Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
BACHELARDIANA
Roseane G. da Silva1
1 Mestre, UniSC.
os sonhos. Em uma obra marcada pela análise filosófica desses elementos com a
finalidade de perscrutar suas influências no imaginário, Bachelard (1989b) caracteriza
a água como um elemento marcado pela transitoriedade. O pensador atua no sentido
de efetuar um paralelo entre o humano, ser em constante transformação, e as águas,
que se apresentam igualmente sob o signo da transmutação.
Esse caráter dual é evidenciado nas tradições judaicas e cristãs, em que a água
está associada aos processos de criação de tudo aquilo que existe no mundo. Em sua
dimensão positiva, a água é purificadora, sendo usada no batismo cristão. Ainda assim,
o elemento comporta caráter pernicioso: na Bíblia, os pecadores a ela devem temer, já
que as águas pouparão apenas a vida dos justos, como ocorre no episódio do dilúvio,
em que somente os justos, representados por Noé, sua família e um casal
representante de cada espécie animal, sobrevivem abrigados em uma arca. A água é,
por conseguinte, berço e túmulo, atuando, conforme descrito por Jean Chevalier e
Alain Gheerbrant (1998, p. 15) em seu Dicionário de símbolos, como fonte de vida,
meio de purificação e centro de regenerescência.
Tendo essas simbologias em vista, é relevante analisarmos de que modo esse
elemento comparece no imaginário de uma criança. Na infância, estão em jogo
arquétipos fundamentais que constituem o imaginário de toda uma sociedade. No caso
das imagens constituídas por nossa personagem, o garoto Calvin, é perceptível a
recorrência de imagens aquáticas que remetem à agressividade e à violência. Em meio
a essas imagens, são recorrentes os processos de miniaturização do mundo
(BACHELARD, 1989a), quando o garoto constitui seus espaços e mundos dentro de um
ambiente restrito. Boa parte deles surge na banheira. Agora, cabe ressaltar como se
configuram os devaneios aquáticos do menino.
A água, consoante Bachelard (1989b), conduz o sonhador da matéria a dois
tipos de devaneios de morte — o primeiro apresenta-se sob a égide da
horizontalidade, em que o sujeito desaparece no horizonte aquático. O segundo inclui
elemento mediado por pulsões de vida, através do retorno à mãe, e de morte, através
do mergulhar em suas profundezas.
Não é, entretanto, o que vemos nas tiras selecionadas. Dentro do universo
imaginário de Calvin as relações aquáticas estão atreladas ao desejo por liberdade,
alegria e aventuras sempre barulhentas.
2. O BRINCAR NA ÁGUA
Na tira dominical acima (Figura 1), uma pista de pouso sobre o mar é
apresentada num quadro maior. Isso implica que o leitor levará mais tempo para ler
esse quadro, o que é corroborado por Nobu Chinen: “quadrinhos maiores e com mais
ação exigem mais tempo de leitura” (2011, p. 42). As ações relatadas no quadro de
abertura são mais longas, porque são narrativas inscritas na imaginação do menino.
Na imagem, aglutinam-se elementos aéreos e aquáticos — o avião de guerra decola de
uma pista sobre o mar. No segundo quadro, Calvin está dentro de uma banheira
malcriações de Calvin somente sobre ela, afirmando ser somente seu filho, é
enfatizada pelo uso de negrito e caixa alta na expressão “Meu filho?!?”. Os pontos de
interrogação e exclamação acentuam o seu descontentamento.
Nessa tira é perceptível a presença de imagens que correspondem aos
elementos aquático, aéreo e ígneo. Os dois últimos elementos aparecem de modo mais
sutil: da pista de pouso aquática avança um avião que defenderá a tropa dos inimigos.
Já o elemento ígneo aparece quando Haroldo afirma ter uma ideia de como atacar o
indestrutível porta-aviões de Calvin: com cargas de profundidade, ou seja, com
bombas equipadas com explosivos como o TNT. A destruição causada pelas bombas
aquáticas é simulada pelo espalhamento das águas no banheiro. Assim, com uma carga
tão explosiva o ambiente não poderia de modo algum permanecer em ordem. Nesse
caso, o ambiente até então apaziguado de uma pista de pouso localizada em ambiente
aquático é quebrado pela aparição de um elemento que causará transtornos e
destruição — o fogo, representado pelas bombas aquáticas. A ambivalência desses
dois elementos materiais causará inicialmente o caos. Contudo, o espírito indomável
do garoto parece ter apreciado a quebra da tranquilidade inicial, uma vez que, do
ponto de vista prático, espalhar a água da banheira significa não tomar banho — um
dos objetivos acalentados pelo garoto. Mas nem sempre a quebra da tranquilidade
inicial será representada por um elemento contrário. Muitas vezes, a simbologia
acerca da água remete novamente ao universo da agressividade, porém suavizada com
a leveza das brincadeiras infantis.
Seguindo para a próxima tira:
Nessa tira (Figura 2), vemos um crocodilo dentro da água. O que chama a
atenção é que esse animal reflete e tem consciência sobre a própria condição. Isso
pode ser depreendido de seu pensamento — “O crocodilo boia no sombrio
Amazonas...” (WATTERSON, 2008b, p. 89). Esse aspecto indicia que não se trata de um
animal qualquer. Além disso, as brincadeiras do tipo “faz de conta”, que incluem o
antropomorfismo — atribuir características humanas a animais — são bastante
comuns no universo infantil. Há algo diferente na sua configuração. Há que se salientar
que nos dois primeiros quadros é predominante o uso de tons mais escuros no animal
e na paisagem em seu entorno, configurando o ambiente da região do Amazonas.
No quadro seguinte, a focalização é modificada — não vemos mais a figura do
animal em plano geral, mas apenas sua silhueta no rio de cima. O crocodilo prossegue
refletindo — “Completamente imóvel, parece ser apenas um tronco inofensivo”
(WATTERSON, 2008b, p. 89). Na sequência, o crocodilo aparece de perfil dentro do rio
— é possível visualizar sua parte superior e o resto do corpo, submerso na água. No
quadro de desfecho, o pai de Calvin está junto ao filho em uma piscina. O homem o
observa e, curioso, questiona: “Calvin, o que você está fazendo? Tudo bem?” (p. 89). O
garoto aparece de bruços boiando na água, imóvel. Calvin reflete: “Mais perto... Mais
coisas. Mesmo assim, ambos concordam que, apesar dessa pequena adversidade, tudo
valeu a pena.
Como vimos anteriormente, a relação de Calvin com o elemento aquático não
ocorre como nas demais histórias, mediada por sua agressividade. O garoto e o tigre
entram em contato com um elemento que propicia alegria, felicidade. Gaston
Bachelard (1989b) alude ao contato humano com águas claras, felizes, que remetem à
abundância e ao acolhimento relacionado à maternidade. O fenomenólogo chega a
aproximar a água ao leite materno, ao elemento que propicia nutrição e possibilita ao
ser a sua sobrevivência.
Na tira diária abaixo (Figura 5), estamos diante de mais uma manifestação do
contato do garoto com o elemento.
Novamente durante o banho, Calvin está imerso nas imagens propiciadas por
seu contato com a água. Enquanto brinca com um navio de brinquedo na banheira,
dirigindo-o para uma estranha “passagem estreita”, algo diferente acontece. Esse
acontecimento só é revelado ao leitor no terceiro quadro, quando vislumbramos
Calvin saindo da banheira em direção à porta. A água que escorre banheira abaixo está
escurecida. Na sequência, um quadro sem imagem de fundo destaca Calvin correndo
com um pote na mão. Por fim, vemos o menino novamente na banheira em meio à
água escurecida, dirigindo um olhar apelativo à mãe, espantada. Ela constata a
traquinagem do filho, que jogou tinta na banheira para simular, em sua imaginação, o
afundamento de um petroleiro. Ora, nada mais natural no imaginário infantil: é
preciso dar concretude aos acontecimentos imaginários, é necessário construir com
base nos elementos materiais.
No caso da tira subsequente (Figura 6), um processo natural decorrente do
contato excessivo da água é interpretado por Haroldo como a gradual e trágica
transformação de Calvin em um ser monstruoso:
Na tira acima, Calvin está novamente na banheira e mostra a Haroldo como seus
dedos das mãos e dos pés estão enrugados. O tigre não parece muito animado com o
que vê e fica pensativo. Em seguida, declara em tom apelativo, imitando a manchete de
uma notícia de jornal “Grande uva-passa rosada encontrada na banheira. Garoto
continua desaparecido” (WATTERSON, 2008b, p. 88). Calvin tenta desesperadamente
sair da banheira, apavorado com a constatação. O processo de miniaturização do
mundo aludido por Bachelard (1989a) atinge altos níveis inesperados: afinal, não é só
o mundo que pode ser comportado em um espaço fisicamente restrito, mas o próprio
ser pode se metamorfosear em uma estranha criatura.
A tira abaixo reitera a natureza hostil do elemento aquático, que empreende não
somente a abundância, mas a destruição. Esse é um dos ângulos mais presentes nas
criações da série, como vimos anteriormente.
Na tira acima (Figura 7), uma sequência de desenhos em estilo realista assinala a
presença de um destróier em alto-mar. O mar parece agitado, com ondas pontiagudas.
Na sequência, um redemoinho prende o navio e faz a embarcação desaparecer. No
último quadro, contemplamos a revelação — Calvin está na banheira, com seus barcos
de brinquedo. Um balão de diálogo, proveniente de um adulto, o recrimina por ter
aberto o ralo muito rápido — e, provavelmente, não ter tomado o banho com o devido
cuidado.
Como vimos, há uma associação recorrente no que tange ao contato livre de
Calvin com o elemento aquático — sublinhamos livre porque o garoto protesta
veementemente contra os banhos impostos pela mãe, banhos higiênicos e socialmente
recomendáveis, ainda que depois se acalme e devaneie em contato com a água — o
que ocorre quando o menino e o tigre se molham propositalmente em uma poça
d’água: as águas maternais e femininas. Bachelard (1989b) sublinha, acerca das
relações humanas com o elemento, que a natureza é uma projeção da figura materna,
responsável por ser a propulsora dos devaneios filiais. Por isso qualquer líquido,
Buscando criar uma versão própria do mundo, a criança entra em contato com
os elementos materiais, e, nas palavras do pesquisador Gandhy Piorski, “ao mesmo
tempo em que experimenta e transfigura o mundo, repercute-o em si mesma”
(PIORSKI, 2016, p. 63). Esse processo está em mútua interação — a criança busca
entender o mundo externo e passa a construir a sua identidade enquanto sujeito.
Em contato com a água, elemento de natureza ambivalente, o menino Calvin
interage entre dois eixos: a felicidade oriunda do contato com as águas tranquilas e
felizes, que remontam ao acolhimento do embalar materno, e a agressividade, por
meio das brincadeiras em que a destruição e a morte imaginária preponderam.
O elemento aquático em Calvin e Haroldo comparece normalmente associado à
destruição, aos ímpetos agressivos de animais e monstros marinhos personificados
[u]ma mão ociosa e acariciante que percorre as linhas bem feitas, que inspeciona
um trabalho concluído, pode se encantar com uma geometria fácil. Ela conduz à
filosofia de um filósofo que vê o trabalhador trabalhar. No reino da estética, essa
visualização do trabalho concluído conduz naturalmente à supremacia da
imaginação formal. Ao contrário, a mão trabalhadora e imperiosa aprende a
dinamogenia essencial do real, ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo,
resiste e cede como uma carne amante e rebelde. (BACHELARD, 1989b, p. 14).
ataque. A poça simboliza o brincar transgressor: Calvin odeia tomar banho, mas se
molhar por diversão, e não por obrigação imposta por adultos, é muito mais divertido.
Nesse sentido, espaços ordinários ao olhar adulto, que enxergam objetos apenas em
uma ótica utilitarista, adquirem uma função mais potente: promover a criação de
histórias que explicam os fatos — até os mais disparatados e condenados pelos
adultos — oriundos de uma aparente indisciplina do garoto.
Assim, Calvin e Haroldo demonstram que o ser humano, como reitera Bachelard,
não foi destinado a uma vida horizontal: “o homem só é um homem na proporção em
que é um super-homem” (BACHELARD, 1989b, p. 18). O que define ser humano é
justamente a capacidade de criar e habitar mundos novos, transfigurando a realidade
vigente, e ultrapassando as convenções estabelecidas. Quando adultos, é preciso que
abandonemos os apelos da imaginação para vestirmos a máscara da seriedade e da
resignação. Entretanto, ainda resta em nosso ser um germe que nos impele a ser como
a criança (que ainda somos): ansiamos viajar para o espaço sideral, caso as coisas não
estejam em seus lugares — como nunca estão.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
_____. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989a.
_____. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São
Paulo: Martins Fontes, 1989b.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998.
CHINEN, Nobu. Aprenda & faça arte sequencial: Linguagem HQ: conceitos básicos. São Paulo: Criativo,
2011.
PIORSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o brincar. São Paulo: Petrópolis,
2016.
WATTERSON, Bill. Yukon Ho! Trad. André Conti. São Paulo: Conrad, 2008a.
_____. Tem alguma coisa babando embaixo da cama. Prefácio de Pat Oliphant. Trad. André Conti. São
Paulo: Conrad: 2008b.
_____. O ataque dos perturbados monstros da neve, mutantes e assassinos. Trad. Alexandre Boide. São
Paulo: Conrad, 2010.