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DOI

SEM ELAS, ELES NÃO VIVEM MAIS


Sacerdócio, vida consagrada e dependência
sexual on-line
WITHOUT THEM, THEY DON’T LIVE ANYMORE
Priesthood, consecrated life and sexual dependence online

Ronaldo Zacharias*

Síntese: O artigo evidencia por que as redes sociais se tornaram um


dos “nós” do processo de formação à vida sacerdotal e consagrada
e o que se deve ter presente para poder “desatá-lo”. Especial atenção é
dada ao uso patológico de tais redes, sobretudo à dependência sexual
on-line. Alguns desafios são propostos para que as redes sociais sejam
integradas no processo formativo e as pessoas sejam formadas para
uma verdadeira cidadania digital, único modo de evitar que seu uso
seja patológico.
Palavras-chave: Dependência Sexual; Redes Sociais; Formação.
Abstract: This article highlights why social networks have become one
of the “knots” in the process of formation to priestly and consecrated
life and what must be borne in mind in order to “untie” it. Special at-
tention is paid to the pathological use of such networks, especially with
regard online sexual addictions. Some challenges are proposed so that
social networking may be better integrated into the formation process
so that those in formation may be adequately prepared for true digital
citizenship, the best way to prevent social networking from being used
in pathological ways.
Keywords: Sexual addictions. Social networking; Formation.

* Ronaldo Zacharias tem Pós-Doutorado em Democracia e Direitos Humanos (Universidade de


Coimbra – Ius Gentium Conimbrigae – Coimbra), é Doutor em Teologia Moral (Weston Jesuit School
of Theology – Cambridge/USA), Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Educação em Sexuali-
dade (UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo) e Secretário da Sociedade Brasileira de
Teologia Moral (SBTM). E-mail: <sdbronaldo@uol.com.br>.
520 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais

Introdução
Se há uma realidade diante da qual não podemos mais nos fazer de
indiferentes, esta realidade chama-se redes sociais virtuais. Todos, quase
sem exceção, navegamos por elas. Se até ontem as redes sociais eram um
mundo novo a ser descoberto, hoje elas passaram a ser o espaço físico
expositivo por excelência. Se até ontem as redes sociais não faziam parte
da nossa preocupação formativa, hoje elas se tornaram um dos “nós” do
processo formativo. Ao mesmo tempo que as oportunidades oferecidas
por tais redes clamam por ampliação, os possíveis danos provocados por
elas precisam ser levados em conta. Enfim, encontramo-nos todos sem
saber o que fazer.
A reflexão que segue é resultado de uma preocupação crescente com
as dificuldades encontradas nas comunidades formativas e religiosas nos
últimos tempos em relação ao uso e à imersão nas redes sociais virtuais.
A necessidade de postar selfies, a angústia sentida quando não há cone-
xão, a ansiedade provocada pelo número de likes, as inúmeras horas do
dia e da noite passadas on-line, a substituição contínua da relação off-li-
ne pela conexão virtual etc. indicam que algo não vai bem. Se tivermos
presente a dependência sexual on-line e os abusos sexuais facilitados pela
internet, poderemos perceber que a principal questão em jogo está na
capacidade de responder com lucidez e responsabilidade aos desafios
deste novo contexto formativo.
A reflexão que segue pretende evidenciar por que as redes sociais vir-
tuais se tornaram um dos “nós” do processo formativo e o que devemos
ter presente para poder “desatá-lo”. Num primeiro momento, aborda-
remos vários aspectos problemáticos que envolvem as redes sociais vir-
tuais. Em seguida, refletiremos sobre o uso patológico de tais redes. Por
fim, apresentaremos alguns desafios a serem enfrentados durante todo o
processo de formação inicial e permanente. Pode ser que algumas pes-
soas se sintam incomodadas pelo fato de serem evidenciados os aspectos
problemáticos da questão. Trata-se de uma opção metodológica, consi-
derando que o interesse primário desta reflexão é preventivo.

1. As ambiguidades de uma nova era


Sem sombra de dúvida, a internet facilitou em todos os sentidos a
comunicação entre as pessoas e as instituições. Num mundo cada vez
mais globalizado, seria ilusão acreditar que se possa prescindir “impu-
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nemente” deste meio. Em outras palavras, o preço a pagar por uma pos-
sível exclusão ou repulsa a este meio resultaria num enorme empobre-
cimento pessoal e institucional em termos de praticidade e velocidade
da comunicação e de eficiência e eficácia da organização. Se pensarmos,
por exemplo, que estamos apenas no início da revolução digital e que
“fake news” tem sido uma das expressões mais usadas no dia a dia, tor-
na-se ainda mais problemático fazer de conta que essa é uma realidade
que não nos pertence ou não se refere às nossas comunidades. É neste
contexto que vivemos e realizamos nossa missão.
Roberto Nentwig – doutor em Teologia – tem razão ao afirmar que
a conectividade é uma das características da sociedade hodierna que
tem afetado o processo formativo. Os seminários, segundo ele, “estão
agora repletos de nativos digitais”. Estes são jovens “comunicativos que
buscam estar na rede, conectados”; não dispõem apenas de novas tec-
nologias, mas fazem parte de “um bios virtual, uma ecologia comunica-
cional, produtora de facilidade de inter-relações, rapidez, virtualidade,
supervalorização estética, dinamicidade, entre outros”. Ao experimentar
tal “ambiência midiática” como espaço concreto de “inter-relacionabili-
dade”, os jovens formandos não estão “isentos da dependência digital”.1
O que vale para os jovens formandos nativos digitais vale também para
aqueles que, no processo de formação permanente, se encantam com a
possibilidade de ter acesso a tudo aquilo que, no mundo em que viviam,
não imaginavam existir ou poder experienciar.
Sem preocupar-me com o grau ou a ordem de importância, vou
elencar aqui algumas ambiguidades desta nova era na qual vivemos. A
relação que segue não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas apenas
ilustrar o quanto ele deve ser assumido com seriedade.2
Credibilidade e reputação em xeque: o mesmo meio que aceita tudo
o que é postado torna-se o mais rápido juiz da credibilidade e da repu-
tação de quem faz a postagem. Não cabe a ele distinguir a identidade
pessoal da identidade digital de uma pessoa, assim como não cabe a ele
responder pela imagem construída virtualmente e, portanto, pela repu-
tação de alguém. O espaço mais democrático, inigualável no quesito
liberdade de expressão, resulta, muitas vezes, no espaço mais punitivo

1. NENTWIG, Formação de vocações adultas, p. 162.


2. Inspiro-me, aqui, no estudo do doutor em Teologia e Ciências Patrísticas AGUIÑAGA FER-
NÁNDEZ, La era del internet.
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da própria reputação e credibilidade. É importante, também, conside-


rar que, embora possamos desvincular identidade pessoal de identidade
digital, quando nos conectamos, não somos pessoas “genéricas”, mas
carregamos conosco os diversos papéis profissionais que exercemos e
que possuem, em si mesmos, uma credibilidade reconhecida. O fato
de sermos religiosos, padres, seminaristas, leigos engajados, professores,
educadores nos permite influenciar positiva ou negativamente a per-
cepção do outro e nos torna responsáveis, mesmo sem prévio acordo,
das pessoas que influenciamos. Qualquer imprudência confirma a tese
de que, quando se trata de segurança das tecnologias da informação, o
ponto mais fraco não é de natureza tecnológica, mas humana. O preço a
pagar por comportamentos imprudentes é alto demais quando compro-
mete ou destrói a credibilidade ou reputação pessoal e/ou institucional.
Fragilidade dos laços sociais: as comunidades virtuais se baseiam, so-
bretudo, em preferências pessoais, sejam elas culturais, sociais, estéticas,
políticas, religiosas etc., e, por isso, a identificação com tais comunida-
des é cada vez mais fragmentada, dependendo das preferências que estão
em jogo num determinado momento. Para tais comunidades, não existe
fronteira que não possa ser cruzada: idade, sexo, orientação sexual, ní-
vel social, cidadania, religião, convicção política, espaço temporal etc.
não são empecilhos que impedem a comunicação; pelo contrário, são
oportunidades para ampliar e enriquecer as experiências. No entanto, os
perfis assumidos on-line – que são o modo que a pessoa escolheu para se
fazer presente nessas comunidades – acabam sendo perfis que expressam
algo sobre a pessoa, mas não necessariamente envolvem toda a pessoa.
Os laços criados dependem de interesses que sejam comuns, mas volta-
dos para satisfazer necessidades pessoais. Eles duram enquanto duram
tais interesses ou enquanto satisfazem tais necessidades. Não há nada de
vinculante nessas comunidades. Assim como hoje posso fazer parte
de várias delas, amanhã posso estar fora de todas elas.
Acesso irrestrito à informação: as tecnologias digitais disponíveis nos
permitem acessar todo tipo de informação sobre qualquer assunto. Não
há mais assuntos-tabu ou informações proibidas. Tudo está disponível
na palma da mão e depende unicamente de alguns cliques. O mesmo
pode ser dito a respeito dos riscos que derivam do acesso irrestrito e fácil
à informação. Sejam eles de conteúdo, de contato ou de conduta, não
podem ser minimizados. E isso por uma razão bem simples: a passagem
do risco ao dano depende das vulnerabilidades do sujeito que acessa a
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informação. A informação disponível nas mãos de quem não sabe o que


fazer com ela ou como considerá-la de forma crítica e integrá-la com lu-
cidez num horizonte de sentido maior do que o comunicado pela infor-
mação é muito perigosa. Ela pode mudar o lugar existencial da pessoa.
Empobrecimento intelectual: a praticidade e a rapidez associadas a
tudo o que está disponível na internet não são capazes, em si mesmas,
de diminuir o nível de superficialidade e mediocridade que muitas vezes
brota de uma relação mercadológica e, portanto, consumista com os
conteúdos disponíveis. A quantidade de horas diárias empregadas pelos
consumidores digitais nas redes sociais virtuais é preocupante. Apesar
do enorme potencial que as tecnologias digitais têm para melhorar a
qualidade das competências e das habilidades adquiridas durante todo o
processo de formação inicial, o que se observa é exatamente o contrário:
o consumo diário apenas do que distrai ou do que não implica mais do
que alguns segundos de leitura tem gerado entre nós, religiosos e padres,
aversão às leituras mais densas, reflexões mais profundas, estudos mais
sistemáticos, esforços de concentração. Em outras palavras, a navegação
pela superficialidade faz com que nos contentemos com um estilo me-
díocre de ser e de fazer as coisas, próprio de quem vive de juros do que
estudou ou aprendeu no passado. E isso compromete enormemente a
resposta aos novos desafios pastorais que se apresentam.
Autismo tecnológico: por mais que as novas tecnologias possam des-
cortinar o mundo e os seus mistérios, favorecer todo tipo de contato e
relação, elas podem também tornar as pessoas apáticas e desligadas da
realidade. Quando isso acontece, há uma espécie de autismo tecnológi-
co,3 que expõe as pessoas aos mais diversos tipos de manipulação. Mes-
mo estando fisicamente dentro de casa, isso não significa que a pessoa
esteja existencialmente “em casa”. Por “em casa” refiro-me, aqui, às con-
vicções, valores, projeto de vida aprendidos em família e/ou assumidos
no processo formativo. Tanto o processo educativo quanto o processo
formativo devem levar a pessoa a sair de si, abrir-se ao mundo, empe-
nhar-se na transformação da realidade. As novas tecnologias e as redes
sociais, devido à força de atração que lhes é própria, podem confinar
a pessoa num mundo todo seu, completamente alheio a tudo o que
está acontecendo no mundo real. É como se tudo o que ameaça a vida
humana e a natureza fosse problema dos outros; como se toda forma

3. Expressão usada pelo Papa Francisco em: FRANCISCO, Amoris Laetitia, n. 278.
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de desrespeito à dignidade e aos direitos humanos fosse problema dos


outros; como se toda espécie de banalização e cumplicidade com o mal
fosse problema dos outros.
Confusão entre público e privado: por mais que as pessoas e as insti-
tuições possam se proteger por meio de protocolos éticos, todos – tanto
os chamados nativos digitais quanto os encantados pelo novo mundo
que estão descobrindo – carecemos de alfabetização digital. Formar a
consciência para distinguir o que convém em redes em que tudo é possí-
vel é tarefa que envolve a todos. Num mundo em que cada movimento
digital pode ser gravado e que qualquer conteúdo pode chegar a todos
os confins do planeta, todos precisamos ser educados para a valorização
e o respeito à privacidade. A hipervisibilidade e a obsessiva socialização,
ao mesmo tempo que servem de palco para o narcisismo, põem em risco
uma comunidade que, pela própria natureza, é chamada a não pôr sobre
si holofotes e a não desfilar seus feitos para serem “curtidos” ou aplau-
didos. A opção pela vida consagrada implica renunciar também àquilo
que, em si, não tem nada de mau, mas que faz a nossa presença perder
o “sabor” que a diferencia.

2. O uso patológico de redes sociais4


O que difere o uso adequado do uso inadequado de internet e de
tecnologias de informação e comunicação associadas a ela? Em linhas
gerais, podemos dizer que a diferença está no impacto provocado pelo
uso de tais instrumentos tanto na saúde física quanto na saúde psicos-
social da pessoa. Caracterizar tal impacto não é tarefa fácil, pois ele de-
pende, sobretudo, do grau de vulnerabilidade da pessoa envolvida, que
abrange a capacidade de controlar os próprios impulsos, a vivência de
situações existenciais “frágeis”, os traços de personalidade e as expressões
patológicas da própria conduta. Portanto, o impacto em questão vai ser
sempre passível de interpretação, inclusive errônea e/ou limitada. Por
isso, não pode ser subestimado.
Para compreender melhor o que está em jogo, é preciso ter pre-
sente o porquê de as relações virtuais serem diferentes de qualquer
outro tipo de interação e comunicação. Segundo Mary Aiken – líder

4. Sobre o termo “uso patológico”, ver: FORTIM; ARAUJO, Aspectos psicológicos do uso pato-
lógico de internet, p. 294-296.
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internacional em ciberpsicologia –, em tais relações, há uma série de


fenômenos psicológicos peculiares que explicam tais diferenças: a) o
anonimato: o perfil por meio do qual cada um se apresenta favorece
infinitas, imprevisíveis e até perigosas possibilidades de expressão; b) au-
sência de comunicação não verbal: quando não há interação visual em
tempo real, as percepções conscientes e inconscientes se confundem,
pois a pessoa depende unicamente da interpretação que faz das pa-
lavras ditas; c) desinibição virtual: a sensação de não ser vista sugere
à pessoa que ela pode fazer tudo o que deseja, especialmente o que
não faria na presença de outros; d) efeito halo: o internauta aprende
rapidamente a julgar e tirar conclusões a partir de uma única carac-
terística – geralmente idealizada – da pessoa; e) interação hiperpessoal:
a imagem real é autoeditada a ponto de torná-la ideal, fazendo com
que a relação se baseie numa pseudoperfeição das pessoas envolvidas;
f ) minimização da autoridade: como se trata de um espaço muitas
vezes erroneamente concebido como sem lei e sem controle, a pessoa
tem coragem de fazer o que não faria fora de tal espaço; g) associação
virtual: a busca por alguém que pense da mesma forma leva a pes-
soa a se associar a outras sem se importar com elementos tais como
comportamentos perversos, desviantes, criminosos etc.; h) privacidade
paradoxal: a pessoa, ao mesmo tempo que deseja privacidade, compar-
tilha informações pessoais e íntimas; i) distorção do sentido do tempo:
a percepção sensorial não parte do real e, por isso, perde-se a noção
do tempo empregado; j) efeito triplo A (anonymity, accessibility and
affordability = anonimato, acessibilidade, viabilidade econômica): são
fatores que explicam o poder de atração de tais meios para as relações.5
Tendo presente as características das relações virtuais, precisamos
dar um passo a mais na compreensão dos elementos culturais que in-
fluenciam no impacto provocado pelo uso de internet e no grau de
vulnerabilidade da pessoa envolvida para podermos chegar, assim, a en-
tender melhor que a diferença entre uso adequado e inadequado de
internet e das tecnologias de informação e comunicação associadas a ela
está na dependência de tais meios.
Segundo Patrick Carnes – um dos maiores estudiosos da compul-
são sexual –, “se quisermos projetar uma sociedade com ótimas condi-
ções para a dependência florescer, veremos que muitos componentes

5. AIKEN, The Cyber Effect, p. 324-335.


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necessários já existem em nosso meio”.6 Carnes os apresenta como


traços da cultura em que vivemos: a) uma cultura orientada pela conve-
niência, dedicada a remover os obstáculos à satisfação; b) uma cultura
que “enfatiza a tecnologia sofisticada e acha que ela pode resolver qual-
quer problema”; c) uma cultura que “busca entretenimento e escapismo
em vez de procurar o sentido das coisas”; d) uma cultura que “tem so-
frido grandes alterações de paradigma”, mudando constantemente a vi-
são que as pessoas têm do mundo; e) uma cultura que “sofre com a de-
sagregação familiar” e provoca “profundos sentimentos de abandono”;
f ) uma cultura que “sente a perda da comunidade”, com o resultante
isolamento das pessoas; g) uma cultura “de alta tensão”, gerando “uma
ansiedade crônica somada a temores existenciais compartilhados ou de
ordem pessoal”; h) uma cultura “de exploração dos outros”, o que gera
desconfiança em todos; i) uma cultura que “nega limitações, inclusive a
da morte”; j) uma “cultura em que existem muitos dependentes”.7
Pondo todos esses elementos juntos, não resulta difícil entender
que a passagem do uso inadequado de internet para o uso patológico
é muito fácil e rápida. Tanto o ambiente cultural em que a pessoa
vive quanto as características das relações virtuais concorrem para
isso. Irma Patrícia Espinosa Hernández, médica-cirurgiã e obstetra,
especialista em psiquiatria, psicanálise e psicoterapia, tem razão quan-
do afirma:
Considerando que a utilização da internet se realiza por meio de diver-
sos dispositivos eletrônicos: computador pessoal, laptop, tablet, telefone
celular, e através de serviços correspondentes: internet, correio eletrô-
nico, mensagem instantânea e redes sociais digitais, constatou-se que a
maneira de atuar das pessoas mudou, não apenas em relação aos aspec-
tos cotidianos da vida, mas também quanto às expressões patológicas
de sua conduta, entre as quais, aquelas relacionadas com a área sexual,
dando origem a toda uma série de manifestações distorcidas, tais como
a pornografia virtual (infantil e adulta), a exploração virtual, a violência
sexual virtual etc.8

6. CARNES, Isto não é amor, p. 85.


7. Idem, p. 85-88.
8. ESPINOSA HERNÁNDEZ, Uso patológico de internet (UPI) y su relación con el abuso sexual
a niños y adolescentes, p. 55.
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Quando falamos de dependência, não necessariamente nos referimos


à dependência sexual.9 Os estudiosos da neuroquímica da dependência
distinguem três tipos básicos: dependências excitantes (jogo compulsivo,
drogas estimulantes, sexo e comportamentos de alto risco), dependências
saciantes (alimentação compulsiva, álcool e drogas depressoras) e depen-
dências fantasiosas (drogas psicodélicas, maconha, preocupação artística
e mística).10 Os estudos de Harvey Milkman e Stanley Sunderwirth –
respectivamente, doutor em Ciências Psicológicas e doutor em Química
Orgânica – revelaram que todas elas escoam da mesma química cerebral.
Embora dependência não seja sinônimo de dependência sexual, se con-
siderarmos que o orgasmo é mais uma função cerebral do que genital, e
que o amor sexual envolve os três planos de prazer – excitação, saciedade
e fantasia –,11 entenderemos por que a dependência sexual pode ser mais
comum do que imaginamos. Carnes expressa bem isso quando afirma:
“Um dos aspectos mais destrutivos da dependência sexual é o fato de
cada um carregar dentro de si, literalmente, seu suprimento”.12
Tendo presentes todas essas considerações, podemos abordar mais
precisamente a questão da dependência sexual de internet por parte de
padres e religiosos. Iniciemos nos perguntando por que pessoas consa-
gradas – como quaisquer outras pessoas – são atraídas à internet para
experiências sexuais. Os estudos de David Delmonico, Elizabeth Griffin
e Joseph Moriarity – respectivamente, psicólogo/doutor em Filosofia,
psicóloga/terapeuta de casal e família, médico ginecologista e obstetra/
médico de família – nos ajudam a ir diretamente à resposta. Os autores
desenvolveram um modelo chamado CyberHex para entender por que
a internet é tão atrativa e exerce tão grande poder sobre as pessoas. Para
eles, há seis componentes – daí o Hex de hexágono – que precisam ser

9. Não abordarei, aqui, os diversos modelos teóricos e as diversas terapias da dependência sexual.
Recomendo a leitura da síntese feita por: ROSSO; GAROMBO; CONTARINO, Dipendenza Sessuale
(Sexual Addiction).
10. CARNES, Isto não é amor, p. 79-80. Carnes refere-se aos estudos de MILKMAN; SUNDER-
WIRTH, Craving for Ecstasy.How Our Passions Become Addictions and What We Can Do About Them.
11. MILKMAN; SUNDERWIRTH, Craving for Ecstasy. The Consciousness and Chemistry of
Escape.
12. CARNES, Isto não é amor, p. 37. O testemunho de Carnes é preocupante: “As pessoas que
sofrem de duas dependências, como a química e a sexual, muitas vezes declaram um fato surpreendente:
é mais fácil parar de usar drogas do que refrear a compulsão sexual. (...) Ao contrário do alcoólatra,
que pode evitar o álcool, o dependente sexual carrega o suprimento em si mesmo. A recuperação mais
lenta é parte do preço a ser pago por depender da química do próprio cérebro para alcançar a emoção
desejada” (p. 41).
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considerados: integral (a internet se tornou parte integral da vida das


pessoas, oferecendo-lhes fácil e irrestrito acesso a todas as formas de sexo,
24 horas por dia e 7 dias por semana; tendo acesso à conexão, qualquer
lugar se torna viável para acessar tudo sobre sexo); imponente (o uso de
internet se torna cada vez mais uma necessidade; há uma perda progres-
siva de autocontrole em relação ao uso); isolamento (o afastamento dos
outros oportuniza o engajamento nas mais variadas fantasias sexuais;
há uma espécie de racionalização para justificar o tempo empregado
on-line); interatividade (a escolha de com quem, quando e como intera-
gir depende apenas de um clique; dá-se uma pseudointimidade com o
outro); pouco dispendioso (inexpensive, em inglês; com o custo apenas do
acesso à internet, é possível encontrar tudo aquilo que interessa, man-
tendo o anonimato); intoxicante (o acesso imediato permite satisfazer
instantaneamente qualquer desejo, até mesmo o de objetificar o outro
sem o receio de ser rejeitado). Para os autores, esses seis componentes
aumentam a chance de a internet se tornar um problema para aqueles
que são emocional e psicologicamente vulneráveis e para aqueles que
lutam contra a compulsão sexual.13
Outra questão importante refere-se ao porquê de nem todos os re-
ligiosos usuários de internet se tornarem dependentes. Para Espinosa
Hernández, a resposta pode ser encontrada na “correlação existente en-
tre a psicopatologia prévia que apresentava o indivíduo em questão an-
tes de desenvolver algum tipo de dependência patológica de internet”.14
Os Transtornos do Controle dos Impulsos são o exemplo mais claro
deste tipo de correlação. Tendo como característica principal a impul-
sividade – a pessoa é incapaz de resistir a um impulso –, tais transtor-
nos são acompanhados pela compulsão – planejamento de rituais para
aliviar a ansiedade – e pela recompensa intermitente – uma espécie de
gratificação que, justamente por não ser plena, faz com que a pessoa
entre no círculo da repetitividade da ação.15
Além de tais Transtornos, é importante considerar as Psicopatolo-
gias Pré-Mórbidas e Comórbidas que também se relacionam ao uso pa-
13. DELMONICO; GRIFFIN; MORIARITY, Cybersex Unhooked.
14. ESPINOSA HERNÁNDEZ, Uso patológico de internet, p. 67.
15. Idem, p. 67-70. Transtornos do Controle dos Impulsos que predispõem ao uso patológico de
internet são citados pela autora: Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, Transtorno
Obsessivo-Compulsivo, Transtorno Explosivo Intermitente, Piromania, Cleptomania, Tricotilomania,
Jogo Compulsivo, Transtorno Borderline da Personalidade, Fase Maníaca da Doença Bipolar, Epilepsia
de Lobo Temporal, Abuso no Consumo de Substâncias, Alcoolismo, Adição ao Jogo (p. 68).
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tológico de internet.16 Resulta evidente que o impacto provocado pelo


uso de internet depende do grau de vulnerabilidade da pessoa envolvi-
da, e este, por sua vez, muitas vezes depende de diagnóstico clínico. Em
outras palavras, pode ser que a pessoa nem tenha consciência de que seu
grau de vulnerabilidade não depende apenas do seu esforço de autocon-
trole. Até tomar consciência disso, ela pode ter se tornado dependente e
necessitar, portanto, de acompanhamento especializado para enfrentar
a situação. Boa vontade será importante, mas não bastará para conse-
guir superar a dependência. Não podemos menosprezar o fato de que
as ambiguidades próprias do mundo virtual, os fenômenos psicológicos
peculiares às relações virtuais e os traços da cultura em que vivemos (ele-
mentos já citados anteriormente) podem afrouxar os freios inibidores e
potencializar comportamentos patológicos, sem que a pessoa advirta a
sua gravidade.
Outra questão a ser considerada é por que a dependência sexual de
internet pode ser uma dependência comum entre os religiosos e os pa-
dres. Tendo em conta que o meio, em si mesmo, não é bom nem mau
e que a dependência sexual existia antes mesmo da internet, ouso colo-
car-me do lado daqueles que acreditam na hipótese de que a internet é
apenas um espelho que reflete o que já está presente na vida da pessoa.17
Visto que o processo formativo nem sempre favorece a integração en-
tre sexualidade e projeto de vida, não é difícil compreender que, neste
campo, a pessoa pode viver uma espécie de dicotomia entre o que é e
vive, o que deseja e faz, o que acredita e manifesta, ou, conforme a me-
táfora proposta por Lílian Cristina Bernardo Gomes e Warley Alves de
Oliveira – respectivamente, doutora em Ciência Política e graduado em
Filosofia –, os “claustros castrados” podem ocultar no seu interior su-
jeitos sexuais cuja identidade precisa ser compreendida e ressignificada
para que a vivência da sexualidade seja autêntica.18
Quando as várias dimensões do processo formativo não são assu-
midas com prazer, a experiência prazerosa mais rápida é a sexual; por

16. Alguns exemplos apresentados por Espinosa Hernández: Transtorno Depressivo Maior, Trans-
torno de Ansiedade Generalizada, Transtorno de Personalidade Antissocial, Transtorno Dissociativo de
Identidade, Transtorno Orgânico da Personalidade, Transtorno de Personalidade Dependente, Trans-
torno Psicótico Breve, Transtorno de Personalidade Histriônica, Transtorno de Personalidade Narcisista
etc. (Idem, p. 70).
17. CUCCI, Dipendenza sessuale online, p. 10.
18. GOMES; OLIVEIRA, Claustros Castrados.
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isso, não é difícil compreender o porquê de o sexo se tornar válvula de


escape, e o orgasmo sexual, recurso facilmente disponível para aliviar
o peso da frustração ou do tédio do dia a dia. Tendo presente, ainda, a
rigidez de um estilo de vida que favorece a alienação do afeto, não é di-
fícil compreender que as fantasias sexuais se abrem como possibilidade
de liberdade que escapa da censura, do controle e da autoridade externa.
Haja vista que o compromisso do celibato, da continência e da castida-
de – e da sublimação necessária – não é um compromisso simplesmente
possível para quem quer, mas para quem pode,19 não é difícil compreen-
der que a dificuldade em manter-se fiel a tal compromisso pode levar
à vivência de uma vida dupla ou medíocre nesse campo. Enfim, se a
internet é, de fato, um espelho que aumenta o que já está presente na
vida da pessoa, torna-se inútil abordar questões ligadas à afetividade e
sexualidade fora do contexto global da formação humana, intelectual,
espiritual, comunitária e pastoral e, sobretudo, sem um processo que fa-
voreça o autoconhecimento, a autoaceitação, a autonomia responsável,
a ressignificação do desejo e a qualidade das relações.
Pretender negar que a dependência sexual de internet é um proble-
ma muitas vezes presente dentro das nossas comunidades e dioceses é
uma tentativa que não leva a lugar algum. O problema existe e precisa
ser enfrentado. Para saber como abordá-lo, precisamos, antes, entender
quando se pode falar de dependência sexual. Giovanni Cucci – jesuíta,
mestre em Psicologia e doutor em Filosofia – apresenta três sinais que
ajudam a individuar um possível problema de dependência de internet:
a) progressiva introversão: a pessoa fica mais silenciosa, triste, perde o
interesse por aquilo que antes a entusiasmava, sente-se mais impaciente,
tensa e agressiva e, embora reconheça a obsessão por questões sexuais,
evita falar sobre o assunto; b) progressivo investimento de tempo on-line: a
navegação em busca do que possa excitar se torna cada vez mais prolon-
gada no tempo, a ponto de gerar angústia o fato de não poder se conec-
tar e comprometimento de outras atividades; c) progressiva incapacidade
de parar: a pessoa não consegue dizer “não” ao desejo irrefreável de na-
vegar e entra em crise de abstinência se passar algum tempo – mesmo
que esse tempo seja uma questão de algumas horas ou períodos – sem

19. PEREIRA, Por uma compreensão da pessoa e da vivência do celibato, p. 134 e 137.
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se conectar, aumentando o grau de irritabilidade e insatisfação.20 Esta-


mos nos movendo na esfera dos sinais. Portanto, podem ser mais ou
menos perceptíveis e até mesmo erroneamente interpretados. Quando
as pessoas que acompanham o processo formativo não têm competência
para “ler” e “interpretar” os sinais ou quando fazem questão de não ver
sinal algum para não ter de enfrentar problemas, a pessoa que precisa de
ajuda fica abandonada a si mesma, lidará com o desejo sexual do jeito
que acha que consegue e poderá confinar-se num mundo de práticas
anônimas, clandestinas e até mesmo criminosas.21
Na perspectiva de que o orgasmo é uma função mais cerebral do
que genital, a dependência sexual de internet se torna um problema
ainda mais grave, pois ela atinge em cheio a mente da pessoa. Dando
asas aos desejos irrealizáveis ou inconfessáveis, a imaginação se converte
em senhora absoluta, e sua realização, em droga que apazigua o cérebro.
Por isso, o dependente sexual de internet é incapaz de avaliar e decidir
de maneira crítica. Tornando-se vítima de automatismos cada vez mais
difusos, quanto mais a pessoa dependente “consome” essa droga – como
afirma Cucci –, mais se atrofia, pois deixa escapar pelas mãos outros va-
lores que a realizam como pessoa, tais como o trabalho, o estudo, a ora-
ção, o apostolado, a vida em comum, a vivência dos votos.22 Com muita
lucidez, Cucci intui o que, de fato, torna-se também um problema real:
“Junto com o cérebro, adoece a visão”.23 Tudo e todos passam a ser vis-
tos como objetos sexuais e possibilidades alternativas de prazer. Como o
poder da imaginação é infinito, a pessoa se sente poderosa, onipotente,
capaz de realizar tudo o que imagina. Esse sentimento, embora ilusório,
dá a ela a coragem necessária para ultrapassar as barreiras do medo e da
vergonha e os limites do corpo e dos sentimentos. Refugiando-se num
mundo alternativo, a pessoa perde a noção da realidade, torna-se cada
vez mais incapaz de responder aos desejos da mente e acaba pagando
um preço altíssimo por isso.

20. CUCCI, Dipendenza sessuale online, p. 13-14. Para Carnes, “somente o padrão de descontrole
com outros sinais clássicos da compulsão – obsessão, incapacidade de resistir e o uso do sexo para aliviar
a dor – podem indicar a dependência sexual”. CARNES, Isto não é amor, p. 77.
21. Vale a pena conferir os 10 sinais (critérios) que, segundo Carnes e colegas, expressam um
comportamento sexual on-line problemático. CARNES; DELMONICO; GRIFFIN; MORIARITY,
In the Shadows of the Net, p. 25-29.
22. CUCCI, Dipendenza sessuale online, p. 19.
23. Ibidem.
532 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais

O preço a ser pago pode se desdobrar em várias dimensões. Se, num


primeiro momento, a dependência sexual de internet leva a pessoa a
renunciar a todas as outras dimensões da sua vida para realizar seus
desejos sexuais, com o passar do tempo, o desejo e as energias sexuais
vão diminuindo até chegar à impotência total. E é nesse momento que
tudo aquilo que ela foi deixando de lado lhe fará falta, aumentando ain-
da mais a frustração e o descontentamento consigo. A separação entre
afetividade e sexualidade – típica em contextos virtuais – também tem
seu preço.
Se, num primeiro momento, isso amplia as possibilidades de pra-
zer por meio de experiências com pessoas cujos nomes e identidades
pouco importam, com o tempo, a ausência de afeto e intimidade pode
comprometer a saída de si para dar-se e acolher o outro como dom. As
relações se tornam objetificadas, são avaliadas pelo que proporcionam
de satisfação e não duram mais do que o orgasmo que proporcionam. A
obsessão pela sedução e pela caça – comportamentos típicos do depen-
dente – acaba gerando frustração, pois aos poucos a pessoa compreende
que a satisfação tão esperada não está no objeto desejado.24
O mecanismo de repetição do comportamento – próprio da de-
pendência – aos poucos vai mostrando à pessoa dependente que ela
tem pouco ou nenhum controle sobre si, e isso também gera grande
frustração. O prazer passa a ser cada vez mais experienciado de modo
destrutivo, porque buscado em si mesmo. Ao se tornar o fim de tudo,
ele tem o poder de reduzir a pessoa a um mero meio para obtê-lo; mas,
como a satisfação proporcionada resulta cada vez mais comprometida,
a pessoa dependente pode entrar – mesmo inconscientemente – num
círculo de autopunição e autodesprezo. O sexo se converte, assim, numa
armadilha autodestrutiva.
Há, ainda, outro fator a ser considerado, pois ele também tem o
seu preço: em geral, padres e religiosos vivem onde trabalham e/ou es-
tudam. Isso dificulta o distanciamento dos meios e dos ambientes que
favorecem a dependência. A sensação que provam é de viver permanen-
temente conectados. O que, no início, parece ser uma comodidade, aos
poucos se configura como expressão de solidão e mal-estar; até mesmo
por causa da facilidade de uso dos meios – sempre presentes e prontos

24. CARNES; DELMONICO; GRIFFIN; MORIARITY, In the Shadows of the Net, p. 74-97.
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 519-545, Set./Dez. 2020 533

a entrar em ação apenas por meio de um clique –, o dependente não se


dá conta de que é justamente o fato de não se desconectar nunca o seu
maior problema. Como se trata de um comportamento obsessivo, o
peso que dele resulta se transforma, aos poucos, em vergonha e nojo
de si, outras expressões da armadilha autodestrutiva.
Vale precisar melhor o que entendo por armadilha autodestrutiva. A
dependência sexual de internet e de redes sociais tem o poder de asso-
ciar sentimentos e emoções em si contraditórios, como: excitação sexual,
medo e raiva; orgasmo, vergonha e culpa; prazer, frustração e impotên-
cia; atração erótica, despersonalização e anonimato.25 Além disso, temos
de considerar três outros elementos: a pessoa do dependente dificilmente
consegue avaliar a gravidade dos riscos a que se submete; a dependência
ataca em cheio a mente da pessoa; a dependência afrouxa os freios inibi-
dores e potencializa comportamentos patológicos. Todos esses elementos
juntos nos ajudam a compreender o grau e a força da invasão do sexo na
vida da pessoa dependente, a ponto de ela viver em função dos estímulos
eróticos, mesmo quando não está conectada ou que não tenha nenhum
dos meios à disposição. Ilustra bem essa realidade a afirmação de Giu-
seppe Crea – missionário comboniano, psicólogo e psicoterapeuta: “O
aspecto mais deletério da dependência de Internet não é tanto aquilo
que se faz navegando em rede, mas a relação que se estabelece com ela,
sobretudo quando os sujeitos são incapazes de se controlar”.26

3. Desafios no processo formativo


A Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis é muito clara ao afir-
mar que os mass media e as redes sociais constituem “uma praça da
qual os futuros pastores não podem ficar excluídos, seja em vista do seu
processo formativo, seja em vista do seu futuro ministério”.27 Em outras
palavras, tais meios são reconhecidos como válidos e importantes no

25. Valeria a pena, aqui, aprofundar os efeitos de tudo isso sobre o corpo, devido aos hormônios
que entram em ação e aos estímulos conflitivos. Mas isso nos afastaria do objetivo proposto. No entan-
to, é um aspecto importante da questão que não pode ser desconsiderado ou menosprezado. As obras
que seguem podem ser de grande ajuda: CARNES. Out of the Shadows; MOORE. Confusing Love with
Obsession; IRVINE, Disorders of Desire.
26. CREA, Vita religiosa e dipendenza sessuale in Internet. Crea refere-se ao artigo de: KRAUT
et al. Internet Paradox.
27. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, O dom da vocação sacerdotal, n. 97. Daqui em
diante = RFIS.
534 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais

processo de desenvolvimento das pessoas.28 Considerando que muitos


dos que iniciam o processo formativo já provêm de um contexto em
que estavam “imersos na realidade digital e nos seus instrumentos”, a
Ratio orienta a “guardar a devida prudência relativamente aos inevitá-
veis riscos que a frequentação ao mundo digital comporta, incluindo
várias formas de dependência, que poderão ser enfrentadas mediante
um adequado auxílio espiritual e psicológico”.29 Para a Congregação
para o Clero, “é conveniente que os seminaristas cresçam neste contex-
to”.30 Sugerindo “uma gestão vigilante, mas também serena e positiva”, a
Ratio estimula que tais recursos “sejam inseridos (...) no interior da vida
cotidiana da comunidade”.31
Diante dos riscos, que são inevitáveis, há comunidades formativas
que tomam decisões extremas: proibir o acesso à internet e às redes
sociais ou relegar exclusivamente à maturidade do sujeito tal acesso.
Ambas não concorrem para um efetivo processo de acompanhamento
e ajuda. A comunidade que opta pela primeira decisão ainda crê ser
possível proteger por meio da ignorância; a que opta pela segunda pode
camuflar o seu desinteresse ou a sua negligência em relação ao tema.
Ambas as posturas não correspondem às exigências formativas atuais,
pois desconsideram um dos lugares de relação mais significativos nos
quais todos nós vivemos.
Benjamín Clariond – doutor em Teologia – propõe uma alternativa
que me parece mais acertada: formar para a “verdadeira cidadania digi-
tal”, isto é, “para que adquiram as habilidades e os critérios para apro-
veitar as ferramentas que a internet e as redes sociais oferecem, como
os recursos e sentido crítico para reconhecer e evitar os perigos e tomar
decisões adequadas”.32 Limitar o papel da internet e das redes sociais a
fontes de informação é uma concepção a ser superada. A grande mu-
dança paradigmática no campo da comunicação é que não somos mais
meros consumidores de informação, mas produtores dela. As redes so-
ciais demandam participação ativa, implicam diálogo, confronto com
pluralidade de vozes, discursos, culturas, visões de mundo, ideologias;

28. RFIS, n. 99-100.


29. Idem, n. 99.
30. Ibidem.
31. Idem, n. 100.
32. CLARIOND, Formar en la ciudadanía digital, p. 124.
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 519-545, Set./Dez. 2020 535

enfim, nas redes sociais somos nós que editamos o que produzimos.33
Não raras vezes, temos de lidar com pessoas que têm muitas habilidades
para navegar pela internet e pelas redes sociais, mas carecem de critérios
para o devido uso. Numa comunidade formativa, tais critérios deveriam
ser ponderados e decididos em comum. Como todos são usuários, mas
nem todos têm consciência das próprias vulnerabilidades, a comunida-
de deve exercer o papel de educadora, proporcionando conteúdo – isto
é, abordar abertamente o tema em questão – para o que será trabalhado,
depois, em foro mais reservado.
Katharinna Anna Fuchs – doutora em Psicologia –, na esteira dos
estudos de Mark Laaser e Louis Gregoire,34 aponta a sobrecarga de traba-
lho, a solidão e a imaturidade espiritual como fatores que expõem padres
e religiosos a um maior risco de uso patológico de internet.35 Quando o
foco é posto naquilo que se faz, e não no que se é; quando a autoaceita-
ção é baixa e leva ao afastamento das pessoas; quando a espiritualidade
é mais exteriorizada do que internalizada, o terreno se torna mais propí-
cio para o refúgio na internet e nas redes sociais. Portanto, mais do que
assumir uma postura voltada para a repressão do uso, a ação formativa
deveria estar voltada para a identificação das possíveis causas que levam
ao uso inadequado e patológico de internet e de redes sociais.
Dom Jorge Carlos Patrón Wong – secretário para os seminários jun-
to à Congregação para o Clero –, mesmo reconhecendo que “no uso de
internet se revelam os antivalores, as contradições e a vulnerabilidade
das pessoas”, defende que “o objetivo da formação é integrar plenamente
a realidade virtual em seus distintos aspectos”.36 Para ele, tal integração
se dá por meio dos valores que caracterizam a vocação que cada um
abraçou, e, sem uma profunda mística e uma devida ascética, isso não é
possível.37 O trabalho de integração pressupõe que a pessoa do padre ou
do religioso tenha o olhar e o coração fixos em Deus e no Seu povo, de
modo que sua espiritualidade seja expressão da intimidade com Deus e
da solidariedade com o próximo – é o que podemos chamar de caridade

33. Idem, p. 127.


34. LAASER; GREGOIRE, Pastors and Cybersex Addiction.
35. FUCHS, Los jóvenes en el mundo digital, p. 210.
36. WONG, El internet y las redes sociales en la formación sacerdotal y en el ministerio presbi-
teral, p. 231.
37. Idem, p. 232.
536 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais

pastoral. Pressupõe também atitude crítica que permita filtrar o con-


teúdo acessado e decisão da vontade para saber quando se conectar e se
desconectar.38
Dom Wong propõe alguns âmbitos para a plena integração da inter-
net e das redes sociais na formação inicial e permanente. Iluminado pela
proposta feita por ele, apontarei alguns desafios referentes às dimensões
constitutivas da vida consagrada: vida em comunidade, vida de oração,
missão apostólica e vivência dos votos.39 Com isso, pretendo deixar cla-
ro que é preciso superar a mentalidade redutiva de “fazer ou renovar os
votos”. A pessoa que opta pela vida consagrada professa viver, à luz de
um determinado carisma, essas quatro dimensões, de modo que tanto
a integração quanto a dependência têm consequências práticas diretas
sobre elas.
O religioso optou por realizar-se vocacionalmente em comunidades
fraternas, de modo que viver juntos se torna exigência fundamental e
caminho de realização vocacional. É na comunidade que ele é desafia-
do a amar e a compartilhar tudo em espírito de família. É por meio
da comunidade que ele vive a experiência evangélica da comunhão. É
com a comunidade que ele é chamado a comunicar alegrias e dores e a
partilhar experiências e projetos apostólicos. É em vista da comunidade
que ele deve realizar os seus dons e corrigir o que descobre em si de anti-
comunitário. E tudo isso por convicção teológica: ele sabe que, mesmo
sendo imperfeita, é na comunidade que cada um encontra a presença
de Cristo. Pois bem, a integração da internet e das redes sociais deve
considerar todos esses elementos e servir de critério para investir naquilo
que facilita a comunicação, a organização, o trabalho; que simplifica os
trâmites burocráticos, envolve a todos igualmente e permite que cada
um se expresse com simplicidade; e evitar o que favorece o isolamento,
a indiferença, o exibicionismo e, sobretudo, o que contradiz a voca-
ção abraçada. Alguns sinais que merecem ser submetidos à avaliação
e ao discernimento comunitário: o excesso de autorreferencialidade, a

38. Idem, p. 232-233.


39. Embora o padre diocesano não faça nenhuma profissão religiosa, os compromissos assumidos
por ele, na prática, acabam sendo os mesmos que os compromissos dos religiosos: vida em comunidade
(que se expressa pelo compromisso de viver unido ao presbitério), vida de oração, missão apostólica e
vivência dos votos (que, para ele, não são votos, mas compromissos de obediência ao bispo, dependência
da comunidade paroquial e vivência do celibato, da continência e da castidade). Por isso, o que será dito
em relação aos religiosos vale, com as devidas especificidades, para os padres diocesanos.
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 519-545, Set./Dez. 2020 537

confusão entre o que é público e o que é privado, o contratestemunho


de certos estilos de vida, os contatos e as comunicações imprudentes,
a supervalorização das próprias comunidades virtuais etc. O religioso
precisa ter presente que seu modo de agir na internet e nas redes sociais
pode comprometer a credibilidade de toda a comunidade, envolvê-la
em escândalos e ameaçar todo o bem feito por ela.
A comunidade religiosa é reunida pelo próprio Deus, que a mantém
unida pela Sua Palavra e pelo Seu amor misericordioso. Sem intimida-
de com Deus – que se concretiza por meio da oração, da meditação e
da doação –, sem escuta da Palavra de Deus – que alimenta a oração,
a meditação e a doação –, sem a experiência da graça – que sustenta e
purifica a oração, a meditação e a doação –, o religioso não persevera
em sua resposta vocacional. É diante da Palavra de Deus e no confronto
com ela que o vocacionado descobre e redefine sua identidade, qualifica
suas relações e ressignifica a missão da qual participa. Alimentando-se
da Palavra, ele próprio é chamado a fazer com que sua vida seja o lugar
de “geração” de uma palavra sempre nova de Deus. É na celebração
dos mistérios da fé – sobretudo da Eucaristia e da Reconciliação – que
o religioso se encontra com os sentimentos e o agir do Filho, com os
quais deve se conformar. A celebração dos mistérios divinos permite ao
religioso encontrar-se com o próprio mistério pessoal e descobrir coti-
dianamente ao que é chamado. Pois bem, a integração da internet e das
redes sociais – já realizada materialmente por meio do uso de aplicativos
para a recitação da Liturgia das Horas, de sites para a preparação das ho-
milias e de mensagens espirituais por meio das redes – demanda atenção
singular, devido não somente aos sinais que merecem ser submetidos à
avaliação e ao discernimento comunitário, mas também à situação na
qual podem se encontrar irmãos dependentes virtuais: a substituição
do tempo de meditação pela navegação nas redes sociais ou leitura de
notícias; a dificuldade de silenciar, escutar, prestar atenção ao que está
sendo rezado e/ou celebrado; a ansiedade de quem vive constantemente
conectado pode atrapalhar a efetiva “conexão” com Deus requerida pela
oração e meditação; a incoerência, a desonestidade e a duplicidade de
vida do dependente dificultam tremendamente o caminho de santidade
que é chamado a percorrer.
Sendo o mandato apostólico confiado pela Igreja a uma determina-
da comunidade carismática, cabe ao religioso sentir-se responsável pela
missão comum e dela participar plenamente. A missão de sua comu-
538 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais

nidade participa da missão da Igreja com a riqueza carismática que lhe


é específica e na pluralidade de formas determinadas pelas exigências
daqueles a quem se dedica. Não existe missão pessoal, assim como não
existe autorrealização desvinculada do carisma abraçado. O termômetro
vocacional é sempre o amor pelos mais pobres, pois todo carisma é sus-
citado na Igreja para responder a um determinado tipo de pobreza re-
conhecido num determinado contexto sociocultural por homens e mu-
lheres fundadores de comunidades apostólicas. Pois bem, a integração
da internet e das redes sociais também se dá – ao menos em seu aspecto
material – no exercício da missão em áreas como organização, comuni-
cação e formação de lideranças. Nas mais variadas instâncias de governo
e liderança, a internet e as redes sociais estão presentes. No entanto,
alguns sinais merecem ser submetidos à avaliação e ao discernimento
comunitário, tais como: a contínua substituição das relações interpes-
soais pelos comunicados virtuais, o distanciamento das pessoas da obra,
a divisão que comunicações superficiais ou imprudentes podem provo-
car nos vários grupos, a perda do sentido de comunhão e participação,
o ressurgimento de posturas clericalistas.
No seguimento a Cristo pobre, casto e obediente, o religioso teste-
munha que a necessidade de amar, o desejo de possuir e a liberdade de
decidir sobre a própria vida adquirem em Cristo o sentido mais pleno.
A prática dos conselhos evangélicos favorece a purificação do coração e
a liberdade espiritual do religioso e torna fecunda sua caridade pastoral.
Livre para amar a todos, o religioso não se deixa prender por nada e
ninguém. O Evangelho é assumido como norma suprema de vida, e as
Regras ou Constituições, como caminho seguro de santidade. Os votos
exigem equilíbrio psicológico e maturidade afetiva da parte de quem os
assume. No entanto, é apenas à medida que o consagrado se envolve
com pessoas, estabelece relações, toma decisões, faz opções concretas,
que ele vai compreendendo a fundo a natureza dos conselhos evangéli-
cos. Ao mesmo tempo que o religioso tem de lidar com a renúncia de
opções legítimas, mas não convenientes, os votos influenciam decisões
que, num outro estilo de vida, não seriam necessárias. Pois bem, a in-
tegração da internet e das redes sociais no processo formativo deve fa-
vorecer a maturidade pessoal e a vida fraterna em comunhão. Portanto,
alguns sinais merecem ser submetidos à avaliação e ao discernimento
comunitário: a dificuldade de renunciar a algumas expressões do amor,
sobretudo as de natureza sexual-genital; a dificuldade de viver na de-
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 519-545, Set./Dez. 2020 539

pendência total da comunidade; a dificuldade de submeter a própria


vontade-liberdade a um projeto comum.
O processo de avaliação e discernimento comunitário é um meio
muito eficaz para favorecer a integração, evitar a dependência e até mes-
mo ajudar quem se tornou dependente de internet e de redes sociais.
Além dos aspectos já mencionados, precisamos considerar outros ele-
mentos em tal processo. Aponto aqui três deles.
Deirdre Boyd – psicoterapeuta e referência mundial em recuperação
de pessoas dependentes – afirma que “a dependência é provavelmente a
única doença que precisa ser entendida para poder ser curada”.40 Acre-
dito que ela tem plena razão. Os estudos de Carnes sobre as etapas da
recuperação (fase de desenvolvimento, fase de crise/decisão, fase de cho-
que, fase de tristeza, fase de reparação e fase de crescimento) corroboram
a afirmação de Boyd.41 Como propor determinadas renúncias, mudanças
no estilo de vida, valores a serem mantidos a quem não se conhece, não
se aceita, não confia em si e nos outros ou não compreende o significado
da opção feita, das motivações que devem sustentá-la, dos limites a serem
assumidos para viver com coerência um determinado projeto de vida? O
processo formativo, seja inicial, seja permanente, não pode mais ignorar
a importância do tema da dependência de internet e de redes sociais,
assim como deve favorecer a aceitação serena e positiva dessa realidade.
Sabemos que o desenvolvimento de algum tipo de dependência pa-
tológica de internet não se dá por acaso; há sempre algum antecedente.
Para Cucci, “a internet evidencia alguns desvios em que caem persona-
lidades frágeis, na maioria das vezes, isoladas e introvertidas, com graves
carências afetivas. (...) Este tipo de dependência, não por acaso, cria
raízes somente em personalidades que manifestam problemas e dificul-
dades antecedentes, que devem ser reconhecidas e enfrentadas para ir à
raiz da situação e consentir uma mudança efetiva”.42 Disso deriva a obri-
gatoriedade de os formadores conhecerem a família dos formandos, a
história pessoal de cada um e o significado das experiências que tiveram
para a própria resposta vocacional e, quando necessário, fazer-se ajudar
por terapeutas competentes.

40. BOYD, Liberarsi dalle dipendenze, p. 3.


41. CARNES, Isto não é amor, p. 197-230.
42. CUCCI, Dipendenza sessuale online, p. 68. Ver também: CUCCI, Paradiso virtuale o Infer.
net?, p. 13-15.
540 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais

O universo do dependente é uma espécie de prisão da qual ele não


deseja sair. Justamente por isso, a dependência precisa ser enfrentada,
reconhecida, tratada. Negá-la ou minimizá-la são atitudes que não ser-
vem, porque são irresponsáveis para com a pessoa do dependente, com
os outros, com a sua Ordem religiosa e com a própria Igreja. Inspiradora
é a proposta feita por Cucci de como ajudar a pessoa do dependente43
e, por isso, assumo-a aqui. Sem sombra alguma de dúvida, a pessoa de-
pendente precisa contar com a ajuda de um profissional capacitado, que
tenha formação na área da sexualidade e da dependência, para poder
lidar com a própria dependência. Mas há algumas ações que podem ser
assumidas pelos formadores ou diretores espirituais. Eles podem ajudar
a pessoa dependente a: conscientizar-se de que, uma vez alcançado o
fundo do poço, não dá para continuar minimizando a gravidade da
situação; entender que a sensação de indignidade, vergonha e raiva por
não saber amar e não sentir-se amado como se deve pode ser superada;
revisitar a própria história pessoal, sobretudo as feridas abertas e não
curadas; voltar-se para outras dimensões da própria personalidade que
acabaram se atrofiando; recuperar interesses e valores capazes de resti-
tuir o gosto pela própria vida; assumir o controle do tempo por meio
da clara definição de tarefas; impor-se um período de abstinência como
exercício de autodomínio, considerando que, não raramente, será pre-
ciso contar com a ajuda de uma terapia farmacológica; abrir-se à terapia
de grupo, que, além de ser uma ajuda eficaz, permite uma relação não
erótica com outras pessoas. Além disso, é preciso envolver no processo
de acompanhamento alguém que seja referência afetiva para a pessoa.
Como se trata de um processo gradativo, com frequentes recaídas, o
dependente precisa ter ao seu lado quem entenda e partilhe seu sofri-
mento, com paciência e firmeza, misericórdia e verdade.44

Considerações finais
O significado da vida tem profunda relação com o significado do
prazer na própria vida. Ambos são descobertos e experienciados em ple-
nitude quando a pessoa decide sair de si, retirar-se do centro e abrir-se
gratuitamente aos outros. Quando, ao contrário, tais significados são
buscados independentemente dos outros ou servindo-se dos outros
43. Idem, p. 68-80.
44. Idem, p. 78-79.
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 519-545, Set./Dez. 2020 541

como meio para alcançá-los, o risco de frustração é garantido. As pes-


soas, além de amar e se sentir amadas, precisam sentir-se necessárias e
importantes para uma causa ou para alguém. Tem razão Cucci quando
afirma que o altruísmo é o verdadeiro remédio para a dependência, a
sua verdadeira antítese.45 Trata-se de uma convicção evangélica: a “salva-
ção” não está ligada à preservação de si, mas à doação de si.46
Pode soar irônico que uma questão tão complexa como o uso pa-
tológico de internet e de redes sociais conte com uma “solução” tão
simples. Sem diminuir a importância, a gravidade e a urgência do tema;
sem reduzir o tema ao que aqui foi apresentado;47 sem menosprezar o
esforço que muitos especialistas, estudiosos, pesquisadores e agentes de
saúde têm empregado para efetivamente entender, cuidar e reabilitar
pessoas dependentes, a indicação de Cucci tem um profundo signifi-
cado. Se somos pessoas que existem e se realizam na relação com os
demais, se somos por natureza e por graça chamados à reciprocidade,
isto é, ao amor e ao dom de nós mesmos, é somente quando nos abri-
mos e nos dirigimos aos outros que nos realizamos e que nos tornamos
sexualmente realizados. O que os religiosos e padres que se tornam de-
pendentes buscam na internet e nas redes sociais, a ponto de fasciná-los,
seduzi-los e fazê-los imolarem-se ao erótico e comprometer o que há de
mais precioso na própria vida, não poderia ser descoberto na integração
entre eros, philia e ágape?48 As questões levantadas pelo Papa Bento XVI
em sua carta encíclica Deus caritas est não deixam de soar de forma in-
cômoda aos nossos ouvidos:
Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber
ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impul-
so para degenerar em vício! Esse filósofo alemão exprimia, assim, uma

45. Idem, p. 92.


46. RECONDO, Imparare ad amare da pastori, p. 71.
47. Por uma questão de fidelidade ao objetivo proposto, não abordei aqui questões que estão in-
timamente relacionadas com o tema, como: os riscos e danos do uso de internet e de redes sociais para
as crianças, os adolescentes e os jovens; as modalidades mais comuns de uso patológico de internet na
esfera sexual; os vários delitos cibernéticos que atingem desde crianças até idosos; a pornografia virtual
e a indústria pornográfica; a infidelidade virtual que ameaça a estabilidade de tantas relações e famílias;
os investimentos das grandes empresas para nos manter conectados o tempo todo; as orientações do
Magistério da Igreja sobre a ética na internet, os abusos sexuais infantis, a pornografia e a violência nas
comunicações sociais etc. Esta pequena lista de temas mostra o quanto o assunto é complexo e precisa
ser estudado.
48. A obra de Recondo é um excelente contributo para o entendimento desta questão. RECON-
DO, Imparare ad amare da pastori.
542 R. Zacharias. Sem elas, eles não vivem mais

sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições,


a Igreja não nos torna, porventura, amarga a coisa mais bela da vida?
Porventura ela não assinala proibições precisamente onde a alegria, pre-
parada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz
pressentir algo do Divino?49
Bento XVI responderá a tais perguntas com sua encíclica, contra-
pondo-se ao sentido pessimista de Nietzsche e deixando claro que “o
‘amor’ é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso
a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais”.50 Quanto mais
buscarmos a integração entre as várias dimensões do amor – eros (amor
erótico), philia (amor de amizade) e ágape (amor divino) –, mais desco-
briremos que tanto o eros quanto a philia, ao nos abrir aos outros e nos
aproximar deles, nos fazem ter o desejo de existir para o outro, de viver
a ágape. O momento da ágape reclama o eros e a philia.51 Acredito estar
aqui uma das vias a ser percorrida no enfrentamento da dependência
em geral e da dependência sexual, em específico, de internet e de redes
sociais. Mas isso implica rever e ressignificar todo o processo formativo,
sobretudo naquilo que favorece ou promove a atração narcisista e a legi-
timação da mediocridade.

Referências
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Artigo recebido em: 16 jul. 2020
Aprovado em: 21 ago. 2020

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