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Ele sentia a água escorrendo por seus pés em percursos bem definidos. A chuva
era inclemente, e cada gota que o atingia era um empurrão na direção do
Primeiro Lar. Alguns caçadores sombrios voltaram, mas não os idiotas. Atrás
de Vol’jin, outro troll se protegia sob uma grande folha de palmeira.
– Eles vão me julgar, isso eu sei. Me testar. Mas não sei exatamente o que isso
quer dizer.
– Dizem por aí que o loa entra na tua cabeça – disse sombriamente Zalazane. –
Ele entra, apronta um fuzuê, vira, desvira e faz tu ter altas visões.
– Ouvi que são uma porrada de testes. Se acharem que eu mereço, vou virar um
caçador sombrio – respondeu Vol’jin. – Se não, nós vamos rodar.
– Mas vão rachar o bico rindo de tu. – Ele pisou na lama, se aproximando do
amigo. Os dois se encararam por um instante e arreganharam enormes sorrisos,
exibindo as presas. Desde a infância na Aldeia Lançanegra, esse sempre foi um
sinal de que Vol’jin e Zalazane estavam prestes a fazer algo especialmente
estúpido.
Mas havia loas lá. Os espíritos antigos daqueles que haviam transcendido a
morte podiam conceder maravilhosas bênçãos e impor terríveis castigos. Um
loa podia conferir o dom vidência a um troll, ou enlouquecê-lo a ponto de ele
arrancar os próprios olhos. O julgamento era rápido, cruel e imprevisível.
Não havia tempo, então Vol’jin soltou um grito de guerra e se atirou com sua
glaive. Carne foi rasgada, e uma trilha de sangue se abriu nas costas do raptor.
Guinchando de dor, a criatura rodopiou e arremessou o troll contra os arbustos
– folhas úmidas e grudentas cobriram a visão de Vol’jin. O chão tremeu,
indicando que o raptor avançava outra vez. Vol’jin cambaleou para trás e para a
direita, e sentiu outra vez as mandíbulas se fecharem a centímetros dele. Assim
que tirou as folhas do rosto e limpou a visão, ele viu o raptor recuar e se
preparar para investir outra vez.
Vol’jin correu para trás sem ousar virar as costas para a criatura. Era possível
ver Zalazane atacando pelo outro lado, mas o raptor varreu o chão com a
cauda, dando uma rasteira no outro troll. A manobra conferiu a Vol’jin apenas
um segundo, mas teria que ser suficiente.
Ele saltou sobre o raptor e agarrou o pescoço largo da besta com seus braços
longos. Por um terrível instante seu rosto ficou logo abaixo da mandíbula feroz,
o resfolegar da criatura agitando seu moicano. Em seguida, Vol’jin se contorceu
e travou as pernas nos ombros do adversário.
– Que parada foi essa, camarada? – Zalazane ofegou. – O maior raptor que já vi!
– Talvez tava possuído por um loa. Será que era o primeiro teste?
– Eu não quero ficar com catinga de sangue neste lugar – respondeu Vol’jin.
Zalazane catou um inseto que caminhava nele mesmo e jogou em Vol’jin. Sem
pestanejar, Vol’jin pegou o inseto e jogou de volta.
– A gente vai ficar com cheiro de sangue de um bicho grande e feio. Com cheiro
de morte e perigo. – Zalazane disse, jogando outro inseto. Ele havia começado a
trabalhar com o Mestre Gadrin, o chefe dos mandingueiros Lançanegra, e soava
confiante.
Vol’jin rebateu o inseto para longe e recolheu um pouco do sangue que ainda
pulsava para fora do raptor morto.
– Isso pode salvar a gente – Zalazane comentou – mas não dos loas.
– Pode crer.
– Pô! – Vol’jin olhou para baixo, sentindo uma dor súbita. Enquanto espalhava
o sangue pelo rosto, Zalazane havia colocado três insetos especialmente
agressivos em seu peito.
– Quando for um caçador sombrio – ele disse se virando para Zalazane – vou
pedir pros loas darem um fim em você.
– Eu vou ter meus próprios poderes até lá, camarada – Zalazane gargalhou.
*****
A noite havia caído. A selva era sempre escura, e Vol’jin só percebeu que era
noite pelo frescor do ar, além das nuvens de insetos que passavam furiosas em
grandes ondas. Mosquitos do tamanho de sua mão procuravam por presas.
Vol’jin e Zalazane sentaram-se no topo de uma pequena colina. Ao lado, um
penhasco que terminava em pedras pontiagudas. Eles tinham caminhado até
que seus pés doessem e sua respiração estivesse arfante e engasgada. O ar
permanecia denso e imóvel.
– Esse teste tá muito bizarro – Zalazane disse baixo, numa voz cautelosa. – A
gente corre de um lado pro outro matando bichos. Cadê os loas?
Vol’jin estava pronto para responder quando sentiu um frio na espinha e sentiu
uma presença. Havia um loa com eles. Ele não podia ver, ou cheirar, mas os
pelos na nuca eriçados diziam que havia alguém lá. Uma olhadela para
Zalazane mostrou que o mesmo horror estava nos olhos do amigo.
E então a dor. Pior que a dor de um osso quebrado, ou de uma facada. Mais
densa e profunda que qualquer dor que Vol’jin já houvesse sentido, ela invadiu
sua mente, impedindo qualquer pensamento.
– O penhasco – ela disse sem emitir som. – As pedras lá embaixo vão acabar
com a dor. Rápido. Mole, mole. – Vol’jin percebeu que era verdade: num piscar
de olhos ele poderia se jogar e acabar com a dor. A outra opção era aguentar.
Depois de uma eternidade, ele deixou o corpo para trás e flutuou, livre de
qualquer sensação. Uma visão apareceu diante de seus olhos e ele se viu mais
velho, mais confiante – ele observava tudo de longe, e ao mesmo tempo estava
dentro de tudo o que via. Um exército de trolls Lançanegra se estendia atrás
dele. Eles caminhavam numa terra estranha, com pouca vegetação e pedras
alaranjadas. Uma grande cidade emergia à distância, cheia de pontas e bordas
afiadas. Tambores de guerra ecoavam e havia uma fumaça densa sobre a
cidade. Criaturas verdes, estranhas e atarracadas, vestindo elaboradas
armaduras, enfileiravam-se. Outras, grandes e peludas, assistiam de lado.
Vol’jin se aproximou do líder das criaturas verdes, cujo semblante era forte e
sábio. Os dois apertaram as mãos como iguais e sorriram. Palavras surgiram na
mente de Vol’jin: Orcs. Orgrimmar. Tauren. Thrall.
– Por quê? – uma voz, que Vol’jin sentiu remexer em suas entranhas,
perguntou. – Por que levar seu povo pra escravidão? É muito mais bacana lutar
sozinho mas com orgulho, e morrer sozinho, mas com orgulho.
Ele sentiu a verdade do que dizia. Ele sempre havia sido o estrategista entre os
amigos, o que pensava na solução dos problemas. Sua determinação para
sobreviver e vencer era forte.
– Eu vou te dar a visão. – disse a voz, se esvaindo. Vol’jin percebeu que ainda
estava na colina, ao lado de Zalazane.
– Dá pra ver os loas! A gente consegue ver! – Zalazane exultava. Os dois trolls
sorriram.
– Eu menti pra tu, Zal. – disse Vol’jin. Ele pôde sentir os olhos do amigo fixos,
apesar de o outro troll ter apenas esperado que ele continuasse. Os dois se
conheciam por todas as suas vidas, e nunca haviam mentido um para o outro. –
Meu pai fez mais do que agir estranho. Ele me falou de uma visão. Disse que eu
tinha que passar pelo julgamento. Disse que não tinha mais tempo.
– Não. Só eu. Eu nunca tinha visto meu velho dele daquele jeito. Ele não dava
moral pra mais nada, só pensava nisso. E tava com pressa, mas quando eu tava
caindo fora... olhei pra ele.
– E aí?
– Não tô pronto. Não posso fazer essa parada sozinho. Mas pensei que juntos...
– Vol’jin ainda ouvia a voz de seu pai. Fraco, Sen’jin teria dito. Fraco e mole. O
líder Lançanegra não pode ser assim. A vida é dura, mesmo aqui na nossa ilha.
– A gente é forte junto. Tá tudo bem, cumpadi. Eu te ajudo quando tu tiver
fraco. – Zalazane abriu um sorriso, tirando o amargor de suas palavras. – Tu
sempre me ajuda. A gente topa essa junto.
Vol’jin abriu a boca para responder, mas congelou ao ver uma luz na selva.
Outro loa, ainda mais primevo e incognoscível, brilhou entre as folhas. A
distância era grande, mas ao ser convocado, Vol’jin se pôs de pé e começou a
caminhar entre as árvores.
– Onde tu vai, mané? – Zalazane gritou, mas Vol’jin prosseguiu. Ele não podia
deixar o loa ir embora. Ao se aproximar da luz, tropeçando nos galhos, o loa
piscou e a luz se apagou. Vol’jin se viu sozinho na escuridão da floresta.
Vendo o brilho com o canto do olho, à sua direita, ele disparou a correr,
arrancando folhas e raízes enquanto perseguia o loa. Quando pôs o último
galho de lado, o espírito desapareceu outra vez.
Ele esperou, ofegante, e percebeu que ficar parado não serviria de nada. O loa
havia deixado ele sozinho na densa escuridão do Primeiro Lar, e ele não estava
disposto a brincar de esconde-esconde. Talvez encontrasse o loa antes de ser
encontrado de novo. Ele se moveu cautelosamente pela vegetação, pisando em
ovos. Vol’jin não fazia ideia de onde estava, mas não se importava. Encontrar o
loa significaria sobreviver. Falhar significaria morrer. O loa era tudo que
importava.
Ele parou numa clareira. Era possível ver parte do céu por entre as copas –
borrões negros contra o domo mais claro da selva. Ele controlou a respiração,
tentando ser silencioso, e esquadrinhou as árvores. Não viu nada.
Gradualmente, como se tivesse sido acordado de um sono profundo, ele sentiu
calor às suas costas.
Vol’jin girou e deu de cara com o loa logo atrás dele, a alguns centímetros de
distância. A esfera luminosa estava tão próxima que era possível ver tentáculos
de luz se movendo em sua superfície, até que o brilho se expandiu numa bolha
ofuscante.
Em uma delas, ele estava sentado num trono de ouro puro. Havia imensos
assados e barris da melhor cerveja da selva por todo lado, assim como trolesas
que dançavam para ele. Ele parecia saudável e feliz. Uma minúscula corrente
dourada ligava seu tornozelo ao trono. Na outra visão ele estava ferido e
ensanguentado, praticamente desfigurado, e cercado por inimigos. A visão não
era clara e mudava constantemente, e ele sempre se via lutando, pelejando. Às
vezes liderava outros Lançanegra, às vezes lutava sozinho. Mas a mensagem
era clara: uma vida de conflitos e contendas, sem descanso, sempre mais uma
carnificina.
Vol’jin gargalhou:
– Essa parada é um teste, grande loa? Esse tá mole. Escolho a liberdade. Vou
dar e levar porrada, talvez nunca encontre a felicidade, mas minha parada é
liberdade.
A caverna esmaeceu e Vol’jin se viu na plateia de uma arena. Ele olhou para
suas mãos e eram as suas próprias, mas mais velhas; havia marcas de cicatrizes
e calos, provenientes dos anos de treinamento e batalha. À sua volta havia
anciões e lutadores da tribo Lançanegra, além de orcs, taurens e outras
criaturas. Todos observavam extasiados o combate entre duas criaturas: um orc
marrom com um poderoso machado e um tauren com uma lança. Ambos
usavam apenas tangas e haviam sido besuntados para a luta. Outra vez
palavras vieram à sua mente: “Garrosh e Caerne. Uivo Sangrento e lança
rúnica”.
A luta dos dois se estendia por toda a arena. O orc sangrava por vários
ferimentos enquanto o tauren permanecia intocado. Com sua nova visão,
Vol’jin também podia ver os loas em toda parte. Eles enxameavam pelo ar e
flutuavam perto das margens da visão. Eles se reuniam e se agitavam. Este
momento certamente traria vastas implicações para o povo de Vol’jin e, talvez,
para toda Azeroth.
No que Vol’jin observou, o orc golpeou com o machado num grande arco, a
arma assoviando pelos sulcos entalhados em sua lateral. O tauren tentou
bloquear o ataque com a lança, mas foi inútil: o machado estilhaçou a haste,
resvalando no tauren.
Ambos os lutadores pararam por um instante. O orc estava quase ferido demais
para se manter de pé, enquanto o tauren mal estava arranhado. Apesar disso,
foi o tauren quem vacilou, as mãos pendendo ao lado do corpo. Um pedaço da
lança pendia de dedos sem vida.
Vol’jin sentiu uma pontada no coração, motivada pelo grave ferimento infligido
no tauren. Ele percebeu que um sentimento de verdadeira tristeza irradiou do
velho Vol’jin e ecoou pelo tempo, a tristeza da perda de um ancião respeitado, e
de um amigo.
O tauren tombou. Antes que ele atingisse o chão, o mundo inteiro ficou mais
lento. Os sentidos de Vol’jin ficaram em alerta e ele sentiu como se o universo
inteiro tivesse tirado seu fôlego um instante antes de um grito.
Veneno. A percepção veio num estalo: o machado estava envenenado, e isso era
errado. Esses povos não eram assim. O tauren atingiu o chão num baque surdo.
Tudo começou a se mover em velocidade normal de novo. A multidão urrava
em satisfação e ultraje.
Tudo esvaneceu e uma nova visão surgiu. Vol’jin viu, e estava nela. Ele se viu à
frente de uma linha de trolls novamente. Eles carregavam seus pertences e
pareciam determinados. Ele ainda estava na estranha paisagem alaranjada.
Olhando por sobre os ombros, ele viu a grande cidade da visão anterior. Ela
estava mais sombria, as pontas ainda mais afiadas. Alguns orcs surgiram sobre
as muralhas, observando a partida dos trolls enquanto ameaça pairava no ar.
Vol’jin sentiu um profundo incômodo sem saber o motivo, até que percebeu o
porquê.
Zalazane não estava lá.
“Cadê o Zalazane?”, Vol’jin pensou. “Preciso do meu amigo mais que nunca.”
Vol’jin sentiu sua alma apreensiva e confusa, coberta por uma raiva gélida, uma
determinação em liderar os Lançanegra pelos dias sombrios que viriam.
– Tu disse pro meu irmão que era melhor sobreviver – disse o loa – mesmo que
significasse ser fraco, pra poder lutar outro dia. Melhor aguentar que morrer
gloriosamente. – A voz arrancou a mente de Vol’jin da visão, que ainda se
agitava em seu peito. Era a voz de alguém que já havia visto mais glórias e
horrores do que Vol’jin jamais saberia. – Aí tu tira os Lançanegra da firmeza de
Orgrimmar arriscando melar uma aliança que representa força. Tu tem certeza?
Vol’jin hesitou. Uma importante pergunta havia sido feito e ele não tinha
informações para responder. Por que faria aquilo? Ele olhou em volta e viu seu
povo com fome e com medo, determinado e excitado, então olhou de volta para
a muralha.
– Os Lançanegra tem que viver, mas isso não vale bulhufas se a alma for pro
beleléu. Os Lançanegra tem que ser verdadeiros. Tu tem que ser verdadeiro –
disse a voz. – Tu ouve os loas agora, e vai ouvir a gente o tempo inteiro. Tu tem
que aprender a dar ouvidos.
Vol’jin abriu os olhos. Ele estava deitado na lama úmida da selva. Vários insetos
construíam casulos de lama sobre seu corpo. Ele ainda estava perto da fogueira,
que agora queimava baixo. Não havia sinal de Zalazane, como na visão. Ele fez
um esforço e se sentou.
– Quem era o líder? Tu disse que não era meu pai, mas tem que ser alguém que
a gente manja.
*****
– Chega. – Ele anunciou sem olhar para Zalazane. – Eu vou dar um rolê. A
gente precisa comer, e eu preciso matar. – Ele sacou a glaive e deslizou para
dentro das sombras. Andar sozinho pela parte mais perigosa da ilha parecia a
coisa certa a fazer.
Sentindo os pelinhos das folhas de uma grande upka roçarem no seu rosto, ele
avançou. Ao ouvir o som novamente, dessa vez à sua esquerda, ele girou para
que a criatura ficasse à sua direita.
Mais uma vez ele ouviu movimento na vegetação à sua esquerda, e percebeu
que a criatura o seguia. Não havia mais nada a fazer: ele investiu.
Raízes e galhos se agarraram em seu corpo quando ele avançou com um grito
gutural. À frente, outro troll se ergueu.
Vol’jin se atracou com ele e os dois caíram. A glaive de Vol’jin deu a volta na
escuridão e parou no pescoço da criatura que o seguia. Todos os trolls na ilha
eram amigos dos Lançanegra, mas Vol’jin havia crescido ouvindo histórias
sobre os perversos Gurubashi, e tudo era possível nesse lugar.
O outro troll olhou pra cima, seu rosto recebendo alguma luz da fogueira
distante. Era Sen’jin, o próprio pai de Vol’jin.
Sen’jin se levantou com um pulo, rodopiou seu cajado e o apontou para o peito
de Vol’jin, que percebeu a intenção de seu pai e se contorceu para desviar, por
pouco, de um golpe que teria esmagado suas costelas e seu coração. Vol’jin se
endireitou, desconfiado e em guarda, mas sem atacar.
Vol’jin aterrissou tentando recuperar o fôlego. Ele rolou arfante até ficar deitado
sobre costas, enquanto Sen’jin deslizava em sua direção girando o cajado mais
uma vez.
Tendo dito isso, ele martelou a mão de apoio de Vol’jin. O golpe fora desferido
com toda a força do corpo do velho troll, logo, a mão de Vol’jin ficou
esmigalhada. Seu dedão, que estava por cima, absorveu todo o impacto. Ossos
se partiram e o dedo se enrolou como um esporão.
Vol’jin não conseguia compreender. Ele rolou para o lado com a mão esquerda
segurando a direita – os ossos a partir do pulso estavam todos quebrados, e o
dedão parecia um balão inflado. Ele estava em choque, e podia sentir a
realidade escapando por entre seus dedos, quando viu os grandes pés descalços
de Sen’jin adentrando a selva.
– Coroa! – ele gritou. Sen’jin não parou, não diminuiu a marcha e nem se virou.
Os arbustos se moveram e ele se fora. – Pai! – Vol’jin caiu de costas apertando
os olhos e segurando seu braço.
Depois de algum tempo ele retomou o controle da mente e olhou para a mão. O
dedão estava destruído. Sua glaive repousava no chão, o metal escovado
manchado de lama e sangue.
A mão se curaria, mas o dedão seria um problema. Vol’jin nunca mais atiraria
uma faca com aquela mão, nunca mais seguraria uma glaive. Nunca mais
caçaria, nunca mais atacaria.
Mas havia uma forma de consertar isso. Ele sabia qual era.
Vol’jin respirou fundo, agarrou a glaive com a mão esquerda e a levantou acima
da cabeça. Ele o faria de olhos abertos. A lâmina baixou num arco longo e
gracioso, penetrando suavemente a pele e os ossos de sua mão direita. A massa
estranha e dolorosa que um dia fora seu dedão voou para a escuridão.
Ele quis gritar para as estrelas, mas mordeu seus lábios até que sangrassem, se
balançando nervosamente. E não emitiu um som. O dedão cresceria novamente,
pois todos os trolls haviam sido abençoados pelos loas com o poder da
regeneração. Dedos das mãos e dos pés cresciam outra vez, mas coisas mais
complexas como órgãos e membros estavam além de suas capacidades. Levaria
algum tempo, mas ele ficaria inteiro de novo.
Um loa brilhou bem perto. Sua luz era vibrante. Mais forte e aparentemente
mais jovem que o loa antigo e desconfiado que ele havia encontrado antes. Ele
era de alguma forma familiar. Ele sentiu que já conhecia aquele espírito.
Ao sentir a presença do loa, Vol’jin se viu numa visão. Ele estava numa ilha,
embrenhado numa selva que, contudo, não era o local em que vivia.
Ele podia se ver e, ao mesmo tempo, habitava o sonho. Ele estava mais velho,
mais sábio, mais durão e infinitamente mais triste. Ele guiava um grupo de
trolls por entre as folhas.
A cena mudou, e ele estava lutando com outro troll. Um mandingueiro de olhos
selvagens adornado com fetiches e um colar feito de corda e garras. Os dois
lutavam até a morte enquanto uma batalha sangrenta se descortinava em volta.
O loa disse:
Não Zalazane. Eles haviam corrido, pescado e lutado por toda a infância. Eles
haviam construído fortes de lama, e juntos mataram a primeira criatura.
Zalazane sabia coisas sobre Vol’jin que ninguém mais sabia. Seus medos e
triunfos. A vez em que ele chorou a morte de um animal de estimação, a vez em
que, criança, ele bateu num valentão até nocauteá-lo – Zalazane estivera sempre
lá.
– Eu dou cabo de todo mundo que ameaçar o futuro dos Lançanegra – disse. –
Tô nem aí pra quem é. A tribo é o que importa. O futuro é tudo.
– Tu é esperto, moleque. – O loa disse com uma familiaridade que Vol’jin não
compreendia. – Tu não cortou o dedão pra salvar a vida, tu cortou pra salvar
teu futuro. Os Lançanegra tem que ser sinistrões. Tu tem que ser verdadeiro.
Aguentar. Nunca é moleza, mas é o jeito.
*****
– Aí não sei, mermão. O vodu é tenso com essas paradas. Talvez os dois fiquem
amigos. Talvez os dois sejam chefões maneiros. Talvez o segundo vire o vilão.
– Zalazane, a gente não vai deixar isso rolar. A gente é irmão, e a gente aprende
junto. Eu e tu, mermão, a gente tem que aguentar, ser verdadeiro e ser forte.
*****
Todos os sentidos de Vol’jin diziam que algo havia mudado. Alguma parte
fundamental do ir e vir da vida na ilha tinha sido alterado para sempre.
– Acho que nossa aldeia foi atacada – disse Vol’jin a Zalazane, tentando decifrar
as mensagens dos agitados loas.
Zalazane sacudiu a cabeça concordando. Ele tinha seus próprios métodos agora,
e suas diferentes perspectivas criaram um abismo entre eles.
Os dois avançaram com as armas em punho, dando cada passo com cautela.
Eles saíram por entre as folhas e viram a aldeia Lançanegra: cabanas haviam
sido derrubadas, destroços se espalhavam por todos os lados.
Seu coração começou a bater mais rápido. Seu povo não tinha sido conquistado,
mas no pouco tempo que ele havia ficado fora ele havia mudado.
Vol’jin e Zalazane pararam no meio da aldeia, duas figuras imóveis num
formigueiro a todo vapor. Alguns trolls apressados lançaram olhares
cautelosos, confusos. Os loas começaram a se agitar ruidosamente. Apenas
Vol’jin conseguia ouvi-los, mas ele sabia que havia algo prestes a acontecer. Ele
observou as cercanias e viu um troll se aproximar. Vol’jin e Zalazane se viraram
para o velho mandingueiro-chefe, Gadrin, enquanto ele se aproximava a passos
largos.
– Camaradas – ele disse – onde que vocês tavam? Pensei que vocês tinham
rodado!
– Que papo é esse, Mestre? – Zalazane questionou. – A gente ficou uma semana
na selva.
– A gente vai atrás dos orcs, atravessar o mar. – prosseguiu Gadrin. – A bruxa
do mar é muito forte, a gente não pode ficar aqui. Teu pai mandou a gente cair
fora. Mas ainda leva tempo, a gente tem que se preparar.
Vol’jin sorriu de volta para o amigo. A coisa mais inteligente seria mandar
Zalazane na frente para preparar o terreno. Zalazane era seu amigo de
confiança, e faria bem o serviço. Mas algo em Vol’jin era contra a ideia. Ele não
sabia o porquê, mas sentia que Zalazane deveria ficar por perto, a partir de
agora.
Eles se ajudariam. Juntos eles podiam fazer qualquer coisa. Eles seriam
verdadeiros e fortes. Eles aguentariam.