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Essa é uma história de tragédias.

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Parte 1

Levann

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O que aconteceria se um ser de pura luz tivesse contato
direto com as trevas?
Alguns podem dizer que pelo fato de serem de “pura luz”
as trevas sequer surtiriam efeito em seu corpo. Porém, é
justamente o contrário. Seres de pura luz não têm uma defesa
natural contra as trevas, seus corpos não reconhecem a
matéria escura, não tendo, assim, proteção prévia contra tal. O
que isto significa? Caos. É como um vírus que se espalha e
toma conta do hospedeiro, levando-o à insânia.
As trevas estão presentes neste universo desde antes
mesmo de sua criação. Nem mesmo Hakar, o Deus da vida,
presenciou a gênese da matéria escura. Todos sabem que ela
existe, porém nunca foi vista ou tocada.
Até hoje.

Jaya sempre fora um lugar agradavelmente frio, nada que


fizesse com que seus habitantes andassem com casacos
grossos, mas o suficiente para, ao mínimo farfalhar de folhas
pelo vento, os pelos de todo o corpo se eriçavam. Já no alto

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do castelo da família Klaus, os ventos sempre sopravam mais
forte, levando embora folhas mortas do jardim, pétalas de
flores, até mesmo cartas de amor eram carregadas pelo vento
para fora do castelo, soltas na esperança de que um dia
chegassem aos entes queridos dos trabalhadores daquele
lugar, fadados a viver e servir para sempre um rei tirano e sua
família.
Levann Klaus era apaixonado pelo vento e pelo frio de
Jaya. Seu porto seguro era o telhado acima de seu quarto,
onde sempre subia com a ajuda de vinhas firmemente
agarradas às paredes externas do castelo. De cima das telhas
douradas o rapaz podia sentir o vento balançar seus cabelos
loiros, sentindo-se livre de sua vida teatral ao lado de sua
família.
Inclinando o corpo para frente para que não caísse, o
garoto escalou as telhas brilhantes até o ponto mais alto do
telhado de seu quarto, que não era tão alto quanto das outras
torres do castelo, mas para Levann, sempre fora o suficiente
para que se sentisse livre.
Ele encheu os pulmões e expirou lentamente, enquanto
admirava a vista das montanhas de diamante ao longe. Seus
cumes cobertos de diamante puro brilhavam intensamente,
refletindo a pouca luz alaranjada que sobrava ao fim do
crepúsculo, jorrando luz aos cantos mais escuros de Jaya,
onde o Sol por si só jamais alcançaria. Levann sentou-se
sobre as telhas onduladas, abraçando os joelhos pálidos
enquanto o vento soprava forte em seu rosto, cada vez mais

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frio. A noite se aproximava, e com ela, a maior insegurança
do rapaz ficaria evidente: Ele mesmo.
Buscando algo em seus bolsos, Levann encontrou um
estilete, pequeno, fino e azul. O rapaz segurou a ferramenta
fechada entre seus dedos até que toda a luz do Sol fosse
embora, as montanhas de diamante ao longe agora sequer
podiam ser vistas, estavam sem vida. A luz sempre fora tudo
no reino de Jaya, e a ausência dela amedrontava a todos.
Então por que Levann sentia-se amaldiçoado por sempre tê-la
por perto?
Ele abriu o estilete e estendeu a mão esquerda ao nada.
Segurando a respiração, cortou a palma de sua mão de forma
profunda e rápida, como se tirasse um band-aid. Agonizando
em dor, Levann guardou de volta em seu bolso o estilete, cuja
ponta da lâmina agora brilhava assim como sua mão. Por
entre seus dedos não escorria sangue ou algum líquido, mas
sim uma luz dourada irradiava da ferida, como se tivesse se
libertado das veias do rapaz.
Após um breve momento de dor e agonia, a ferida não
mais ardia, a luz era quente e reconfortante. Ela parecia
dançar na palma da mão de Levann, querendo voltar para
dentro de seu corpo. O garoto, por sua vez, estendeu a outra
mão sobre a ferida, e, como se fosse um líquido pastoso, a luz
dourada moveu-se, expandindo e lentamente tomando a
forma de algo achatado e afiado: Uma adaga.
Empunhando-a, o rapaz, trêmulo, apontou a lâmina para
seu coração, tentando manter seu pensamento longe de sua
família ou de seus conhecidos. Ele sabia que se pensasse

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demais desistiria da ideia. Após algumas semanas ponderando
sobre isso, Levann decidiu ceifar a própria vida, para impedir
que as trevas o consumissem e causassem problemas para
aqueles que ele queria proteger, como sua irmã mais nova e
sua mãe.
Seu pai, o rei, apesar de um homem difícil, nunca fora
um pai ou marido ruim. Pelo contrário, sempre foi muito
carinhoso e atencioso com sua família, colocando sua
segurança e bem-estar acima de tudo e todos, mas a que
custo? Levann nunca concordou com as medidas adotadas por
seu pai para o controle de Jaya, e, por ser o próximo na linha
de sucessão, decidiu estudar e ir a fundo na situação da
periferia para mudar aquela situação. Tudo caminhava bem
para que Levann Klaus fosse aquele que mudaria toda a
história de um reino.
Então, por que acabar com tudo isso agora?
Há alguns meses, Levann acordou suando frio após ter
um pesadelo. Ele corria por entre os pinheiros de uma floresta
em um local desconhecido, o céu era vermelho como sangue,
mas a neve caía pálida e gélida sobre sua pele brilhante. A
única luz do local vinha dos cortes por todo seu corpo, uns
profundos, outros simples arranhões causados pelas árvores e
arbustos espinhosos pelos quais o príncipe de Jaya esbarrava
pelo caminho, enquanto fugia de algo que não podia ver, mas
que sabia que estava lá.
Levann empunhava uma espada dourada em sua mão
direita, que começava a parecer cada vez mais pesada,
impedindo que ele corresse por muito mais tempo. Quando se

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deu conta, a lâmina já estava sendo arrastada pela terra úmida
por entre a neve fofa. Ele sabia que não conseguiria correr por
muito mais tempo, seus pulmões pareciam queimar e suas
pernas pesavam como chumbo. O que quer que fosse o que o
perseguia, sem dúvidas o alcançaria daquela forma.
O rapaz arrastava-se pelo chão, ofegante. Seus cortes
ardiam e irradiavam, emanando uma luz frágil e quase
imperceptível. Não havia sons ambientes, apenas o vazio, o
silêncio. Levann sequer podia ouvir o som de sua respiração,
ou de seu coração batendo. O medo invadia sua mente cada
vez mais, o príncipe de Jaya recusava-se a olhar para trás,
temendo aquilo que respirava sob sua nuca, eriçando-lhe os
pelos de todo o corpo. Seria um monstro? Uma pessoa? Ele
não saberia ao menos que encarasse aquilo de frente.
E assim o fez.
Quando Levann virou de costas, tudo que ele encontrou
foi um rastro vermelho escuro e pegajoso, sangue. Ao olhar
para suas mãos, as mesmas estavam encharcadas com o
líquido vermelho, que claramente não era seu.
Por entre os pinheiros nevados podia-se ver uma figura
ao longe. Uma mulher loira de vestes brancas manchadas de
vermelho. Seus cabelos ondulados cobriam-lhe o rosto de
porcelana, de forma que Levann não conseguia identificá-la.
A espada que trazia consigo havia sumido, e seus dedos aos
poucos escureciam e retorciam-se, transformando-se em
garras longas, negras e afiadas. O rapaz, assustado, ajoelhou-
se no chão próximo ao rastro de sangue em sua frente, onde
pôde ver, pelo reflexo do líquido levemente brilhante, seu...

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rosto? Não. Aquilo não podia ser ele. A pele escura como
carvão, rachaduras na pele brilhantes como a luz de seu
sangue, os olhos completamente negros e o mais curioso. O
reflexo sorria para Levann. O rapaz loiro levou as mãos ao
próprio rosto, e assim fez seu reflexo, que não parava de
sorrir de forma psicótica.
Ele tentou fugir, levantar-se do chão e correr. Mas ao
primeiro movimento, algo saiu de dentro daquele rastro de
sangue, agarrando-se ao pescoço do garoto e puxando-o para
dentro.
Desde aquele pesadelo, Levann Klaus nunca mais fora o
mesmo. Diversas vezes sentia seu coração disparar,
aumentando sua frequência respiratória. Seus músculos se
contraíam involuntariamente, o que fazia Levann agonizar no
chão pela dor e descontrole. Por vezes ficava um pouco
agressivo, com animais, plantas e até mesmo ao falar com
seus entes queridos e com seu fiel amigo, Blackjack. Nunca
fora proposital, por isso sempre pedia desculpas quando
voltava a si, sem entender o que havia acontecido.
Esses episódios foram tornando-se mais frequentes e
agressivos, assim como aquele mesmo pesadelo que sempre
se repetia. Levann, preocupado com que rumo aquela situação
tomaria, após semanas ponderando sobre, decidiu tomar sua
própria vida, para poupar a si mesmo e a outros próximos a
ele. Jamais poderia se perdoar caso machucasse a pequena
Elise, sua irmã mais nova.
Tendo em mente todas as lembranças de seus episódios
de descontrole físico e emocional, Levann segurou com força

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a adaga dourada em suas mãos, apontada para seu coração.
De olhos fechados e com a respiração desigual e pesada, ele
encheu-se de coragem e com um movimento levou a lâmina
em direção ao seu peito.
Mas algo o segurou. Seus pulsos estavam presos entre
dois cascos duros e grossos, que pareciam esforçar-se para
não o ferir. Ao levantar os olhos, Levann encontrou
Blackjack, uma enorme águia negra, segurando seus pulsos
com o bico. Os olhos pequenos e escuros da ave pareciam
marejados de lágrimas ao encarar seu melhor e único amigo,
como se implorasse para que ele soltasse a lâmina.
— Blackjack... não. Não faz isso ser mais difícil. —
Disse o loiro, com os olhos marejados ao encarar a águia
negra que era muito maior do que ele, a qual pressionou mais
forte o bico em seus pulsos.
Levann encheu os pulmões de ar, fechando os olhos por
um momento, antes de expirar de forma emocionalmente
dolorosa. Cedendo ao pedido de seu melhor amigo. Afinal o
que seria de Blackjack sem ele? Os dois eram amigos desde
que a ave nasceu, e, sendo diferente de todas as outras, por
sua penugem negra, foi abandonado por sua família. Quando
encontrou a ave o príncipe identificou-se e a acolheu como
sua, assim nunca seriam diferentes sozinhos.
— Você venceu, de novo. Não vou fazer nada, pode me
soltar.
Blackjack, desconfiado, segurou ainda mais forte nos
pulsos do rapaz, que gemeu de dor, brigando com a ave.

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— Ei, ei, ei! Já está machucando! O que mais você quer
para acreditar em mim?
A ave desceu o olhar para as mãos do rapaz, as quais
ainda seguravam a adaga brilhante feita do sangue do
príncipe.
— Ah, isso? Entendo... — Levann abriu a mão que
segurava a arma, fazendo-a cair no chão e desaparecer como
um feixe de luz comum, logo esvaindo-se na escuridão da
noite.
Após isso, Blackjack enfim soltou seu amigo, que tinha a
pele na região dos pulsos brilhando suavemente, pela pressão
que o bico da ave havia causado. Levann massageou os
pulsos um tanto doloridos, encarando a águia com olhos
gentis e um sorriso de canto.
— Obrigado, BJ. Eu entendo o que você sente. — O
rapaz levantou-se das telhas douradas, tirou a poeira da roupa
e aproximou-se de Blackjack, levando as mãos, já curadas, às
penas negras do pássaro, o acariciando na região do pescoço.
— Eu não... queria te deixar triste.
Blackjack, que aproveitava das carícias, ao ouvir aquela
última frase, levantou o pescoço rapidamente e acertou a
cabeça de Levann com o bico, como se brigasse com ele.
— Ei! Fala sério! De novo? — O loiro massageou a
cabeça, ainda acariciando o pássaro com a mão livre.
Com um peso enorme no coração, Levann abraçou
Blackjack, enfiando-se por entre as penas quentes e macias do

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pássaro. O vento estava especialmente forte aquela noite,
balançando os cabelos do príncipe de Jaya e suas vestes
brancas e douradas, as cores do castelo. Os dois amigos se
entreolharam. Sabiam que logo mais os gritos de Sarah
seriam ouvidos por todo o castelo, pois ela sempre ficou
muito brava com as fugas de Levann. Então decidiram voltar
para dentro, deixando para trás mais do que apenas a
lembrança do que acontecera ali.

Os corredores do castelo da família Klaus sempre foram


muito amplos e iluminados, com abóbadas duradas pelo teto e
vigas de gesso com detalhes em relevo. Diversos lustres de
cristal desciam do teto e tinham em seu interior esferas de luz
condensada, como pequenos sóis.
Enquanto caminhavam pelo castelo, Levann e sua irmã
mais nova, Elise, conversavam sobre plantas, pelas quais
Elise estava se interessando muito ultimamente. Enquanto ela
tentava, de forma enrolada, explicar os usos de uma flor de
magnólia, Levann esforçava-se para entender o que a garota
de nove anos queria dizer com “Ninguém vê você, parece um
superpoder”.
Os irmãos Klaus sempre foram muito próximos. Por ser
uma de suas poucas companhias, Levann protegia Elise e
brincava com ela, além de sempre ouvir atentamente tudo que
a menina tinha para falar, mesmo que não fizesse sentido
algum.

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Enquanto o mais velho estudava para tornar-se o melhor
rei que Jaya iria presenciar, Elise aproveitava muito bem sua
infância, correndo e brincando pelo castelo, as vezes
conversando com os funcionários que encontrava por aí,
levando alegria a todos com seu sorriso doce. A pequena era
apaixonada pelo jardim da família, por isso passava horas
observando as dezenas de flores diferentes que haviam no
local, além de perguntar incessantemente sobre plantas para
Felix, o jardineiro rabugento e mal-humorado que
frequentemente ignorava Elise, mas todos acreditavam que
bem no fundo... bem no fundo mesmo, ele gostava de ter a
companhia dela.
Todos no castelo eram encantados pela pequena Elise,
com seus cabelos dourados e, apesar de azuis, seus olhos
eram gentis e curiosos. Ela corria pelo castelo e sempre dava
bom dia a todos que visse. Todos mesmo. Levann já havia
presenciado ela dando bom dia para um pássaro aleatório que
havia pousado no telhado. Ela era realmente um doce de
criança.
Era.
Durante todo o caminho até a sala de jantar, Levann só
conseguia pensar em como evitar que tivesse algum “ataque
de pânico” novamente. Todas as vezes em que isso lhe
ocorreu ele perdia completamente o controle, e não queria, de
forma alguma, que sua irmã o visse naquele estado. Tinha
medo de machucar alguém, ironicamente isso incluía a si
próprio.
— Estão atrasados.

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A doce, porém firme, voz de Sarah Klaus preencheu o
ambiente de uma só vez, paralisando os dois irmãos antes que
chegassem até seus assentos na grandiosa mesa de jantar do
castelo. Os três trocaram olhares perante o silêncio de um
momento que pareceu durar mais do que somente alguns
segundos.
— Sabem que dia é hoje? — Perguntou a rainha,
cruzando os braços e tamborilando os dedos de forma
impaciente, como se esperasse uma justificativa dos dois
fugitivos à sua frente.
— Aniversário do papai. Sabemos disso. —
Responderam em uníssono, como se tivessem até mesmo
ensaiado isso. — Mas... é que... a gente... — Sarah levantou
uma sobrancelha e apontou para a enorme porta à sua
esquerda, sinalizando para que as crianças entrassem logo. E
assim o fizeram, derrotados. — Tudo bem...
Alguns passos à frente, Levann parou e olhou por cima
de seu ombro para sua mãe com um olhar triste, a qual
suspirou e disse:
— Eu sei, você precisa conversar. E não, eu não vou
invadir o seu espaço Levy, eu só vi na sua cara de cansado. Se
você quiser conversar depois do jantar eu vou estar aqui, tudo
bem?
Sarah era o que o povo de Jaya chamava de Sol’Din, ela
podia entrar na mente das pessoas, ler seus pensamentos,
controla-los e alterar sua visão da realidade. Costumava fazer
isso com pessoas comuns, mas sempre se recusou a fazer isso

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com sua família, sempre prezou pelo relacionamento saudável
com seus filhos e seu marido, Dapher. E agora não seria
diferente, mesmo vendo as cicatrizes pelo corpo de seu filho.
Levann abraçou sua mãe em agradecimento, segurando
as lágrimas que teimavam em escorrer de seus olhos quando
ela deu-lhe um beijo na testa.

Sentados à mesa estavam mais do que apenas a família


Klaus. Outros nobres de Jaya também haviam vindo prestigiar
Dapher em seu aniversário. Homens limpos, arrumados e
fortes, acompanhados de suas mulheres esbeltas e famílias
aparentemente perfeitas. Todos conversavam e riam à mesa,
bebendo os melhores vinhos da nação e comendo a melhor
comida que poderia ser preparada. A imagem perfeita de
pessoas felizes, amigáveis e em paz.
Por fora.
Aqueles homens não estavam ali por apreciarem a
amizade de Dapher, mas sim por sentirem que estavam em
dívida com o rei, que os levou a tal condição de nobreza.
Antes de Dapher Klaus assumir o trono de Jaya, a nação era
comandada pelo pai de Sarah, agora morto pelas mãos do
próprio genro.
O atual rei reivindicou o trono através de sua própria
força, mas nunca foi seu real desejo, tudo o que Dapher quis
ao duelar com Julian era o direito de pedir a mão de Sarah em

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casamento, mas como poderia ele, um mero plebeu, casar
com uma princesa? Mesmo que os dois já estivessem
apaixonados, o antigo rei jamais permitiria que um homem
sujo e pobre desposasse sua única filha.
Após cortar a garganta de Julian em um duelo que apenas
seria definido pela morte, o novo rei de Jaya assumiu o trono
de uma nação diversificada. Que mantinha relações políticas e
comerciais abertas com um reino do outro lado do oceano,
chamado Bloodstate. Pessoas vinham do outro lado do mundo
buscar melhores oportunidades em Jaya pela ótima condição
de vida local. Dapher e Sarah viviam agora em seu próprio
reino próspero e feliz.
Mas o poder sempre corrompe o homem.
Com o passar do tempo, o rei foi mudando seu olhar
sobre os imigrantes de Bloodstate, que ocupavam diversos
cargos e comandavam mais comércios do que o povo de Jaya.
Isso fez com que Dapher decidisse fechar as “fronteiras” entre
as duas nações, agora separadas por uma barreira mágica sob
o oceano.
O povo de olhos vermelhos e púrpuras, vindos do outro
lado do oceano, recusaram-se a deixar sua vida em Jaya e
voltar para debaixo das nuvens de sangue de sua terra natal.
Com isso, Dapher ordenou a seu exército que todos de
Bloodstate que tentassem permanecer em sua nação seriam
mortos. Assim ocorreram diversas execuções por debaixo dos
panos, até que restasse apenas o verdadeiro povo de Jaya,
com olhos azuis e verdes.

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A segregação do reinado de Klaus não parou por aí. No
reino de Jaya as pessoas sempre foram divididas socialmente
pela cor de seus olhos, azuis ou verdes, pois acreditavam que
os deuses não os fizeram daquela forma sem um propósito
implícito. Tolos.
Com isso, todos os grandes líderes políticos tentavam
impor suas crenças sob o povo de Jaya, forçando-os a viver
em uma sociedade dividida. E isso não seria diferente no
reinado de Dapher, um homem maltratado pelo antigo
reinado, fadado a viver entre o lixo dos nobres, lutando todos
os dias para sobreviver. Desde sua infância ele ouvira de seus
familiares e das pessoas à sua volta que a nobreza de
esmeralda da nação de Jaya era merecedora dos luxos por
terem sido escolhidos pelos deuses. Obviamente ele nunca
acatou a ideia.
Concidentemente o destino o levou a conhecer Sarah, que
vagava pelos subúrbios e cantos mais escuros da periferia,
longe de toda a luz do Sol e do castelo para fugir de sua vida
pacata e teatral. Ela o reconheceu como um homem bondoso
depois que ele a defendeu de bêbados agressivos que já
estavam cansados de suas próprias vidas, não se importando
em agredir qualquer pessoa estranha que vissem pela rua que
os olhassem diretamente.
Dapher sempre pedia que ela não voltasse àquele lugar,
que mantivesse sua vida no castelo e na nobreza para sempre
à luz do Sol. Mas ela continuava fugindo, as vezes até mesmo
para vê-lo surrar pessoas que não pagavam seus devedores.

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Dapher era um cobrador antes de ser rei, violência era sua
única saída para tudo, e sempre seria assim.
Certo dia, em uma de suas fugas, Sarah o encontrou a
beira da morte sob a chuva fria, por entre as latas de lixo. Os
cabelos castanhos médios embaraçados, molhados e a barba
ensanguentada assim como seu rosto e seu abdômen. Ela o
segurou nos braços, retirou o capuz que usava para se
esconder de todos e fitou os olhos azuis profundos do rapaz.
Que disse enquanto engasgava com seu próprio sangue “Não
se preocupe loira, eu posso me curar. Mas eu não quero. A
vida já foi cruel o suficiente com todos daqui de baixo, ficarei
feliz de morrer nos braços da única que não mandou eu me
foder”.
Aquela foi a primeira e única vez que Sarah usou seus
poderes em alguém por quem ela zelava. Ela fechou os olhos
e entrou na mente de Dapher, acalmando seu sistema nervoso
o suficiente para que ele dormisse. E assim, o levou o mais
rápido que pôde para um dos Curandeiros do castelo, que
trataram Dapher Klaus como se fossem um deles, antes que
vissem a cor de seus olhos. Depois que descobriram sua
identidade, chutaram-no para fora do castelo.
Isso nutriu não apenas o ódio de um homem, mas foi o
pontapé inicial para um relacionamento que traria a ruína ao
reino de Jaya.
Quando Dapher Klaus lutou contra o rei Julian pela mão
de Sarah, não haviam interesses políticos envolvidos, mas ele
viu uma oportunidade de provar o quanto os nobres esmeralda
estavam errados. Afinal, seu rei fora morto por um simples

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“plebeu de olhos azuis”. Com o passar dos anos, Klaus fora
sendo consumido mais ainda pela ideia de que a violência
resolvia tudo, acreditava no poder pela força, pois, dessa
forma, ele havia conquistado o trono de Jaya e seu lugar ao
Sol, literalmente.
Usando de seu ótimo discurso e de seus próprios punhos
para tal, implantou a todos sua ideologia tirana, levando
assim, o povo de olhos verdes para a escuridão dos subúrbios
e favelas do reino. Enquanto o povo de olhos azuis pôde,
enfim, sentir a luz e o calor sob suas peles pálidas pela
primeira vez.
E, por isso, pela gratidão que tinham pelo rei, que aquelas
pessoas agora jantavam à mesma mesa que ele, rindo, se
divertindo e empanturrando-se de comida enquanto a periferia
de olhos verdes apodrecia nos esgotos da cidade.
Durante todo o jantar, os irmãos Klaus se entreolhavam
calados enquanto os adultos se embebedavam do outro lado
da mesa. Levann brincava com uma ervilha de seu jantar, o
prato estava intocado, ele sequer teria descido para jantar se
não fosse aniversário de seu pai. Já a pequena Elise havia
comido e repetido um prato enorme só com purê de batata e
frango desfiado. Após terminar sua refeição, Elise jogou uma
ervilha em seu irmão mais velho para que chamasse sua
atenção.
O príncipe, algumas ervilhadas depois, levantou o olhar
com as sobrancelhas cerradas, arregalou os olhos em tom de
ameaça. Elise sorriu e jogou mais uma ervilha, que ficou
presa nos cabelos loiros de Levann. Este desenhou com os

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lábios a frase “o que foi?”. A pequena apontou para a porta,
após dar uma olhadinha para o lado a fim de verificar os
adultos.
Os dois, lenta e discretamente, deixaram a sala de jantar e
seguiram até o jardim do castelo, para onde Elise sempre ia
quando queria se divertir.
Ao entrarem no jardim, o imenso e escuro céu azul de
Jaya se estendia pelo infinito. Aos pés dos irmãos, pedras
brancas seguiam por um caminho sinuoso, porém amplo,
dando acesso a todos os cantos do jardim, em especial a uma
capela dourada no centro, que mais parecia uma gaiola de
passarinho sem portas. Lá dentro, mais um lustre de cristal
descia do teto em cima de um enorme e brilhante piano preto.
Em volta da capela haviam flores de todos os tipos e cores,
além de algumas ervas medicinais e mágicas, as quais Elise
conhecia quase todas.
A lua prateada pairava acima, tão pálida e brilhante
quanto Levann. O céu estrelado sempre fora dono dos olhares
do príncipe de Jaya, mas não aquela noite. Algo prendia mais
a sua atenção.
— Levy, olha! — Elise estendeu as mãos pequenas e
unidas ao nada e, aos poucos, a luz que antes pertencia ao
lustre de cristal da capela agora pareceu mover-se até as mãos
da pequena, como um líquido pastoso, dourado e muito
brilhante. Aquilo foi tomando forma física, no começo difícil
de distinguir, mas, com muito esforço da pequena Elise, a luz
transformou-se em uma coroa dourada um tanto pequena e
fina.

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Levann, boquiaberto, ajoelhou-se em frente à sua
irmãzinha.
— Quando foi que você...? Lise... Isso é incrível! — Ele
segurou o rosto da pequena Elise, pressionando as bochechas
macias da criança.
Elise murmurou algumas palavras incompreensíveis por
ter suas bochechas apertadas, o que fez Levann soltá-la de
imediato. Ela massageou o próprio rosto, como se tivesse
ficado dormente com apenas alguns segundos de aperto, mas
a verdade é que ela só não gostava que apertassem suas
bochechas mesmo.
— O Felix quem me ensinou! Por isso passamos tanto
tempo juntos. — Disse a pequena com um sorriso de orelha a
orelha. — Primeiro ele tentou ver se eu era soldadinho como
a mamãe, mas não deu certo, não consegui ver o que ele
estava pensando.
— Sol’Din. — Corrigiu Levann.
— É, isso mesmo!
— E faz quanto tempo que você descobriu isso?
— Faz um bom tempo — Faziam apenas alguns dias.
O príncipe então ajoelhou e abaixou a cabeça para que sua
irmã pusesse a coroa sobre seus cabelos, e assim ela o fez,
com a postura perfeitamente ereta em uma tentativa de ser
séria.

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— Eu o declaro rei Ívan — Ela errou o nome dele, mas
Levann apenas ignorou e se levantou, abraçando sua irmã
bem forte e tirando-a do chão enquanto assoprava a bochecha
dela para fazer barulhos engraçados.
Após alguns momentos de cócegas, Elise disse com
convicção:
— Você vai ser o melhor rei de todos!
Uma breve tosse forçada fez com que os irmãos olhassem
para trás, para a porta de onde vieram. Uma figura alta e
esbelta, cabelos loiros ondulados, pele de porcelana e um belo
vestido branco, os olhos verdes brilhavam tanto quanto
esmeraldas recém polidas. Sarah sorria de canto para seus
filhos que tinham agora uma expressão de medo em seus
rostos, medo do que poderia acontecer por terem sido pegos
fugindo do jantar de aniversário de seu pai.
Sarah caminhou lentamente sobre as pedras brancas do
jardim, admirando o céu estrelado daquela noite. Ela não
parecia com raiva ou magoada pelos irmãos terem fugido, sua
expressão era tão suave e tranquila quanto a melodia do piano
de um Myr’Lyr.
— Eu vi vocês saindo, aquele jantar estava realmente
muito chato. Então pensei em vir atrás de vocês pra gente se
divertir um pouco. O que acham de chamar a Coriane e o
Blackjack?
Os irmãos gritaram de alegria, pulando e abraçando a
mãe, que raramente os levava para dar uma volta com as duas
águias.

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Sarah assoviou por entre seus dedos, e logo um vulto
branco sobrevoou o jardim do castelo, dando voltas até que
começasse a pousar, batendo as asas gigantes que faziam
ventos tão fortes que balançaram todas as plantas do jardim.
Quando enfim tocou as garras no chão, Coriane, a majestosa
águia de Sarah, abaixou a cabeça para a rainha, como se
fizesse uma reverência. Esta aproximou-se da ave e a
acariciou no bico por um breve momento.
— Onde está Blackjack? — Perguntou a mulher.
Coriane levantou a cabeça, olhando para o telhado da
capela no centro do jardim, onde Blackjack havia pousado,
com as asas abertas como se quisesse toda a atenção para si, o
que fez a ave branca soltar um pouco de ar pelas narinas,
resmungando.
— BJ desce daí! Ora seu... — Levann preparava-se para
alguma ofensa ao pássaro, mas desistiu no meio do caminho.
— Se você cair daí o que eu faço?
Blackjack inclinou a cabeça confuso.
— Ah é, você voa. Esquece. — Retrucou o príncipe e,
assim, a ave de penugem escura como a noite bateu as asas,
pousou no jardim abaixo próxima a Levann e ciscou o chão,
procurando por minhocas na terra úmida.
Sarah aproximou-se de Elise e levantou a criança pelas
axilas, deixando-a montada no pescoço de Coriane. A
pequena agarrou-se na penugem da águia, abraçando-a com
um enorme sorriso no rosto e empolgação mais do que
evidente. A rainha montou logo atrás de sua filha, segurando

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nas rédeas no pescoço de Coriane que serviam apenas para a
segurança de quem montasse a ave. As duas afundavam nas
penas fofas da águia, aquecendo suas pernas naquela noite
fria.
Levann montou em Blackjack com maestria, pois fazia
isso quase todos os dias. Acariciou o pescoço de seu amigo e
segurou enfim as rédeas de segurança. O rapaz olhou de
relance para sua mãe, que trançava os cabelos loiros da
pequena Elise para que não se bagunçassem com o vento e,
logo em seguida, voltou seu olhar para o príncipe, assentindo
com a cabeça e um doce sorriso nos lábios para que enfim
assobiassem para as águias e levantassem voo.
Com o balançar das asas dos pássaros e entre gritos de
alegria de Elise, eles subiram aos céus e avançaram, sem
rumo. Lado a lado, Blackjack e Coriane cruzavam Jaya,
sobrevoando a periferia - que era quase imperceptível durante
a noite -, a floresta das ilusões que era coberta por névoa
densa e as montanhas de diamante, aonde Levann podia jurar
ter ouvido a suave melodia de um violino ao longe.
O mundo parecia tão pequeno lá de cima, como se
coubesse na palma da mão de Levann. Mal se enxergavam
pessoas ou animais, que a essa hora já deveriam estar
dormindo. O vento soprava ainda mais forte dali de cima,
balançando as tranças de Elise e de Sarah.
E então Blackjack mergulha, encolhendo as asas e
deixando seu corpo cair na imensidão abaixo, rodando com
Levann agarrado a seu corpo, até que, próximo ao solo, ele
abre novamente suas asas e avança rapidamente pelo ar, até

24
um enorme rio próximo àquela região montanhosa. A águia
deslizava as pontas das garras na água enquanto a
sobrevoavam. Levann abriu os braços, sentindo o vento gelar
seu nariz e suas bochechas douradas, até mesmo a ponta de
seus cabelos estavam frias naquela noite de outono. Enquanto
as pessoas normalmente ficam vermelhas no frio por conta de
seu sangue, Levann mais parecia com um vagalume com a luz
irradiando sob sua pele.
Liberdade.
Sempre fora isso que todos queriam. Liberdade para ser
quem são sem julgamentos, para escolher viverem do jeito
que quiserem e onde quisessem.
Liberdade era uma coisa que Levann Klaus estava longe
de ter. Por conta de seu sangue anômalo, decidiram escondê-
lo no castelo até que se tornasse rei. Apenas os mais próximos
da família real sabiam de seu segredo. Ele não podia sair de
sua casa a não ser quando Sarah os levava para voar e até
mesmo o próprio Blackjack negava-se a levar o príncipe para
fora do castelo, com medo de que negligenciassem seu amigo
assim como fizeram com ele.
Ainda de peito e braços abertos, Levann fechou os olhos,
sentindo o vento gélido atingir seu rosto e invadir seus
pulmões. Seu coração estava acelerado e as palmas de suas
mãos suavam pela emoção da viagem, a respiração acelerava
e por um momento ele se sentiu livre.
Até que ele ouviu.

25
Do fundo de sua alma, dentro da escuridão de seu peito ele
ouviu o chamado. Aquilo estava chamando-o mais uma vez,
querendo usar seu corpo e devorar sua mente. Levann sentia
como se seu coração estivesse sendo esfaqueado diversas
vezes e seu interior parecia queimar, fazendo seus membros
formigarem e arderem. Ele tentou agarrar-se a Blackjack, mas
ele estava sem forças e caiu sobre a penugem da ave,
agonizando de dor.
Blackjack logo percebeu o que estava acontecendo, pois já
presenciara esta mesma cena antes. A águia voou até a beira
do rio e gritou ao vento, na esperança de que alguém viesse
ajudar seu amigo.
Após muito se debater, o corpo de Levann caiu na grama
ao lado da ave, convulsionando. Seus olhos reviraram e uma
espuma branca começou a sair de sua boca enquanto seu
corpo tremia e se debatia violentamente. Logo sua pele
começou a tornar-se escura como carvão, sua pele começou a
rachar com uma luz dourada saindo das fissuras. Seus olhos,
que antes eram brancos agora estavam pretos assim como
suas unhas, que se alongaram em garras afiadas. Blackjack
afastou-se assustado, sem entender o que estava acontecendo.
As crises de Levann nunca haviam chego até aquele ponto.
Levann parou de se debater e, após alguns segundos de um
silêncio mortal, aquilo se mexeu. Usando as garras de apoio
ele pôs-se a levantar devagar, tentando adaptar-se à sua
própria forma física. Por fim ergueu-se, soberbo. Embora
meio curvado, estava mais alto e fisicamente forte do que
antes e com as roupas parcialmente rasgadas e sujas de um

26
líquido preto pastoso que escorria de sua pele. Quando abriu
os olhos negros e brilhantes para Blackjack a ave fraquejou e
caiu ao chão, tremendo de medo. A própria presença da
criatura era aterrorizante.
Em passos lentos e debilitados, o que um dia fora Levann
se aproximou da águia e ergueu a mão direita em sua direção,
de onde uma luz vermelha surgiu, aumentando cada vez mais.
Blackjack então começou a gritar e bater as asas, pronto para
fugir.
E, por um momento, a criatura parou. Seus músculos
estavam enrijecidos e, mesmo que tentasse, não conseguia
mover-se um único centímetro. Era como se o tempo ao redor
dela houvesse parado. A energia em sua mão dissipou-se e a
ave assustada pôs-se em silêncio quando viu um pouco à
frente a figura de Sarah Klaus caminhando em direção àquela
criatura grotesca.
A rainha parou em frente àquela figura com uma expressão
triste e confusa, como se não temesse o que estava
acontecendo, apenas lamentasse pela situação de seu
primogênito. Por um breve momento ela ousou tocar a pele
dele, mas se conteve, temendo que algo acontecesse com ela
também.
Então ela teve de tomar uma decisão, que ia contra seus
próprios princípios.
— Levy, querido... acorde. Eu sei que você está aí dentro,
não vou deixar que isso machuque ninguém, agora volte pra
mim, para nós.

27
Ela fechou os olhos.

A mente de Levann costumava ser um lugar calmo, feliz e


aconchegante, quente como uma lareira num dia frio de
inverno. Bom, pelo menos era isso que Sarah lembrava da
última vez que entrou lá, alguns anos atrás.
Um longo corredor escuro erguia-se em sua frente até uma
porta de madeira envelhecida e deformada. Não havia nada
nas paredes adjacentes, apenas a escuridão palpável e até
mesmo claustrofóbica de tão estreita que era a passagem.
Sarah seguiu até a porta, que, apesar do alto rangido, abriu-se
com facilidade.
A rainha era conhecida por sua calma e coragem, mas a
visão à sua frente congelou sua espinha e abalou seu coração
de mãe.
Correntes manchadas com um líquido dourado cruzavam
todo o cômodo, saindo do chão, do teto e das paredes, todas
presas ao mesmo garoto no centro, que se debatia em
desespero, com cada vez menos força devido ao desgaste.
Levann estava inteiramente machucado enquanto lutava
contra aquela prisão. Suas feridas emitiam uma luz cálida e
frágil e delas escorria o mesmo líquido dourado que
manchava as correntes.
Quando seus olhos azuis encontraram os de Sarah ele
congelou.

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— Mãe...? — Levann estreitou os olhos, arregalando-os ao
perceber o que estava acontecendo. — Mãe! Socorro! EU
NÃO SEI O QUE É ISSO! ME AJUDA POR FAVOR!
Sarah, após alguns segundos estática e incrédula,
aproximou-se do garoto em passos apressados, evitando
tropeçar nas correntes do cômodo que era ainda maior visto
de dentro. Ela pôs as mãos nas correntes, que eram tão frias
como a própria morte e pôde sentir um líquido pastoso
escorrendo por seus dedos finos, que ao mínimo olhar ela
soube que era o sangue de seu filho. O líquido dourado e
brilhante era quente e aconchegante, mas a cada segundo ele
parecia esfriar e perder seu brilho.
Apresse-se, Sarah.
— Le...vy... — Com a voz engasgada, ela tentou dizer algo
a mais, mas nenhum som saía de sua boca.
Completamente trêmula, ela então levou a mão até o rosto
molhado de seu filho e fechou os olhos. E enquanto o rosto de
Sarah contraía-se em uma expressão dolorosa as correntes
começavam a se soltar do corpo de Levann até recuarem
completamente para longe dos dois. O rapaz caiu no chão,
fraco. Seu corpo inteiro manchado de dourado e suando pelo
esforço, mas com lágrimas incessantes escorrendo pelas
bochechas pálidas.
Ele então abraçou Sarah com a força que lhe restava.
— Mãe...

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O corpo de Levann aos poucos voltou à sua forma original.
Sua altura, sua pele e suas mãos. Quando seus olhos voltaram
ao tom azul habitual Sarah enfim libertou-o, deixando que seu
corpo se movesse. O garoto, desacordado, logo caiu no chão,
amortecido pela grama. Blackjack então aproximou-se em
passos curtos e relutantes olhou para Sarah.
— Isso acontece a muito tempo Blackjack? — Perguntou a
rainha.
A ave assentiu uma única vez e sentou no chão ao lado do
corpo estirado de seu amigo, abaixando o pescoço até os
cabelos de um Levann desmaiado e bicando sua cabeça
suavemente para tentar acordá-lo.
— Não BJ, ele precisa descansar. Mas ele vai ficar bem, eu
espero.
Sarah acariciou a penugem da águia negra para acalmá-la,
com o olhar fixo em seu filho, tentando esconder o fato de
que ela mesma estava tão assustada quando os dois à sua
frente.
— Algo está acontecendo Blackjack. — Ela fez uma pausa
por um breve minuto que pareceu mais longo do que
realmente fora. — Temo que as trevas de Genesis tenham
encontrado meu filho.
Por um momento, ao proferir o nome Dele, Sarah sentiu
que o vento de Jaya ficara mais gélido ao ponto de sentir seus
ossos doerem. Por um último momento ela encarou as águas

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cristalinas do rio à sua frente, a luz da Lua cheia era refletida
pela água, lançando feixes de luz desiguais e desenhados ao
rosto preocupado de Sarah. Algumas poucas árvores
balançavam intensamente com o vento forte, deixando suas
últimas folhas alaranjadas do outono voarem para longe.
— Ele está voltando.
Algo lhe dizia que seria a última vez que ela veria aquela
paisagem.

2
31
Sarah abriu as portas do escritório principal de Dapher
Klaus de forma imponente e com um semblante severo.
Caminhando em passos largos até seu marido, o rei.
Dapher estava encostado na janela, de braços cruzados
olhando para a imensidão do céu azul de Jaya. Parecia tão
entretido em seus próprios pensamentos, ou quem sabe em
algum pássaro, que nem percebeu Sarah se aproximando.
O rei tinha os cabelos longos, lisos e dourados como o Sol
presos em um rabo de cavalo alto com mechas soltas que
caíam pelas laterais do rosto. A barba rala e bem feita
também refletia a luz com alguns fios que pareciam
estranhamente ruivos. Dapher usava um sobretudo branco
com detalhes em dourado que mais parecia um jaleco sob
uma camisa preta de gola alta e calças escuras. Estava bem
vestido, porém o destaque sempre foram seus olhos, azuis.
Claros como o céu, brilhantes como a aurora, e tão perigosos
quanto uma navalha.
Quando seus olhos encontraram os de Sarah, um sorriso
singelo se formou nos lábios do homem, que descruzou os
braços para segurar a mão de Sarah e leva-la até seus lábios.
— A que devo a honra de sua presença, minha rainha?
Sarah conteve um sorriso, haviam assuntos mais
importantes para tratar. Limpou a garganta e soltou todo o ar
de seus pulmões.
— Você acredita em histórias?

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Dapher endireitou-se, cerrando os olhos. Ele buscou por
segundos algum vislumbre de que sua esposa poderia estar
brincando, mas nada naqueles olhos gélidos e cansados de
uma noite mal dormida parecia fraquejar em sua crença.
— Devo supor que uma delas seja verdade, já que você
está aqui. Linda por sinal. — Sarah lançou um olhar de
desaprovação para ele após sua última frase. — Desculpe.
O rei recostou-se novamente na janela e passou a mão pela
barba, buscando em seus pensamentos algumas histórias que
já lhe foram contadas, mas desde que se tornara rei ele
frequentemente lia histórias de todos os tipos, então logo
desistiu.
— De qual estamos falando?
Após muito tempo em silêncio, a rainha enfim praguejou.
— Do próprio deus da morte.

Outro pesadelo, exatamente igual a todos os outros.


“Floresta, mulher morta, quem era? Eu quem matei?
Monstro, era eu? Céu de sangue. Bloodstate? Nunca fui pra
lá.” A mente de Levann rodeava nessas mesmas frases por
horas, buscando algum significado em seus sonhos
repetitivos. Sua respiração ofegante e os lençóis, assim como
sua pele, molhados de suor denunciavam sua péssima noite de
sono.

33
Após esfregar o rosto e ponderar em sua cama por algum
tempo, Levann enfim levantou. Seu quarto era relativamente
simples para os aposentos de um príncipe, escolha do próprio.
Uma cama de solteiro no canto, com cômodas em madeira
clara na parede contrária. Uma estante de livros bem recheada
ao lado da porta e uma enorme janela com vista para as
montanhas de diamante ao lado da cama.
A luz do nascer do Sol entrava diretamente pela janela de
Levann, deixando seu quarto inteiramente em tons de laranja.
O inverno estava cada vez mais próximo, as últimas flores do
jardim da família Klaus só estavam vivas graças ao trabalho
dos Myr’Lyr e suas músicas que davam força e vitalidade às
plantas do castelo. Mas daqui a alguns dias nem mesmo isso
seria o suficiente, aquele lugar voltaria a ser frio e sombrio
assim como todos os anos, e Elise teria que procurar um
hobbie novo até o fim do inverno.
Após tomar banho e pôr-se em suas vestes reais, o loiro
recostou-se na janela e subiu o vitral, pondo metade do corpo
para fora para procurar por Blackjack, que ainda estava
dormindo a campo aberto lá embaixo.
— Pombo preguiçoso.
Levann então pôs em seu dedo indicador o anel prateado
que sempre usava e saiu de seus aposentos, desceu as escadas
principais do castelo com pressa evidente e seguiu pelo
jardim dos fundos até uma enorme depressão no solo que
descia em escadarias até um extenso círculo no centro. Nos
espaços entre as quatro escadas que desciam até o círculo

34
haviam assentos acolchoados para os telespectadores, mas
que agora estavam vazios.
O coliseu tinha arcos altos em sua circunferência e três
estátuas em pontos planejados. Uma mulher e dois homens
foram esculpidos em mármore em poses imponentes e
soberanas. A mulher era representação da Deusa Jaya,
protetora daquele continente e Deusa da magia. Os outros
dois homens eram Hakar, o Deus primordial e Gênesis, o
Deus da morte. Esculpidos ali para que os desafiantes do
coliseu se sentissem observados e protegidos pelos deuses
caídos. Levann particularmente achava desnecessários os
combates em troca de poder, mas respeitava as tradições de
gerações do povo de Jaya, mesmo que nenhum plebeu jamais
tenha vencido de seu pai, Dapher Klaus.
Enquanto caminhava até o centro do círculo, uma voz
invadiu a cabeça de Levann, não como um Sol’Din faria, mas
sua voz, apesar de feminina, era grave e impunha presença
em todo o ambiente, reverberando pelo coliseu.
— Olha só quem saiu da casinha de bonecas.
No topo da escadaria, levantando-se de um dos bancos,
uma garota acenava uma única vez. Ela vestia um peitoral de
ferro leve que se estendia pelo braço direito, calças escuras e
botas longas também de ferro. Em seu braço esquerdo, além
da luva que não cobria os dedos, haviam diversas tatuagens
pretas com símbolos que Levann conhecia bem.
Os dois se conheciam desde pequenos, quando treinavam
juntos naquele mesmo coliseu. Megan, ou Meg, sempre fora

35
convocada a lutar por Jaya devido à sua força e habilidade em
combates corpo a corpo, então sempre teve permissão para
participar dos treinos dos guerreiros do exército de Jaya para
se aprimorar.
Em passos calmos e seguros de si, a garota ruiva de
cabelos lisos na altura do pescoço, olhos verdes e com o rosto
cheio de cicatrizes desceu a escadaria até ficar frente-a-frente
com seu “amigo” de infância, sorrindo de forma sarcástica.
Era quase mais alta do que o loiro, e seu físico era
definitivamente melhor do que o dele.
— Olha só quem voltou do inferno. — Respondeu o
garoto.
Meg foi aceita no exército de Jaya com treze anos, mais
especificamente do quinto batalhão de invasão à Bloodstate,
que busca informações que possam ser úteis contra o rei
Magnus no campo de batalha. Os reinos não estavam em
guerra definitiva, mas sempre houveram conflitos por
questões comerciais e militares.
— Ir para o inferno não seria nem de longe tão ruim
quanto aquilo. — Uma sombra de algum sentimento passou
pelo rosto de Meg por um breve segundo. Medo? Ódio?
Tristeza? Repulsa? Levann nunca saberia. — Mas então
“Levy” — Disse com desdém enquanto puxava de suas costas
uma espada prateada com cerca de um metro de
comprimento. — Você veio aqui por um motivo, acredito eu.
Relembrando os velhos tempos?

36
Um sorriso singelo apareceu nos lábios de Levann, que
estendeu as mãos vazias para Megan.
— Adoraria. Mas, como pode ver, estou desarmado,
indefeso. — Debochou — Deuses! O que será de mim?
A ruiva empunhou a espada com seu braço armadurado,
cansada das mesmas brincadeiras de Levann. Prometera não
mais perder para ele como quando os dois eram crianças,
quando ele sempre usava seus poderes para ganhar de Megan,
mas agora seria diferente.
Depois da invasão à Bloodstate ela era outra pessoa. Sentir
a morte de perto muda você drasticamente.
— Venha Klaus. Eu conheço você.
Ainda com as mãos estendidas, o anel prateado no dedo de
Levann se abriu em um gancho pequeno e afiado, que o rapaz
usou para rasgar sua própria pele. Uma luz dourada intensa
era emitida de sua ferida profunda, que começou a se
condensar em um líquido brilhante como ouro derretido e
solidificou-se em sua mão direita como uma espada dourada
do mesmo tamanho da de Meg.
— Ora, de onde surgiu isso? — Satirizou Levann.
O loiro mal havia terminado sua frase quando foi obrigado
a saltar para trás, a lâmina de Meg passou rente a seu peito
em um movimento diagonal de baixo para cima, que rasgou
as vestes do príncipe e fez um corte suave em sua pele que
começou a brilhar. Logo em seguida, Meg, aproveitando a

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impulsão de seu braço, voltou para uma estocada em direção
ao peito de Levann usando o peso de seu corpo.
Da ferida do peito de Levann, a luz solidificou-se em um
escudo no braço esquerdo do príncipe, bloqueando a espada
veloz de Meg e causando um impacto estremecedor. O corpo
inteiro dele tremeu e quase foi lançado para trás por tamanha
força, mas o apoio de seu pé direito que estava mais atrás fez
com que fosse arrastado para trás apenas alguns centímetros.
Enquanto retraía-se de seu golpe Megan foi lançada ao
chão por uma rasteira de Levann, que aproveitou a abertura
para desfazer seu próprio escudo enquanto se agachava para
levar Meg ao chão. Já de pé, o rapaz segurou a espada com a
duas mãos e tentou finca-la na barriga de Megan deitada, que
rolou para o lado em um movimento rápido e, de forma ágil,
logo levantou-se para outra investida.
Eles travaram espadas com ódio evidente. Foram
ensinados a lutar para matar, por isso não pegariam leve um
com o outro, já que qualquer ferimento poderia ser curado na
enfermaria do castelo, até mesmo um membro decepado.
O combate parecia durar mais do que deveria, ambos já
estavam muito machucados e cansados, mas não davam o
braço a torcer, mesmo Levann estando surpreso com a
evolução de Meg, que mal conseguia acertá-lo antigamente.
Então, pensando em acabar com isso logo, o príncipe de Jaya
afastou-se do combate e provocou a garota que já estava
fervendo com um ódio implícito, não por Levann, mas sim
por estar em pé de igualdade em uma batalha contra ele

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mesmo após anos de treino. “Acho que ele não ficou esse
tempo todo brincando de casinha.” Pensou a garota.
— Ah, qual é? Pegando leve essas horas Megan? Jaya te
deu isso por um motivo. — Disse Levann, apontando para as
tatuagens no braço esquerdo da garota, símbolos dos
Berserkers.
Assim como Levann era um Curandeiro, que curava
feridas e tinha domínio sobre a luz, Megan era uma
Berserker, guerreira nata, de força imensurável e com um
dom especial sobre a terra e minérios.
Ela abriu um sorriso.
— Então você quer morrer Klaus. Tudo bem. Você pediu.
Meg então lançou sua espada para longe de si e cerrou os
punhos, que aos poucos iam sendo cobertos por uma camada
de pedra brilhante transparente com um leve brilho colorido,
diamante. Levann arregalou os olhos e recuou alguns passos
para trás, claramente assustado enquanto a ruiva ofegava à
sua frente, tentando manter-se em pé com seu corpo inteiro
suando.
Levann desfez sua espada e, assim como Meg, cobriu seus
punhos cerrados de luz solidificada. Ali ele teve certeza: O
perdedor seria quem tivesse seus poderes esgotados primeiro.
A ruiva correu em passos largos até Levann, que agora
estava um pouco distante, e socou seu estômago, levantando-
o do chão. A vida pareceu escorrer para fora do corpo do
príncipe de Jaya, sua pele empalideceu e seus olhos perderam

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o brilho ao entrar em contato com o diamante, a pedra mais
perigosa de Niford, conhecida por silenciar e sugar os poderes
das pessoas que a tocam. A luz que envolvia suas mãos
piscou por um breve momento, ameaçando dissipar-se.
Após o golpe, Megan sentiu-se ainda mais abalada,
esforçando-se para se manter em pé por estar em contato
constante com o diamante. Sua respiração estava muito
ofegante e sua visão parecia derreter momentaneamente, mas
ela não parou.
Depois de erguer Levann com um gancho de direita, ela o
jogou para longe em um soco com seu punho esquerdo. O
impacto contra a escadaria fez todo o coliseu tremer e deixou
alguns bancos em um péssimo estado. O príncipe encontrava-
se jogado sobre os destroços das cadeiras, desacordado. Meg
então aproximou-se para finalizá-lo, unindo as duas mãos em
um único golpe de cima para baixo com a intenção de
esmagar o loiro.
Mas acertou apenas outra cadeira.
O corpo de Levann à sua frente aos poucos se
transformava em pura luz, machucando os olhos de Meg com
tanto brilho, que levou o braço ao seu próprio rosto para não
ficar cega.
— Caramba, isso teria doído. — A voz familiar do loiro
vinha de trás de Megan, que virou de costas rapidamente, sem
acreditar no que acabara de acontecer. — Você é boa, já
pensou em entrar pro exército?

40
Levann sorriu de forma sarcástica e logo em seguida
desferiu um soco na mandíbula da Berserker, pega
desprevenida.
A ruiva foi lançada ao chão, sendo arrastada por alguns
metros. Quando a camada de diamante foi desfeita de seus
punhos o corpo inteiro de Meg pareceu respirar aliviado, mas
ela continuou estirada no chão, fitando o céu acima com os
olhos semiabertos. Levann caminhou até ela e estendeu a mão
para ajudá-la a levantar.
— Eu jurei aos deuses que não ia mais perder pra você,
Klaus. — Megan disse com a respiração pesada.
— Acho que você tem que pedir perdão pra eles então.
Um tremor.
O chão sob os pés de Levann se abriu em um enorme
buraco que o engoliu, fechando-se ao cobrir seus ombros e
deixando apenas a cabeça dele para fora. A Berserker então
levantou-se do chão em um único movimento e caminhou até
o rapaz preso no chão, abaixando-se para ficar mais próxima
de Levann com um sorriso evidente em seus lábios.
— E aí toupeira?
Mesmo após muito tempo tentando escapar, ele percebeu
que era impossível até mesmo se mover ali embaixo.
— Sério? Um buraco? Isso é sujo demais até pra você.
A garota franziu as sobrancelhas e olhou Levann de cima
abaixo com desprezo no olhar.

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— Você pode usar sua luzinha de fada e eu não? — Após
dizer isso ela ergueu-se novamente e o buraco de Levann se
abriu e o chão abaixo dos pés dele moveu-se até trazê-lo de
volta. — Anda, sai daí toupeira, eu não vou te matar. Não
quero todo o exército de Jaya atrás de mim.
Ela cruzou os braços enquanto o príncipe caminhou até seu
lado, tirando a poeira da roupa branca, que agora estava
inteiramente suja de terra.
— Tecnicamente você já tem o exército atrás de você, mas
o de Bloodstate. — Respondeu Levann, esbarrando de
propósito no ombro de sua amiga de infância. — Como foi
lá? Matou muitos vermelhos?
Megan retribuiu com uma cotovelada no estômago de
Levann, o que doeu mais do que deveria por conta da força da
garota e de sua armadura.
Uma sombra pareceu cobrir o rosto da ruiva, deixando
suas cicatrizes no rosto ainda mais evidentes. Ela tinha o
olhar cansado de quem passou por muita coisa que Levann
sequer podia imaginar.
— Não tem só pessoas lá, Klaus. — Ela parou por um
momento, encarando o nada. — Aquilo é demais pra qualquer
um.
— O que aconteceu? Descobriram alguma coisa?
— Demônios. Aquele desgraçado do Magnus... — Ela
cerrou os punhos. — Meu batalhão conseguiu entrar em uma
das bases de Bloodstate, eles tinham demônios presos Klaus.

42
Os dois caminhavam pelo coliseu, subindo as escadas até o
jardim vazio. Ainda era bem cedo, então poucos funcionários
do castelo estavam de pé àquela hora. Um caminho de
tijolinhos brancos seguia do coliseu até a entrada do castelo,
mas os dois se desviaram para a grama, sentando ali mesmo,
cansados e machucados do conflito.
— Pra que ele iria querer demônios Meg? E como? Eles
não ficam presos em Tempus desde a primeira guerra?
Meg abraçou os próprios joelhos, claramente pensativa e
incomodada, tentando encontrar respostas que ainda não
tinha.
E nem teria tão cedo.
— Eu não sei. Mas se ele tem acesso à Tempus, então seu
pai — Ela olhou de canto de olho para Levann. — com
certeza vai querer isso também.
Levann coçou a própria cabeça olhando para o chão.
— Não sei, não. Meu pai é do tipo que resolve as coisas
ele mesmo, sabe como é. Toda essa coisa de “o poder
pertence aos mais fortes”. — Ele engrossou a voz, tentando
imitar seu pai. — Acho que ele tentaria matar esses demônios
sozinho.
— Ele vai morrer se fizer isso... — Ela parou por um
momento. — Talvez não seja tão ruim.
— MEGAN! — Repreendeu Levann.

43
— Cara seu pai é um merda. Olha o que ele fez. — Megan
começou a contar nos dedos — Fechou as fronteiras,
expulsou os roxos e matou os que se recusaram a sair. Ainda
obrigou o MEU povo a morar nos subúrbios SEM LUZ DO
SOL. — Aumentou o tom de voz, erguendo as sobrancelhas.
— Você sabe o que acontece quando as pessoas têm
deficiência de vitamina D no corpo, Klaus?
Levann calou-se por um momento. Ele também discordava
das atitudes de seu pai, mas não havia nada que um garoto de
15 anos pudesse fazer quanto a isso. Só havia duas formas
dele se tornar rei: Esperando a morte de seu pai, ou ele
mesmo derrotando-o.
— Eu sei...
A garota enfim levantou-se, tirou a grama que havia
grudado em suas roupas e, antes de sair sem olhar para trás
ela disse:
— Nada contra você, toupeira, mas eu odeio seu pai.

Depois do almoço Levann decidiu voltar a seu lugar


favorito no castelo: o telhado. Subiu pelas vinhas de sua
janela e deitou-se sobre as telhas douradas, que refletiam a luz
do Sol do meio dia de volta para Levann, dando a impressão
de uma aura divina ao redor dele para qualquer um que o
visse.

44
Era o último dia do outono, ao longe era possível ver
nuvens acinzentadas se aproximando e trazendo consigo um
inverno rigoroso. Levann fechou os olhos e pensou no povo
do país vizinho, Bloodstate. Como seria viver debaixo de um
céu vermelho, coberto de nuvens de sangue de demônios?
Não ter a visão da infinidade azul acima de suas cabeças.
Pelas histórias que ele sempre escutou Bloodstate parecia
ser um inferno. Nuvens de sangue, uma sociedade
escravocrata, além de que eles não tinham a tecnologia dos
Sol’Din e nem Curandeiros, a medicina de lá era regida por
ervas e remédios caseiros. Também eram separados pelas
cores dos olhos assim como em Jaya, mas em um regime
muito mais brutal.
Ele suspirou e pensou quase em voz alta “Eu não deixarei
isso acontecer com o meu povo”.
— Ai! Ok, calma. Agora aqui... — Uma voz feminina
vinha de trás do loiro, aos poucos aproximando-se juntamente
a passos e algumas batidas.
“Mãe?”
Sarah Klaus acabara de pular do telhado de uma torre
próxima do castelo para perto de Levann, um pouco
desajeitada, escorregando algumas vezes nas telhas lisas, mas
logo equilibrando-se em partes mais altas do telhado.
— Deuses, faz tempo que não faço isso. — Murmurou
para si mesma.

45
Ela tirou a poeira das mãos e de suas roupas — mais
casuais que de costume — e sentou ao lado de seu filho ainda
deitado sobre o telhado. Com uma perna encolhida e outra
esticada, a rainha apoiou-se com os cotovelos para trás,
levemente reclinada.
— Mãe? O que faz aqui? — Perguntou Levann, olhando
para ela por um breve segundo e voltando a fechar os olhos.
— E como você subiu aqui?
Ela ergueu uma sobrancelha, olhando Levann de cima a
baixo.
— Me respeita, eu sou sua mãe. — Brincou. — Eu já fugi
muito desse castelo, Levy. Nesse quesito você parece mais
comigo do que com seu pai. Enquanto ele quer ficar aqui
preso e comandar todo mundo daquela salinha a gente — Ela
levou a mão até os cabelos dourados de seu filho e os
bagunçou suavemente, arrancando uma sombra de sorriso do
garoto. — Desce lá e quer ver com nossos próprios olhos o
que as pessoas vivem.
O rapaz abriu os olhos e, após alguns segundos encarando
o nada, perguntou:
— E porque você não faz nada, mãe? As pessoas estão
sofrendo.
Após um breve momento Sarah expirou tanto ar pela boca
que fez Levann pensar que se ela fosse uma Elemental de ar
ela certamente teria causado um furacão. Ela se espreguiçou,
encolheu a perna que estava esticada e abraçou os próprios
joelhos.

46
— Não é como se eu conseguisse fazer algo, filho. — Ela
pensou em dizer coisas como “para seu pai eu sou apenas sua
esposa, não uma rainha.”, mas preferiu não profanar a
imagem de Dapher para seus próprios filhos. Sarah amava seu
marido, mas tinha suas próprias frustrações com ele e não
deixaria que seus filhos pensassem o contrário.
O garoto tentou dizer algo, mas foi interrompido por sua
mãe.
— Não foi por isso que eu vim aqui, Levy. Quero que você
escute com atenção o que vou lhe dizer agora, porque não é
fácil dizer e muito menos acreditar.
Preocupado, Levann sentou-se, indo para mais perto de sua
mãe para ouvi-la com atenção. Um semblante sério tomou
conta do rosto dos dois, que eram muito parecidos, exceto
pelos cabelos lisos e olhos azuis que Levann puxara de
Dapher.
Sarah Klaus respirou fundo.
— Creio que você conheça a história dos deuses caídos.
Levann assentiu com a cabeça.
— Hakar, o primeiro, criou todo nosso mundo e os outros
dois deuses: Jaya, que nos deu nossos dons e Gênesis, o deus
da morte. — Ela parecia ter ensaiado algumas horas essa
mesma história de crianças, que ela contou de forma
extremamente reduzida por não ser o foco da conversa. —
Você deve saber também que Gênesis foi corrompido pelas
próprias trevas e por isso ocorreu toda a guerra dos deuses.

47
Ele acabou aprisionado em Tempus graças ao sacrifício da
nossa deusa e há boatos de que ele está lá até hoje.
Ela gesticulava com as mãos trêmulas e os olhos fixos nos
de seu filho, quase sem piscar.
— Eu e seu pai acreditamos... — Sarah parou por um
momento e segurou a mão de seu filho. — Que o que vêm
acontecendo com você tenha semelhança com algumas lendas
de que... — outra dolorosa pausa, buscando coragem em si
mesma — de que Gênesis está voltando. Eu vi como você
ficou, e eu nunca vi nada parecido, então eu tive que buscar
em livros alguma explicação e tudo que achei foram lendas,
mitos. Nada concreto.
Levann congelou. Sua cabeça parecia explodir em
milhares de pensamentos enquanto sua expressão se contorcia
em diversos sentimentos. Confusão, negação, medo,
desespero e tristeza. Ele tentou sutilmente se afastar de sua
mãe, que o abraçou forte, colocou o rosto dele em seu colo e
acariciou seus cabelos, beijando sua cabeça algumas vezes.
Ele estava claramente assustado, tentando encontrar em
sua mente alguma outra explicação para toda aquela situação,
mas nada parecia encaixar. As crises de agressividade, os
pesadelos, e aquele último episódio que era apenas um borrão
escuro na mente de Levann, mas que ele sabia que algo
diferente havia acontecido. Sarah não quis contar a ele o que
houve, mas ele sentia em seu interior que aquele passeio não
tinha acabado bem.

48
Sua respiração estava acelerada, quase incontrolável. A
garganta dele fechou e não conseguia emitir uma palavra
sequer enquanto segurava o choro, desesperado. O peito de
Levann doía de angústia e medo. Medo de machucar aqueles
que ama e de as coisas nunca mais voltarem a ser como antes.
— Vai ficar tudo bem, filho. A gente vai dar um jeito,
juntos. Você não está sozinho. — Sarah segurava as próprias
lágrimas ao ver seu filho naquela situação, ela sabia ainda
menos do que ele como cuidar daquilo. Como ela lidaria com
as crises de seu filho por toda a vida dele? Teria que estar
sempre por perto para evitar maiores estragos, pois não sabia
se existia algo a ser feito para impedir que as trevas o
consumissem.
O Sol pairava alto no céu e brilhava forte, mas não era o
suficiente para aquecer dois corações preenchidos pelo
desespero.

49
3
Os primeiros flocos de neve tocaram o chão de Jaya
durante a madrugada. O rio continuou a correr, mas os lagos
aos poucos congelaram devido ao frio intenso. Os pássaros
sumiram dos céus, os animais hibernaram e uma neblina fina
e gélida como o véu da própria morte cobriu todo o
continente. Apenas os cumes das montanhas de diamante
pareciam ter algum brilho de vida.
O subúrbio de Jaya sofria ainda mais com o inverno,
tornando-se um enorme fosso frio e escuro ao redor do
castelo Klaus. A neve se acumulava aos montes nas casas e
nas ruas da cidade. Elementais de fogo eram convocados para
manter as casas de todos aquecidas enquanto os Sol’Din
utilizavam suas mentes geniosas para construir um sistema de
aquecedores pela cidade.
As muitas casas do subúrbio eram bem estruturadas e
bonitas apesar de serem feitas de madeira e alguns metais,

50
algumas tinham mais de um andar, outras pareciam casas de
bonecas de tão pequenas, escolha dos próprios moradores,
mas todas tinham uma coisa em comum: tetos solares. Devido
ao curto período de tempo que a luz solar atingia a cidade, os
moradores aproveitavam ao máximo o horário próximo ao
meio dia.
Brigas pelas ruas da periferia eram comuns, cobradores,
em sua maioria Berserkers devido à sua força, eram vistos
espancando devedores no meio das ruas. Crianças escondiam-
se atrás de suas mães com medo da violência enquanto
algumas, que pareciam ter recebido seus dons a pouco tempo,
brincavam criando bolhas de água, dando choque em outras
crianças enquanto uma menina elemental de terra estava
montando uma casinha de bonecas usando metais brilhantes.
Mas naquela manhã todos pareciam muito mais
preocupados com o frio, o inverno estava mais rigoroso do
que o normal e uma figura encapuzada sabia bem disso.
Caminhava de cabeça baixa pelas ruas da cidade trazendo
consigo uma carroça de madeira bem acabada que foi
abastecida com cobertores e garrafas com esferas brilhantes
dentro de si, que se moviam de forma desigual como um
líquido pastoso.
Conforme visitava as casas ia deixando cobertores e essas
garrafas que, ao olhar bem, percebia-se que elas continham
luz do Sol condensada dentro de si, foram preparadas para
serem entregues às famílias extremamente abaladas pela
situação precária de saúde em que se encontrava a periferia de
Jaya: Tão pálidos quando a neve, depressivos e visivelmente

51
exaustos. Muitos agradeciam o ser encapuzado, sem
questionar de onde vieram aquelas coisas, tendo em mente
que haviam muitos funcionários do castelo que fugiam com
itens para suas famílias, mas conforme ele se afastava de cada
casa, o desenho de um Sol estampado em seu capuz deixava
claro quem estava visitando-os. Alguns pensaram em pará-lo,
mas apenas aceitaram a gentileza e seguiram suas vidas.
Enquanto caminhava pelas ruas de cascalho branco, sentiu
um suave toque em sua mão. O ser encapuzado olhou em
volta, levando o olhar até uma criança que havia pego sua
mão. Um menino pálido, magro, com alguns machucados
visíveis e de porte frágil encarou-o com um suave brilho de
esperança em seus olhos verdes.
— Obrigado. — Deixou escapar quase como um sussurro
sem voz.
Ele então segurou a mão da criança mais forte e uma luz
dourada irradiou das mãos daquele ser e envolveu o corpo da
criança, que num primeiro momento se assustou, mas logo se
acalmou sentindo o calor suave e acolhedor como um dia de
Sol no meio do inverno invadir seu coração. Suas feridas aos
poucos cicatrizaram e a cor voltou a sua pele, tendo seu
coração preenchido por uma estranha felicidade que não
sentia a algum tempo.
Por baixo do capuz, a criança pôde ver o esboço de um
sorriso antes daquele ser ir embora, deixando um garotinho
boquiaberto para trás, que logo pôs-se a pular de alegria e
correr até seus pais, que lacrimejavam na porta de uma das
casas.

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Todos abriam caminho conforme ele passava, pessoas
saíam de suas casas. Uns com raiva, proferindo xingamentos
à elite safira, alguns Sol’Dins agradeciam ao ser encapuzado
falando em sua mente enquanto outros apenas o observavam
em silêncio, orando aos deuses pela alma daquele que burlava
as regras do castelo.
Após distribuir todos seus itens, seguiu até o final da
cidade para um portão de grades douradas que dava entrada
ao subsolo do castelo Klaus e retirou o capuz que cobria seus
cabelos dourados e seus olhos azuis. Levann cumprimentou
os dois guardas robustos que guardavam a passagem e
agradeceu-os por permitirem sua vinda à cidade.
Ninguém tinha permissão de entrar ou sair do castelo sem
a autorização do rei, mas até mesmo os guardas cediam por
entender as necessidades do povo. Não denunciariam Levann
ao rei com a condição de que suas famílias também
recebessem cobertores e luz solar para se aquecerem no
inverno. Não era fácil para Levann desafiar os desejos e
mandamentos de seu pai, mas tinha sempre em mente que
fazia isso por um bem maior e, mesmo que houvessem
consequências para si no futuro, jurou a si mesmo que estaria
de consciência limpa por fazer o certo.
O subsolo do castelo era escuro, toda a passagem era
escavada em pedra com degraus que subiam em uma espiral
estreita. A subida pareceu infinita, mas Levann sabia que
aquele não seria seu maior desafio aquela noite. Afinal, era o
primeiro dia de inverno.

53
Ao chegar no topo da escadaria, o garoto foi esgueirando-
se e espreitando por todas as paredes para garantir que não
encontraria ninguém que delatasse sua fuga. Em passos
silenciosos ele cruzou corredores e, quando estava prestes a
abrir as portas da entrada dos fundos do castelo, ele percebeu
que estava sendo seguido. Antes que pudesse se virar, já
pensando em milhares de desculpas esfarrapadas que teria
que inventar, ele ouviu tão baixo quanto um doce sussurro:
— Onde estamos indo?
A voz de Elise pareceu derreter o coração do príncipe no
mais puro estado de alívio, fazendo-o soltar todo o ar que
achava possível ter nos pulmões. Ele recostou-se na parede e
escorregou com as costas até o chão, de olhos fechados.
Quando olhou para sua irmã, ele a encontrou nas pontas dos
pés e curvada um tanto próxima à parede, aparentemente
tentando imitar os passos dele de forma discreta.
— Pelos deuses Lise... que susto.
— Mamãe diz que se você se assusta é porque estava
fazendo coisa errada.
Elise cruzou os braços e inflou as bochechas, tentando
parecer brava.
— Se você não contar pra mamãe eu deixo você voar no
Blackjack comigo uma vez. — Disse enquanto levantava do
chão, batendo a poeira da roupa.
— Três vezes! — Ela levantou três dedos, com entusiasmo
evidente.

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— Duas.
— MÃ× Levann a interrompeu, tampando sua boca.
— Tudo bem, tudo bem, três vezes.
Ele soltou a pequena Elise, que abriu as portas do castelo e
pôs-se a saltitar sob o chão de mármore limpo e polido. Ela
rodopiou algumas vezes cantarolando algo sobre voar no
Blackjack e, então, ela parou no meio do salão. Parecia
assustada com algo que Levann ainda não sabia o que. Ele
então aproximou-se e, ao chegar ao lado de sua irmã, ele pôde
ver do outro lado do salão, sendo recepcionados pelos
funcionários do castelo, alguns homens altos e fortes em
vestes escuras com entalhes vermelhos. Entre eles um garoto
de cabelos tão escuros quanto a própria noite com um
semblante sério e ao mesmo tempo entediado. Fisicamente
parecia mais velho que Levann, por volta de dezessete anos,
mas quando aquele garoto olhou para os dois, os irmãos
Klaus sentiram naqueles olhos vermelhos como sangue e no
calafrio em suas espinhas que aquele homem havia visto e
vivido muito mais do que podiam imaginar.
O rapaz misterioso desviou o olhar, visivelmente
desinteressado em qualquer coisa que estivesse acontecendo,
e seguiu andando atrás dos outros homens que vieram com
ele. Conforme ele se movia, uma sombra parecia escapar de
seu corpo, como se ele fosse uma visão distorcida e desfocada
das próprias trevas. O tempo e o espaço pareciam pertencer
àquele ser, como se nada mais importasse para os dois
irmãos, apenas a presença dele parecia grandiosa demais para

55
suportar. Elise escondeu-se atrás de Levann até que o
vermelho sumisse de vista.
— Não gosto disso, Levy.
— Eu também não.

A primeira noite de inverno em Jaya é marcada pelo baile


da rosa de cristal. Uma forma de apaziguar os conflitos entre
os reinos vizinhos com música, comida e diversão.
Vermelhos de diversas cidades de Bloodstate eram
convidados para o baile, uma única noite onde todos fingiam
ser aliados e aproveitavam as mordomias do castelo da
família Klaus em troca de cessar fogo por tempo indefinido.
Era comum para todos no castelo a visita anual de vermelhos
de Bloodstate, mas aquele cara... ninguém nunca havia
presenciado alguém assim. Os homens à volta dele pareciam
estar acostumados com ele, quase ignoravam-no. Será que
haviam mais pessoas assim do outro lado do oceano?
Ainda não havia música, o salão de festas estava cheio de
nobres azuis e vermelhos, que conversavam entre si como se
fossem conhecidos de muitos anos. Mesas decoradas estavam
espalhadas pelo local com castiçais de cristal acesos sobre
elas, juntamente a um buquê de rosas de cristal que pareciam
feitas de diamante, mas nem de longe tão perigosas quanto.
Abóbadas douradas seguiam por todo o teto do salão,
juntamente a candelabros de cristal que iluminavam muito

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bem todo o ambiente, embora já fosse noite, parecia que o
baile estava sendo realizado ao meio dia devido a tanta luz.
Um palco circular se erguia no meio do local, com
diversos instrumentos clássicos posicionados ao lado de
algumas cadeiras que estavam vazias, pois ainda não era a
hora do show. Na parede contrária às grandes portas de
entrada havia uma sacada com quatro tronos, dois com safiras
e dois com rubis planejados para os reis de cada reino.
Dapher e Sarah Klaus ao lado direito e Magnus Bastien do
lado esquerdo. A rainha de Bloodstate havia falecido a alguns
anos atrás por causas naturais, então o trono que era destinado
a ela estava vazio, enquanto aquele garoto encontrava-se em
pé ao lado do trono dela. Aparentemente aquele era Derek
Bastien, príncipe da capital de Bloodstate, Crimson Scale,
filho de Magnus.
Ao contrário de Dapher e Sarah, Magnus Bastien era um
homem mais velho, com alguns cabelos brancos, barba
acentuada e muitas cicatrizes, uma delas especialmente
visível em forma de garra que cruzava inteiramente seu rosto
moreno. Ele trajava uma armadura em preto fosco espinhosa
com ombreiras duplas e pontudas digna de um Berserker.
Mesmo que aquele fosse um evento social visando a paz, o rei
de Bloodstate costumava dizer que não colocaria a mão na
água por Dapher Klaus.
Duas palmas.
De seu trono, o rei de Jaya levantou-se e caminhou até o
parapeito para dar um recado a todos.

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— Digníssimos convidados! — Quando ele abriu a boca, o
silêncio instaurou-se no salão. Todos estavam prestando
atenção em absolutamente tudo o que sairia daqueles lábios
secos e finos de Dapher Klaus. — É com imenso prazer que
abro as portas para recebê-los em minha casa, em minha
nação. Sabemos todos aqui presentes que o último ano não foi
fácil, diversos conflitos foram travados e inúmeras famílias
perderam entes queridos. — Ele abaixou a cabeça e fechou os
olhos por um momento fingindo prestar condolências aos
falecidos. — É por isso que todos os anos realizamos este
evento, como forma de nos acertarmos entre nós sem
precisarmos termos mais baixas. Então venho aqui pedir que
se acomodem por um momento e apreciem a festa sem rancor
em seus corações. E para alegrar ainda mais a noite, a obra
prima dos deuses que são nossos Myr’Lyr. Por favor
aplausos!
Ele começou a aplaudir e logo todos no salão batiam
palmas para aqueles que saíam do meio da multidão e
dirigiam-se para o palco circular no meio do salão, tomando
seus lugares. Homens e mulheres de olhos verdes e azuis
posicionaram-se com seus instrumentos musicais e, após um
breve momento de silêncio, um piano começou a tocar,
seguido de violinos.
A música parecia penetrar não somente nos ouvidos de
todos presentes, mas nos corações. Era algo inebriante e
extasiante, uma sensação de alívio e prazer extremo e
contínuo. Todos que ouviam aquela melodia juravam terem
sido tomados nos braços por anjos e acalentados pela própria
deusa Jaya. Os membros formigavam e pareciam muito mais

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sensíveis, fazendo as pessoas tocarem suas próprias peles e
em outras pessoas com sorrisos bobos no rosto. Alguns
tomavam a frente e convidavam mulheres para dançar a
melodia dos anjos, outros dançavam sozinhos, rodopiando
como loucos em seu próprio paraíso.
Magnus inclinou-se para mais perto de seu filho e falou de
forma que apenas ele ouvisse:
— Derek, vá buscar o Lucian. Não quero aquele idiota fora
do meu campo de vista nessa situação... peculiar. — Trovejou
Magnus.
Derek então desencostou do trono vazio e deu alguns
passos para trás, sendo coberto pela sombra do único lugar
sem iluminação daquele salão. Seu corpo pareceu fundir-se à
escuridão, dissolvendo como fumaça até que desapareceu
completamente.
Já no meio do salão de festas, um garoto de cabelos
prateados e olhos vermelhos estava encostado na parede
enquanto segurava uma garrafa de vinho pela metade em suas
mãos. Ele deu um longo gole, apoiou a garrafa na mesa,
limpou a boca usando suas próprias mãos enluvadas até os
dedos e arrotou, sorrindo com os dentes afiados para o teto.
Observava os candelabros daquele lugar imaginando que tipo
de idiota faria uma lâmpada com líquido dourado que brilha.
Por que não fogo? Fogo é muito mais legal. E por que tinha
que estar tão claro aqui dentro? Seus olhos ardiam, fazendo-
o baixar a cabeça e piscar algumas vezes até se acostumar ao
local.

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Mais um gole de vinho. Ele sabia que nem deveria estar
bebendo, tinha acabado de fazer treze anos, mas tudo bem
desde que ninguém viesse encher seu saco.
A sombra dele que estava no chão começou a aumentar
sem que ele percebesse, estava perdido demais em suas
próprias reclamações. Ao lado de seus pés, uma mão emergiu
das sombras e agarrou seu tornozelo, puxando-o para as
trevas antes que ele pudesse gritar.
Emergindo da escuridão da mesma forma que saiu, Derek
caminhava ao lado de um Lucian baixinho que continuava a
resmungar, reclamando sobre como Derek podia
simplesmente ter chamado ele até aqui ao invés de arrastá-lo
pelo mundo das sombras. O sombrio, que não abriu a boca
uma única vez para explicar o motivo de trazê-lo apenas
recostou-se novamente no trono da rainha e abaixou a cabeça,
sua expressão vazia era como uma incógnita para qualquer
um.
— Foi só uma garrafa de vinho, velhote. — Praguejou
Lucian, referindo-se a Derek, que era apenas quatro anos mais
velho do que ele.
— Silêncio. — Respondeu Magnus, levantando a mão
direita com o punho fechado. — Não foi por isso que te
chamei. Quero você aqui em cima, a música tem menos efeito
aqui.
Dapher e Sarah claramente estavam ouvindo, então
Magnus Bastien levantou-se com um alto ranger de sua

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armadura negra e dirigiu-se até os dois garotos e a última
coisa que Dapher pôde ouvir dali foi:
— Eis o que iremos fazer...

Levann e Elise estavam proibidos de ir ao baile da rosa de


cristal por motivos óbvios para Sarah, que não queria que
seus filhos fossem embriagados pelas melodias dos Myr’Lyr
em frente à tantos vermelhos, mas isso não impedia que
ficassem no jardim principal do castelo, onde duas noites
atrás os irmãos se encontraram com Sarah para voar em suas
águias. Ambos estavam abaixados próximos a uma das
inúmeras roseiras brancas do jardim enquanto Elise tentava
ensinar a Levann como fazer chá de rosas brancas, um chá
naturalmente doce que tinha poder curativo.
Os irmãos Klaus passaram todo o período do baile no
jardim, até poderem ouvir ao longe o som das embarcações de
Bloodstate sendo preenchidas de nobres vermelhos antes
deles zarparem pelo rio que acabaria no oceano até cruzarem
a barreira mágica que permitia a volta à sua terra natal. O
jardim era aberto, mas tinha parapeitos de mármore branco
que permitiam os irmãos verem a partida dos barcos. Dois
rios circundavam a cidade até se unirem à frente e seguirem
para o oceano. Ao longe podiam-se ver florestas na margem
esquerda do rio e desertos com dunas de areia bem longe à
direita, lugar onde nenhum morador de Jaya jamais se
aventurou a pisar.

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O céu estava coberto de nuvens carregadas de neve, um
manto branco cobria toda a extensão da floresta, que era
quase como um pequeno jardim visto dali de cima. Não era
possível enxergar a periferia de Jaya daquele ângulo, por
encontrar-se muito abaixo do castelo, escondidos em um
fosso profundo e escuro agora coberto de névoa densa.
— Levy eu quero ver! — Gritou Elise, tentando pular e
ficar na ponta do pé para ver acima do parapeito do jardim.
Levann então abaixou-se ao lado de sua irmã e pediu que
ela subisse em suas costas. Ela assim o fez, prendendo as
pernas ao redor do corpo magro de seu irmão, de onde podia
ter a mesma visão que ele pelos poucos minutos que duraram
até ela dormir nas costas de Levann. Os barcos dos vermelhos
agora sumiam no horizonte, levando um mistério que o
príncipe de Jaya adoraria descobrir:
Por que a sombra daquele rapaz estava sorrindo para ele?

Após deixar Elise no quarto dela, Levann fora convocado


por funcionários do castelo a se dirigir até a biblioteca, onde
sua mãe o encontraria. Chegando lá ele bateu três vezes na
porta de madeira polida e entrou, encontrando sua mãe
circundada por diversos livros abertos e outros fechados.
Empilhados, jogados pelas mesas e pelo chão juntamente a
diversas xícaras de café já vazias e outras até mesmo pela
metade. Parecia que a rainha não tinha ficado muito tempo no
baile, apenas alguns minutos principais antes que fugisse de

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volta para o que quer que fosse que ela estivesse fazendo na
biblioteca.
— Querido, boa noite. — Sarah tinha seus cabelos
extremamente bagunçados presos em um coque mal feito que
fora fixado com uma caneta. As olheiras eram pesadas e ela
parecia piscar mais do que o normal devido ao excesso de
cafeína em seu sangue. Ainda trajava o vestido branco que
usou para a cerimônia, mas os saltos estavam jogados em
algum lugar daquela sala. — Eu acho que encontrei uma
resposta. Demorei um pouco, mas acredito que finalmente
vamos conseguir lidar com isso.
Ela cruzou a sala com os pés descalços no carpete marrom
escuro e pegou um livro fino de capa preta sem título, abriu
ele em uma página que havia sido marcada com uma presilha
de cabelo dela mesma e passou os olhos rapidamente pelo
texto. Sarah limpou a garganta com entusiasmo evidente e um
brilho de esperança nos olhos de uma mãe cansada e
preocupada.
— As trevas de Gênesis. Elas... elas são com um vírus,
como uma gripe que você pega depois de um dia de resfriado
filho. Todo mundo tem um pouco de trevas no coração como
eu, seu pai, todo mundo mesmo. — Ela percorreu mais
algumas páginas, procurando algo específico. — Aqui! —
Virou o livro para seu filho, apontando com o dedo levemente
trêmulo para uma passagem que Levann leu em voz alta.
“Há aqueles que, diferente de nós, não possuem trevas em
seu coração ao nascer. Como algumas crianças de coração
puro, animais e, em especial, sacerdotes da luz. Estes, que

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acreditamos serem escolhidos pelos deuses, não possuem
sangue em suas veias, a pura luz reside em seus corpos,
tornando-os mais suscetíveis à dominância das trevas.”
As páginas seguintes eram preenchidas de registros sobre
os citados sacerdotes da luz, que, apesar de raros, realmente
existiram, o que deixou Levann inteiramente paralisado e
perplexo. Nem um único músculo de seu corpo parecia
aceitar que ele não era o único, que ele não era um monstro
ou algum tipo de anomalia amaldiçoada. Por um momento ele
começou a pensar que talvez ele fosse o escolhido para algo
grande. Ingênuo.
De qualquer forma, aquilo ainda não respondia como livrá-
lo das... trevas. Apenas mostrou que ele era mais suscetível a
ser consumido por tal. O pouco que esperança que preenchera
seu coração alguns segundos atrás agora pareceu esvair-se de
seu corpo, dando lugar ao medo e insegurança.
Até que sua mãe voltou a falar.
— Se o que esse livro diz for verdade, eu tenho um plano
melhor do que o que eu estava pensando.
— E qual você estava pensando?
Silêncio.
— Vá dormir, já é tarde. Amanhã conversamos sobre isso.
— Ela deu um beijo na testa de Levann, que tentava dizer
alguma coisa, mas fora cortado todas as vezes. — Aqui, leve
isso com você... e leia quando puder.

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Sarah fechou o livro, entregou nas mãos de seu filho, o
guiou até a porta e, após perceber estar sozinha novamente,
desabou na poltrona atrás dela, claramente aliviada e exausta
física e mentalmente. Sarah fechou os olhos, pensando em
como diria ao seu filho que ele teria que se corromper sozinho
se quisesse deixar se ser puro.
As trevas são como um vírus, mais forte em seres puros
sem maldade em seus corações. Sarah havia pensado em uma
forma de fazer com que seu filho deixasse de ser tão puro,
mas isso exigiria medidas que ela queria evitar a todo custo e
sequer sabia se isso funcionaria. Após horas pensando,
diversos livros devorados e mais café do que ela achava
possível ingerir e continuar com sono ela tomou uma decisão
por seu filho.
— Pelos deuses... Qualquer coisa menos isso.
Sarah lembrou de quando Levann era pequeno. Como ele
parecia um tronquinho de tão pequeno e era tão brilhante
quando um vagalume quando chorava, suas bochechas
acendiam como dois faróis. Seus primeiros passos, a primeira
vez que ele trouxe Blackjack para casa, fazendo Sarah se
assustar com a águia negra nunca antes vista.
Todas as vezes em que Levann teve um pesadelo e foi até
seu quarto buscar ajuda e acabava dormindo entre ela e
Dapher. Lembrou também de quando Elise sorriu pela
primeira vez e Levann jurou proteger sua irmã e fazer ela
sorrir para todo o sempre. Ele sempre foi um filho incrível e
uma pessoa muito bondosa. Por que essas coisas tinham que
acontecer logo com ele?

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Após alguns minutos Sarah acabou cochilando naquela
poltrona macia da biblioteca, e sonhou com um lugar
inesquecível. Uma clareira da floresta cheia de rosas brancas,
com uma enorme árvore no centro da clareira circular. Ela
usava um vestido branco e com os pés descalços ela
caminhava por entre as flores que cresciam do chão ao invés
de uma roseira comum. Sarah jurou ouvir um piano tocar ao
longe, algo ainda mais bonito e mágico do que a melodia dos
Myr’Lyr. Ela então pôs-se a dançar e rodopiar por entre as
rosas, cujos espinhos não arranhavam seus tornozelos, apenas
faziam cócegas. A luz do Sol incidia sobre ela como um
holofote exclusivo, atravessando as folhas das árvores até
tocar a pele de Sarah, que sentiu aquilo como carícias suaves
e calorosas.
Por entre as árvores ela pôde ouvir um barulho estranho
como um grito abafado bem distante, mas não se importou.
Aquele era seu lugar, era o seu paraíso secreto longe de
qualquer preocupação. Ela então, após dançar até cansar,
deitou-se sobre as flores de braços abertos e olhou para o céu
azul com algumas nuvens fofas como algodão e sorriu
genuinamente. Estranhou um pouco ao perceber que no céu
haviam dois sóis, um pouco distantes um do outro como se a
observassem, mas ela ignorou por ser apenas um sonho.
Foi então que ela começou a sentir.
Os espinhos das rosas não mais faziam cócegas, agora eles
arranhavam sua pele profundamente, fazendo seus braços
sangrarem. Seu sangue escorria por seus membros até que,
quando a primeira gota de seu sangue tocou o solo, todas as

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rosas se tornaram vermelhas, um tom de carmesim escuro
como sangue, elas até mesmo pareciam líquidas como tal. O
céu acima de sua cabeça fora coberto por nuvens vermelhas
que Sarah percebeu imediatamente serem de Bloodstate, o
continente coberto por nuvens de sangue de demônios.
Ela piscou algumas vezes e esfregou os olhos, tentando
controlar sua própria mente para voltar para o local em que se
encontrava antes, mas nada adiantou. Os dois sóis que
pairavam no céu agora eram duas esferas negras e brilhantes,
encantadoras e assustadoras demais para que Sarah tirasse os
olhos delas. Ela sentiu um leve formigamento em sua barriga,
como uma coceira que aos poucos começou a arder e doer
intensamente. Quando olhou para baixo, uma grande mancha
de sangue cobria seu vestido outrora branco.
Sarah, assustada, levantou-se e correu para o meio da
floresta, enquanto tentava beliscar seu braço para acordar.
Seus tornozelos eram cada vez mais machucados pelos
espinhos das rosas que agora mais pareciam navalhas e
agulhas em sua pele. Conforme ela corria por entre as árvores
na mata fechada, a copa das árvores parecia abrir-se para
deixar o céu completamente exposto.
Aquelas esferas negras brilhantes acima, pareciam chamar
a atenção demais. Elas chamavam por Sarah, como se
quisessem que ela as observasse e assim ela o fez. Quando
Sarah Klaus olhou para cima ela percebeu...
Não eram sóis, eram olhos.

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E quando ela acordou, eles continuaram ali a observando,
sua barriga, que no sonho ardia, agora estava sendo perfurada
pelas garras negras daquele que a segurava pelo pescoço.
Levann.
A pele do que um dia fora seu filho agora era tão escura
quanto a noite com rachaduras douradas por todo seu corpo.
Os olhos completamente negros brilhavam como obsidianas e
deles escorriam lágrimas de dor, mesmo que o rosto da
criatura continuasse impassível era perceptível que ela sofria.
Ele cravou ainda mais as unhas na barriga de Sarah, que
gritou em agonia.
Após organizar seus pensamentos e perceber a situação em
que se encontrava, a rainha de Jaya tentou acalmar-se e
pensar em uma solução assim como da última vez em que
isso aconteceu com seu filho, então ela paralisou Levann com
sua mente, olhou em volta e não encontrou nada ao seu
alcance e também não havia ninguém por perto ou sequer
acordado àquela hora. Sarah tentou segurar as garras da
criatura e tirá-las de sua barriga, em vão. Estavam muito
profundas. Sua respiração estava ofegante, suor escorria de
sua testa e ela sequer conseguia abrir a boca para pedir ajuda.
Ela fechou os olhos.

O tempo passava diferente naquele lugar, como se


segundos do lado de fora fossem horas dentro da mente de

68
alguém. Sarah caminhou pelo o que pareciam horas na
escuridão que havia se tornado a mente de Levann e, durante
todo esse tempo, pensou sobre o que havia acontecido. Ele foi
dormir a algum tempo atrás e logo em seguida entrou em
colapso? Foi durante a noite ou no meio do caminho para o
seu quarto? Como pude deixar isso acontecer?
Não havia nada em seu campo de visão além de trevas, a
escuridão quase palpável e claustrofóbica. Era como se as
sombras quisessem tocar o corpo de Sarah e se apossar dele
da mesma forma que fizeram com Levann. Ela continuou
caminhando até ver ao longe uma figura deitada no chão,
coberta de um lodo preto gosmento que, conforme ela se
aproximava, percebeu ser seu filho. Levann estava paralisado
em posição fetal enquanto lágrimas desciam incessantemente
de seus olhos, deixando marcas limpas em seu rosto sujo por
onde as lágrimas passavam. Sua expressão era vazia e ele
parecia não ter forças sequer para levantar dali.
Ela se aproximou ainda mais de forma curiosa. Toda vez
que entrava na mente de alguém era uma experiência
diferente, mas aquilo certamente era estranho.
Levann murmurava algo quase como sussurros, sem vida
movendo os lábios de forma singela e lenta.
— Minha mãe não... por favor.
Quando o garoto levantou o olhar ao encontro de sua mãe,
processou alguns poucos segundos e caiu em prantos.
— Mãe! Me tira daqui... eu juro que não fiz de propósito.
Eu consigo curar você mãe. Por favor me tira daqui igual a

69
última vez. — Ele sentou e logo em seguida se ajoelhou,
segurando a barra do vestido de sua mãe, agora manchado de
sangue vermelho que continuava a escorrer.
Sarah ajoelhou ao seu lado e abraçou seu filho, sentindo
sua barriga formigar ainda mais conforme o sangue escorria.
Beijou os cabelos loiros de seu primogênito e os acariciou
com receio. Após um momento em silêncio ela o abraçou
mais forte, sentindo o cheirinho de seus cabelos, lembrando
de quando Levann era apenas um neném cheirosinho e sem
problemas, que ela ficava brincando com os cabelos loirinhos
dele que insistiam em ficar arrepiados.
Abraçar Levann era como segurar o próprio Sol da manhã,
não quente ao ponto de queimar, mas o suficiente para fazer
você querer ficar ali se aquecendo, enquanto todo o resto do
mundo parece frio.
Logo lágrimas começaram a surgir dos olhos de Sarah,
conforme a mancha em seu vestido ficava maior e maior. Ela
sabia o que deveria fazer, e fez essa escolha assim que entrou
na mente de seu filho.
— Querido... olha pra mim. — Ela segurou as bochechas
de Levann enquanto conversava com ele, deixando as suas
próprias lágrimas contornarem o sorriso dela. — Vai ficar
tudo bem, tudo isso vai passar agora.
Ela, com os polegares, enxugou as lágrimas do príncipe e
deu um beijo em sua testa.
— Preciso que me escute agora, ok? — Ela balançou a
cabeça, até que Levann fez o mesmo, assustado, porém
confiando em sua mãe. — Eu não costumo dizer isso, você

70
sabe como é sua mãe. Eu amo você, seu pai e... e a Elise. —
Ela se engasgou com as palavras, segurando o choro.
— Mãe, não vai acontecer nada com você. Me tira daqui
por favor eu sei que você consegue. Como da última vez. Por
favor mãe.
— Promete pra mim que você vai cuidar da Elise. Promete
pra mim que você vai viver.
— Mãe! Não! — Ele gritou.
— PROMETE PRA MIM! — Sarah fechou os olhos,
levantando o tom de voz acima do de seu filho, algo que
nunca havia feito.
— Eu... eu não quero ficar sem você mãe! — Ele tentou se
soltar das mãos de Sarah, mas seu próprio corpo não
respondia ao que ele fazia.
Ela estava segurando-o.
— Essas crises vão parar agora Levy. Eu prometo pra
você, eu vou fazer parar. Só me prometa que você não vai
desistir. Prometa que você vai viver e crescer pra ser um rei
melhor do que seu pai é.
Levann, ao olhar para o vestido de sua mãe e ver que agora
ele se tornara completamente vermelho, percebeu que não
havia mais tempo. Derrotado, ele assentiu com a cabeça,
única coisa que seu corpo permitiu que fizesse.
Sarah libertou seu filho e o abraçou tão forte como nunca,
sentindo pela última vez os cabelos macios de Levann sobre
sua bochecha. E enfim fechou os olhos.

71
A escuridão do local começou a se dissipar, as sombras
foram encolhendo e recuando como animais assustados,
dando lugar à vista que Sarah vira uma vez quando Levann
era criança: Uma imensidão coberta de água cristalina, o céu
azul infinito pairando acima de suas cabeças e um calor
aconchegante indescritível. A única diferença era que, à sua
esquerda, a partir de certo ponto tudo ainda parecia escuro.
Não de forma hostil, mas sim natural, representando aquilo
que Sarah queria que acontecesse.
— E agora mãe? — Perguntou Levann, que agora estava
completamente limpo do lodo preto. — Eu não quero ficar
sem você.
Ela apenas sorriu.

Quando Levann acordou, o corpo de Sarah jazia sem vida


sobre o carpete da biblioteca. Um doce sorriso ainda estava
em seus lábios e um enorme buraco em sua barriga jorrava as
últimas gotas de sangue, que agora cobria grande parte do
corpo de Levann.
Desesperado ele olhou em volta e ajoelhou ao lado do
corpo de sua mãe, posicionando as mãos acima de sua
barriga, de onde uma luz dourada muito intensa saiu em
forma de fios dourados que iam até o corpo de Sarah,
fechando o buraco em sua barriga e o cicatrizando-o. Em
seguida os mesmos fios dourados voltavam para as mãos do
príncipe, que se pôs a urrar de dor. Sua barriga queimava e
ele pôde sentir toda a dor que sua mãe sentiu naqueles
momentos. Sentiu as garras dentro de seu estômago se

72
aprofundando cada vez mais causando uma dor insuportável
que quase o fez desistir de curá-la, mas ele não parou. Em
lágrimas incessantes ele continuou até que todo o ferimento
fosse cicatrizado.
Ele tocou o corpo de sua mãe para acordá-la, mas já estava
frio, sem vida.
Levann pôde sentir seu coração despedaçando-se, caindo
aos pedaços, gélido, vazio, escuro. Ele havia feito aquilo.
Tudo o que ele mais temia enfim aconteceu, ele matou Sarah,
sua mãe, a única que sabia de seu segredo e que fez de tudo
para que ele voltasse ao normal, a única que acreditou que as
coisas poderiam melhorar quando nem mesmo ele acreditava.
O fio de esperança em sua vida agora estava rompido, a
chama do amor, da felicidade e das coisas boas havia se
apagado.
Agora restava apenas o vazio.
Ele ficou sentado em frente ao corpo de Sarah abraçando
seus joelhos até o amanhecer, com lágrimas escorrendo por
seu rosto, que não esboçava sequer uma única expressão.
Restara em si apenas o nada.
Foi então que ele ouviu passos. As pessoas estavam
acordando e indo trabalhar. Logo veriam o que ele havia
feito, logo veriam que Sarah Klaus estava morta. E que era
tudo culpa dele. Levann então decidiu que se entregaria,
contaria a seu pai o que aconteceu e ele então viveria para
sempre em Tempus, junto a demônios e criminosos
imperdoáveis. Isso se seu pai tivesse misericórdia e o
deixasse vivo, o que ele achava impossível.

73
Conforme ele caminhava em direção à porta, inteiramente
coberto de sangue e decidido a se entregar para o destino que
seu pai decidiria ele ouviu:
Viva.
Ele pôs a mão na maçaneta da porta, ignorando sua própria
mente.
Viva.
Estava delirando? Levann reconhecia aquela voz. Ele
então destrancou a porta.
Viva, Levy.
Algo dentro dele fazia seu coração acelerar, sua respiração
ficar ofegante enquanto ele caminhava pelos corredores
vazios daquela ala do castelo. Sua cabeça latejava, pulsando
com fervor.
Fuja.
Não. Pensou, lutando contra a voz em sua cabeça.
Seus pés pareciam querer contrariar seus passos em
direção ao escritório de seu pai, tornando difícil demais andar,
apesar do esforço que o rapaz fazia. Por mais que ele tentasse
arduamente, seus pés não se moviam mais do que alguns
centímetros.
Viva. Você prometeu.
Levann então ficou paralisado por um momento, pensando
no que Sarah havia dito. Cerrou os punhos e se deixou levar
pelo seu próprio corpo, que se pôs a caminhar na direção
contrária. Ele movia-se sozinho, como se tivesse vontade

74
própria. Passando pela frente da biblioteca, onde havia
deixado Sarah, ele suspirou, contendo mais lágrimas.
Não se preocupe querido.
Ele correu pelos corredores. Foi quando ele viu de relance,
uma figura baixinha de pijamas andando em direção à
biblioteca. Seus cabelos loiros trançados e os olhos azuis
inocentes jamais poderiam prever o que estaria prestes a ver.
Pobre Elise. Ela desviou o olhar para Levann, que corria
desesperado coberto de sangue, o que a fez se assustar e
questionar o que estava havendo, por um momento Elise quis
correr atrás de seu irmão, mas, ao ver o rastro de sangue, ela
começou a correr para a biblioteca.
Ela abriu a porta.

Quando chegou do lado de fora do castelo, Levann já havia


sido avistado por vários funcionários, que tentaram pará-lo,
mas ele desviava e continuava correndo. Após um grito alto e
estridente de Elise, guardas começaram a segui-lo depressa,
mas Levann era muito ágil para eles.
Fuja.
Ele avistou Blackjack acordado, que abriu as asas feliz ao
vê-lo. Quando percebeu o sangue, a ave aquietou-se e
observou quando seu amigo veio até ele, colocou as rédeas de
segurança em seu pescoço e o montou, tremendo de medo e
com lágrimas incessantes descendo pelo seu rosto inchado e
levemente dourado.
Viva.

75
— Vamos, Blackjack.
Quando os guardas chegaram até as águias, Levann e
Blackjack já haviam levantado voo e seguiam pelos céus,
sobrevoando as florestas mortas pelo frio do inverno e
cobertas de neve. Seguiam o curso do rio que desaguaria no
oceano, à frente eles podiam ver muito ao longe um
vislumbre de terras novas. Os céus escureciam conforme os
dois se aproximavam, tomando tons de um vermelho escuro e
pútrido.
Na noite passada o rei Dapher havia enfraquecido a
barreira de proteção para que os vermelhos viessem ao baile
da rosa de cristal e voltassem para casa em segurança.
Blackjack estava tão assustado quanto Levann, mas
confiou em seu amigo, enquanto eram seguidos ao longe por
diversos guardas de Jaya montados em águias brancas.
Levann então tomou a decisão de sua vida, a decisão de ir
para um lugar que qualquer pessoa em sã consciência jamais
iria, para um lugar temido por todos, conhecido como o
inferno na Terra. O lugar onde nossa história continua.
Ele cruzou a barreira.

76
Parte 2

77
ALYCIA

4
O universo sempre fora regido pelo equilíbrio, pelo
consenso entre opostos mutualmente dependentes. A vida e a
morte, a luz e as trevas. Um jamais poderá existir sem o
outro. Caso contrário o caos sempre será o resultado.
Em um lugar como Bloodstate, a ausência do equilíbrio já
causou guerras, mortes e desespero. Afundados nas trevas
eternas eles se viram obrigados a buscar o equilíbrio em

78
coisas mundanas e fúteis, ressignificando coisas, situações e
pessoas. Um lugar em que alguns humanos são tratados como
deuses, e outros são a pior escória já vista.
Violência, discriminação e abusos de todos os tipos são
normalizados. Um reino dividido entre deuses, serviçais e
demônios, onde a felicidade parece inalcançável e o medo é a
única coisa que os protege da morte.

Eram os últimos dias do outono e a pouca luz que


atravessava as nuvens vermelhas de Bloodstate parecia
escorrer por entre a folhagem dos altos pinheiros como os fios
quebrados de uma marionete triste. A névoa espessa vinda do
Lago Congelado dificultava a visão de qualquer um que se
aventurasse pelo meio daquela floresta silenciosa, fria e
sombria. Mal se ouvia a respiração de uma pequena garota de
cabelos tão escuros quanto a própria noite, pele pálida como a
névoa e de olhos púrpuras como ametistas recém polidas. Ela
caminhava silenciosamente pela terra úmida, já acostumada
com a baixa visibilidade daquela região. Empunhava em seu
cinto de couro uma faca prateada pequena demais para
pessoas comuns, mas do tamanho perfeito para uma garota
daquela idade.
Seus olhos preocupados buscavam o momento certo de
agir. Após conseguir subir em um dos pinheiros e se esconder
por entre as folhas ela esperou pelo o que pareceram horas.
Seus pés doíam e farpas da madeira entravam em suas mãos,

79
mas havia um motivo maior para ela estar ali, e não abriria
mão de seu posto até ter o que queria.
Foi então que ela ouviu.
Alguns metros abaixo, as folhas anteriormente
posicionadas por ela agora farfalhavam. Aquele foi seu sinal.
Um cervo que caminhava por ali, provavelmente o último que
veria antes do inverno, acabara de pisar sobre sua armadilha.
Ela então pulou da árvore com destreza até o pescoço do
animal e fincou a faca sem muita dificuldade, ceifando a vida
de sua presa.
A comida era escassa e ela era a única apta a sair de casa
para caçar naquela última semana. Seu mestre havia perdido a
perna em batalha, e seu irmão estava tão machucado que não
conseguia levantar da cama, correndo risco de vida. Restara a
uma criança de dez anos ir atrás de alimento para os três, mas
ela estava preparada para isso, a vida nunca foi justa com seu
povo e muito menos com sua família.
Com muita dificuldade ela carregou o corpo do cervo por
entre a floresta. Ele era pesado e o sangue ainda escorria da
ferida em seu pescoço, mas, por mais que ela precisasse
voltar para casa rápido, ainda havia algo que ela precisava
daquele lugar, e sabia bem onde encontrar.
A garotinha seguiu por entre a névoa até uma clareira no
meio da floresta para um lugar que mais parecia um sonho.
Com uma enorme árvore no meio e rosas brancas que
estranhamente cresciam pelo chão. Ela soltou o cervo e
colheu algumas rosas para levar consigo, tentando ignorar os

80
espinhos que lhe perfuravam os dedos. Caminhou lentamente
por conta do peso do animal, que estava sendo obrigada a
arrastar devido ao tamanho. O caminho parecia interminável,
mas a fumaça negra que subia por entre as árvores lhe
mostrava que estava perto de sua casa.
Roseville era um lugar que não se podia chamar de lar,
apenas de abrigo. Era um local simples com diversas cabanas
de madeira acabada se erguendo em forma de U em volta de
uma enorme fogueira, agora acesa para aquecer seus
moradores. O vilarejo fora escondido por entre as árvores e
protegido por magia de essência de magnólia, uma flor cujo
néctar, se bem usado, tem o poder de ocultar coisas, lugares e
pessoas.
Todos estavam tão inertes em conversas paralelas ao redor
da fogueira que mal perceberam a pequena criança arrastando
o cervo para trás de uma das cabanas. Ela subiu os três
degraus que davam até a porta e bateu em uma sequência que
só a família conhecia. Ouviu as trancas rangerem do lado de
dentro e logo a porta foi aberta.
— Entre Aly, está frio aí fora. — A voz rouca de Cahan
reverberou nos ouvidos da pequena Alycia.
Quando ela entrou, seu mestre logo fechou a porta e Alycia
pôde sentir então o familiar calor da forja de Cahan preencher
o ambiente. O chalé, por fora, parecia menor do que
realmente era. À esquerda da porta ficava a forja de Cahan,
com muitos metais brilhantes, diversas armas prontas eram
penduradas pelas paredes escuras enquanto outras não
finalizadas estavam em barris ou sobre a bancada. À direita

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haviam duas camas, uma de cada lado do cômodo, com um
espaço estreito entre elas onde uma escada de madeira subia
para uma escotilha no teto. O fogo crepitava numa lareira que
era usada apenas para aquecer os metais, deixando todo o
interior do chalé com uma luz cálida alaranjada.
— Aqui, eu levo isso. — Disse o mestre enquanto pegava
o cervo da pequena garota. — Você foi muito corajosa
Alycia. — Ele bagunçou os cabelos negros dela e sorriu.
Cahan tinha por volta de seus trinta e poucos anos. Cabelos
castanhos como carvalho escuro com alguns fios grisalhos
assim como sua barba e olhos em um tom de violeta intenso,
com uma sombra do que um dia serão rugas se formando ao
redor deles. Seu corpo era grande e seus músculos eram bem
definidos e saltados devido ao esforço intenso da forja e de
seus anos de treinamento. Foi fácil para ele carregar o cervo,
que parecia apenas um filhote perto de seu tamanho.
Conforme ele andava, mancava por conta de sua perna
esquerda que perdeu em batalha, e que agora fora substituída
por uma engenhosidade metálica mal acabada.
Alycia deixou as rosas brancas que havia colhido em cima
da mesa e foi tomar um banho para tirar o sangue de cima
dela. Após isso pôs sua roupa favorita: Uma calça preta e um
casaco roxo de gola alta que havia ganhado de presente de seu
irmão, Lukas. Depois de se ajeitar no segundo andar ela
voltou para a forja e ferveu um caneco com água, onde
colocou as pétalas das rosas que colheu mais cedo. Aos
poucos a água ia tornando-se branca como leite, exalando um
perfume de rosas que Alycia adorava. Ela coou o chá, pôs em

82
uma xícara e levou até uma figura deitada de bruços em uma
das camas do chalé.
Lukas estava sem camisa, com as costas inteiramente
banhadas em sangue pelos machucados das chicotadas que
recebera mais cedo. Seus cabelos vermelhos como o céu de
Bloodstate agora estavam banhados em suor assim como todo
seu corpo. Trabalhar para os vermelhos não era fácil,
qualquer erro era motivo de chibatadas em praça pública e,
em casos mais graves, até mesmo a morte era uma punição.
A pequena puxou uma cadeira para o lado da cama de seu
irmão e sentou com a xícara de chá em mãos. Após alguns
momentos em silêncio perguntando-se por que tinham que
viver daquela maneira ela pôs a mão nos cabelos molhados de
Lukas e suavemente tamborilou os dedos na cabeça dele,
descendo para sua bochecha tentando acordá-lo de forma
gentil.
— Lu, eu trouxe chá. Você consegue tomar? — Sussurrou
Alycia.
Com dificuldade e desconforto evidentes, o ruivo aos
poucos abriu os olhos, tentando processar onde estava e o que
estava acontecendo. Quando caiu a ficha da situação atual, o
brilho de seus olhos púrpuras desapareceu completamente.
Suas costas ardiam e ele claramente queria urrar de dor, mas
estava cansado demais para isso, e não queria preocupar ainda
mais sua irmã, sua última familiar restante.
Tremendo muito, Lukas conseguiu se pôr sentado na
beirada do colchão velho, cada movimento de sua respiração

83
parecia arrancar outro pedaço de suas costas, a dor era tanta
que afetava sua visão e tudo parecia distorcido e um tanto
acinzentado.
Mas ele sorriu.
— Era pra eu cuidar de você, não o contrário.
Ela entregou o chá para ele e, ao primeiro gole, as feridas
nas costas de Lukas começaram a se fechar, cicatrizando não
de forma perfeita, mas o suficiente para que ele parasse de
sangrar e não sentisse mais nenhum resquício daquela dor de
segundos atrás.
Quando terminou de beber, Lukas fez uma careta enjoada.
— Argh. Muito doce.
— Eu gosto. — Respondeu Alycia, pegando a xícara de
volta das mãos dele e levando até uma bancada de madeira
com outras louças.
— Você gosta de doces, certo? — Perguntou Lukas,
voltando a deitar na cama de bruços, já fechando os olhos.
Alycia assentiu com a cabeça e concordou com um
murmúrio quase inaudível.
— Vou trazer uns pra você da próxima vez.
Se deixarem você voltar vivo. Pensou Alycia.
A pequena era completamente contra a ida de Lukas para
dentro das muralhas para trabalhar para os vermelhos, mas
seu irmão insistia que eles precisavam de dinheiro para

84
comida e roupas, já que não era sempre que encontravam
animais nas caçadas.
Lukas logo caiu no sono devido à exaustão. A pequena
então dirigiu-se até ele, beijou os cabelos ruivos de seu irmão
adormecido, ajeitou as cobertas dele sobre as costas cheias de
cicatrizes e saiu do chalé, sentando na escada que havia na
frente da porta, dando vista à enorme fogueira do centro de
Roseville que crepitava suavemente, esfumaçando aos céus.
Havia algumas pessoas em volta da fogueira aquela noite,
adultos conversavam entre si e crianças de todas as idades
brincavam por aí. Quando passavam em frente ao chalé dos
irmãos Blake, todos faziam silêncio e observavam Alycia
com olhares cruéis, enojados e hostis, mas ela mal se
importava.
Olhando para os céus cobertos de nuvens vermelhas
Alycia pensou como seria ver o que está do outro lado, como
seria ver a imensidão do céu que um dia ela ouvira dizer ser
azul. Pra ela era algo inimaginável, fora de sua realidade
atual. Por vezes ela se encontrava pensando no país vizinho,
Jaya. Montanhas de diamante, um céu azul infinito, estrelas,
florestas que falam com você. Sempre que se via perdida em
pensamentos fantasiosos sobre um local que ela nunca veria
Alycia sacudia a cabeça e voltava à sua realidade em
Bloodstate. Somos roxos, por isso dizem que não somos
pessoas? Pela cor dos nossos olhos as pessoas têm que ser
más com a gente? Não é justo.
Durante a noite as nuvens de sangue de Bloodstate ficavam
mais escuras, o céu tornava-se praticamente negro e até

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mesmo ver a copa das árvores era difícil, mas Alycia
continuava a observar aquela escuridão, sem notar que
crianças se aglomeravam ao pé da escadaria de seu chalé. Até
que...
— Olha só a esquisitinha sem poderes. — Disse uma voz
feminina um tanto aguda. — Nem Jaya gostou de você, por
isso nasceu sem.
Alycia abaixou o olhar para as crianças, quatro no total,
todas mal vestidas apesar de limpas e com sorrisos maldosos
no rosto. Pareciam mais velhos do que ela, por volta de doze
anos.
Ela apenas encarou a criança que a atormentava, sem
proferir uma única palavra. Sempre fora uma criança muito
quieta e retraída, acostumada a lidar com xingamentos das
pessoas de sua idade. Com o rosto pálido impassível de
mudança ela se levantou da escadaria e deu as costas para os
quatro, subindo de volta para o chalé.
— Pelo visto não foi só Jaya que não gostou, a mãe a
abandonou também. — Um garoto um pouco mais alto e
gordinho zombou, dando um passo à frente e estendendo a
mão em direção a Alycia, de onde um brilho arroxeado
começou a surgir, junto a faíscas. Raios.
Um feixe de relâmpagos atingiu o corpo de Alycia, que
gritou de dor ao sentir os músculos de seu corpo se contraindo
com a descarga elétrica. Ela caiu sobre a escada, com um alto
baque de sua cabeça na madeira. Seu pulmão parecia queimar
e mal conseguia ficar em pé, ela então se apoiou pelos

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cotovelos na escada, tentando levantar-se sem sucesso. As
crianças riam ainda no pé da escada, e um dos garotos, após
fechar os olhos, começou a se dissipar na escuridão da noite,
esfumaçando lentamente com um sorriso maquiavélico no
rosto. Após alguns segundos a sombra abaixo do corpo de
Alycia começou a aumentar e mudar de forma, e de dentro
das trevas uma mão humana emergiu, agarrando-se ao
tornozelo de Alycia e lentamente a puxando para dentro da
escuridão gélida, que parecia até mesmo líquida.
O garoto era um Sombrio, podia fundir-se às sombras,
controla-las a seu favor e tinha passagem livre para o mundo
das sombras, podendo usar qualquer sombra – até mesmo de
uma árvore – como portal para lá. Haviam poucos registros
sobre o mundo das sombras, mas nenhum deles era agradável.
O tempo passava diferente lá dentro, segundos do lado de fora
poderiam ser dias, semanas lá.
Alycia sabia que aquele garoto não a deixaria sair tão cedo.
— N-não... Lu... — Ela tentou proferir algo antes que
fosse puxada para o mundo das sombras, mas as palavras mal
saíam de seus lábios fracos e pálidos.
Até que algo a segurou pelo braço com força e a puxou de
volta à superfície, aninhando-a em seus braços fortes. Ela
pôde então sentir aquele cheiro doce de alguma planta que
Alycia sempre esquecia o nome, mas que lhe acalmava toda
vez que sentia.
— Aí seus merdinhas, pega.

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Lukas, fervendo em ódio e com sua irmã nos braços, jogou
ao vento um pedaço de papel amassado. Os garotos, sem
entender, pegaram o papel no ar e desdobraram-no. O papel
começou a queimar e eles o jogaram no chão, se afastando.
Aquilo foi se transformando aos poucos e crescendo, tomando
uma forma desigual e de início pegajosa. Após alguns breves
momentos, o que antes era um pedaço de papel agora havia se
transformado em uma criatura enorme. Um leão com uma
juba flamejante e olhos negros erguia-se diante das crianças
assustadas, que se afastavam lentamente, sem acreditar no
que estava diante deles. Nunca ninguém havia feito aquilo,
aquela criatura sequer existia?
O ruivo colocou Alycia no chão com certo cuidado, tendo
a certeza de que ela agora conseguiria ficar em pé sozinha e
caminhou até o lado do leão flamejante, que rosnava para os
quatro gatinhos assustados e paralisados a sua frente. O
elemental de relâmpagos tentou evocar alguma fagulha de seu
poder, mas falhava constantemente devido ao medo, as
faíscas roxas surgiam e logo desapareciam.
Lukas, ainda sem camisa e com as cicatrizes novas
expostas, tirou do bolso de suas calças outro pedaço de papel,
dessa vez apenas rasgado nas pontas. Este começou a queimar
e, assim como o outro, foi se transformando aos poucos até
tomar a forma de uma lança vermelha com detalhes em
dourado. O ruivo a segurou na mão e apontou na direção das
crianças.
— Se eu ver qualquer um de vocês aqui novamente... — O
leão então rosnou alto o suficiente para que todos do vilarejo

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ouvissem, pessoas se punham para fora das casas para ver o
que acontecia, sem ousar interferir no que acontecia.
As crianças que atormentavam Alycia então correram para
dentro de suas casas, amedrontadas. Lukas subiu as escadas,
fazendo tanto a lança quando o leão desaparecerem em
chamas que evaporaram em um segundo. Ajoelhou em frente
a sua irmã, colocando as mãos no rosto dela, que estava
claramente abalada e magoada com a situação.
— Aly você está bem?
Ela deu de ombros, desviando o olhar.
— Ei não faz isso, não ligue pra eles. Você sabe que não é
verdade, não sabe?
— Mas... Realmente abandonaram a gente.
Lukas cerrou as sobrancelhas
— Você sabe que não foi isso o que aconteceu. Mamãe e
papai...
— Morreram. — Interrompeu Alycia. — Eu sei, eu sei.
Mas não é justo. Se eles estivessem aqui eles me ensinariam a
usar meus poderes! Eu sei que tenho, só não sei usar ainda!
Os olhos da pequena, que usualmente eram inexpressivos e
vazios, agora estavam marejados, com um brilho suave de
esperança que embrulhava o estômago de Lukas. Eles haviam
tentado de todas as formas despertar algum poder em Alycia.
Testaram se ela seria sombria, sanguinária, silenciadora,
elemental ou até mesmo Berserker, mas nada funcionava.

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Normalmente crianças despertam seus poderes aos cinco
anos, e Alycia já fizera dez e até agora nada, nenhuma
fagulha.
Antes que Lukas pudesse dizer alguma coisa, os irmãos
ouviram de dentro do chalé seu mestre os chamando para o
jantar, comeriam o cervo que Alycia trouxera.
— Vem picolé, esquece esses bobões, abobalhados e
bobocas.
Alycia sorriu de canto enquanto ambos entravam no chalé.
— Você os chamou da mesma coisa três vezes.
— Chamei? Tem certeza? Absoluta? Não sei não hein.

Naquela noite, enquanto os dois irmãos dormiam, o chalé


da família Blake recebeu uma visita um tanto quanto...
inesperada.
As batidas na porta durante a madrugada eram incomuns,
Cahan não as reconheceu até se aproximar da janela e olhar
discretamente pela cortina. Quando abriu a porta, a figura
encapuzada de corpo robusto e armadura metálica entrou no
chalé e imediatamente passou o olhar pelo interior até pousar
nos irmãos adormecidos no cômodo direito da porta. Pôs-se a
caminhar em passos lentos até eles, sendo interrompido ao
chegar aos pés da cama de Lukas.

90
— O que você quer aqui? — Perguntou Cahan, com o
braço em frente ao homem encapuzado.
— Deixe-me leva-los para CrimsonScale, serão de maior
utilidade ao meu lado. — Respondeu em tom de soberania.
— Sabe que não posso coloca-los em risco. Eu prometi a
ela que cuidaria dos dois.
Ele abaixou o capuz e, com seus intensos olhos vermelhos,
encarou o guardião dos irmãos Blake, aproximando-se,
imponente.
— “Ela” está morta. Você sabe disso tão bem quanto eu.
Cahan balançou a cabeça em negação e afastou-se do
homem que conseguia ser ainda maior do que ele. Buscou
uma cadeira e sentou-se no espaço entre as duas camas com o
corpo inclinado para a frente com os braços apoiados sobre os
joelhos e os dedos entrelaçados. Após levantar o olhar para o
homem de armadura negra à sua frente ele disse:
— Não, Magnus, Jaya não está morta.

Alycia acordou com o som das marteladas de Cahan contra


os metais que estava preparando. O som era estridente e fazia
sua cabeça doer ao ponto de ela tentar colocar o travesseiro
sobre os ouvidos, mas não era o suficiente para abafar o
rangido de metal contra metal. Ela então sentou-se na cama
com os olhos semiabertos, os cabelos escuros bagunçados e
coçou a cabeça, claramente incomodada. Pôs os pés para fora

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da cama e tocou o chão gelado com os pés descalços, recuou
por um segundo para debaixo das cobertas, mas logo tomou
coragem e levantou finalmente. De cara fechada ela caminhou
até o pequeno banheiro que ficava nos fundos do chalé e
lavou o rosto pálido, que continuou com aspecto cansado,
mas era o suficiente para que ela não se sentisse um zumbi.
Quando voltou para o cômodo principal Alycia encontrou
seu irmão arrumando-se para mais um dia de trabalho, ele
vestia roupas de primeira mão bem ajeitadas e limpas, ao
contrário das outras roupas que Lukas usava quando estava
em casa. Ele parecia tranquilo, como se as chibatadas do dia
anterior não tivessem o afetado como deveriam. Quando
terminou de se arrumar, ele percebeu uma pequena Alycia
paralisada a poucos metros dele, com as sobrancelhas
cerradas assim como seus pequenos punhos. Ela estava
furiosa.
— Você vai mesmo voltar pra lá? — Perguntou Aly, sem
olhar para seu irmão.
Lukas suspirou e coçou os cabelos vermelhos, tentando
pensar em algo que pudesse aliviar a tensão de Alycia.
— Olha... — Ele se aproximou dela e se abaixou para ficar
de seu tamanho, colocando as mãos em seu ombro com um
sorriso suave e triste nos lábios. — Você sabe que eu preciso
fazer isso, Aly. Não é como se eu tivesse escolha.
— Mas eles vão mata-lo! — Gritou a pequena, com os
olhos marejados. — Você vai me deixar sozinha? Vai me
abandonar como a mamãe abandonou a gente?
O abraço de Lukas era o lugar favorito do mundo de
Alycia, e o ruivo sabia bem disso. Quando ele a segurou com

92
força em seus braços, ela pôde sentir o suave cheiro de
alguma planta que Alycia sempre esquecia o nome, não
importava quantas vezes ele dissesse que era cheiro de erva
doce. Ela derramava lágrimas sobre o ombro de Lukas, que
acariciava os cabelos escuros de Alycia com delicadeza.
— Promete que você vai voltar. — Pediu com voz de
choro.
— Eu sempre vou voltar.
Lukas se despediu dela e de Cahan e saiu pela porta, em
direção às muralhas de titânio que separavam a capital
CrimsonScale do resto do mundo.
— Você devia confiar mais no seu irmão, Aly. Sabe como
ele é forte.
A pequena Alycia, enquanto enxugava as lágrimas de seu
rosto inchado, aproximou-se de seu mestre e sentou em um
banquinho alto que ele havia construído para que ela o
observasse trabalhando. Enquanto Cahan martelava para tirar
as impurezas de um machado de duas lâminas, Alycia
observava em seu pescoço um colar prateado com um
pingente um tanto peculiar: Uma foice com duas pedrinhas
coloridas: Uma vermelha e uma amarela.
Algo naquilo parecia chamar por Alycia, como se falasse
em seus ouvidos de forma irresistível. Era magnífico,
cativante. Nada mais existia, apenas aquele pingente que
balançava lentamente no pescoço suado de seu mestre e
guardião.

93
— ...Aly? Alycia? — Cahan acenou em frente ao rosto da
pequena, que saiu de seu transe após um estalar dos dedos
grossos e calejados do mestre. — O que houve?
— Uhm... O que seria isto? — Ela apontou para o colar.
Ele segurou o pingente entre os dedos e observou a foice
com surpresa evidente, como se houvesse esquecido que
aquilo estava ali.
— Ah! Isso? Bom... — Cahan procurava palavras para
descrever o objeto, trocando olhares com Alycia e com o
pequeno pingente de foice. — Um dia eu te conto. Melhor
explicar quando você for um pouco mais velha.
— Parece importante.
— E é, muito.
Cahan voltou a martelar o machado, cuja lâmina parecia
perfeita aos olhos de Alycia, mas pelo jeito ela não entendia
muito o que seu mestre estava fazendo. Começou a ponderar
sobre seu irmão, preocupada com a situação dele dentro das
muralhas de CrimsonScale. Ele sempre a defendera de tudo, e
ela não sentia-se capaz de fazer absolutamente nada por ele,
apenas assistia ele ir embora todos os dias para um lugar onde
Lukas corria risco de vida a cada momento. Seu coração
apertava por querer fazer algo por seu irmão, então ela
começou a pensar em uma maneira de tirar Lukas daquela
situação.
Ela decidiu que buscaria ele pessoalmente. Como? Ainda
não sabia, mas Alycia colocou em sua cabeça que buscaria
seu irmão e o protegeria das garras dos vermelhos da mesma

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forma que ele a defendia das crianças que a incomodavam em
Roseville.
— Mestre.
— Sim? — Perguntou Cahan, parando seu trabalho mais
uma vez.
— Você acha que um dia eu vou ter poderes? Como... todo
mundo.
Após ponderar por alguns segundos, Cahan aproximou-se
de Alycia, bagunçou os cabelos negros da garota e abriu um
enorme sorriso.
— A última flor a desabrochar é a mais bela de todas.
Os olhos de Alycia ficaram úmidos com aquela frase e ela
abriu um pequeno sorriso. Levantou da cadeira, abraçou seu
mestre, sendo quase da altura da cintura dele e saiu do chalé
com pressa evidente. Ao fechar a porta ela inspirou fundo e
olhou ao redor, seus olhos repousaram sobre as armas que
Cahan deixava de exposição do lado de fora, todas muito bem
acabadas e em pé numa espécie de cavalete ou suporte.
Alycia tentou segurar uma espada, mas era grande demais
e muito pesada para ela. Tentou então dois machados que
eram menores, mas algo lhe parecia estranho, não se
encaixava com ela e ficariam muito expostos, não conseguiria
esconder caso encontrasse alguém suspeito. Foi então que ela
se lembrou. Passando as mãos por seu corpo ela sentiu em seu
cinto de couro a mesma faca que utilizou para tirar a vida do
cervo do dia anterior. Tinha o tamanho e o peso perfeito. Ela
então partiu correndo em direção à floresta, para as altas
muralhas de titânio, para seus próprios lobos.

95
Ao ver as grandes muralhas de titânio pela primeira vez,
tudo o que Alycia sentiu foi medo. Um enorme
arrependimento de ter saído de sua casa e se posto em perigo
sozinha, sem ninguém para protege-la desta vez. Ela olhou
para cima e aquilo parecia interminável, reluzindo a luz do
Sol em tons de vermelho com dourado.
A floresta que abrigava Roseville acabava a muitos metros
antes das muralhas, que pareciam não ter nenhuma entrada
por aquele lado. Alycia então andou em volta das grandes
placas de titânio reluzentes até encontrar grandes portões do
mesmo metal. Em sua frente havia uma fileira de crianças
com algemas encrustadas de uma pedra brilhante que Alycia
ouvira falar algumas vezes: Diamantes.
Todas as crianças tinham vestes de segunda mão e olhos
púrpuras sem vida. A fila era guiada por um guarda
armadurado mal encarado com mãos que pareciam grandes
demais para o tamanho do resto de seu corpo. Alycia parou
próxima a algum lugar que pudesse se esconder e observou
até achar alguma brecha para se aproximar. O guarda então
virou de costas para as crianças e foi até as fechaduras dos
portões e estendeu a mão em direção a um pesado cadeado.
Das luvas de sua armadura o metal foi se retorcendo e
expandindo até se tornar uma chave que encaixou
perfeitamente na fechadura. Enquanto isso Alycia correu
silenciosamente para trás da fila, tentando não ser pega pelo
guarda enquanto as outras crianças a observavam com
desprezo e sussurravam “você é burra?” e “vai embora daqui
sua esquisita, eles vão ver você.”.

96
Mas ela permaneceu ali na fila, firme em sua ideia de
entrar nas muralhas e se infiltrar até encontrar Lukas e tirá-lo
das garras dos vermelhos. Ela certamente conseguiria, tinha
fé nisso.
Uma garota de cabelos prateados em frente a Alycia virou-
se para trás. Ela tinha um semblante exausto e o rosto pálido,
como se as algemas de diamante tirassem mais do que apenas
sua liberdade. Alycia se surpreendeu com o fato de a garota
ter olhos vermelhos e estar naquela situação.
— O que você tá fazendo aqui, garota? — Perguntou a
menina de cabelos prateados quase sem voz.
— Vim ajudar meu irmão. — Sussurrou Alycia, sem tirar
os olhos do guarda que agora abria os portões destrancados.
A menina riu com deboche e voltou-se para frente.
— Família, é...? — Ela disse para ninguém em específico.
Quando o guarda se virou para as crianças, logo percebeu
Alycia no final da fila sem algemas. Seu semblante havia
mudado de sério para furioso enquanto se aproximava da
pequena. Ele a segurou pelos cabelos e gritou a olhando nos
olhos:
— Você acha mesmo que vai fugir, merdinha?!
Ele a arremessou para dentro, fazendo com ela fosse
arrastada pelo chão áspero de pedra. O guarda então se
aproximou da garota caída no chão que tentava se levantar,
ela tentava se recompor sacando sua faca e apontando para o
vermelho a sua frente, mas ele, com um único movimento, a
chutou para longe. Alycia bateu as costas e a cabeça em um
dos pilares do que parecia um pátio cheio de pessoas e

97
carroças. Ela afundou até o chão com sua visão turva,
tentando discernir algo naquele borrão que se tornara sua
mente.
— Seu idiota, o que acha que está fazendo? Quer fazer a
gente perder dinheiro? — Disse uma voz que Alycia não
reconheceu, mas parecia amedrontar a todos, visto que o
silêncio instaurou-se no lugar no mesmo momento que aquele
ser abriu a boca.
— Ela estava tentando fugir, senhor.
O guarda que havia chutado Alycia, com um único
movimento de mãos do homem a frente dele, foi lançado ao
chão e pressionado intensamente contra a pedra áspera, como
se o peso do céu sobre ele tivesse ficado quinhentas vezes
maior. Sua armadura se retorcia, sendo inteiramente amassada
pelo nada, pressionada no chão da mesma forma.
— Não me dirija a palavra.
Ele então se aproximou-se da pequena Alycia, agaixou até
que ficasse da altura da mesma e segurou o rosto dela entre os
dedos, a encarando com um enorme sorriso sarcástico. Os
lábios dele se moviam para formar alguma frase que Alycia
nunca ouviu.
Sua mente apagou.

Quando acordou, Alycia estava em um lugar


completamente novo. Uma luz dourada do final da tarde
entrava pela janela, que tinha cortinas brancas com uma faixa

98
vermelha na horizontal do tecido. Uma cômoda de madeira
escura havia sido posicionada na parede contrária ao colchão
em que Alycia havia acordado. A porta a sua frente não
parecia ter trancas, como se não se preocupassem que alguém
fugisse, já que Alycia agora estava com os pulsos presos com
a ajuda de algemas metálicas com diamantes encrustados.
Normalmente o contato com o diamante faz com que as
pessoas se sintam extremamente exaustas por terem seus
poderes drenados pela pedra, mas Alycia não sentia
absolutamente nada, apenas o vazio frio e familiar que
sempre lhe correu pela espinha.
Ela tentou levantar do colchão mas sua barriga doeu
intensamente quando ela se moveu. Tremendo, ela então
levantou seu casaco roxo e viu sua barriga inteiramente
enfaixada, o que lhe trouxe de volta a memória daquele
guarda chutando sua barriga.
Onde ela havia se metido? Era óbvio que não ia conseguir
sozinha, sequer tinha poderes pra enfrentar crianças, que dirá
pra enfrentar vermelhos adultos e trazer seu irmão de volta.
Que ideia estúpida. Agora estava presa em um lugar que
ninguém sabia onde era, longe de qualquer pessoa que
conheça e correndo risco de vida. Será que um dia voltaria a
ver Lukas e Cahan? Ela tinha quase certeza de que não.
Precisava arranjar um jeito de sair dali o mais rápido
possível. Vasculhou em seu cinto e descobriu que a faca havia
sumido. Óbvio. Pensou.
Com muito esforço e muita dor ela conseguiu levantar do
colchão e foi até a porta que tinha um vitral em cima um tanto
alto para Alycia. Tentou abri-la mas estava trancada por fora.

99
Óbvio de novo. Pôs-se então nas pontas dos pés para tentar
enxergar algo pelo vidro, mas as únicas coisas que Alycia viu
foram uma placa em uma porta em frente à dela escrito em
dourado Arya Wynd e também uma moça vestida de branco
caminhando em direção à sua própria porta.
Quando a moça de vestido branco abriu a porta, encontrou
uma Alycia assustada se afastando em passos lentos, sem ter
realmente para onde fugir. Ela então percebeu que era dela
que a criança tinha medo e resolveu tentar acalmá-la,
aproximando-se ainda mais da pequena.
Alycia tropeçou no colchão do chão e caiu sobre o mesmo,
urrando de dor por conta dos ferimentos na barriga, o que fez
com que a moça de vestes brancas entrasse em estado de
alerta e fosse diretamente até Alycia e procurasse os
ferimentos pelo corpo da pequena, encontrando suas faixas na
região abdominal. Ela então posicionou as mãos acima da
região abdominal de Alycia e disse:
— Calma, já vai passar a dor, eu prometo.
Fios de luz dourada começaram a descer das mãos da
curandeira e penetrar a barriga de Alycia, voltando de volta
para as mãos da mulher após isso. O rosto da curandeira logo
começou a se contorcer de dor após absorver o que Alycia
sentia. Suor escorria pelo seu rosto agora cansado do esforço,
mas ela logo abriu um sorriso suave para a criança
boquiaberta à sua frente.
— Como... como você fez isso? Não dói mais. — Alycia
retirou as faixas de sua barriga, revelando uma pele lisa e sem
qualquer sinal de cicatrizes.

100
Sem dizer nada, a curandeira apenas se levantou do
colchão, bateu a poeira da roupa branca e estendeu a mão
para ajudar Alycia a se levantar. Assim ela o fez, encarando
profundamente os olhos verdes daquela que acabara de lhe
ajudar.
— Vamos, tem um vestido separado para você, queremos
que fique bem bonita para sua noite.
— Minha... noite?
Em cima da cômoda, um vestido branco com uma faixa
vermelha na altura da cintura repousava perfeitamente
dobrado. Com receio, Alycia se aproximou da peça de roupa
que era tão bonita quanto qualquer coisa que ela já havia
vestido em toda sua vida. Ela passou as mãos pelo tecido
macio como seda e olhou para a curandeira atrás dela,
buscando alguma aprovação de que ela realmente pudesse
usar aquilo. A moça de olhos verdes assentiu com a cabeça e
assim Alycia colocou o vestido, quando terminou de se trocar
ela agarrou o casaco violeta que seu irmão havia lhe dado de
presente e o segurou, virando-se para a curandeira.
— Não vou deixa-lo aqui.
— Tudo bem. Podemos senhorita...?
— Blake, Alycia Blake.
Ela abriu a porta e mais um guarda a esperava à porta,
inteiramente armadurado e com um semblante claramente
entediado. As meninas saíram do quarto e seguiram
caminhando juntamente ao guarda por um longo corredor
rodeado de lamparinas com um líquido dourado dentro que
Alycia não sabia o que era. Isso... brilha? Pensou.

101
Eles a levaram até um palco com chão de madeira escura
com cortinas vermelhas à sua frente.
— Pode ficar aqui, vai ficar tudo bem. — Disse a
curandeira, sorrindo antes de se afastar, deixando Alycia
sozinha no meio do palco.
Após um breve momento as luzes se apagaram e Alycia
pôde sentir a brisa suave das cortinas caindo.
O silêncio se instaurou. O vazio era quase tão palpável
quando a própria pele de Alycia. Ela não conseguia ver um
palmo à sua frente, mas conseguia ouvir respirações
descompassadas alguns metros à frente, vindas de baixo. A
escuridão parecia lhe abraçar, lhe apalpar e querer se apossar
de seu corpo, como mãos humanas gélidas tocando sua pele.
E então ela viu.
De muito longe ela viu uma faísca se acender, e dessa
faísca labaredas de fogo começaram a surgir e espalhar-se
pelo salão, passando por centenas de fileiras de assentos
ocupados por pessoas de máscaras brancas com detalhes
vermelhos diferentes umas das outras. O fogo parecia dançar
pelo salão de forma controlada, acendendo tochas das paredes
e luminárias em um caminho vertical do palco onde Alycia se
encontrava até a origem do fogo: Uma garota de cabelos
dourados com as pontas rosas que trajava um lindo vestido
vermelho justo com cristais e glitter na parte da frente e um
corte lateral que deixava sua perna esquerda exposta. Ela
tinha uma gargantilha preta com um pingente de coração
vermelho pendurado e um bracelete dourado no braço
esquerdo quase na altura do ombro.

102
Alycia ficou encantada com a garota, não somente por sua
beleza inquestionável, mas pelo fato de que, mesmo àquela
distância, ela podia ver que os olhos daquela mulher
brilhavam como dois rubis polidos perfeitamente.
Diferentemente de todos no salão, aquela mulher não usava
máscara, seu rosto de porcelana estava completamente
exposto.
— Obrigado Vidya, disse um alto homem mascarado, que
a segurou pelo braço com força e a levou de volta para o
assento. Este estava muito bem vestido, com um terno branco
e gravata vermelha bem atada.
Ele sentou ao lado de Vidya e passou o braço sobre os
ombros da garota, que parecia esforçar-se para não
demonstrar nojo.
— Senhoras e senhores. Digníssimos convidados. — Uma
voz grave pareceu reverberar pela cabeça de Alycia, como se
ele estivesse falando dentro de sua mente. Ela olhou em volta,
mas não viu ninguém tão próximo dela para falar naquela
altura. — Comecemos hoje com essa peça que veio até nós
voluntariamente em perfeito estado, cerca de dez anos de
idade e beleza inquestionável. O lance inicial será de dez
moedas de prata.
O quê? Lance? O que está acontecendo? Pensou Aly,
olhando em volta claramente confusa.
Diversas pessoas levantavam as mãos, enquanto a pequena
criança procurava uma saída, agarrando com força o casaco
roxo em suas mãos e tentando ir embora daquele lugar o mais
rápido possível. Não! Lukas! Ao verem que ela tentava fugir,
guardas se aproximaram da criança, mas apenas um foi

103
necessário para pará-la. Um Sol’Din. O mesmo que falava na
mente de todos daquele local.
Alycia sequer viu seu rosto, mas com um único gesto de
mãos ele fez com que todo o sistema nervoso de Alycia
parasse de funcionar por um momento, e ela caiu no chão,
sem conseguir se mover ou emitir qualquer palavra, estava
paralisada. Lágrimas escorriam por suas bochechas até o chão
frio de madeira no qual se encontrava agora.
Como ela foi se meter nessa situação? Apenas queria
salvar seu irmão, provar para si mesma que poderia defender
a única pessoa de sua família que restava com sua própria
força, talvez até mesmo despertar seus poderes enquanto isso.
Mas a quem ela queria enganar? Realmente tinha nascido sem
poderes, nunca tinha sentido sequer uma fagulha de energia
fluindo em seu corpo. Não era como se ela não soubesse usar,
ela realmente se sentia vazia o tempo todo. Jaya realmente a
odiava, abandonara justo ela, criança sem pais e com um
corpo frágil como o dela.
Não havia nada que ela pudesse fazer agora. Estava
rendida aos vermelhos que ela tanto temia por uma
brincadeira infantil, uma fantasia de sua cabeça. Ah... O que
será que Cahan e Lukas estão fazendo agora? Sinto muito,
Lu. Eu falhei de novo.
Ela tentou como pôde agarrar-se ao casaco roxo em suas
mãos buscando seu único porto seguro naquela situação, mas
seu corpo não mais se movia.
Um homem da plateia se levantou segurando um saco
marrom pequeno que tintilava como moedas se esbarrando.
Ao cerrar um pouco os olhos, Alycia pôde ver que era o rapaz

104
que estava ao lado de Vidya. Enquanto ele caminhava em
direção à criança caída, a loura o segurou pelos braços
gritando palavras que de começo Alycia não entendeu muito
bem.
— Não! Ela não serve para nós, deixe que a levem para
outro lugar! — A garota de cabelos tingidos nas pontas
tentava manter a compostura após gritar, mas logo foi lançada
ao chão por um tapa do homem mascarado.
— Você. Não. Fala.
— Senhor você não pode vir aqui, por favor fique em seu
assento. — Disse a voz do mestre de cerimônia.
— Trinta moedas de ouro. — O homem proferiu, como um
encanto que deixou todos no salão em um completo silêncio.
Ele subiu as escadas que levavam até o palco e deixou cair
no chão propositalmente o saco cheio de moedas, que foi o
estrondo que fez com que Alycia entre lágrimas e sem forças
percebesse: Sua vida - assim com sua liberdade - acabaram de
ser vendidas por trinta moedas de ouro.

5
Me desculpe, Alycia.

105
Eu queria poder ter interferido em tudo isso, dado a você
uma vida feliz desde o momento em que te segurei pela
primeira vez.
Queria que você tivesse crescido como as outras crianças
em um lugar onde você pudesse viver sem medo, fazer
amigos, ter uma família, ser normal. Me pergunto todos os
dias como seria se nada disso tivesse acontecido.
Mas aconteceu.
E infelizmente eu fui apenas um telespectador.

Medo era tudo o que se passava na cabeça de Alycia


enquanto seu corpo balançava de um lado para o outro dentro
daquela carruagem. Seus olhos vendados não deixavam
sequer um único feixe de luz chegar até seus olhos, era tudo
escuro. Sabia que Vidya estava sentada à sua direita, também
vendada, e que o homem mascarado estava sentado à sua
frente, estranhamente quieto durante toda a viagem.
Será que algum dia ela voltaria a ver Lukas e Cahan? Será
que eles estavam procurando por ela? Nunca saberia. Era tudo
culpa dela, talvez ele até tenham desistido de ir atrás dela,
nem mesmo Alycia sabia onde estava, quem dirá sua família.
A carruagem parou.
Quando o homem mascarado abriu a porta, Alycia pôde
sentir o vento frio do final do outono sobre sua pele. Ele

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desceu da carruagem e arrancou a criança de dentro pelo
braço, a jogando no chão. A venda de Alycia soltou-se de
seus olhos e caiu no chão, revelando a ela o chão de cascalho
branco límpido que percorria um caminho sinuoso até uma
majestosa mansão com um lindo jardim na parte da frente
com fontes cheias d’água. Tudo isso era circundado por uma
floresta fechada de pinheiros altos e escuros, em uma clareira
de onde podia-se avistar apenas o céu vermelho de
Bloodstate.
— Eu não disse que você poderia tirar a venda. — Disse o
homem mascarado, segurando Alycia pelos cabelos escuros e
a levantando do chão, trazendo o rosto dela até a altura do
dele.
A pequena chorava e tremia de medo, tentando não olhar
nos olhos vermelhos que a penetravam até a alma.
Ele então a lançou de volta ao chão, deixando-a com a
barra do vestido inteiramente suja e os joelhos ralados. Alycia
agarrou-se ao suéter roxo que havia trazido consigo,
garantindo que não havia sido danificado.
Alycia então ouviu passos mais suaves saindo da
carruagem conforme o homem mascarado se afastava dela em
direção a mansão. Vidya parou em frente à criança e
estendeu-lhe a mão para ajuda-la a se levantar e assim Alycia
o fez, parando por um momento para observar a linda mulher
a sua frente.
Vidya parecia absorver toda a luz do Sol para si. Olhando
mais de perto, Alycia percebeu que seus cabelos louros com

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as pontas rosas não pareciam tingidos com tinta, mas sim algo
natural. A sua pele suavemente dourada era perfeitamente lisa
e saudável, principalmente em suas bochechas, por onde uma
mecha de cabelo caía de forma graciosa, mas o que mais lhe
chamava a atenção eram seus olhos, vermelhos. Aquilo fez
Alycia se perguntar porque ela estaria ali na mesma situação
que ela, já que era uma nobre. Seria esposa do homem
mascarado? Não, era nova demais para isso.

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