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Curitiba, Vol. 8, nº 14, jan.-jul.

2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE

A INFÂNCIA, O BRINCAR E A ÁGUA — UMA PERSPECTIVA

BACHELARDIANA

CHILDHOOD, PLAY AND WATER: A BACHELARDIAN’S PERSPECTIVE

Roseane G. da Silva1

RESUMO: Este artigo analisa, mediante a fenomenologia bachelardiana da imaginação poética, as


relações da personagem Calvin, da série de tiras cômicas Calvin e Haroldo, de Bill Watterson, com o
elemento aquático. As brincadeiras são um dos recursos mais relevantes para a constituição da
criança enquanto indivíduo. Assim, selecionamos sete tiras em que o ato de brincar com a água
assume o eixo condutor da história em quadrinhos. Pretendemos elucidar as intersecções entre o
brincar infantil com a perspectiva fenomenológica de imaginação poética.
Palavras-chave: infância; elementos materiais; histórias em quadrinhos.
ABSTRACT: This article analyzes, from the Bachelardian phenomenology of the poetic imagination,
the relations of the character Calvin, from the series of comic strips Calvin and Hobbes, of Bill
Watterson, with the aquatic element. Playing is one of the most relevant resources for the
constitution of the child as an individual. Therefore, we selected seven strips in which the act of
playing with water assumes the driving axis of the comic strip. Thus, we intend to elucidate the
intersections between the play of childhood with the phenomenological perspective of poetic
imagination.
Keywords: childhood; material elements; comics.

1. A ÁGUA NA ÓTICA BACHELARDIANA

A relação humana com os elementos da matéria — terra, água, ar e fogo — é


marcada pela ambivalência, conforme constata Gaston Bachelard (1989b) em A água e

1 Mestre, UniSC.

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os sonhos. Em uma obra marcada pela análise filosófica desses elementos com a
finalidade de perscrutar suas influências no imaginário, Bachelard (1989b) caracteriza
a água como um elemento marcado pela transitoriedade. O pensador atua no sentido
de efetuar um paralelo entre o humano, ser em constante transformação, e as águas,
que se apresentam igualmente sob o signo da transmutação.
Esse caráter dual é evidenciado nas tradições judaicas e cristãs, em que a água
está associada aos processos de criação de tudo aquilo que existe no mundo. Em sua
dimensão positiva, a água é purificadora, sendo usada no batismo cristão. Ainda assim,
o elemento comporta caráter pernicioso: na Bíblia, os pecadores a ela devem temer, já
que as águas pouparão apenas a vida dos justos, como ocorre no episódio do dilúvio,
em que somente os justos, representados por Noé, sua família e um casal
representante de cada espécie animal, sobrevivem abrigados em uma arca. A água é,
por conseguinte, berço e túmulo, atuando, conforme descrito por Jean Chevalier e
Alain Gheerbrant (1998, p. 15) em seu Dicionário de símbolos, como fonte de vida,
meio de purificação e centro de regenerescência.
Tendo essas simbologias em vista, é relevante analisarmos de que modo esse
elemento comparece no imaginário de uma criança. Na infância, estão em jogo
arquétipos fundamentais que constituem o imaginário de toda uma sociedade. No caso
das imagens constituídas por nossa personagem, o garoto Calvin, é perceptível a
recorrência de imagens aquáticas que remetem à agressividade e à violência. Em meio
a essas imagens, são recorrentes os processos de miniaturização do mundo
(BACHELARD, 1989a), quando o garoto constitui seus espaços e mundos dentro de um
ambiente restrito. Boa parte deles surge na banheira. Agora, cabe ressaltar como se
configuram os devaneios aquáticos do menino.
A água, consoante Bachelard (1989b), conduz o sonhador da matéria a dois
tipos de devaneios de morte — o primeiro apresenta-se sob a égide da
horizontalidade, em que o sujeito desaparece no horizonte aquático. O segundo inclui

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o desaparecimento do ser no abismo das águas, nas suas profundezas. Na primeira


perspectiva, estão inclusos os devaneios do chamado “Complexo de Caronte”,
enquanto na segunda instância agrupam-se os devaneios oriundos do “Complexo de
Ofélia”. Enquanto as almas conduzidas pelo barqueiro da morte expressam sua
angústia diante da fatídica travessia, a morte, representada pela personagem
shakespeariana, não é lamentada, na medida em que é um desejo. Tomada pelo
elemento aquático, a personagem encontra refúgio, uma morada repousante à
semelhança do ventre materno.
Analisando a presença do elemento aquático em Edgar Allan Poe, Bachelard
(1989b) destaca a natureza fúnebre dessa matéria: apresentando-se em contraposição
aos céus, as águas simbolizam uma vida nova para os seres que nela ingressam. Por
isso, em Poe, as águas claras tendem a se obscurecer, assim como as águas ruidosas
silenciam. A água viva está na iminência da morte. É na contemplação de si através das
águas que o sujeito prefigura uma realidade ideal, inexistente na vida terrena. Diante
desse sedutor apelo, a água em Edgar Allan Poe afirma um convite à morte.
Em contraposição às águas sepulcrais estão as águas nutritivas, associadas ao
elemento feminino, à figura materna. Isso porque “para a imaginação material todo o
líquido é uma água” e, no sentido psicanalítico, para o inconsciente, “toda a água é um
leite”, “mais exatamente, toda bebida feliz é um leite materno” (BACHELARD, 1989b, p.
121), daí a frequência das metáforas lácteas, associadas à água.
Ainda em relação à água enquanto símbolo maternal, Bachelard enfatiza que
“dos quatro elementos somente a água é que pode embalar. É ela o elemento
embalador” (1989b, p. 136). Em decorrência disso, declara que “inúmeras referências
literárias provariam facilmente que a barca encantatória, que a barca romântica é, sob
certos aspectos, um berço reconquistado”, já que “a água leva-nos. A água embala-nos.
A água adormece-nos. A água devolve-nos a nossa mãe [sic]” (p. 136). Novamente,
Bachelard assinala a dualidade presente nos elementos da matéria: a água é um

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elemento mediado por pulsões de vida, através do retorno à mãe, e de morte, através
do mergulhar em suas profundezas.
Não é, entretanto, o que vemos nas tiras selecionadas. Dentro do universo
imaginário de Calvin as relações aquáticas estão atreladas ao desejo por liberdade,
alegria e aventuras sempre barulhentas.

2. O BRINCAR NA ÁGUA

Na infância, estão em jogo arquétipos fundamentais, que constituem o


imaginário de toda uma sociedade. No caso das imagens selecionadas para este estudo
e constituídas por nossa personagem, o garoto Calvin, é perceptível a recorrência de
imagens aquáticas remetendo à agressividade e à violência. Em meio a essas imagens,
são também frequentes os processos de miniaturização do mundo, especialmente no
meio aquático, quando o garoto constitui seus espaços e mundos em um ambiente
restrito. Tal conceito será mais bem explicitado adiante. Agora, vejamos como se
configuram os devaneios aquáticos do menino.

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FIGURA 1 — FONTE: WATTERSON (2008b, p. 37).

Na tira dominical acima (Figura 1), uma pista de pouso sobre o mar é
apresentada num quadro maior. Isso implica que o leitor levará mais tempo para ler
esse quadro, o que é corroborado por Nobu Chinen: “quadrinhos maiores e com mais
ação exigem mais tempo de leitura” (2011, p. 42). As ações relatadas no quadro de
abertura são mais longas, porque são narrativas inscritas na imaginação do menino.
Na imagem, aglutinam-se elementos aéreos e aquáticos — o avião de guerra decola de
uma pista sobre o mar. No segundo quadro, Calvin está dentro de uma banheira

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exclamando “Auuuuga! Auuuuga!” (WATTERSON, 2008b, p. 37), e podemos inferir que


a primeira cena é oriunda da sua imaginação. Esse aspecto é sublinhado na cena
seguinte, que mostra o menino dentro da banheira, já observado por Haroldo,
brincando com um barco de papel, o seu “poderoso porta-aviões”.
Gabando-se de que sua embarcação é insubmergível, Calvin é desafiado pelo
tigre, que afirma saber algo que possa a afundar. Após questionar o que seria, Haroldo
exibe um sorriso revelador de um sentimento de superioridade e, na cena posterior, se
enrodilha atirando-se na banheira. O movimento é simulado por uma linha cinética
que segue o contorno de sua silhueta. Em negrito e em caixa alta, grita sua resposta
“Cargas de profundidade!!” (WATTERSON, 2008b, p. 37). O assombro de Calvin
aparece iconicamente em um balão de diálogo pontiagudo, com seu grito destacado
em letras maiúsculas e negrito. A expressão facial e os gestos demonstram seu pavor
— obviamente simulado pela brincadeira — e tentativa de fuga.
Na cena seguinte, a onomatopeia “Pfuum!” representa o som feito pela água
quando o tigre pula na banheira. A água espirra para cima e para os lados e o garoto
aparece voando alto, nu. No penúltimo quadro, o banheiro está em estado deplorável:
a água que antes se encontrava na banheira aparece no chão, onde o garoto agora se
encontra. O tigre está dentro da banheira e parece satisfeito com a bagunça — a linha
de seus lábios configura um sorriso. Calvin deseja encher a banheira de novo para
repetir a traquinagem. Na sequência, o pai de Calvin aparece subindo a escada e
olhando para trás. Ele dialoga com alguém: “Parece que temos uma cachoeira
descendo a escada. Vou lá ver o que o seu filho está fazendo” (WATTERSON, 2008b, p.
37). Nessa fala, podemos inferir que o homem se dirige à mãe de Calvin. No quadro,
vemos a água escorrendo escada abaixo. A resposta da mãe de Calvin pode ser vista
através de um balão de diálogo que sai de uma das laterais do quadro. Indignada, ela
exclama “Meu filho?!? Vem aqui e deixa eu te explicar um negócio...” (p. 37). Sua
contrariedade com a afirmação do marido, que parece colocar a culpa pelas

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malcriações de Calvin somente sobre ela, afirmando ser somente seu filho, é
enfatizada pelo uso de negrito e caixa alta na expressão “Meu filho?!?”. Os pontos de
interrogação e exclamação acentuam o seu descontentamento.
Nessa tira é perceptível a presença de imagens que correspondem aos
elementos aquático, aéreo e ígneo. Os dois últimos elementos aparecem de modo mais
sutil: da pista de pouso aquática avança um avião que defenderá a tropa dos inimigos.
Já o elemento ígneo aparece quando Haroldo afirma ter uma ideia de como atacar o
indestrutível porta-aviões de Calvin: com cargas de profundidade, ou seja, com
bombas equipadas com explosivos como o TNT. A destruição causada pelas bombas
aquáticas é simulada pelo espalhamento das águas no banheiro. Assim, com uma carga
tão explosiva o ambiente não poderia de modo algum permanecer em ordem. Nesse
caso, o ambiente até então apaziguado de uma pista de pouso localizada em ambiente
aquático é quebrado pela aparição de um elemento que causará transtornos e
destruição — o fogo, representado pelas bombas aquáticas. A ambivalência desses
dois elementos materiais causará inicialmente o caos. Contudo, o espírito indomável
do garoto parece ter apreciado a quebra da tranquilidade inicial, uma vez que, do
ponto de vista prático, espalhar a água da banheira significa não tomar banho — um
dos objetivos acalentados pelo garoto. Mas nem sempre a quebra da tranquilidade
inicial será representada por um elemento contrário. Muitas vezes, a simbologia
acerca da água remete novamente ao universo da agressividade, porém suavizada com
a leveza das brincadeiras infantis.
Seguindo para a próxima tira:

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FIGURA 2 — FONTE: WATTERSON (2008b, p. 89).

Nessa tira (Figura 2), vemos um crocodilo dentro da água. O que chama a
atenção é que esse animal reflete e tem consciência sobre a própria condição. Isso
pode ser depreendido de seu pensamento — “O crocodilo boia no sombrio
Amazonas...” (WATTERSON, 2008b, p. 89). Esse aspecto indicia que não se trata de um
animal qualquer. Além disso, as brincadeiras do tipo “faz de conta”, que incluem o
antropomorfismo — atribuir características humanas a animais — são bastante
comuns no universo infantil. Há algo diferente na sua configuração. Há que se salientar
que nos dois primeiros quadros é predominante o uso de tons mais escuros no animal
e na paisagem em seu entorno, configurando o ambiente da região do Amazonas.
No quadro seguinte, a focalização é modificada — não vemos mais a figura do
animal em plano geral, mas apenas sua silhueta no rio de cima. O crocodilo prossegue
refletindo — “Completamente imóvel, parece ser apenas um tronco inofensivo”
(WATTERSON, 2008b, p. 89). Na sequência, o crocodilo aparece de perfil dentro do rio
— é possível visualizar sua parte superior e o resto do corpo, submerso na água. No
quadro de desfecho, o pai de Calvin está junto ao filho em uma piscina. O homem o
observa e, curioso, questiona: “Calvin, o que você está fazendo? Tudo bem?” (p. 89). O
garoto aparece de bruços boiando na água, imóvel. Calvin reflete: “Mais perto... Mais

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perto” (p. 89). Os três primeiros quadros pertencem ao âmbito da imaginação de


Calvin — o garoto imagina ser um animal selvagem pronto a atacar sua presa, o
hipopótamo, que na realidade é seu pai. Ao se imaginar como um animal selvagem
prestes a atacar, Calvin configura imagens relacionadas não às águas tranquilas,
apaziguadoras e felizes, mas às águas que remetem à violência, à hostilidade e à morte.
A tira abaixo (Figura 3) demonstra que as brincadeiras de Calvin envolvendo
combate, desejo por vitória e ação podem ter suas raízes não somente no contato com
a natureza do elemento aquático, claramente ambivalente, mas também em seu hábito
de assistir a filmes na televisão.

FIGURA 3 — FONTE: WATTERSON (2008b, p. 62).

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Nos dois primeiros quadros, o menino assiste a um filme de ação estrangeiro —


as palavras que saem do aparelho nos levam a essa informação. Sua crítica à dublagem
malfeita acentua essa interpretação. Em seguida, somos transportados ao universo
ficcional, recorrente não só na imaginação infantil, mas também em diferentes
manifestações culturais, no qual tempo e espaço são indefinidos. Assim,
acompanhamos a gênese de um monstro que “caminha até as usinas de eletricidade
deixando para trás uma trilha de destruição” (WATTERSON, 2008b, p. 62). Entretanto,
o que vemos é Calvin saindo nu da banheira, deixando pingos de água espalhados pela
casa. Advertido pela mãe, sua “arqui-rival [sic] Megalon” (p. 62), o menino cospe uma
grande quantidade de água em sua direção que, em sua imaginação, é uma “poderosa
bola de fogo” (p. 62). Como o fogo é um elemento interdito para a criança — ainda
mais para uma criança com a personalidade de Calvin — seu manuseio é apenas
acalentado em sua imaginação. Nesse caso, ele utiliza a própria água para fazer de
conta que lida com o elemento a ele proibido.
Um raro momento da série em que predomina, em relação ao elemento aquático,
a esfera mais clara, mais apaziguada e que remete a uma “topofilia dos locais felizes”,
uma vez que para Bachelard, seu intento estava em “examinar [...] imagens bem
simples, imagens do espaço feliz”, cujas investigações “mereceriam o nome de
topofilia” (1989a, p.17), é apresentado na tira subsequente (Figura 4):

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FIGURA 4 — FONTE: WATTERSON (2008b, p. 122).

Na tira dominical acima, Calvin e Haroldo aparecem em ambiente externo,


circundado por árvores e grama. No chão é possível ver pequenas poças d’água.
Enquanto observam a paisagem, a dupla fica encantada com o tamanho de uma das
poças e resolvem encharcar-se alegremente na água. Interessante perceber que a cena
parece suscitar um exagero na proporção de água ali presente, possivelmente,
decorrente da imaginação infantil. Os últimos quadros mostram os dois,
completamente molhados, saindo do local. Calvin fica contrariado porque agora sua
cueca o incomodará. Haroldo responde que é justamente por isso que não usa essas

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coisas. Mesmo assim, ambos concordam que, apesar dessa pequena adversidade, tudo
valeu a pena.
Como vimos anteriormente, a relação de Calvin com o elemento aquático não
ocorre como nas demais histórias, mediada por sua agressividade. O garoto e o tigre
entram em contato com um elemento que propicia alegria, felicidade. Gaston
Bachelard (1989b) alude ao contato humano com águas claras, felizes, que remetem à
abundância e ao acolhimento relacionado à maternidade. O fenomenólogo chega a
aproximar a água ao leite materno, ao elemento que propicia nutrição e possibilita ao
ser a sua sobrevivência.
Na tira diária abaixo (Figura 5), estamos diante de mais uma manifestação do
contato do garoto com o elemento.

FIGURA 5 — FONTE: WATTERSON (2010, p. 97).

Novamente durante o banho, Calvin está imerso nas imagens propiciadas por
seu contato com a água. Enquanto brinca com um navio de brinquedo na banheira,
dirigindo-o para uma estranha “passagem estreita”, algo diferente acontece. Esse
acontecimento só é revelado ao leitor no terceiro quadro, quando vislumbramos
Calvin saindo da banheira em direção à porta. A água que escorre banheira abaixo está
escurecida. Na sequência, um quadro sem imagem de fundo destaca Calvin correndo
com um pote na mão. Por fim, vemos o menino novamente na banheira em meio à
água escurecida, dirigindo um olhar apelativo à mãe, espantada. Ela constata a

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traquinagem do filho, que jogou tinta na banheira para simular, em sua imaginação, o
afundamento de um petroleiro. Ora, nada mais natural no imaginário infantil: é
preciso dar concretude aos acontecimentos imaginários, é necessário construir com
base nos elementos materiais.
No caso da tira subsequente (Figura 6), um processo natural decorrente do
contato excessivo da água é interpretado por Haroldo como a gradual e trágica
transformação de Calvin em um ser monstruoso:

FIGURA 6 — FONTE: WATTERSON (2008b, p. 88).

Na tira acima, Calvin está novamente na banheira e mostra a Haroldo como seus
dedos das mãos e dos pés estão enrugados. O tigre não parece muito animado com o
que vê e fica pensativo. Em seguida, declara em tom apelativo, imitando a manchete de
uma notícia de jornal “Grande uva-passa rosada encontrada na banheira. Garoto
continua desaparecido” (WATTERSON, 2008b, p. 88). Calvin tenta desesperadamente
sair da banheira, apavorado com a constatação. O processo de miniaturização do
mundo aludido por Bachelard (1989a) atinge altos níveis inesperados: afinal, não é só
o mundo que pode ser comportado em um espaço fisicamente restrito, mas o próprio
ser pode se metamorfosear em uma estranha criatura.

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A tira abaixo reitera a natureza hostil do elemento aquático, que empreende não
somente a abundância, mas a destruição. Esse é um dos ângulos mais presentes nas
criações da série, como vimos anteriormente.

FIGURA 7 — FONTE: WATTERSON (2008a, p. 88).

Na tira acima (Figura 7), uma sequência de desenhos em estilo realista assinala a
presença de um destróier em alto-mar. O mar parece agitado, com ondas pontiagudas.
Na sequência, um redemoinho prende o navio e faz a embarcação desaparecer. No
último quadro, contemplamos a revelação — Calvin está na banheira, com seus barcos
de brinquedo. Um balão de diálogo, proveniente de um adulto, o recrimina por ter
aberto o ralo muito rápido — e, provavelmente, não ter tomado o banho com o devido
cuidado.
Como vimos, há uma associação recorrente no que tange ao contato livre de
Calvin com o elemento aquático — sublinhamos livre porque o garoto protesta
veementemente contra os banhos impostos pela mãe, banhos higiênicos e socialmente
recomendáveis, ainda que depois se acalme e devaneie em contato com a água — o
que ocorre quando o menino e o tigre se molham propositalmente em uma poça
d’água: as águas maternais e femininas. Bachelard (1989b) sublinha, acerca das
relações humanas com o elemento, que a natureza é uma projeção da figura materna,
responsável por ser a propulsora dos devaneios filiais. Por isso qualquer líquido,

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mediante a perspectiva da imaginação bachelardiana, é água, assim como toda água é


um leite. Essa é uma possível explicação para o contato prazeroso experimentado por
Calvin e Haroldo — possivelmente uma vivência comum na experiência e imaginário
infantis — apresentado na quarta tira analisada. Trata-se de um contato que retoma o
acolhimento materno: a água, assim como uma mãe, é capaz de embalar-nos. A água
relaxa e a nível simbólico devolve-nos à nossa mãe, por meio dos devaneios da barca.
Entretanto, como vimos nesta análise, ainda que exista esse contato prazeroso
com o elemento aquático, uma matéria feminina por excelência, predominam nas tiras
analisadas os devaneios permeados pela agressividade. A maioria deles está associada
a animais selvagens e ferozes — o crocodilo — ou monstros marítimos inexistentes na
realidade e que são personificados, no âmbito da imaginação, por Calvin. Outros
devaneios são orientados por ambivalências — água/fogo —, representadas pelas
referências a armamentos e veículos marítimos de guerra. Temos, nesse caso,
devaneios articulados através de imagens de águas violentas, que ocultam e impelem o
ser à agressividade. Essa agressividade, no entanto, possui um sentido, consoante
Bachelard: “Todos os devaneios construtivos — e não há algo mais essencialmente
construtor que o devaneio de poder — norteiam-se na esperança de uma adversidade
superada, na visão de um adversário vencido” (BACHELARD, 1989b, p. 166).
São justamente esses devaneios agressivos, que representam um ser que triunfa
com ferocidade e poder sobre seu adversário, que estimulam o sujeito a buscar o
triunfo no mundo concreto. O enfrentamento e a subsequente superação das
adversidades da realidade são antecipados pelas vitórias contra oponentes
imaginários. Esses oponentes, porém, nem sempre serão representados pelo outro.
Muitas vezes, o maior opositor a ser enfrentado reside no próprio sujeito. Isso porque
a maior conquista a ser almejada pelo homem “é a calma conquistada sobre si mesma,
e não a calma natural” (BACHELARD, 1989b, p. 184). É preciso triunfar sobre a própria
natureza e aplacar a fúria que reside em nós. É contra ela que Calvin também batalha.

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3. DEVANEIOS DE COMBATE E DE PRAZER

No germe do devaneio infantil estão, consoante Bachelard (1988), as raízes do


espírito questionador do homem adulto. Assim, a “seriedade científica” da brincadeira
infantil é análoga à seriedade científica dos inventos adultos (PIORSKI, 2016). As
imagens constituídas pelo devaneio ultrapassam saberes prévios e institucionalizados,
estimulando a criação em diversas modalidades. Cada devaneio é regido por no
mínimo um elemento da matéria, podendo existir articulações entre mais elementos,
ou a coexistência de uma natureza ambivalente relacionada à matéria específica que o
origina. Desse modo, é possível afirmar que:

Na infância, o trabalho, o labor imaginário, é criar imagens contínuas ligadas ao


início das coisas, à estrutura do mundo, à grandiosidade dos fenômenos, à força e
ao peso dos acontecimentos, aos elementos primordiais que constituem a vida
(água, fogo, ar, terra) e, principalmente, ligadas ao nascimento e morte de tudo.
Essas são o que chamo de imagens da totalidade. (PIORSKI, 2016, p. 27).

Buscando criar uma versão própria do mundo, a criança entra em contato com
os elementos materiais, e, nas palavras do pesquisador Gandhy Piorski, “ao mesmo
tempo em que experimenta e transfigura o mundo, repercute-o em si mesma”
(PIORSKI, 2016, p. 63). Esse processo está em mútua interação — a criança busca
entender o mundo externo e passa a construir a sua identidade enquanto sujeito.
Em contato com a água, elemento de natureza ambivalente, o menino Calvin
interage entre dois eixos: a felicidade oriunda do contato com as águas tranquilas e
felizes, que remontam ao acolhimento do embalar materno, e a agressividade, por
meio das brincadeiras em que a destruição e a morte imaginária preponderam.
O elemento aquático em Calvin e Haroldo comparece normalmente associado à
destruição, aos ímpetos agressivos de animais e monstros marinhos personificados

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por Calvin. Também há referências ao naufrágio de embarcações e a uma possível — e


risível — metamorfose de Calvin em uva passa, aludida por Haroldo, enfatizando o
gosto infantil pelo trágico.
Ao associar a imaginação aos elementos materiais, elucidados na Grécia antiga
por Empédocles, Bachelard (1988, 1989b) acentua que as imagens são potencializadas
pelo contato com tais elementos. Além disso, enfatiza o caráter ativo do sujeito que
imagina e é impelido a criar: ele deseja manipular a matéria, moldá-la, cortá-la, testar
sua dureza ou moleza, senti-la ou vê-la atuar — no caso de elementos que não
possuem concretude física, mas engendram sensações, como é o caso do ar e da água.
Desse modo, diante da criação,

[u]ma mão ociosa e acariciante que percorre as linhas bem feitas, que inspeciona
um trabalho concluído, pode se encantar com uma geometria fácil. Ela conduz à
filosofia de um filósofo que vê o trabalhador trabalhar. No reino da estética, essa
visualização do trabalho concluído conduz naturalmente à supremacia da
imaginação formal. Ao contrário, a mão trabalhadora e imperiosa aprende a
dinamogenia essencial do real, ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo,
resiste e cede como uma carne amante e rebelde. (BACHELARD, 1989b, p. 14).

A criança que tem a possibilidade de brincar com elementos da natureza,


manipulando-os e testando seus limites, enriquece sua capacidade imaginativa e
instiga seus desejos de criação. Em Calvin e Haroldo, o menino utiliza a imaginação
calcada no elemento aquático para fugir das questões que o atormentam e resolve,
ainda que imaginativamente, todos os “nãos” que recebe do mundo. Enquanto imerso
em seus devaneios, Calvin é feliz, porque para bem devanear, como alerta Bachelard
(1988), a felicidade é imprescindível.
As tiras analisadas apresentam um aspecto peculiar em comum: em sua
totalidade, o espaço restrito funciona como propulsor da imaginação de Calvin. A
banheira é o próprio oceano, onde navios de guerra podem navegar. A piscina é um
caudaloso e obscuro rio amazônico em que um feroz crocodilo se prepara para o

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ataque. A poça simboliza o brincar transgressor: Calvin odeia tomar banho, mas se
molhar por diversão, e não por obrigação imposta por adultos, é muito mais divertido.
Nesse sentido, espaços ordinários ao olhar adulto, que enxergam objetos apenas em
uma ótica utilitarista, adquirem uma função mais potente: promover a criação de
histórias que explicam os fatos — até os mais disparatados e condenados pelos
adultos — oriundos de uma aparente indisciplina do garoto.
Assim, Calvin e Haroldo demonstram que o ser humano, como reitera Bachelard,
não foi destinado a uma vida horizontal: “o homem só é um homem na proporção em
que é um super-homem” (BACHELARD, 1989b, p. 18). O que define ser humano é
justamente a capacidade de criar e habitar mundos novos, transfigurando a realidade
vigente, e ultrapassando as convenções estabelecidas. Quando adultos, é preciso que
abandonemos os apelos da imaginação para vestirmos a máscara da seriedade e da
resignação. Entretanto, ainda resta em nosso ser um germe que nos impele a ser como
a criança (que ainda somos): ansiamos viajar para o espaço sideral, caso as coisas não
estejam em seus lugares — como nunca estão.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.

_____. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989a.

_____. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São
Paulo: Martins Fontes, 1989b.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998.

CHINEN, Nobu. Aprenda & faça arte sequencial: Linguagem HQ: conceitos básicos. São Paulo: Criativo,
2011.

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Curitiba, Vol. 8, nº 14, jan.-jul. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE

PIORSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o brincar. São Paulo: Petrópolis,
2016.

WATTERSON, Bill. Yukon Ho! Trad. André Conti. São Paulo: Conrad, 2008a.

_____. Tem alguma coisa babando embaixo da cama. Prefácio de Pat Oliphant. Trad. André Conti. São
Paulo: Conrad: 2008b.

_____. O ataque dos perturbados monstros da neve, mutantes e assassinos. Trad. Alexandre Boide. São
Paulo: Conrad, 2010.

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