
hipótese de circunstâncias atenuantes obrigatórias, constitui analogia in malam
pzrtem ,fundada na proibição de circunstâncias agravantes excederem o limite má­

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


ximo da pena cominada”202. Nas lições de Boschi, “o ju iz, na segunda fase do
método trifásico, não violará — mas, ao contrário, cumprirá a lei federal, haja vista
o texto do art. 65 do C P — mesmo quando, em razão da atenuante, tiver que esta­
belecer a pena provisória em quantidade inferior àquela margem"20*.

y,
12.10.3. As hipóteses trabalhadas até o m om ento referem as situações

ie eBeHi v. Je
em que se verifica a presença de apenas uma atenuante ou agravante, o que
determ ina que o juiz aumente ou diminua em até 1 /6 a pena aplicada na
primeira fase. Trata-se de um cálculo relativamente simples, apesar das
divergências opostas pela Súmula 231.
w - rJrfüt

N o entanto, o Código Penal estabelece um a regra específica nos


casos em que há c o n c u rs o d e a g ra v a n te s eSegundo o art.
a te n u a n te s .

67, “no concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite


inditódopelas ciKunstânciaspr^onderantes, entendendo-se como tais as que resultam 439
dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência”.
S ign^ca dizer que quando estiverem presentes agravantes e atenuantes o
julgador deve estabelecer um critério hierárquico no qual as circunstâncias
subjetivas devem preponderar quantitativamente sobre as objetivas.

203 SANTOS, Direito Penal, p. 591.


204 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 247.
São três as possibilidades de concurso de circunstâncias na pena
provisória: primeira, a presença de duas ou mais agravantes; segunda, a pre­
sença de duas ou mais atenuantes; terceira, o conflito entre duas ou mais
agravantes e atenuantes. Nos dois prim eiros casos não há incidência do art.
67 do Código Penal, pois a regra é aplicável apenas nos casos de concurso
entre agravantes e atenuantes. Assim, se presentes duas agravantes, o ju l­
gador irá proceder ã soma aritmética das circunstâncias (1 /6 + 1/ 6 ) e
aplicar o resultado final (1/3) sobre a quantidade de pena-base, nunca
ultrapassando, porém, o lim ite m áximo da pena. E sucessivamente con­
forme o núm ero de agravantes. O mesmo raciocínio é cabível no caso das
atenuantes, respeitado (ou não) o lim ite m ínim o da Súmula 231.
A questão passa a ser um pouco mais complicada quando há con­
curso entre agravantes e atenuantes. Nesta situação, é possível visualizar
algumas hipóteses que facilitam a operação. A primeira é a do concurso
entre uma agravante objetiva e um a atenuante objetiva. Com o as circunstâncias
são de igual natureza (ambas objetivas), inexiste qualquer preponderância,
FíMAS i MED IUS DE S E G U R « (JI ND 3REIID PENAL B R A SILEIR O

o que determ ina que um a anule a outra, restando a quantidade de pena


provisória idêntica ã imposta na pena-base. De igual forma se ambas as
circunstâncias em conflito forem subjetivas. Se houver o concurso, p. ex.,
entre duas atenuantes objetivas e um a agravante objetiva, a lógica para
resolução é a mesma, permanecendo apenas uma delas em decorrência da
eliminação recíproca das demais.
O problema ocorre quando há incidência recíproca de agravante
subjetiva e atenuante objetiva ou agravante objetiva e atenuante subjetiva.
Nestes casos o código determ ina que as subjetivas preponderem, ou seja,
não há possibilidade de eliminação, pois são de naturezas distintas. Assim,
ambas incidem sobre a pena provisória, devendo o julgador, porém , atribuir
um m aior peso às subjetivas. Exemplo pode ser elucidativo: pense-se na
hipótese genérica de um a pena-base fixada em 3 (três) anos de reclusão
—independente do delito, para que não ocorra a interferência do debate
sobre a Súmula 231 —, sendo o réu m enor de 21 anos (atenuante subjetiva
—art. 65, I, do Código Penal) e o delito praticado com abuso de autorida­
de (agravante objetiva —art. 61, II,/d o Código Penal). Em razão de serem
as circunstâncias da pena provisória de distinta natureza, o julgador não
pode simplesmente compensar uma pela outra. Deve aplicar ambas, no
lim ite m áximo de 1/6 de aumento e diminuição, e deve estabelecer um
critério para que a atenuante prepondere sobre a agravante. O raciocínio
que parece m elhor se adequar ao princípio da proporcionalidade seria o de
conferir à atenuante o valor integral de 1 /6 e estabelecer um peso inferior
à agravante, que poderia ser o da metade do valor atribuído à atenuante.
Objetivamente o cálculo poderia ser resumido na seguinte operação: pena-
-base de 3 (três) anos, dim inuída de 6 (seis) meses em decorrência da
atenuante subjetiva preponderante [2 (dois) anos e 6 (seis) meses], acresci­
da de 3 (três) meses da agravante objetiva, resultando a pena provisória em
2 (dois) anos e 9 (nove) meses. Em sentido oposto, se a agravante fosse
preponderante, teríam os a seguinte dosimetria: pena-base de 3 (três) anos,
aumentada de 6 (seis) meses em decorrência da agravante subjetiva pre­
ponderante [3 (três) anos e 3 (três) meses], dim inuída de 3 (três) meses da
atenuante objetiva, resultando a pena provisória em 3 (três) anos e 3 (três)
meses. Assim, nesta linha de raciocínio, uma circunstância subjetiva pre­
ponderante anularia duas objetivas.
A única exceção ã regra é no caso da É pa­
m e n o r id a d e r e la tiv a .

cífico na doutrina e na jurisprudência que, em decorrência da personali­


dade em formação, o feto de o condenado ser m enor de 21 anos na data
do feto é situação que deve preponderar sobre todas as demais circunstân­
cias, inclusive sobre as próprias preponderantes. Em termos de dosimetria,
o raciocínio para quantificação da pena provisória é o mesmo exposto
acima, observando a hierarquia da menoridade relativa.

12. 11. Pena Definitiva: Causas Especiais de Aumento e de


Diminuição (Majorantes e Minorantes)

12 .11.1. O procedim ento judicial de determinação da quantidade da


pena privativa de liberdade encerra-se na terceira etapa (pena definitiva),
ocasião na qual são avaliadas as causas especiais de aumento (majorantes)
e de dim inuição (minorantes) da pena.
Diferentemente das circunstâncias judiciais e das atenuantes e agra­
vantes, as c a u s a s e s p e c ia is d e (a) determ inam
m o d ific a ç ã o d a p e n a

uma quantidade tfixa ou variávety de aumento ou de diminuição da pena


(provisória), previamente fixada em lei; e (b) não se encontram agrupadas
topograficamente, pois presentes em inúmeros e distintos dispositivos le­
gais, na parte geral e na parte especial do C ódigo Penal e tam bém na legisla­
ção penal extravagante.
N orm alm ente as majorantes e minorantes estabelecem q u a n tid a d e

de pena como, p. ex., as hipóteses de crime tentado (pena dim i-


v a r iá v e l
nuída de 1/3 a 2/3, art. 14, parágrafo único, do Código Penal) ou crime
continuado (pena aumentada de 1/6 a 2/3, art. 70, caput, do Código Penal).
N o entanto, no caso do homicídio, p. ex., o § ^ do art. 121 do Código
Penal determ ina que (a) se a conduta for culposa, a pena é aumentada de
1/3 (q u a n tid a d e se resultante de inobservância de regra técnica de
fix a )

profissão, arte ou ofício ou (b) se a conduta for dolosa, se praticada contra


m enor de 14 ou maior de 60 anos. Mas, independente do critério legal
(quantidade fixa ou variável), a estrutura normativa das majorantes ou
m inorantes se caracteriza pela apresentação da circunstância modificativa
da pena seguida de uma definição do quantum de aumento ou diminuição.
Em term os de praticidade, as majorantes e m inorantes fixas não
apresentam quaisquer dificuldades, cabendo ao julgador apenas verificar
processualmente (prova idônea) a presença da circunstância de foto regu­
lada na causa de modificação da pena e realizar a operação matemática de
acréscimo ou diminuição sobre a pena provisória.
Im portante detalhe diz respeito ã diferente aplicabilidade das causas
FíMAS i MED IUS DE S E G U R « (JI ND 3REIID PENAL B R A SILEIR O

modificadoras de pena localizadas na parte geral e especial do Código.


Conform e a regra geral de interpretação das leis penais, as majorantes e
m inorantes presentes na possuem aplicabilidade universal, ou
p a rte g e ra l

seja, incidem sobre qualquer sanção aplicada, independentem ente do deli­


to imputado —p. ex., crime tentado (art. 14, pará^afo único); arrependi­
m ento posterior (art. 16); erro evitável sobre a ilicitude (art. 21 , caput, 2-
parte); semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo único); embriaguez fortuita
(art. 28, § 2-); participação de m enor im portância (art. 29, § I a);
participação em crime com previsibilidade de resultado mais p-ave (art.
29, § 2-); concurso formal (art. 70, caput); crime continuado (art. 71, caput),
dentre outras.
Ao contrário, as hipóteses de aum ento e de dim inuição previstas na
p a rte ou na
e s p e c ia l le g is la ç ã o possuem aplicação tópi-
e x tr a v a g a n te

^2 ca>correspondente ao tipo penal ou ao bem jurídico tutelado, conforme o


dispositivo legal — p. ex., homicídio privilegiado (art. 121 , § Ia); lesão
corporal privilegiada (art. 129, § 4a); furto noturno (art. 155, § Ia); furto
privilegiado (art. 155, § 2a); roubo com emprego de arma ou em concur­
so de agentes (art. 157, § 2a, I e II); obtenção fraudulenta de financiam en­
to em detrim ento de instituição financeira oficial (art. 19, parágrafo único,
da Lei n. 7.492/86); delação premiada (art. I5, § 55, da Lei n. 9.613/98);
tráfico de drogas em estabelecimentos de ensino (art. 40, III, da Lei n.
11.343/2006), dentre outras.
12.11.2. O utra diferença fundam ental entre as majorantes e as
m inorantes e as demais circunstâncias de aplicação da pena diz respeito ã
não obrigatoriedade de incidência nos casos de concurso de causas
modificativas previstas na parte especial —lembre-se de que a obrigato­
riedade é um a das principais características das atenuantes e das agravantes.
O art. 6 8 , parágrafo único, do C ódigo Penal, cria a possibilidade de ap li­
cação facu ltativ a quando incidirem duas ou mais majorantes ou m ino­
rantes previstas especialmente para o delito imputado. Note-se, contudo,
que, segundo o dispositivo legal, a facultatividade é restrita apenas aos
casos de concurso de majorantes ou m inorantes da parte especial, ou seja,
ocorrendo a coexistência de circunstâncias modificadoras da parte geral a
aplicação de ambas é obrigatória.
Alguns exemplos, apresentados por Alberto Silva Franco, podem
auxiliar a compreensão das formas de aplicação e a extensão do concurso
de causas modificativas. N o caso de imputação de delito de roubo, o § 2°
do art. 157 do Código Penal estabelece aumento de pena de 1/3 até 1/2
nos casos em que (a) a violência ou a grave ameaça são exercidas com em­
prego de arma; (b) o crime é praticado em concurso de agentes; (c) a vítima
está a serviço de transporte de valores; (d) o objeto do delito é veículo
autom otor, transportado para outro Estado ou exterior; e (e) o autor
m antém a vítim a em seu poder, restringindo a liberdade. Nos delitos
contra a honra (calúnia, injúria e difamação), os incisos do art. 141 do
Código Penal estabelecem aumento fixo de 1/3 quando a conduta é pra­
ticada (a) contra o Presidente da República ou chefe de governo estran­
geiro; (b) contra funcionário público em razão das suas funções; (c) na
presença de várias pessoas ou por meio que facilite a divulgação; (d) con­
tra maior de 60 anos ou portador de deficiência (exceto no caso de injúria).
Outrossim, o parágrafo único do mesmo dispositivo prevê aumento de
pena (dobro) em caso de com etim ento da conduta m ediante paga ou pro­
messa de recompensa.
Segundo Alberto Silva Franco, conform e a redação do art. 6 8 ,
parágrafo único, do Código Penal, “nas hipóteses de mubo, ocorrent& as causas
de aumento dos ns. I e I I do § 2 - do art. Í57 do CP, para os quais o legislador
cominou um acréscimo variável de um terço até a metade, pode o ju iz impor um só
aumento, ou sqa, apenas o acréscimo mínimo de um terço”205. Solução diferente
no caso de imputação de crime contra a honra de funcionário público

205 FR A N C O e STOCO, Código Penai e sua Inte^retação, p. 385.


mediante paga: em razão de serem quantidades distintas de aumento pre­
vistas nos incisos e no pará^afo do art. 141 do Código, “o parágrafo único
do art. 68 possibilita que o ju iz faça prevalecer a causa que mais aumente”206.
A guia interpretativa fornecida pelo Código Penal resolve as questões
apresentadas acima, mas não esgota os problemas que o sistema produz.
D entre as questões que perm anecem em aberto está a (im)possibilidade de
aplicação de apenas um a causa nos casos de c o n c u rs o d e m a jo ra n te s o u

m in o ra n te s Imagine-se, p. ex., o caso


p r e v is ta s n a le g is la ç ã o e s p e c ia l.

de venda de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/2006) para adolescentes nas


imediações de estabelecimento de ensino. O art. 40 da Lei de Drogas
prevê aum ento de pena de 1/6 a 2/3 aos crimes previstos nos arts. 33 a 37
da Lei n. 11.343/2006 quando, dentre outras circunstâncias, (a) a infração
ocorrer nas dependências ou imediações de escola, hospital, estabelecimentos
prisionais, dentre outros; e (b) o delito envolver ou visar criança ou
adolescente ou pessoa com capacidade de entendimento ou determinação
PENAL B R A S IL E IR O

suprimida ou diminuída.
Nestes casos, parece não haver qualquer óbice ã interpretação ex­
tensiva da re ^ a do pará^afo único do art. 68 aos casos de concurso de
causas modificativas previstas na legislação extravagante, notadamente
porque a natureza jurídica das majorantes e minorantes inseridas nas leis
NO 3REIID

especiais não difere daquelas que incidem nos tipos especiais incrim inado­
res: ambas especificam situações particulares em delitos autônomos.
DE S EG U R A N Ç l

Diferente seria o caso dos dispositivos da parte geral, cuja aplicação


é obrigatória e universal (em relação a todos os delitos). N o entanto, ape­
sar da diferença de am plitude das regras da parte geral e especial, destaca
FTNAS • MED WS

corretamente Paulo Queiroz que “não parece justijtcada a r&trição, nem um tal
apego à letra da lei. Além disso, em princípio é irrelevante o lugar onde se acha lo­
calizado no Código a causa de aumento ou de diminuição, devendo dar-se tratamen­
to unitário a tais situações”207,
m Desta forma, é possível sustentar que o juiz, em caso de concurso,
independente da localização da causa modificativa da pena (parte geral,
especial ou legislação especial), poderá aplicar apenas um a das circunstân­
cias, se estas estabelecerem a mesma quantidade de aum ento ou diminuição,
ou, em caso de valores distintos, aquela que mais aumenta ou dim inui.

206 FR A N C O e STOCO, Código Penal e sua Inte^retação, p. 385.


207 Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 389.
O utra questão, porém , merece especial destaque pela sua im portân­
cia na lógica do sistema de determinação da pena: as h ip ó te s e s d e c o n ­

c u rs o d e A faculdade de aplicação de apenas um a das cir­


m in o ra n te s .

cunstâncias modificativas nas situações de concurso parece atingir apenas


as majorantes. Em caso de concurso de causas de diminuição, a estrutura
principiológica que rege o direito penal contemporâneo indica ao julgador
um dever de aplicação conjunta, notadamente porque é vedado ao magis­
trado simplesmente desconsiderar circunstâncias que beneficiam o réu,
inclusive no que tange ã determinação da pena.
Nas hipóteses de concurso entre uma causa de aum ento e uma cau­
sa de dim inuição, ambas devem ser aplicadas, conform e as diretrizes rela­
tivas ao cálculo da pena definitiva.

1 2 .1 2 . Pena Definitiva: Cálculo

12.12.1. Se para a definição da pena provisória o juiz tom a como


base a pena-base, a pena definitiva tem como referencial a pena provisória;
inclusive porque inexistindo majorantes ou m inorantes a pena provisória
é convertida em pena definitiva.
Verificada a presença de uma causa de aum ento ou de diminuição
cabe ao julgador aplicar a circunstância modificativa sobre a pena provi­
sória. O procedimento é m eramente matemático nos casos em que é im ­
putada um a c a u s a d e a u m e n to o u d e d im in u iç ã o e m q u a n tid a d e

fix a .Assim, p. ex., no caso de apropriação indébita (art. 168, Mput, do


Código Penal), na hipótese em que o agente recebe a coisa em depósito
necessário (art. 168, § 1° I do Código Penal), fixada a pena provisória cabe
ao magistrado a tarefe mecânica de incidir a quantidade de aumento legal­
m ente estabelecida (1/3). Estabelecida a pena provisória no m ínim o (1
ano), a definitiva restaria em 1 (um) ano e 4 (quatro) meses.
Em sentido similar inúm eras hipóteses inseridas no Código Penal
relativas às circunstâncias que alteram a pena em quantidade fixa, como,
p. ex., no furto (art. 155, § Ia), na omissão de socorro (art. 135, pará^afo
único), nos crimes sexuais (art. 226), nas modalidades ativa e passiva de
corrupção (art. 317, § l s, e art. 333, parágrafo único), entre outras.
O problema surge quando incidentes m a jo r a n te s e m in o ra n te s

e m q u a n tid a d e Aliás, este tipo de causa de modificação da


v a riá v e l.

pena (variável) é extrem am ente com um no sistema de penas brasileiro,


configurando-se as circunstâncias fixas como exceções. Desta forma, im ­
prescindível indagar sobre os critérios judiciais de determinação da quan­
tidade de aum ento ou diminuição. A questão não é simples e, em sentido
inversamente proporcional ã sua importância, não é tratada com o neces­
sário cuidado pela doutrina. Conforme lembra Boschi, inexiste uma guia
orientadora que seja m inim am ente com partilhada pela doutrina e pela
jurisprudência. O efeito é a ausência de parâmetros limitativos ã discricio-
nariedade judicial, situação que compromete o devido processo legal. As
diretrizes são casuísticas, estabelecidas para responder pontualm ente a
questões específicas como, p. ex., crime tentado, concurso formal e crime
continuado. Além disso, “procurando contornar a dificuldade, os tribunais reco­
mendam como razões para as mensurações, por exemplo, no trfflco internacional de
drogas, ‘o grau de intensidade da transnacionalidade do delito, considerada a origem
da droga, o percurso traçado e o seu destino’, no roubo, o ‘número de majorantes’,
por se tratar de critério ‘objetivo’, rejeitado em outro julgado, sob o fundamento de
PENAL B R A S IL E IR O

que é ‘caso a caso’ que deve ser mensurada a majorante e à luz das ‘p eculiarifades’
que justifiquem maior exacerbação, o número de coautores ou participante no crime
ou a sofisticação do armamento empregado no roubo, o írfimo valor da coisafurtada,
eír.”208. Logicamente que o casuísmo não parece ser a melhor solução para
uma questão tão sensível e com efeitos tão importantes.
NO 3REITD

Pense-se em um a situação de com etim ento de lesão corporal grave,


praticada sob o dom ínio de violenta emoção, logo em seguida de injusta
DE S EG U R A N Ç l

provocação da vítim a. A pena estabelecida pelo art. 129, § 1° do Código


Penal varia de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão. Todavia, em razão da
m inorante do § 4° o juiz poderá reduzir a pena de 1/6 a 1/3. N ota-se que
FTNAS • MED WS

a variação possível de pena é extrem am ente alterada com a incidência da


causa de dim inuição: o m ínim o de pena aplicável é alterado para 1 (um)
ano e 4 (quatro) meses (redução do m áximo de 1/3 sobre a pena m ínim a)
e o m áximo possível fica em 6 (seis) anos e 8 (oito) meses (redução do
446 m ínim o de 1/6 sobre a pena máxima). Se o julgador, na hipótese, estabe­
lecesse como pena provisória o nunim o legal (2 anos), a variação possível
na pena definitiva estaria entre 1 (um) ano e 4 (quatro) meses (mínimo
menos 1/3) e 1 (um) ano e 8 (oito) meses (mínim o menos 1/6).
Embora a incidência da m inorante possa parecer sutil na quantidade
final da pena, em outras circunstâncias a diferença entre m ínim o e m áxi-

208 BOSCHI, D as Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 267.


mo de pena é significativa. Veja-se, p. ex., nos casos de homicídio simples
tentado (art. 121, caput, combinado com art. 14, parágrafo único, ambos
do Código Penal): pena m ínim a 2 (dois) e m áxim a 13 (treze) anos e 4
(quatro) meses; apropriação indébita previdenciária continuada (art. 168-A
combinado com art. 71, caput, ambos do Código Penal): pena m ínim a 2
(dois) anos e 4 (quatro) meses e máxima 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses209.
Como se pode perceber, em foce da ampla variação possível, é
fundamental estabelecer critérios (guidelines) relativamente estáveis para
aplicação das majorantes e m inorantes variáveis. Dentre as proposições
doutrinárias, os parâmetros propostos por Boschi parecem ser adequados
no sentido de garantir proporcionalidade ã sanção criminal. Segundo o
autor, a pena-base estabeleceria um critério geral (ou grau) de culpabili­
dade que deve ser observado nas demais fases, sobretudo no caso de causas
especiais de aumento e de dim inuição variáveis. Embora sua concepção
esteja vinculada ã ideia de culpabilidade como reprovabilidade —tese re­
futada ao longo deste trabalho —, a percepção da pena-base como uma
diretriz orientadora parece adequada ã finalidade do estabelecimento
proporcional da sanção criminal. O juízo acerca da responsabilidade do
autor (culpabilidade) aferido na pena-base indicaria, portanto, critérios
relativamente seguros para aumento e diminuição na pena definitiva.
Nos termos propostos por Boschi, se a reprovação inicial tiver sido
estabelecida em grau mínimo, “(...) o quantum correpondente à exasperação,
guardadas as razões rekríonadas ao injusto e à política criminal que a justifica,
deverá ser, por razões de coerênría in te ^ , em princípio mínimo, ao passo que o
abrandamento, ordenado pela causa esperíal de diminuição, deverá ser o máximo
possível, para que a pena definitiva atóbe, dese modo, aproximando-se do grau de
culpabilidade correspondente”2™.
A diretriz cria uma regra geral cuja funcionalidade perm ite contro­
lar a discricionariedade judicial. Assim, se a pena-base for estabelecida no

209 As operações foram realizadas em duas etapas: primeira, para estabelecer o piso, foi re­
duzido o máximo da minorante da pena mínima e aumentado o mínimo da majorante
da pena mínima —p. ex., reduzidos 2/3 da pena mínima do homicídio simples (6 anos) e
aumentado 1/6 da pena mínima da apropriação indébita previdenciária; se^nda, para
fixar o teto, foi reduzido o mínimo da minorante da pena máxima ou aumentado o má-
fomo da majorante da pena máxima —p. ex., reduzido 1/3 da pena máxima do homicídio
(20 anos) e aumentados 2/3 da pena máfoma da apropriação indébita previdenciária.
210 BOSCHI, D as Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 268.
m ínim o legal (grau m ínim o de responsabilidade individual), a diminuição
pela incidência da m inorante deve ser m áxima e o aumento em decorrên­
cia da majorante o m enor possível. Em sentido oposto, se a pena-base
restar próxim a do term o m édio (grau elevado de responsabilidade), a di­
m inuição pela m inorante seria m ínim a e o aumento pela majorante pró­
xim o do máximo. Em caso de definição da pena-base entre o m ínim o e
o term o médio, o critério de aumento ou de diminuição seria estabelecido
em um ponto interm ediário entre o m ínim o e o m áximo previsto pela
causa modificadora da pena —p. ex., em 1/2 se a variação da majorante ou
da m inorante for entre 1/3 e 2/3.

12.12.2. C onform e referido an terio rm en te, a d o u trin a e a


jurisprudência estabeleceram, para casos específicos, algumas regras que
adquirem força de entendim ento consolidado.
Nas hipóteses de c r im e o art. 14, parágrafo único, do
te n ta d o ,
PENAL B R A S IL E IR O

Código Penal prevê a diminuição de 1/3 a 2/3 da pena que seria aplicada
ao crime consumado quando, iniciada a execução, o delito não se efetiva
por circunstâncias alheias ã vontade do agente (art. 14, II). Em razão de o
fundamento da punição da tentativa ser o perigo concreto de dano que a
NO 3REIID

conduta gera ao bem jurídico tutelado, o critério amplamente utilizado é


o do iter criminis. Assim, quanto m aior a probabilidade de ofensa ao bem
—situação que frequentemente é resumida na fórmula da proximidade da
DE S EG U R A N Ç l

consumação do crime —m enor seria a quantidade de redução da pena.


Delm anto sintetiza o critério, afirm ando que a “redução deve ter em vista o
caminho já percorrido pelo agente na prática delituosa. Assim, se o seu desenvolvi­
FTNAS • MED WS

mento fo i impedido no inicio, a diminuição será maior; ao contrário, se já percorreu


maior espaço, o abatimento será menor”211.
A técnica exposta efetivamente perm ite resolver a maioria dos casos
relativos ã criminalidade tradicional. É possível, inclusive, visualizar de
448 form a bastante precisa as fases da tentativa punível, do início da execução
ao exaurim ento do delito, e o m om ento de m aior ou m enor risco ao bem
jurídico tutelado nos delitos contra a vida, contra a integridade física,
contra o patrim ônio, contra a liberdade sexual.
N o entanto, o critério não pode ser absolutizado, notadam ente
porque nem sempre a m aior proximidade da consumação gera risco mais

211 DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 26.


grave ao valor protegido penalmente. Isto porque determinadas condutas
podem gerar a mesma probabilidade de dano independentemente da sua
localização no momento inicial ou final da execução. Este tipo de situação
normalmente é verificável na tutela penal de interesses difusos, como, p. ex.,
crimes contra o sistema financeiro, crimes contra a ordem tributária, crimes
contra as relações de consumo, entre outros.
Em qualquer hipótese, porém, é obrigatório que o julgador exponha,
na sentença penal, os motivos de eventual redução não compatível com a
maior porcentagem prevista em lei (2/3) —“o réu tem o direito de saber quais
os fundamentos que levaram o ju iz a escolher a redução mínima, para que, em re­
curso, possa atacá-lo. N ão havendo indicado defundamento que autorize a situação
de maior prejuízo ao condenado, deve-se aplicar a redução máxima”212.
As demais regras autônomas, notadamente aquelas relativas ao con­
curso formal e ao crime continuado, serão analisadas posteriormente, em
local próprio, em decorrência da sua especificidade.

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


12.12.3. Estabelecidos critérios gerais (e específicos) para a quan­
tificação das majorantes e rnnorantes variáveis, resta analisar os casos de
c o n c u rs o d e causas e s p e c ia is d e a u m e n to e d e d im in u iç ã o d a p e n a .

Existem três possibilidades de concurso de circunstâncias na pena


definitiva: (a) concurso de majorantes; (b) concurso de minorantes; (c)

Í-: y,
concurso de majorantes e minorantes.
No a regra de quantificação é estabele­

ie BEtEtai v.
c o n c u rs o d e m a jo ra n te s ,

cida pelo critério do cúmulo material, ou seja, pela soma simples dos valores
e posterior incidência na pena provisória. Pense-se, p. ex., na presença de
duas causas de aum ento fixadas em 1/3. O procedim ento judicial será o
w - rJrfUt
de soma das majorantes (1/3 + 1/3) e posterior aplicação do resultado (2/3)
sobre o valor definido na pena provisória. A fórmula do cúmulo material
é mais vantajosa que um a eventual aplicação sucessiva, cujo resultado seria
prejudicial ao condenado. A partir do exemplo acima, pressupondo uma
pena provisória estabelecida em 3 (três) anos, o resultado da regra do cú­
mulo material seria uma pena definitiva de 5 (cinco) anos, diferentemente
da aplicação sucessiva, cuja pena final seria de 5 (cinco) anos e 4 (quatro)
meses [3 (três) anos + 1/3 = 4 (quatro) anos + 1/3 = 5 (cinco) anos e 4
(quatro) meses].

212 G A L V Ã O , D inito Penal, p. 833.


N o entanto, no c o n c u rs o d e a aplicação indicada é
m in o ra n te s ,

a suc&siva, apesar de ser prejudicial ao réu. Isto porque o eventual cálculo


cumulado poderia resultar em um a pena zero. Schecaira resolve o proble­
ma a partir do exemplo da imputação de hom icídio privilegiado cometido
na forma tentada (art. 121, § l e, combinado com art. 14, parágrafo único,
do Código Penal). Fixada a pena provisória no m ínim o (6 anos), se
houvesse a diminuição de 1/3 pela privilegiadora e, na seqüência, 2/3 pela
tentativa, a sentença condenatória apresentaria um a pena com valor zero.
Assim, indica o procedimento sucessivo de quanttâcação: primeiro, subtrai
1/3 de 6 (seis) anos; segundo, dim inui 2/3 de 4 (quatro) anos, obtendo-se,
como resultado, a pena definitiva de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses. A
ordem de sucessão (subtrair prim eiro 1/3 ou 2/3) é irrelevante, pois o
resultado final é o mesmo.
Por fim, no c o n c u rs o d e m a jo r a n te s as causas de
e m in o ra n te s ,

aumento e de diminuição são aplicadas individualmente, de forma suces­


PENAL B R A S IL E IR O

siva, igualmente sem influência da ordem. Veja-se, p. ex., em caso de pena


provisória fixada em 6 (seis) anos, com incidência de m inorante no valor
de 1/3 e majorante de 2/3, independe se o julgador aplica prim eiram ente
a majorante ou a minorante, pois, em ambos os casos, a pena final resul­
tará em 6 (seis) anos e 8 (oito) meses [primeira operação: dim inui 1/3 (2
NO 3REIID

anos) de 6 (seis) anos = 4 (anos) e, após, aumenta 2/3 (2 anos e 8 meses)


= 6 (seis) anos e 8 (oito) meses; segunda operação: aplica 2/3 (4 anos)
DE S EG U R A N Ç l

sobre os 6 (seis) anos = 10 (dez) anos e, posteriormente, reduz 1/3 (3 anos


e 4 meses) = 6 (seis) anos e 8 (oito) meses].
Lembra, contudo, Boschi que no caso de aumento ou diminuição
FTNAS • MED WS

em valores idênticos (no caso de majorantes e minorantes fixas ou variá­


veis), diferentemente do que ocorre com as agravantes e atenuantes, é
vedada a compensação, e o cálculo deve ser feito de forma sucessiva, para
não prejudicar o réu. O autor exemplifica com as causas de aumento e de
450 diminuição idênticas no valor de 1/3. Se uma pena provisória fosse deter­
minada em 9 (nove) anos, a compensação estabeleceria esta quantidade
como definitiva. Todavia, se a pena fosse aumentada em 1/3, restaria em
12 (doze) anos e, posteriormente, reduzida na quantidade de 1/3, o resul­
tado final seria de 8 (anos)213. N o caso, novamente a ordem dos fatores não
altera o resultado final.

213 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplimção, p. 255.


1 2 .1 3 . Determinação da Pena no Concurso de Crimes e Limites
de Cumprimento das Sanções Penais

12.13.1. Os critérios de determinação quantitativa da pena analisados


até o m om ento orientam os casos em que há o reconhecim ento da exis­
tência de um crim e único (unidade delitiva). O julgador, na valoração das
circunstâncias de um fato ilícito, atribui determinada quantidade de pena
conforme a responsabilidade do seu autor.
N o entanto, assim como inúmeros autores podem, de forma solidá­
ria, realizar um injusto penal —caso de concurso de agentes (art. 29 do
Código Penal) —, existe a possibilidade de que um a ou várias pessoas pra­
tiquem diferentes delitos. Nos casos em que se verifica pluralidade de
delitos incidem as regras relativas aoc o n c u rs o d e (arts. 69, 70 e
c r im e s

71 do Código Penal).
O concurso de crimes pode ocorrer m ediante unidade ou pluralidade
de condutas. Assim, é possível verificar casos em que uma ação ou omissão

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


resulta em dois ou mais delitos (unidade de conduta com pluralidade de
resultados típicos) ou situações em que diferentes condutas produzem dis­
tintos crimes (pluralidade de condutas com pluralidade de resultados típicos).
Conform e destaca Juarez Cirino dos Santos, no direito penal con­
temporâneo, predom inam três sistemas de atribuição de pluralidade de

Í-: y,
fetos ou de resultados típicos: (a) pluralidade sucessiva, quando existem inú­
meras ações independentes que produzem iguais ou distintos fetos típicos

ie eBeHi v.
(concurso material); (b) pluralidade simultânea, quando um a ação típica
isolada resulta em dois ou mais resultados típicos, iguais ou distintos (con­
curso formal); (c) pluralidade continuada, quando um a seqüência de fetos
w - rJrfüt

típicos da m esm a espécie aparece com o unidade de ação (crim e


continuado)214.
As distintas formas de imputação no concurso de crimes requerem
soluções jurídicas autônomas, de forma a adequar a sanção penal aos pos- 451
tulados de proporcionalidade e proibição do excesso que orientam os
modelos penais de garantias. A determinação da pena no caso de plurali­
dade de delitos é orientada por dois critérios, com resultados significati­
vamente distintos: (a) critério do cúmulo material, no qual as penas dos dis­
tintos crimes são somadas (cumuladas); (b) critério da exasperação, no qual é

214 SANTOS, Direito Penat,p. 405.


aplicada a pena mais grave dentre as sanções atribuídas aos delitos, se dis­
tintas, ou apenas uma, se idênticas, mas em ambos os casos aumentada por
uma causa especial modificadora (majorante). Na legislação penal brasilei­
ra coexistem ambos os critérios, aplicados nas distintas situações de plura­
lidade de resultados típicos.
Im portante referir, antes de ingressar na análise do concurso de
crimes em espécie, que o reconhecim ento da pluralidade de delitos pode
ocorrer em um ou em diversos processos crim inais de conhecim ento
(unidade ou pluralidade processual), inclusive sendo possível que
ocorra a unificação das penas em sede de execução penal. É admissível, p.
ex., que um a pessoa responda a um único processo crim inal por vários
delitos, com distintas atribuições de pluralidade (concurso m aterial,
concurso form al ou crim e continuado), situação em que o julgador
procederá ã untâcação da pena na sentença condenatória. O utra hipótese
igualmente com um no cotidiano forense é a de que o sujeito responda a
PENAL B R A S IL E IR O

vários processos criminais, por crimes idênticos ou não, e a unificação


ocorra gradualmente no processo de execução crim inal, conforme forem
transitando em julgado as demais condenações. Neste últim o caso, o
magistrado responsável pela execução da pena deve realizar um novo
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

cálculo, nos termos do caput do art. 111 da Lei de Execução Penal: “quando
houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos
distintos, a determinação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da
soma ou da unificação das penas, observada, quando for o caso, a detração ou
remição”. Conform e o parágrafo único do mesmo dispositivo, “sobrevindo
condenação no curso da execução, somar-se-á pena ao restante da que está sendo
MED IUS

cumprida, para determinação do regime”.


i

A referência da Lei de Execução Penal ã soma ou ã unificação da


FíMAS

pena diz respeito às possibilidades de reconhecim ento do concurso mate­


rial ou crime continuado, respectivamente, no curso do cum prrnento da
pena — a aplicação do concurso formal na execução da pena, apesar de
possível, é de difícil identificação, pois frequentemente a imputação ocor­
re em processo único. Somada (concurso material) ou exasperada (concur­
so formal ou crime continuado) a pena pela nova condenação, há necessi­
dade de recálculo, estabelecendo uma nova pena e um novo regim e de
cumprim ento. Observadas, logicamente, conforme expressamente prevê a
Lei de Execução Penal, as modificações relativas ã detração, ã remição e,
acrescente-se, ã comutação (indulto parcial).
(a) C oncurso M aterial
12.13.2. Configura-se concurso m aterial quando o autor, m e­
diante mais de uma ação ou omissão (pluralidade de condutas), pratica dois
ou mais crimes (pluralidade de delitos), idênticos ou não (art. 69, caput, do
Código Penal). Nas hipóteses de ocorrência de crimes idênticos, o concurso
material é classificado como homogêneo; quando ocorrem crimes diversos,
há concurso material heterogêneo.
Lembra Paulo Queiroz que a expressão ação ou omissão deve ser
tomada no sentido genérico de conduta e que as condutas delitivas nor­
malm ente são integradas por vários atos que formam um todo. Assim,
exemplifica, se o agente subtrai vários objetos em um mesmo local, prati­
ca um a única conduta da ação subtrair, inexistindo concurso de delitos215.
Reale Jr., trabalhando com hipótese concreta similar, conclui que “se o
agente furta vários objetos de uma rttidênría a que adentrara, comete tão só um
crime defarto, pois há um só contexto, uma unidade temporal, que reúne no mesmo
instante ações para um mesm ofím ’’2í6.

ie eBeHi v. Í-: y , ■w . 4; DffiJ id Hftlil


A existência de concurso material (homogêneo ou heterogêneo)
implica, portanto, a realização de inúmeras de condutas em situações dis­
tintas (sem identidade) de tempo, local e maneira de agir.
Nas hipóteses de concurso material, a regra de aplicação da pena é
a do cúmulo das penas, ou seja, o magistrado procede ã soma das sanções
individualmente aplicadas a cada crime. Assim, realiza todo o procedimen­
to para cada delito e, ao final, soma as penas aplicadas. Importante destacar
que, para a definição da quantidade de pena no m omento da sentença penal
condenatória, o Código Penal não estabelece limites temporais, razão pela
qual, em situações graves, é com um serem divulgadas penas que superam
a própria expectativa de vida do condenado.
w - rJrff

12.13.3. Em caso de concurso m aterial de penas restritivas de


direito, o § 2 - do art. 69 do Código Penal prevê que as penas sejam cum ­
pridas simultaneamente, se compatíveis entre si, ou sucessivamente, em 453
caso de incompatibilidade. Im porta dizer, portanto, que, nos casos de
concurso m aterial em que houve a substituição de pena privativa de
liberdade pela restritiva de direitos, o julgador não procede ã sua untôcação,
mas realiza dois procedimentos distintos de execução.

2,i QU EIR O Z, Direito Penal, p.335.


216 R EA LEJR ., Instituifies de Direito Penal II, p. 111.
Assim, im aginando-se, p. ex., que um a pessoa seja condenada pri­
meiramente a 2 (dois) anos de prisão, sanção substituída por multa e lim i­
tação de final de semana, advindo, posteriormente, nova condenação a 3
(três) anos de privação de liberdade, substituída por prestação de serviço à
comunidade e prestação pecuniária —ambos os casos conforme o art. 44,
§ 2-, do Código Penal 217 —, ao invés de o julgador proceder ao recalculo,
m antém a autonom ia das penas e perm ite o seu cum prim ento simultâneo.
Se em ambas as condenações a privação de liberdade fosse substituída por
prestação de serviços comunitários, p. ex., em face de sua identidade, o
cum prim ento das penas seria sucessivo.
A regra do art. 69, § 2-, do Código Penal, seguindo os ditames
constitucionais de redução dos danos da prisionalização, privilegia as penas
restritivas de direito em razão do notório procedim ento dessocializador
que a privação de liberdade exerce. Inexistindo a previsão legal, o juiz
responsável pela execução da pena teria de unificar as penas, aplicando a
regra do cúmulo material e, no exemplo, fixar a pena em 5 (cinco) anos.
PENAL B R A S IL E IR O

Ocorre que, por força da nova quantidade, teria de converter as penas al­
ternativas em prisão, sanção a ser cumprida em regime semiaberto ou, em
caso de reconhecim ento da reincidência, fechado.
NO 3REIID

(b) C o n cu rso F o rm a l
12.13.4. Se no concurso material a pluralidade de delitos é a conse­
DE S EG U R A N Ç l

qüência da pluralidade de condutas, no c o n cu rso fo rm a l existe unidade


de conduta com pluralidade de resultados ilícitos. Conform e determ ina o art.
70, caput, l s parte, do Código Penal, o concursoformal próprio ocorre quan­
FTNAS • MED WS

do o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes,


idênticos ou não. Nestes casos, o dispositivo determina a aplicação da regra
da exasperafio como critério de determinação da quantidade de pena, ou
seja, será aplicada a mais grave das penas, se distintas, ou apenas uma, se
idênticas, aumentada, em qualquer caso, de 1/6 a 1/ 2 .
N o entanto, o art. 70, caput, 2- parte, prevê as hipóteses do concurso
formal impróprio, cuja definição da pena é regulada pelo critério do cúmulo
material. A diferença entre as modalidades própria e imprópria do concur-

217 “N a condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode serfeita por multa ou por uma
pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída
por uma pena Kstritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos” (art. 44, § 2S, do
Código Penal).
so formal é a de que no últim o caso o sujeito realiza dolosamente a con­
duta (ação ou omissão), com a finalidade de produzir distintos resultados.
A unidade de conduta é apenas um a variável secundária de um projeto que
tem como objetivo (consciência e vontade) alcançar inúmeros resultados
ilícitos (pluralidade delitiva). Assim, o código estabelece que “as penas
aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes
concorrentes resultam de desígnios autônomos”.
Nas hipóteses de c o n c u rs o a pluralidade de con­
fo r m a l p r ó p r io ,

seqüências típicas deve, necessariamente, estar fora do âm bito de vontade


do autor. Neste sentido, pode ocorrer um a conduta inicial negligente que
desdobra uma série de eventos típicos não desejados —p. ex., crim e culpo­
so (acidente) de trânsito em que há pluralidade de vítimas e distintos re­
sultados típicos (m orte, lesão corporal leve e lesão corporal grave).
Igualmente é possível que o sujeito, ao praticar dolosamente um a ação ou
omissão típica, agregue um ou mais resultados colaterais. N o entanto, os
demais resultados devem, necessariamente, ser indesejados, ainda que pre­

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


visíveis ou previstos. A situação que caracteriza o concurso form al próprio,
portanto, é a da ausência de dolo (direto) nos crimes subsequentes, que
ocorrem de forma indesejada, acidental (culpa consciente ou inconsciente)
ou com assunção de risco (dolo eventual). O term o desígnio autônomo im ­
plica, pois, a presença do dolo direto em relação aos demais delitos (cons­

i-: y,
ciência e vontade de realização da conduta típica).
Nas lições de Bitencourt, há quando

ie eBeHi v.
c o n c u rs o fo r m a l im p r ó p r io

“o agente desqa a realização de mais de um crime, tem consciência e vontade em


relação a cada um deles. Ocorre aqui o que o Código Penal chama de 'desígnios
autônomos’, que se caracteriza pela unidade de afio e multiplicidade de determina­
w - rJrfüt
ção de vontade, com diversas individualizações. Os vários eventos, nesse caso, não
são apenas um, perante a consciência e a vontade, embora sejam objeto de uma
única ação”2™. No concurso formal impróprio a conduta única é apenas uma
circunstância, eleita aleatória ou estrategicamente para a consecução de 455
múltiplas finalidades ilícitas. Por este m otivo (autonomia de desígnios),
nos termos do art. 70, caput, 2- parte, o concurso formal im próprio recebe
o mesmo tratam ento do concurso material, ou seja, as penas são somadas.
Além do concurso form al impróprio, a legislação penal brasileira
prevê outra possibilidade de aplicação da regra do cúmulo material nos

218 B ITEN CO U RT, Tratado de Direito Penai, p. 681.


casos de unidade de condutas. Diferentemente da situação decorrente da
autonom ia de desígnios, o segundo caso representa um a exceção na qual
prevalece a regra da interpretação mais benéfica.
Em determinados casos, é possível perceber que a regra da exaspe­
ração pode resultar prejudicial, ou seja, a incidência da majorante im põe a
aplicação de uma pena superior àquela que seria decorrente da soma das
penas previstas para ambos os delitos. Nestas situações, a regra geral de
interpretação favorável ao réu determ ina seja aplicado no concurso formal
o critério do cúmulo material, nos termos do parágrafo único do art. 70
do Código Penal —“m o poderá a pena exceder a que seria cabível pela regrai do
art. 69 deste Código”.
A regra prevista no parágrafo único do art. 70 norm alm ente é apli­
cada nos casos de concurso formal próprio em que há uma substancial
diferença de pena entre os delitos, de forma que o valor m ínim o da m ajo­
rante (1/6) ultrapassa a pena autônoma do delito subsequente. Imagine-se,
p. ex., casos em que ocorra concurso formal entre crim e de homicídio
PENAL B R A S IL E IR O

simples (art. 121, caput, do Código Penal) e lesão corporal leve (art. 129,
caput, do Código Penal). Se a pena provisória do homicídio fosse fixada
no m ínim o (6 anos), a incidência do m ínim o de aumento previsto do art.
70, caput, do Código (1/6), determ inaria um a pena definitiva de 7 (sete)
NO 3REIID

anos. Do contrário, se fosse aplicada a regra do cúm ulo material, em c^ o


de ambas as penas serem aplicadas no m ínim o, o resultado final seria de 6
DE S EG U R A N Ç l

(seis) anos e 3 (três) meses.

12.13.5. N o que tange especificamente ã dosimetria da pena, o


FTNAS • MED WS

Código Penal, assim como trata as demais causas modificadoras da pena,


é omisso em relação aos c r ité rio s d e Em razão de a ma­
q u a n tific a ç ã o .

jorante do concurso formal próprio ser variável, em tese seria aplicada a


regra geral do grau de responsabilidade (culpabilidade), conforme ante­
riorm ente exposto. Todavia, este é um dos casos em que doutrina e juris­
prudência estabelecem regras próprias de aplicação.
A variação da quantidade de aum ento a ser aplicada sobre a pena
provisória ( 1 /6 a 1/ 2 ) seria estabelecida a partir de duas diretrizes: número
de vítimas ou número de crimes contra a mesma vítima ou vítimas diferentes.
Neste sentido, Boschi lembra que os Tribunais, ao efetivarem este critério,
estabeleceram uma fórmula que pode ser reduzida nas seguintes guias de
orientação: (a) duas vítimas ou dois fetos delituosos, exasperação de 1 /6
sobre a pena provisória; (b) três vítimas ou crimes, aumento de 1/5; (c)
quatro vítimas ou crimes, aumento de 1/4; (d) cinco vítimas ou crimes,
aum ento de 1/3; (e) seis vítimas ou crimes, aum ento de 1/2; sete ou
mais vítimas ou crimes, aumento de 2/3219.
Embora a diretriz seja baseada em critérios objetivos (número de
vítimas ou de delitos) —sempre necessários em operações tendentes à am­
pliação dos espaços de discricionariedade judicial —, entende-se como in­
viável sua absolutização. Isto porque não são raros os casos em que a ado­
ção desta lógica m atem ática produz sérias distorções, sobretudo aos
postulados de proporcionalidade e de proibição do excesso. A exposição
dos motivos e a proposição de alternativas serão realizadas no m om ento da
avaliação do art. 71 do Código Penal.
(c) C rim e C ontinuado
12.13.6. Há crim e continuado nas situações em que o autor, m e­
diante mais de um a ação ou omissão (pluralidade de condutas), realiza dois
ou mais crimes da mesma espécie (pluralidade de ilícitos) identificados por
circunstâncias similares de tempo, local e m odo de execução. Em tais si­
tuações, o Código Penal cria uma ficção na qual os delitos subsequentes,
da mesma natureza e praticados em circunstâncias similares, são entendidos
como continuação do primeiro. A conseqüência é a aplicação de uma
única pena, exasperada de 1/6 a 2/3, nos termos do art. 71, caput. A justi­
ficativa para que se converta a pluralidade de condutas em uma unidade
de delito é exatamente a similitude (ou identidade) dos ilícitos, evitando­
-se, sobretudo, os excessos punitivos que decorreriam da aplicação do
critério do cúm ulo material.
Paulo Queiroz apresenta interessante exemplo sobre a desproporcio-
nalidade que a aplicação do concurso material poderia causar: “o falsário
que, de posse de 10 (dez) cédulas falsas, colocasse em circulação uma nota a cada
dia, a fim de evitar suspeitas, poderia ser castigado por dez crimes autônomos, em
concurso material, sofrendo, ao final, pena de 30 anos de prisão, se aplicada a pena
mínima (3 anos de reclusão) para cada infração”220. Cláudio Brandão refere a
necessidade do reconhecim ento da continuidade no caso do tesoureiro da
agência bancária que, em razão de ter a posse lícita dos valores, retira dia­

215 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 260.


220 Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 337.
riamente quantias diversas, no período de um mês221. Schecaira, analisan­
do fato de grande repercussão nacional, dem onstra como resulta excessiva
e desproporcional a substituição (negativa de vigência, em realidade) da
regra do art. 71 pela do art. 69 do Código. N o caso, refere a aplicação de
pena superior a 90 (noventa) anos em face de condenação pela prática de
sucessivas condutas (consumadas e tentadas) de descaminho, apesar dos
evidentes nexos espaciais, modais e temporais222.
Os requisitos para configuração do crime continuado são expostos
no art. 71 do Código: (a) pluralidade de ações ou omissões; (b) prática de
delitos da mesma espécie; (c) nexo espacial, temporal e modal entre os
ilícitos.
A primeira questão que merece ser destacada é relativa ao necessário
vínculo entre os delitos. Trata-se, em realidade, de um a identidade de
natureza jurídico-penal, e não de tipificação formal. Significa dizer, por­
tanto, que o reconhecimento da continuidade delitiva não requer que sejam
praticadas condutas com a mesma subsunção típica. A referência legislativa
PENAL B R A S IL E IR O

ã mesma espécie confere uma qualidade material ao requisito, indicando


que as condutas a serem unificadas sob a regra da continuidade obtenham
como resultado a lesão do mesmo bemjurídico tutelado.Desta forma, distin­
tas condutas, com distintas tipificações, podem ser amparadas pela conti­
ND 3REIIU

nuidade se ofensivas ao mesmo valor protegido.


Conform e destaca Alberto Silva Franco, trata-se de uma relação
DE S EG U R A N Ç l

entre espécie (tipificação) e gênero (bemjurídico). Segundo o autor, a ideia


de espécie de crime exposta no art. 71 do Código pressupõe, necessariamen­
te, a de gênero, que contém potencialmente diferenças que se expressam
FTNAS • MED WS

na realidade fetica — “assim, por exemplo, furto, roubo, apropriação indébita,


estelionato, extorsão, dano etc. são todos espécies diversificadas que se congregam na
proteção do ‘g ênero’ patrimônio”222. A questão acerca de quais condutas típicas
podem integrar a unidade fictícia representada pela continuidade é resol­
vida, portanto, pelo gênero que identifica o bem jurídico tutelado, não
sendo requerida, conforme antecipado, a violação do mesmo preceito legal.
Os demais requisitos são relativos às circunstâncias espaciais, tem ­
porais e modais das condutas lesivas.

221 BRANDÃO, Curso de Direito Penal, p.358.


222 SCHECAIRA, Estudos de Direito Penal II, p. 36.
223 FR A N C O e STOCO, Código Penal e sua Inteyretação, p. 394.
A questão relativa aos critérios de tempo que seriam admissíveis para
a aplicação da continuidade delitiva não é pacffica nos Tribunais. Inúm e­
ras são as diretrizes e as variações apontadas como guia de definição.
Norm alm ente os julgados referem um período entre 1 (um) e 6 (seis)
meses de tem po entre os delitos224. N o entanto, o term o condições de tempo
estabelecido como requisito ao crime continuado pelo Código não parece
estar vinculado exclusivamente a um lapso ou período, mas ã característi­
ca da conduta, ou seja, às condições temporais em que o feto se realizou.
É inegável reconhecer que cada delito possui a sua particularidade
e, mesmo em casos em que abstratamente possa haver uma aparente iden­
tidade, uma aplicação padronizada pode gerar situações de disparidade.
Vejam-se, p. ex., duas hipóteses de crimes econômicos: sonegação de tribu­
tos de pessoa física (ou manutenção de divisas no exterior sem declaração)
e apropriação indébita previdenciária. Segundo as determinações legais, o
dever que atinge a pessoa física de inform ar e de recolher o imposto de
renda é anual. Assim, a possibilidade de alguém suprimir ou reduzir tribu­

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


to por meio de declarações falsas (art. I2, I, da Lei n. 8.137/90) ocorre uma
vez ao ano, no m om ento de apresentação da declaração de imposto de
renda —mesma situação relativa ao disposto no art. 22 , parágrafo único, 2-
parte, da Lei n. 7.492/86. Diferentes, porém , são as regras relativas ao
repasse de contribuições recolhidas dos empregados ã previdência social

Í-: y,
(art. 168-A, caput, do Código Penal) que ocorre com frequência mensal.
Embora ambas as condutas tenham uma identidade quanto ã sua natureza

ie BEtEtai v.
(crimes tributários), existem substanciais diferenças nas circunstâncias de
tempo de sua realização. Assim, se, no período de 2 (dois) anos, a mesma
pessoa física, de forma ininterrupta, (a) sonegar tributos e (b) deixar de
w - rJrfUt

repassar as contribuições dos seus funcionários ã previdência, ao final do


período terá cometido um núm ero distinto de cada crim e em espécie,
em bora o tenha feito em todas as oportunidades possíveis (circunstância
de tempo). Desta forma, seria injustificável, p. ex., adm itir a continuidade 4 5 9
nas condutas que violaram o art. 168-A, caput, do Código Penal e excluir
aquelas relativas ao art. I2, I, da Lei n. 8.137/90 e ao art. 22, parágrafo
único, 2i parte, da Lei n. 7.492/86. Inclusive porque, comparando as duas
situações hipotéticas, o autor do maior núm ero de delitos seria contempla­
do com uma pena m enor em decorrência do critério da exasperação —pena

224 Nestesentido, conferir DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 143.


de um dos crimes aumentada de 1/6 a 2/3 enquanto o sujeito que pra­
ticou núm ero inferior de crimes seria submetido a um a situação jurídica
mais grave em face do cúm ulo material —soma das penas aplicadas indi­
vidualmente.
Bitencourt salienta que não se trata apenas das condições m eteoro­
lógicas; deve haver um a conexão temporal entre as condutas praticadas e,
sobretudo, “deve existir, em outros termos, uma certa periodicidade que permita
obsenar-se um certo ritmo, uma certa uniformidade, entre as ações su&ssivas, em­
bora não se possamfixar, a respeito, indicações predsas”225.
Os critérios objetivos trazidos pela jurisprudência podem servir,
portanto, de guia, mas a riqueza do caso concreto sempre perm ite que os
requisitos legais possam ser adequados ã realidade fetica.
A mesma lógica serve para a identificação dos critérios espacial e
modal do crim e continuado. A questão não parece ser apenas a de uma
delimitação geográfica que restringe o lugar das práticas das condutas ou
a de um m odo de execução que se repete integralmente. Mas, em sentido
PENAL B R A S IL E IR O

mais amplo, o critério parece sugerir uma identidade de natureza dos locais
nos quais as ações ou omissões podem ser realizadas e um modo de agir
razoavelmente similar.
As condições de tempo, local e modo de agir não podem ser redu­
NO 3REIID

zidas, portanto, a um restrito lapso temporal, a uma topografia específica


ou a um a estrita forma de agir, mas às possibilidades fáticas do exercício
DE S EG U R A N Ç l

de condutas que tenha uma certa identidade temporal e modal com uma
sim ilar inserção espacial. Não por outra razão o art. 71, caput, do Código
Penal, adiciona outras condições semelhantes, indicando o complexo de opor­
tunidades e de circunstâncias que perm ite afirm ar uma identidade entre
FTNAS • MED WS

condutas distintas.

12.13.7. D entre as controvérsias sobre a matéria está a questão da


(in ) a d m is s ib ilid a d e d a c o n tin u id a d e n o s d e lito s c o n tra a v id a .

460 O Supremo Tribunal Federal havia editado a Súmula 605, que re­
feria que “não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida”. Desta
forma, a prática de crimes sucessivos, que implicasse em lesão ao b em ju­
rídico vida (hom icídio, infanticídio, aborto e instigação ao suicídio),
mesmo se realizada nas mesmas condições de tempo, local e forma de agir,
estaria im une ã incidência das regras que definem o crime continuado.

22i B ITEN CO U RT, Tratado de Direito Penal: Parte Geral, p. 685.


N o entanto, o tema acabou sendo superado na Reform a Penal de
1984, em razão da inclusão de uma nova causa especial de aumento de pena
que perm ite elevar até o triplo da pena nos casos de c r im e c o n tin u a d o

C om a previsão de uma majorante própria para os casos de (a)


e s p e c ífic o .

crimes dolosos, (b) cometidos com violência ou grave ameaça ã pessoa, (c)
praticados contra vítimas diferentes (art. 71, parágrafo único, do Código
Penal), o entendim ento sumulado foi superado.
A inaplicabilidade da Súmula 605 do Supremo Tribunal Federal
advém não apenas em decorrência da publicação de lei posterior que regula
a matéria, mas porque o pará^afo único do art. 71 do Código estabelece
um substancial aumento de pena e, sobretudo, adm ite sua majoração a
todos os crimes contra a pessoa (crimes contra a vida, crimes contra a
inte^idade física, crimes de perigo ã vida e à saúde, crimes contra a hon­
ra e crimes contra a liberdade individual), não apenas aos crimes contra a
vida conforme restringia o entendim ento sumulado.
Conforme a dinâmica do Código Penal, a causa de aumento, mesmo

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


que aplicada no m áxim o, deve respeitar os limites estabelecidos pelo art.
70, parágrafo único, e art. 75, isto é, o julgador não poderá fixar sanção
superior àquela que seria aplicada em caso de cúmulo de penas (concurso
material) ou ultrapassar a barreira formal dos 30 (trinta) anos.
Segundo R ealejr., o aumento previsto nos casos de crime continua­

Í-: y,
do específico “è medida suficiente para se reprovar mais rigidamente o crime

ie eBeHi v.
violento praticado em continuidade delituosa”226.

12.13.8. Q uanto ao c r ité rio d e q u a n tific a ç ã o d a p e n a n o c r im e

a jurisprudência consolidou uma fórmula a partir do critério


w - rJrfüt
c o n tin u a d o ,

objetivo do núm ero de delitos227, nos mesmos termos que orientam a in­
cidência da majorante do concurso formal —(a) dois crimes, exasperação
de 1/6 sobre a pena provisória; (b) três crimes, aumento de 1/5; (c) quatro
crimes, aum ento de 1/4; (d) cinco crimes, aum ento de 1/3; (e) seis crimes, 461
aumento de 1/2; (^ sete ou mais crimes, aumento de 2/3.

Instituições de Direito Penal II, p. 118.


226 R E A L E J R . ,

227 Neste sentido, dentre outros, B O S C H I, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 262;
D E L M A N T O , Código Penal Comentado, p. 143; F R A G O S O , Lições de Direito Penal, p.
446; F R A N C O e S T O C O , Código Penal e sua Inteyretação, p. 398; G A L V Ã O , Direito
Penal, p. 864; Q U E I R O Z , Direito Penal, p. 341; S C H E C A I R A , Teoria da Pena, p. 293.
Embora o núm ero de infrações seja um parâmetro interessante para
demonstrar a extensão do dano causado pela prática reiterada de condutas
puníveis —da mesma forma que o núm ero de vítimas e de delitos no con­
curso formal entende-se que esta diretriz não pode ser absolutizada.
Conforme demonstrado, existem situações peculiares, próprias de cada
experiência delitiva, que não perm item que um único critério seja univer­
salizado como padrão. Agir desta forma seria descontextualizar o foto,
possibilidade vedada pelo princípio da individualização da pena.
A incidência das regras do art. 70 e art. 71 do Código Penal possi­
bilita uma parcial verificação de identidade entre as condutas em julga­
mento, mas não perm ite um juízo comparativo em relação às demais hi­
póteses de ação ou omissão criminalizadas. Assim, no confronto entre
situações fotico-processuais distintas, a aplicação mecânica do entendim en­
to jurisprudencial pode gerar excessos e disparidades insuperáveis. Com o
é notório, cada situação de ilicitude possui suas peculiaridades, não apenas
PENAL B R A S IL E IR O

objetivas (tempo, local e m aneira de execução), mas, sobretudo, subjetivas.


Ney Fayetjr. constata que este critério não é im une a críticas, refe­
rindo, p. ex., as situações concretas que envolvem delitos culposos (abran­
gidos pela continuidade) quando, inegavelmente, haveria confusão entre
o grau de responsabilidade penal e o d e lesividade do resultado. Não por
NO 3REIID

outra razão, o autor entende viável a necessidade de se estabelecer a quan­


tidade de aumento, a partir de um a aproximação com os critérios de ava­
DE S EG U R A N Ç l

liação da responsabilidade subjetiva e os padrões utilizados para análise das


demais causas de aumento (ou das agravantes), que se relaciona com a maior
ou m enor exigibilidade de conduta diversa228.
FTNAS • MED WS

Em sentido similar o indicativo fornecido por Boschi, que procura


definir a culpabilidade como o parâmetro de orientação da quantificação
da pena para todas as majorantes e minorantes variáveis — culpabilidade
entendida em sentido amplo como o nível de resposta penal estabelecido
462 pelo juiz na análise das circunstâncias judiciais (pena-base)229. A utilização
do nível de responsabilização estabelecido na prim eira fase é um a forma
lógica de realizar a individualização da pena, elemento de análise que pode
ser agregado às demais circunstâncias objetivas, como núm ero de crimes
e de vítimas. Neste sentido a diretriz apresentada por R odrigo R oig Soares:

228 FAYETJR., Do Crime Continuado, p. 223.


229 BOSCHI, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 268.
“chega-se à conclusão de que o critério puramente objetivo (matemático) do número
de infrações pratitódas deve ser necessariamente mitigado pela constatação da benig-
nidade de circunstâncias judiciais”230.
As guias interpretativas perm item , portanto, readequar o critério
jurisprudencial, no seguinte sentido: (a) o critério relativo ao núm ero de
infrações configura-se como um a orientação ao julgador em relação ã
quantidade máxima de pena aplicável —inadmissível, p. ex., majorar a pena
em 1/5 se foram praticadas apenas duas condutas; (b) a culpabilidade fa­
vorável perm ite ao magistrado aplicar a majorante em quantidade inferior
ao definido jurisprudencialmente.
(d) L im ite das Penas
12.13.9. O lim ite das penas estabelecido no art. 75, caput, do C ó­
digo Penal, refere-se ã execução, e não ã aplicação. Assim, obedecendo ao
comando constitucional de vedação das penas perpétuas, o Código fixa
como prazo m áximo de cum prim ento da pena 30 (trinta) anos, impondo

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


que as sanções sejam untâcadas para respeitar este lim ite (art. 75, § 1-).
Embora possa parecer m eramente retórica, há um a profunda diferença
entre a aplitóção ilimitada e a execução restrita da sanção criminal.
Nos casos em que o magistrado fixa, na sentença criminal, uma pena
acima do lim ite dos 30 (trinta) anos, apesar de o tempo de cum prim ento

1-: y,
ser restrito ao teto do art. 75 do Código, todo o cálculo dos direitos pre­
vistos na execução penal (progressão de regime, livram ento condicional,

ie BEtEtai v.
detração, comutação, remição) é realizado com base no total estabelecido
judicialmente. Significa dizer, p. ex., que se alguém é condenado a 60
(sessenta) anos de pena privativa de liberdade, embora o cum prim ento
'■i - rJrfUt

esteja limitado aos 30 (trinta) anos, a diminuição da pena pelo trabalho


(remição) será abatida do total. De igual forma, os prazos para progressão
de regim e (1/6), previstos no art. 112 da Lei de Execução Penal, e livra­
m ento condicional (1/3), regulado pelo art. 83 do Código Penal —exceto 4 6 3
nos casos de reincidência e de crimes hediondos, que possuem regras es­
pecíficas (prazos maiores) —seriam implementados, respectivamente, após
o cumprimento de 10 (dez) e 20 (vinte) anos, e não em 5 (cinco) e 10 (dez),
caso a pena fosse quantificada em 30 (trinta) anos, conforme posiciona-

230 SOARES, Aplicação da Pena Privativa de Liberdade e o Dever Jurídico-Constitucional de


M inim iz^ão da Afetação Individual, p. 280.
m ento consolidado pela Súmula 715 do Supremo Tribunal Federal231. A
diferença é significativa e produz importantes efeitos no sistema punitivo.
Im portante destacar, ainda, a regra do § 2S, que regula as hipóteses
de condenação por fato posterior ao início do cumprimento dapena. Nestes casos,
o dispositivo determina que a nova u n ^cação ocorra desprezando o perío­
do de pena cumprido, o que significa dizer que há um alargamento do
prazo de 30 (anos) previsto no caput do art. 75 do Código nas situações
excepcionais de delitos praticados durante a execução da pena.
Scapini diferencia as situações a partir do seguinte exemplo: “se o
condenado à pena de 100 (cem) anos, d ^o is de cumprir 10 (dez), pratica novo
crime e sofre condenação à pena de 5 (cinco) anos, terá ainda a cumprir 25 (vinte e
cinco) anos, resultado da unificação do saldo da pena limitada (20 anos) com a da
condenação que sobreveio (5 anos). E os prazos para benefícios serão calculados sobre
os 95 (noventa ecinco) anos, resultado do saldo do total dapena anterior (90 anos),
com a nova pena imposta (5 anos)”232. N ote-se que no exemplo acima, ao
final, o condenado teria cum prido 35 (trinta e cinco) anos de pena.
PENAL B R A S IL E IR O

1 2 .1 4 . Definição do Regime Inicial de Cumprimento (Regimes


Aberto, Semiaberto e Fechado) e Espécies de Penas
NO 3REIID

Privativas de Liberdade (Detenção e Reclusão)


DE S EG U R A N Ç l

12.14.1. Eleita a espécie (art. 59, I) e dosada a quantidade de pena


(método trifásico) aplicável (art. 59, II c/c art. 6 8 ), a terceira etapa estabe­
lecida pelo Código Penal é a da d e fin iç ã o d o re g im e in ic ia l d e c u m ­
FTNAS • MED WS

p r im e n to d a p e n a p r iv a tiv a d e(art. 59, III).


lib e r d a d e

Segundo o art. 33, caput, do Código Penal, existem duas espécies de


pena privativa de liberdade: ere c lu s ã o Cada tipo incrrninador
d e te n ç ã o .

estabelece, em seu preceito secundário, antes do n ú n rn o e do m áximo


atribuído ao delito, se a pena privativa correspondente é de reclusão ou de
^ detenção —p. ex., art. 312, caput, do Código Penal (peculato): “apropriar-se
o funcionário público de dinheiro, valor ou quafyuer outro bem móvel, público ou
particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio

231 "A pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo art.
75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefoios, <nmo o livramento
condicional ou regime mais favorável de exemção”.
232 SCAPINI, Prática de Execução das Penas Privativas de Liberdade, p. 64.
ou alheio: pena — reclusão de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa”-, art. 319 do
Código Penal (prevaricação): “retardar ou deixar de praticar, indevidamente,
ato de oficio, ou praticà-lo contra disposição de lei, para satisfazer interesse ou sen­
timento pessoal: pena — detenção, de 3 (trfc) m&es a 1 (um) ano, e multa”.
O próprio caput do art. 33 estabelece a diferença entre reclusão e
detenção. A reclusão adm itiria como regime inicial de cum prim ento da
pena as três modalidades previstas no Código, ou seja, regimes fechado,
semiaberto e aberto. A detenção, por ser um a espécie de pena cabível em
delitos de m enor gravidade, com portaria apenas os regimes semiaberto e
aberto. O corre que no final do art. 33, caput, há inclusão de uma ressalva
quanto ã pena de detenção: “salvo necessidade de transferência a regimefechado”.
Desta forma, ao ser possibilitado excepcionalmente o regime fechado nos
crimes em que há previsão de pena de detenção, a legislação penal tom ou
sem qualquer efeito a diferença entre as espécies de pena privativa de liberdade.
N o entanto, apesar de se tom ar inócua no tratam ento das penas, a
diferença é significativa para definição das espécies de medidas de segu­
rança aplicáveis. Segundo o art. 97, caput, do Código, em caso de inim pu­
tabilidade o juiz determ inará a internação do autor do feto. O regim e de
internação ocorre em hospital de custódia e tratam ento psiquiátrico ou
outro estabelecimento adequado de similar natureza, nos term os do art.
96, I. Todavia, se o tipo penal atribuído ao inimputável previr pena deten-
tiva, o juiz poderá aplicar o tratam ento ambulatorial (art. 96, II). Embora
a redação do dispositivo refira uma possibilidade, na doutrina e na juris­
prudência foi consolidado o entendim ento de que o sujeito adquire direi­
to ao tratam ento jurídico mais benigno, motivo pelo qual a diferença
entre detenção e reclusão fez sentido na determinação das medidas de se­
gurança, conforme será posteriormente trabalhado.

12.14.2. A determinação do inciso III do art. 59 do Código Penal


no sentido de que o juiz indique o r e g im e de cum prim ento da
in ic ia l

pena diz respeito ao dever constitucional de adequação dos sistemas de


aplicação e de execução das penas ao prindpio da individualização (art. 5S,
XLVI, da Constituição). O § 2 - do art. 33 do Código Penal instrum enta­
liza a individualização, determ inando que as penas privativas de liberdade
obedecerão ã forma progressiva, ou seja, que durante a execução a sanção
seja adequada às condições do condenado, ampliando (progressão) ou di­
m inuindo (regressão) os espaços de liberdade.
A delimitação de um regime inicial ganhou importância a partir do
reconhecim ento da inconstitucionalidade do art. 2° § l 9, Lei n. 8.072/90
pelo Supremo Tribunal Federal. O dispositivo da Lei dos Crim es H edion­
dos estabelecia regime de pena integralmente fechado aos delitos arrolados
em seu art. I9, isto é, não apenas determinava o regime fechado como
obrigatório para o início do cum prim ento da pena aos condenados por
crimes rotulados com o hediondos ou equiparados, independentem ente da
quantidade de pena fixada pelo juiz, como congelava aquela modalidade
de regim e como única possibilidade de cum prim ento da pena.
A doutrina nacional, em sua grande maioria, mesmo as correntes
mais conservadoras, apontou, desde os primeiros momentos de vigência
da Lei n. 8.072/90, que a obrigatoriedade do regim e fechado independen­
tem ente da quantidade da pena imposta e, sobretudo, a impossibilidade de
progressão ao longo da execução ofendiam os princípios da individualiza­
ção e da hum anidade constitucionalmente consagrados. Em realidade, as
vedações estabelecidas na Lei dos Crimes Hediondos obstruíam inúmeros
PENAL B R A S IL E IR O

avanços da Constituição no sentido de projetar um a política de ampliação


das alternativas ã prisão.
Algumas decisões isoladas, notadamente a partir da edição da Lei
n. 9.455/97, passaram a entender como revogada a proibição, visto o § 7s,
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

do art. I9, da Lei dos Crimes de Tortura, mencionar que os condenados


pela prática do crime de tortura iniciariam o cum prim ento da pena em
regim e fechado. A Lei dos Crimes de Tortura, apesar de fixar o regime
inicial fechado independente da quantidade de pena, ampliava a possibi­
lidade de flexibilização durante o cum prim ento da sanção. Em face de
MED IUS

ambos os estatutos (Lei dos Crimes Hediondos e Lei dos Crimes de Tor­
tura) terem a mesma hierarquia, pois derivados do mesmo dispositivo
i

constitucional (art. 59, XLIII), e, sendo a Lei n. 9.455/97 posterior e mais


FíMAS

benéfica, doutrina e alguns julgadores entenderam aplicável o princípio


da retroatividade.
Após algumas variações no entendimento dos Tribunais, o Supremo
Tribunal Federal, no intuito de pacificar a matéria, emitiu a Súmula 698
(“não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão de
regime de executo da pena apliwda ao crime de tortura”). N o entanto, em
paralelo, algumas decisões da l â Turm a seguiam divergindo do conteúdo
da Súm ula, afastando a proibição de progressão de regim e para os
condenados pelos crimes de extorsão mediante seqüestro e de tráfico ilícito
de entorpecentes, exatamente em decorrência do reconhecim ento dos
efeitos da Lei n. 9.455/97233. O tema foi submetido ao Pleno da Suprema
Corte e, após 15 anos de vigência, o colegiado decidiu, por maioria dos
votos, que “conflita com a garantia da individualizado da pena (art. 5-, X L V I,
da Constituição Federal) a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena
em regime integralmentefechado. Nova inteligência do princípio da individualização
da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstituríonalidade do artigo
2-, § í e, da Lei n. 8 .0 7 2 /9 0 "n \
Apesar da importante decisão —que acabou fomentando a alteração
da Lei n. 8.072/90 para aumentar os prazos de progressão de regime (Lei n.
11.464/2007) —, a Lei dos Crimes Hediondos deixou um significativo lega­
do no sistema brasileiro de aplicação da pena: a determinação do Kgime inkial
fechado aos msos de condemção por crime definido como hediondo ou equiparado.

12.14.3. Assim, o prim eiro critério objetivo para definição judicial


do regime inicial de cum prim ento de pena é o da natureza jurídica do delito.
Qualificado como hediondo, independentem ente da quantidade de pena

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


imposta, o regime im posto será o fechado.
Além desta hipótese, o Código Penal prevê a aplicação do re g im e
fechado quando o julgador, ao realizar a dosimetria, fixar pena superior
a 8 (oito) anos (art. 33, § 2°, a). O segundo critério objetivo, portanto, é
o da quantidade de pena. O reg im e sem ia b e rto é estabelecido quando a
pena judicialm ente determinada for superior a 4 (quatro) e não exceder a

Í-: y,
8 (oito) anos (art. 33, § 2-, i ) e o re g im e a b e rto é aplicado aos casos em

ie BEtEtai v.
que a sanção é inferior a 4 (quatro) anos (art. 33, § 2S, c).
Aliado aos critérios objetivos (natureza do delito e quantidade de
pena), o Código indica dois critérios subjetivos para definição do regime de w - rJrfUt
ingresso no sistema prisional: reinrídênría e culpabilidade (em sentido amplo).
As alíneas b e c do art. 33, § 2-, determinam os regimes semiaberto
e aberto em razão do m ontante de pena aplicada, mas excepcionam nas
situações em que o condenado é reincidente. Neste quadro normativo, a
reincidência tem a capacidade de graduar em um nível o regime inicial de
cum prim ento da sanção, ou seja, se em decorrência da quantidade de pena

233 Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus 87.452, R ei. M in. Marco Aurélio, j.
22.05.2006; Supremo Tribunal Federal, Habeas Coqius 87.623, Rei. Min. Marco .Aurélio,
j. 20.06.2006.
234 Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus 82.959, Rei. M in. Marco Aurélio, j.
23.02.2006.
o condenado adquire o direito ao regime aberto, se reincidente iniciará a
execução no regime semiaberto; se a quantidade perm itiria o semiaberto,
em caso de reincidência, o regim e é graduado para o fechado. Logicamen­
te que, em face de inexistir um regim e mais severo que o fechado, a situa­
ção do condenado a pena superior a 8 (oito) anos não é alterada.
Além da reincidência, o art. 33, § 3° do Código Penal, estabelece
outro critério subjetivo para definição do regime de pena, qual seja, a culpa­
bilidade em sentido amplo: “a deterninação do regime inicial de cumprimento da
penafar-se-á com a observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código”.
A remissão ao art. 59, caput, do Código Penal, parece reforçar a ideia
exposta anteriormente, sobretudo no que tange aos critérios de valoração
das causas especiais de aum ento e de dirnnuição de pena variáveis, no que
diz respeito ã compreensão do conjunto das circunstâncias judiciais como
índice genérico ou grau de responsabilidade individual pelo injusto (cul­
pabilidade em sentido amplo). O art. 33, § 3S, do Código, é bastante claro
em vincular a determinação do regime ao índice geral de responsabilidade.
FíMAS i MED IUS DE S E G U R «(JI ND 3REIID PENAL BRASILEIRO

Inclusive esta mesma metodologia será reproduzida na quarta etapa da


aplicação da pena (art. 59, IV, do Código Penal), quando da análise das
possibilidades de substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de
direitos.
Desta forma, seguindo os mesmos parâmetros fixados para delimi­
tação da quantidade de variação de pena nas hipóteses de concurso formal
e crime continuado, entende-se que a observância das condições do art.
59, caput, do Código Penal, para a definição do regime de pena, deve ser
limitada, em seu máximo, pelas rírcunstâncias legais objetivas e subjetivas do § 2-
do art. 33. Significa dizer, portanto, que a análise do grau de responsabi­
lidade penal do autor (culpabilidade em sentido amplo) perm ite flexibili­
zar o regime em benefício do acusado. Isto porque os critérios do § 2S do
art. 33 se constituem, em realidade, como fronteira máxima de punibili­
dade. Se as circunstâncias judiciais forem favoráveis, não haveria quaisquer
468 óbices para aplicação do regime semiaberto nos casos de (a) pena fixada acima
dos oito anos ou de (b) sanção dosada entre 4 (quatro) e 8 (oito) anos, em
caso de réu reincidente; ou, ainda, estabelecer regime aberto nas situações de
(c) pena aplicada abaixo dos 4 (quatro) anos, em caso de condenado rein­
cidente. A flexibilização da legalidade penal em benefício do réu, seguin­
do a previsão exposta no art. 33, § 2-, é plenamente admissível em um
modelo penal de garantias. O contrário, porém , é vedado, visto ser a le­
galidade uma barreira de contenção que não pode ser ultrapassada em
prejuízo dos direitos individuais.
A diretriz exposta é reforçada pela consolidação jurisprudencial
realizada pelo Supremo Tribunal Federal: “a opinião do julgador sobre agra-
vifade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para imposição do regi­
me mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada” (Supremo Tribunal
Federal, Súmula 718). Sobre a mesma matéria: “a imposição de regime de
cumprimento mais severo do que a pena aplicada exige fundamentação idônea”
(Supremo Tribunal Federal, Súmula 719).
12.14.4. A d iferen ça en tre os regim es de c u m p rim e n to de
p en a é relativa fundamentalmente às características das instituições e ao
m aior ou m enor espaço de liberdade proporcionado ao condenado.
A execução da pena no re g im e fechado ocorre em estabelecimen­
tos de segurança máxima ou média (art. 33, § l 9, a), nos quais o condena­
do fica submetido a trabalho diurno e isolamento noturno, com possibili­
dade de realizar tarefas externas apenas em serviços ou obras públicas (art.
34, § Ia e § 3a). N o re g im e sem iab erto , o sujeito cumpre a pena em

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


colôma agrícola ou industrial (art. 33, § Ia, b), sendo admissível o trabalho
externo em instituições públicas ou privadas, bem como a frequência a
cursos supletivos profissionalizantes ou de instrução (ensino fundamental,
médio ou superior) (art. 35, § Ia e § 2-). N o re g im e ab erto , cum prido
em casa de albergado ou similar (art. 33, § Ia, c), há obrigatoriedade de o
condenado recolher-se apenas no período noturno e nos dias de folga,

Í-: y,
visto a necessidade de trabalho diurno ou frequência a cursos profissiona­

ie BEtEtai v.
lizantes ou instrutórios (art. 36, § 1-).
A diferença entre as estruturas dos estabelecimentos prisionais e as
restrições do contato com o m undo externo regradas pelo Código Penal w - rJrfUt
procura adequar a execução da pena ao princípio constitucional da indi­
vidualização (art. 5S, XLVI). Note-se, inclusive, que o art. XLVIII da
Constituição é preciso ao determ inar que “a pena será cumprida em estabele-
àmentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”, ^
diretriz que se desdobra no re g im e especial de c u m p rim e n to g a ra n ­
tid o às m u lh ere s no art. 37 do Código Penal (“as mulheres cumprem pena
em estabeleámento próprio, observando-se os devera e direitos inerentes à sua con­
dição pessoal, bem como, no que couber, o disposto neste Capítulo").
Embora a matéria seja relacionada em inentem ente às questões da
execução da pena, os problemas da natureza e da característica dos regimes
prisionais ganham relevância na fase de aplicação da pena em razão da
crise do sistema carcerário e da feita de estabelecimentos penais adequados.
A indagação pertinente, em razão da falta de estrutura material na execu­
ção penal (ausência de vagas e de instituições prisionais suficientes e ade­
quadas), é a de qual regim e deve ser fixado pelo juiz em caso de inexis­
tência de local apropriado —leia-se local apropriado como estabelecimento
que cumpre m inim am ente os requisitos formais e materiais previstos na
legislação penitenciária.
A preocupação é colocada de forma precisa por Alberto Silva Fran­
co, sobretudo em razão da carência de instituições de regim e semiaberto
no Brasil. Todavia, é possível ampliar a complexidade do problema e im a­
ginar situações concretas em que inexistem instituições femininas. Nestes
casos, seria admissível, p. ex., que o condenado ao regime semiaberto
iniciasse o cum prim ento da pena em um estabelecimento prisional de
segurança máxima ou média ou que uma m ulher cumprisse sua pena em
uma instituição masculina, mesmo que em uma cela ou ala separada?
Segundo A lberto Silva Franco, “muito embora haja divergência jurispru-
dencial, força ê convir que se a deficiência do aparelhamento prisional ê devida à
PENAL B R A S IL E IR O

ineficácia, ao desinteresse ou à negligência do Estado, nada justifica a permanência


do condenado em estabelecimento que não corresponda ao determinado na sentença
condenatória. O condenado não poderá, por tal razão, sofrer uma &acerbação do
regime de pena e, nessa situação, deverá provisoriamente ser transferido para regime
NO 3REIID

mais favorável”235.
Desta forma, seguindo esta orientação, em caso de sentença conde­
DE S EG U R A N Ç l

natória que im põe o regim e semiaberto, se inexistente colônia penal


agrícola ou industrial, deve o condenado iniciar o cum prim ento da pena
em casa de albergado. M antida a insuficiência, a solução correta parece
ser a conversão temporária da pena por prisão domiciliar. Solução idênti­
FTNAS • MED WS

ca deve ser aplicada, p. ex., no caso de ausência de instituição penitenciá­


ria feminina.
N estesentido, A m ilton Bueno de Carvalho: “háfiagrante constrangi­
mento ilegal na medida em que o condenado ê submetido a estabelecimento penal
470 incompatível com o regime em que se encontra — estabelecimento destinado a apena-
dos em regime mais gravoso”236.
O entendim ento exposto se adéqua plenamente aos princípios da
individualização da pena (art. 5° XLVI, da Constituição) e do respeito ã
integridade física e moral dos presos (art. 5S, XLIX, da Constituição e art.

í3S FR A N CO e STO C O , Código Penal esua Inte^retação, p. 242.


236 CARVALHO, Garantismo Aplicado à teecução Penal, p. 247.
38 do Código Penal), motivo pelo qual se torna injustificável a recente
consolidação jurisprudencial realizada pelo Superior Tribunal de Justiça
sobre a possibilidade de progressão de regim e per saltum — “é inadmissível a
chamada progmsão per saltum de regime prúional” (Superior Tribunal dejusti­
ça, Súmula 491). A inadequação decorre do foto de que a própria legislação
admite esta hipótese de transferência (per saltum), sem necessidade de per­
manência no regime intermediário, nos casos de regressão (art. 36, § 2e, do
Código Penal), conforme será trabalhado no m om ento da execução penal.

12.15. Substituição da Pena Privativa de Liberdade por Pena


Restritiva de Direitos

12.15.1. Definidas a quantidade (tempo) e a qualidade (regime) da


privação da liberdade, o art. 59, IV, do Código Penal, determ ina que o
julgador analise a possibilidade de su b stitu ição d a pena de prisão por
outra espécie prevista no ordenamento jurídico, no caso, pena restritiva de
direitos ou multa.
Em prim eiro lugar, é im portante lem brar que há uma diferença
significativa entre as possibilidades de aplicação de pena não carcerária
disciplinadas nos incisos I e IV do art. 59 do Código. Conforme visto
anteriormente, pode o juiz, na primeira etapa do procedim ento de aplica­
ção da pena, eleger como sanção a multa ou a restrição de direitos. N o
entanto, esta hipótese é possível apenas nos casos em que há pena não
privativa de liberdade prevista de forma alternada ã prisão — p. ex., nos
casos mais comuns, de alternância entre a pena privativa de liberdade e a
multa, indicada pela conjunção alternativa ‘ou’. O caso do inciso IV, porém,
é distinto, pois a pena principal estabelecida na condenação é a prisão.
Todavia, em decorrência de uma série de circunstâncias, esta sanção car­
cerária pode ser substituída por pena restritiva de direito ou m ulta237.
A Constituição, em seu art. 5e, XLVI, enumerou distintas penas no
ordenamento jurídico nacional: (a) privação ou restrição da liberdade; (b)
perda de bens; (c) multa; (d) prestação social alternativa; e (e) a suspensão
ou interdição de direitos. Em razão de o elenco constitucional ser apenas
exemplificativo —excetuando as vedações previstas no art. 5e, XLV —, a

237 Em razão das especificidades, a possibilidade de substituição da pena de prisão pela de


multa será realizada posteriormente.
Lei n. 9.714/98 (Lei das Penas Alternativas) incluiu no rol das penas res­
tritivas de direito previsto no Código Penal a prestação pecuniária.
Neste quadro, o C ódigo Penal, a partir das diretrizes constitucionais,
admite as seguintes espécies de penas restritiv as de d ireito : (a) pres­
tação pecuniária (art. 43, I); (b) perda de bens e valores (art. 43, II); (c)
prestação de serviço ã comunidade ou a entidades públicas (art. 43, IV);
(d) interdição temporária de direitos (art. 43, V); e (e) limitação de final
de semana (art. 43, VI). O inciso III do art. 43, que previa como pena o
rec o lh im en to d o m ic ilia r238, foi vetado.
A prestação p ecu n iária, conform e o art. 45, § l 2, do Código,
possui um caráter indenizatório, consistindo no pagamento ã vítima, aos
seus dependentes ou ã entidade pública ou privada com destinação social,
de valor fixado pelo juiz, estabelecido entre 1 (um) e 360 (trezentos e
sessenta) salários m ínim os —o cálculo específico do valor pecuniário se­
guirá os critérios de determinação da pena de multa, segundo as diretrizes
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

posteriormente expostas. A natureza indenizatória é perceptível pelo foto


de a segunda parte do dispositivo legal prever que o valor pago será dedu­
zido daquele fixado em eventual condenação em ação de reparação de dano
civil se coincidentes os beneficiários.
Im portante referir a diferença entre a prestação pecuniária e a pena
de multa. A prestação pecuniária é direcionada, fundam entalm ente, ao
sujeito passivo do delito ou seus familiares, adquirindo, conforme exposto,
natureza indenizatória civil. A pena de multa, diferentemente, é paga ao
Estado (Fundo Penitenciário Nacional), não sendo transferível ã vítima
(art. 49, caput, do Código Penal). Apesar do caráter patrimonial de ambas,
suas naturezas jurídicas são distintas.
Há outra diferença marcante entre a pena pecuniária e a reparação
em decorrência dos efeitos da condenação. O art. 52, XLV, da Constituição,

472 ------------------------
238 O texto vetado previa que “o acolhimento domiciliar baseia-se na autodisciplina e senso de
responsabilidade do condenado. O condenado deverá, sem vigilância, trabalhar, freqüentar cuno ou
exercer atividade autorizada, permanecendo recolhido nos dias ou horários de folga em Ksidência ou
qualquer loal destinado 4 sua moradia habitual, wnforme estabelecido na sentença”.
Na mensagem de veto (Mensagem 1.447/98), a Casa Civil da Presidência da Repúbli­
ca justificou, aduzindo que "afigura do 'recolhimento domiciliar', conforne a concebe o Projeto,
não wntêm, na essência, o mínimo necessário de força punitiva, afigurando-se totalmente desprovida
da apacidade de prewnir nova prátia delituosa. Por isto, orente do indi^ensável substrato co&citivo,
reputou-se contrária ao interesse público a norma do froijeto que a institui como pena alternativa”.
determ ina como conseqüência do delito a obrigação de reparação. O C ó­
digo Penal, ao tratar da matéria relativa aos efeitos da condenação, vincu­
la o autor do delito (a) à obrigação de indenizar o dano causado pelo crime
e (b) à perda, em favor da União, do produto ou qualquer bem ou valor
que constitua proveito pela prática do ilícito (art. 91, I e II). A reparação
ocorre em processo autônomo, perante o juízo cível, sendo cabível, con­
forme exposto, o abatimento do valor da prestação pecuniária daqueles
fixados a título de danos materiais e morais. A prestação pecuniária e a
multa, porém, em razão de serem penas criminais, são personalíssimas, isto
é, são intransferíveis, extinguindo-se nas hipóteses do art. 107 do Código.
Ao contrário, há possibilidade de sucessão da dívida contraída na ação
indenizatória (cível), em observância ã parte final do art. 5S, XLV, da
Constituição.
A sanção de p e rd a de bens e valores, como ocorre com a pena de
multa, consiste na transferência do valor do prejuízo ou do provento ob­
tido com o crim e ao Fundo Penitenciário Nacional (art. 45, § 2S, do C ó­
digo Penal). Note-se que a perda de bens e valores é limitada pela vantagem
patrim onial obtida com o delito. A possibilidade de transferência, em
forma de sanção crim inal, do excedente do lucro obtido pelo crime ocor­
re nos casos de imposição cumulada de outras sanções como, p. ex., a
multa ou a prestação pecuniária.
A prestação de serviço à c o m u n id a d e ou a en tid ad es p ú b li­
cas im porta na realização de tarefes gratuitas, segundo a aptidão do con­
denado, cumpridas junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfa­
natos ou estabelecim entos congêneres ou, ainda, em program as
comunitários ou estatais (art. 46, §§ l 2 e 2S, do Código Penal). Conforme
o art. 46, § 32, do Código Penal, a substituição ocorrerá na razão de 1
(uma) hora de trabalho por dia de condenação, fixada de m odo a não
prejudicar a jornada de trabalho.
As hipóteses de in te rd iç ã o te m p o rá ria de d ireito s previstas no
Código (art. 47) são (a) proibição de exercício de cargo, função, atividade
pública ou mandato eletivo; (b) proibição de exercício de profissão, ativi­
dade ou ofício que dependam de habilitação especial, licença ou autoriza­
ção do poder público; (c) suspensão de autorização ou habilitação para
dirigir veículo; (d) proibição de freqüentar determ inados lugares; e (e)
proibição de inscrever-se em concurso, avaliação ou exame público.
A lim ita ç ã o de fim de sem ana implica a obrigação de perm a­
nência, aos sábados e domingos, por 5 (cinco) horas diárias, em casa de
albergado ou outro estabelecimento adequado, com objetivo de participa­
ção em cursos e palestras educativas (art. 48 do Código Penal)239.

12.15.2. O Código Penal estabelece dois parâmetros centrais ou


c ritério s de aplicação d a p en a re stritiv a de direito: primeim, requi­
sitos de ordem objetiva, relativos ã natureza e ao m odo de execução do
delito e ã quantidade de pena; e segundo, requisitos de ordem subjetiva,
referentes ã culpabilidade em sentido genérico (circunstâncias judiciais do
art. 59, caput, do Código Penal).
Dentre os requisitos objetivos mais relevantes, o te m p o de co n ­
den ação fixado judicialm ente estabelece um a verdadeira linha de corte
entre as condenações ã pena privativa de liberdade que podem e as que não
podem ser substituídas pela pena restritiva de direito.
A redação do art. 44, I, do Código Penal, nos termos da Lei n.
9.714/98, estabelece um a barreira objetiva instransponível aos casos em
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

que a quantidade de pena aplicada (art. 59, II, do Código Penal) supere 4
(quatro) anos. Duas exceço& ã regra, porém, são previstas.
A primeira, na condenação por crim e cu lp o so (art. 18, II, do
Código Penal), pois, conforme o dispositivo legal referido, nestes casos a
pena de prisão poderia ser substituída independentemente da quantidade
de pena, ou seja, mesmo sendo estabelecida acima dos 4 (quatro) anos. N o
entanto, analisando os parâmetros legislativos de fixação de penas no di­
reito penal brasileiro, é possível sustentar ser episódica a possibilidade de
alguém ser condenado a pena acima de 4 (quatro) anos por crim e culposo.
Veja-se, p. ex., que a pena m áxim a prevista para o homicídio culposo é de
3 (três) anos de detenção (art. 121, § 3° do Código Penal), para o hom i­
cídio culposo praticado no trânsito de 4 (quatro) anos de detenção (art.
302 da Lei n. 9.503/97), para as lesões corporais culposas de 1 (um) ano
de detenção (art. 129, § 6° do Código Penal). Os casos excepcionais in­
variavelmente decorrem do concurso de crimes, com a aplicação das regras
do art. 69 e do art. 70 do Código Penal, i.e., nas hipóteses de uma (con­
curso formal) ou mais (concurso material) condutas negligentes produzirem
dois ou mais delitos distintos (concurso de delitos). Nestas situações, mes­
mo a pena ultrapassando o teto dos 4 (quatro) anos, o juiz poderá substituir

239 As especificidades relativas a cada modalidade de pena restritiva de direito, os critérios


de cumprimento, o não cumprimento e os casos de revogação serão analisados no mo­
mento da execução penal.
por restritiva de direitos —p. ex., em acidente de trânsito, o sujeito causa,
culposamente, m orte e lesões corporais a várias pessoas.
A possibilidade de substituir a pena de prisão aos crim es culposos é
contraposta ã restrição de sua inaplicabilidade aos crim es com etidos co m
violência ou grave am eaça à pessoa (segunda exceção). Se aos crimes
culposos é perm itida a substituição, independentem ente da quantidade de
pena fixada, nas situações de cometimento de delitos com violência ou
grave ameaça ã pessoa é criado um impeditivo, mesmo quando a pena fique
aquém do limite dos 4 (quatro) anos.
N o entanto, conforme argumenta Silva Franco, esta presunção legal
não pode ser interpretada como um a regra inflexível, sob pena de ofensa
ao princípio da proporcionalidade, notadamente nos casos de infrações de
m enor potencial ofensivo —p. ex., lesões corporais (art. 129, caput), amea­
ça (art. 147), constrangimento ilegal (art. 146), todos do Código Penal.
Em determinadas situações, a vedação constitui, conforme destaca Reale
Jr., verdadeira aberração, m otivo pelo qual a regra deve ser interpretada a
partir da principiologia constitucional240. Nas situações referidas, embora
as condutas sejam praticadas com violência ou grave ameaça, por força da
incidência da Lei n. 9.099/95, seria paradoxalmente possível a aplicação de
substitutivos processuais com o a composição civil e transação penal. Des­
ta forma, não seria coerente, em termos lógicos, e proporcional, em termos
de direito penal material, que houvesse a possibilidade de substituição do
processo e não da pena, sobretudo pelo feto de que as condições materiais
de substituição (do processo e da pena) previstas na legislação penal brasi­
leira são praticamente idênticas (restrições de direitos). Assim, segundo
Silva Franco, “não há razão para impedir a sua aplicação através de substituído
operada em sentença penal condenatória, quando frustrafas as soluções a lte^tiva s
do conflito previstas na Lei 9 .0 9 9 /9 5 ”241. N o mesmo sentido Boschi, que

240 "A substituição da pena privativa por restritiva tem mais uma exigêmia objetiva segundo a Lei
9.714/98: o crime não pode ter sido pratirndo mediante violêmia ou grave ameaça, art. 44, I, do
Código penal, o que constitui uma aberração, pois não será possível operar-se a substituição com k -
lação ao crime de ameaça, art. 147 do Código penal ou de constrangimento ilegal, art. 146 do Có­
digo penal, sendo o primeiro apenado mm detenção de um mês a seú meses e o segundo com detento
de três meses a um ano, aplicável a ambos a transação penal, a suspensão condicional do processo ou
a su^ensão rnndicional da pena, mas inviabilizada a substituição por pena Kstritiva” (REALE
JR ., Instituições de Direito Penal II, p. 52).
241 FR A N C O e STOCO, Código Penal e sua Interpretação, p. 290.
entende que “o absurdo seria inqualificável, com efeito, se o ju iz não pudesse, na
sentença condenatória, substituir a pena privativa de liberdade por espécie de pena
que, sefor aceita transação, impede, noJuizado Esperíal, o nasdmmto do prncesso”242.
Importante, no entanto, não restringir a interpretação apenas aos
casos em que o processo é de competência dos Juizados Especiais, ou seja,
em que é cabível a transação penal ou a composição civil. Isto porque o
art. 89 da Lei n. 9.099/95, que institui a possibilidade de suspensão con­
dicional do processo, não é limitado às infrações de m enor potencial
ofensivo, sendo cabível a todos os delitos cuja pena m ínim a não seja supe­
rior a 1 (um) ano. Nesta linha, as conclusões de R ealejr. são plenamente
coerentes no sentido de a substituição da prisão por pena alternativa ser
cabível em todos os casos em que haja possibilidade de aplicação de algum
substitutivo penal ou processual, incluindo-se, logicamente, a suspensão
condicional do processo e a suspensão condicional da pena (sursis)243.
Outra questão relevante, relativa à natureza do delito, diz respeito à
(im) possibilidade de aplicação de pena restritiva de direitos às condenações
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por prática de c r i m e h e d i o n d o ou equiparados. Conform e lembra Pau­


lo Queiroz, em princípio não haveria qualquer im pedim ento legal à subs­
tituição, desde que o crim e (hediondo) seja praticado sem violência ou
grave ameaça244.
O tema ganhou destaque porque o art. 33, § 49, da Lei de Drogas
vedou expressamente a conversão da prisão em penas restritivas às pessoas
que tenham praticado os crimes previstos no seu caput e § l 9 (hipóteses de
comércio ilegal de drogas). Há, inclusive, um a profunda contradição no
dispositivo, que, apesar da vedação, possibilita a aplicação de uma m ino­
rante (1/6 a 2/3) ao agente prim ário, de bons antecedentes, que não se
dedica a atividades criminosas nem integra organização criminosa. Além
disso, o art. 44, caput, da Lei n. 11.343/2006, estabeleceu que os crimes
previstos no art. 33, caput e § l9, arts. 34 e 37, seriam inafiançáveis e insus­
cetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, sendo igual­
mente proibida a substituição da pena de prisão.

242 Boschi, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 327.


No mesmo sentido, Bitencourt, Tratado de Direito Penal: Parte Geral, p. 559; D O TTI,
Cuno de Diwito Penal, p. 456; FR A N C O e STOCO, Código Penal e sua Inteyretação, p.
290; Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 435; R EA LEJR ., Instituições de Direito Penal II, p. 52.
243 REALE JR ., Instituições de Direito Penal II, p. 52.
244 Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 436.
A matéria gerou polêmica nos Tribunais e foi enfrentada pelo Su­
premo Tribunal Federal, que decidiu, por maioria de votos, pela incons­
titucionalidade dos referidos dispositivos. N o julgamento do Habeas C oyus
97.256, os M inistros reafirm aram a posição anteriorm ente exposta na
análise da inconstitucionalidade da vedação da progressão de regime pela
Lei dos Crim es Hediondos no sentido de que o processo de individualiza­
ção exige um juízo criterioso de adequação da pena, sendo ilegítimas as
vedações que ultrapassem aquelas especificadas pela Constituição —“(...) é
vedado subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com certa
discricionariefade nos quadrantes da alternatividade sancionatória”2*5. Igualmen­
te foram reiterados os posicionamentos de que (a) existem distintas moda­
lidades de comércio ilegal de drogas que im põem aplicação de distintas
sanções (posição amparada por tratados e convenções internacionais fir­
mados pelo Brasil)246 e de (b) serem as penas restritivas de direito im por­
tantes alternativas em razão dos efeitos deletérios provocados pelo sistema
prisional247. Desta forma, o Supremo Tribunal declarou incidentalmente a
inconstitucionalidade, removendo o óbice da parte final do art. 44 da Lei

■; - rJrfüt ie eBeHi v. 1-: y, ■tAi 4; nritâ id Hftlil


n. 11.343/2006 e a expressão análoga “vedada a conversão empenas restritivas
de direitos”, prevista no art. 33, § 4°

24í Supremo Tribunal Federal, Habeas C o^us 97.256, Rei. Min. Ayres Britto, j. ls.09.2010.
246 “N oplano dos tratados e convenções internacionais, aprovados epromulgados pelo Estado brasi­
leiro, é conferido tratamento diferenciado ao tràfia ilícito de ento^ecentes que se caracterize pelo seu
menor potencial ofensivo. Tratamento diferenciado, esse, para possibilitar alternativas ao encarcera­
mento. Ê o caso da Convenção Contra o Tráfico Ilkito de E nto^eantes e de Substâncias Psicotró-
picas, inco^orada ao direito interno pelo Decreto 154, de 26 de junho de 1991. Norma supralegal
de hierarquia intermediária, portanto, que autoriza cada Estado soberano a adotar norma comum
interna que viabilize a aplicação da pena substitutiva (a restritiva de direitos) no aludido crime de
trãfia ilícito deento^ecentes” (Supremo Tribunal Federal, Habeas C o^us 97.256, Rei. Min.
Ayres Britto, j. l s.09.2010).
242 "Aspenas restritivas de direitos são, em essência, uma alternativa aos efeitos certamente trauma- 4^
ticos, estigmatizantes e onerosos do cârcen. Não ê á toa que todas elas são comumente chamadas de
penas alternativas, pois essa ê mesmo a sua natunza: constituir-se num substitutivo ao encarara-
mento e suas seqüelas. E ofato ê que a pena privativa de liberdade colorai não ê a única a cumprir
a fiin& o retributivo-ressocializadora ou restritivo-preventiva da sanção penal. A s demais penas
também são vocaàonadas para esse geminado papel da ntribuição-prevenção-ressocialização, e nin­
guém melhor do que o ju iz natural da causa para saber, no aso concreto, qual o tipo alternativo de
reprimenda ê suficiente para astigare, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado, prevenin­
do comportamentos do gênero” (Supremo Tribunal Federal, Habeas Cotpus 97.256, Rei. Min.
Ayres Britto, j. 1s.09.2010).
O entendim ento foi reforçado com a edição da Súmula 492 do Su­
perior Tribunal de Justiça, que estabelece que “o ato infracional análogo ao
tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida
socioeducativa de internação do adolescente”. Nas hipóteses de condenação de
adolescente por ato infracional de comércio de drogas, há possibilidade de
aplicação de medida socioeducativa não carcerária248.

12.15.3. N o que tange aos requisito s subjetivos, o art. 44, II, do


Código Penal, estabelece a possibilidade de conversão da prisão em restri­
ção de direitos quando o réu não for reincidente em crime doloso. C on­
form e visto anteriormente, o instituto da rein cid ên cia produz inúmeros
efeitos negativos na aplicação da pena. Não obstante o aum ento obrigató­
rio da pena provisória e o agravamento do regim e prisional, o terceiro
efeito direto provocado no sistema de determ inação da sanção é o de
im pedir a conversão em pena restritiva de direito.
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Para além do debate travado na exposição dos critérios de aplicação


da pena provisória acerca dos inúmeros efeitos produzidos pelo instituto,
bem como sobre o problema relativo ã sua (in)constitucionalidade (exata­
mente em razão de ofender o princípio da proibição da dupla valoração),
im portante retomar o tema da relativização d a reincidência. Conforme
destacado, a Lei n. 9.714/98, ao m odificar os critérios de aplicação das
penas restritivas de direito, alterou a estrutura legal do instituto. N o regi­
me jurídico anterior ã Lei n. 9.714/98, o reincidente não poderia substituir
a pena carcerária por pena restritiva, mesmo que a privação de liberdade
fosse quantificada em valores ínfimos (exceto a condenação anterior ã pena
de multa).

248 O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) prevê duas medidas privati­
vas de liberdade análogas à pena de prisão em regime fechado e semiaberto: (a) internação
em estabelecimento educacional (art. 112, VI); e (b) regime de semiliberdade (art. 112,
V). De igual forma, estabelece sanções restritivas de direitos —(a) advertência (art. 112, I);
(b) prestação de serviços ã comunidade (art. 112, III); (c) liberdade assistida (art. 112, IV);
(d) encaminhamento aos pais (art. 101, I); (e) orientação, apoio e acompanhamento (art.
101, II); (fi frequência em estabelecimento de ensino (art. 101, III); e (g) inclusão em
programa comunitário ou oficial de auxílio (art. 101, IV) —e pecuniárias —reparação do
dano (art. 112, I).
Sobre o tema, conferir CARVALHO e W EIGERT, A s Alternativas às Penas e às M e­
didas Socioeducativas, pp. 227-257.
Ocorre que, apesar de a nova redação do art. 44 do Código Penal
ter m antido a vedação, houve uma im portante inovação no sentido de
excetuar duas hipóteses: (1-) reincidência nos crimes culposos (art. 44, II);
e (2-) reincidência nos crimes dolosos em que a medida substitutiva for
socialmente recomendável, ressalvados os casos de reincidência específica —“se
o condenado for reinrídente, o ju iz poderá aplicar a substituição, desde que, em face
da condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não
se tenha operado em virtude da prática do m&mo crime” (art. 44, § 3-).
Assim, conforme sustentado anteriormente, por ser lei posterior mais
benéfica, é possível afirmar que a Lei n. 9.714/98 operou verdadeira rela-
tivização do instituto da reincidência, sobretudo em relação ã conversão da
pena privativa de liberdade. E possível, portanto, a partir da aplicação do
§ 3e do art. 44 do Código Penal, que, mesmo nos casos de reincidência, o
magistrado aplique a pena restritiva de direito, sempre que entender que a
medida (substituição de pena) é socialmente recomendável.
A questão central nesta análise, portanto, é acerca do conteúdo da
categoria socialmente recomendável. Em decorrência da crise da pena de pri­

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


são, dos efeitos criminógenos do cárcere e das inúmeras pesquisas que
demonstram os efeitos benéficos das penas restritivas, sobretudo a prestação
de serviço ã comunidade249, seria adequado afirm ar que, regra geral, a
aplicação da pena restritiva representa inquestionável ganho social em
comparação com a privação de liberdade. Em face da relativização do

Í-: y,
instituto, seria possível sustentar, inclusive, a primazia da restrição de di­

ie eBeHi v.
reitos em relação ã privação de liberdade nos casos em que apenas a rein­
cidência é um óbice ã substituição. Desta forma —e sobretudo pelo feto de
se tratar de uma medida de m enor dano aos direitos fundamentais —, parece
ser plenam ente justificável uma inversão da regra, no sentido de que o juiz
w - rJrfüt

deva sempre operar a substituição e, nos casos em que considerar que a


prisão é a medida socialmente mais adequada, motivar sua decisão, justi­
ficando a opção pela pena carcerária em detrim ento da pena alternativa.
Ao final, o art. 44, III, do Código, estabelece como requisito da 479
conversão “a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do
condenado, bem como [se] os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substi­
tuição seja sufiàente". Em realidade, o dispositivo legal reproduz a m aior
parte das circunstâncias judiciais do caput do art. 59 do Código, excetuan­
do as conseqüências e o com portam ento da vítima. Neste sentido, é pos-

249 Sobre o tema, conferir REALE JR ., Instituipes de Direito Penal II, pp. 56-58.
sível verificar um reforço na ideia de as circunstâncias de análise da pena-
-base constituírem um índice geral de culpabilidade que orienta todas as
fases de aplicação da pena.
Importante perceber, contudo, que esta análise da culpabilidade que
se estabelece no art. 44, III, do Código Penal, como um a forma de “prog-
nose de suftdênda da substituição”250, não pode justificar a violação do prin­
cípio ne bis in idem. Assim, parece correto afirm ar que a valoração negati­
va do conjunto das circunstâncias judiciais deve operar como causa de
aumento da pena-base ou impeditivo da conversão da pena de prisão em
restritiva. Do contrário, em decorrência da proliferação de efeitos negati­
vos, a decisão incorreria em dupla valoração, procedimento vedado pela
Constituição.
Além disso, fundam ental que, em caso de negativa da conversão, o
julgador exponha de forma clara e convincente as razões de sua opção pelo
encarceramento (situação jurídica menos favorável), notadamente em de­
corrência de orientação no § 32 do art. 44, no sentido de a medida restri­
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tiva de direitos ser socialmente recomendável.


12.15.4. Conforme exposto, a Lei n. 9.714/98 reconfigurou o siste­
ma de penas brasileiro, ampliando as possibilidades de substituição da pena
privativa de liberdade, sobretudo em razão do alargamento do critério
objetivo do tem po de pena fixado judicialmente.
Im portante registrar, contudo, que, mesmo nos limites fixados (pe­
nas aplicadas até 4 anos), a Lei n. 9.714/98 estabeleceu distintas formas de
graduação da responsabilidade penal. Significa dizer que foram mantidos
certos níveis de responsabilização conform e a quantidade de pena deter­
minada, apesar da fixação do limite m áxim o de substituição.
Em síntese, é possível dizer que dentro da m argem dos 4 (quatro)
anos existem três distintos níveis de conversão da pena privativa de liber­
dade, destacados em forma gráfica na Figura 2.
480 O art. 60, § 2S, do Código Penal, estabelece o prim eiro marco, ao
criar a figura da m u lta substitutiva. Segundo o dispositivo legal, “ apena
privativa de liberdade apliwda, não superior a 6 (seis) meses, pode ser substituída
pela de multa, observados os critérios dos incisos II e III do art. 44 deste Código”.
O segundo e o terceiro marcos de substituição referem especificamente as
penas restritivas. Neste sentido, o art. 44, § 2S, do Código, estabelece

2i0 B ITEN CO U RT, Tratado de Direito Penal, p. 561.


que “na condenação igual ou inferior a 1 (um) ano, a substituição pode serfeita por
multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a 1 (um) ano, a pena pri­
vativa de liberdade pode ser substituída por uma p em restritiva de direitos e multa
ou por duas restritivas de direitos”.
Logicamente que, em razão de as penas substitutivas configurarem
uma situação jurídica mais favorável ao condenado, cabe ao juiz, notada­
mente em caso de negar a conversão, justificar os motivos da aplicação da
prisão. A decisão que m antém a privação de liberdade deve expor, neces­
sariamente, as razões de sua adequação em detrim ento das demais (multa
ou restrição de direitos).

12.16. Pena de Multa

12.16.1. Existem três possibilidades de aplicação d a p en a de


m u lta no direito penal brasileiro: (a) multa autônoma; (b) multa cumulada
com pena privativa de liberdade ou restritiva de direito; (c) multa substitu­
tiva da pena de prisão.
A prim eira possibilidade de determ inação da multa, exposta na
análise do art. 59, I, do Código Penal, é a decorrente da cominação legal
em abstrato desta espécie de sanção autônoma ao delito, ou seja, em que
determinados tipos de penas indicam, no preceito secundário, exclusiva­
m ente a pena de multa. Em outros casos, a lei penal prevê alternância
entre a pena de multa e alguma outra espécie de sanção —nas hipóteses
mais comuns, pena privativa de liberdade ou multa. Cabe ao julgador,
nestas situações, eleger a pena, justificar sua opção e, posteriormente, pro­
ceder ao seu cálculo (dosimetria da pena de prisão ou da pena de multa).
A segunda hipótese diz respeito ã cominação concorrente da pena de
prisão com a pena de multa. Lembre-se de que são inúmeros os tipos penais
que prescrevem sanções em concurso —pena privativa de liberdade e multa.
N o momento da sentença penal, o magistrado deve, portanto, proceder ã
dosimetria de ambas as penas, na especificidade de cada forma de sanção.
A terceira possibilidade é a da m ulta substitutiva, situação na qual a
pena de prisão é convertida em multa, em multa alternada com restrição
de direitos ou em m ulta em concurso com uma pena restritiva. Nas sen­
tenças penais condenatórias, após o juiz fixar a quantidade de privação de
liberdade dentro dos marcos legais admitidos para conversão das penas, a
multa opera como substitutivo sancionatório — sanção aplicada até seis
meses (multa), 1 (um) ano (multa ou restrição de direito) ou 4 (quatro)
anos (multa e restrição de direitos).
A conversão ou aplicação autônoma da pena de multa difere, porém,
da substituição da pena de prisão pela pena de restrição de direitos. Nestes
casos, o juiz apenas transforma o tempo de prisão em horas de trabalho —p.
ex., na substituição por prestação de serviço ã comunidade (art. 46, § 3e,
do Código Penal) —ou em período de proibição de exercício de determ i­
nadas funções —p. ex., na interdição temporária de direitos.
Para determ inar a quantidade de pena de multa, o julgador deve
observar critérios próprios estabelecidos pelo Código Penal —critérios que
igualmente deverão orientar a fixação da pena de prestação pecuniária.
12.16.2. A pena de multa, segundo anteriormente destacado, tem
como destinatário o Fundo Penitenciário Nacional e é calculada a partir
do sistem a de d ias-m u lta, reintroduzido pela Reform a de 1984 na le­
gislação penal brasileira.
A doutrina nacional costuma lembrar que o sistema dias-multa —“o
mais completo de todos os que até agora foram utilizados”25' — é uma criação
genuinam ente brasileira, prevista de forma inovadora no art. 55 do C ódi­
go Penal de 1830 — “a pena de multa obrigará os réos ao pagamento de uma
quantia pecuniaria, que será sempre regulada pelo que os condemnados poderem
haver em cada um dia pelos seus bens, empregos, ou industria, quando a Lei espe-
áfocadamente a não designar de outro modo (sic)”2z2.
O sistema dias-multa possibilita a atualização monetária dos valores
da sanção. Antes da Reform a de 1984, era com um o legislador expor, no
preceito secundário do tipo penal incriminador, os limites pecuniários
m ínim os e m áximos em moeda. No entanto, sobretudo em razão do pro­
cesso inflacionário que corroeu a economia nacional — crise ocasionada
pelos sérios equívocos da política econômica dos Governos autoritários,
que acederam ao poder com a Ditadura M ilitar na década de 1960 —, o
modelo de dias-multa foi recapacitado como forma de perm itir um a esta­
bilidade m ínim a em termos de valorização da pena pecuniária. A propó­
sito, a desvalorização acabou gerando o descrédito da pena de m ulta e, em
conseqüência, a habilitação da pena de prisão.

211 BITENCOU RT, Tratado de D igito Penal, p. 648.


212 Sobre os antecedentes da pena de multa, conferir BITEN C O U RT, Tratado de Direito
Penal, pp. 646-647; R EA LEJR ., Instituipes de Direito Penal II, p. 73.
O sistema dias-multa estabelece que a definição do v alo r d a san­
ção será realizada a partir de duas operações. N o prim eiro mom ento, o
julgador fixa a quantidade, nos termos do art. 49, caput, 2- parte, do C ó­
digo Penal, dispositivo que estabelece o núm ero m ínim o e m áximo de
dias-multa entre 10 (dez) e 360 (trezentos e sessenta). Para a determinação
da q u an tid ad e de d ia s-m u lta , o critério de referência é o d a culpabilida­
de em sentido amplo, isto é, o da análise do conjunto das circunstâncias
judiciais que definiu a pena-base. Juarez Cirino dos Santos e Sérgio Salo­
mão Schecaira entendem ser correto ampliar esta análise, englobando as
demais circunstâncias que operaram para definir a quantidade final de pena
(agravantes e atenuantes; majorantes e m inorantes)253.
O segundo m om ento é o da definição do v alo r do d ia-m u lta. O
§ l s do art. 49 estabelece que o valor unitário do dia-m ulta não pode ser
inferior a um trigésimo do maior salário m ínim o mensal vigente na data
do feto, nem superior a 5 (cinco) vezes esse referencial. O critério que
orienta a definição do valor é fundam entalm ente a situação econômica do réu
(art. 60, caput, do Código). A propósito, Reale Jr. e Schecaira entendem

id H ftlil
que este é o parâmetro central que deve conduzir o julgador na aplicação
da pena de m ulta254. Note-se, ainda, que a definição do valor é retrospec­

■tAi 4; nritâ
tiva, isto é, é estabelecida retroagindo ao m om ento do delito (art. 4° do
Código Penal). Por esta razão, o valor será posteriorm ente atualizado
pelos índices de correção monetária em sede de execução penal (art. 49, §

Í-: y,
2S, do Código Penal).

ie BEtEtai v.
Além disso, a favorável situação econômica do réu autoriza a inci­
dência de um a causa de aumento. Segundo o art. 60, § 1° do Código,
m esmo se a multa for fixada em seu m áxim o, se o magistrado entender
que em virtude da alta capacidade financeira do condenado a pena tornar-
w - rJrfUt

-se-á ineficaz, poderá aumentá-la em até o triplo. Trata-se, em realidade,


de uma causa especial de aumento da pena de multa (majorante), similar
àquela prevista no art. 33 da Lei n. 7.492/86 —“nafixação da pena de multa
relativa aos crimes previstos nesta Lei, o limite a que se refere o § 1-d o Decreto-lei 483
n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, pode ser estendido até o décuplo, se verifica­
da a situação nele cogitada”.
Importante lembrar que estes diferentes critérios de aumento em
razão da situação econômica do réu procuram estabelecer parâmetros de

253 SANTOS, Direito Penal, p. 543; SCHECAIRA, Teoria da Pena, 286.


234 R EA LE JR ., Instituições de D inito Penal II, p. 74; SCHECAIRA, Teoria da Pena, 286.
isonomia na individualização da pena de multa. Todavia, conforme lecio­
na Juarez C irino dos Santos, “na prática, a seletividade do proceso de crimi­
nalização, concentrada na popuhção pobre e excluída do mercado de trabalho e do
sistema de consumo, frustra a aplicação igualitária dapena de multa”2D:>.

12.16.3. Embora seja matéria específica da execução da pena, im ­


portante referir que a Lei n. 9.268/96 alterou a n atu reza ju ríd ic a da
p en a de m u lta , transformando-a em dívida de valor e determ inando a
aplicação das regras relativas ã dívida ativa da Fazenda Pública para fins de
cobrança (art. 51 do Código Penal).
Significa dizer que inexiste a possibilidade de c o n v erter a pena de
m u lta e m p risão em caso de inadimplência, como ocorria no regime das
sanções pecuniárias estabelecido na Reform a de 1984.
Embora não seja explícito, a alteração legislativa acaba por adequar
as regras do Código Penal aos princípios do Decreto n. 678/92 (Conven­
ção Americana de Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica),
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

que, em seu art. 7S, 7, determ ina que ninguém deve ser detido por dívida,
dispositivo reproduzido no art. 5° LXVII, da Constituição.

12.17. Suspensão Condicional da Execução da Pena (Sursis)


12.17.1. A suspensão condicional da execução da pena (sursis) é uma
m e d id a sub stitutiva d a p en a priv ativ a de liberdad e, incorporada nas
legislações ocidentais ao longo do século pesado, como forma de dim inuir
o impacto da segregação carcerária. Embora as pesquisas criminológicas
tenham demonstrado que os substitutivos penais atuam, diferentemente do
discurso oficial, como aditivos ao cárcere, ampliando a rede de controle
social punitivo e revigorando a legitimidade da prisão256, a suspensão con­
dicional da (execução) da pena integra a série de alternativas sancionatórias
apresentada em decorrência da evidente crise da pena privativa de liberdade.
Segundo R ealejr., o instituto desenvolveu-se em duas linhas prin­
cipais: o sistema anglo-americano do probation; e o franco-belga do sursis257.

255 SANTOS, Direito Penal, p. 544.


256 Neste sentido, CARVALHO, Substitutivos Penais na Era do Crande Etuaneramento, pp.
146-171; SANTOS, Direito Penal, pp. 603-605.
257 R EA LE JR ., Instituipes de Direito P enalll, p. 125.
Na legislação penal brasileira, o últim o modelo foi incorporado no início
da década de 20 do século passado (Decreto n. 16.588/24), sendo poste­
riorm ente inserido no Código Penal de 1940 (arts. 57 e 58) e m antido na
Reform a de 1984258.
N o direito penal brasileiro, a suspensão condicional da pena é um
substitutivo ã pena privativa de liberdade, aplicado pelo juiz no momento
da sentença condenatória, que submete o condenado que cumpre deter­
minados requisitos a um regime de prova (condições) por determ inado
período de tempo. Trata-se, fundamentalmente, de um substituto da pri­
são, nos termos do art. 80 do Código, pois sua extensão ã pena restritiva
de direitos e ã pena de multa é expressamente vedada. Assim, o sursis só é
cabível nas hipóteses em que não forem indicadas as substituições previstas
no art. 44 (pena restritiva de direito) e art. 60, § 2 - (multa), do Código
Penal.
Exatam ente em decorrência de ser um substitutivo penal pensado
como um a espécie de instituto transitório entre a pena de prisão e a pena
restritiva de direito, a partir da publicação da Lei n. 9.714/98 tornou-se
praticamente inaplicável.

12.17.2. Todavia, antes de ingressar na análise de sua eficácia, im ­


portante destacar os requisito s legais do sursis. Segundo o art. 77 do
Código Penal, a execução da pena privativa de liberdade não superior a 2
(dois) anos poderá ser suspensa por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, se (a) o con­
denado não for reincidente em crim e doloso; (b) a culpabilidade, em
sentido amplo, indicar sua concessão; e (c) não for cabível a substituição
por pena restritiva de direito.
Os requisitos, portanto, são de ordem objetiva e subjetiva. O pri­
meiro dos requisito s objetivos é o tempo de pena aplicada: pena não
superior a 2 (dois) anos. O segundo, não ter sido a pena de prisão substi­
tuída por restrição de direitos.
Os dois requisitos objetivos atestam a ideia exposta no sentido de o
sursis ter sido pensado como um instituto interm ediário entre a pena pri­
vativa de liberdade e a restritiva de direito. Não por outra razão, o art. 78,
§ l s, do Código, estabelece, como condição da suspensão, que o condenado,
no prim eiro ano do prazo, preste serviços em benefício da comunidade ou

2i8 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 458.


submeta-se à limitação de final de semana. Em caso de reparação do dano
(ou na impossibilidade de cum prim ento da obrigação civil decorrente da
sentença condenatória), sendo favorável a culpabilidade, o juiz poderia
substituir as restrições de direito por (a) proibição de freqüentar determ i­
nados lugares e de ausentar-se da comarca onde reside sem prévia autori­
zação; e (b) comparecimento pessoal e obrigatório em juízo para inform ar
suas atividades (art. 78, § 2e, do Código Penal). Segundo a Exposição de
M otivos da Parte Geral, esta desobrigação do cum prim ento da pena res­
tritiva de direitos constitui forma distinta de sursis: sursis especial259.
Assim, condenado o réu ã pena de prisão fixada entre 1 (um) e 2
(dois) anos, o juiz determinaria o cum prim ento de pena restritiva no pri­
meiro período, estabelecendo, no segundo, um regime de vigilância.
Nota-se, pois, que a pena restritiva é incorporada com o condição do sunis,
inclusive porque o instituto previsto no art. 77 do Código Penal, na con­
cepção original da Reform a de 1984, é mais rígido que a simples substi­
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tuição de pena.
Lembre-se, ainda, de que o sistema dos substitutivos penais e dos
regimes carcerários, conforme anteriormente exposto, foi concebido na
Reforma de 1984 de forma gradual e escalonada (Figura 1): (a) multa (pena
aplicada até seis meses); (b) pena restritiva de direito (pena aplicada até um
ano); (c) suspensão condicional da pena (pena aplicada até dois anos); (d)
regime aberto (pena aplicada até quatro anos); (e) regime semiaberto (pena
aplicada entre quatro e oito anos); (^ regime fechado (pena aplicada acima
de oito anos) —considerando-se, logicamente, apenas o critério objetivo
temporal.
Ocorre que a delimitação conceituai e normativa do instituto e a
estrutura gradual do sistema de substitutivos inviabilizaram, a partir da Lei
n. 9.714/98, a aplicação da suspensão condicional da pena. Se a pena res­
tritiva integra a estrutura sancionatória do sursis, sendo, em sua aplicação

269 "Orientado no sentido de assegurar a individualização da pena, o Projeto prevê a modalidade de


su^ensão especial, na qual o condenado não fica sujeito à prestação de serviço à comunidade ou à
limitação de fim de semana. Neste caso o condenado, além de não reincidente em crime doloso, há de
ter reparado o dano, se podia fazê-lo; ainda assim, o beneficio somente será conadido se as cinuns-
tâncias do art. 59 lhe forem inteiramente favoráveis, isto é, se mínima a culpabilidade, inetocáveis os
anteadentes e de boa índole a personalidade, bem como wlevantes os motivos efavoráveis as circuns­
tâncias” (E^osição de Motivos da Nova Parte Geral do CódigoPenal, item 66).
isolada, menos aflitiva260, com a ampliação dos requisitos operada pela Lei
das Penas Alternativas —notadamente com a possibilidade de conversão da
restrição de direitos às penas aplicadas até 4 (quatro) anos — a suspensão
restou inoperante. Se a suspensão somente é possível quando incabível a
pena restritiva de direitos e se os critérios para aplicação da restrição são
mais flexíveis, o sursis restou operacionalmente obstruído. Nas palavras de
Reale Jr., “com as alterações de 1998 tornou-se a suspensão sem sentido, pois a
substituição das penas até quatro anos por restritiva de direitos é permitida na siste­
mática adotada pela Lei 9.714/98”2bK
Em relação aos r e q u i s i t o s s u b j e t i v o s , o art. 77, I I , do Código,
remete a valoração judicial do cabimento do sursis ã análise das circunstân­
cias judiciais valoradas na pena-base (culpabilidade em sentido amplo).
Sobre o tema não há o que acrescentar além do que foi afirmado anterior­
mente quando da apreciação de idêntico requisito para fins de substituição
da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Registre-se, ainda, que foi a reconfiguração do sursis na Reform a
de 1984 que possibilitou, de forma inovadora, a prim eira ideia de r e l a t i -
v i z a ç ã o d a r e i n c i d ê n c i a , ao determinar que “a condenação anterior à pena
de multa não impede a concisão do benefício” (art. 77, § 2-, do Código Penal).
A partir deste dispositivo legal foi consolidado o entendim ento de que a
condenação ã pena de multa não gera reincidência.
12.17.3. Apesar da limitação das hipóteses de cabimento, duas espé­
cies de suspensão condicional da pena ainda permanecem com possibili­
dade de aplicação no direito penal brasileiro: o sursis e t á r i o e o sursis
h u m a n i t á r i o . Embora o sursis etário (aplicado ao condenado maior de 70
anos) tenha sido previsto na Reforma de 1984 como caso excepcional, a
Lei n. 9.714/98, ao alterar a estrutura dos substitutos penais, manteve ex­
pressamente sua previsão, agregando a modalidade humanitária (decorrên­
cia de saúde).
Segundo o art. 77, § 2-, do Código Penal, com a redação dada pela
Lei das Penas Alternativas, “a execução da pena privativa de liberdade, não su­

260 Lembra R ealejr. que “pensara-se a suspensão am o mais severa do que as próprias nstritivas
(art. 43 do CP). Tanto úso ê veríade que ela antêm, no primeiro ano de prazo, a pena de pnstação
de serviço à comunidade, ou a de limitado dejim de semana” (REALEJR., Instituições de Direi­
to Penal II, p. 126).
261 R EA LE JR ., Instituições de Direito Penal II, p. 126.
perior a quatm anos, poderá ser suspensa, por quatro a seis anos, d&de que o con­
denado seja maior de setenta anos de idade [surns etário], ou razoes de saúde
[sursis humanitário] justifiquem a su^ensao”.
Como é possível perceber, a Lei n. 9.714/98 igualiza o prazo de
concessão das modalidades excepcionais de sursis com o de conversão ã
pena restritiva. N o entanto, seria possível argum entar que, mesmo com ­
patibilizando os prazos, o instituto seria inaplicável ao maior de setenta
anos e ao gravemente enfermo em decorrência da restrição imposta pelo
art. 77, III, do Código (concessão apenas quando incabível a substituição).
A interpretação, porém, não parece correta. Inegavelmente a ampliação do
prazo para conversão da prisão em medida restritiva obstaculiza o surns
com um, sobretudo porque se trata de lei posterior mais benéfica, que am ­
plia os horizontes de liberdade —lembre-se de que na configuração origi­
nária o surns im põe maiores restrições, não apenas porque o condenado
cumpre a pena de restrição de direitos ao longo de todo o período que a
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lei prevê como possível para conversão (1 ano), mas tam bém porque se
submete a um regime de prova na segunda etapa da suspensão (2 a 4 anos).
Ocorre que a própria Lei n. 9.714/98 manteve a m odalidade etária
e acrescentou a espécie hum anitária de sursis. Significa dizer que a nova
lei reconheceu a validade do instituto, o que não pode simplesmente ser
desconsiderado. O impeditivo do art. 77, III, do Código, ã suspensão da
pena em decorrência da idade e de enfermidade aparece, portanto, como
uma contradição no sistema, não resolvida pela Lei n. 9.714/98. Neste caso,
portanto, parece ser correto afastar o óbice do referido dispositivo (art. 77,
III, do Código) às modalidades excepcionais de suspensão condicional da
pena.
Tais efeitos não atingem, porém, casos específicos regrados na lei
penal extravagante, como, p. ex., o art. 16 da Lei n. 9.605/98, que perm i­
te a aplicação do sursis & penas privativas de liberdade aplicadas até 3 (três)
anos. Por ser lei anterior à Lei n. 9.714/98, a m om entânea ampliação dos
critérios da suspensão das penas para as condenações por crimes ambientais
tornou-se sem efeito.

12.18 . Efeitos da Condenação

12.18.1. A sentença crim inal condenatória gera conseqüências que


extrapolam as sanções penais propriamente ditas, pois o reconhecimento
do ilícito penal irradia efeitos para todas as esferas jurídicas. Afirm ar que
a ilicitude é um corpo unitário implica reconhecer que um mesmo feto
não pode ser considerado ao mesmo tempo lícito e ilícito por distintas
áreas do direito. N o entanto, o feto de a ilicitude ser unitária não signifi­
ca que os efeitos do seu reconhecimento sejam equânimes em distintas
esferas. Neste sentido, a representação das esferas de ilicitude (penal e
extrapenal) como círculos concêntricos com distintas extensões, sendo a
ilicitude penal mais concentrada (menor raio) em relação ã extrapenal (mais
abrangente), permite uma clara compreensão das conseqüências produzidas
pelas sentenças condenatórias nos juízos crim inal e cível.
Cláudio Brandão sintetiza, com precisão, o problema, dem onstran­
do que a “antijuridicidade contém gradações e a forma mais grave de sua apresen­
tação se dá na esfera penal, que tem seu objeto substancialmente vinculado ao ilícito.
Isso signfíca que se for considerado como ilicito no Direito Penal também o será nos
demais ramos do Direito. O contrário, entretanto, não é verdadeiro: uma ação pode
ser ilícita no campo dvel e, ao mesmo tempo, ser indiferente no Mmpo da antijuri­
dicidade penal”262.
O Código Penal prevê dois efeitos da condenação crim in al que
se irradiam para o âmbito extrapenal: (a) efeitos genéricos e (b) efeitos
específicos. A diferença central entre ambos é o feto de que os feitos gené­
ricos são automáticos, diferentemente dos específicos, que necessitam ser
declarados motivadamente na sentença, nos termos do art. 92, pará^afo
único, do Código Penal.
Segundo o art. 91 do Código, são efeitos genéricos da condenação:
(a) tom ar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; e (b)
a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro
de boa-fé, dos instrumentos do crime e do produto do crime ou de qualquer bem
ou valor que se constitua em proveito pela prática do feto criminoso. Os
efeitos específicos, previstos no art. 92 do estatuto penal, são (a) a perda
de cargo, função pública ou mandato eletivo; (b) a incapacidade para o
exercício do pátrio poder, tutela ou curatela; e (c) a inabilitação para diri­
gir veículo automotor.

12.18.2. A obrigação de rep aração do d an o decorre do feto de a


sentença penal condenatória reconhecer a existência de um ilícito. Em

262 BRANDÃO, Cwrso de Direito Penal, p.372.


harmonia com as regras do Código Penal, o Código Civil estabelece, em
seu art. 927, a obrigação de reparação, determ inando ao sujeito que por
ato ilícito provocou o dano o dever de indenizar263. Os dispositivos dos
Códigos Penal e Civil são derivados dos comandos constitucionais que
garantem a indenização por dano material, moral ou ã imagem (art. 5e, V,
da Constituição) e determ inam o dever de reparar o dano (art. 5S, XLV,
da Constituição).
Para que ocorra a reparação de dano em decorrência da prática de
um delito é imprescindível que o titular do bem jurídico violado seja uma
pessoa concreta, pessoa física ou jurídica. A questão é relevante porque
inúmeros crimes previstos na legislação penal brasileira são direcionados ã
tutela de interesses coletivos ou transindividuais. Nestas hipóteses, logica­
mente, inexistindo uma pessoa que se identifique diretamente com o ilí­
cito, é incabível a reparação do dano. Não por outra razão, o art. 63 do
Código de Processo Penal estabelece que “transitada em julgado a sentença
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condenatória, poderão promover-lhe a executo, no ju ízo cível, para o efeito de re­


paração do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros”.
Segundo Tourinho Filho, apesar de o art. 63 do Código de Proces­
so utilizar a expressão r^arafio, o term o deve ser entendido em sentido
amplo como a satisfação do dano que se opera pelo ressarcimento, pela resti­
tuição e pela reparação no sentido específico de satisfação de dano não pa­
trimonial. O próprio art. 91, I, do Código Penal, refere a indenização, mas
em sentido similar àquele da reparação presente no estatuto processual264.
O o b jeto d a ação civil ex delicto pode ser, portanto, (a) a restitui­
ção do bem; (b) o ressarcimento pelos danos provocados ou pelo prejuízo
decorrente da sua não fruição (lucros cessantes); e/ou (c) a r^aração do dano,
quando o delito ofende o patrimônio moral do ofendido —“quando, porém,
o dano causado pela infração penal atingir o patrimônio moral do ofendido, isto é,
aqueles valores atinentes à dignidade, à individualidade e à personalidade da vítima,
expressões culturais da própria comunidade social, dar-se-á a reparação civil do ilíá-
to, tal como ocorre, por exemplo, m s chamadas ações de danos morais, sqa em

263 "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilicito” (art. 186 do Código Civil).
"Também mmete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu jim económiw ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (art. 187 do
Código Civil).
264 T O U R IN H O FILHO, Código de Proasso Penal Comentado, p. 241.
proveito do próprio ofendido, quando o dano é dirigido diretamente a ele, sqa em
favor de terceiros fólhos, cônjuges, suc&sores), na hipót&e da morte daquele”265.
Lembra Fragoso que, para promover o ressarcimento do dano cau­
sado pelo delito, a vítima deve necessariamente ingressar com a ação civil
de reparação, espaço competente no qual serão quantificados os valores da
indenização (dano material e moral). A necessidade de ajuizamento de ação
na esfera processual civil seria o efeito da adoção do sistema da separação das
esferas, diferentemente do sistema da solidariedade, no qual “a ação penal e a
afio civil são promovidas perante o mesmo ju iz, constituindo-se o lesado em parte
civil”266. Fragoso menciona, ainda, dois outros sistemas: o sistema da confu­
são, no qual o juiz decide na ação penal a reparação do dano, e o sistema da
livre escolha, que perm ite ã vítim a promover a ação de reparação no juízo
cível ou crim inal267.
Pondera Tourinho Filho que apesar de a sentença penal condenató­
ria transitada em julgado constituir-se em um título executivo, autorizan­
do o exequente a proceder ã execução por referir o dano sofrido e deter­
m inar a quantia m ínim a de indenização (art. 397, IV, do Código de
Processo), o procedim ento requer ponderação, notadamente em razão da
inadequação na especificação da extensão da lesão e da ausência de atua­
lização. Assim, “não se sabendo o valor correto do quantum devido, aliado à
circunstância de dever ser ele atualizado e acrescido de juros, haverá necessidade de
se proceder à liquidação da sentença penal condenatória (...)”268.
As recentes alterações nas legislações penal e processual penal pare­
cem projetar significativas mudanças no sistema de ajuizamento dos pedi­
dos de indenização. Pacelli percebe que o Brasil adota atualmente um
sistema de interdependência relativa ou mitigada em razão da existência
de um certo âmbito de subordinação temática entre as instâncias269, para

265 PACELLI, Curso de Processo Penal, p. 182.


266 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 486.
267 FRAGOSO, Lições de D im to Penal, p. 486.
268 T O U R IN H O FILHO, Código de Proasso Penal Comentado, p. 242.

269 A subordinação temática diz respeito aos fandamentos da sentença (condenatória ou ab-
solutória) que delimitarão o horizonte de discussão da extensão da reparação do dano no
juízo cível. Isto porque mesmo em caso de sentença absolutória é possível a propositura
da ação —vejam-se, p. ex., os casos do art. 66 ("não obstante a sentença absolutória no juizo
aiminal, a afio civil poderá ser pmposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a exis­
tência material do fato”) e as hipóteses do art. 67 (“não impedirão igualmente a propositura da
além da inquestionabilidade da existência do fato ilícito após o trânsito da
sentença penal condenatória270. Lembra o autor que esta relativização foi
reforçada exatam ente pela alteração do art. 387, IV, do Código de Proces­
so Penal, pela Lei n. 11.719/2008, e a previsão de que na sentença penal
condenatória cabe ao julgador fixar o valor mínimo para reparação dos danos
causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido271.
A alteração do dispositivo do Código de Processo Penal segue a
tendência de ampliação da competência do juiz do processo crim inal para
manifestar-se acerca do quantum da reparação. Na legislação penal material,
esta inovação ficou evidente quando a Lei n. 9.714/98, ao regular os casos
de aplicação da pena de prestação pecuniária, estabeleceu que “o valor pago
será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se
coincidentes os beneficiários” (art. 45, § 2a, in fine, do Código Penal).
Nesta perspectiva de ampliação dos poderes judiciais sobre as con­
seqüências cíveis do ilícito, mas em sentido distinto, foram as determinações
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da Lei n. 11.340/2006. O referido estatuto (Lei Maria da Penha), que cria


mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
opta por um sistema unificado, instrumentalizado pela criação de Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a M ulher, com competência
cível e crim inal para o processo, o julgam ento e a execução das causas
decorrentes deste específico tipo de delito. Assim, nos casos de violência
doméstica e familiar contra a mulher, a análise da conduta violenta, a fi­
xação da pena em caso de reconhecim ento de crim e e a reparação do dano

ação civil: I — o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de infonnação; I I — a decisão


que julgar extinta a punibilidade; I I I — a sentença absolutória que decidir que ofato imputado não
constitui crime”). Nestesentido, conferir M ACHADO, Cuno de Processo fànal, pp. 129-134;
PACELLI, Curso deProasso Penal, pp. 183-191; T O U R IN H O FILHO, Código de Processo
Penal Comentado I, pp. 243-251.
A questão diz respeito, inclusive, ã eventual responsabilidade civil de terceiros pelo
492 delito praticado. Embora a sentença condenatória seja executada no cível contra o réu da
ação criminal, nada impede a existência de uma ação autônoma para análise de responsa­
bilidade de terceiros —"para acionar o K^onsãvel civil, que não tenha sido réu na ação penal,
sctú necessária ação dvel apecifica, sewindo a condenação apenas como elemento de prova, e não <nmo
titulo executivo” (BITENCOURT, Tratado de Direito Penal, p. 769).
2,0 “A responsabilidade civil é ind^endente da criminal, não se podendo questionar mais sobn a
existência do fato, ou sobn quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no
juízo criminal” (art. 935 do Código Civil).
221 PACELLI, Curso de Processo Penal, p. 178.
ocorreriam em um mesmo processo, aproximando-se dos sistemas de so­
lidariedade ou de confusão mencionados por Fragoso272.

12.18.3. O segundo efeito automático da condenação penal transi­


tada em julgado determ inado pelo art. 91 do Código Penal é o da p erd a
dos in stru m e n to s e do p ro d u to do crim e.
Os instrum entos perdidos em benefício da União são aqueles cuja
fabricação, alienação, uso, porte ou detenção constituam de forma autônoma
crime, ou seja, aqueles de natureza ilícita. Assim, o confisco não atinge
objetos fabricados, adquiridos e utilizados licitamente. Reale Jr. analisa de
forma bastante precisa a extensão do dispositivo legal, referindo, p. ex., que
apenas caberia o confisco da arma de fogo se o seu porte fosse ilegal, não
atingindo aquele agente que está legalmente autorizado para o uso273.
A expropriação do produto de crime (vantagem direta) ou das coi­
sas obtidas com a sua alteração ou substituição (vantagem indireta) igual­
mente é prevista como decorrência imediata da condenação. A m edida se
justifica em razão da vedação de qualquer tipo de locupletamento por ato
ilícito. Cláudio Brandão refere, p. ex., a necessidade de confisco dos valo­
res e dos juros remuneratórios fruto de aplicação financeira dos numerários
adquiridos com o delito274.
Lembre-se de que a decretação do perdimento dos instrum entos e
dos produtos do crim e é um comando constitucional, previsto em sentido
genérico associado ã reparação do dano (art. 59, XLV), e em referência
específica como nos casos de expropriação de glebas utilizadas para plantio
de drogas ilícitas (art. 243 da Constituição). Delm anto lembra ainda que
a legislação penal extravagante igualmente prevê efeitos obrigatórios para
prática de alguns delitos específicos, como (a) a destruição do material
apreendido nos crimes de preconceito ou discriminação (art. 20 da Lei n.

2,2 N o sistema da solidariedade, "a ação penal e a civil são promovidas perante o mesmo ju iz,
constituindo-se o lesado em parte ãvil. Quando existe uma sé ação penal, em que o ju iz deáde
também sobre a reparação do dano, o sistema se chama da confusão (...). Em favor do sistema da
solidariedade, alega-se que ele favorece a economia processual, além de proponionar pressão mais
efaente, com a colaboração do lesado na prova que interessa ao processo penal, evitando-se decisões
discKpantes. A reparação do dano também é elemento importante de política criminal” (FRAGO­
SO, Lições de Direito Penal, p. 486).
223 R EA LEJR ., Instituições de Direito Penal II, p. 151.
224 BRANDÃO, Curso de D im to Penal, p. 375.
7.717/89); (b) a perda dos bens, direitos e valores objeto do crim e de lava­
gem de dinheiro (art. 7° da Lei n. 9.613/98); (c) a cassação da licença de
funcionamento de estabelecimento utilizado para prostituição ou explo­
ração sexual de criança ou adolescente (art. 224-A, da Lei n. 8.069/90)275.

12.18.4. O art. 92 do Código menciona algumas conseqüências não


automáticas da sentença crim inal, m otivo pelo qual, para produzirem
efeitos, devem ser expressamente declarados e racionalmente motivados
pelo juiz (art. 92, parágrafo único, do Código Penal).
O prim eiro efeito previsto é o da perd a de cargo, fu n ção p ú b li­
ca ou m a n d a to eletivo. A vedação ao exercício de cargo, função públi­
ca ou m andato eletivo é prevista a todas as hipóteses de condenação ã pena
acima de 4 (quatro) anos, mesmo que o delito não tenha qualquer relação
com a atividade do condenado (art. 92, I, b, do Código Penal). Todavia,
se o delito for praticado com abuso de poder ou violação de dever ineren­
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te ã atividade desenvolvida na Administração Pública (crime funcional), o


limite é reduzido para as condenações ã pena privativa de liberdade por
tempo igual ou superior a 1 (um) ano (art. 92, I, a, do Código Penal).
Nas hipóteses de crimes funcionais, Fragoso sustenta que a necessi­
dade de im por a perda do cargo, função pública ou m andato eletivo de­
penderá da gravidade do dever violado ou do abuso do poder cometido,
pois a conseqüência é sempre facultativa, e não obrigatória —“pode o juiz,
presentes os pressupostos, determiná-la (a perda), devendo nortear-se por um juízo
sobre a incompatibilidade do agente com o exercício do cargo, função pública ou
mandato eletivo”276.
Contudo, demonstra Bitencourt que a perda do cargo, função ou
m andato não pode abranger atividades eventuais exercidas pelo condena­
do. Pelo contrário, deve haver um nexo de causalidade entre o exercício
da atividade e o abuso do poder ou a violação dos deveres que lhe são
4^ inerentes .
• 977

A in cap acid ad e para o exercício do p á trio p o d er, tu tela ou


c u ra te la atinge aqueles condenados por crimes dolosos, com previsão de
reclusão, cometidos contra seu filho, tutelado ou curatelado (art. 92, II, do

27i DELM ANTO, Código Penal Comentado, p. 172.


276 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 490.
277 B ITEN CO U RT, Tratado de Direito Penal, p. 772.
Código Penal). A ideia, ao restringir aos crimes dolosos punidos com re­
clusão é, logicamente, a de lim itar os efeitos aos crimes graves, decorrentes
de ações contrárias aos deveres de cuidado e de proteção inerentes ao
poder familiar, independente da quantidade de pena aplicada pelo juiz.
Neste sentido, afirma Reale Jr. que “o exercido do pátrio poder, denominado
poderfamiliarpelo novo Código Civil, ou o exercício da curatela ou da tutela pres­
supõem uma relaçãofundada no cumprimento dos deveres de proteção, de ajuda, de
preservação dos interessa do filho, do tutelado ou do curatelado, a quem devem
cuidar no exercício desta situação de superioridade hierárquitó que deve estar voltada
ao interesse alheio”2™.
O Código Penal prevê, por fim, como possibilidade de efeito da
condenação crim inal a i n a b i l i t a ç ã o p a r a d i r i g i r v e í c u l o . A restrição da
licença de condução é cabível nas hipóteses em que o veículo é utilizado
como instrum ento (meio) para a prática de crime doloso (art. 9 2 , I I I , do
Código Penal). De forma similar ã restrição exposta anteriormente, a
quantidade de pena aplicada pelo juiz é irrelevante, bastando que a con­
duta seja voluntária e consciente.

■tAi 4; DffiJ id H ftlil


1 2 . 1 8 . 5 . Questão im portante a ser destacada diz respeito ã d i f e r e n ­
ç a entre as e s p é c i e s d e i n a b i l i t a ç ã o arroladas no art. 9 2 do Código
Penal e as restrições impostas como p e n a r e s t r i t i v a d e d i r e i t o (interdi­
ção temporária), previstas no art. 4 7 do Código Penal. N o caso, p. ex., de

Í-: y,
o juiz converter a pena de prisão em restrição de direito e aplicar a pena

ie BEtEtai v.
de suspensão da habilitação (art. 4 7 , I I I , do Código), os efeitos desta inter­
dição são temporários (interdição temporária de direitos), cessando após o
cum prim ento da sanção.
Ao contrário, se aplicada como efeito da condenação, as conseqüên­
w - rJrfUt

cias jurídicas são permanentes, sendo possível ao sujeito retom ar o direito


cassado somente após o processo de reabilitação, nos termos do art. 9 3 ,
caput, do Código Penal. Todavia, no que tange ã perda do cargo, função
pública ou m andato eletivo (art. 9 2 , I ) e do pátrio poder, tutela ou cura- 495
tela (art. 9 2 , I I ) , a reabilitação não perm ite a reintegração na situação an­
terior (art. 9 3 , parágrafo único).

1 2 . 1 8 . 6 . Embora não esteja arrolado no Código Penal, a Constitui­


ção prevê, como efeito da condenação crim inal transitada em julgado,

278 R EA LEJR ., Instituitfes de Direito Penal II, p. 153.


enquanto durarem os seus efeitos, a cassação dos direitos políticos (art.
15, III, da Constituição). A restrição implica, sobretudo, no direito de voto
do condenado preso ou submetido às medidas substitutivas.
É possível afirm ar que o tratam ento conferido pela Constituição ã
matéria foi extremamente rigoroso, notadamente por ter estabelecido como
critério exclusivo para a cassação dos direitos políticos a condenação tran­
sitada em julgado. N ote-se que o Código Penal, em seus arts. 91 e 92,
procura estabelecer um sistema de proporcionalidade entre a gravidade da
conduta e o efeito da condenação, como, p. ex., o tem po de pena judicial­
m ente fixado, a espécie de pena legislativamente prevista (reclusão ou
detenção), a espécie de crime praticado (doloso ou culposo), o sujeito
passivo do delito (filho, tutelado, curatelado), as circunstâncias do feto
(abuso de poder, violação de dever, meio empregado). A partir destas es­
pecificações, vincula determinados delitos às conseqüências diretas da sua
prática, fixando um a espécie de relação de causalidade entre o crime e os
efeitos que dele devem ser decorrentes.
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N o entanto, a Constituição universalizou a vedação dos direitos


políticos para qualquer tipo de ilícito penal, excluindo o condenado do
exercício da cidadania e das decisões da vida pública, situação que corres­
ponde a uma forma sui generis de destituição do status dvitas, conforme
demonstrado em m om ento anterior279.
O Supremo Tribunal Federal tem julgado no sentido de ser autoa-
plicável o dispositivo, não havendo necessidade de qualquer ato legislativo
regulamentador280. Segundo entendimento majoritário da Corte, a suspen­
são dos direitos políticos independe da espécie de pena aplicada, atingindo,
inclusive, os casos de condenação ã pena restritiva de direito281. A orienta­

2,5 CARVALHO, Pena e Garantias, pp. 160-162.


280 "A norma inscrita no art. 15, III, da Constituição reveste-se de autoaplicabilidade, ind^enden-
do,para efeito de sua imediata inddência, de qualquer ato de intermediação legislativa. Essa cinuns-
tância legitima as dedsòes daJustiça Eleitoral que declaram aplicável, nos casos de condenação penal
irrecorrível, e enquanto durarem os seus efeitos, rnmo ocorre na vigência do período de prova do sur­
sis, a sanção institucional concernente à privação de direitos políticos do sentendado” (Supremo
Tribunal Federal, M andado de Segurança 22.470-7, Rei. M in. Celso de M ello, j.
11.06.1996). N o mesmo sentido, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário
577.012, Rei. M in. Ricardo Lewandowski, j. 09.11.2010.
281 "A substituifio da pena privativa de liberdade por Kstritiva de dinitos não impede a su^ensão
dos direitos políticos” (Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 179.502, Rei.
Min. M oreiraAlves,j. 31.05.1995).
ção é no sentido de que “não é o recolhimento do condenado à prisão quejusti-
J im a suspensão de seus direitos políticos, mas o juízo de r^rovabilidade expresso
na condenação”2*2.
A negativa constitucional do direito de voto ao condenado perm ite
dimensionar não apenas os efeitos jurídicos, mas as conseqüências que uma
condenação crim inal produz no im aginário social, notadamente no que
diz respeito ao reforço do estigma. A questão merece uma séria reflexão,
sobretudo em decorrência da possibilidade de verificar, nesta proibição do
sufrágio, um conflito direto com as demais normas constitucionais que
garantem a dignidade ao condenado.
O resíduo autoritário (negativa do voto ao preso) leva ao questiona­
mento do im aginário que perfaz a condição de condenado, pois, ao mesmo
tempo em que a norma positiva fundam ental preza a manutenção de sua
dignidade, acaba negando sua posição de sujeito político, retirando-lhe o
principal instrum ento de exercício da cidadania.

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497

282 Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 577.012, Rei. M in. Ricardo
Lewandowski, j. 09.11.2010. N o mesmo sentido, Supremo Tribunal Federal, Recurso
Extraordinário em M andado de Segurança 22.470, Rei. M in. Celso de M ello ,j.
11.06.1996.
4
4

13 - SISTEMA DE DETERMINAÇÃO DAS MEDIDAS DE


SEGURANÇA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

13.1. Fundamento (Periculosidade), Pressuposto


(Inimputabilidade) e Efeitos Jurídicos da Imposição da
Medida de Segurança

13.1.1. O art. 26, caput, do Código Penal, define a in im p u tab ili­


dade psíquica, estabelecendo que é isento de pena o agente que, por
doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tem ­
po da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilí­
cito do foto ou de determ inar-se de acordo com esse entendimento.
Conforme apresentado no m om ento de análise das causas especiais
de aum ento (majorantes) e de dim inuição (minorantes) da pena, entre a
imputabilidade (plenitude de responsabilidade penal) e a inimputabilidade
(ausência de responsabilidade penal), o Código Penal prevê hipóteses de
sem i-im p u tab ilid ad e. São consideradas semi-imputáveis as pessoas que,
no m om ento da conduta delitiva, não eram totalmente capazes de com preen­
der a antijuridicidade e comportar-se conforme a expectativa do direito
(art. 26, parágrafo único, do Código Penal). A semi-imputabilidade é uma
categoria interm ediária entre a capacidade e a incapacidade plenas.
Neste cenário, o direito penal brasileiro trabalha com distintas res­
postas jurídicas aos autores de condutas consideradas ilícitas: primeira,
aplicação de pena ao imputâvel; segunda, aplicação de pena reduzida ou de
medida de segurança ao semi-imputável; terceira, aplicação de medida de
segurança ao inimputável psíquico; quarta, aplicação da medida socioedu­
cativa ao inimputável etário (adolescente em conflito com a lei)1.
A inimputabilidade (psíquica ou etária) no direito brasileiro edifica
distintos estatutos jurídicos ao portador de sofrimento psíquico e ao ado­
lescente em conflito com a lei, com características bastante peculiares em
relação àquele que orienta a responsabilização do imputâvel (maior de
dezoito anos e psiquicamente utpaz). A diferença de status jurídico decor­
re do fato de que ambas as causas de inMparídade2 (psíquica e etária) atingem
diretamente um dos elementos configuradores do delito, que é a culpabi­
lidade. Nos termos do Código Penal, a m enoridade absoluta, a doença
mental e o desenvolvimento mental retardado ou incompleto são causas
de exclusão da culpabilidade, razão pela qual as condutas praticadas por
pessoas nestas situações não podem ser adjetivadas como crime. A inexis­
tência de crime acarreta, consequentemente, a impossibilidade de aplicação
de pena.
Não por outra razão, o adolescente em conflito com a lei será ju l­
PENAL B R A S IL E IR O

gado, processado e, em caso de condenação, sua medida será executada em


esfera jurisdicional própria, nos termos do art. 148 do Estatuto da Criança
e do Adolescente3. Em relação aos portadores de sofrimento psíquico,
em bora o processamento do caso ocorra no juízo crim inal, reconhecida a
ND 3REIIU

inimputabilidade, o Código de Processo Penal determ ina que o réu seja


absolvido4. Trata-se, na linguagem técnica da dogmática processual penal,
DE S EG U R A N Ç l

de um a absolvição sui generis (absolvição im p ró p ria), pois, apesar de


afirmada a inexistência do crime, o autor do feto é submetido coemtivamente
FTNAS • MED WS

1 Sobre a aplicação das medidas socioeducativas aos adolescentes em conflito com a lei
e a similitude entre as sanções e as medidas substitutivas ao encarceramento, conferir
CARVALHO e W EIGERT, Alternativas & Penas e ih Medidas Socioeducativas, pp. 227-257.
2 Os destaques nos termos capaz e incapacidade servem para chamar a atenção ã sua inade­
quação teórica e normativa, conforme será exposto posteriormente na análise da inimpu­
tabilidade a partir da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei n. 10.216/2001).
3 “A Justiça da Infância e da Juventude é competente para: I — conhecer de r^resentafâes promovidas
pelo Ministério Público, para apuração de ato infracional atribuído a adolescente, aplicando as medi­
das cabíveis; I I — mnceder a nmissão, como form a de suyensão ou extinção do processo (...)” (art.
148 da Lei n. 8.069/90).
‘ “O ju iz absolverá o réu, mencionando a causa na parte diyositiva, desde que reconheça: (...) V I
— existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 2 6
e § V d o a rt. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houvwfundada dúvida sobn sua existfacia"
(art. 386, Código de Processo Penal).
à medida de segurança3, situação que demarca sua sujeição às agências es­
tatais responsáveis pela execução da decisão judicial (agência manicomial).
13.1.2. A classificação do autor da conduta considerada ilícita como
imputâvel ou inimputável e a conseqüente definição da resposta jurídica
cabível (pena ou medida de segurança) decorrem de uma opção política
(político-criminal), posteriorm ente legitimada pela ciência jurídico-penal
(dogmática penal), por fragmentar o sistem a de resp on sabilid ade c ri­
m in a l em dois distintos discursos de fundamentação: sistem a de cu lp a­
b ilid ade (imputabilidade/pena) e sistem a de pericu lo sidad e (inim pu-

VC DIREIüj :EJUl Or>i LDNU


tabilidade/m edida de segurança).
Nas palavras de Juarez C irino dos Santos, “o Estado pretende cumprir
a tarefa de proteger a comunidade e o cidadão contra fatos puníveis utilizando ins­
trumentos legais alternativos: a) penas criminais, fundadas na culpabilidade do
autor; b) medidas de segurança, fundadas na periculosidade do autor (...). Ao
contrário da natureza retributiva das penas criminais, fundadas na culpabilidade
do fato passado, as medidas de segurança, concebidas como instrumento de pro­
teção social e de terapia individual —ou como medidas de natureza preventiva

' J. - K3I LM:. :t í.^tFHUÇJB St U1DID(EÜt ÕLG.


e assistencial, segundo a interpretação paralela do Legislador —, são fundadas na
periculosidade de autores inimputáveis defatos definidos como crimes, com o ob­
jetivo de prevenir a prática de fatos puníveis futuros”6.
Para os sistemas tradicionais das ciências crirnnais (teoria do direito
penal e teoria criminológica), a noção de sujeito (responsável) decorre da
constatação de sua capacidade de compreensão e de escolha: conhecimen­
to da ilegalidade da conduta e dos seus efeitos; opção livre e consciente pelo
ilícito. A condição de sujeito cognoscente com liberdade de ação possibi­
lita ao direito penal atribuir culpabilidade ao autor do feto, habilitando os
mecanismos executivos de imposição da pena. Ausente a culpabilidade,
inexiste delito e, portanto, inaplicável a pena. Apesar de a fundamentação
da pena ter sido alterada desde as fundações do direito penal na m oderni­
dade —sobretudo no século passado com a inserção dos postulados resso-
cializadores pelo correcionalismo, conforme trabalhado anteriorm ente —,
o caráter retributivo perm anece como um centro nervoso que identifica a
forma jurídica da p em criminal.

5 "N a sentença absolutória, o ju iz: (...) I I I — aplicará medida de segurança, se cabível” (art. 386,
parágrafo único, Código de Processo Penal).
6 SANTOS, Direito Penal, p. 639.
O tipo ideal (ou o estereótipo teórico) que contrapõe a capacidade
de culpa (culpabilidade) é a condição ou potência de perigo (periculosidade).
O sujeito perigoso, ou dotado de periculosidade, seria aquele que, diferen­
temente do culpável, não possui condições nunimas de discernir a situação
em que está envolvido, sendo impossível avaliar a ilicitude do seu ato e,
consequentemente, atuar conforme as expectativas do direito (agir de
acordo com a lei). Em razão da ausência de condições cognitivas (déficits
cognitivos) para direcionar sua vontade, a aplicação de uma pena com ca­
ráter m arcantemente retributivo passa a ser inadequada, notadamente no
esquema da culpabilidade pela reprovabilidade, em que se postula uma adequa­
ção da pena ao grau de reprovação do ato voluntário praticado pelo sujei­
to. N este cenário de ausência de responsabilidade penal, a pena é substi­
tuída pela medida (de segurança) e a finalidade retributiva da sanção é
substituída pela orientação de tratamento do paüente.

13.1.3. O instrum ento de averiguação da periculosidade do autor do


PENAL B R A S IL E IR O

fato previsto em lei como crime é o in cid en te de in san id ad e m en tal,


procedimento regulado pelo Código de Processo Penal. O incidente pode
ser requerido em qualquer fase da persecução penal (fase de inquérito ou
instrução processual) e a sua instauração suspende o processo (art. 149, §§
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

1- e 2-, do Código de Processo). Segundo o art. 149, caput, do estatuto


processual, quando houver dúvida sobre a integridade m ental do acusado,
o juiz ordenará de ofício ou a requerim ento das partes o exam e m édico-
-legal (perícia psiquiátrica). Cabe, pois, ao médico legista (psiquiatra fo­
rense) a tarefa de atestar o grau de periculosidade do autor do fato. Peri­
MED IUS

culosidade entendida, na sistemática dos Códigos Penal e de Processo


Penal, como um estado de antissociabilidade que perm ite realizar u m ju ízo de
i

probabilidade de delinquênáafatura baseado nos déficits psíquicos do periciando.


FíMAS

O reconhecimento do estado de periculosidade (fundamento da apli-


ggj" cação da medida de segurança) produz significativos efeitos san cio n ató -
rios. Em razão de a periculosidade ser entendida como um estado ou um
atributo natural do sujeito —o indivíduo carrega consigo uma potência de-
litiva que a qualquer m om ento pode se concretizar em um ato lesivo con­
tra si ou contra terceiros —, a resposta estatal não pode ser determinada ex
ante. Se a pena é fixada por meio de um extenso procedimento judicial
(art. 59 do Código Penal) e a sua execução é expressamente lim itada no
tempo (art. 75, Código Penal), a finalidade curativa do tratamento realizado
no cum prim ento da medida impede estabelecer prazos de duração.
Segundo os fundam entos norm ativos que inform am a aplicação e a
execução das medidas de segurança, é absolutamente lógico e coerente esta
impossibilidade de definir o tempo da resposta jurídica ao ato previsto
como delito praticado pelo inimputável. Se o inimputável é portador de
uma doença (diagnóstico médico), a duração do tratam ento será estabele­
cida conforme a resposta positiva ou negativa que o paciente apresentará
durante o procedimento curativo. Sendo a medida de intervenção adequa­
da e a resposta do paciente positiva, o resultado é a diminuição ou contro­
le do impulso delitivo com o conseqüente diagnóstico de cessação da peri­
culosidade. D o contrário, se inadequada a medida ou negativa a resposta,
m antém -se o estado perigoso (prognóstico de delinqüência futura), sendo
necessário o prolongamento da internação compulsória. Não por outro
m otivo o Código Penal brasileiro determ ina que “a intenção, ou tratamen­
to ambulatorial, serã por tempo indeterminado, perdurando enquanto nãofor averi­
guada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo
deverá ser de í (um) a 3 (trh) anos” (art. 97, § le, do Código Penal).
A indefinição do limite m áxim o da medida de segurança —situação
que legitima, na realidade do sistema manicomial brasileiro, a possibilidade
de perpetuidade da sanção — não inibe, porém , a determinação de um
prazo mínimo. A previsão legal deste limite para a execução da medida de
segurança demonstra, em realidade, a inserção (subliminar) de uma tarifa
retributiva de sanção aos inimputáveis pelo cometimento do ilícito, visto que
mesmo ocorrendo a cessação de periculosidade antes deste prazo, foto que
tomaria sem sentido a manutenção da medida em sua finalidade terapêutica,
o paciente deve necessariamente permanecer submetido ao controle penal.
Conforme destacado no momento da exposição dos princípios cons­
titucionais que orientam as penas e as medidas de segurança no direito
penal brasileiro, a abertura legal para perpetuidade ocorre não apenas no
Código Penal, mas, sobretudo, pela injustificável omissão constitucional
no que tange aos limites das medidas. Apesar do extenso rol de princípios
e regras constitucionais sobre a forma de delimitação, de aplicação e de
execução das penas, o constituinte eximiu-se deste tema. N o direito cons­
titucional comparado, p. ex., é com um perceber o tratamento paritário
entre as sanções aplicáveis aos imputáveis e aos inimputáveis, sendo res­
guardados isonômicos direitos e garantias7, inclusive no que tange à veda­
ção da perpetuidade8.
O uso do direito comparado como fonte orientará inúmeras críticas
ao sistema brasileiro e perm itirá projetar interpretações que confiram um
m ínim o de garantia às pessoas submetidas às medidas de segurança. Isto
porque, em foce do c a rá te r a flitiv o d a s é m e d id a s d e s e g u ra n ç a ,

fundamental que os direitos e as garantias que constituem o estatuto ju rí­


dico dos imputáveis sejam ampliados aos portadores de sofrimento psíqui­
co, sobretudo após a publicação da Lei de Reform a Psiquiátrica (Lei n.
10.216/2001), que im põe aos Poderes constituídos o dever de criar meca­
nismos humanitários de desinstitucionalização manicomial.

13 .2 . Medidas de Segurança: Sistemas (Duplo Binário e


Vicariante) e Espécies (Internação e Tratamento
PENAL B R A S IL E IR O

AmbulatoriaL)

13.2.1. Ao longo do século passado foram contrapostos dois s is te m a s

d e a p lic a ç ã o d a s m e d id a s d e o sistema do duplo binário e


s e g u ra n ç a :

o sistema vicariante.
NO 3REIID

O s is te m a d o em vigor na legislação penal brasi­


d u p lo b in á r io ,

leira até 1984, previa a possibilidade de imposição da medida de seguran­


DE S EG U R A N Ç l

ça independentemente da (in)imputabilidade. Assim, se fosse reconhecido


o estado perigoso, seriam aplicáveis pena e medida de segurança, conjunta e
sucessivamente, mesmo ao imputâvel e ao semi-imputável.
O Código Penal de 1940 estabelecia duas hipóteses de configuração
FTNAS • MED WS

do ^tado perigoso: presunção legal ou declaração (reconheámento) judidal. O re­

7 “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível
a acção ou a omissão, nem sojrrer medida de segurança cujos pnssupostos não estejam fixados em lei
5M anterior’’ (art. 29, 1, Constituição de Portugal).
"As penas privativas de liberdade e as medidas de segurança serão orientadas á reeducação e á
reinserção social e não poderão consistir em trabalhosforçados” (art. 25, 2, 1? parte, Constituição
da Espanha).
"Ninguém pode ser privado do ju iz natural designado por lei. Ninguém pode ser punido, senão
por aplioção de uma lei que tenha mtrado em vigor antes de cometido ofato. Ninguém pode ser sub­
metido a medidas de s^urança, salvo nos casos previstos pela lei” (art. 25, Constituição da Itália).
8 “Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carac­
ter pe^étuo ou de duração ilimitada ou indefinida” (art. 31, 1, Constituição de Portugal).
vogado art. 78 do Código determinava que seriam considerados perigosos
(presunção legal de periculosidade): (a) os inimputáveis; (b) os sem i-im -
putáveis; (c) os condenados por crime cometido em estado de embriaguez,
se habitual a embriaguez; (d) os reincidentes em crimes dolosos; (e) os
condenados por crim e cometido por associação, bando ou quadrilha. Além
disso, poderia ser reconhecida a periculosidade do autor do ilícito pelo
julgador em seguintes hipóteses: (a) se os antecedentes e a personalidade,
os motivos determinantes e as circunstâncias do fato, os meios empregados
e os modos de execução, a intensidade do dolo ou o grau da culpa, auto­
rizassem a suposição de que o sujeito viria ou tornaria a delinquir; e (b) se,

C DIREIüJ : EJW Or>i LDNU


na prática do fato, fosse revelada torpeza, perversão, malvadez, cupidez ou
insensibilidade moral (art. 77 do Código Penal de 1940 com redação dada
pela Lei n. 6.416/77)9.
R ealejr., Dotti, Andreucci e Pitombo, ao justificarem a substituição
do sistema dualista (duplo binário) pelo sistema monista (vicariante), afir­
m am que “o Código Penal de 1940, tendo eleito a dupla via, incorreu em mani­

V
festo erro, porquanto primeiro para os imputáveis e semi-imputáveis, nas palavras
de Antolisei, impõe a uma pessoa, necessitada de cura e de educação, as constrange­

St li 1 D ID IE Üt ÕLG.
doras condições do cárcere, que só agravam a periculosidade que, depois, piorada, se
buscará Mncelar, tudo para conciliar ou superar a oposição entre culpabilidade e
periculosidade" 10.
A aplicação conjunta da pena e da medida de segurança no sistema
anterior, segundo a precisa crítica de Bitencourt, configurou notória lesão

' J. - K3I Eli* :t Í.IRFHUlJB


ao princípio ne bis in idem, “pois, por mais que se diga que o fundam ento e os
fins de uma e outra são distintos, na realidade, é o mesmo indivíduo que suporta as
duas conseqüências pelo mesmo fato praticado”n. Em termos pragmáticos,
Fragoso, ao analisar a realidade empírica da aplicação do direito penal pelo
sistema de administração da justiça crim inal, demonstrou que “afalência do
sistema [do duplo binário] se deve aofato de nunca ter sido possível distinguir, na

9 A redação originária do art. 77 do Código Penal de 1940 estabelecia que “quando ape-
riculosidade não é presumida por lei, deve ser retnnheádo perigoso o individuo, se a sua personalida-
<k e antecedentes, bem como os motivos e cinunstâncias do crime autorizam a suposição de que venha
ou tome a delinquir”.
10 R EA LEJR . et al., Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 284.
Sobre os sistemas vicariante e do duplo binário na legislação penal brasileira, conferir
FER R A R I, Medidas de Segurança e Direito fànal no Estado Democrático de Direito, pp. 32-46.
11 BITEN C O U RT, Tratado de D in ito Penal, p. 781.
execução, a pena privativa de liberdade, da custódia de segurança. Deve-se também
à precariedade do juízo de periculosidade, bem como à inexistência de estabelecimen­
tos e depttsoal técnico”12.
Superado o duplo binário, a Reform a da Parte Geral de 1984 insti­
tuiu o s is te m a cindindo a resposta punitiva entre penas
v ic a r ia n te ,

(imputáveis) ou medidas de segurança (inimputáveis). Mesmo nos casos de


semi-imputabilidade, nos quais há possibilidade de aplicação de ambas as
respostas punitivas, o magistrado deve optar prioritariam ente pela pena
(reduzida pela m inorante do art. 26, parágrafo único, do Código Penal) e,
em casos excepcionais13, substituir pela medida de segurança, nos termos
do art. 98 do Código Penal14.

13.2.2. O Código Penal, em seu art. 96, prevê duas e s p é c ie s d e

m e d id a s d e a internação psiquiátrica (art. 96, I ) e o trata­


s e g u ra n ç a :

m ento ambulatorial (art. 96, II).


FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO 3REIID PENAL B R A SILEIR O

A in te r n a ç ã o determ ina o cum prim ento da medida


p s iq u iá tr ic a

de segurança em hospital de custódia e de tratamento psiquiátrico (HCTPs)


ou outros estabelecimentos adequados com características similares. Em
realidade, o modelo de internação compulsória se realiza nos chamados
manicômios judiciários, instituições totais com características asilares e segre-
gacionistas similares às penitenciárias. A forma penitenciária dos hospitais
de custódia ou manicômios judiciais é reforçada na própria Lei de Execu­
ção Penal, que não apenas reserva pouco espaço para descrição da estru­
tura destas instituições como, em relação ao ambiente e à infraestrutura
material, remete explicitamente ao m odelo carcerário15.

12 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 496.


13 "Em regra, os semi-imputáveis possuem capacidade penal, são penalmente responsáwis e puníveis
com redução de um a dois terços da pena; por exceção, na hipótese de necessidade de especial trata­
mento curativo (art. 98, CP), a pena privativa de liberdade pode ser substituída por medida de se­
gurança — hipótese de aplicação do sistema virnriante no sistema brasileiro, caracterizado pela substi­
tuição recíproca entnpenas e medidas de segurança” (SANTOS, Direito Penal, p. 646).
14 "Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste Código e necessitando o condenado de especial
tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamen­
to ambulatorial, pelo prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos, nos termos do artigo anterior e nspec-
tivos§ § Ia a 4a” (art.98 do Código Penal).
15 “O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico destina-se aos inimputáveis e semi-imputáveis
referidos no artigo 26 e seu paràgafo único do Código Penal. Parágnfo únia. Aplica-se ao hospital,
Lembra Bitencourt que a mudança na nomenclatura ocorrida na
Reform a de 1984 —substituição do term o manicômio judiciário por hos­
pital de custódia e tratam ento psiquiátrico —em nada alterou a realidade
do sistema de sanção aos inimputáveis, pois as características manicomiais
seguem presentes no sistema atual16.
A segunda espécie de medida de segurança é aquela que submete o
paciente ao tr a ta m e n to principal característica do tra­
a m b u la to r ia l. A

tamento ambulatorial é a imposição do acompanhamento médico-psiquiá-


trico sem a obrigatoriedade de que o paciente permaneça recluso na insti­
tuição. Conforme é possível notar da exposição de motivos do Código

a idiiue üt õtc. hí^oi hc direi ü; : ejul or>i m iiu


Penal, o tratam ento ambulatorial é considerado um a medida restritiva dis­
tinta da medida detentiva (internação): “duas espécies de medida de segurança
consagra o Projeto: a detentiva e a restritiva. A detentiva consiste m internação em
hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (...). O Projeto consagra signficativa
inovafio ao prever a medida de segurança restritiva, consistente na sujeição do agen­
te a tratamento ambulatorial, cumprindo-lhe comparecer ao hospital nos dias que lhe
forem determinados pelo médico, a fim de ser submetido à modalidade terapêutitó
prescrita” (Exposição de M otivos do Código Penal, §§ 89 e 90).
Conforme destaca Fragoso, “a internação em hospital de custódia e tra­
tamento psiquiátrico apliM-se obrigatoriamente aos inimputáveis, que tenham sido
absolvidos, com base no art. 26, CP, e que tenham praticado um fato em que a Lei
define como crime, punido com a pena de reclusão. Aplitó-se também,facultativa-

nt
■j. - K3i um.-. :t í.G tF H u ç jB
mente, aos inimputáveis que tenham praticado fato previsto como crime, punido,
porém, como pena de detenção, bem como aos semi-imputàveis"xl.
Nota-se, pois, que o c r ité rio p a ra d e fin iç ã o d a e s p é c ie d e m e ­

d id a d e —detenção em hospital de custódia ou restrição em


s e g u ra n ç a

regime ambulatorial — é, fundamentalmente, conforme estabelecido no


art. 97, caput, do Código Penal, a previsão genérica da gravidade do ilícito
(detenção ou reclusão). Assim, o regime ambulatorial é aplicado subsidia-

no que couber, o disposto no parágrafo único, do artigo 88, desta L ei” (art. 99, da Lei de Execu­
ção Penal).
“O condenado será alojado em ala individual que anterá dormitório, aparelho sanitário e lava­
tório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela
concorrência dos fatores de aeração, insolação e andiàonamento térmico adequado à existência hu­
mana; b) ána mínima de 6,00m 2 (seis metros quadrados)” (art. 88, da Lei de Execução Penal).
16 BITENCOU RT, Tratado de Direito Penal, p. 783.
17 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 500.
riam ente ao de internação nos casos em que a conduta praticada pelo
inimputável tenha como previsão a pena de detenção1S.
A previsão em abstrato da forma reclusiva ou detentiva como crité­
rio único de definição da espécie de medida de segurança a ser cumprida
não parece estar adequada ao postulado constitucional que determ ina ao
julgador a individualização da sanção penal (medida de segurança). N ote-se que,
em relação às penas, a fixação do regime ou a possibilidade de substituição
por pena restritiva de direitos independe da espécie de privação de liber­
dade prevista em lei. Assim, o tipo de regim e (aberto, semiaberto ou fe­
chado) e a espécie de sanção (privativa de liberdade, restritiva de direito
ou multa) estarão subordinados aos critérios judiciais expostos motivada-
m ente na sentença (individualização da pena). A definição das espécies de
m edida a partir de um critério abstrato parece, portanto, estar em oposição
ã estrutura principiológica (constitucional e legal) que orienta a aplicação
das sanções.
Ademais, este critério tende a obstaculizar a diretriz político-crim i­
PENAL B R A S IL E IR O

nal da utilização excepcional da internação (princípio da subsidiariedade),


visto o seu caráter marcadamente aflitivo, que em m uito pouco se diferen­
cia, na realidade empírica do sistema punitivo, das formas carcerárias de
pena. Nas conclusões de Fragoso, “o ju iz deve preferir, sempre que legalmente
NO 3REIID

possível, o tratamento ambulatorial. Está mais do que demonstrada a nodvidade da


internação psiquiátrica. O s manicômios judiciários, como instituições totais, funcio­
DE S EG U R A N Ç l

nam como sinal negativo, agravando a situação mental do doente”19.

13.3 . Medidas de Segurança: Caráter Punitivo e Critérios de


FTNAS • MED WS

Aplicação Judicial

13.3.1. O c a rá te r p u n itiv o d a s é uma


m e d id a s d e s e g u ra n ç a

das principais denúncias realizadas pela crim inologia crítica e pela crítica
508 do direito penal a partir da década de 70 do século passado. A exposição
da incapacidade de as instituições totais (prisões e manicômios) realizarem
m inim am ente as finalidades expostas em sua programação oficial (resso-

18 "Se o agente for inimputável, o ju iz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato
previsto como crimefo r punível com detenção, podem o ju iz submetê-lo a tratamento ambulatorial’’
(art. 97, aput, Código Penal).
19 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 501.
cializar o imputâvel e reduzir a periculosidade dos inimputáveis) deflagrou
um amplo processo de desconstrução dos mitos fundantes do sistema pu­
nitivo. D entre estes mitos, a ausência da perspectiva punitiva (retributiva)
das medidas de segurança.
N o caso específico das medidas de segurança, Cirino dos Santos
demonstra que a crise decorre da inconsistência dos m étodos científicos de
prever o comportamento futuro (periculosidade: prognóstico de delinqüên­
cia futura) e da incapacidade da medida de transformar condutas antissociais
em condutas ajustadas: “a crise das medidas de segurança estacionárias é a crise
da prognose de periculosidade e da eficácia da internação para transformar con­

LDNU
dutas ilegais de inimputáveis em condutas legais de imputáveis. A inconsistência

Or>i
desses pressupostos explica a conviqão generalizada sobre a necessidade de redufio
raditól das medidas de seguranp estacionárias”20.

D IR EIü J : EJU l
Em decorrência da crise conceituai e estrutural, Zaffaroni e Batista
desafiam a construção de uma dogmática conseqüente no campo das medidas
de segurança, tom ando como pressuposto sua para além

C
V
n a tu r e za p e n a l,

do embuste das etiquetas. Conform e sustentam, se a Reform a de 1984 repre­


sentou um significativo avanço ao expungir as diversas hipóteses de perigo­

Õ LG .
sidade presumida pré-delitual da disciplina legal, restringindo as hipóteses

U1 D I D ( E Ü t
de imposição de medidas de segurança aos inimputáveis (e semi-imputá­
veis), “(...) alguns passos poderiam ser dados incoyorando-se à construção dogmá­
tica as importantes contribuições da Lei 10.216/01, sobre a proteção e direitos das

St
pessoas portadoras de transtornos mentais”21.

í .^ t F H U Ç J B
A Lei n. 10.216/2001 inegavelmente muda o estatuto jurídico e a
lógica do tratam ento dos portadores de sofrimento psíquico no Brasil. A
Lei da Reform a Psiquiátrica não apenas determ ina como diretriz central ' J. - K 3 I L M:. :t

que sejam realizadas políticas públicas de desinstitucionalização, como fixa


como premissa o respeito ã autonomia dos usuários do sistema de saúde
mental. Assim, devem atuar como protagonistas na definição de sua tera­
pêutica. Além disso, a Reform a Psiquiátrica procura alterar a linguagem
que configurou historicamente a instituição manicomial, estabelecendo 509
uma nova gramática nas práticas de internação.
A Reform a Psiquiátrica abre importantes caminhos de superação da
lógica que orienta a aplicação e a execução das medidas de segurança, como
posteriormente será trabalhado. N o mom ento, porém, im porta construir

20 SANTOS, D inito Penal, p. 641.


21 ZAFFARONI et al., Direito Penal Brasileiro I, p. 67.
as bases de um a nova perspectiva a partir do reconhecim ento de que a
medida de segurança “(...) não se distingue da p em : ela também representa
perda de bens jurídicos e pode ser, inclusive, mais aflitiva do que a pena, por ser
imposta por tempo indeterminado. Toda medida coerdtiva imposta pelo Estado, em
função do delito e em nome do sistema de controle sotial, épena, sqa qualfor o nome
ou a etiqueta com que se apresenta”22. Nas palavras de Paulo Queiroz: “(...) a
distinção entre pena e medida de seguranp é puramente formal; materialmente, a
medida de segurança pode ser mais lesiva à liberdade, inclusive”25.

13.3.2. Diferentemente da complexa estrutura de determinação da


pena, a estrutura normativa do Código Penal e as diretrizes desenvolvidas
pela dogmática são relativamente simples no que tange aos c r ité rio s d e

a p lic a ç ã o d as m e d id a s d e Todavia, esta relativa simplici­


s e g u ra n ç a .

dade não significa garantia em termos de eficácia da tutela dos direitos


fundamentais dos portadores de sofrimento psíquico contra eventuais
abusos e excessos. Pelo contrário, a inexistência de um procedimento cla­
PENAL B R A S IL E IR O

ro para determinação, p. ex., da quantidade m ínim a e m áxim a da medida


de segurança, cria um a situação de vácuo na qual as lógicas manicomial e
punitiva se inserem. Ademais, os Tribunais ainda são bastante reticentes
—salvo raras exceções —em reconhecer o impacto da Lei n. 10.216/2001
NO 3REIID

no sistema de medidas de segurança.


O procedimento de aplicação da e s p é c ie d e m e d id a d e s e g u ra n ­
DE S EG U R A N Ç l

ç a ,conforme exposto anteriormente, é predeterm inado legislativamente


pelo tipo de pena privativa de liberdade imposto ao delito (reclusão ou de­
tenção), situação que, em tese, designaria a internação psiquiátrica aos fatos
mais graves. Todavia, como se sabe, o critério da gravidade do delito é
FTNAS • MED WS

apenas hipotético, porque não há, na legislação penal ordinária e extrava­


gante, uma plena correspondência (proporcionalidade) da quantidade e da
espécie de pena com a gravidade do delito, notadamente porque no siste­
ma punitivo nacional é prevista a detenção para inúmeros crimes com
510 penas que não podem ser consideradas baixas —p. ex., abandono material
(art. 244, caput, do Código Penal)24; abstenção ou desistência ilegais do

22 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 549.


23 Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 454.
24 “Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou deJtlho menor de 18 (dezoito)
anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes
proporcionando os k c u t s o s necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente
processo licitatório (art. 95, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93)25; aferição
de benefício por feita de procedim ento de licitação (art. 89, pará^afo
único, da Lei n. 8.666/93)26; duplicata simulada (art. 172, a p ut, do Códi­
go Penal)27; exposição ou abandono de recém-nascido com resultado
m orte (art. 134, § 2° do Código Penal)28, dentre inúm eros outros.
O art. 97, caput, do Código Penal, estabelece que, se o agente for
inimputável, o juiz aplicará a internação, mas se “ofato previsto como crime
for punível com detenção, poderá submetê-lo a tratamento ambulatorial”. Em prin­
cípio, a diretriz do Código é a da preponderância da internação, pois não

C DIHEI üj : EJUl Or>i IDilU


há vedação de sua aplicação aos autores de fetos puníveis com detenção.
Todavia, a orientação doutrinária e jurisprudencial é no sentido de frag­
m entar o sistema das medidas de segurança, restringindo a internação aos
casos de reclusão e o tratam ento ambulatorial aos de detenção29.

V
acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socornr descendente ou ascendente, gra­
vemente enfermo: Pena — detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de 1 (uma) a 10 (dez)

üt U LDI3(£Üt ÕLG.
vezes o maior salário mínimo vigente no País.”
2í “Afastar ou procurar afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fiaude ou ofencimento
de vantagem de qualquer tipo: Pena — detenção, <k 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, além da pena
cornspondente à violência. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se abstêm ou desiste de
licitar, em razão da vantagem oferecida.”

' J. - K3I LM:. :t Í.IRFHUÇJB


26 “Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses pnvislas em lei, ou deixar de observar as for­
malidades pertinentes à di^ensa ou à inexigibilidade: Pena — detenção, de 3 (três) a 5 (cinw) anos,
e multa. Parágrafo único. N a mesma pena inwrre aquele que, tendo compmvadamente concorrido
para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar
contrato com o Poder Público.”
27 “Emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quan­
tidade ou qualidaik, ou ao servip prestado. Pena — detenção, de 2 (dois) a 4 (quatm) anos, e m ulü.”
28 “Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria. § 2 a — Se Ksulta a morte: Pena
— detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.”
25 “A distribuição de autores inimputáveis (ou semi-imputáveis, necessitados de tratamento curativo)
<kfato previsto como crime pelas duas espécies de medidas de segurança depende da natureza da pena
cominada no tipo de injusto realizado, conforme as seguintes correlafaes legais (art. 97, CP): a) in­
clusão determina internação; b) detenção determina tratamento ambulatorial” (SANTOS, Direito
Penal, p. 648).
N o mesmo sentido, B ITEN CO U RT, Tratado de Direito Penal, p. 783; BRANDÃO,
Curso de Direito Penal, p. 382; DELMANTO, Código Penal Comentado, p. 181; FRA N CO
e STOCO, Código Penal e sua Inteyretafio, p. 485; REA LEJR ., Instituições de Direito Penal
II, p. 175.
Ocorre que a absolutização dos critérios genéricos relativos à espécie
de pena, conforme sustentado anteriormente, impede o devido procedi­
m ento de individualização da m edida de segurança. Pense-se, p. ex., na
hipótese de, durante o processo de instrução, o laudo psiquiátrico exarado
no incidente de insanidade mental concluir pela adequação do tratam ento
ambulatorial ao acusado, embora praticado delito punível com reclusão.
Ao analisar o tema, M archewka afirma que “ase critério rígido não é
justo, nem mais adequado, sendo aconselhável que a lei deixasse ao prudente enten­
dimento do ju iz escolher entre a internação e o tratamento em liberdade”™. Nesta
linha, notadam ente quando há indicação médica, o Supremo Tribunal
Federal decidiu que “em casos excepdonais, admite-se a substituição da interna­
ção por medida de tratamento ambulatorial quando a pena estabelecida para o tipo
é a reclusão, notadamente quando manifesta a desnecessidade da internação”31.
Importante referir que um dos fundamentos expostos na decisão foi
exatamente o feto de a Lei n. 10.216/2001 questionar a efetividade da
custódia dos doentes mentais nos regimes asilares e a sua diretriz de gra­
PENAL B R A S IL E IR O

dual desativação dos hospitais psiquiátricos, “o que toma ainda mais injusta e
desaconselhável a internação do paciente em hospital psiquiátrico judicial”12.

13.3.3. Após a eleição da internação ou do tratam ento ambulatorial,


NO DREITD

o segundo m om ento da atividade sancionatória judicial na absolvição im ­


própria é o da determinação da q u a n tid a d e (te m p o ) d e m e d id a d e
DE S EG U R A N Ç l

s e g u ra n ç a .

O art. 97, § 1° do Código Penal, estabelece que a medida de segu­


rança, independentemente da espécie, será por tempo indeteminado enquan­
FTNAS • MED WS

to perdurar a periculosidade, e o seu prazo m ínim o deverá ser de 1 (um)


a 3 (três) anos. A primeira questão a ser enfrentada, portanto, diz respeito
ao te m p o m á x im o d a m e d id a d e s e g u ra n ç a .

N o m om ento da análise dos princípios constitucionais configura­


dores das sanções penais no direito penal brasileiro, foi afirmada a neces­
512 sidade de compatibilização entre o tratam ento jurídico das penas e o das

30 M ARCHEW KA, A s Contradições das Medidas de Segurança no Contexto do Direito Penal


e da Reforma Psiquiátrica no Brasil, p. 107.
31 Supremo T ribunal Federal, Habeas Corpus 85.401, Rei. M in. C ezar Peluso, j.
04.12.2009.
32 Supremo T ribunal Federal, Habeas Corpus 85.401, Rei. M in. C ezar Peluso, j.
04.12.2009.
medidas de segurança, para além do fato de a Constituição ser omissa em
relação às últimas. O caráter sancionatório e punitivo das medidas de se­
gurança im põe que o texto constitucional seja interpretado de forma
ampla, na qual o term o pena deve adquirir conceitualmente o sentido de
sanção penal, conglobando, portanto, as penas criminais, as medidas de
segurança e, inclusive, as medidas socioeducativas. Assim, o comando do
art. 5e, XLVII, b, da Constituição, que veda a perpetuidade da pena, ine­
xoravelmente alcança as medidas de segurança.
Bitencourt, de forma precisa, argumenta que “não se pode ignorar que
a Constituição de 1988 consagra, como uma de suas cláusulas pétreas, a proibição
da prisão pe^étua; e, como pena e medida de segurança não se distinguem ontolo-
gicamente, é lícito sustentar que essa previsão legal — vigência por prazo indetermi­
nado da medida deseguranp — nãofoi rec^ríonadapelo atual texto constituáoml”33.
Neste sentido, parece estar consolidada na doutrina e na jurispru­
dência a restrição das medidas de segurança conforme a determ inação do
art. 75 do Código Penal, ou seja, impossibilitando que ultrapasse o limite
temporal dos 30 (trinta) anos. O próprio Supremo Tribunal Federal, em
algumas decisões paradigmáticas, confirm ou este entendim ento, determ i­
nando o limite m áximo das medidas de segurança em 30 (trinta) anos34.
A tualm ente, porém, conform e refere B itencourt33, a dogmática
nacional tem se inclinado para adequar o lim ite da m edida de segurança
àquele correspondente ao m áxim o de pena abstratamente cominado no
tipo penal imputado ao portador de sofrimento psíquico autor de ilícito36.

33 B ITEN CO U RT, Tratado de Direito Penal, p. 786. N o mesmo sentido, FE R R A R I,


Medidas de Seguranp e Direito Penal no Estado Democrático de D im to, pp. 183-189.
34 "A inteyretação sistemática e teleológica dos artigos 75, 97 e 183, os dois primeiros do Código
Penal e o último da Lei de Execuções Penaú, deve fazer-se considerada a garantia constitucional
abolidora das prisões pe^étuas. A medida de segurança fica jungida aoperiodo máximo de trinta
anos” (Supremo Tribunal Federal, Habeas C oyus 84.219, Rei. M in. Marco Aurélio, j.
15.02.2005).
"A medida de segurança deve perdurar enquanto não haja cessado a periculosidade do agente,
limitada, ontudo, aoperiodo máximo de trinta anos” (Supremo Tribunal Federal, Habeas Cor­
pus 97.621, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 02.06.2009).
33 BITENCOU RT, Tratado de Direito Penal, p. 787. De igual forma, FE R R A R I, Medidas
de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de D im to, pp. 183-189.
36 Em recentes decisões, o Superior Tribunal dejustiça tem afirmado “a ompreensão de
que o tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abs­
tratamente aminada ao delito praticado, a m fitndamento nos prindpios da isonomia e da propondo-
O entendim ento procura dim inuir o nível de desproporcionalidade entre
o tempo de internação e o dano causado —pense-se, p. ex., nos casos, nem
um pouco isolados ou excepcionais, de pessoas submetidas a longos pe­
ríodos de internação em m anicôm ios judiciários por danos de pouca
expressividade ou insignificantes (pequenos furtos, ameaças, lesões corpo­
rais leves)37.
N o entanto, embora as formas de limitação do tempo m áximo das
medidas de segurança anteriormente expostas representem importantes
avanços em relação ã indeterm inação normativa, ainda há uma profunda
lacuna, em term os de isonomia em relação às penas, exatam ente em pre­
juízo de uma pessoa que demanda maiores cuidados. Imagine-se, p. ex.,
uma situação de prática de furto simples em concurso de agentes por uma
pessoa imputâvel e um a inimputável, ambos prim ários, com bons antece­
dentes, confessos e menores de 21 (vinte e um ) anos na época do foto. Na
sentença condenatória do imputâvel, o juiz aplicaria a pena, dosando as
circunstâncias judiciais e legais. Em razão dos elementos expostos (confis­
PENAL B R A S IL E IR O

são, menoridade, bons antecedentes e primariedade), dificilmente a pena


definitiva ficaria acima do m ínim o legal com inado ao furto qualificado
pelo concurso de agentes que é 2 (dois) anos (art. 155, § A-, do Código
Penal). Ao inimputável, porém, restariam três hipóteses quanto ã duração
NO 3REIID

m áxima da medida de segurança: (a) tem po indeterm inado pelo critério


do art. 97, § l s, do Código Penal; (b) limitação em 30 (trinta) anos con­
DE S EG U R A N Ç l

forme a diretriz do Supremo Tribunal Federal de aplicação do art. 75 do


Código Penal; e (c) tem po m áximo da pena abstratamente cominada ao
delito, no caso 8 (oito) anos (art. 155, § A-, do Código Penal), nos termos
FTNAS • MED WS

da incipiente jurisprudência do Superior Tribunal dejustiça. O corre que,


por mais que se adote a postura mais garantista (hipótese ‘c’), é inconteste
perceber a falta de isonomia de tratam ento e o prejuízo ao inim putável —
sujeito que, repita-se, pela sua especial condição psíquica, deveria ter uma
514 situação jurídica mais favorável. Note-se, ainda, que a questão ultrapassa o

nalidade” (Superior Tribunal dejustiça, Habeas C o^us 122.522, Rei. Min. Og Fernandes,
j. 18.08.2010).
37 Neste sentido, é revelador o documentário A Casa dos Mortos, dirigido por Débora
Diniz, sobre a situação dos manicômios judiciais brasileiros. O relato dos casos de inter­
nação permite que se tenha uma dimensão relativamente precisa do tipo de conduta que
produz a institucionalização das pessoas nos manicômios nacionais (www.acasadosmortos.
org.br).
tempo de sanção, pois a determinação da pena desdobra inúmeros outros
efeitos, como, p. ex., redefinir o prazo de prescrição (prescrição em con­
creto), orientar os direitos do preso na execução (detração, remição, co­
mutação, indulto, progressão de regime, livramento condicional).
Para que sejam evitadas situações de evidente ruptura com os prin­
cípios constitucionais da igualdade de tratam ento e da proporcionalidade
da sanção em relação ao fato e ao resultado produzido —ou seja, para que
se possa “estabelecer maior grau de aproximação isonômica possível entre a punição
de imputáveis e inimputáveis que cometem delitos”™ —, A m ilton Bueno de
Carvalho conclui que a conformação constitucional do procedim ento de

diheí üí :ejW or>i ldíiu


aplicação da medida de segurança ocorreria com a adequação do seu lim i­
te m áxim o ã pena que seria aplicável no caso concreto39. Neste sentido, o
julgador, na sentença (absolvição imprópria), realizaria a dosimetria da
medida, com o se pena fosse —excluindo, logicamente, das circunstâncias
de análise aquelas relativas ã culpabilidade, pois se trata de inimputável —,
estabelecendo o horizonte sancionatório máximo. O procedim ento é ab­

vc
■j. - K3i eií* :t £.irfhulJB nt Uididie ÜE õlg. hí^oi
solutamente adequado, inclusive para fins de orientação dos prazos pres-
cricionais e definição dos direitos inerentes ã execução das medidas de
segurança.
13.3.4. Em relação ã questão dos limites das medidas, os critérios
temporais, importa, ainda, analisar o sentido e os critérios de determinação
do te m p o m ín im o d a m e d id a d e s e g u ra n ç a .

O Código estabelece que o julgador, na sentença, defina o prazo


m ínim o da m edida de segurança, que não poderá ser inferior a 1 (um) ou
superior a 3 (três) anos. A questão, porém, merece um a análise mais deta­
lhada, notadamente no que diz respeito ã justificativa de existência de um
prazo mínimo. Isto porque, se o fundam ento da medida de segurança é a
periculosidade e o objetivo do tratam ento é a sua cessação, parece ser con­
traditória a determinação legal. Imaginem-se os casos em que o sujeito, ao
longo de um processo crim inal que pode durar anos, submeteu-se a trata­
m ento psiquiátrico e psicológico, e, no momento da sentença, está em

38 CARVALHO, Garantismo Penal Aplicado à Execução Penal , p. 202.


39 CARVALHO, Garantismo Penal Aplicado à Execução Penal, p. 201.
Em sentido idêntico, Juarez Cirino dos Santos e Paulo Queiroz defendem a adoção
do critério da pena aplicável no caso concreto (Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 458; SAN­
TOS, Direito Penal, p. 652).
plenas condições de convívio social, não apresentando risco de reincidên­
cia maior do que aquele inerente a todas as pessoas. Situação similar seria
a dos casos em que o sujeito inicia o cum prim ento da medida e é consta­
tada a cessação da periculosidade antes do período mínimo.
Nestes casos, Paulo Queiroz sustenta que “a medida de segurança perde
a sua razão de ser, parecendo que o constrangimento deva cessar prontamente, em
homenagem aos princípios da humanidade eproporcionalidade, esperíalmente”40. O
raciocínio exposto pelo autor é preciso e adequado aos comandos consti­
tucionais. N o entanto, perm anece a indagação sobre o sentido desta tarifa
mínima.
Conform e antecipado, o prazo m ínim o parece indicar a marca re-
tributiva que acompanha as medidas de segurança. Marca retributiva que
se instaura nas intermitências da legitimação do discurso do tratam ento da
doença mental. Em realidade, esta tarifo retributiva parece confirm ar a tese
proposta por Mariana W eigert no sentido de que a prática do delito apaga
PENAL B R A S IL E IR O

(ou, no m ínim o, embap) a compreensão da extensão do sofrimento psí­


quico e das formas de cuidado com os seus portadores41. Apesar da absol­
vição (imprópria) e do reconhecim ento da incapacidade do sujeito, é o
com etim ento do crime que permanece como um dado congelado em sua
NO 3REIID

biografia. Em conseqüência, algo de retributivo, mesmo que m ínimo, deve


ser imposto.
DE S EG U R A N Ç l

A solução mais adequada, portanto, parece ser a não definição do


tempo m ínim o, inclusive porque inexistem critérios adequados, na dou­
trina e na jurisprudência, que orientem esta quantificação. R ealejr. lembra,
FTNAS • MED WS

inclusive, que a própria Lei de Execução Penal prevê a possibilidade de o


exame de cessação de periculosidade ocorrer antes do prazo m ínim o de 1
(um) ano 42 —“em qualquer tempo, ainda no decorrer do prazo mínimo de duração
da medida de segurança, poderá o J u iz da execufio, diante de requerimento funda­
mentado do Ministério Mblico ou do interessado, seu procurador ou defensor, orde­
nar o exame para que se verifique a cessação da periculosidade, procedendo-se nos
termos do artigo anterior” (art. 176 da Lei de Execução Penal).

40 Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 457.


41 W EIGERT, Entre Silêncios e Invisibilidades, pp. 64-74. No mesmo sentido, W EIGERT
e GUARESCHI, Mulheres em Cumprimento de Medida de Segurança, pp. 155-169.
42 R EA LE JR ., Instituições de Direito Penal II, p. 176.
1 3 .4 . Lógica Manicomial e Obstaculização dos Direitos dos
Portadores de Sofrimento Psíquico em Conflito com a Lei

13.4.1. A criminologia crítica e a antipsiquiatria expuseram ampla­


mente as contradições entre as funções declaradas (ressocialização e trata­
mento) e as funções reais (imposição ilimitada de sofrimento e esti^nati-
zação) das penas e das medidas de segurança43. Conforme diagnosticou
Basaglia, “(...) em todos os países do mundo [a prisão] tem como finalidade
[oficial] a reabilitação do preso, como, por outro lado, o manicômio tem comofin a ­

C DIREI üJ : EJUl Or>i LDNU


lidade [declarada] a cura do doente mental”. N o entanto, “(...) tanto o manicô­
mio quanto a prisão são instituições de Estado que servem para manter limites aos
desvios humanos, para marginalizar o que está excluído da sociedade [funções
reais]. E muito diflál dizer com precisão o que é a marginalidade ou o que è a
doença mental, como é muito difíál compreender a presenp dessas pessoas nestas
instituições, porque manicômio ou prisão são situações intercambiáveis: podemos

V
tomar um preso e colocá-lo no manicômio ou tomar um louco e metê-lo na prisão”4*.
N o cam po do saber e das práticas de controle da loucura, a antipsi­

St U LDI3(£Üt ÕLG.
quiatria e o m ovim ento antimanicomial representaram os principais eixos

43 "A abertura e a visibilidade das relcqões que se estabelecem nas instituições totais, realizadas pela
aiminologia critica (cárcen) epela antipsiquiatria (manicômios), possibilitam penceber asformasfai-

' J. - K3I LM:. :t &GtFHUÇJB


cas e simbólicas de violência exercidas nos espaços institucionais de mntrole social. N o primeiro as­
pecto (violências físicas), a forma asilar de tratamento revela-se absolutamente ofensiva aos dimtos
fmdamentais mínimos, seja dernrrente estmturafísia dos manicômios ou das prátios terapêutias
reconhecidamente contrárias à dignidade tfa pessoa internada. Neste aspecto Kssaltam-se não apenas
as violências típias que caracterizam as instituições totais — v.g. tortura de internos, isolamentos
injustificados, limitação dos espaços de liberdade, restrição <k mntatos rom o mundo exterior, privação
de Kcunos materiais — wmo as derivadas de técnicas de tratamento propriamente violentas — v.g. uso
de eletrochoque e de camisa deforp, aplicação excessiva defármacos ou de medicamentos inapropria-
dos, avalic^ões psiquiátrias e psicológicas eminentemente moralizadoras. N o segundo aspecto (sim­
bólico), o efeito estigmatizador da internação manicomial revela a impossibilidade do tratamento, ou
seja, demonstra ser a prática isolacionista antagônica à própria ideia de recuperação e dereinserção do
paciente na wmunidade. Aniyar de Castro, ao rnmparar as distintas formas de intrnação de pacien­
tes, constata que 'enquanto o paciente de um hospital geral é tratado como qualquer outra pessoa da
sociedade, ao doente mental ho^italizado trata-se como um portador de um status, não como pessoa. ’
Lembra a autora que o modelo de isolamento propwgnado pela psiquiatria tradicional cria distância
entK o psiquiatra e o doente, a qual pode ser denominada circulo coisificante, que impede wlação
autêntia entre ambos” (CARVALHO, Antimanual de Criminologia, p. 160).
44 BASAGLIA, Psiquiatria Alternativa, p. 45.
de resistência contra as formas de segregação institucional. O resultado
bastante concreto deste processo de desestabilização da lógica manicomial
foi a deflagração de inúmeras reformas nos sistemas psiquiátricos de um
núm ero considerável de países ocidentais nas últimas décadas. Os objetivos
da reforma psiquiátrica são, fundamentalmente, a desestabilização e a su­
peração da instituição/hospital manicomial e dos saberes correlatos que a
reforçam e a m antêm (lógica hospitalocêntrica). Conform e Guareschi,
Reis, O liven e H üning, “no ceme da luta da antipsiquiatria está um combate
contra a instituição, mas que também vem de dentro dela. A antipsiquiatria preten­
de dar ao indivíduo a tarefa e o direito de realizar a sua loucura, levando-a até ofim
em uma experiência para a qual a psiquiatria pode contribuir, porém jamais em nome
de um poder que lhefor conferido pela caparídade de busMra razão ou nornalidade’*5.
A ruptura com a lógica hospitalodntrica inicia-se com os processos de
moratória na construção de vagas em manicômios, de transferência dos
portadores de sofrim ento psíquico para leitos em hospitais gerais (em casos
PENAL B R A S IL E IR O

de internação necessária) e de criação de redes alternativas transdisciplina-


res de atendimento, ações que implicam, de igual forma, em um a nova
postura dos profissionais perante os usuários do sistema de saúde mental.
Dentre as mudanças estratégicas que redimensionam o trabalho dos
NO 3REIID

profissionais e dos cientistas da área, a criação de um a nova gramática da


loucura ultrapassa o m ero simbolismo e se constitui como um im portante
mecanismo de mudança. As formas de nom inar o louco e a loucura expõem
DE S EG U R A N Ç l

o que é encoberto nas práticas psiquiátricas e a mudança da linguagem


constitui um im portante passo na desconstrução da lógica manicomial. A
redesignação do louco — louco de todo o gênero era a expressão utilizada pelo
FTNAS • MED WS

Código Civil de 1916 —como sujeito portador de sofrimento psíquico ou usuá­


rio do sistema de saúde mental carrega consigo, portanto, uma nova postura
perante estas distintas construções da subjetividade.
Note-se, p. ex., que, no campo da crim inologia, Hulsm an igual-
518 m ente propõe a alteração na gramática do delito. Segundo o autor, seria
impossível superar a lógica do sistema penal sem rejeitar o vocabulário que
a sustenta. Elim inar os conceitos de crime, criminoso, criminalidade e
política crim inal, p. ex., obrigaria a um a completa renovação de todo o
discurso em torno do fenômeno. Isto porque “o aconterímento qualificado
como ‘crime’, desde o inírío separado de seu contexto, retirado da rede real de inte­

ii GUARESCHI et al., Usuários do Hospital-Dia, p. 124.


rações individuais e coletivas, pressupõe um autor culpável; o homem presumidamen-
te ‘criminoso’, considerado como pertencenteao mundo dos ‘maus’, já está antecipa­
damente proscrito”46. Para o autor, a ressignificação do crime e de toda a rede
de conceitos que o acompanha alteraria a maneira de compreensão das
condutas, facilitando, inclusive, o surgimento de novas formas de enfren­
tar as situações problemáticas. A mudança gramatical seria um a das estra­
tégias na mudança da lógica de enfrentam ento dos problemas da violência
institucional.
Neste sentido, a antipsiquiatria e o m ovim ento antim anicom ial

J : EJUl Or>i LDNU


demonstram como os rótulos, as significações e as práticas institucionais
são fundados a partir da linguagem pela qual o sujeito é traduzido47. Assim,
a mudança do significado da loucura possibilita um outro m odo de olhar
o sujeito (louco), instituindo uma forma distinta de compreensão, radical­

C DIREI U
m ente diversa daquela convencional que dicotomiza razão e desrazão. A
viragem proposta pela antipsiquiatria e pelo movim ento antimanicomial

V
é fundada em uma nova forma de olhar o problema da loucura que enfa­
tize a pessoa, e não a sua doença, o que perm ite rom per com os estigmas do

St ü LDI3(£Üt ÕLG.
processo de coisificação do portador de sofrimento psíquico que caracte­
rizam os procedimentos de institucionalização.

13.4.2. Parece haver um certo consenso, ao menos na literatura


crítica, sobre a necessidade de assegurar ao portador de sofrimento psíqui­

' J. - K3I LM.'. :t Í.GtFHUÇJB


co em conflito com a lei os direitos e as garantias mínimas que regem a
persecução penal dos imputáveis. Isto porque, no âmbito das práticas pu­
nitivas, algumas questões tornaram -se centrais no debate e, conforme
visto anteriorm ente, demonstram processos de inversão (reversibilidade)
dos instrum entos de proteção do inimputável —reversibilidade caracteri­
zada pela criação de determinadas técnicas que em nom e de uma aparen­
te proteção dos direitos produzem a sua própria violação.

‘6 HULSM AN e CELIS, Penas Perdidas, p. 96.


47 A construção lingüística da doença mental, sustentada e autolegitimada nos planos jurí­
dico e psiquiátrico, produz, conforme aponta Arrigo, um processo de patologização da di­
ferença com severas conseqüências punitivas da pessoa considerada ‘louca’: "a patologia da
diferença é um direcionamento ideológico e um suporte secKtamente comuniodo para manar a puni­
ção, e^ecialmente em relação ãs pessoas com desordens psiquiátricas” (ARRIGO, Toward a Cri­
ticai Penology o f the Mentally ill Offender, p. 222).
N o caso dos portadores de sofrimento psíquico, a reversibilidade se
concretiza na falácia pela qual em nome da garantia dos seus direitos é
excluída a possibilidade da responsabilização penal. N o entanto, o mesmo
processo de desresponsabilização que veda a imposição de penas afasta
todos os limites inerentes ã intervenção punitiva.
D entre os exemplos mais significativos desta faláría tutelar encontra­
-se a possibilidade legal de execução ilimitada (perpetuidade) da medida
de segurança, conforme destacado anteriormente. Todavia, apesar de a
perpetuidade das medidas de segurança ser o mais emblemático dispositi­
vo de violação dos direitos fundamentais dos portadores de sofrimento
psíquico em conflito com a lei, a restrição aos direitos e garantias m ínimas
se prolifera em todas as fases da intervenção jurídico-penal. N o âmbito do
direito penal material, o status da inimputabilidade obstaculiza a incidên­
cia de uma série de garantias, notadamente as causas de exclusão da tipici­
dade (princípio da insignificância e princípio da adequação social), da
ilicitude (consentimento do ofendido), da própria culpabilidade (coação
m oral irresistível, erro de proibição inevitável, inexigibilidade de conduta
diversa) e da punibilidade (prescrição). Na órbita processual, são afastados
inúmeros institutos despenalizadores como a composição civil, a transação
penal e a suspensão condicional do processo. Na esfera da execução das
medidas de segurança, são excluídos inúmeros direitos assegurados aos
presos como a remição, a detração, a progressão de regime e o livramento
condicional —veja-se, p. ex., que a comutação e o indulto foram previstos
apenas nos últimos Decretos presidenciais. Ademais, registre-se que este
diagnóstico é feito sem propor uma análise comparativa entre as condições
m ateriais em que ocorre a execução das penas e das medidas, pois se a si­
tuação carcerária nacional é, por si só, uma afronta aos direitos humanos,
o cenário dos hospitais de custódia e dos manicômios judiciários remem o­
ra, sem exageros, as piores experiências de degradação humana presencia­
das na história, que foram os campos de concentração criados pelo nacio-
nal-socialismo germânico.
De forma a anular o interdito ã garantia dos direitos dos portadores
de sofrimento mental, Paulo Queiroz sustenta que “(...) em nenhuma hipó­
tese será cabível a medida se na mesma situação não couber a aplicação da pena por
qualquer outro motivo. Assim, por exemplo, se o fato for atípico (v.g., ausência de
nexo causai ou de culpa) ou ilíríto (v.g. praticado em legítima defesa ou estado de
necessidade) ou não culpável (v.g., cometido sob coação moral irresistível, erro de
proibição inevitável, embriaguez involuntária completa) ou se tiver sido atingido por
causa de extinção de punibilidade (prescrição, decadênría etc.)”48.
A propósito, é interessante verificar como este processo de m inim i­
zação de direitos daqueles que vivem em situações de maior vulnerabili­
dade é sintomático na ordem jurídica nacional. Basta um simples olhar
comparativo entre as formas de execução das medidas de segurança e das
medidas socioeducativas para comprovar esta assustadora hipótese. A al­
ternativa hum anitária na execução das medidas de segurança parece não
ser m uito distinta da proposta em relação aos direitos e garantias dos ado­

: E U l Or>i LD N U
‘8 Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 451.
Na questão relativa ã culpabilidade, p. ex., não se desconhece que para a doutrina
penalística majoritária, sobretudo para os atores da teoria do delito, a imputabilidade

VC D IILi üJ
constitui umpressuposto e não um elemento da culpabilidade. Assim, negar a imputabilida­
de comopressuposto, afirmando a inimputabilidade, impediria analisar os elementos da
culpabilidade (potencialconsciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa).
Todavia, é correto o raciocínio de Paulo Queiroz no sentido de que a Lei da Reforma

ãLC.
Psiquiátrica impõe uma nova forma de olhar o problema. Inclusive porque os avanços
provocados pela antipsiquiatria e pelo movimento antimanicomial possibilitam negar a

UL D I3 (£ Ü t
absoluta incapacidade de compreensão e de vontade do portador de sofrimento psíquico.
Neste aspecto, parece correto que se reconheça um âmbito diferenciado de responsabili­
zação, notadamente se disto resultar uma maior garantia do portador de sofrimento psí­

ãt
quico. Cabe, portanto, ã dogmática penal adequar-se ã nova realidade de compreensão

' J. - K 3 I L M- :t & t R F H U Ç J B
do fenômeno da loucura, redefinindo, no que for necessário, suas estruturas conceituai e
categorial.
Neste cenário, a tese defendida por Paulo Queiroz é especialmente inovadora, pois
ao sustentar que a ideia de culpabilidade nâo é totalmente estranha ao portador de sofri­
mento psíquico, desloca a categoria imputabilidade da função de pressuposto para a de ele­
mento da culpabilidade. Assim, se a estrutura normativa da culpabilidade passa a ser
compostapelos elementos imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibili­
dade de comportamento diverso, o sofrimento psíquico excluiria apenas a imputabilidade,
situação que permitiria a aplicação das demais causas de exclusão da culpabilidade.
A> situações que o autor constrói demonstram a razoabilidade da tese, sobretudo
pensando na paridade de tratamento entre imputáveis e inimputáveis: “imagine-se, por
exemplo, que A e B, ambos residentes na zona rural dos confins do Brasil, estando a pescar ou a
caçar num domingo, como ê comum naquela região, sejam presos por porte ilegal de arma e crime
ambiental. A , plenamente imputâvel, é absolvido invocando erro de proibição inevitável; mas B,
inimputável, apesar de se encontrar na mesma situação, seria submetido 4 medida de segurança,
implicando grave Kstrição à liberdade do agente. Parece claro ainda que, se A pode alegar erro de
proibição, B, mais vulnerável, poderá fizê-lo com maior razão, mesmo por analogia, sob pena de se
consagrar uma injustiça manifesta” (Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 453).
lescentes em conflito com a lei submetidos às medidas socioeducativas: se
esta especial condição de inimputabilidade, seja em decorrência do fator
biológico (etário) ou do psicológico, gera um status jurídico privilegiado,
é injustificável que não sejam assegurados todos os direitos materiais e
todas as garantias processuais que marcam a posição jurídica de réu ou de
condenado imputâvel. A especial condição de inimputabilidade consolida os
direitos e as garantias assegurados aos imputáveis com o patamares mínimos
para o tratam ento jurídico dos adolescentes e dos portadores de sofrimen­
to psíquico em conflito com a lei49. Significa, de forma bastante clara, que,
além da efetivação daqueles direitos e garantias conquistados juridicam en­
te pelos adultos “m entalm ente sadios”, os inimputáveis devem ser contem ­
plados com tratam ento jurídico mais favorável, ou seja, na comparação com
os imputáveis, os direitos devem ser não apenas efetivados, mas ampliados
significativamente. Não é difícil perceber que a instrumentalização desta
tese é plenamente cabível e adequada em nosso ordenamento jurídico,
RO

sobretudo após a promulgação da Lei de Reform a Psiquiátrica.


BRASIU
PE'

i9 “(...) É exatamente em razão da situação de vulnerabilida/te que devem ser assegurados aos jovens
NO INREim

em anfiito com a lei todos os direitos individuais que conformam o sistema jurídico-penal de garantias
dos adultos que praticaram delitos —garantias relativas aos nquisitos legais de imputação do ato ilí­
cito (ato infracional); garantias nlativas à efetivação do devido processo legal ferocesso infracional);
MED l:4S D E S E G U R A N Ç

garantias relativas á aplicação e à execução das sanfoes (medidas socioeducativas); e garantias relati­
vas aos critérios de aplirnção de sanções disciplinatzs durante a executo das medidas socioeducativas.
A propósito, o entendimento de que a situação de vulnerabilidade impede a inserção dos adoles­
centes em mnjUto com a lei no sistema penal formal é exatamente o critério de potencialização dos
ditzitos individuais juvenis e deveria impor critérios normativos mais rígidos de inte^retação das
P? K(S ±

garantias para a aplicação das respostas sancionadoras. Neste aspato, no momento em que as garan­
tias deveriam ser naturalmente revigoradas na tutela dos adolescentes, percebe-se deforma injustifi­
cável que sequer há paridade em relação ao tratamento jurídico mebido pelos imputáveis (...).
A condusão sobre a extensão potencializada dos direitos e das garantias individuais aos adoles­
centes em conjlito com a lei é plenamente adequada à determinação constitucional de tutela absoluta
e prioritária e de salvaguarda das aianças, adolescentes e jovens antra qualquerforma de n^ligéncia,
discriminado, exploração, violência, crueldadee opressão. Entenda-se proteção absoluta e prioritária
contra qualquerforma de violência ou aueldade praticada por particulares poderes privados) ou por
órgãos ou instituições do Estado (podetzs públicos) (...).
O critério da proteção absoluta e prioritária logicamente exclui qualquer possibilidade de a legis­
lação tutelar específica restringir aos adolesantes os direitos e garantias que orientam as formas de
responsabilização penal dos adultos” (CARVALHO e W EIGERT, Alternativas ás Penas e ás
Medidas Socioeducativas, p. 232).
13.5 . Reforma Psiquiátrica como Mudança Paradigmática no
Tratamento Jurídico do Portador de Sofrimento Psíquico:
Crítica aos Conceitos de Periculosidade e de
Inimputabilidade

13.5.1. A prim eira questão que deve ser pontuada para avaliar os
impactos da Lei da Reform a Psiquiátrica no sistema de aplicação das m e­
didas de segurança é a da (in)adequação normativa e conceituai do seu
fundamento: a periculosidade.

C DIREIüJ : EJUl Or>i LD N U


A crítica ã categoria periculosidade e à sua manutenção normativa
foi realizada de forma bastante contundente pela psicologia social, pela
crim inologia crítica e pela crítica do direito penal50. Todavia, somente com
a Lei n. 10.216/2001 é possível confrontar os dispositivos do Código Penal.
C om o advento da Lei da Reform a Psiquiátrica, é possível avaliar a
(in)adequação dos preceitos do Código Penal que sustentam a absoluta

V
ausência de responsabilidade penal do portador de sofrimento psíquico que
praticou ato ilícito. Aliás, de forma mais aguda, inclusive, Virgílio de

U ID ID tE Ü t ÕLG.
M attos sustenta que o próprio art. 26 do Código Penal não teria sido re­
cepcionado pela Constituição de 1988, exatamente por legitim ar a perpe­
tuidade das medidas de segurança31.

ãt
' J. - K3I LM:. :t í. G t F H U Ç J B
50 Fragoso antecipou o problema conceituai da periculosidade, afirmando que “(...) é, em
substâwia, um juizo de probabilidade que se formula diante de certos indícios. Trata-se de ju izo
empíricoformulado, e, portanto, sujeito agrava erros. Pressupõe-se sempre, como é obvio, uma ordem
soáal determinada a que o sujeito deve ajustar-se e que não é questionada” (FRAGOSO, Lições
de Direito Penal, p.499).
O autor chama a atenção para os problemas decorrentes da instrumentalização do
conceito deficitário na perícia: “(...) as dijtculdades a que conduz o critério legal, que concebe a
psiwloigia da ação deforma que não wrresponde à realidade. A ação se divide numa parte racional ou
intelectual e noutra parte em que se opera a decisão da wntade. O perito pode constatar o estado de
alteração do psiquismo, de fando biológico, e assim pode afirmar se o acusado é, ou não, portador de
qualquer das doenças mentais, mas são irre^ondiveis as indagações sobre a capacidade de entendi­
mento do injusto e sobre a capacidade de determinação conforme tal entendimento (Kurt Schneiderj ”
(FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 246).
No campo da psicologia social e da criminologia, conferir, sobretudo, R A U TER ,
Criminologia e Subjetividade no Brasil, pp. 50-75; e BATISTA, Introdução Crítica à Crimino­
logia Brasileira, pp. 51-63.
51 M ATTOS, Crime e Psiquiatria, p. 152.
Mas para além do debate acerca da (não) recepção do art. 26 do
Código Penal pela Constituição —que demandaria uma argumentação mais
ampla do que da possibilidade de internação ilimitada, pois, em realidade,
a perpetuidade da medida parece tensionar a constitucionalidade do § l 2
do art. 97 do Código Penal —, é pertinente a conclusão do autor no sentido
de a Lei n. 10.216/2001 ter alterado a noção de tratamento, substituindo-a
pela ideia de prevenção, situação que conduziria ã exclusão da categoria
periculosidade. Neste sentido, sustenta Virgílio de M attos que estaria “ (...)
demonstrado que a solução não pode ser apenar — unanimidade a partir defin a l do
século X I X —, nem tratar — vez que o ‘tratamento’ tem sempre implitódo maior
exclusão —, mas prevenir que o portador de sofrimento mental passe ao ato e trans­
forme, transtornando, sua própria vida e daqueles que lhe são próximos. Portanto,
o tratamento de que fala a Lei 10.216/01 só pode ser entendido como as medidas
de cuidado e acompanhamento, no prncesso de inserção social do portador de sofri­
mento mental, ou sqa, o que temos denominado prevenção”52.
A modificação da finalidade (do tratam ento ao cuidado-prevenção)
FTNAS • MED WS DE SEGURANÇl NO 3REIID PENAL BRASILEIRO

da resposta jurídica (medida de segurança) aos portadores de sofrimento


psíquico implicaria, necessariamente, um a readequação do seu fundam en­
to (periculosidade). Assim, ademais da dubiedade e da imprecisão cientí­
fica do conceito de periculosidade^3, é possível dizer que legalmente hou­
ve a sua substituição, pois a Lei da Reforma Psiquiátrica pressupõe o portador de
sofrimento psíquico como sujeito de direitos com capacidade e autonomia (responsa­
bilidade) de intervir no rumo do processo terapêutico. A mudança de enfoque é
radical, sobretudo porque, na lógica periculosista, o louco representa
apenas um objeto de intervenção, de cura ou de contenção, inexistindo
qualquer forma de reconhecim ento da capacidade de fria da pessoa inter-

S2 MATTOS, Crime e Psiquiatria, p. 153.


53 “A ideia de ‘periculosidade’ não se traduz por qualquer dado objetivo, ninguém podendo, concK-
524 tamente, demonstrar que A ou B, psiquicamente capaz ou incapaz, vá ou não realizar uma mnduta
ilícita no futuro. Já por isso, tal ideia se mostra inwmpatível com a precisão que o prindpio da lega­
lidade, constitucionalmente expnsso, exige de qualquer conaito normativo, e^ecialmenle em matéria
penal. A 'periculosidade' do imputâvel é uma presunto, que não passa de uma ficção, baseada no
pKconceito que identifica o ‘louco’ — ou quem quer que apareça como ‘difeKnte’ — como perigoso”
(KARAM , Punição do Enfermo Mental e Violafio da Dignidade, p. 9).
“(...) o conceito de periculosidade não possui nenhumfundamento científiw, sendo fruto muito
mais de um preconceito oracular sobre ofitturo comportamento problemático (‘desviante’, ‘criminoso’)
do cidadão problemátiw (seja criança, adolescente, adulto ou idoso) do que propriamente de uma si­
tuação concKta” (MATTOS, Crime e Psiquiatria, p. 176).
nada no manicômio judicial. Neste sentido, Guareschi, Reis, Oliven e
Hüning demonstram como “ (...) a desinstitucionalizafio [operada pela R e­
forma Psiquiátrica] toma o usuário como um cidadão com ação e poder de parti­
cipação. Ele pode verbalizar seus sentimentos e tentar entendê-los a partir da sua
própria abstração, possibilitando, assim, a desconstrução da instituição doença
mental ”54.

13.5.2. Fundamental destacar, ainda, que a Lei da Reform a Psiquiá­


trica abdica explícita e propositadamente do term o doença mental, situação
que implica a necessidade de readequar o con ceito de inim putabilida­

VC DIREI UJ :EJUl Or>i LDNU


de. Em prim eiro lugar em razão de o enfoque do tratam ento desinstitu-
cionalizador ser o sujeito em sua rede de relações, e não uma doença atomizada
que se apresenta como um fenômeno natural alheio e que preexiste ao
próprio sujeito, conforme com preendem as teorias criminológicas e psi­
quiátricas ortodoxas (positivismo determ inista e neurocriminologias). Em
segundo, por força da compreensão de ser o conceito de doença mental
uma construção falha e equivocada que acaba produzindo uma série de

' J. - K3I LM:. :t &GtFWUÇJ£ St U LDI3(£Üt ÕLG.


efeitos estigmatizadores e que impede formas alternativas de tratam ento
que envolvam o usuário do sistema de saúde mental.
Neste ponto a crítica de Virgílio de M attos ã impropriedade con­
ceituai do art. 26 do Código Penal, notadamente em razão de reproduzir
a ideia de ausência de responsabilidade em decorrência da doença mental ou
do desenvolvimento mental incompleto e retarfado, é bastante adequada e ad­
quire consistência com a virada norm ativa provocada pela Lei n.
10.216/2001. Significa, pois, que, com a reforma psiquiátrica, o estatuto
jurídico do portador de sofrimento psíquico é alterado.
O novo cenário normativo impede, portanto, que se afirm e que o
portador de sofrimento psíquico é absolutamente inesponsável pelos seus atos
(absolutamente incapaz, na linguagem do ordenam ento civil), lícitos ou
ilícitos. A reforma psiquiátrica, ao propugnar o reconhecimento de formas 525
ou graus distintos de responsabilidade, estabelece um novo paradigma para
o tratam ento jurídico dos portadores de transtorno mental, situação que
demanda, necessariamente, a construção de formas diversas de interpre­
tação dos institutos do direito penal. A mudança central é tratar a pessoa
com diagnóstico de transtorno mental como verdadeiro sujeito de direitos,

i4 GUARESCHI et al., Usuários do Hospitaí-Dia, p. 125.


e não como um objeto de intervenção submetido ao laboratório psiquiá-
trico-forense.
Nota-se, inclusive, ao longo do percurso trilhado pela antipsiquiatria
e pelo m ovim ento antimanicomial, a importância terapêutica de que o
sujeito com sofrimento psíquico seja visto como responsável: responsável
pelos seus atos passados, responsável pelo seu processo terapêutico e res­
ponsável pelos seus projetos futuros. Negar ao portador de sofrimento
psíquico a capacidade de responsabilizar-se é um dos principais atos de
assujeitamento e de coisificação. Entender o portador de sofrimento psí­
quico como sujeito (de direitos) implica assegurar-lhe o direito ã respon­
sabilização, situação que deverá produzir efeitos jurídicos compatíveis com
o grau ou o nível que esta responsabilidade suigeneris pode gerar.
Precisa, vez mais, a conclusão de Virgílio de Mattos: “deve ser asse­
gurado o direito à autonomia e à responsabilidade do imputado, sendo inaceitável a
afirmação de que um transtorno mental, mesmo grave, faça com que o imputado m o
possa responder pelos próprios atos, enquanto se avalia se há alguma correlação entre
FTNAS • MED W S DE SEG U RA N Çl NO 3REIID PENAL B R A SILEIR O

o transtorno mental e ofato dejinido como crime alegadameníe cometido, de modo a


se determinar o modo mais adequado de imposição do limite penal”35.

13.6 . Sanções Alternativas Aplicáveis ao Portador de Sofrimento


Psíquico: Lições da Reforma Psiquiátrica

13.6.1. Se a reforma dos sistemas de saúde mental pressupõe que sej


reconhecida ao usuário do sistema de saúde m ental em conflito com a lei
uma responsabilização diferenciada —em termos dogmáticos apenas
um dos elementos da culpabilidade (imputabilidade) seria atingido —, sen­
do excluído do sistema de compreensão do sofrimento psíquico o binômio
doença mental-periculosidade, é inegável concluir que o fundam ento e a
própria possibilidade de aplicação de medidas de segurança, na forma dis—
526 posta no Código Penal, estão historicamente superados.
A indagação que se coloca, portanto, é sobre a m edida judicial,
adequada ã Lei n. 10.216/2001, que seria cabível nos casos em que o réu
for diagnosticado como portador de transtorno mental. Segundo os crité­
rios da Lei da Reform a Psiquiátrica, sendo definida um a forma distinta de
responsabilidade, parece não haver dúvida sobre a necessidade de se repen-

ss MATTOS, Crime e Psiquiatria, p. 167.


sar a própria aplicação de medida de segurança. Assim, em termos proces­
suais, seria possível afirm ar —em oposição à estrutura legal que estabelece
a absolvição imprópria (art. 386 do Código de Processo Penal) —a viabi­
lidade de ser reconhecida a responsabilidade penal por m eio de um juízo
condenatório, com a conseqüente aplicação de uma pena atenuada, con­
form e sugerem Virgílio de M attos, Paulo Q ueiroz e Am ilton Bueno de
Carvalho. Na linha anteriorm ente defendida, o julgador poderia proceder
à aplicação da sanção (individualização) ao portador de sofrimento psíqui­
co, levando em consideração sua especial condição, definindo uma respon­
sabilidade sui generis.

C DIREI üJ : EJUl Or>i LDNU


Segundo Virgílio de Mattos, todos os cidadãos, portadores ou não
de sofrimento psíquico, deveriam ser considerados imputáveis para fins de
julgam ento penal, sendo asseguradas todas as garantias inerentes ao status
jurídico de réu. N o caso de condenação, seria adequada a imposição da
pena dentro dos intervalos mínimos e máximos legalmente estabelecidos,
havendo possibilidade de “o transtorno mental do imputado servir como atenuan-

V
fó genéritó, se houver relação entre a patologia e o crime, devendo a pena imposta ser
cumprida, se o caso assim o exigir e apenas em períodos de crise, em hospital peni­

St U LDI3(£Üt ÕLG.
tenciário geral"'’6.
Paulo Queiroz igualmente propõe que o julgador proceda à indivi­
dualização, definindo em formas temporais o desvalor da conduta e o
desvalor da ação, para, posteriorm ente, substituir a pena por medida de
segurança pelo mesmo prazo37.

' J. - K3I LM:. :t £.t^FHUÇJB


Assim, é possível pensar em um procedimento sui generis de respon­
sabilização que tenha, como prim eiro passo, a individualização da sanção
como se o réu portador de sofrimento psíquico fosse efetivamente im putá-
vel; posteriormente, seria indicada sua substituição pela medida de seguran­
ça que passaria a ser regulada, em seu máximo, pela quantidade de sanção
atribuída. Outrossim , como visto anteriorm ente, o lim ite m ínim o da
medida deveria ser abandonado em prol da avaliação das condições psíquicas
do usuário do sistema de saúde mental. Constatado que o sujeito se encontra
em condições de convívio social, extingue-se automaticamente a medida.
13.6.2. N o entanto, é possível avançar ainda mais em termos de
garantia dos direitos dos portadores de sofrimento psíquico.

is M ATTOS, Crime e Psiquiatria, p. 168.


” Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 458.
Em prim eiro lugar, no campo do p r o c e s s o p e n a l , é necessário
pontuar que o diagnóstico do transtorno m ental não pode excluir a
incidência de qualquer substituto, como, p. ex., os institutos criados pela
Lei n. 9.099/95 (composição civil, transação penal e suspensão condicional
do processo).
Em segundo, na esfera da t e o r i a d o d e l i t o , conforme leciona Pau­
lo Queiroz, devem ser analisados todos os pressupostos de configuração
do delito, inclusive culpabilidade, excetuando, logicamente, a imputabili­
dade58. Isto porque é im portante frisar que o sofrimento psíquico, seja de
qualquer ordem e intensidade, por si só não exclui (absoluta ou parcial­
m ente) a consciência da ilicitude, obstruindo a realização de com porta­
mentos conforme a expectativa do direito. Ademais, é fundam ental que se
reconheça que, em caso de incidência de quaisquer hipóteses legais ou
supralegais de exclusão (inclusive eximentes), o réu deve ser absolvido.
Em terceiro, no m om ento de a p l i c a ç ã o d a p e n a , o procedim ento
de dosimetria poderia ser idêntico ao designado aos imputáveis, com (a) a
definição da pena cabível (art. 59, I, Código Penal), (b) a determinação da
quantidade de sanção (art. 59, II c/c art. 68, Código Penal), (c) a eleição
do regime inicial e (d) a verificação da possibilidade de substituição da
pena privativa de liberdade por restritiva de direito (art. 59, IV c/c art. 44,
Código Penal). Seria possível, inclusive, no procedimento de dosimetria,
o julgador analisar a culpabilidade do réu, isto porque, conforme destacado,
não são totalm ente estranhas ao portador de sofrim ento psíquico a
consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Trata-se,
porém, de um a culpabilidade sui generis, informada pelos preceitos da re­
forma psiquiátrica, que garante ao réu inimputável determ inado âmbito
de responsabilização. Neste cenário, os únicos cuidados que o julgador
deve ter são os de verificar se há efetiva relação entre os elementos da cul­
pabilidade (potencial consciência e exigibilidade) e o crime praticado e,
em caso positivo, analisar de que form a o sofrimento psíquico influenciou
na compreensão do feto ilícito e na dirigibilidade da conduta.
N ote-se que os elementos da culpabilidade relativos ã consciência
do ilícito e ã exigibilidade de conduta são aqueles gerais, necessariamente
analisados nos casos que envolvem réus imputáveis. N o caso específico do
inimputável, porém, cabe verificar se o sofrimento psíquico afetou, de
alguma forma, a consciência e a exigibilidade. Se positiva a constatação,

i8 Q U EIR O Z, Direito Penal, p. 452.


seria perm itida a aplicação da causa especial de diminuição da pena do art.
26, parágrafo único, do C ódigo Penal.
Desta forma, mais do que ter como pressuposto que o portador de
sofrimento psíquico detém uma responsabilidade sui generis, utilizando as
ferramentas fornecidas pelo Código Penal, seria possível estabelecer, como
diretriz instrumental, o seu tratam ento jurídico sim ilar ao da sem i-im pu­
tabilidade. Isto porque, se a Lei n. 10.216/2001 reconhece o usuário do
sistema de saúde mental como um sujeito com capacidades diferenciadas
de compreensão (cognição) e vontade, em termos penais este quadro se
assemelha muito ãs formas de c u l p a b i l i d a d e r e d u z i d a . N o plano da

C DIHEI üj : EJUl Or>i LDNU


técnica de aplicação da pena, o reconhecim ento da causa de diminuição
perm ite, exatamente por ser variável (redução de 1/3 a 2/3 da pena), ade­
quar o nível de comprometimento que o sofrimento psíquico gerou na
consciência da ilicitude e, consequentemente, na expectativa de um com ­
portam ento conforme as regras jurídicas.
Após quantificar a sanção e converter em medida de segurança, cabe

V
ao julgador analisar a possibilidade de substituição da forma segregacional
(internação) pelo regim e ambulatorial.

St U LDUUEÜt ÕLG.
13.6.3. A reforma psiquiátrica foi explícita em proibir qualquer for­
ma de tratam ento manicomial. Mesmo nos casos excepcionais —a i n t e r ­
n a ç ã o p s i q u i á t r i c a é s u b s i d i á r i a e indicada apenas quando os recursos
extra-hospitalares (serviços comunitários) se m ostrarem insuficientes,

■J. - K3I LM:. :t í.^tFHUÇJB


conforme o § 3- e o caput do art. A- — estabelecem que “é vedada a interna­
ção de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características
asilares (...)” (art. 4S, § 3S, da Lei n. 10.216/2001).
A prioridade estabelecida pela Lei n. 10.216/2001 é a do tratam en­
to no ambiente menos invasivo possível (art. 2a, VIII), preferencialmente
em serviço comunitário de saúde mental (art. 2S, IX) ou em instituições
ou unidades hospitalares gerais que ofereçam assistência na área da saúde
mental (art. 3a). A política instituída na reforma deriva da finalidade de 529
criar permanentes espaços para reinserção soríal do paciente em seu meio (art.
4a, pará^afo único).
A vedação de tratam ento em instituições com características asilares
atinge inclusive as formas de internação compulsória, ou seja, aquelas de­
terminadas pelo Poder Judiciário (art. 6a, parágrafo único, III). N ão por
outra razão a Lei n. 10.216/2001 regula a própria atividade judicial ao
estabelecer que, de acordo com a legislação vigente, o juiz competente
levará em conta as condições de segurança do estabelecimento quanto ã
salvaguarda do paciente, dos demais internados e dos funcionários (art. 9-).
As condições de segurança do paciente não podem ser outras que a
efetividade dos seus direitos, dispostos no art. 2°, parágrafo único, estando
proibida a forma asilar por constituir tratam ento desumano (art. 2-, II),
abusivo (art. 2-, III) e invasivo (art. 2° VIII).
Neste cenário, não se vislumbra qualquer motivo que justifique
tratam ento diferenciado entre os usuários comuns dos serviços de saúde
m ental e aqueles que praticaram delitos. C om o advento da Lei da R e ­
form a Psiquiátrica, independentem ente da via de acesso aos serviços
públicos de saúde mental (internação voluntária, involuntária ou com ­
pulsória), o tratam ento prestado deve ser equánim e e regido pela lógica
da desinstitucionalização.
A alteração no quadro normativo torna inadmissível a manutenção
de regim es segregacionais de execução das m edidas de segurança,
constituindo-se em ilegalidade a preservação dos espaços conhecidos como
manicômios judiciais, institutos psiquiátrico-forenses ou hospitais de custódia e
PENAL B R A S IL E IR O

tratamento. Se a reivindicação do m ovim ento antimanicomial consagrada


na Lei n. 10.216/2001 é a de que os usuários dos serviços de saúde mental
não sejam estigmatizados em manicômios e que em caso de necessidade
de intervenção médica aguda recebam tratam ento nos hospitais gerais, é
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

injustificável a exclusão daquele portador de transtorno que se difere pelo


com etim ento do ilícito. Os avanços da reforma psiquiátrica, portanto,
devem ser universais e incorporados nas práticas do sistema penal.
N o entanto, sendo mantida a intervenção penal aos casos de ilícitos
praticados por usuários do serviço de saúde mental, a preservação do rótu­
MED IUS

lo medida de segurança só tem sentido se otimizar os direitos dos pacientes.


Significa dizer que a única vantagem da manutenção da categoria medida
i

de segurança é o controle jurisdicional de sua execução. Nestes casos, o


FíMAS

sujeito submetido ao tratam ento teria a garantia de que, ultrapassado o li­


m ite máximo da pena ou cessada a necessidade da intervenção curativa
realizada no sistema público de saúde mental, seria decretada extinta a sanção
(medida de segurança). Excetuando este controle judicial, as intervenções
terapêuticas devem ser idênticas aos demais casos de sofrimento psíquico.
A proposta se sustenta empiricamente em duas experiências inova­
doras e altamente virtuosas de construção de alternativas ao tratam ento de
pessoas com transtorno psíquico em conflito com a lei. A transferência da
pessoa submetida ã medida de segurança para a rede pública de saúde —
Centros de Apoio Psicossocial (CAPs) do Sistema Único de Saúde (SUS) —,
situação que implicaria a extinção progressiva dos hospitais de custódia e
tratam ento psiquiátrico, conforme prevê a Lei n. 10.216/2001, vem sendo
realizada em alguns projetos-piloto como o Programa de Atenção Integral
ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), instituído pelo Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, e o Programa de Atenção ao Louco Infrator (PAILI), criado
pelo Tribunal de Goiás. Em ambas as experiências é vetado o recolhim en­
to de pacientes psiquiátricos em instituições de natureza carcerária (prisões,
manicômios, hospitais de custódia ou institutos psiquiátrico-forenses) 39.
As inovações dos programas alternativos de intervenção não punitiva
(PAI-PJ e PAILI), proporcionadas pela Lei n. 10.216/2001, perm item

LDilU
com preender quão fértil é o espaço de atuação criado pela reform a

Or>i
psiquiátrica. Ao mesmo tem po expõem quão deficitário é o discurso da
dogm ática penal, que perm anece literalm ente preso aos conceitos

HÍ*01 HC DIREI üJ : EiW


higienistas da psiquiatria do século passado.

13.6.4. O avanço proporcionado pelo m ovim ento antimanicomial,


pela psicologia social e pela antipsiquiatria na ruptura com as categorias
estigmatizadoras do sistema periculosista dem onstra que é possível resistir

U L D I3 (£ Ü t ÕLG.
ao punitivismo e encontrar alternativas às formas violentas de imposição
de sanções pelo sistema penal.

St
O reconhecimento da qualidade das experiências pode ser verificado no parecer

:t í.GtFHUÇJB
elaborado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério
Público Federal (MPF): "desde sua implementado (PAI-PJ], 755 casos foram acolhidos pelo
Programa e rKeberam tratamento adequado ao sofòmento mental até cessarsuas nlafies com aJustiça.
489 rnsosjáforam desligados do Programa. Dados de agosto de 2009 mostram que, atualmente, 266
' - K3I LM-

pacientes encontram-se em acompanhamento. Desses, 210 encontram-se em libeHade, realizam seu


tratamento nos dispositivos substitutivos ao manicômio e residem junto aos familiares, em pensões,
J.

sozinhos ou em residências terapêuticas da cidade. Os índices nincidência, nos casos atendidos pelo
Programa, são muito baixos, girando em tomo de 2% em crimes de menor gravidade e contra o pa­
trimônio. N ão há Kgistro de reincidência de crimes hediondos” (Procuradoria Federal dos Direi­
tos do Cidadão, Pancer sobw Medidas de Segurança e Hospitais de Custódia e Tratamento Psi­
quiátrico sob a Penpectiva da Lei 10.216/01, p. 67).
Os números absolutos da experiência de Goiás (PAILI), apesar de serem inferiores aos
de Minas Gerais —decorrentes inclusive da menor taxa de encarceramento —, são igual­
m ente positivos. E embora a reincidência seja um pouco superior, girando em torno de
7%, os números são significativamente inferiores a taxas com as quais se convive habitual­
mente nos ambientes carcerários (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Parecer
sobre Medidas de Segurança e Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico sob a Perspectiva da
Lei 10.216/01, p. 70).
Se a nova forma de abordagem dos transtornos mentais nega a
validade prático-teórica da noção de periculosidade (fundam ento da
medida de segurança); redefine o portador de sofrimento psíquico como
sujeito de direitos dotado de uma especial form a de compreensão dos seus
atos (culpabilidade suigenerú); e impede qualquer tipo de sanção de natureza
segregadora (carcerária), não seria inviável pensar que a reforma psiquiátrica
criou um novo espaço de análise e valoração da responsabilidade jurídica
do inimputável, alheio ã lógica punitiva e carcerocêntrica do sistema penal.
O novo cenário não impediria, inclusive, pensar, p. ex., na exclusiva
responsabilização do portador de sofrimento psíquico no âmbito civil ou
na esfera administrativa. Neste espaço alheio ao jurídico-penal, a finalidade
da intervenção judicial seria direcionada ao estabelecimento dos critérios
de compensação da vítima pelos danos materiais e morais causados pela
conduta ilícita, sem qualquer necessidade de ingerência das agências de
punitividade.
Ademais, além da fixação da sanção compensatória —a reparação do
PENAL B R A S IL E IR O

dano é a finalidade única que justifica normativamente o interesse da vítima


no processo penal —, não estaria excluída a possibilidade do tratamento,
inclusive coercitivo (involuntário ou com pulsório), na rede de saúde
pública, pois segundo o estatuto antimanicomial trata-se (o tratamento)
DE S E G U R « ( J I ND 3REIID

de um direito assegurado a todas as pessoas que necessitam, independen­


tem ente do com etim ento ou não de crimes.
A forma como a Lei n. 10.216/2001 instrumentahza a responsabilidade
e a resposta jurídica ao ato lesivo praticado pelo portador de sofrimento
psíquico tornaria, portanto, totalm ente desnecessária qualquer espécie de
MED IUS

intervenção penal.
O receio de se pensar em formas distintas de intervenção penal ou
i

a dificuldade de se criarem modelos alternativos para além dos muros do


FíMAS

sistema punitivo, mesmo quando os instrum entos legais possibilitam


^22 práticas disruptivas, revelam, em realidade, o nível do enraizamento do
sistema punitivo nas pessoas. Mas, conforme foi possível perceber, encontrar
alternativas não é tão difícil quanto se possa imaginar. Basta entender o
outro sempre e radicalmente como um sujeito de dkeitos, independentemente
dos atos que tenha praticado ou da forma como a sua racionalidade articula
o pensamento.
4
i
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Exemplar genérico,
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