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Peter’s International School Gramática | Exercício de Aula_01


Português Texto de Apoio

Nome: ____________________________ N.º ___ 10.º ano Turma/Curso: ___ / ___ Data: ____ /____ / _____

Leia o texto que se segue.

As farsas contam histórias e representam espaços do quotidiano. As relações


matrimoniais e extramatrimoniais são o assunto. São histórias de família em desarmonia e
refletem a insatisfação da mulher no casamento. Constança, em Auto da Índia, preenche
as ausências maridais com o escudeiro Lemos, e faz jus ao capricho feminino da sedução
5 sem consequências, com o castelhano Juan de Zamora.
Inês Pereira teve o privilégio da escolha, mas o castigo pelo exercício desadequado
dessa prerrogativa1 acaba por ser infligido e a recém-casada sofre as consequências de ter
escolhido o que achava que era e não o que era. Mas há sempre uma segunda
oportunidade e a segunda escolha recai no provinciano Pero Marques e a farsa acaba por
10 premiar uma moral pecaminosa que vive de aparências.
As qualidades cénicas desta peça, a sua graça e andamento vivo garantem-lhe o êxito
com todos os géneros de público. Mas importa que se tente penetrar na sua significação.
Não nos deteremos nos quadros sociais e nas sátiras que contém, como a dos “judeus
casamenteiros” e a do eremita que anda atrás de saias, encarando desde logo a
15 personalidade de Inês. Pretende-se ver nela uma espécie de contestatária que se insurge
contra a condição a que estão sujeitas as raparigas e as mulheres do seu tempo. Para
Aubrey Bell, por exemplo, esta peça é uma prova de que “a questão dos direitos da mulher
aparecia já no século XVI”. E lembra, a propósito da “emancipada Inês”, a “difícil posição
das mulheres e a sua ânsia de liberdade” (Bell, pp. 106 e 134). Daí a considerar Gil Vicente
20 um paladino2 do feminismo, um destruidor do “machismo” e um precursor da cruzada a
favor da igualdade dos sexos vai apenas um passo. É fácil imaginar um encenador
contemporâneo a insistir sobre este aspeto da peça. O quadro final de Inês cavalgando o
marido atraiçoado para se dirigir ao encontro com o eremita frascário3, seria até, sob esta
ótica, um curioso símbolo da mulher libertada de tabus4 sexuais.
25 Essa interpretação, a nosso ver, é anacrónica5 e portanto falsa. Se há uma ideia a que
Gil Vicente se mostra realmente afeiçoado é a de que ninguém deve procurar sair da sua
condição, que é vão insurgir-se contra a sorte, que cada ser humano deve procurar a
salvação no lugar que Deus lhe determinou no mundo e na sociedade. Inês é, afinal, muito
semelhante a esses protestatários6 que o autor virá a ridicularizar dez anos mais tarde na
30 peça Romagem de Agravados. Nem por um só instante deve ter pensado em fazer dela um
exemplo, em apresentá-Ia como modelo. Esta peça deve ser interpretada como uma farsa,
um divertido desfastio7 popular, uma chacota. É uma variação sobre o tema da infidelidade
feminina, constante na Idade Média.

Excertos selecionados de Aula Viva, João Augusto da Fonseca Guerra e José Augusto da Silva Vieira,
Porto Editora e Gil Vicente – reportório escolar, edição de José Camões e Helena Reis Silva, Ed. D. Quixote.

Vocabulário:
1
prerrogativa: privilégio. 2 paladino: defensor. 3 frascário: devasso; libertino; leviano. 4 tabus: proibições; constrangimentos.
5
anacrónica: que destoa dos usos da época a que se atribui; despropositado; desadequado ao tempo. 6 protestatários:
contestatários. 7 desfastio: desenfado; entretenimento.

Exercício de Aula de Português  10.º Ano | Página 1 de 1

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