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Ronaldo Zacharias*
Introdução
Se há uma realidade diante da qual não podemos mais nos fazer de
indiferentes, esta realidade chama-se redes sociais virtuais. Todos, quase
sem exceção, navegamos por elas. Se até ontem as redes sociais eram um
mundo novo a ser descoberto, hoje elas passaram a ser o espaço físico
expositivo por excelência. Se até ontem as redes sociais não faziam parte
da nossa preocupação formativa, hoje elas se tornaram um dos “nós” do
processo formativo. Ao mesmo tempo que as oportunidades oferecidas
por tais redes clamam por ampliação, os possíveis danos provocados por
elas precisam ser levados em conta. Enfim, encontramo-nos todos sem
saber o que fazer.
A reflexão que segue é resultado de uma preocupação crescente com
as dificuldades encontradas nas comunidades formativas e religiosas nos
últimos tempos em relação ao uso e à imersão nas redes sociais virtuais.
A necessidade de postar selfies, a angústia sentida quando não há cone-
xão, a ansiedade provocada pelo número de likes, as inúmeras horas do
dia e da noite passadas on-line, a substituição contínua da relação off-li-
ne pela conexão virtual etc. indicam que algo não vai bem. Se tivermos
presente a dependência sexual on-line e os abusos sexuais facilitados pela
internet, poderemos perceber que a principal questão em jogo está na
capacidade de responder com lucidez e responsabilidade aos desafios
deste novo contexto formativo.
A reflexão que segue pretende evidenciar por que as redes sociais vir-
tuais se tornaram um dos “nós” do processo formativo e o que devemos
ter presente para poder “desatá-lo”. Num primeiro momento, aborda-
remos vários aspectos problemáticos que envolvem as redes sociais vir-
tuais. Em seguida, refletiremos sobre o uso patológico de tais redes. Por
fim, apresentaremos alguns desafios a serem enfrentados durante todo o
processo de formação inicial e permanente. Pode ser que algumas pes-
soas se sintam incomodadas pelo fato de serem evidenciados os aspectos
problemáticos da questão. Trata-se de uma opção metodológica, consi-
derando que o interesse primário desta reflexão é preventivo.
nemente” deste meio. Em outras palavras, o preço a pagar por uma pos-
sível exclusão ou repulsa a este meio resultaria num enorme empobre-
cimento pessoal e institucional em termos de praticidade e velocidade
da comunicação e de eficiência e eficácia da organização. Se pensarmos,
por exemplo, que estamos apenas no início da revolução digital e que
“fake news” tem sido uma das expressões mais usadas no dia a dia, tor-
na-se ainda mais problemático fazer de conta que essa é uma realidade
que não nos pertence ou não se refere às nossas comunidades. É neste
contexto que vivemos e realizamos nossa missão.
Roberto Nentwig – doutor em Teologia – tem razão ao afirmar que
a conectividade é uma das características da sociedade hodierna que
tem afetado o processo formativo. Os seminários, segundo ele, “estão
agora repletos de nativos digitais”. Estes são jovens “comunicativos que
buscam estar na rede, conectados”; não dispõem apenas de novas tec-
nologias, mas fazem parte de “um bios virtual, uma ecologia comunica-
cional, produtora de facilidade de inter-relações, rapidez, virtualidade,
supervalorização estética, dinamicidade, entre outros”. Ao experimentar
tal “ambiência midiática” como espaço concreto de “inter-relacionabili-
dade”, os jovens formandos não estão “isentos da dependência digital”.1
O que vale para os jovens formandos nativos digitais vale também para
aqueles que, no processo de formação permanente, se encantam com a
possibilidade de ter acesso a tudo aquilo que, no mundo em que viviam,
não imaginavam existir ou poder experienciar.
Sem preocupar-me com o grau ou a ordem de importância, vou
elencar aqui algumas ambiguidades desta nova era na qual vivemos. A
relação que segue não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas apenas
ilustrar o quanto ele deve ser assumido com seriedade.2
Credibilidade e reputação em xeque: o mesmo meio que aceita tudo
o que é postado torna-se o mais rápido juiz da credibilidade e da repu-
tação de quem faz a postagem. Não cabe a ele distinguir a identidade
pessoal da identidade digital de uma pessoa, assim como não cabe a ele
responder pela imagem construída virtualmente e, portanto, pela repu-
tação de alguém. O espaço mais democrático, inigualável no quesito
liberdade de expressão, resulta, muitas vezes, no espaço mais punitivo
3. Expressão usada pelo Papa Francisco em: FRANCISCO, Amoris Laetitia, n. 278.
524 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais
4. Sobre o termo “uso patológico”, ver: FORTIM; ARAUJO, Aspectos psicológicos do uso pato-
lógico de internet, p. 294-296.
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9. Não abordarei, aqui, os diversos modelos teóricos e as diversas terapias da dependência sexual.
Recomendo a leitura da síntese feita por: ROSSO; GAROMBO; CONTARINO, Dipendenza Sessuale
(Sexual Addiction).
10. CARNES, Isto não é amor, p. 79-80. Carnes refere-se aos estudos de MILKMAN; SUNDER-
WIRTH, Craving for Ecstasy.How Our Passions Become Addictions and What We Can Do About Them.
11. MILKMAN; SUNDERWIRTH, Craving for Ecstasy. The Consciousness and Chemistry of
Escape.
12. CARNES, Isto não é amor, p. 37. O testemunho de Carnes é preocupante: “As pessoas que
sofrem de duas dependências, como a química e a sexual, muitas vezes declaram um fato surpreendente:
é mais fácil parar de usar drogas do que refrear a compulsão sexual. (...) Ao contrário do alcoólatra,
que pode evitar o álcool, o dependente sexual carrega o suprimento em si mesmo. A recuperação mais
lenta é parte do preço a ser pago por depender da química do próprio cérebro para alcançar a emoção
desejada” (p. 41).
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16. Alguns exemplos apresentados por Espinosa Hernández: Transtorno Depressivo Maior, Trans-
torno de Ansiedade Generalizada, Transtorno de Personalidade Antissocial, Transtorno Dissociativo de
Identidade, Transtorno Orgânico da Personalidade, Transtorno de Personalidade Dependente, Trans-
torno Psicótico Breve, Transtorno de Personalidade Histriônica, Transtorno de Personalidade Narcisista
etc. (Idem, p. 70).
17. CUCCI, Dipendenza sessuale online, p. 10.
18. GOMES; OLIVEIRA, Claustros Castrados.
530 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais
19. PEREIRA, Por uma compreensão da pessoa e da vivência do celibato, p. 134 e 137.
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20. CUCCI, Dipendenza sessuale online, p. 13-14. Para Carnes, “somente o padrão de descontrole
com outros sinais clássicos da compulsão – obsessão, incapacidade de resistir e o uso do sexo para aliviar
a dor – podem indicar a dependência sexual”. CARNES, Isto não é amor, p. 77.
21. Vale a pena conferir os 10 sinais (critérios) que, segundo Carnes e colegas, expressam um
comportamento sexual on-line problemático. CARNES; DELMONICO; GRIFFIN; MORIARITY,
In the Shadows of the Net, p. 25-29.
22. CUCCI, Dipendenza sessuale online, p. 19.
23. Ibidem.
532 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais
24. CARNES; DELMONICO; GRIFFIN; MORIARITY, In the Shadows of the Net, p. 74-97.
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25. Valeria a pena, aqui, aprofundar os efeitos de tudo isso sobre o corpo, devido aos hormônios
que entram em ação e aos estímulos conflitivos. Mas isso nos afastaria do objetivo proposto. No entan-
to, é um aspecto importante da questão que não pode ser desconsiderado ou menosprezado. As obras
que seguem podem ser de grande ajuda: CARNES. Out of the Shadows; MOORE. Confusing Love with
Obsession; IRVINE, Disorders of Desire.
26. CREA, Vita religiosa e dipendenza sessuale in Internet. Crea refere-se ao artigo de: KRAUT
et al. Internet Paradox.
27. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, O dom da vocação sacerdotal, n. 97. Daqui em
diante = RFIS.
534 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais
enfim, nas redes sociais somos nós que editamos o que produzimos.33
Não raras vezes, temos de lidar com pessoas que têm muitas habilidades
para navegar pela internet e pelas redes sociais, mas carecem de critérios
para o devido uso. Numa comunidade formativa, tais critérios deveriam
ser ponderados e decididos em comum. Como todos são usuários, mas
nem todos têm consciência das próprias vulnerabilidades, a comunida-
de deve exercer o papel de educadora, proporcionando conteúdo – isto
é, abordar abertamente o tema em questão – para o que será trabalhado,
depois, em foro mais reservado.
Katharinna Anna Fuchs – doutora em Psicologia –, na esteira dos
estudos de Mark Laaser e Louis Gregoire,34 aponta a sobrecarga de traba-
lho, a solidão e a imaturidade espiritual como fatores que expõem padres
e religiosos a um maior risco de uso patológico de internet.35 Quando o
foco é posto naquilo que se faz, e não no que se é; quando a autoaceita-
ção é baixa e leva ao afastamento das pessoas; quando a espiritualidade
é mais exteriorizada do que internalizada, o terreno se torna mais propí-
cio para o refúgio na internet e nas redes sociais. Portanto, mais do que
assumir uma postura voltada para a repressão do uso, a ação formativa
deveria estar voltada para a identificação das possíveis causas que levam
ao uso inadequado e patológico de internet e de redes sociais.
Dom Jorge Carlos Patrón Wong – secretário para os seminários jun-
to à Congregação para o Clero –, mesmo reconhecendo que “no uso de
internet se revelam os antivalores, as contradições e a vulnerabilidade
das pessoas”, defende que “o objetivo da formação é integrar plenamente
a realidade virtual em seus distintos aspectos”.36 Para ele, tal integração
se dá por meio dos valores que caracterizam a vocação que cada um
abraçou, e, sem uma profunda mística e uma devida ascética, isso não é
possível.37 O trabalho de integração pressupõe que a pessoa do padre ou
do religioso tenha o olhar e o coração fixos em Deus e no Seu povo, de
modo que sua espiritualidade seja expressão da intimidade com Deus e
da solidariedade com o próximo – é o que podemos chamar de caridade
Considerações finais
O significado da vida tem profunda relação com o significado do
prazer na própria vida. Ambos são descobertos e experienciados em ple-
nitude quando a pessoa decide sair de si, retirar-se do centro e abrir-se
gratuitamente aos outros. Quando, ao contrário, tais significados são
buscados independentemente dos outros ou servindo-se dos outros
43. Idem, p. 68-80.
44. Idem, p. 78-79.
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Artigo recebido em: 16 jul. 2020
Aprovado em: 21 ago. 2020