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Quarto de despejo: diário de uma favelada

Personagens
Carolina Maria de Jesus – catadora de papel, favelada, escritora
Audálio Dantas – repórter, descobre Carolina Maria de Jesus na favela
João José, José Carlos e Vera Eunice – filhos de Carolina Maria de Jesus (crianças)
Dona Alice – vizinha de Carolina Maria de Jesus
Seu João – morador da favela
Dona Sílvia – moradora da favela
Figurantes – homens e mulheres moradores da favela, vivem brigando, embriagados e
em condições de extrema miséria
Chefe de Audálio - jornalista

Cenário: favela do Canindé, São Paulo

Narrador – A peça que aqui será encenada conta a história de Carolina Maria de Jesus
(1914-1977), conhecida no Brasil como a mulher negra, pobre e favelada que conseguiu
realizar o sonho de tornar-se escritora, tendo seu livro “Quarto de despejo” traduzido em
13 idiomas e vendido mais de 100 mil exemplares. Migrante de Sacramento, Minas
Gerais, mãe solteira, catadora de papel e moradora da primeira favela de São Paulo, a
Canindé, Carolina escrevia a sua história e a de outros moradores da favela em cadernos
que recolhia no lixo. Eram relatos sobre a miséria, a fome, o preconceito de quem tem a
voz silenciada diariamente e a dignidade subtraída a cada vez que precisa retirar do lixo
o seu sustento.
Semianalfabeta, a autora dizia que escrevia quando não tinha o que comer e que
denominava a favela de quarto de despejo porque era ali que os pobres eram jogados,
como trastes velhos. Ela sonhava viver em uma casa “residível” e acreditava que era por
meio dos livros que se adquiriam boas maneiras e se formava o caráter. Descoberta pelo
jovem repórter Audálio Dantas, Carolina Maria de Jesus teve seu primeiro livro
publicado em 1960 e rapidamente alcançou o sucesso, saindo da favela e ganhando o
mundo. Esse sucesso, porém, não apagou o preconceito social e racial que marcaram
toda a sua vida e a autora morreu pobre e esquecida em um sítio na periferia de São
Paulo. Dona de uma história marcada por muita luta, durante a vida Carolina Maria de
Jesus lutou pela sua sobrevivência e a de seus filhos, enfrentou a fome, a miséria, o
preconceito racial e social e batalhou pela realização de seu sonho. Hoje, uma outra luta
ainda marca sua história: romper o preconceito em torno de sua cor, sua origem, seu
nível de instrução, e ter seu nome de fato reconhecido dentro de nosso cânone literário,
assim, com essa encenação de trechos de seu diário e com a escolha de seu nome para a
nossa biblioteca, deixamos nossa homenagem a essa mulher cuja vida foi marcada pela
luta em busca da realização de seu sonho.

PRIMEIRO ATO

Cena 1

Carolina em seu barraco na favela prepara o café das crianças e sai para catar papel

Carolina – Hoje é aniversário da minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar


sapatos para ela, mas se comprar, não teremos dinheiro para a comida. O jeito foi lhe
dar sapatos velhos que achei no lixo.
Carolina sai da favela para catar papéis e volta com um saco cheio de reciclagem

Cena 2

Dona Alice e outras mulheres vão até o barraco de Carolina e começam a discutir com
ela

Alice – Seus filhos são uns mal-educados!


Carolina – Não! Eles apenas me defendem. Vou escrever um livro sobre a favela e
contar tudo que se passa aqui. E tudo que vocês me fazem.
Alice – Sua vagabunda! A única coisa que você sabe fazer é catar papel.

As mulheres saem e Carolina fica escrevendo em seu diário.

Narrador – Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui.
Espero que os políticos estingue as favelas.

Cena 3

Carolina se levanta da cama e começa a escrever em seu diário

Narrador – Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir,
procuro lhe dar uma refeição condigna. O meu sonho era andar bem limpinha, usar
roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu não estou
descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que
cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela.

Carolina vai até a janela do barraco

Seu João – O que tanto escreve, D. Carolina.


Carolina – É um diário.
Seu João – Nunca vi preto gostar tanto de livros como você.
Carolina – Todos tem um ideal. O meu é gostar de ler.

Cena 4
Carolina sai com uma lata para buscar água. No caminho, vai falando:

Carolina – O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome
também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.

Cena 5

Carolina caminha com um saco de papéis nas costas

Dona Sílvia – Eh, Carolina! Sempre carregando esses sacos para todo lado.
Carolina – É a vida, dona Sílvia. Só assim consigo colocar comida na boca dos meus
filhos.
Dona Sílvia – Verdade! Se virar para conseguir comida é a vida de todo favelado de
São Paulo.
Carolina – Eu classifico São Paulo assim: o palácio, é a sala de visita. A prefeitura é a
sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é onde jogam os lixos.
Dona Sílvia – É verdade, a gente é o lixo e para sobreviver precisa viver desse lixo.

Cena 6

Carolina sentada escrevendo em seu diário

Narrador – A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país tudo está
enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E
tudo que está fraco, morre um dia. Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem
tem dó e amizade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não
sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer
a minoria? Eu estou do lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos
livrar o país dos políticos açambarcadores.

SEGUNDO ATO

Cena 1

Escritório de um jornal, chefe conversa com Audálio sobre uma matéria na favela

Chefe – Audálio, nós vamos acatar sua pauta e publicar uma matéria sobre o dia a dia
de uma favela.
Audálio – Muito obrigado! Farei a reportagem na favela do Canindé.

Cena 2

Audálio chega à favela e vários moradores o cercam. Ele vai andando e ouve Carolina

Carolina (gritando) – Vocês vão ver, vou falar de todos vocês no livro!
Audálio – Boa tarde, senhora! De que livro está falando?
Carolina – Do meu livro! Vou te mostrar.

Cena 3
Audálio segue Carolina até o barraco dela. Carolina lhe mostra uma pilha de cadernos
com seus diários.

Carolina – Aqui está o livro!


Audálio (folheando os cadernos) – A senhora tem aqui uma reportagem que nenhum
repórter poderia escrever.
Carolina – Eu já tentei publicar muitas vezes!
Audálio – Pois agora vai realizar o seu sonho!

Cena 4

Audálio sai levando os cadernos de Carolina


Narrador – Em 1960, foi publicada a primeira edição de Quarto de despejo,
alcançando um enorme sucesso no Brasil e no exterior, o que permitiu que Carolina
Maria de Jesus saísse da favela e realizasse seu sonho de se tornar escritora.

Cena 5

Carolina sentada em uma mesa escrevendo e Audálio com seu livro na mão lendo um
trecho de Quarto de despejo.

Audálio (lendo) - Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia da
Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.
...Nas prisões os negros eram os bodes expiatorios. Mas os brancos agora são mais
cultos. E não nos trata com desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos
sejam feliz.
Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim,
mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no
senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e
linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. ...Eu tenho tanto dó dos meus filhos.
Quando eles vê as coisas de comer eles brada:
– Viva a mamãe! [...]
..Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera
começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estava com dois
cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um
pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando
comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!

Terminada a leitura, os atores saem do palco e a peça termina com a música “Pode
guardar as panelas”, de Paulinho da viola

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