Você está na página 1de 185

Gabriella AndrÉa Pereira

Everson Soto Silva Brugnara


Renato Horta Rezende
coordenadores

Indagações interdisciplinares no
Direito das Famílias e DAS Sucessões

Belo Horizonte
2021

indag indic_gabriella.indb 3 22/07/2021 09:53:08


Copyright © 2021 by Conhecimento Editora

Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios
mecânicos, eletrônicos ou via cópia xerográfica, sem autorização expressa e prévia da Editora.

Conhecimento
www.conhecimentolivraria.com.br

Editores: Marcos Almeida e Waneska Diniz


Revisão: Líbia Mara da Silva Saraiva
Diagramação: Lucila Pangracio Azevedo
Capa: Waneska Diniz
Imagem capa: Pixabay

Conselho Editorial:
Fernando Gonzaga Jayme
Ives Gandra da Silva Martins
José Emílio Medauar Ommati
Márcio Eduardo Senra Nogueira Pedrosa Morais
Maria de Fátima Freire de Sá
Raphael Silva Rodrigues
Régis Fernandes de Oliveira
Ricardo Henrique Carvalho Salgado
Sérgio Henriques Zandona Freitas

Conhecimento Livraria e Distribuidora


Rua Maria de Carvalho, 16
31160-420 – Ipiranga – Belo Horizonte/MG
Tel.: (31) 3273-2340
WhatsApp: (31) 98309-7688
Vendas: comercial@conhecimentolivraria.com.br
Editorial: conhecimentojuridica@gmail.com
www.conhecimentolivraria.com.br

342.16 Indagações interdisciplinares no direito das


I38 famílias e das sucessões / [Coordenado por]
2021 Gabriella Andréa Pereira, Everton Soto Silva
Brugnara [e] Renato Horta Rezende. - Belo
Horizonte: Conhecimento Editora, 2021.
185p.

ISBN: 978-65-89602-57-3 (PDF)


Vários autores.

1. Direito de família. 2. Direito das


sucessões. 3. Divórcio. 4. Alienação
parental. 5. Multiparentalidade. I. Pereira,
Gabriella Andréa (Coord.). II. Brugnara,
Everton Soto Silva (Coord.). III. Rezende,
Renato Rocha (Coord.). IV. Lins e Silva,
Paulo (pref.). V. Título.

CDDir – 342.16
CDD(23.ed.)–346.05

Elaborada por Fátima Falci – CRB/6-700

indag indic_gabriella.indb 4 22/07/2021 09:53:08


SUMÁRIO

prefácio........................................................................................................................vii

apresentação............................................................................................................ ix

nota dos coordenadores............................................................................... xi

Constelação sistêmica no direito das famílias


Ana Flávia dos Santos
Rita de Cássia Marques Diniz ������������������������������������������������������������������������������ 1

o diVÓrcio na pandemia: intensificação de demandas e a


constelação familiar como possibilidade de prevenção e solução de
litígios
Lorena Stéfanne Silva Santiago
Tiago Lúcio dos Santos �����������������������������������������������������������������������������������������17

ALIENAÇÃO PARENTAL COMO FORMA DE LESÃO AO DIREITO FUNDA-


MENTAL DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR
Nathalia Santos Alkimim ������������������������������������������������������������������������������������31

DE QUE FORMAS O PSICÓLOGO JURÍDICO TRABALHA COM FAMÍLIAS?


Juliana Silveira Di Ninno
Ludimila Regina Rosenthal Caetano de Oliveira..........................................43

TRABALHO IMATERIAL REALIZADO POR PARENTES EM EMPRESAS


FAMILIARES: singela análise teórica
Everson Soto Silva Brugnara
Líbia Mara da Silva Saraiva ��������������������������������������������������������������������������������57

MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA: marcos normativos para


proteção contra violência em razão do gênero para além da Lei nº 11.340
de 2006
Gabriella Andréa Pereira �������������������������������������������������������������������������������������73

iv

indag indic_gabriella.indb 5 22/07/2021 09:53:08


entendimentoS do Superior Tribunal de Justiça sobre a
beligerância E ANIMOSIDADE DOS GENITORES como óbice à
guarda compartilhada
Flávia Lee Cardoso Dias ���������������������������������������������������������������������������������������89

NUANCES DA AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE QUANDO HÁ


SOCIOAFETIVIDADE E POSSIBILIDADE DE MULTIPARENTALIDADE
Nathália de Souza Pires������������������������������������������������������������������������������������ 101

A REALIDADE “INVENTADA” NAS REDES SOCIAIS VIRTUAIS E A


APLICAÇÃO DA TEORIA DA APARÊNCIA NA DEFINIÇÃO DA CAPACIDADE
ECONÔMICO-FINANCEIRA DO ALIMENTANTE
Renato Horta Rezende........................................................................................ 119

INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA


DE BENS PARA OS MAIORES DE 70 ANOS
Cristiane Gomes Botelho de Oliveira
Luciana Carvalho Pimentel ����������������������������������������������������������������������������� 135

A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO PATRIMONIAL E SUCESSÓRIO NO


CONTEXTO DA PANDEMIA
Larissa Helena Nascimento Capucho ���������������������������������������������������������� 149

TESTAMENTO VITAL E A AUTONOMIA DA VONTADE


Renata Pires Simas Dal Ferro�������������������������������������������������������������������������� 165

indag indic_gabriella.indb 6 22/07/2021 09:53:08


prefácio

Senti muito honrado da lembrança de meu nome para a ela-


boração desse prefácio, visando a integrar um trabalho de publi-
cação dessa Subseção da OAB-MG.
Por três vezes aí estive, participando de eventos culturais, de-
senvolvido pelo Presidente Sanders Augusto, envolvendo o ramo
que abracei do Direito, o de Família.
Nomes da envergadura de Rodrigo da Cunha Pereira, nosso
Presidente do IBDFAM, de Nelson Rosenvald, também diretor des-
sa instituição, que é a mais respeitada no campo desse Direito, lá
encontrei.
Já palestrei em diversos rincões do Brasil e do exterior, mas o
entusiasmo e a organização ímpar dessa expressiva subseção, me
surpreendeu.
Não é comum notarmos a presença de profissionais do eleva-
do nível dos que acima citei. E tais juristas num comentário comi-
go, também afirmavam do interesse dos participantes.
Jovens e amadurecidos advogados lá estavam, empunhando
suas canetas com anotações do que falávamos nas conferências.
Recordo que não somente as salas estavam repletas, mas havia
também a sensibilidade, o interesse e a preocupação dos ouvintes
de entender e buscar o aperfeiçoamento profissional.
Por vezes o tempo que nos era facultado para expor, não satis-
fazia a plateia, que permanecia sentada indagando de nós pales-
trantes, suas dúvidas e nos prendiam com prazer até altas horas
da noite.
Matérias novas, do desenvolvimento do Direito de Família,
que por sua subjetividade, se transforma diariamente, por nós
convidados eram expostas e discutidas no mais elevado nível
acadêmico.

vi

indag indic_gabriella.indb 7 22/07/2021 09:53:08


São os integrantes dessa subseção mineira, privilegiados, pela
liderança de um excelente e carismático Presidente, como é o
Dr. Sanders.
Impressiona também o interesse e estímulo dos diretores que
manejam a Comissão de Direito de Família e Sucessões.
Gostaria, pois, de estimular essa Subseção de Contagem que
assim continue pautando o desenvolvimento científico do Direito
de Família e das Sucessões e estarei sempre feliz em aceitar os
convites.
Sucessos e felicidades para todos, esperando que em breve
após a superação desse período triste da pandemia que vivencia-
mos, possa aí estar com todos vocês.

Grande e fraterno abraço a todos,

Paulo Lins e Silva


Diretor Internacional do IBDFAM

vii

indag indic_gabriella.indb 8 22/07/2021 09:53:08


APRESENTAÇÃO

Para nós é um privilégio apresentar ao leitor, sejam advogadas


e advogados que atuam no Direito das Famílias, seja para aqueles
que militam no Direito Sucessório, ou mesmo para a aquele leitor
que curiosamente quer aprender um pouco mais sobre os temas
selecionados e postos nesta obra.
É um privilegio, pois enquanto dirigentes da 83ª subseção da
OAB Minas Gerais, a OAB Contagem, defendemos de forma con-
tínua a valorização e o fortalecimento da advocacia contagense.
E esta obra é uma prova disso.
O trabalho incansável das nossas comissões temáticas que le-
vam semanalmente conhecimento, aprimoramento, esperança e
amor a uma plateia virtual que a cada dia vai se multiplicando, não
seria diferente com esta obra - física.
Uma coletânea de artigos elaborados por integrantes e convi-
dados da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões desta Sub-
seção abordando temas importantes e atuais que concretizando
os anseios de muitos colegas e demonstrando a união e a vontade
de ultrapassar os limites, ir além, levando de maneira compreensí-
vel o direito: um novo direito que se descortina aos nossos olhos.
Com uma proposta inovadora, encontramos nesta obra muito
conhecimento e reflexões norteadoras do Direito das Famílias e
Sucessões. Temos a certeza de que será a primeira de muitas ou-
tras que virão inteiramente escritas e produzidas pelos membros
das comissões temáticas da nossa subseção.
Boa leitura a todas e todos!

Sanders Alves Augusto – Presidente


Rita de Cássia Marques Diniz – Vice Presidente
Rogério Silva Lisboa – Secretário Geral
83ª Subseção da OAB Contagem

viii

indag indic_gabriella.indb 9 22/07/2021 09:53:08


nota dos coordenadores

Esta obra é resultado do esforço comum aqueles que com-


põem a Comissão de Famílias e Sucessões da Ordem dos Advo-
gados do Brasil, subseccional Contagem, sendo o resultado do
desejo da sua Presidente e coordenadora do projeto, Gabriella
Andréa Pereira, que contou com a colaboração e coordenação
dos professores Everson Brugnara e Renato Horta, que compar-
tilharam do objetivo de ampliar, fomentar e divulgar a produção
científica interna.
Para alcançar este magnífico resultado, os esforços combina-
dos tiveram início em 15 de março de 2021 com a publicação de
edital-convite aos membros da Comissão de Famílias e Sucessões
para participação da Coletânea de artigos “Indagações interdisci-
plinares no Direito das Famílias e Sucessões” organizada em duas
áreas de concentração, “Direito das famílias e suas interdisciplina-
ridades” e “Direito sucessório e suas interdisciplinaridades” e mais
dezoito linhas de pesquisas.
Cumprindo as finalidades acima apontadas foram realizadas
duas oficinas de escrita que contaram com a presença de mem-
bros da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões, assim como
de seus coordenadores voltadas a esclarecimentos, alinhamentos
de proposições, orientações, organização, planejamento e auxílio
técnico-científico na construção dos textos.
Com o desenlace do trabalho individual e coletivo, hoje temos
a imensa satisfação de registrar que foram produzidos doze tex-
tos que apontam as percepções pessoais de cada autor e refletem
suas experiências pessoais, profissionais e acadêmicas, algo enri-
quecedor para a ciência do Direito diante da promoção e visibili-
dade da produção científica acerca de diversos temas importan-
tíssimos do Direito familiarista e do Direito sucessório.
Neste cenário, os textos que integraram esta obra tratam com
adequada profundidade sobre: o contemporâneo tema relacionado

ix

indag indic_gabriella.indb 11 22/07/2021 09:53:09


com os métodos adequados de resolução de conflitos familiares
como proposto de forma ampla por Ana Flávia dos Santos e Rita de
Cássia Marques Diniz; e de forma restrita por Lorena Stefanne Silva
Santiago e Tiago Lúcio Santos; o espinhoso e necessário assunto da
alienação parental examinado por Nathália Santos Alkimim; a inte-
ressante forma com que os psicólogos auxiliam nos processos fami-
liaristas trazido por Juliana Di Ninno e Ludimila Oliveira; o trabalho
imaterial realizado por parentes em empresas familiares abordado
por Everson Soto Silva Brugnara e Líbia Mara Saraiva; a delicada e
indispensável análise sobre a proteção contra violência em razão
do gênero apresentada por Gabriella Andréa Pereira; a pesquisa so-
bre os entendimentos do STJ sobre a postura resistente e agressiva
dos genitores e a guarda compartilhada a que trata Flávia Lee
Cardoso Dias; as nuances da ação negatória de paternidade quan-
do há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade ob-
servada por Nathália de Souza Pires; a realidade “inventada” nas
redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da aparência na defi-
nição da capacidade econômico-financeira do alimentante ques-
tionada por Renato Horta Rezende; a instigação à reflexão sobre
a possível inconstitucionalidade do regime de separação obriga-
tória de bens para os maiores de setenta anos impulsionada por
Luciana Carvalho Pimentel e Cristiane Gomes Botelho de Oliveira;
a importância do planejamento patrimonial e sucessório prin-
cipalmente no contexto da pandemia que ainda enfrentamos
no Brasil como bem destacado por Larissa Helena Nascimento
Capucho; e, ainda, a sempre polêmica questão do testamento
vital e a autonomia da vontade corajosamente enfrentada por
Renata Pires Simas Dal Ferro.
Assim, com essa amplitude e profundidade, esta obra é de con-
sulta obrigatória tanto como meio a difundir o conhecimento téc-
nico-científico especializado como registro histórico da Comissão
de Direito das Famílias e Sucessões na subseccional Contagem, da
OAB/MG.
Esperamos que o dito aqui nestas poucas linhas espelhe com
fidelidade, o conteúdo da obra e que a mesma seja útil aos leito-
res. Esperamos também, sugestões e críticas para o aprimoramento

indag indic_gabriella.indb 12 22/07/2021 09:53:09


indispensável a contribuir para os futuros projetos da Comissão
de Direito de Famílias e Sucessões a quem deixamos nossos eter-
nos agradecimentos.

Boa leitura!

Gabriella Andréa Pereira


Everson Soto Silva Brugnara
Renato Horta Rezende
Coordenadores

xi

indag indic_gabriella.indb 13 22/07/2021 09:53:09


Constelação sistêmica
no direito das famílias
Ana Flávia dos Santos1
Rita de Cássia Marques Diniz2

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho pautou-se no viés da humanização com o


olhar sistêmico trazido com a aplicação das constelações em di-
versas áreas, em especial, nas varas de família. Isso se deve ao fato
de frequentemente nos depararmos com situações cotidianas,
corriqueiras no âmbito do Direito de Família, nas quais pessoas
são atormentadas por inúmeros litígios. Estamos assistindo a cada
dia a preocupação dos órgãos competentes em tratar os conflitos
no âmbito do judiciário, seja pela intenção de humanizar ou em
busca da paz, seja pela necessidade de reduzir o grande volume
de demandas, ou pela demora na prestação jurisdicional.

1
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro
da Comissão de Direito de Famílias e Sucessões e Presidente da Comissão OAB Vai
à Escola, ambas da 83ª subseção da OAB Minas Gerais. Pós-graduada em Direito do
Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera, pós-graduada em
Advocacia Cível pela Escola Superior de Advocacia da OAB/MG e pós-graduanda em
Advocacia Previdenciária pelo IEPREV. Voluntária no Projeto de Constelação no Ju-
diciário da Comarca de Contagem. Advogada e sócia-proprietária do escritório Ana
Santos Advocacia e Assessoria Jurídica. E-mail: anaflaviassantos@yahoo.com.br.
2
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Vice-Pre-
sidente da 83ª subseção da OAB Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Público,
pós-graduanda em Direito Sistêmico e Meios Adequados de Solução de Conflitos.
Especialista em Direito Administrativo, cível, família, imobiliário e sucessões. Leader
Coach e Analista Comportamental. Consteladora Sistêmica. Voluntária no Projeto de
Constelação no Judiciário na Comarca de Contagem. Advogada sócia-proprietária
do escritório Rita Diniz Advocacia. E-mails: ritadinizadvogada@yahoo.com.br e rita-
dinizadvocaciasistemica@gmail.com.

indag indic_gabriella.indb 1 22/07/2021 09:53:09


constelação sistêmica no direito das famílias

Observou-se que o método terapêutico das constelações fami-


liares está cada vez mais presente nos Tribunais brasileiros, trazen-
do a pacificação dos conflitos e seus efeitos, reverberando na vida
pessoal das partes envolvidas. Além disso, tem apresentado gran-
des índices de acordo para os litígios familiares, proporcionando
celeridade e reduzindo demandas repetitivas no âmbito familiar.
Nesse sentido, o direito brasileiro prima pela solução consensual
da controvérsia. É notório que os meios autocompositivos, como a
conciliação, mediação, oficina de parentalidade, além de possibili-
tarem uma abordagem mais personalizada e salutar às demandas,
ensejam uma real e efetiva solução para o conflito, e a constela-
ção familiar chega e é bem recebida por aqueles que buscam não
somente a redução dos números de demandas, mas algo muito
maior: a pacificação e a humanização do nosso judiciário.
Portanto, torna-se imprescindível um olhar diferenciado aos
litígios familiares. Como consequência dos satisfatórios resulta-
dos obtidos a partir da utilização da referida terapia, deu-se a
ampliação da técnica possível de ser aplicada para atingir a au-
tocomposição.
A metodologia utilizada embasou-se em leis, livros e arti-
gos que versam sobre a Constelação Familiar aplicada no Direi-
to de Família. Utilizou-se o método dedutivo, por meio também
de amostras de resultados na execução prática do método na
resolução de conflitos, no âmbito do direito de família, e suas
aplicações no judiciário.
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, através da Resolução
125/2010, com as modificações posteriores, trouxe uma nova vi-
são para o tratamento adequado dos conflitos, também estabe-
leceu a nova redação dada ao artigo 1º, que assim diz:
fica instituída a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado
dos Conflitos de Interesses, tendente a assegurar a todos o direito à
solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculia-
ridade (CNJ, 2010).

Destarte, este presente trabalho tem por objetivo expor a evo-


lução de resolução de conflitos no Brasil, focando, principalmente,
2

indag indic_gabriella.indb 2 22/07/2021 09:53:09


ana flávia dos santos, rita de cássia marques diniz

na Constelação Familiar Sistêmica, com relação aos efeitos, aos


seus reflexos na legislação brasileira, evidenciando, também, po-
sicionamentos doutrinários e de figuras ilustres presentes no judi-
ciário brasileiro.

2. UM OLHAR PARA OS MÉTODOS DE RESOLUÇÕES DE


CONFLITOS

À luz da lei processual civil, em seu artigo 3º, que incentiva e


privilegia as formas alternativas de soluções de conflitos, associa-
do ao artigo 334, que dispõe sobre a designação de audiência de
conciliação ou mediação, quando do despacho inicial, mostra-se
possível conquistar uma justiça mais pacificadora e mais célere.
Cabe ressaltar que a doutrina majoritária apresenta 03 (três)
formas de resolução consensual de conflitos: a arbitragem, a au-
totutela e a autocomposição.
A autocomposição, destaque neste trabalho, constitui-se como
a forma de solucionar o conflito através do livre consentimento de
uma das partes envolvidas para sacrificar o próprio interesse, em
geral ou em parte, em prol do interesse de outrem. Concerne, atual-
mente, ao meio legítimo alternativo de pacificação social, podendo
se fazer interior ou exterior ao processo jurisdicional. Tida como o
gênero, do qual são espécies a transação (conflitantes fazem con-
cessões mútuas e solucionam o conflito) e a submissão (um dos
conflitantes se submete à pretensão do outro voluntariamente, ab-
dicando dos seus interesses), a autocomposição pode ocorrer após
negociação dos interessados, com ou sem a participação de tercei-
ros (mediadores ou conciliadores) que auxiliem neste processo.
Nesse sentido, a submissão do autor, quando feita em juízo,
denomina-se renúncia (artigo 487, III, ‘c’, CPC); já a do réu concei-
tua-se como reconhecimento da procedência do pedido (artigo
487, III, ‘a’, CPC).
Impende pontuar que o sistema de direito processual civil
brasileiro estrutura-se com vistas a estimular a autocomposição,
sendo que, até mesmo no âmbito do Poder Executivo, a solução
negocial concebe-se estimulada.

indag indic_gabriella.indb 3 22/07/2021 09:53:09


constelação sistêmica no direito das famílias

3. AS CONSTELAÇÕES FAMILIARES

A Constelação Familiar revela-se como uma inovadora aborda-


gem psicoterapêutica, um método fenomenológico que promove
a identificação das Ordens do Amor, de Bert Hellinger, deixando
em evidência os profundos laços que unem uma pessoa ao seu
sistema familiar; sua família nasceu de uma abordagem, uma in-
tervenção de uma observação do comportamento humano.
O que se percebe em uma constelação é que os laços de fa-
mília são tão fortes e poderosos que, muitas vezes, uma pessoa
sofre e vive questões difícieis, mas quando faz uma constelação,
tem conhecimento que aquilo que estava vivendo dizia respeito a
uma situação de um ancestral não resolvida. É quando membros
de uma geração deixam situações não resolvidas e os membros
das gerações posteriores começam a vivenciar os impactos da não
solução, sentem necessidade de buscar uma solução, pois, caso
contrário, permanecerão prisioneiros de fatos pelos quais não são
responsáveis.
Isso significa que existe uma transmissão transgeracional dos
problemas familiares, ou seja, passa de geração para geração,
criando destinos, muitas vezes, trágicos. Podemos observar em
famílias que várias pesssoas, de gerações diferentes, morrem de
uma mesma doença, ou de uma mesma forma. Ou que um filho
passa por problemas vividos pelo seu avô ou bisavô, com os quais
nem conviveu.
No entanto, o amor é capaz de tudo. O mesmo amor que traz
o sofrimento, a dor, o problema, é capaz de trazer a solução. E
assim se configura uma Constelação Familiar. É uma nova ciência
que está alcançando resultados pioneiros em muitas áreas, que
até então não se puderam atingir com outros métodos; leiamos:
A constelação familiar caracteriza-se como um método sistêmico. Isso
significa, antes de tudo, que o terapeuta vê no cliente, desde o início,
o sistema familiar e comunidade de destino a que ele está vinculado.
O terapeuta percebe o cliente em seu campo anímico; portanto, vê
nele mais do que a sua realidade individual. Ele se abre não só ao
cliente, mas também a seus pais e à comunidade de destino que lhe

indag indic_gabriella.indb 4 22/07/2021 09:53:09


ana flávia dos santos, rita de cássia marques diniz

é imposta pelo amor de vínculo. Durante todo o processo da cons-


telação, o terapeuta considera em sua totalidade os problemas e as
soluções que se referem ao sistema familiar do cliente e parte do
pressuposto de que a solução individual, buscada pelo cliente, deve
ser obtida através da solução do que ficou por esclarecer ou resolver
em seu amplo sistema de relações (SCHNEIDER, 2007, p. 63).

Como seu nome diz, constelação visa criar um agrupamento


ou conjunto que pode ser a família da pessoa ou outra situação,
buscando encontrar o lugar de cada um no sistema familiar e sua
hormonia. A Constelação traz, à consciência da pessoa a ser cons-
telada, a imagem interior da sua familia, seja a de origem, seja a
atual. Quando desenvolvida em grupo, baseia-se no trabalho com
voluntários para representar membros da família ou grupo social
da pessoa a ser constelada e trabalhar um tema, uma questão
específica por ela trazida. Membros importantes da família (como
pais, avós, irmãos, filhos) do constelado são representados por
outras pessoas. É como se os representados se tornassem presen-
tes naquele momento.
A constelação vai-se desenvolvendo aos poucos, à medida que
o campo vai se movimentando. É importante observar os movi-
mentos de cada representante e perguntar o que está sentindo.
Os representantes que são escolhidos para o trabalho devem co-
locar-se à disposição, isto é, a serviço da pessoa que será conste-
lada, pois elas irão sentir como as pessoas que representam, como
exemplo, até os sintomas físicos.
As constelações acontecem da forma que se apresentam,
quando se podem ter momentos de dor, tristeza, angústia, revolta,
mas também, de alegria e realização. Elas revelam algo que está
no inconsciente das pessoas:
O que há de extraordinário nas constelações familiares é primei-
ramente o próprio método. É singular e fascinante observar, quando
um cliente coloca em cena pessoas estranhas para representar seus
familiares em suas relações recíprocas, como essas pessoas, sem
prévias informações, vivenciam sentimentos e usam palavras seme-
lhantes às deles e, eventualmente, até mesmo reproduzem os seus
sintomas.

indag indic_gabriella.indb 5 22/07/2021 09:53:09


constelação sistêmica no direito das famílias

Quando os representantes são instados a expressar em movimentos


o que sentem, eles frequentemente exprimem uma dinâmica da alma
que revela destinos ocultos, que o próprio cliente desconhecia.

Algumas vezes, o que os representantes sentiram só fica claro para o


cliente depois que ele se informa com sua família. Mesmo quando os
representantes não estão totalmente presentes, quando estão envol-
vidos com seus próprios problemas ou, por consideração, não ousam
exprimir adequadamente o que sentem em seus papéis, podemos
geralmente confiar neles.

A surpresa do cliente, seus gestos de confirmação, o saber interior, o


alívio e a abertura liberadora para modificações, o seu assentimento
e, finalmente, os efeitos produzidos no cliente e em sua família são,
em sua última análise, critérios para comprovar que os representantes
sentiram corretamente (SCHNEIDER, 2007, p.9).

É preciso ressaltar que, antes das constelações, tivemos o psi-


codrama, desenvolvido pelo médico Jacob Levy Moreno, cujo mé-
todo era utilizado para evidenciar processos psíquicos e relações
de um cliente por meio de uma representação espacial com pes-
soas desconhecidas, lembrando, portanto, uma constelação fami-
liar (PIZZATO, 2018).
Outros personagens também importantes foram Virginia Satir,
que trouxe grande contribuição para as constelações, pois foi a pio-
neira na constituição do pensamento sistêmico, e Eric Berne, com a
Teoria da Análise Transacional, baseada na observação das atitudes
dos pacientes e na conduta humana como um todo, a qual serviu
como fundamento nos estudos do alemão Bert Hellinger.
Assim, podemos afirmar que a partir da dinâmica da constela-
ção familiar, a pessoa a ser constelada pode olhar para onde está
direcionado o seu amor.

4. BERT HELLINGER

Seu nome é Anton “Suitbert” Hellinger, conhecido simplesmen-


te como Bert Hellinger. Nasceu em 1925, na Alemanha, e faleceu
em 2019. Formou-se em Filosofia, Teologia e Pedagogia. Como
membro de uma ordem de missionários católicos, estudou, viveu

indag indic_gabriella.indb 6 22/07/2021 09:53:09


ana flávia dos santos, rita de cássia marques diniz

e trabalhou durante 16 anos no sul da África, dirigindo várias es-


colas de nível superior. Posteriormente, formou-se em psicanálise
e, por meio da dinâmica de Grupos, da Terapia Primal, da Análise
Transacional e de métodos hipnoterapêuticos e demais técnicas
desenvolveu sua própria Terapia Sistêmica e Familiar, a qual deno-
minou: Familie naufstellen, traduzido no Brasil como Constelação
Familiar.
Hellinger analisou o comportamento das pessoas dentro do
seu sistema familiar e observou como elas agiam em determina-
dos momentos, e por que tinham tal comportamento. Descobriu
o efeito de leis, nomeadas como “ordens do amor”, e estrutura-
das em três leis básicas que devem ser respeitadas para que haja
harmonia dentro do sistema. São elas: a hierarquia, estabelecida
pela ordem de chegada, quem chegou primeiro, precede quem
chegou depois. O pertencimento, em que todos têm o direito de
pertencer a determinado sistema ao qual se encontram, e o equi-
líbrio entre o dar e receber.
Utilizando essa metodologia, portanto, foi possível identificar
o verdadeiro cerne da questão (problema). E uma vez revelado,
as próprias partes chegam ao entendimento quase que definiti-
vo. Dessa forma, possibilita-se a celebração de acordo, selando
as contendas, trazendo harmonia para aquele sistema, o que, por
sua vez, desafoga o judiciário. Veja-se, em suma, cada uma das leis
supramencionadas:
1. Pertencimento: “Pertencer à nossa família é a nossa necessidade
básica, é o nosso desejo mais profundo manter esse vínculo. A neces-
sidade de pertencer à família vai além mesmo da nossa necessidade de
sobrevivência. Isso significa que estamos dispostos a sacrificar nossa
própria vida pela necessidade de pertencimento” (HELLINGER, 2017,
p. 17).

2. Lei da ordem: “O ser é estruturado pelo tempo. O ser é definido


pelo tempo e, através dele, recebe seu posicionamento. Quem entrou
primeiro em um sistema, tem precedência sobre quem entrou depois.
Sempre que acontece um desenvolvimento trágico em uma família,
uma pessoa violou a hierarquia do tempo” (HELLINGER, 2003, p. 37).

indag indic_gabriella.indb 7 22/07/2021 09:53:09


constelação sistêmica no direito das famílias

3. Lei do equilíbrio: “O que dá e o que recebe conhecem a paz se o dar


e o receber forem equivalentes. Nós nos sentimos credores quando
damos algo a alguém e devedores quando recebemos. O equilíbrio en-
tre crédito e débito é fundamental nos relacionamentos” (HELLINGER,
2012, s.p).

O trabalho de Bert Hellinger trouxe uma melhor compreensão


sobre os sistemas familiares, pois quando tais leis são violadas
numa família, surgem compensações que atuam em outros mem-
bros daquele sistema familiar – e muitas vezes em membros que
sequer haviam nascido quando o problema aconteceu –, a fim de
se restabelecer sua ordem e equilíbrio.

5. FENOMENOLOGIA

Primeiramente, importa esclarecer o que é fenômeno, de acor-


do com o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, trata-se de
fato ou acontecimento observável; tudo o que pode ser percebido
pela consciência ou pelos sentidos.
No olhar da filosofia de Kant (1724-1804), fenômeno é tudo o
que é objeto da experiência sensível, logo, captado pelo sujeito
através do espaço e do tempo e percebido por meio das catego-
rias inatas do intelecto.
Dessa maneira, interessa analisar o caminho fenomenológico do
conhecimento e as espécies de fenomenologia apresentadas por
Bert Hellinger nas suas obras: “A fonte não precisa perguntar o ca-
minho”, “Ordens do Amor” e “O essencial é simples”, para melhor
compreender as dinâmicas ocultas dos movimentos sistêmicos.
Através de suas obras, Hellinger nos ensina que o método fe-
nomenológico é originalmente um método filosófico, e que este
acontece quando alguém se expõe a algo sem intenção, sem
medo; e, ao utilizar a abordagem fenomenológica para estudar o
comportamento humano, coloca-se em um lugar muito além de
observador:
Dois movimentos nos levam ao conhecimento. O primeiro é explo-
ratório e quer abarcar alguma coisa até então desconhecida, para
apropriar-se e dispor dela. O esforço científico pertence a esse tipo

indag indic_gabriella.indb 8 22/07/2021 09:53:09


ana flávia dos santos, rita de cássia marques diniz

e sabemos quanto ele transformou, assegurou e enriqueceu o nosso


mundo e a nossa vida.

O segundo movimento nasce quando nos detemos durante o esfor-


ço exploratório e dirigimos o olhar, não mais para um determinado
objeto apreensível, mas para um todo. Assim, o olhar se dispõe a re-
ceber simultaneamente a diversidade com que se defronta. Quando
nos deixamos levar por esse movimento diante de uma paisagem, por
exemplo, de uma tarefa ou de um problema, notamos como nosso
olhar fica simultaneamente pleno e vazio.

Pois só quando prescindimos das particularidades é que consegui-


mos expor-nos à plenitude e suportá-la. Assim, detemo-nos em nos-
so movimento exploratório e recuamos um pouco, até atingir aquele
vazio que pode fazer face à plenitude e à diversidade.

Esse movimento, que inicialmente se detém e depois se retrai, eu cha-


mo de fenomenológico. Ele nos leva a conhecimentos diferentes dos
que podemos obter pelo movimento do conhecimento exploratório.
Ambos se completam, porém. Pois também no movimento do co-
nhecimento científico exploratório, precisamos às vezes parar e dirigir
o olhar do estreito ao amplo, do próximo ao distante. Por sua vez, o
conhecimento obtido pela fenomenologia precisa ser verificado no
indivíduo e no próximo (HELLINGER, 2019, p. 14).

Ele nos ensina, em sua obra “A fonte não precisa perguntar o


caminho” (2012):
Mas essa verdade é muitas vezes apenas pensada. Então existe uma
discussão entre os que pensam que essa seria a verdade e os outros,
que pensam que a outra seria a verdade. E cada um pensa ter se
apropriado da verdade. Assim, ela se torna um joguete nas lutas pelo
poder. Todos nós conhecemos esse tipo de controvérsia.

Na verdade fenomenológica é totalmente diferente. Essa verdade


emerge, brevemente como já vimos aqui muitas vezes. Então algo
vem à luz e vemos um brilho. Mas, ai de você se quiser alcançá-lo,
pois então desaparece imediatamente. Querer alcançar é, por exem-
plo, o querer estudar profundamente. Ou o medo daquilo que possa
acontecer quando é mostrado, é também um querer alcançar, mas de
outro tipo. Então, já não se quer ter o brilho. Mas, se estou na postura
fenomenológica, a verdade pode vir como quiser. Eu a olho, curvo-me
perante ela e a deixo partir. Ela atua mais pelo fato de ter emergido

indag indic_gabriella.indb 9 22/07/2021 09:53:09


constelação sistêmica no direito das famílias

do que quando se fala dela. Simplesmente está lá e desaparece [...]


portanto, nessa espécie de terapia, trata-se antes de tudo de uma
postura básica, da postura fenomenológica básica, de devoção – de-
voção perante a realidade. Então, não caímos na tentação de manipu-
lar a realidade que vem à luz ou amenizá-la ou também intensificá-la,
nem uma coisa, nem outra. Eu permaneço devotamente perante isso
e volto ao meu trabalho usual. Bem, isso seria a psicoterapia fenome-
nológica. Espero ter esclarecido um pouco (HELLINGER, 2012, p. 24).

Bert Hellinger traz a ideia de que é preciso ter uma postura


básica para conduzir uma constelação. Deparamos com uma
informação, não sabemos de onde vem, mas é profunda. Assim,
precisamos aprofundar nos ensinamentos que ele nos deixou.
O estudioso diz que a verdade emerge brevemente, como já vi-
mos aqui. Então, algo vem à luz e vemos um brilho; e continuou:
Quando trabalho com uma família, exponho-me a ela como ela é,
sem intenção, também sem a intenção ajudar. E sem temer as con-
sequências daquilo que digo ou faço. Frequentemente, porque me
recolho, vejo, de repente, para onde vai. Mas, naturalmente, nem
sempre. Também aqui permaneço limitado. Este é o modo fenome-
nológico de trabalho. Não se apoia em nenhuma teoria e tampouco
em experiências anteriores, mas se trabalha apenas com o momen-
to [...] o procedimento fenomenológico não tem querer, nem saber,
nem temor. Olha para aquilo que une, atrás de tudo o que aparece
e é apoiado e conduzido por aquilo que é base e limite de todo o
querer. Na verdade, traz à luz, o último. Por isso, uma terapia só está
completa quando traz este último à luz e quando une na profundeza
alguém com este último. Aqui a verdade se torna um acontecimento
e se completa na ação (HELLINGER, 2012, p. 25).

Por isso, a Constelação é tão profunda. É de fato uma filosofia,


filosofia de vida. Não devemos associá-la a padrões anteriores ou
regras preestabelecidas, precisamos deixar os movimentos fluí-
rem, deixar os sentimentos aflorarem livremente, pois só assim
poderemos entender o que aconteceu e qual caminho seguir.

6. DIREITO SISTÊMICO

O direito sistêmico é compreendido como a aplicação das leis


sistêmicas e das constelações de Bert Hellinger ao direito.
10

indag indic_gabriella.indb 10 22/07/2021 09:53:09


ana flávia dos santos, rita de cássia marques diniz

A denominação Direito Sistêmico foi criada pelo juiz de direito


Sami Storch, da Bahia, e surgiu da análise do Direito sob uma ótica
baseada nas ordens superiores que regem as relações humanas.
Conforme demonstram as constelações familiares desenvolvidas
por Hellinger (2019), a expressão serviu para denominar o uso da
técnica das constelações familiares sistematizada por Bert Hellinger
no âmbito do poder judiciário, bem como o uso de posturas
sistêmicas hellingerianas na solução dos conflitos oriundos dos
processos judiciais.
Ressalta-se que, com esse olhar para a solução consensual de
conflitos, Sami Storch alcançou resultados positivos na celebração
de acordos na Vara de Família da Comarca de Amargosa/BA, e, em
2015, foi reconhecido em nível nacional, com menção honrosa do
Prêmio Conciliar é Legal, do CNJ, pelo projeto “Constelações na
Justiça”, que apresentou os seguintes resultados:
ANÁLISE ESTATÍSTICA (VARA DE FAMÍLIA):

a) nas audiências efetivamente realizadas com a presença de ambas


as partes, o índice de acordos foi de 100% nos processos em que am-
bas participaram da vivência de constelações; 93% nos processos em
que uma delas participou; e 80% nos demais;
b) nos casos em que ambas as partes participaram da vivência, 100%
das audiências se efetivaram, todas com acordo; nos casos em que
pelo menos uma das partes participou, 73% das audiências se efeti-
varam e 70% resultaram em acordo; nos casos em que nenhuma das
partes participou, 61% das audiências se efetivaram e 48% resultaram
em acordo (STORCH, 2017).

Dessa forma, podemos concluir que, no Brasil, o Direito Sistê-


mico nasce com a aplicação das leis sistêmicas de Bert Hellinger
pelas mãos do juiz de direito Sami Storch.

7. CONSTELAÇÃO SISTÊMICA NO DIREITO DAS FAMÍLIAS

Pois bem, este é o tópico fundamental do presente trabalho, por-


que traz o resultado de uma caminhada de muita luz. Falar das cons-
telações no direito das famílias é olhar para tudo que as partes car-
regam do seu sistema familiar e depositam nos processos judiciais.

11

indag indic_gabriella.indb 11 22/07/2021 09:53:09


constelação sistêmica no direito das famílias

Muitas vezes, são dores de amores anteriores não resolvi-


dos, abandono afetivo, seja de pai ou mãe, violências, abusos
de toda espécie, ausências, doenças e muito mais. Por isso,
fala-se na necessidade de se despir de padrões anteriores ou
regras preestabelecidas, para olhar com amor para a questão
trazida pela parte.
Trata-se de poder acreditar e confiar que as Constelações Fa-
miliares vieram para ficar, pois elas trabalham com o nosso inte-
rior, levando-nos a uma consciência de mudança muito libertadora.
Além disso, elas revelam situações do inconsciente das partes, e
trazem informações do sistema familiar que nos elucidam e nos
orientam a entender e compreender a origem do conflito presente
no processo (GRAÇA, 2018).
Pode ser que uma discussão no processo de divórcio impõe
um reconhecimento de uma das partes, ou mesmo que um dos
companheiros está casado com seu pai ou sua mãe. Um pedido de
pensão alimentícia pode demonstrar um abandono, visa chamar
a atenção. Na guarda requerida por um dos genitores, pode estar
escondida uma dor do seu antepassado.
Podemos citar vários exemplos, como também afirmar os be-
nefícios que uma constelação traz para as pessoas – não somente
para resolverem suas questões colocadas nos processos, mas sim,
para resolverem as dúvidas e as dores que estão adormecidas em
seu interior.
Foi exatamente a partir dessas análises nos processos das va-
ras de família que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, através
da Portaria 3923/2021 da 3ª Vice Presidência, com o apoio do
Nupemec – Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Re-
solução de Conflitos –, regulamentou o uso das Constelações Sis-
têmicas na solução de conflitos judiciais, conforme normatização:
Art. 1º – Esta portaria regulamenta a utilização das Constelações
Sistêmicas nos CEJUSCs e nas práticas restaurativas no Estado de
Minas Gerais. Parágrafo único – Entende-se por Constelação Sis-
têmica, para fins de utilização no âmbito dos CEJUSCs e práticas
restaurativas, o método prático de ajuda desenvolvido pelo alemão
Bert Hellinger.

12

indag indic_gabriella.indb 12 22/07/2021 09:53:09


ana flávia dos santos, rita de cássia marques diniz

Art. 2º – A utilização das Constelações Sistêmicas nos CEJUSCs e nas


práticas restaurativas se norteará pelos princípios da voluntariedade,
da imparcialidade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade
e da decisão informada.

Art. 3º – As Constelações Sistêmicas poderão ser utilizadas como


ferramenta auxiliar da conciliação e/ou mediação no âmbito dos
CEJUSCs e das práticas restaurativas, com o objetivo de facilitar a au-
tocomposição.

Parágrafo 1º: A utilização da Constelação Sistêmica poderá ser su-


gerida pelo juiz, pelo conciliador, pelo representante do Ministério
Público ou pelo mediador, durante a sessão de conciliação/mediação
ou pelo facilitador da prática restaurativa.

Parágrafo 2º: A parte, o advogado ou o defensor público podem


requerer a aplicação da técnica, caso em que deverá ser designada
sessão de conciliação e/ou mediação, salvo se as partes já estiverem
participando de sessões de tentativas autocompositivas.

Parágrafo 3º: Realizada a sessão de Constelação Sistêmica, as partes


retornarão para a continuidade da sessão de conciliação, mediação
ou prática restaurativa (TJMG, 2021).

Como se nota, a constelação será utilizada como ferramenta


auxiliar na solução de conflitos, em que as partes poderão volun-
tariamente participar das práticas.
A Constelação prima pela reorganização do nosso sistema fa-
miliar, ou seja, cada um deve ocupar o seu lugar. Disso podemos
perceber nas varas de família que, em muitos processos, as partes
estão fora do seu lugar, seja como companheiros, como pai/mãe,
filhos, e transferem para terceiros a solução que deveria ser sua.
Assim, instala-se outro conflito.
Importante ressaltar ainda a posição do advogado. Quando está
em defesa do seu cliente, ele se posiciona a serviço do sistema da-
quele, e assim deve se comportar, ou seja, não deve ocupar o lugar
do seu cliente. Ao contrário, deve olhar para o seu cliente e enxer-
gar o que ele traz, por detrás dele, seus pais e todo seu sistema fa-
miliar. Ali pode residir a solução do processo. Quando olhamos para
o todo com amor, sem julgamento, tudo flui mais naturalmente,
tornando mais leve as demandas e os processos.
13

indag indic_gabriella.indb 13 22/07/2021 09:53:09


constelação sistêmica no direito das famílias

Assim, podemos melhor entender os benefícios da aplicação


das Constelações nos processos das varas de família e colher os
bons resultados na humanização e pacificação dos conflitos.

8. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, nota-se que a aplicação sistêmica do


direito vem ganhando cada vez mais espaço no âmbito jurídico.
É uma das técnicas que vem obtendo um crescimento satisfatório
com a autocomposição, que tem como principal fundamento a
vontade das partes.
As técnicas que usam os métodos voluntários de solução de
conflitos, nas quais uma terceira pessoa conduz a negociação de
maneira neutra, sem o poder de decisão, têm como objetivo prin-
cipal que as partes possam dialogar produtivamente sobre suas
necessidades e assim chegarem a um possível acordo.

9. REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/


noticias/cnj/86434-constelacao-familiar-no-firmamento-da-justica-em-16-es-
tados-e-no-df.> Acesso em: 24 mai. 2021.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/
sinta-a-emocao-de-uma-constelacao-familiar-em-unidade socioeducativa.>.
Acesso em: 24 mai. 2021.
BRASIL. Justiça em Números 2018: ano-base 2017. Conselho Nacional de
Justiça (CNJ). 2018. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/
arquivo/2018/09/8d9faee7812d35a58cee3d92d2df2f25.pdf.>. Acesso em: 24
mai. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/
l13105.htm.>. Acesso em: 24 mai. 2021.
BRASIL. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política
Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito
do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/
images/atos_normativos/resolucao/resolucao_125_29112010_11032016162839.
pdf.>. Acesso em: 24 mai. 2021.

14

indag indic_gabriella.indb 14 22/07/2021 09:53:09


ana flávia dos santos, rita de cássia marques diniz

FENÔMENO. Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa. Disponível em


<https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/fen%C3%B3meno>.
Acesso em: 31 mai. 2021.
GRAÇA, Marusa Helena da. Constelações familiares com bonecos e os elos
de amor que vinculam aos ancestrais. 3. Ed. Curitiba: Juruá, 2018.
HELLINGER, Bert. A fonte não precisa perguntar o caminho. 3. ed. Goiânia:
Atman, 2012.
HELLINGER, Bert. A simetria oculta do amor: por que o amor faz os relaciona-
mentos darem certo? 6. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
HELLINGER, Bert. Conflito e paz: uma resposta. São Paulo: Cultrix, 2007
HELLINGER, Bert. Ordens da ajuda. 3. ed. Goiânia: Atman, 2013.
HELLINGER, Bert. Ordens do amor: um guia para o trabalho com constelações
familiares. Tradução de 1. ed, 14ª. reimp. São Paulo: Cultrix, 2019.
HELLINGER, Bert. Para que o amor dê certo: o trabalho terapêutico de Bert
Hellinger com casais. 2. ed, 8ª. reimp. São Paulo: Cultrix, 2020.
KANT, Immanuel. (1724-1804). Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.
com.br/especiais/immanuel-kant/>. Acesso em: 31 de mai. 2021.
PIZZATO, Bianca. Constelações familiares na Advocacia: uma prática humani-
zada. 2. ed. rev. e amp. Joinville: Manunscritos Editora, 2018.
SCHNEIDER, Jakob Robert. A prática das Constelações. Patos de Minas: Editora
Atman Ltda, 2007.
STEPHAN, Hausner. Constelações Familiares e o Caminho da Cura: a aborda-
gem da doença sob a perspectiva de uma medicina integral. Tradução Newton
Araújo Queiroz. 4ª reimp. São Paulo: Cultrix, 2017.
STORCH, Sami. Direito Sistêmico. Disponível em: <https://direitosistemico.
wordpress.com/2017/09/22/artigo-descreve-modelo-original-de-pratica-de-
constelacoes-na-justica-e-aplicabilidade-do-direito-sistemico.>. Acesso em:
31 de mai. 2021.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Resolução nº 3923, de 25 de março
de 2021. Regulamenta a utilização das Constelações Sistêmicas nos Centros
Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSCs e nas práticas res-
taurativas no Estado de Minas Gerais. Disponível em: <https://www.tjmg.jus.br/
portal-tjmg/noticias/tjmg-regulamenta-uso-das-constelacoes-sistemicas-nos-
cejuscs.htm#.>. Acesso em: 31 mai. 2021.

15

indag indic_gabriella.indb 15 22/07/2021 09:53:09


indag indic_gabriella.indb 16 22/07/2021 09:53:09
O DIVÓRCIO NA PANDEMIA:
intensificação de demandas e
a constelação familiar como
possibilidade de prevenção e
solução de litígios
Lorena Stéfanne Silva Santiago1
Tiago Lúcio dos Santos2

1. INTRODUÇÃO

Os conflitos familiares são situações recorrentes e constituem


realidade mundial.
O acesso adequado à justiça, evitando lides com alto grau de
litigiosidade e alcance de solução judicial, cuida-se de garantia
constitucional. No entanto, com o intenso volume processual, mo-
rosidade e as dificuldades da prestação jurisdicional, meios alter-
nativos de solução de conflitos surgem como forma efetiva de
auxiliar nas demandas, inclusive, de maneira preventiva.
Durante o período enfrentado, de pandemia pela Covid-19,
as famílias se veem em situação de isolamento social, comparti-
lhamento intensivo do lar, com consequente aumento do contato
físico entre seus membros. Dores, temores, desafios econômicos
e comportamentais são aflorados e colocados em cheque, princi-
palmente na relação conjugal, ocasionando dissabores e proposi-
ções de demandas extras e judiciais para solução dos litígios.
1
Advogada, Pós-graduada em Direito de Famílias e Sucessões, Membro da Comissão
de Direito de Famílias e Sucessões da 83ª Subseção da OAB Minas Gerais. E-mail: adv.
lorenasantiago@gmail.com.
2
Advogado, Membro da Comissão de Direito de Famílias e Sucessões da 83ª Subse-
ção da OAB Minas Gerais. E-mail: tiagolucio.santos.adv@gmail.com.

indag indic_gabriella.indb 17 22/07/2021 09:53:09


o divórcio na pandemia: intensificação de demandas e a constelação
familiar como possibilidade de prevenção e solução de litígios

Como se verá no decorrer deste trabalho, a origem dos conflitos


não é alcançada pelo judiciário, que age de maneira superficial ao
litígio, dispondo tão somente de solução jurídica para o problema.
Daí advém a importância da utilização dos meios adequados de so-
lução de conflitos, o conhecido sistema Multiportas, que alcança a
negociação, conciliação, mediação e arbitragem, assim como outros
meios de composição de conflitos, como a Constelação Sistêmica
Familiar, principalmente nos divórcios, nosso objeto de estudo.
O pensamento sistêmico é recepcionado pelo Direito e exige
do profissional atuante – seja ele o constelador ou o próprio ad-
vogado da demanda – habilidades que vão além do conhecimen-
to, técnica, boa redação e inteligência, mas conhecimento das leis
sistêmicas, num trabalho de consciência expandida e desenvolvi-
mento de posturas e percepções enquanto agente de aconselha-
mento, e recurso, na atuação e pacificação do conflito.
A constelação possui grande efetividade na resolução de pro-
blemas, como meio econômico, célere, informal, sem demandar,
por vezes, a intervenção judicial, tratando o litígio na sua origem.
Quando a judicialização se faz necessária, auxilia também no de-
senvolvimento do conflito sob um olhar humanizado e através
de um comportamento sistêmico, aplicando a solução necessária
muito além dos direitos e deveres legais, acompanhando os en-
volvidos, inclusive, após a decisão, tendo a justiça além da lei e
não apenas a partir desta.
Com isso, grandes resultados podem ser alcançados, inclusive,
na prevenção de conflitos adjacentes na entidade familiar e novas
demandas correlatas.

2. PONTOS PRECUSSORES DA INSTABILIDADE NAS RELAÇÕES


FAMILIARES E OS DESAFIOS GERADOS PELA PANDEMIA NO
RELACIONAMENTO CONJUGAL

Evidente a impactante mudança na rotina e hábitos dos indi-


víduos e nas relações interpessoais, profissionais e familiares, em
razão do cenário mundial de calamidade pública, vivenciado hoje
pela pandemia da Covid-19. Na esfera familiar, mostra-se grande
e direta a afetação.
18

indag indic_gabriella.indb 18 22/07/2021 09:53:09


lorena stéfanne silva santiago, tiago lúcio dos santos

O impacto na economia do país e a exposição da saúde física


e psicológica do indivíduo são fontes motrizes para o alto índice
de desempregos e adoção de medidas antes nunca vivenciadas,
como o isolamento social, que hoje se faz impositivo para a pre-
venção e combate à doença.
Nessa fase de intenso e contínuo convívio no lar, o surgimento
de conflitos complexos são consequências drásticas do confina-
mento e chegam ao Judiciário ou mesmo à esfera administrativa
em grande massa.
O alcance ilimitado à internet e à gama de informação e co-
nhecimento gratuito, de livre disposição na rede, especialmente no
período da era digital, trouxe às pessoas, em geral, um facilitador,
como as consultorias on-line, o acesso às legislações, informações,
e, principalmente, à ardilosa ideia de família e mundo “ideais”, ex-
postos pela internet na falsa impressão de uma vida perfeita. Tudo
isso faz instigar àqueles que enfrentam qualquer dificuldade a
abandonar facilmente o enlace construído, na busca constante da
desejada felicidade, muitas vezes, ludibriada por si mesmo.
Com a entrada em vigor da Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de
2007, que possibilitou a realização de separação consensual e di-
vórcio consensual por via administrativa, viu-se facilitado e cres-
cente o número de dissoluções matrimoniais, conforme verifica-
mos no levantamento realizado pelo Cartório Notarial do Brasil:
O segundo semestre de 2020 registrou o maior número de divórcios
registrados em cartórios no Brasil. Foram 43,8 mil processos conta-
bilizados em levantamento do Colégio Notarial do Brasil – Conselho
Federal (CNB/CF). O número foi 15% maior em relação ao mesmo
período de 2019. Segundo dados do CNB, a alta do número de divór-
cios foi constatada em 22 estados e no Distrito Federal. A entidade
também divulgou balanço que aponta que quase 20% das separações
no Brasil já são feitos por meio cartórios de notas (SANTOS, 2021).

Vale ressaltar que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-


ca (IBGE) confirmou, em pesquisa, que o número de divórcio vem
crescendo drasticamente devido à pandemia:
A tendência de alta também é confirmada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo a entidade, o número

19

indag indic_gabriella.indb 19 22/07/2021 09:53:09


o divórcio na pandemia: intensificação de demandas e a constelação
familiar como possibilidade de prevenção e solução de litígios

de divórcios no país cresceu 75% em cinco anos e, no meio do ano


passado, o total de divórcios saltou para 7,4 mil apenas em julho,
um aumento de 260% em cima da média de meses anteriores
(SANTOS, 2021).

Daí a importância de um acompanhamento ou auxílio profis-


sional prévio, como também na ocorrência do conflito, para su-
porte e instrução nesse período de grandes desafios.
O Direito de Família precisa, assim, ser visto e entendido sob
uma ótica sistêmica ampla, inclusive pelos próprios profissionais
do ramo, que devem, por sua vez, estimular a aplicação dos mé-
todos adequados de solução de conflitos, que tanto vêm sendo
demandados, e devem acertadamente ser utilizados na solução
das controvérsias mormente familiares.
Um profissional preparado e com o pensamento sistêmico, con-
forme se demonstrará adiante, é um diferenciador e peça-chave
para o acompanhamento da demanda. Assim como a Constelação
Sistêmica Familiar, uma solução adequada para situações de con-
flitos, em suas mais diversas abrangências. Esta busca detectar o
problema na sua origem e alcançar a solução do litígio, bem como
a retomada do vínculo, o que se torna possível mediante devido
preparo e orientações necessárias. Serve até mesmo para dirimir
os impactos na resolução do conflito, ainda que o adequado seja
o afastamento das partes e encerramento da convivência conjugal,
mas de maneira concorde, sem maiores abalos e sofrimentos para
os envolvidos, devidamente amparados e preparados pela técnica.

3. FASES DO DIVÓRCIO E SEUS REFLEXOS NO PERÍODO DA


PANDEMIA: O ROMPIMENTO DA UNIÃO FAMILIAR SOB
UMA PERSPECTIVA TRANSDISCIPLINAR

O fim do relacionamento a dois, em meio a tantos porquês,


tem origem principalmente no distanciamento do casal e suscita
reflexos muito além do âmbito jurídico, com abrangência afetiva,
social e patrimonial.
O comportamento de indiferença, ingratidão, ausência de ca-
rinho, e até o fim do amor, seja qual for a situação efetivamente

20

indag indic_gabriella.indb 20 22/07/2021 09:53:10


lorena stéfanne silva santiago, tiago lúcio dos santos

ocorrida, geram um vazio que reflete no íntimo dos casais e, der-


radeiramente, torna insustentável a relação.
O divórcio inicia-se muito antes do conhecimento de causa
pelo advogado, e de igual maneira não tem um fim em si com a
dissolução do matrimônio.
As fases do divórcio evidenciam bem essa realidade e seu es-
tudo é de extrema importância para o entendimento da situação
como um todo, assim como para sua condução pelo profissional
da área jurídica.
Na pandemia, com o intenso convívio no lar, maior também se
tornaram as divergências de ideias, sobrelevando os típicos pro-
blemas de relacionamento.
A primeira fase do divórcio, perceptível facilmente pelos envol-
vidos e, em grande parte, por seu envolto, é a emocional. Nela, os
casais se enxergam distantes, reduzem o diálogo, as críticas pas-
sam a ser constantes, o companheirismo é abatido, assim como
a atenção, intimidade e os planos, que passam a ser individuais,
mesmo com a convivência ainda conjunta entre os parceiros.
Num dado momento, a parceria se rompe de tal forma que
os envolvidos deixam de se ver como um casal, o sentimento
de estranheza se faz presente, até mesmo a violência surge,
tantas vezes psicológica, física ou emocional. Nesse estágio, o
divórcio já existe de fato, e a regularização jurídica é a próxima
medida.
O divórcio jurídico então se instala com a busca do profissio-
nal para auxílio e solução jurídica do conflito. Todavia, as perdas
concomitantemente se iniciam, dada a redução econômica e pa-
trimonial do casal, com a separação de corpos, individualidade do
lar, estipulação de obrigações antes não existentes, e investimento
financeiro à demanda.
Importante destacar que aqui não há discussão de culpa. Como
tão bem trouxe a evolução da legislação familiarista brasileira, o
fim de uma relação nem sempre se atrela a declinar o ente respon-
sável, mas sim, o fato de dois envolvidos terem perdido os pontos
básicos da relação, que compõem a ligação emocional.

21

indag indic_gabriella.indb 21 22/07/2021 09:53:10


o divórcio na pandemia: intensificação de demandas e a constelação
familiar como possibilidade de prevenção e solução de litígios

As consequências do rompimento alcançam os filhos e demais


componentes da entidade familiar, bem como a relação entre eles.
Com a ruptura, toda a rotina dos envolvidos é alterada, principal-
mente daquele sobre quem recaiu o dever de guarda dos filhos,
quando existentes. As obrigações tornam-se, assim, maiores; o
cansaço, o desgaste e todo o imbróglio emocional se efetiva, exi-
gindo auxílio muitas vezes profissional, e métodos adequados de
solução do conflito.
Involuntariamente experimenta-se o divórcio social. Isso porque,
com a separação do casal, as relações com os amigos e familiares,
por óbvio, também restam abaladas. Daí dizer que o divórcio não
causa impacto apenas às partes, mas a todo um entorno envolvido
na relação, mesmo que de forma reflexa. Amizades são distanciadas
ou perdidas, convívio com a família do parceiro é prejudicado, além
de outras consequências inerentes ao distanciamento.
Durante o período da pandemia, as repercussões do divórcio
têm forma muito mais brusca. O isolamento social, enquanto me-
dida necessária e obrigatória, neste período, implica na carência
afetiva daquele que teve sua estrutura familiar rompida, e se vê
longe, agora, do convívio social.
O sentimento de perda, então, faz-se presente, e o vazio ins-
talado, de cada lado, impõe cuidados, medidas tratativas e acom-
panhamento adequados. Com o rompimento do enlace psíquico,
a última fase do divórcio é experimentada e dá lugar à necessária
reconstrução individual das partes, tal como à luta incessante pela
felicidade.

4. O PENSAMENTO SISTÊMICO E A CONSTELAÇÃO FAMILIAR


NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES, EXTRA E
JUDICIAIS, ESPECIALMENTE NOS RELACIONAMENTOS
CONJUGAIS, EM TEMPOS DE PANDEMIA

No sistema jurídico brasileiro atual, há um leque de possibili-


dades para composição de litígios, arraigadas na grande evolução
normativa com meios adequados para os litigantes solucionarem
suas controvérsias.

22

indag indic_gabriella.indb 22 22/07/2021 09:53:10


lorena stéfanne silva santiago, tiago lúcio dos santos

O atual Código de Processo Civil, Lei 13.105 de 2015, a fim


de suprir a ineficiência do sistema processual brasileiro que com-
prometia a efetividade do ordenamento jurídico, buscou, dada a
promessa constitucional de celeridade da justiça, prestigiar o Prin-
cípio da Instrumentalidade do Processo, retomando seu caráter
instrumental de resolver problemas, trazendo a autotutela, a au-
tocomposição, mediação e o julgamento de conflitos por tribunais
administrativos, assim conhecido como Sistema Multiportas, que
permite ao demandante o meio mais adequado para solucionar o
conflito, conforme a singularidade de cada caso. A previsão dos
métodos solucionadores de conflitos também foi feita por varia-
dos dispositivos jurídicos relativos, devendo os mesmos ser esti-
mulados pelos aplicadores da lei, no geral.
Um método atualmente aplicado, como solucionador de con-
flitos em vários tribunais e outras instituições do país, como forma
de ampliação do acesso à justiça, é a Constelação Sistêmica e Fa-
miliar, advinda de movimentos genuinamente brasileiros, marcada
por seu caráter célere, informal e de baixo custo.
A Constelação Sistêmica teve origem através do filósofo ale-
mão Bert Hellinger (1925-2019) que, ainda nos anos 70, desenvol-
veu a técnica, alcançando novo método de trabalho de base sistê-
mica para resolução de conflitos familiares, com contribuições da
psicanálise, do psicodrama e da análise transacional, consideran-
do sua rica vivência pessoal como teólogo e psicoterapeuta.
Por sua origem, o método recebeu a denominação de Cons-
telação Familiar, cujo termo vem da palavra alemã “familienaufs-
tellung”, que significa “colocar a família na posição” ou “uma nova
mirada”, mas com complexidade muito mais extensa e atuação em
diversos tipos de conflitos de natureza social e energética. Possui
relevante e substancial efetividade na vida contemporânea. Em
geral, aparece como uma das tentativas intelectuais mais bem su-
cedidas, tendo em vista os novos conflitos marcados por experiên-
cias emocionais e caráter sistêmico inédito: seja para atendimento
das famílias em desordem, reintegração dos presos na sociedade,
acolhimento de crianças e adolescentes, estreitamentos de laços
consanguíneos, atendimento de mulheres vítimas de violência
23

indag indic_gabriella.indb 23 22/07/2021 09:53:10


o divórcio na pandemia: intensificação de demandas e a constelação
familiar como possibilidade de prevenção e solução de litígios

doméstica, amparo em casos de assédio moral, atendimento em


demandas da esfera trabalhista, e outros, resultantes, em sua
grande maioria, das mudanças importantes nas crenças, valores e
regras coletivas, com impacto sobre redes sociais e mesmo sobre
estrutura corporal, não alcançando, muitas vezes, solução pelos
métodos psicológicos, sociológicos e religiosos tradicionais.
Destaca-se aqui, a aplicabilidade da Constelação Familiar e sua
efetividade como facilitador do diálogo entre casais, nos conflitos
familiares, bem como a importância do direito sistêmico na práti-
ca da Advocacia familiarista.
Nos dizeres de Campos Vieira (2019), em seu livro A constela-
ção sistêmica no judiciário: “[...] serve a constelação como terapia
pessoal e pode no judiciário ser utilizada como ferramenta de um
justo efetivo, onde negociem pessoas que mais próximas se en-
contrem da real compreensão do conflito”.
Sejam entre grupos, pessoas ou internamente em cada indiví-
duo, os conflitos nascem por causas mais profundas e complexas
do que um mero desentendimento pontual, difícil de ser detecta-
do pela simples demanda judicial. Daí a importância de se alcan-
çar o problema profundamente e encontrar a verdadeira solução,
através da prática de uma ciência jurídica com viés terapêutico,
como é o caso da Constelação.
O Direito Sistêmico nasceu com a aplicação das leis da Cons-
telação, ou Ordens do Amor de Berth Hellinger, preestabelecidas
nas relações humanas. Compõem tais ordens o vínculo (perten-
cimento), o equilíbrio entre o dar e o tomar e a própria ordem
(hierarquia), cuja Constelação atuará em um trabalho de reorde-
namento e liberação, seja pessoal, familiar, organizacional ou insti-
tucional, identificando as dinâmicas de emaranhamentos nos vín-
culos de pertencimento, a fim de facilitar as interações humanas e
solucionar conflitos.
Pela lei do pertencimento, todos têm o igual direito de perten-
cer, seja a um local, a um grupo ou a uma família, não importando
se essa pessoa fez algo de errado ou reprovável. Quando há a ex-
clusão desse membro, seu destino é inconscientemente assumido
24

indag indic_gabriella.indb 24 22/07/2021 09:53:10


lorena stéfanne silva santiago, tiago lúcio dos santos

e continuado por membros subsequentes da família. A Constela-


ção Sistêmica Familiar, então, auxilia na recuperação dos excluídos
para o grupo pertencente e proporciona paz aos conflitos.
A lei do equilíbrio tem importância principalmente nas rela-
ções conjugais para que ambos se reconheçam como iguais, de
mesmo valor, mantendo o vínculo de amor forte, na dosimetria
entre o dar e o tomar, inclusive, no que tange à troca do amor,
para uma relação de equivalência entre os pares.
Na hierarquia, tem-se a necessidade de obediência a uma or-
dem natural da vida. No vínculo familiar, essa ordem vem com os
pais, em precedência, cabendo aos filhos receberem o amor da
forma que lhes é dado, e serem gratos. Com a Constelação, há o
auxílio no desprendimento dos vínculos da família de origem, de
forma a se manter uma conexão, porém de maneira livre, seguin-
do o rumo sem cargas do passado.
Conhecer as leis sistêmicas possibilita ao advogado da área da
família atender ao cliente com mais liberdade, respeito e acolhimen-
to, através de uma postura com ferramentas e habilidades capaz de
ver além do conflito, facilitando e propiciando o alcance de uma
solução realmente adequada aos indivíduos que dela necessitam.
O advogado sistêmico pode tanto prevenir um processo judi-
cial, como facilitar para que a demanda seja menos contenciosa, e
até mesmo solucionar um conflito.
A dinâmica da Constelação pode ser feita em grupo ou indi-
vidualmente. Durante a sessão, são criadas cenas que envolvem
sentimentos e sensações que o constelado sente sobre sua famí-
lia. Nas sessões individuais, são utilizadas esculturas, bonecos, ân-
coras, ou quaisquer outros recursos disponíveis para representar
os diferentes papéis no sistema, e nas sessões em grupos, são os
voluntários que vivem essas cenas.
Muitas vezes, apenas uma sessão de Constelação é suficiente
para solucionar o problema. No Judiciário, por exemplo, a Conste-
lação abre portas, inclusive, para o trabalho e efetividade da me-
diação, facilitando o diálogo e promovendo a mudança de cultura,
potencializando a resolução das questões.
25

indag indic_gabriella.indb 25 22/07/2021 09:53:10


o divórcio na pandemia: intensificação de demandas e a constelação
familiar como possibilidade de prevenção e solução de litígios

Nesse período de pandemia, em que se enfrenta uma extre-


ma convivência contínua, inúmeras questões que se encontravam
latentes, muitas vezes, pela rotina acelerada, momentos de lazer,
encontros sociais, foram agora afloradas, com grande demanda
de conflitos familiares e alta procura por divórcios, após longo
período de confinamento.
Nas palavras de Madaleno (2020), advogada, membro do Ins-
tituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM:
A Constelação Familiar consegue pôr luz a padrões relacionais. Mostra
a forma como o indivíduo em questão se relaciona com o outro – ou
de onde se originou esta forma de se relacionar – e dá a oportunidade
de modificar os comportamentos, pois apenas é possível modificar
aquilo que é conhecido, se a forma como o indivíduo age dentro da
relação lhe é desconhecida ou não consciente, a mudança não é per-
mitida (MADALENO, 2020 apud IBDFAM, 2020).

A Constelação Sistêmica Familiar age, então, neste propósito: des-


vendar o problema em sua origem, desvelando conflitos ocultos ou
não manifestos no ser humano, ou nas suas relações, auxiliando na
sua resolução. Como método acessível, eficiente e célere, atua como
forma resolutiva, preferencialmente quando constatado o problema,
alcançando resultados, inclusive, preventivos, evitando conflitos adja-
centes e demandas judiciais. E, quando utilizada já no curso de ação
judicial, serve como método anterior à Mediação e à Conciliação, al-
cançando resultados satisfatórios na composição de conflitos.

5. CONCLUSÃO

A evolução da sociedade, da legislação e a diversificação de


demandas exigem cada vez mais do Direito a receptividade aos
debates apresentados, impõem soluções práticas e métodos atuali-
zados para aplicação na resolução dos conflitos.
A grande massa de ações no Judiciário trouxe ao legislador a
necessidade de atualização, através da criação de um novo Códi-
go de Processo Civil no país, marcado por um caráter instrumental,
com previsão expressa da autotutela, autocomposição, mediação
e julgamento de conflitos por tribunais administrativos, a fim de

26

indag indic_gabriella.indb 26 22/07/2021 09:53:10


lorena stéfanne silva santiago, tiago lúcio dos santos

conceder eficiência ao sistema processual brasileiro, além de auxílio


aos litigantes.
A escolha de métodos alternativos de conflitos vem sendo
cada vez mais comum e acertada, com a resolução dos litígios,
muitas vezes, de maneira extrajudicial, e, na impossibilidade, o seu
acompanhamento sob uma ótica humana, além da eficiência, ce-
leridade e efetividade às demandas.
A constelação sistêmica familiar apresenta-se, assim, como
uma técnica de grande alcance no país, que age na origem do
problema, detectando o fato principal, que, não raro, culmina em
diversos conflitos adjacentes.
O método, abarcado pelo próprio Judiciário como forma alter-
nativa de solução de conflitos, principalmente no Direito de Famí-
lia, busca alcançar a pacificação social, tal como a jurisdição, atra-
vés de um ambiente terapêutico e de saúde mental dos litigantes.
Exige-se também do profissional um pensamento sistêmico para
boa aplicação do método e alcance de bons resultados.
A relação conjugal, sobretudo neste período vivenciado pela
Pandemia da Covid-19, sofreu intervenção direta pelo intenso
convívio no lar e seus impactos, gerando mais instabilidade no
vínculo familiar, que se viu drasticamente prejudicado.
O trabalho, numa abordagem geral sobre o tema, trouxe, assim,
a Constelação Familiar como método efetivo na solução desses con-
flitos. Por meio da técnica e das vivências conduzidas, há a identifi-
cação dos conflitos ocultos, bem como a viabilização da resolução
de lides, promovendo a humanização e possibilitando uma profun-
da compreensão sobre o problema. Além disso, cria-se um clima de
equilíbrio emocional, proporcionando a redução da excessiva judi-
cialização das demandas, a partir da conscientização dos indivíduos
quanto às questões de fundo que os mobilizam, tornando-os aptos
a buscar de forma mais equilibrada uma solução para seus conflitos.

6. REFERÊNCIAS

BONENKAMP, Cornélia Benesch; QUEZADA; Fabiana. ROMA, Andréia. Pensa-


mento Sistêmico: Abordagem Sistêmica aplicada ao Direito. 1ª ed. São Paulo:
Editora Leader Ltda. 2019.
27

indag indic_gabriella.indb 27 22/07/2021 09:53:10


o divórcio na pandemia: intensificação de demandas e a constelação
familiar como possibilidade de prevenção e solução de litígios

BRASIL. Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Disponível em: <http://www.planal-


to.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11441.htm>. Acesso em: 17 abr. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em:
17 abr. 2021.
CARVALHO, Bianca Pizzatto. Constelações Familiares na Advocacia Sistêmica:
Uma prática humanizada. Manuscritos Editora, 2018.
FONTE, Ana. O Tão das Constelações. 4. ed. Recife: Constelar. 2019.
GALVÃO, Luiza. Tudo o que um advogado precisa saber sobre direito de família.
AURUM, 2019. Disponível em:<https://www.aurum.com.br/blog/direito-de-fa-
milia/>. Acesso em: 24 de maio de 2021.
HELLINGER, Bert. O Que é a Constelação Familiar de Bert Hellinger. Dispo-
nível em: <https://iperoxo.com/constelacao-sistemica-e-familiar/>. Acesso em:
17 abr. 2021.
HORTA, Renato. Fases do Divórcio. Portal Gama. 2020. Disponível em: <https://
portalgama.com.br/fases-do-divorcio/>. Acesso em: 20 mai. 2021.
IBDFAM, Assessoria de Comunicação. Constelação familiar pode dirimir confli-
tos surgidos durante a quarentena; saiba mais sobre a técnica. IBDFAM. 2020.
Disponível em: <https://ibdfam.org.br/index.php/noticias/7839/Constela%-
C3%A7%C3%A3o+familiar+pode+dirimir+conflitos+surgidos+durante+a+qua-
rentena%3B+saiba+mais+sobre+a+t%C3%A9cnica>. Acesso em: 19 mai. 2021.
IBDFAM, Assessoria de Comunicação. Fases do divórcio e suas repercussões ju-
rídicas são analisadas por especialista. IBDFAM. 2020. Disponível em: <https://
ibdfam.org.br/index.php/noticias/7614>. Acesso em: 19 mai. 2021.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Disponível em:
<https://www.istoedinheiro.com.br/numero-de-divorcios-cresce-na-pandemia
-e-gera-oportunidades-de-negocio/>. Acesso em: 17 abr. 2021.
OLIVEIRA, Carolina Bassetti. O Direito de Família e os reflexos advindos da pan-
demia. NWADV. 2021. Disponível em:<https://nwadv.com.br/o-direito-de-fa-
milia-e-os-reflexos-advindos-da-pandemia/>. Acesso em: 24 mai. 2021.
PITCOVSKY, David Fabian. A Constelação Familiar Utilizada Como Método de
Soluções de Conflitos Judiciais no Brasil. Brasil Escola. 2020. Disponível em:
<https://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/a-constelacao-familiar-u-
tilizada-como-metodo-de-solucoes-de-conflitos-judiciais-no-brasil.htm#:~:-
text=A%20Constela%C3%A7%C3%A3o%20Familiar%20tem%20sido,de%20
solu%C3%A7%C3%A3o%20pac%C3%ADfica%20de%20conflito>. Acesso em:
23 mai. 2021.

28

indag indic_gabriella.indb 28 22/07/2021 09:53:10


lorena stéfanne silva santiago, tiago lúcio dos santos

PELLEGRINI, Carolina Portella. O pensamento sistêmico aplicado à advocacia:


um caminho para a sua ressignificação. RESEARCHGATE. 2019. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/332887612_O_pensamento_siste-
mico_aplicado_a_advocacia_um_caminho_para_a_sua_ressignificacao (resear-
chgate.net)>. Acesso em: 19 de maio de 2021.
REDAÇÃO. Constelação Clínica. Superando o divórcio por meio da Constelação
Familiar. CONSTELAÇÃO CLÍNICA. 2019. Disponível em:<https://constelacao-
clinica.com/superando-o-divorcio/#:~:text=Seja%20por%20raz%C3%B5es%20
inumeradas%2C%20a,gerando%20alguns%20traumas%20no%20desligamen-
to.>. Acesso em: 23 mai. 2021.
SANTOS, Rafa. Número de divórcios explode na pandemia e gera oportunidades de
negócio. Conjur, 2021. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2021-mar-06/
numero-divorcios-explode-gera-oportunidades-negocio#:~:text=O%20se-
gundo%20semestre%20de%202020,ao%20mesmo%20per%C3%ADodo%20
de%202019>. Acesso em: 24 mai. 2021.
VIEIRA, Adhara Campos. A Constelação Sistêmica no Judiciário. 2ª reimp.
Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.
VIEIRA, Adhara Campos. A Constelação no judiciário. Instituto Estelar. 2017.
Disponível em: <200914_constelacaonojudiciario_ebook.pdf (institutoestelar.
com.br)>.Acesso em: 23 mai. 2021.

29

indag indic_gabriella.indb 29 22/07/2021 09:53:10


indag indic_gabriella.indb 30 22/07/2021 09:53:10
ALIENAÇÃO PARENTAL
COMO FORMA DE LESÃO AO
DIREITO FUNDAMENTAL DE
CONVIVÊNCIA FAMILIAR
Nathalia Santos Alkimim1

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo pretende discorrer sobre o direito de con-


vivência familiar, mais precisamente, sobre a alienação parental
como forma de lesão ao direito fundamental de convivência fa-
miliar.
O direito à convivência familiar, introduzido no Brasil através
da Constituição da República de 1988, e mais amplamente abor-
dado no Estatuto da Criança e do Adolescente, busca proteger e
garantir o crescimento e desenvolvimento saudável da criança e
do adolescente no âmbito de sua família, seja natural ou extensa.
O aumento do número de casos de separações e divórcios liti-
giosos no país trouxe consigo um crescente aumento no número
de alienações parentais, causando lesão aos direitos fundamentais
do infante e do genitor alienado, sendo um deles o direito funda-
mental à convivência familiar.
É através da alienação parental que o genitor alienante utiliza
de sua influência perante a criança/adolescente para que este crie
pelo outro genitor sentimentos como o de repulsa, ódio, tristeza e
abandono. No entanto, tal conduta praticada pelo alienante pode

1
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e membro
da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da 83ª subseção da OAB Minas
Gerais. E-mail: natalkmim@yahoo.com.br.

indag indic_gabriella.indb 31 22/07/2021 09:53:10


alienação parental como forma de lesão ao direito fundamental de convivência familiar

se caracterizar como abuso de poder, surgindo a possibilidade de


responsabilização civil.
Assim, o presente estudo busca demonstrar a mediação fami-
liar, instrumento de resolução de conflitos, como possível forma
de solução para as lesões ao direito de convivência familiar, em
decorrência da alienação parental.
A metodologia de pesquisa utilizada deu-se por meio de revi-
são bibliográfica, teóricas, consulta à legislação do ordenamento
jurídico brasileiro, exame de revistas jurídicas, artigos periódicos e
o método dedutivo.

2 O DIREITO FUNDAMENTAL À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

A palavra “convivência” é definida como “ação ou efeito de


conviver; modo de vida em que se pode partilhar; vida em co-
mum; convívio diário”2. A convivência familiar é essencial para a
criação e crescimento de cada indivíduo, e é através dela que o
caráter e a personalidade da criança e do adolescente, incluídos
em determinado grupo familiar, é construído.
No Brasil, o direito fundamental à convivência familiar sur-
giu através do art. 227 da Constituição da República Federa-
tiva do Brasil de 1988. Apesar da previsão na Carta Maior, foi
o Estatuto da Criança e do Adolescente que discorreu mais
amplamente acerca deste direito, destinando todo o seu Ca-
pítulo III para tratar sobre o Direito à Convivência Familiar e
Comunitária.
A lei 8.069/90 destaca em seu art. 19 o direito da criança, do
adolescente e do jovem de ser criado no seio de sua família (fa-
mília de origem e extensa) e, em casos excepcionais, em famílias
substitutas, ressaltando a necessidade da criação em um ambien-
te sadio e seguro. Ainda, através da Constituição Federal de 1988
e do Estatuto da Criança e do Adolescente, baseando-se no prin-
cípio do melhor interesse, o direito de convivência familiar do in-
divíduo deve ser constituído em um núcleo familiar saudável, que

2
Fonte: <https://www.dicio.com.br/convivencia/>.

32

indag indic_gabriella.indb 32 22/07/2021 09:53:10


nathalia santos alkimim

proporcione condições necessárias para um bom desenvolvimen-


to psicossocial.
Comumente, é a partir da separação litigiosa dos pais que o direito
de convivência familiar pode vir a sofrer prejuízos. Contudo, como
explica Ramos (2016), a separação não pode ser ponto de partida de
afastar a criança do convívio com um de seus responsáveis.
É notório que é por intermédio da convivência familiar que se
tem o primeiro contato com sentimentos como carinho, afeto, amor
e cuidado. Além disso, aprende-se também o que é responsabilida-
de, o que são deveres, valores e os limites impostos pela vida. Dessa
forma, é por meio da convivência familiar e do convívio diário que
a criança e o adolescente aprendem as regras de convivência social
e como se comportar em sociedade (RAMOS, 2016).
Teixeira e Vieira (2015) afirmam que é através do convívio diá-
rio que o infante terá referências concretas de como agir em socie-
dade. A forma com que a família soluciona seus embates influen-
cia demasiadamente nas futuras resoluções de conflito do menor
e na forma com que ele irá agir.
A convivência familiar, além de ser direito fundamental da
criança e do adolescente, caracteriza-se também como um dever,
que recai sobre seus responsáveis. O art. 3º da Lei 12.318 de 2010
(Lei da Alienação Parental) esclarece que:
Art. 3o A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental
da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, pre-
judica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo
familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e
descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou de-
correntes de tutela ou guarda.

Moreira (2013) ainda explana que a sonegação do direito de


convivência por parte dos pais configura-se como um abuso de
direito, retirando de seu filho a possibilidade de relacionar-se com
eles.
Ademais, cógnito se faz que a ausência do convívio familiar,
seja por ambos, ou apenas um dos genitores, pode ocasionar sé-
rios prejuízos ao desenvolvimento do caráter e personalidade do
33

indag indic_gabriella.indb 33 22/07/2021 09:53:10


alienação parental como forma de lesão ao direito fundamental de convivência familiar

infante, além do surgimento de sentimentos de abandono, soli-


dão e afastamento.

3 A ALIENAÇÃO PARENTAL E A LEI 12.318/2010

A alienação parental caracteriza-se quando um dos genito-


res da criança/adolescente realiza atos com objetivo de prejudi-
car o vínculo afetivo do filho com o outro genitor, explica Ferreira
(2013). Dessa forma, é um comportamento praticado por um dos
pais que utiliza sua influência sobre o infante, visando fragilizar ou
pôr fim à relação existente entre seu filho e o outro genitor.
Na maioria dos casos, a alienação parental surge com o rom-
pimento conturbado de um relacionamento, ou com a disputa de
guarda; está diretamente ligada a conflitos existentes na relação dos
genitores que, por sua vez, estendem suas discórdias a seus filhos.
Desse modo, induzem o infante a repelir o outro genitor, de forma
que este não deseje mais conviver com seu outro pai, afaste-se
dele e crie um sentimento de repúdio e ódio (FERREIRA, 2013).
É através da alienação parental que o genitor alienante enxerga
uma possibilidade de satisfazer sentimentos como o de vingança,
ciúmes, raiva e possessividade. Assim, aproveita seu poder pater-
nal e/ou maternal de forma abusiva e usa a criança ou adoles-
cente como instrumento para atingir diretamente o genitor alie-
nado (TOSO, 2010).
Ramos (2016) explica que:
nesse sentido, a prática do ato de alienação parental fere direito fun-
damental da criança ou do adolescente de convivência familiar sau-
dável, prejudica a realização de afeto nas relações com o genitor e
com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o
adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade
parental ou decorrentes de tutela ou guarda (p. 97).

A alienação pode ser praticada de diversas maneiras, o geni-


tor alienante pode omitir informações relevantes do cotidiano do
infante, inventar mentiras sobre o outro genitor, obstruir ou di-
ficultar visitas, e até mesmo realizar falsas denúncias, tais como
agressão e abuso sexual (RAMOS, 2016).
34

indag indic_gabriella.indb 34 22/07/2021 09:53:10


nathalia santos alkimim

Percebe-se que, através da alienação parental, aqueles que de-


veriam e estão encarregados de cuidar da criança ou adolescente,
em todas as áreas de sua vida, acabam ocasionando a ela sérios
problemas psicológicos que podem se estender por toda sua vida.
Castro (2016) esclarece que, com o crescimento do número de
casos de alienação parental no Brasil nas últimas décadas, foi in-
troduzida na legislação pátria a lei 12.318/2010, que dispõe sobre
o tema da alienação parental, conceituando, regulamentando e
prevendo sanções para os alienantes. A lei nº 12.318/10, em seu
art. 2º, assim conceitua a alienação parental:
Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na for-
mação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou indu-
zida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança
ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que
repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à ma-
nutenção de vínculos com este.

Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental,


além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia,
praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:

I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no


exercício da paternidade ou maternidade;

II - dificultar o exercício da autoridade parental;

III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;

IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência


familiar;

V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes


sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e altera-
ções de endereço;

VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste


ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a
criança ou adolescente;

VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a


dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro geni-
tor, com familiares deste ou com avós (BRASIL, 2010).

35

indag indic_gabriella.indb 35 22/07/2021 09:53:10


alienação parental como forma de lesão ao direito fundamental de convivência familiar

O parágrafo único do art. 2º demonstra que a alienação paren-


tal possui diferentes níveis, sendo que em seu nível mais brando
induz o infante a ter pensamentos falaciosos sobre um de seus
genitores. Já em sua forma mais gravosa, a convivência de um
dos genitores com a criança ou adolescente é obstaculizada pelo
outro, explica Rabachini (2019).
A lei foi introduzida com o objetivo de assegurar o direito fun-
damental à convivência familiar das crianças e adolescentes que
são vítimas de alienação parental.
Além de ter o convívio com um dos genitores prejudicado de for-
ma expressiva, o infante incluído nesta seara pode suportar graves
danos psicológicos, que podem se entender até a fase adulta de sua
vida, caracterizando assim a SAP (Síndrome da Alienação Parental).
A síndrome da alienação parental não se confunde com a alie-
nação parental. Como já dito, a alienação parental configura-se
através do comportamento de um genitor que realiza atos a fim
de prejudicar o convívio da criança/adolescente com o outro ge-
nitor. Já a Síndrome da Alienação Parental caracteriza-se como um
transtorno no comportamento do infante, que sofre danos psico-
lógicos e morais em decorrência da alienação parental (DUQUE e
SOUZA, 2018). Decorre da junção de todos os atos praticados pelo
genitor alienante. A criança ou adolescente vítima da síndrome de
alienação parental possui, sem nenhuma justificativa, sentimento
de raiva e ódio de um de seus genitores, de modo que não deseja
mais conviver com ele.
Rabachini (2019) esclarece que a síndrome da alienação pa-
rental ocasiona sérios prejuízos ao infante, que pode padecer de
depressão, ansiedade e transtornos ligados a sua personalidade.

5 RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO DA ALIENAÇÃO


PARENTAL E DO DIREITO DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR

O poder familiar concedido legalmente aos pais sobre seus fi-


lhos confere a eles direitos e deveres. Entre os deveres, encontra-se
o de proporcionar aos filhos o desenvolvimento saudável de sua
psique.

36

indag indic_gabriella.indb 36 22/07/2021 09:53:10


nathalia santos alkimim

A responsabilidade civil caracteriza-se como um instituto pre-


visto dentro do ordenamento jurídico brasileiro, no Código Civil
de 2002, que disciplina que aquele que causar dano a outrem terá
o dever de indenizar, seja este dano moral ou material.
Como visto, entende-se que a alienação parental e a lesão ao
direito de convivência familiar por parte dos pais configuram-se
como uma forma de abuso de direito, pois violam obrigações de-
correntes da paternidade, lesando ainda direitos fundamentais da
criança ou adolescente.
O Código Civil de 2002, em seus artigos 186, 187 e 927, escla-
rece que:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusi-
vamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao


exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a
outrem, fica obrigado a repará-lo.

Nota-se que o abuso de direito exercido pelo alienante confi-


gura-se como ato ilícito, porque infringe direitos fundamentais do
infante, bem como do genitor não alienante, causando dano moral,
fazendo assim emergir o dever de indenizar (NASCIMENTO, 2015).
Os danos ocasionados em decorrência do abuso de direito são
inúmeros. O genitor não alienante pode sofrer prejuízos quanto à
convivência com seu filho, também pode ser alvo de retaliação do
infante em decorrência da alienação. A criança ou adolescente, vítima
mais afetada, suporta inúmeras consequências, tais como a distorção
de imagem dos pais, sentimentos de ódio, raiva, rancor e repulsa,
sente-se abandonada e sozinha, tem seu convívio familiar afetado de
forma drástica, e ainda pode sofrer de doenças psíquicas.
Assim, preenchidos os requisitos essenciais da responsa-
bilidade civil, ou seja, dano, ato ilícito e nexo causal (em caso
de abuso de direito, a responsabilidade é objetiva, não sendo
37

indag indic_gabriella.indb 37 22/07/2021 09:53:10


alienação parental como forma de lesão ao direito fundamental de convivência familiar

necessário o elemento culpa), surgirá para o genitor alienante o


dever de indenizar as vítimas, reparando o dano suportado por elas
(NASCIMENTO, 2015).
Moreira (2013) elucida que, além da responsabilidade civil, a Lei
de Alienação Parental, em seu artigo 4º, possibilita ao juiz aplicar me-
didas provisórias de urgência com o objetivo de proteger a integri-
dade psíquica do infante e garantir a aplicação do direito de convi-
vência com ambos os genitores, restabelecendo os vínculos afetados.
Depois de aplicadas tais medidas, o magistrado determinará
a realização de perícia psicológica ou biopsicossocial e, caso seja
demonstrada a prática de atos de alienação, e consequentemente
de lesão ao direito de convivência familiar, o juiz poderá, com base
no art. 6º da lei 12.318/90, sem prejuízo da incidência da respon-
sabilidade civil, tomar os seguintes apontamentos:
Art. 6º. Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer
conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com
genitor, em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativa-
mente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou
criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a
inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso:

I – declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador;

II – ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor


alienado;

III – estipular multa ao alienador;

IV – determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial;

V – determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou


sua inversão;

VI – determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou ado-


lescente;

VII – declarar a suspensão da autoridade parental.

Com rol meramente exemplificativo, o magistrado deverá to-


mar apontamentos e aplicar as medidas de acordo com o caso
concreto e sua gravidade.
38

indag indic_gabriella.indb 38 22/07/2021 09:53:10


nathalia santos alkimim

Portanto, conclui-se ser possível o enquadramento da res-


ponsabilidade civil nesse âmbito, tendo em vista que as con-
dutas decorrentes da alienação parental e da lesão ao direito
de convivência familiar geram danos concretos às partes. Além
disso, o juiz ainda poderá aplicar medidas reparadoras, com o
objetivo de assegurar os direitos fundamentais do infante e do
genitor alienado.

6 A MEDIAÇÃO FAMILIAR COMO INSTRUMENTO DE


SOLUÇÃO

A mediação familiar configura-se como um instrumento que


possibilita a prevenção e solução da alienação parental. É um pro-
cedimento voluntário e mais célere que um procedimento judicial.
Moreira (2013) descreve que tal instrumento caracteriza-se como
a melhor forma de solução nestes casos, visando à restauração da
harmonia e da convivência familiar: “Integra uma das formas mais
eficazes como meio alternativo de solução de conflitos relaciona-
dos aos problemas que envolvem o liame entre a conjugalidade e
a parentalidade” (p. 84).
Esse mecanismo conta com o auxílio de um terceiro imparcial,
que visa auxiliar aos envolvidos de forma que encontrem uma so-
lução para o conflito através do diálogo, o que em ambiente não
controlado seria quase impossível, em decorrência das grandes
contendas existentes entre eles.
A mediação familiar intenta possibilitar aos genitores ou res-
ponsáveis que visualizem a extensão e as consequências de seus
atos, principalmente em relação à criança/adolescente, principal
vítima nesta situação, de forma que busquem ter uma maior res-
ponsabilidade com o seu filho, exercendo de forma correta e sau-
dável seu poder familiar.
As sessões de mediação familiar podem ocorrer em grupo ou,
caso necessário, de forma individual – o mediador irá conduzi-la
da forma mais adequada. A prática visa uma reflexão por parte
dos pais alienantes, de forma a evitar que a alienação parental se
agrave, buscando interromper o abuso.
39

indag indic_gabriella.indb 39 22/07/2021 09:53:10


alienação parental como forma de lesão ao direito fundamental de convivência familiar

Graves consequências podem ser evitadas através desse instru-


mento, podendo ser utilizado de modo preventivo, similarmente
como forma de solução, caso já exista a alienação parental e o di-
reito fundamental de convivência familiar já tenha sido lesionado.
Portanto, pretende restaurar um ambiente familiar saudável,
conferindo aos pais um melhor convívio e ao infante a possibili-
dade de conviver com ambos os genitores, sem a interferência de
influências negativas acerca de cada um deles, para que ele tenha
condições suficientes de um crescimento saudável, mediante boa
formação de caráter.

7 CONCLUSÃO
Considerando o estudo apresentado, nota-se que as extensões
das lesões ocorridas ao direito de convivência familiar em decor-
rência da alienação parental podem ser maiores do que se imagi-
na, e podem ocorrer de diversas formas.
A previsão na Carta Magna e no Estatuto da Criança e do Ado-
lescente acerca da proteção ao direito de convivência familiar do
genitor alienado, bem como da criança e do adolescente, apoian-
do-se no princípio de seu melhor interesse, são de suma impor-
tância para o ordenamento jurídico brasileiro.
Moreira (2013) demonstra a importância do convívio familiar
de ambos os pais com o infante, esclarecendo que a ausência des-
se relacionamento pode ocasionar diversos prejuízos ao desen-
volvimento do caráter e da personalidade da criança/adolescente.
Ramos (2016) esclarece que, quando caracterizada a alienação
parental, configura-se a violação do cumprimento de deveres ine-
rentes ao poder familiar, constituindo, ainda, abuso de direito.
A possibilidade da responsabilização civil do alienante nasce-
rá, então, com a violação dos direitos fundamentais das partes,
sobretudo o direito de convivência familiar, ocasionando danos
morais (NASCIMENTO, 2015).
Por fim, nota-se, com Moreira (2013), suficiente o instrumento
da mediação familiar como forma de prevenção e solução para o
tema aqui abordado, considerando que a mediação busca restaurar
40

indag indic_gabriella.indb 40 22/07/2021 09:53:10


nathalia santos alkimim

as relações familiares, estimulando as partes, através de um me-


diador, para que encontrem uma solução para seus conflitos de
forma autônoma, restabelecendo vínculos e criando um convívio
familiar mais harmonioso e saudável.

8 REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Bra-


sil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.>. Acesso em: 14 abr. 2021.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da
União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 12.318, 26 de agosto de 2010. Lei de Alienação Parental. Pre-
sidência da República, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm.>. Acesso em: 17 abr. 2021.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Ado-
lescente. Presidência da República, Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l8069.htm.>. Acesso em: 17 abr. 2021.
CARVALHO, Felipe Heffner de Carvalho. Mediação familiar como medi-
da para solucionar os conflitos da síndrome da alienação parental. 2020.
p. 1-36. Disponível em: <http://bib.pucminas.br:8080/pergamumweb/vincu-
los/00006b/00006b0d.pdf.>. Acesso em: 10 abr. 2021.
CASTRO, Rosilaine Carvalho de. Alienação parental à luz da lei 12.318/2010.
v. 6, n. 6, p. 1-7, 2015. Disponível em: <https://periodicos.fapam.edu.br/index.
php/synthesis/article/view/121/118.>. Acesso em: 20 maio 2021.
DICIONÁRIO ONLINE de Português. Porto: 7 Graus, 2021. Disponível em:
<https://www.dicio.com.br/convivencia/.>. Acesso em: 14 abr. 2021.
DUQUE, Bruna Lyra; SOUSA, Deisiane Araujo de. A eficácia da guarda compar-
tilhada na diminuição dos casos de alienação parental. Academia Brasileira
de Direito Civil. v. 2, nº1, p. 1-14, 2018. Disponível em: <https://abdc.emnu-
vens.com.br/abdc/article/view/13#:~:text=S%C3%A3o%20variados%20os%20
conflitos%20entre,quando%20adotada%20a%20guarda%20compartilhada.>.
Acesso em: 21 mai. 2021.
FERREIRA, Frederico Aguiar. A alienação parental no contexto brasileiro:
um debate acerca da utilização da mediação como método para a resolu-
ção do conflito familiar. 2020. p. 1-44. Disponível em: <http://bib.pucmi-
nas.br:8080/pergamumweb/vinculos/000069/0000690d.pdf.>. Acesso em:
17 abr. 2021.

41

indag indic_gabriella.indb 41 22/07/2021 09:53:10


alienação parental como forma de lesão ao direito fundamental de convivência familiar

MELO, Elza Machado de; MONTEZUMA, Márcia Amaral. Abordagens da alie-


nação parental: proteção e/ou violência?. Revista SciELO. n. 04, p. 1-20, ou-
tubro 2017. Disponível em: <https://www.scielosp.org/article/physis/2017.
v27n4/1205-1224/.>. Acesso em: 17 abr. 2021.
MOREIRA, Luciana Maria Reis. Alienação parental: uma análise dos meios de
resolução do conflito para além da Lei n.12.318/2010. 2013. p. 1-114. Disserta-
ção (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de
Pós-Graduação em Direito. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.
br/teses/Direito_MoreiraLM_1.pdf.>. Acesso em: 18 abr. 2021.
NASCIMENTO, Laura Eliza Soares Antunes de Oliveira. Alienação parental e
a responsabilidade civil por violação aos direitos de personalidade. 2015.
185 f. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Programa de Pós-Graduação em Direito. Disponível em: <http://www.bibliote-
ca.pucminas.br/teses/Direito_NascimentoLES_1.pdf.>. Acesso em: 24 mai. 2021.
RABACHINI, Gabriel Cucolo. Alienação parental: a visibilidade da Lei
nº 12.318/2010 e as formas alternativas de combate à sap no brasil. Academia
Brasileira de Direito Civil. v. 3, n. 1, p. 1-10, 2019. Disponível em: <https://
abdc.emnuvens.com.br/abdc/article/view/33.>. Acesso em: 21 mai. 2021.
RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers. Poder familiar e guarda
compartilhada: novos paradigmas do direito de família. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2016.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; VIEIRA, Marcelo de Mello. Construindo o di-
reito à convivência familiar de crianças e adolescentes no Brasil: um diálogo
entre as normas constitucionais e a Lei n. 8.069/1990. Civilística.com. Rio de
Janeiro, a. 4, n. 2, 2015. Disponível em: <http://civilistica.com/construindo-o-
direito-a-convivencia-familiar/>. Acesso em: 06 de mai. 2021.
TOSO, Katarine Vanderlei. Elementos básicos para a compreensão do concei-
to de alienação parental. p. 1-8. Disponível em: <http://intertemas.toledopru-
dente.edu.br/index.php/ETIC/article/viewFile/2426/1950.>. Acesso em: 21 mai.
2021.

42

indag indic_gabriella.indb 42 22/07/2021 09:53:10


DE QUE FORMAS O PSICÓLOGO
JURÍDICO TRABALHA
COM FAMÍLIAS?
Juliana Silveira Di Ninno1
Ludimila Regina Rosenthal Caetano de Oliveira2

1. INTRODUÇÃO

O trabalho da Psicologia junto ao Direito é tão antigo quanto


a história da própria Psicologia. No Brasil, em 1964, foi estabele-
cida, por decreto, a atuação do psicólogo em realização de pe-
rícias e pareceres para os Tribunais de Justiça, especialmente na
área Penal. Embora até os dias hodiernos sua atuação seja voltada
principalmente para perícias e avaliações psicológicas, ao longo
do tempo, a Psicologia Jurídica foi se diversificando e passou a
buscar também metodologias de trabalho mais interventivas e fo-
cadas nas demandas dos indivíduos atendidos (GOMES, OLIVEIRA
e COSTA, 2019).
Quando se fala em Psicologia Jurídica, o que primeiro vem à
mente é sua atuação mais conhecida: o trabalho em equipes psi-
cossociais dentro dos Tribunais de Justiça. Isso fortalece o ima-
ginário de que somente nas situações extremamente judicializa-
das a atuação da Psicologia Jurídica se faz possível. Tal fato se dá
porque, na maioria das vezes, o contato com o psicólogo jurídico
ocorre após o litígio já ter sido instaurado e o processo judicial

1
Psicóloga (CRP 04/58670) graduada pela UFMG; pós-graduanda em Terapia de Famí-
lia, Casais e Sistemas Amplos pela PUC Minas; capacitada em Práticas Colaborativas
pelo IBPC. E-mail: juliana.ninno@gmail.com.
2
Psicóloga (CRP 04/52614) graduada pela UFMG; pós-graduada em Psicologia Jurí-
dica pela Universidade Cândido Mendes; capacitada em Práticas Colaborativas pelo
IBPC. E-mail: ludimilaoliveira.psi@gmail.com.

indag indic_gabriella.indb 43 22/07/2021 09:53:10


de que formas o psicólogo jurídico trabalha com famílias?

já estar em andamento, o que por si só pode acirrar os conflitos.


No entanto, existem várias práticas para além desta, também na
interface com o sistema judicial que o psicólogo jurídico pode
atuar de acordo com sua avaliação sobre a demanda familiar.
O objetivo do presente estudo é apresentar e sistematizar três
práticas possíveis da psicologia em interface com o Direito de Fa-
mília e Sucessões, sem qualquer intenção de esgotar as possibi-
lidades de atuação nessa área, e esclarecer em quais situações se
pode contar com o trabalho do psicólogo jurídico. É importante
ressaltar, desde já, que nenhuma dessas possibilidades se confun-
dem com a psicoterapia. Muitas pessoas, atravessando processos
judiciais e conflitos dessa natureza, precisam e podem se benefi-
ciar muito de psicoterapia, mas isso deve ser feito em outra esfera,
com psicólogos clínicos.
No âmbito do Direito de Família e das Sucessões, as questões
jurídicas objetivas como divórcio, inventário, partilha de bens, de-
finição de guarda, de alimentos e regulamentação da convivência
familiar – caso haja crianças ou adolescentes envolvidos – são atra-
vessadas também por questões do âmbito subjetivo. O final de um
relacionamento é marcado por um período de luto e reorganização
familiar, fazendo com que muitas famílias se sintam perdidas frente
às decisões difíceis que têm que tomar nesse momento (TESLER E
THOMPSON, 2017). Conforme observado por psicólogos que con-
duziram grupos reflexivos com pais e mães, tanto no âmbito da
justiça quanto no contexto de pesquisa acadêmica, estes frequen-
temente pontuavam que gostariam de ter tido orientação e aco-
lhimento logo após a decisão de separação, pois muitas decisões
poderiam ter sido tomadas de forma distinta (BRITO, CARDOSO E
OLIVEIRA, 2010; SILVA, OLIVEIRA, SOARES e RAPIZO, 2019).
Da mesma forma, de acordo com Silva (2009), famílias que aca-
baram de perder um ente querido passam por um período de
sofrimento e grande transformação da dinâmica familiar, em que
todos precisarão se adaptar à nova configuração familiar. Nessa
fase, podem vir à tona antigos conflitos familiares ou surgirem
novos, principalmente relacionados a dinheiro e a diferenças en-
tre os membros da família. Por isso, ainda segundo a autora, um
44

indag indic_gabriella.indb 44 22/07/2021 09:53:10


juliana silveira di ninno, ludimila regina rosenthal caetano de oliveira

trabalho informativo e acolhedor de um profissional qualificado


se torna essencial para que todos possam lidar com as questões
jurídicas necessárias naquele momento.
Assim, a seguir serão apresentadas três possibilidades de atua-
ção do psicólogo jurídico. A primeira, como assistente técnico e as
diversas formas de trabalho desse profissional, desde a tradicional
análise do estudo psicológico realizado pelo perito, passando pela
possibilidade de acompanhamento de visitas, até a possibilidade
de um trabalho interventivo junto às famílias atravessando o divór-
cio ou morte de um familiar, e seus desdobramentos. Também será
apresentada a atuação do psicólogo jurídico no acompanhamento
e orientação familiar e, por último, sua participação na composição
de equipes multidisciplinares nas Práticas Colaborativas.

2. ASSISTENTE TÉCNICO

Tanto o perito quanto o assistente técnico possuem seus fa-


zeres regulamentados pela Resolução Nº 08/2010 do Conselho
Federal de Psicologia (CFP). O psicólogo na função de perito será
o profissional, indicado pelo juiz, responsável por realizar estudo
técnico que tem como objetivo subsidiar as decisões do magistra-
do sobre a demanda processual a ser avaliada.
O psicólogo também pode atuar como assistente técnico as-
sessorando os envolvidos no conflito e questionando tecnicamen-
te as análises e conclusões do Laudo Pericial. Conforme pontuado
por Pizzol (2017), quando o perito é nomeado pelo juiz, as partes
são intimadas a indicar um profissional de sua confiança para de-
sempenhar o trabalho de assistente técnico judicial. Essa medida
visa assegurar aos envolvidos o direito ao contraditório, conforme
previsto no art. 465, § 1º, inciso II, do Código de Processo Civil,
desde que o profissional seja devidamente qualificado para a fun-
ção e não tenha com aquela família alguma relação pessoal ou
profissional que possa comprometer o trabalho. Por exemplo, o
terapeuta de uma das pessoas envolvidas no processo não pode
atuar como assistente técnico em seu caso, como disposto no
art. 10, inciso I, da Resolução Nº 08/2010 do CFP.
45

indag indic_gabriella.indb 45 22/07/2021 09:53:10


de que formas o psicólogo jurídico trabalha com famílias?

Amendola (2006) define assistente técnico como o profissional


autônomo que é contratado por uma das partes do processo e que
possui conhecimento específico da demanda em análise. Segundo
a autora, esse profissional deve utilizar de seus conhecimentos de
modo a contribuir e/ou argumentar sobre o estudo psicológico
realizado pelo perito, bem como estar habilitado a assessorar a
parte contratada quanto às questões psicológicas do conflito.
O trabalho do psicólogo perito e do assistente técnico judicial,
conforme Groeninga (2006), não é só o de fornecer subsídios ao
juiz, mas também o de assistir às partes e o de realizar interven-
ções que possam auxiliar na transformação dos conflitos, nos limi-
tes da ética profissional. Para a autora, é importante compreender
que o trabalho do assistente técnico não se refere a um trabalho
a serviço do advogado ou de ocupar o lugar deste profissional. O
exercício profissional deve ser de assistência às relações familiares,
respeitando-se as balizas e as especificidades éticas da profissão.
Para Groeninga (2006),
O Assistente Técnico não pode ter como cliente o Advogado, mas
os indivíduos, as relações familiares, considerando, ainda, o Sistema
Judicial. Deve mostrar ao cliente o que está observando, resgatar sua
responsabilidade e ampliar a consciência do significado das deman-
das e suas consequências (s.p).

A partir dessa perspectiva, serão apresentadas, na sequência,


algumas possibilidades de atuação do assistente técnico judicial,
bem como de que forma ela pode auxiliar nas questões familiares.

2.1 Análise e elaboração de quesitos

Conforme a Resolução Nº 08/2010 do CFP, art. 8º, o psicólogo


assistente técnico poderá elaborar “quesitos que venham a escla-
recer pontos não contemplados ou contraditórios, identificados a
partir de criteriosa análise [do estudo psicológico realizado pelo
perito]”. A elaboração dos quesitos à perícia pode ser feita de for-
ma prévia ou posterior ao estudo psicológico e tem como obje-
tivo garantir que pontos importantes da demanda de seu clien-
te sejam contemplados durante esse estudo. De acordo com as
46

indag indic_gabriella.indb 46 22/07/2021 09:53:11


juliana silveira di ninno, ludimila regina rosenthal caetano de oliveira

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas (os) em Varas de


Família do CFP,
o assistente técnico pode questionar os procedimentos e técnicas
utilizados, os dados levantados e a conclusão da avaliação feita pelo
perito, além de colaborar com o patrono da parte na formulação de
quesitos a serem encaminhados ao perito (2019, p. 60).

Para desenvolver sua função, o assistente técnico poderá ou-


vir pessoas envolvidas, solicitar documentos em poder das partes,
entre outros meios. Importante ressaltar, entretanto, que a rela-
ção entre perito e assistente técnico não deve ser pautada na ani-
mosidade ou na competitividade, o objetivo de ambos ali é o de
compreender e assistir àquela família da melhor maneira. Cabe
também pontuar que
o papel do Psicólogo Perito e do Assistente Técnico é não só o de
fornecer subsídios ao Juiz, como também o de uma intervenção te-
rapêutica no sistema, de transformação dos conflitos e resolução do
impasse, e não o de fomentar sua repetição ou mesmo fazer eco às
partes de suas situações não resolvidas (GROENINGA, 2006, s.p).

Assim, o assistente técnico deve garantir o ponto de vista de


seu cliente, dando-lhe voz, observando que essa função não se
confunde com uma defesa a qualquer custo do cliente ou com
uma contribuição ao acirramento do litígio.

2.2 Acompanhamento de visitas

Outra intervenção possível de ser realizada durante o traba-


lho como Assistente Técnico é o acompanhamento de visitas. De
acordo com Soares (2017), esse trabalho seria uma intervenção
metodológica alternativa às visitas assistidas solicitadas pelo judi-
ciário. Dessa forma, esse seria um possível recurso de intervenção
e auxílio utilizado para o restabelecimento de vínculo familiar, em
casos de afastamento (RESENDE et al., 2020).
Esse tipo de intervenção pode ser necessário quando, por inú-
meras razões, o vínculo entre a criança ou adolescente e um fa-
miliar está fragilizado e precisa ser mediado para que possa ser
47

indag indic_gabriella.indb 47 22/07/2021 09:53:11


de que formas o psicólogo jurídico trabalha com famílias?

restabelecido. Desse modo, o psicólogo irá planejar e intermediar


os encontros, fazendo-se presente no momento das visitas. Nesse
sentido, o acompanhamento de visita é um trabalho de assistência
familiar que “deve levar em consideração o próprio grupo familiar,
em sua potencialidade e capacidade de articulação, para rever os
posicionamentos de seus integrantes” (RESENDE et al., 2020, p. 85).
Dessa maneira, o acompanhamento de visita poderá ser utili-
zado como ferramenta útil no momento de reaproximação fami-
liar, buscando auxiliar e viabilizar o restabelecimento do vínculo
entre crianças e/ou adolescentes e seus familiares. Cabe ressaltar
que para que o restabelecimento de vínculo possa ocorrer, faz-se
necessário que o tempo da criança ou adolescente seja respeitado,
de forma a não submetê-lo a mais do que ele consegue lidar na-
quele momento, permitindo que aquele seja um espaço seguro,
sem quaisquer ameaças (MASCARENHAS e GUIMARÃES, 2019).
Estes autores pontuam que a função do acompanhamento não
é a de avaliar ou vigiar, mas sim, de intervir para facilitar o diálogo
e a interação dos familiares. O psicólogo irá, paulatinamente, au-
xiliar na aproximação e no contato mais direto entre a criança ou
adolescente e o familiar que estava distanciado. Essa intervenção
tem como objetivo viabilizar que, eventualmente, o contato possa
ocorrer naturalmente, sem a necessidade de um terceiro.

3 ACOMPANHAMENTO E ORIENTAÇÃO DE FAMÍLIAS

Como explicado anteriormente, o trabalho do psicólogo em


interface com o direito de família deve estar pautado em auxi-
liar as famílias quanto às questões emocionais que perpassam os
conflitos familiares. Segundo Oliveira (2017), em seu trabalho, o
psicólogo deve atuar “valorizando os recursos que a própria fa-
mília pode mobilizar para o enfrentamento e resolução de seus
problemas, de modo a evitar o prolongamento da judicialização
e o agravamento do litígio familiar” (p. 71). Assim, é possível que
o psicólogo atue no acompanhamento e orientação de famílias,
desde o primeiro momento em que pensam em se separar, até
muito tempo depois, nos desdobramentos do pós-divórcio, de
48

indag indic_gabriella.indb 48 22/07/2021 09:53:11


juliana silveira di ninno, ludimila regina rosenthal caetano de oliveira

forma independente da presença de uma situação jurídica. Da


mesma forma, em casos que envolvem o Direito das Sucessões, o
psicólogo pode acompanhar aquela família desde o momento da
morte até os desdobramentos do processo de inventário e partilha.
Segundo Mascarenhas e Guimarães (2019), o objetivo do acom-
panhamento e orientação de famílias é o de intervir e transformar
o conflito, auxiliando a família na construção de novos caminhos
e soluções possíveis. Para tal, podem ser realizados atendimentos
individuais e conjuntos com os diferentes membros familiares en-
volvidos. Primeiro, busca-se conhecer a história daquela família e
a dinâmica do conflito familiar, para então se planejar uma inter-
venção que possa englobar atendimentos, construções de acor-
dos, contatos com outras instituições que a acompanhem e orien-
tações familiares. É possível também realizar alguns atendimentos
interdisciplinares, caso haja um advogado ou outro profissional
que acompanhe aquela família, visando orientá-la de maneira
mais completa.
Hobbs-Minor e Sullivan (2008) apontam que cada vez mais pais
têm buscado auxílio de profissionais de saúde mental para orien-
tação e acompanhamento das questões sobre o manejo com os
filhos no pós-divórcio. Os autores apontam ainda que essa atua­
ção pode impactar significativamente na diminuição do conflito
parental, especialmente quando as intervenções são realizadas no
início dos conflitos. Silva (2009) indica que o mesmo é feito por
famílias enlutadas, que necessitam de acolhimento e informações
sobre o processo de luto e maneiras de lidar com rituais e datas
comemorativas após a morte de um familiar.
O acompanhamento e orientação podem ocorrer tanto no tra-
balho do psicólogo como assistente técnico, conforme pontuado
por Borges (2020), quanto na metodologia inserida nas Práticas
Colaborativas, a serem exploradas abaixo. Outra alternativa é a
realização dessa ação sem vinculação a esses trabalhos: é possível
que algumas famílias optem por realizar esse acompanhamento
apenas com um psicólogo, sem que nenhum processo judicial es-
teja em andamento, principalmente quando se pretende tratar dos
desdobramentos de uma ação que já ocorreu. Porém, em grande
49

indag indic_gabriella.indb 49 22/07/2021 09:53:11


de que formas o psicólogo jurídico trabalha com famílias?

parte dos casos, as demandas subjetivas e judiciais caminham jun-


tas e os profissionais de ambas as áreas irão colaborar um com o
outro nesse processo.
Mascarenhas e Guimarães (2019) pontuam sobre a importân-
cia de atentar-se quanto aos aspectos emocionais que mantêm
aqueles conflitos e impedem a resolução dos embates jurídicos
entre famílias. Nesse sentido, Borges (2020) aponta que o psicólo-
go jurídico, ao exercer o trabalho de orientação, deve ter o cuida-
do de adotar intervenções que possibilitem:
[...] o auxílio à tomada de decisões emocionalmente inteligentes, mais
bem informadas e que levem ao melhor interesse das crianças e ado-
lescentes; o trabalho de expectativas irreais; a conscientização da res-
ponsabilidade pelas próprias ações; o desenvolvimento de novas ma-
neiras de se relacionar com o ex-cônjuge; o aprendizado de formas
de lidar com provocações, acusações e intimidações; e a prevenção
da escalada dos conflitos (p. 64).

Ressalta, ainda, a autora, que esse trabalho tem caráter diretivo,


dado que objetiva realizar intervenções e esclarecimentos pontuais
acerca das questões familiares no período de transição familiar.

4 PRÁTICAS COLABORATIVAS

Uma nova forma de atuação interdisciplinar da Psicologia com


o Direito junto às famílias dá-se pela metodologia das Práticas Co-
laborativas. Elas foram criadas a partir do desejo do advogado nor-
te-americano Stuart Webb de atuar com famílias de forma não liti-
gante, somado à multidisciplinaridade desenvolvida pela advogada
Pauline Tesler e a psicóloga Peggy Thompson (CAMERON, 2019).
De forma resumida, consoante Tesler e Thompson (2017), Prá-
ticas Colaborativas tratam-se de uma metodologia de resolução
de conflitos que pressupõe negociações extrajudiciais entre os
envolvidos de forma não adversarial, buscando trabalhar todos
os aspectos do conflito: jurídico, emocional, financeiro, entre ou-
tros. Assim, a equipe de trabalho, nessa metodologia, pode en-
globar diversos profissionais, vez que se constitui de acordo com
a demanda de cada família acompanhada. Geralmente, a equipe

50

indag indic_gabriella.indb 50 22/07/2021 09:53:11


juliana silveira di ninno, ludimila regina rosenthal caetano de oliveira

mínima costuma ser composta por advogados e profissionais de


saúde mental3 e, frequentemente, um especialista em finanças
também se soma à equipe. Fürst (2016) esclarece que a essência
do trabalho multidisciplinar é oferecer aos membros das famílias
o suporte e o conhecimento necessários para auxiliá-los durante
o período de transição da nova dinâmica familiar.
À vista disso, a proposta das Práticas Colaborativas é providen-
ciar acolhimento e orientação aos clientes, desde o primeiro mo-
mento em que estes decidem procurar ajuda, incentivando que a
resolução das demandas ocorra em um clima de diálogo e respei-
to. Para que isso seja possível, no início dos trabalhos, assina-se
um Termo de Compromisso que estipula, entre outros pontos, que
nada do que for dito ou escrito durante os trabalhos poderá ser
usado posteriormente no Tribunal e que, caso aquela família opte
pela via judicial, nenhum dos profissionais que estavam atuando
até então poderão prosseguir ou serem chamados como testemu-
nhas (TESLER E THOMPSON, 2017).
Semelhante a essa proposta, Resende et al. (2020) descreve
que a utilização de um termo4 como esse em um programa de
restabelecimento de vínculos familiares, junto ao MPMG,
[...] demarca que o objetivo [...] dos atendimentos realizados não é
produção técnica que pode ser utilizada como prova jurídica. Além de
que, a ausência de exigência quanto à produção técnica favorece um
ambiente de trabalho de proposta interventiva e não avaliativa (p. 95).

Compreende-se, desse modo, ser de vital importância que


esse compromisso seja de fato assumido entre os profissionais e
seus clientes, a fim de que as negociações possam ocorrer em um

3
Embora na literatura norte-americana utilizada como base para as Práticas
Colaborativas (TESLER e TOMPSON, 2017; CAMERON, 2019) seja sugerida a presença
de um profissional específico para o trabalho com crianças e adolescentes, que seria
denominado neutro infanto-juvenil, no Brasil, um mesmo psicólogo costuma acolher
toda a família (Nota das autoras).
4
No Programa de Restabelecimento de Vínculos Parentais e Familiares (PREOVI) do
Ministério Público de Minas Gerais, o termo utilizado é denominado “Termo de Anu-
ência”. Segundo Resende et al. (2020), “trata-se de uma declaração que atesta a
compreensão de que ao final do acompanhamento da família nenhum tipo de docu-
mento de caráter técnico e avaliativo será emitido” (p. 95).

51

indag indic_gabriella.indb 51 22/07/2021 09:53:11


de que formas o psicólogo jurídico trabalha com famílias?

ambiente seguro e que as pessoas se sintam livres para falar de


seus sentimentos (como medos, receios, angústias e ressentimen-
tos), cientes de que nada daquilo poderá se voltar contra elas em
um futuro processo litigioso (CAMERON, 2019). Isso também pos-
sibilita que aquela família empreenda seus esforços e sua ener-
gia em resolver o conflito da maneira como escolheram, propon-
do com liberdade diferentes possibilidades de resolução, sem se
focarem na judicialização.

4.1 Como funciona o trabalho do psicólogo jurídico nesta


metodologia?

A família pode iniciar sua busca pelas Práticas Colaborativas


por meio de um psicólogo colaborativo, de um advogado cola-
borativo, ou de ambos, caso já atuem como equipe. No primeiro
atendimento, deve-se realizar um acolhimento daqueles indivíduos,
uma identificação da demanda, explicar sobre o funcionamento
do procedimento colaborativo e o encaminhamento para o ou-
tro profissional, caso o atendimento não tenha ocorrido de forma
conjunta (CAMERON, 2019).
A partir desse momento, o psicólogo intercala atendimentos in-
dividuais com cada membro familiar envolvido no conflito, atendi-
mentos conjuntos e discussões de caso com os advogados e/ou o
restante da equipe. Segundo Cameron (2019) e Tesler e Thompson
(2017), nos atendimentos individuais serão identificados quais os
principais pontos de conflito para aquela pessoa, quais suas pre-
ocupações, quais emoções a situação evoca, quais soluções ela
vislumbra e como se posiciona diante da dinâmica familiar. Podem
ser necessários vários atendimentos individuais antes que um ou
mais membros se sintam preparados para conversar com os ou-
tros, não sendo necessário que todos sejam atendidos o mesmo
número de vezes.
Dentro dessa metodologia, o psicólogo “oferece uma inter-
venção dirigida, não uma terapia de longo prazo, e visa parti-
cularmente melhorar a capacidade de comunicação dos clientes.”
(CAMERON, 2019, p. 34). Caso seja identificado que alguém precisa
52

indag indic_gabriella.indb 52 22/07/2021 09:53:11


juliana silveira di ninno, ludimila regina rosenthal caetano de oliveira

de um suporte maior ou de uma intervenção mais prolongada,


pode-se realizar um encaminhamento para psicoterapia.
Nos atendimentos coletivos, o papel do psicólogo é o de faci-
litar o diálogo, permitindo que os sentimentos, medos e desejos
possam ser expressos e compreendidos em um ambiente seguro
(TESLER e THOMPSON, 2017). Esses encontros são fundamentais
para que a relação entre aquelas pessoas, sejam um ex-casal, se-
jam irmãos, ou outros, possa ser repensada: que tipo de relacio-
namento querem ter dali para frente? Como podem encontrar
caminhos para se comunicar? Como podem sair de um ciclo de
conflitos, ainda que de forma temporária?
Cameron (2019) sugere que também sejam realizadas reuniões
de equipe, entre os advogados, psicólogos e demais profissionais
que acompanham o caso, para estabelecer um alinhamento entre
os profissionais, discutir o caso, obter uma visão mais completa da
dinâmica e traçar a melhor estratégia para aquela família, especi-
ficamente. As reuniões podem ocorrer paralela ou posteriormente
aos atendimentos, o que possibilita que as pessoas possam se
reunir, junto com os advogados colaborativos que os represen-
tam, e conversar sobre o conflito, construindo acordos possíveis.
Nos casos que envolvem crianças e adolescentes, como em
muitos divórcios, o psicólogo também possui um papel especial
de resguardar-lhes os direitos. Caso seja necessário, as crianças
e/ou os adolescentes serão atendidos de forma a compreender
como eles têm vivenciado esse momento, quais demandas apre-
sentam, e como isso pode ser levado em conta nas construções
familiares no pós-divórcio. A partir disso, de acordo com Tesler e
Thompson (2017), será realizado um trabalho de orientação com
os pais sobre as necessidades de seus filhos, e estas serão cuida-
dosamente contempladas no acordo final.
Na sequência, é redigido também pelo psicólogo, em conjunto
com os pais, o chamado Plano de Parentalidade5, no qual serão
5
Plano de Parentalidade ou Plano de Cuidados Parentais – termo utilizado pelas auto-
ras Tesler e Thompson no livro “Divórcio Colaborativo” (2018) para descrever a cons-
trução de acordo que busca a elaboração conjunta dos pais sobre os cuidados, ca-
lendários, preocupações, compromissos e revisões necessárias ao longo do tempo,

53

indag indic_gabriella.indb 53 22/07/2021 09:53:11


de que formas o psicólogo jurídico trabalha com famílias?

abordados os principais pontos sobre a criação de seu filho: roti-


nas, escolas, cuidados especiais, como ocorrerá a convivência fa-
miliar, entre outros que se mostrem pertinentes. Cameron (2019)
pontua ainda que as conversas sobre os filhos e suas necessidades
ajudam os pais a se lembrarem do motivo pelo qual optaram por
um trabalho colaborativo e não litigioso, de sorte que conseguir
planejar o seu futuro parental pode aliviar a tensão pelo final da
conjugalidade.

5 CONCLUSÃO

O presente estudo objetivou apresentar algumas das possi-


bilidades de atuação do psicólogo jurídico para além da abor-
dagem tradicional. Importante salientar que todas as alternativas
apresentadas são possibilidades, de modo que cabe ao psicólo-
go jurídico avaliar e ponderar sobre sua aplicabilidade conforme
a necessidade de cada família. Cabe enfatizar que nenhuma das
propostas apresentadas é de psicoterapia e, havendo a identifica-
ção da necessidade do cliente quanto a questões de outra ordem,
deve ser realizado o encaminhamento para a terapia.
Ficou claro com esta pesquisa que o trabalho interdisciplinar
mostra-se muito rico, amplia o olhar sobre a família e potencializa
o encontro de soluções criativas – amparar a família no aspecto
jurídico e emocional pode ser essencial para que ela consiga se
reorganizar e se transformar em um momento tão difícil.
Destarte, as propostas de atendimentos conjuntos, assessoria
em casos (consultoria e discussão de casos), encaminhamentos e
outras ações interdisciplinares entre Psicologia e Direito, no âmbi-
to do Direito de Família e Sucessões, são fundamentais para que
os conflitos familiares possam ser acolhidos e trabalhados em
todas as suas esferas.

com o acompanhamento de um profissional adequado. Importante ressaltar que as


autoras sugerem que o Plano de Parentalidade seja construído contando com uma
cláusula de revisão periódica, mediante a mudança de idade dos filhos, alteração nas
necessidades desses ou pela solicitação de um dos pais.

54

indag indic_gabriella.indb 54 22/07/2021 09:53:11


juliana silveira di ninno, ludimila regina rosenthal caetano de oliveira

6 REFERÊNCIAS

AMENDOLA, Márcia Ferreira. Laudos, Pareceres Psicológicos e a Participa-


ção do Assistente Técnico. 7º Encontro de Psicólogos Jurídicos do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Serviço de Apoio aos Psicólogos da
Corregedoria Geral de Justiça (2002). Disponível em: <http://www.canalpsi.psc.
br/canalpsi_revista/artigo09.htm>. Acesso em: 27 mai. 2021.
BORGES, Stella Ribeiro. Concepções sobre papéis e práticas de psicólogos
peritos e assistentes técnicos no poder judiciário da Comarca de Recife.
2020. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco. Dispo-
nível em: <https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/38709>. Acesso em:
27 mai. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil,
Brasília, DF, jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/l10406> Acesso em: Acesso em: 27 mai. 2021.
BRITO, Leila Maria Torraca; CARDOSO, Andreia Ribeiro; OLIVEIRA, Juliane
Dominoni Gomes de. Debates entre pais e mães divorciados: um trabalho com
grupos (2010). Psicologia: Ciência e Profissão, 30(4), 810-823.
CAMERON, Nancy J. Práticas Colaborativas: aprofundando o diálogo. São
Paulo: Instituto de Práticas Colaborativas, 2019.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências Técnicas para Atuação de
Psicólogas(os) em Varas de Família do CFP. Conselho Federal de Psicologia.
Brasília: CFP, 2019.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução nº 08, de 30 de junho de
2010. Dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico
no Poder Judiciário. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uplo-
ads/2010/07/resolucao2010_008.pdf>. Acesso em: 28 mai. 2021.
FÜRST, Olívia. Mediação de Conflitos: Paradigmas Contemporâneos e Funda-
mentos para a Prática. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2016. p.70-85.
GOMES, Juliana Dominoni; OLIVEIRA, Isabel Maria Freitas Fernandes de; COSTA,
Ana Ludmila Freire. Práticas psicológicas nas varas de família. Curitiba, PR:
Juruá, 2019.
GROENINGA, Giselle Câmara. O papel profissional do Assistente Técnico na
relação cliente/Perito/ juiz. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/Portal/co-
municacao/cadernos_tematicos/10/frames/fr_opapel.aspx>.Acesso em: 27 mai.
2021.
HOBBS-MINOR, Elena; SULLIVAN, Matthew J. Mental health consultation in
child custody cases. Chapter 5. In: FIELDSTONE, Linda B.; COATES, Christine A.
55

indag indic_gabriella.indb 55 22/07/2021 09:53:11


de que formas o psicólogo jurídico trabalha com famílias?

(ed.). Innovations in interventions with high conflict families. Madison: Asso-


ciation of Family and Conciliation Courts (AFCC), 2008, p. 159-186. Disponível em:
<https://sullydoc.com/wp-content/uploads/2008/07/chapter5consultation.pdf>
<https://www.afccnet.org/Portals/0/Innovations%20in%20Interventions%20
with%20High%20Conflict%20Families%20-%20Merged.pdf>. Acesso em: 28 de
maio de 2021.
MASCARENHAS, Carolina Lopes Arantes; GUIMARÃES, Fernanda Cunha. A atu-
ação técnica do serviço social e da psicologia em conflitos familiares no âmbito
do Ministério Público de Minas Gerais. Revista IBDFAM: família e sucessões.
Belo Horizonte, IBDFAM, n. 31, p. 80-91, jan./fev., 2019.
OLIVEIRA, Camila Felix Barbosa de. (Im)Possibilidades de atuação da Psicologia
Jurídica em meio à judicialização das famílias. Psicologia Jurídica e Direito
de Família. Para além da Perícia Psicológica. THERENSE, Munique; OLIVEIRA,
Camila Felix Barbosa de; NEVES, André Luiz Machado das; LEVI, Márcia Cristina
Henrique (Org.). Manaus: UEA Edições, 2017, v. 1, p. 60-81.
PIZZOL, Alcebir Dal. Perícia Psicológica e Social: aspectos legais e processuais.
In: Psicologia Jurídica: Perspectivas Teóricas e Processos de Intervenção. Org.
Rovinsky e Cruz, 2017.
RESENDE, Rarõ Chaves; CHAVES, Ayla Bianca Silva; SOARES, Laura Cristina Eiras
Coelho. Acompanhamento de visitas: metodologias e práticas. In: SAMPAIO,
Cláudia Regina Brandão (Org.) Psicologia Social Jurídica, novas perspectivas
da psicologia na interface com a justiça. Curitiba: CRV, 2020. p. 83-100.
SILVA, Daniela Reis; Famílias e situações de luto. Manual de Terapia Familiar.
OSÓRIO, Luis Carlos, VALLE, Maria Elizabeth Pascual do (Org.) Porto Alegre:
Artmed, 2009. p. 376-398.
SILVA, Luciana de Oliveira; OLIVEIRA, Ludimila Regina Rosenthal C. de; SOARES,
Laura Cristina Eiras Coelho; RAPIZO, Rosana Lazaro. Diálogos com pais e mães
separados: grupos reflexivos no sistema de justiça. Nova Perspectiva Sistêmica,
27(62), 88-108, 2019.
SOARES, Laura Cristina Eiras Coelho. Para além da perícia: as (im)permanências
dos psicólogos nas Varas de Família. Psicologia Jurídica e Direito de Família.
Para além da Perícia Psicológica. THERENSE, Munique; OLIVEIRA, Camila Felix
Barbosa de; NEVES, André Luiz Machado das; LEVI, Márcia Cristina Henrique
(Org.). Manaus: UEA Edições, 2017, v. 1, p. 142-168.
TESLER, H. Pauline, THOMPSON, Peggy. Divórcio Colaborativo: a maneira
revolucionária de reestruturar sua família, resolver problemas legais e seguir
adiante. São Paulo: Instituto de Práticas Colaborativas, 2017.

56

indag indic_gabriella.indb 56 22/07/2021 09:53:11


TRABALHO IMATERIAL
REALIZADO POR PARENTES
EM EMPRESAS FAMILIARES:
singela análise teórica
Everson Soto Silva Brugnara1
Líbia Mara da Silva Saraiva2

1 INTRODUÇÃO

Em dias hodiernos, sob uma constante camada de ágil e


específica produtividade, encontra-se o trabalhador moderno,
imerso nas urgências diárias, em meio à competitividade exa-
cerbada do mundo contemporâneo. Ora, segundo reza a litera-
tura histórica, à pós-modernidade deve-se a evolução, a qual,
lamentavelmente, não caminha no mesmo passo que a saúde
do trabalhador. Isso porque, consumida pela corrida contra o
tempo, a empresa atual (tal qual seu conceito desde o período
moderno) consubstancia-se por uma organização estratégica
que visa tão somente o lucro, independentemente do custo
pessoal. Nada obstante, sabido se faz que tal objetivo se reali-
za pelo trabalho gerenciado humanamente, através de relações
(inter)pessoais que o produzem.

1
Advogado. Mestre em Administração pelo Centro Universitário Unihorizontes. Espe-
cialista em Direito Público. Professor de Direito. Professor-Coordenador do Núcleo
de Prática Jurídica do Centro Universitário Una Betim/MG (desde 2013). Membro
da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da OAB/MG, subseção Contagem
(desde 2020). E-mail: sotobrugnara@hotmail.com.
2
Graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004).
Mestre em Estudos Linguísticos pela UFMG (2008). Graduanda em Direito pelo Cen-
tro Universitário Una Betim (desde 2017). Professora de Língua Portuguesa. Revisora
de texto. E-mail: libiasaraiva17@gmail.com.

indag indic_gabriella.indb 57 22/07/2021 09:53:11


trabalho imaterial realizado por parentes em empresas familiares: singela análise teórica

No que concerne especificamente a empresas familiares, cujos


empregados são membros da família (família extensa), emerge-se
um ponto de conflito familiar e trabalhista, que reside tanto na ex-
tensão do trabalho, como em horas a ele dedicadas, incutindo-se
diretamente na qualidade de vida desse empregado familiar.
Destaque no mercado atual, a empresa familiar tem evoluído
substancialmente, respondendo por mais de 50% da geração de
empregos, bem como do PIB brasileiro3. Consequentemente, a
sua sobrevivência deve-se à adequada e promissora gestão, con-
quanto se polarizem as questões sociofamiliares nela existentes.
Nesse entremeio, encontra-se o trabalhador, empregado fami-
liar, visto como uma das peças responsáveis por toda a engrena-
gem empresarial, mas que também carece ser considerado como
um indivíduo social, com desejos e objetivos também pessoais. A
pergunta, então, que se faz aqui, gira em torno da problemática
sobre como buscar (e alcançar) realização pessoal no exercício do
trabalho familiar, quando toda a sua psicodinâmica encontra-se
envolta de relações que extrapolam a dicotomia trabalhador/em-
pregado, alçando tanto as responsabilidades laborais como rela-
cionais no seio da família.
No que respeita notadamente ao trabalho imaterial (aquele
não restrito ao trabalho físico executado nas empresas4), aqui con-
siderado como a força produtiva central nas sociedades contem-
porâneas, abarca-se a extensão familiar que abrange – e favorece
– toda sua consolidação, quando se (con)fundem relações inter-
pessoais no âmago familiar com a própria execução do trabalho
pelo empregado parente. Nesta eira, há que se conceber a exis-
tência dos dilemas na contemporaneidade, quando tomam a vida
profissional e pessoal dos sujeitos independentemente de limites
espaço-temporais, afetando o modo de viver desse trabalhador

3
Fonte: <https://home.kpmg/br/pt/home/insights/2021/03/empresas-familiares-brasi-
leiras.html>. Acesso em: 02/05/21.
4
Baseado, inicialmente, na evolução da concepção marxista, visto como fruto do
desenvolvimento automático das forças produtivas da própria indústria (AMORIM,
2014), segundo a qual a transformação da natureza nos meios de produção e de
subsistência seria a categoria fundante do mundo dos homens (CLEAVER, 1991).

58

indag indic_gabriella.indb 58 22/07/2021 09:53:11


everson soto silva brugnara, líbia mara da silva saraiva

no seio de sua família/empresa. Tal configuração está relacionada


a um “modelo” de carreira profissional de responsabilidade única
do próprio trabalhador, em um contexto em que prevalece o tra-
balho imaterial (LAZZARATO e NEGRI, 2001).
Diante disso, busca-se aqui refletir sobre o processo de reali-
zação do trabalho imaterial, frente ao trabalho prescrito e o real
do trabalho, por parentes em empresas familiares, considerando-se
as possíveis e notórias tensões entre os interesses familiares e em-
presariais, a fim de analisar seus impactos – à saúde mental do
trabalhador – e consequências na empresa familiar, que tem por
base a organização trabalho, bem como as relações e microfísica
de poder propostas por Michel Foucault (1979)5.
Para tanto, tenciona-se analisar, por meio de revisão literária
sobre o tema, como se dá a relação da psicodinâmica do trabalho
dos funcionários parentes, diante do trabalho imaterial. Optou-se,
para isso, pelo uso da metodologia de pesquisa do tipo qualitati-
va; quanto aos fins, trata-se de uma pesquisa descritiva, pois tem
como objetivo a exposição de características e fenômenos relati-
vos a uma determinada coletividade (VERGARA, 1998).
A ser assim, este estudo pretende debater pontos relativos à con-
cepção do trabalho imaterial, realizado por parentes em empresas
familiares, sob a égide das questões sociofamiliares nelas existentes.
Também versaremos sobre algumas abordagens acerca da psico-
dinâmica do trabalho, diante das exigências do mundo contempo-
râneo, e sua correlação ao adoecimento mental, na perspectiva do
trabalho imaterial. Por último, apresentaremos algumas possíveis
considerações finais sobre o estudo realizado, seguido das referên-
cias que contribuíram para a construção da presente pesquisa.

2 BREVE HISTÓRICO E CONCEPÇÕES ACERCA DO TRABALHO


IMATERIAL

Reza a literatura que as empresas passaram por intensas mo-


dificações nas formas de organização da produção, durante a

5
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. (Organização e tradução de Roberto
Machado). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

59

indag indic_gabriella.indb 59 22/07/2021 09:53:11


trabalho imaterial realizado por parentes em empresas familiares: singela análise teórica

Segunda Revolução Industrial, fato que modificou consideravel-


mente as características da relação de emprego em cada uma
dessas fases. Emergiram-se, portanto, dois modelos enfáticos de
trabalho: o modelo Fordista e o método Taylorista. O primeiro ca-
racterizava-se pela verticalização da empresa, quando se intensi-
ficou, à época, a utilização dos métodos tayloristas de divisão de
trabalho, motivo pelo qual o referido modelo passou a ser chamado
fordista/taylorista (GASPAR, 20116).
Tais modelos enfatizaram basicamente os princípios de fabri-
cação. O Taylorismo iniciou o estudo da mão de obra na produção
industrial, organizando o trabalho de modo a obter grande pro-
dutividade com menor custo. Por sua parte, o Fordismo manteve
o mecanismo de produção e organização semelhante ao tayloris-
mo, porém adicionou a esteira rolante, ditando um novo ritmo de
trabalho. A ser assim, o binômio fordismo/taylorismo, que indica
sistema produtivo e processo de trabalho, estruturava-se na fabri-
cação em massa de mercadorias, fundada na produção homoge-
neizada e verticalizada (BEZERRA, 2017).
Importante dizer que o taylorismo já diferenciava o trabalho
manual do trabalho intelectual, porquanto a empresa tornava o
operário um ser não pensante, possibilitando um maior controle
do capital sobre o processo de produção (DRUCK, 1999). Destarte,
a fábrica impulsionou o controle social. O padrão de produção
fordista/taylorista baseou-se no trabalho parcelar e fragmentado,
de sorte que o trabalhador era um mero apêndice da máquina
(ANTUNES, 2003).
Esse método de trabalho não foi, contudo, aceito de forma pa-
cífica pelos trabalhadores. Houve greves, os trabalhadores mais
qualificados reclamavam contra a expropriação do saber e a que-
bra da autonomia. Os operários com menor qualificação busca-
vam melhores salários e diminuição no ritmo de trabalho (DRUCK,
1999); leiamos, pois:

6
Apud SARAIVA e SARMENTO, 2020. A terceirização como resposta à evolução dos
modos de produção industrial no Brasil: uma análise crítica do instituto. In: II En-
contro Virtual do CONPEDI: Direito do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho II.
p. 219-234.

60

indag indic_gabriella.indb 60 22/07/2021 09:53:11


everson soto silva brugnara, líbia mara da silva saraiva

Nessas novas circunstâncias, não haveria mais sentido em manter


o trabalho, intercâmbio orgânico com a natureza, como a catego-
ria fundante do ser social. Agora, a categoria que articularia o ‘co-
munismo’ – que estaríamos vendo nascer sob nossos olhos – seria
o ‘trabalho imaterial’. O ‘trabalho imaterial’ seria, assim, para tais
autores, a encarnação nos nossos dias do ‘amor pelo tempo por
se constituir’ no momento final de conclusão da sua obra histórica
de conversão do mundo feudal em ‘comunista’ (LAZZARATO, 1992;
NEGRI, 1993; HARDT e NEGRI, 1984) (grifamos).

Empregada por Marx e Engels como “trabalho espiritual” e “tra-


balho intelectual”, a expressão “trabalho imaterial” constitui, para
os autores supracitados, certa imprecisão conceitual até mesmo
no debate contemporâneo, em que cria espaço considerável para
incompreensões e mal-entendidos:
É assim que em muitas ocasiões podemos encontrar a expressão
‘trabalho imaterial’ para expressar o ‘trabalho intelectual’ (em Marx,
a atividade de controle do trabalho manual para que ele produza a
propriedade privada da classe dominante de cada formação social)
ou o ‘trabalho espiritual’ (para diferenciar as atividades do espírito
humano que, direta ou mais frequentemente, indiretamente, interfe-
rem nos processos de elaboração das teleologias presentes em todo
ato humano singular).

[...]

Do ponto de vista ontológico marxiano, a expressão trabalho ima-


terial é em si mesma um contrassenso. Marx rompe com todas as
ontologias anteriores ao elaborar a primeira ontologia que abandona
a dualidade espírito-matéria que dominou dos gregos até Hegel. Essa
ruptura pode ser levada a cabo, em primeiro lugar, quando Marx des-
cobriu o trabalho como categoria fundante do mundo dos homens7.

Nesta eira, compreende-se, com os autores, que algumas di-


versas possibilidades e necessidades podem ser exploradas e/ou
atendidas apenas pela potencialização de novas relações sociais
entre os homens. Isso porque

7
Verbete. Disponível em: <http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/traima.
html>. Acesso em: 04/05/2021.

61

indag indic_gabriella.indb 61 22/07/2021 09:53:11


trabalho imaterial realizado por parentes em empresas familiares: singela análise teórica

[...] o fato de o trabalho, ao transformar a natureza, transformar tam-


bém a natureza do ser humano, é o fundamento da gênese de uma
individualidade humana que vai se tornando cada vez mais social com
o passar do tempo – e tal individualidade, por sua vez, é permeada
por necessidades intelectuais, afetivas, etc., que não podem nem ser
adequada e imediatamente exploradas, nem atendidas pelo inter-
câmbio orgânico com a natureza.

[...]

O trabalho, portanto, remete sempre para além de si próprio


(Lukács, 1976). E é devido a isto – de modo fundante – que a re-
produção social torna-se possível enquanto desenvolvimento da
universalidade humana (o desenvolvimento das forças produtivas,
de modo mais evidente) e das singularidades cuja síntese funda
esta universalidade (os indivíduos, as personalidades individuais)
(ibidem, grifamos).

Por esse entendimento, a essência humana, como construto hu-


mano porque conjunto das relações sociais, refere-se ao trabalho
como categoria fundante do ser social, o qual permite exercer ati-
vidade de controle sobre a transformação da natureza, sobre sua
materialidade, fazendo-se, desse modo, imaterial (MARX, 1983).
Na então perspectiva da subjetividade, a concepção de traba-
lho imaterial fundamenta-se na execução de trabalhos intelectuais
diversos, sob o prisma da informação e do conhecimento, isentos
de substância física, de modo “a acionar a criatividade, a rapidez
de raciocínio, a responsabilidade de comandos decisórios e as for-
mas de intelecção do trabalhador”. Nesse fito, estaríamos diante de
uma “economia do conhecimento”, em que os atos de trabalho, na
perspectiva de dupla dimensão, “ao mesmo tempo em que se tor-
nariam fonte do valor, se apresentariam como imensuráveis, já que
o conhecimento, fundamento dessa atividade, não é mais redutível
a uma quantidade de trabalho abstrato” (AMORIM, 2014, p. 34).
Concebe-se, assim, a natureza cognitiva do trabalho imaterial,
enquanto fonte processual (e produtiva!), diante da qual o tra-
balhador enfrenta impactos de “atividades que incluem serviços
e contínua interação, diretamente afetados pelas transformações
contemporâneas, em um cenário de incertezas e insegurança.”

62

indag indic_gabriella.indb 62 22/07/2021 09:53:11


everson soto silva brugnara, líbia mara da silva saraiva

(MERLO, TRAESEL, BAIERLE, 2011, p. 95). Nisso consiste, pois, a


concepção de trabalho imaterial aqui abordada.

3. PSICODINÂMICA DO TRABALHO E ADOECIMENTO MENTAL


NA PERSPECTIVA DO TRABALHO IMATERIAL

Data de remotos tempos a percepção de que a saúde men-


tal do indivíduo pode sofrer severas consequências oriundas do
trabalho (MERLO, 2002). Nesse sentido, Oliveira e Mendes (2014)
sustentam ter o trabalho relevante função na promoção do pro-
cesso de formação da identidade do indivíduo, enquanto sujeito,
auxiliando também assim na sua estruturação psíquica.
Tomando por base as considerações feitas por Antunes (2004),
faz-se possível contemplar a concepção de que o trabalhador ex-
periencia diversos elementos que influenciam na formação da sua
autoimagem por meio do trabalho, ocupando, desse modo, o tra-
balho posição central na socialização do indivíduo.
Segundo Dejours et al. (2014), o processo de autoimagem de-
corre, amiúde, das vivências, prazerosas e desprazerosas, a que o
indivíduo se submete no exercício de suas funções ocupacionais.
Mendes e Tamayo (2001) explicam que as vivências prazerosas
dão-se quando a organização do trabalho permite ao indivíduo o
desenvolvimento de sua autonomia e criatividade. São despraze-
rosas, por outro lado, na perspectiva destes autores, as vivências
no trabalho quando o trabalhador não se sente valorizado e re-
conhecido pelo que faz, ou mesmo quando não vê na tarefa que
executa alguma utilidade, o que lhe faz experimentar desgaste,
aflição, desgosto em relação ao labor.
Mendes e Tamayo (2001) ainda defendem que o prazer no tra-
balho se concretiza quando seus objetivos são claros e valorizados,
pois dessa maneira há possibilidade de que o sujeito teste suas
capacidades. Sendo assim, verifica-se que são elementos centrais
da Psicodinâmica do Trabalho as vivências de prazer e sofrimento
no ambiente profissional (HONÓRIO e BRUGNARA, 2016).
Os objetivos do sujeito nem sempre vão ao encontro dos ob-
jetivos institucionais. Até mesmo quando encontram simetria –

63

indag indic_gabriella.indb 63 22/07/2021 09:53:11


trabalho imaterial realizado por parentes em empresas familiares: singela análise teórica

o que ocorre em grande medida em empresas familiares, onde o


quadro de empregados é majoritariamente composto por mem-
bros familiares –, há riscos de que a organização do trabalho seja
dissociada da concepção da tarefa a ser executada pelo profissional.
A possível dissociação da organização do trabalho (forma
como as tarefas devem ser executadas) em relação à percepção
do trabalhador sobre o trabalho (forma como elas são realmente
executadas) é devida, em grande parte, à “lacuna” existente en-
tre o trabalho prescrito e o trabalho real (DEJOURS, 2008); senão,
vejamos:
[...] a face do trabalho prescrito é analisada com base na definição
de tarefas (formais e informais) que operacionaliza uma divisão do
trabalho e veicula implicitamente modelos de situações e de sujeitos.
A cultura do trabalho prescrito busca mostrar que o paradigma de
racionalização do trabalho (Taylor, Fayol) permanece atual, hegemô-
nico e fortemente presente nos modelos de gestão organizacional
orientando concepções e práticas que por meio, sobretudo, das ta-
refas vislumbram controlar os modos de pensar e de fazer dos tra-
balhadores; e a face do trabalho real é analisada com base na noção
de atividade que se expressa sob a forma de estratégias operatórias
de mediação com o contexto de trabalho que buscam construir um
compromisso satisfatório entre as exigências do trabalho prescrito e
o próprio bem-estar do trabalhador. A cultura do trabalho real busca
evidenciar o papel fundamental da atividade dos trabalhadores que
por meio, sobretudo, de seus modos operatórios forjam saberes tá-
citos, savoir-faire, regras de metier, práticas... visam a preencher as
lacunas do trabalho prescrito, no limite reinventá-lo, para que possam
garantir, ao mesmo tempo, o próprio bem-estar, a eficiência e a eficá-
cia na produção de bens e serviços (FERREIRA, 2004, p. 02).

A atividade laboral é, pois, permeada de imprevistos e varian-


tes, o que aumenta, em menor ou em maior escala, a lacuna exis-
tente entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Temendo por
seu emprego, ou mesmo pelo pavor de “decepcionar” seu supe-
rior – que em uma empresa familiar trata-se de um membro do
seu seio parental –, o trabalhador vê-se obrigado a buscar estraté-
gias operacionais capaz de lhe auxiliar no cumprimento efetivo da
tarefa (TRIERWEILLER et al., 2008).

64

indag indic_gabriella.indb 64 22/07/2021 09:53:11


everson soto silva brugnara, líbia mara da silva saraiva

Nessa perspectiva, é possível verificar que as relações de po-


der existentes entre o “patrão/parente” e o “funcionário/parente”
intensificam-se, pois há latente existência do poder de uma ação
sobre ações. Foucault (2008) pontua que as relações de poder são
marcadas pela disciplina estabelecida na relação intrínseca exis-
tente entre mandante-mandatário.
Frente às exigências estabelecidas pela organização do tra-
balho e a relação de poder existente entre os parentes, natural
se faz a ocorrência de conflito dos eixos “trabalho-família”. Sobre
os potenciais conflitos desses eixos, Oliveira, Cavazotte e Paciello
(2013) afirmam que “ocorreriam quando o excesso de demandas
oriundas do trabalho dificultaria o exercício de papéis pessoais.”
(p. 419).
As exigências da organização do trabalho, na execução de ta-
refas realizadas por um empregado/parente, são capazes de im-
por um ritmo intenso de trabalho. Essa condição de trabalho traz
severas consequências ao trabalhador, devido à sobrecarga que
produz. Tal sobrecarga pode chegar a ultrapassar a capacidade
do indivíduo, tornando-o “refém” dos ditames da organização do
trabalho, o que, por conseguinte, limita suas possibilidades de se
equilibrar física e mentalmente no trabalho, sendo que as restri-
ções geradas pela organização do trabalho poderá ocasionar-lhe
sofrimento (HONÓRIO e BRUGNARA, 2016).
Certo é que todas as organizações, mesmo as familiares, pos-
suem sistemas de controle organizacional. Nesse contexto, Faria
(2013) entende que a subjetividade do trabalhador também é alvo
desse controle. O autor denomina essa manobra como “seques-
tro da subjetividade”. Para ele, o sequestro da subjetividade pode
ocorrer de cinco formas; a saber:
i) sequestro pela identificação: refere-se à condição de ajustamento
ao imaginário instituído pela organização que faz com o que o tra-
balhador o considere como parte de si; ii) sequestro pela essenciali-
dade valorizada: refere-se ao sentimento, alimentado pelo trabalha-
dor, sua indispensabilidade por motivo de merecimento, de crença
no reconhecimento, pela organização, de seus méritos; iii) sequestro
pela colaboração solidária: refere-se ao desenvolvimento de atitudes

65

indag indic_gabriella.indb 65 22/07/2021 09:53:11


trabalho imaterial realizado por parentes em empresas familiares: singela análise teórica

voltadas à contribuição, é um trabalhador, para os projetos organi-


zacionais, através de sua adesão do vínculo, do apoio do envolvi-
mento com os grupos de trabalho; iv) sequestro pela eficácia pro-
dutiva: refere-se à crença pelo trabalhador, na importância de sua
colaboração efetiva para com a obtenção de melhores resultados
do que aqueles previamente pretendidos, na transposição de metas;
v) sequestro pelo envolvimento excessivo: refere-se ao sentimento
de entrega, é o trabalhador, à sedução que dá um encantamento
proporcionado por valores, projeções, metas de sucesso, imagem,
programas sociais (responsabilidade, etc.) oferecidos pela organiza-
ção enquanto o ideal de ego, atuando como aliciantes de compro-
metimento, mas que, de fato, fazem parte constitutiva de sua ação
no processo estimação de mercadorias e de capital (FARIA, 2013,
p. 387-388) (grifamos).

Diante disso, encontra-se o trabalhador nesses moldes sujeito


ao controle organizacional familiar quando de sua realização pro-
fissional-pessoal (ou não), porquanto submerso ao contexto de
trabalho familiar e a ele duplamente submetido, considerando-se
a vertente funcionário, por assim dizer, e a sua condição parental;
leia-se:
Na perspectiva de Dejours (2004), por meio do reconhecimento das
contribuições do trabalhador à organização de trabalho, o sofrimento
vivenciado pode ser transformado em prazer e realização. Contudo,
quando as tarefas são predominantemente imateriais, ou seja, quando
não há produção de bens tangíveis, principalmente no que é relativo
às atividades de serviço, nas quais os resultados do trabalho são imen-
suráveis, agrava-se a invisibilidade do zelo e da inteligência do traba-
lhador. Assim, restringe-se o reconhecimento de seu fazer, com sérias
repercussões sobre sua saúde (MERLO, TRAESEL, BAIERLE, 2011, p. 95).

Nisso reside, portanto, a relação entre o tipo de tarefa exercida


pelo trabalhador, quando da sua valorização (ou não) dentro de
uma empresa familiar, onde ele se encontra atuante, à mercê da
psicodinâmica do poder exercido por seu familiar correspondente,
na perspectiva da concepção imaterial do trabalho, sob a égide
das questões sociofamiliares existentes (e emergentes), diante das
exigências do mundo contemporâneo, bem como sua correlação
ao adoecimento mental desse indivíduo.

66

indag indic_gabriella.indb 66 22/07/2021 09:53:11


everson soto silva brugnara, líbia mara da silva saraiva

4 TRABALHO E FAMÍLIA

Cógnito é que a organização familiar dá-se por sua identifica-


ção como um grupo social fundado necessariamente na afetivida-
de, isto é, no vínculo afetivo que une as pessoas com propósitos
de vida comum, imbuída na ótica que enaltece a pessoa huma-
na como sujeito de direitos (HIRONAKA, 2006). Na percepção de
Diniz (2010), a família concebe-se como o instrumento para a re-
alização total do ser humano, afigurando-se como o núcleo ideal
do inteiro desenvolvimento da pessoa.
Nesse seguimento, ao trabalhador parente, subordinado por
algum familiar (ou por vários) incute-se, para além da responsabi-
lidade laboral e das relações interpessoais que se consagram no
ambiente de trabalho, incumbências extras, por assim dizer, afins
a valores e vínculos afetivos familiares. Isso porque, ao realizar o
seu trabalho diário, o funcionário parente sente-se comprometido
não apenas com o seu labor cotidiano, donde venha auferir seu
sustento corriqueiro, mas também para com todo o arquétipo re-
lacional envolto da instituição que igualmente representa o seu
nome, porquanto se constitui sua própria reputação, independen-
temente de sua participação formal nos quadros administrativos
da mesma.
Por essa ótica, “a posição ocupada pelo membro da família na
empresa influenciará sua situação familiar”, de sorte que “um mem-
bro da família deverá relacionar-se claramente com a empresa, a fim
de determinar sua própria vida profissional” (DONNELLEY, 2015).
Lado outro, impende pontuar a função que esse empregador
desempenha, vez que em relações laborais há que se ter o des-
prendimento afetivo, porque o profissional não é contratado para
ter e/ou oferecer afeto, mas sim, para executar a tarefa que lhe
couber no ambiente de trabalho. Todavia, em empresas familia-
res, certo está que assim não ocorre: o funcionário não consegue
simplesmente se desligar da relação de afeto preexistente junto
ao (s) seu (s) familiar (es) partícipe (s) e/ou chefe daquela empre-
sa. Ao contrário, isso acaba por se estender, inclusive, para além
do horário preestabelecido de trabalho, durante os almoços de

67

indag indic_gabriella.indb 67 22/07/2021 09:53:11


trabalho imaterial realizado por parentes em empresas familiares: singela análise teórica

domingo, quando a família se encontra, nas festas e demais even-


tos familiares:
Como são duas dimensões diferenciadas, porém fundidas no contex-
to da empresa familiar, verifica-se que alguns membros podem con-
fundir ações, obrigações e comportamentos familiares com os papéis
executados no âmbito dos negócios (LESCURA et al., p. 598).

Ou seja, afora o trabalho material para o qual o trabalhador foi


contratado para realizar, numa empresa familiar, ele exerce, en-
quanto parente, um trabalho imaterial imenso, porque a todo o
momento encontra-se duplamente subordinado, considerando-se
a linha afetiva, que gera, por sua vez, o dobro de zelo nas ativi-
dades que executa – tanto pela relação de trabalho, estritamente
ligada a sua função na empresa, quanto à relação afetiva ali esta-
belecida junto ao seu parente patrão.
Dessarte, clarividente se mostra a relação conflituosa inerente
à realização do trabalho imaterial por parentes em empresas fa-
miliares, à medida que, por vezes, se intensifica em virtude dessa
dubiedade frente ao trabalho prescrito e o trabalho real.

5 CONCLUSÃO

Por todo o exposto, notável se faz o complexo liame que se


instaura ao trabalhador em empresas familiares, situação que lhe
submete ao constante e árduo trabalho imaterial, porque cingido
pelos laços de afeto em local diverso, onde os sentimentos, as
funções e papéis se (con)fundem largamente e, a um só tempo,
mediante uma estreiteza aterradora.
Compreende-se que a esse trabalhador compete o laborioso
encargo de se pender para além da vinculação bipartida que há,
sumariamente, entre empregado e empregador. Muito mais que
isso, o trabalho realizado por parentes em empresas familiares é
acrescido, triangularmente, por assim dizer, da responsabilidade
extralaboral, porquanto lhe é imputado, outrossim, limites espa-
ço-temporais sobrevenientes ao ambiente empresarial – ora, esse
trabalhador encontra-se submergido na microfísica do poder, po-
tencialmente pendido ao sofrimento por não se fazer possível sua
68

indag indic_gabriella.indb 68 22/07/2021 09:53:11


everson soto silva brugnara, líbia mara da silva saraiva

ressignificação em seu ambiente e exercício do labor, em virtude


do excessivo e dúbio trabalho imaterial que realiza.
Esse estudo permitiu inferir que não apenas a revolução tec-
nológica propiciou a dilatação das fronteiras, antes bem defini-
das entre vida pessoal e laboral do empregado, mas também, em
casos de trabalho exercido por parentes em empresas familiares,
fez acrescer tensões entre os interesses familiares e empresariais,
diante dessas relações e da própria microfísica de poder.
Ademais, perceptível se mostra o provável conflito instaura-
do tanto no âmbito trabalhista, como no contexto familiar, por-
que passível mostra-se a situação a rupturas no seio da família,
uma vez que este é ligado pelo afeto, gerando dissabores familia-
res. Isso nos leva a crer que as empresas dessa espécie, as quais
comportam parentes empregados, deveriam ter um tratamento
diferenciado em nosso ordenamento jurídico: a Justiça do Traba-
lho, ao contrário do que ocorre, via de regra, poderia promover a
mediação de conflitos trabalhistas oriundos desse tipo de relação
laboral, em observância a todo o paradigma que se verifica nessa
concepção de trabalho imaterial, realizado por parentes em em-
presas familiares, sob a égide das questões sociofamiliares nelas
existentes.
Diante das limitações do estudo aqui realizado, vez que tão
somente teórico, pela extensão que lhe coube, sugere-se, para
pesquisas futuras, uma abordagem em triangulação, com aferição
de dados via entrevistas e afins, para maior amplitude de compre-
ensão dos fatos e ocorrências que se dão junto a trabalhadores
parentes em empresas familiares.

6 REFERÊNCIAS

A evolução das empresas familiares no Brasil. Disponível em: <https://home.


kpmg/br/pt/home/insights/2021/03/empresas-familiares-brasileiras.html>.
Acesso em: 02/05/21.
AMORIM, Henrique. As teorias do trabalho imaterial: uma reflexão crítica a partir
de Marx. Cad. CRH vol. 27 nº 70. Salvador jan./abr. 2014. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-4979 2014000100003&ln-
g=pt&tlng=pt#back1>. Acesso em: 02/05/2021.

69

indag indic_gabriella.indb 69 22/07/2021 09:53:11


trabalho imaterial realizado por parentes em empresas familiares: singela análise teórica

_________. O tempo de trabalho: uma chave analítica. Sociedade e Estado,


Brasília, UnB, v. 28, n. 03, p. 503-518, 2013.
_________. Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo. São Paulo:
Annablume, 2009.
ANTUNES, Ricardo. O avesso do trabalho. São Paulo: Expressão popular, 2004.
_________. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 2003.
BEZERRA, Juliana. Taylorismo, fordismo e Toyotismo. 2017. Disponível em:
<https://www.diferenca.com/taylorismo-fordismo-e-toyotismo/#:~:text=O%20
Taylorismo%2C%20Fordismo%20e%20o,durante%20a%20Segunda%20Revo-
lu%C3%A7%C3%A3o%20Industrial.&text=O%20Taylorismo%20e%20o%20For-
dismo%20enfatizaram%20basicamente%20os%20princ%C3%ADpios%20de%20
fabrica%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 02/05/2021.
CLEAVER, H. Translator’s introduction. Parte I. In: NEGRI, A. Marx beyond Marx.
Nova York, Londres: Autonomedia, Pluto Press, 1991.
DEJOURS, C. Inteligência prática e sabedoria: duas dimensões desconhecidas do
trabalho real. In: LANCMAM, S., SZNELWAR, I. L. (Orgs.). Christophe Dejours: da
psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.
DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do trabalho: contri-
buições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho.
São Paulo: Atlas, 2014.
DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE. Verbete. Trabalho
Imaterial. Sérgio Lessa. Disponível em: <http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicio-
nario/verbetes/traima.html>. Acesso em: 04/05/2021.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. vol. 5: direito de família.
25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
DONNELLEY, Robert G. A empresa familiar. Revista de Administração de Em-
presas (RAE). Ano: 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rae/a/fQqrk-
Qyq3Z6wQmpBtPFHZXm/?lang=pt&format=pdf>. Acesso em: 09/05/2021.
DRUCK, Maria da Graça. Terceirização: (des) fordizando a fábrica. São Paulo:
Boitempo, 1999.
FARIA, J. H. Sequestro da subjetividade. In: VIEIRA, F. O.; MENDES, A. M.; MERLO,
A. R. C. Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. Curitiba:
Juruá, 2013.
FERREIRA, Mário César. Bem-estar: equilíbrio entre a cultura do trabalho prescri-
to e a cultura do trabalho real. Cultura organizacional e saúde, p. 181-207, 2004.

70

indag indic_gabriella.indb 70 22/07/2021 09:53:12


everson soto silva brugnara, líbia mara da silva saraiva

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. (Organização e tradução de Roberto


Machado). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
_________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.
35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
GASPAR, Danilo Gonçalves. A crise da subordinação jurídica clássica enquanto
elemento definidor da relação de emprego e a proposta da subordina-
ção potencial. Repositório Institucional. Universidade Federal da Bahia. Bahia.
2011. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/12378>. Acesso
em: 02/05/2021.
HARDT, M.; NEGRI, A. Labor of Dionysus: a critique of the state form. Minnesota:
University of Minnesota Press, 1984.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Sobre Peixes e Afetos. 2006.
Disponível em: <https://ibdfam.org.br/assets/upload/anais/18.pdf>. Acesso
em: 10/05/2021.
HONÓRIO, Luiz Carlos; BRUGNARA, Everson Soto Silva. A profissão do médico
oncologista: prazer e sofrimento no trabalho. XIII Simpósio de Excelência em
Gestão e Tecnologia – SEGeT. 31 de outubro e 1º de novembro de 2016. Dis-
ponível em: <https://www.aedb.br/seget/arquivos/artigos16/23024292.pdf>.
Acesso em: 22/05/21.
LAZZARATO, M. Le concept de travail immatériel: la grand entreprise. Paris:
Future Antérieur, n. 10, 1992.
LAZZARATO, M.; NEGRI, A. Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de
subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LESCURA, Carolina; BORGES, Alex Fernando; BRITO, Mozar José de. Relações de
Parentesco em Empresas Familiares: uma Abordagem Sócio-Antropológica.
GESTÃO.Org, Recife/PE, Brasil. Vol. 10, Nº 3 p. 595-622, Set./Dez. 2012.
MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, vol. I, 1983, Tomo I, 1985, Tomo II.
MENDES, A. M; TAMAYO, A. Valores organizacionais e prazer-sofrimento no tra-
balho. Psico-USF (Impr.), Itatiba, v. 6, n. 1, jun., 2001.
MERLO, Alvaro R. C. Psicodinâmica do trabalho. Saúde mental e trabalho:
leituras, v. 4, p. 130-142, 2002.
_________; TRAESEL, E. S.; BAIERLE, T. C. Trabalho imaterial e contemporanei-
dade: um estudo na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho. Arquivos Brasi-
leiros de Psicologia; Rio de Janeiro, 63 (no.spe.): 1-104, 2011.
NEGRI, A. La première crise du postfordisme. Paris: Future Antérieur, 1993.

71

indag indic_gabriella.indb 71 22/07/2021 09:53:12


trabalho imaterial realizado por parentes em empresas familiares: singela análise teórica

OLIVEIRA, J. N.; MENDES, A. M. Sofrimento psíquico e estratégias defensivas uti-


lizadas por desempregados: contribuição da psicodinâmica do trabalho. Temas
em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 22, p. 389-399, 2014.
OLIVEIRA, Lucia Barbosa de; CAVAZOTTE, Flávia de Souza Costa Neves; PA-
CIELLO, Raul Ricardo. Antecedentes e consequências dos conflitos entre traba-
lho e família. Revista de administração contemporânea, v. 17, n. 4, p. 418-437,
2013.
PRADO, Antônio. A controvérsia da crise do fordismo e a transição pós-
fordista: algumas reflexões sobre o caso brasileiro. In: Prado, Antônio et al.
(Coords.). Emprego e desenvolvimento tecnológico: processos de integração
regional. São Paulo: Dieese, 1999.
SARAIVA, Líbia Mara da Silva; Miriam Parreiras de Souza, SARMENTO. A ter-
ceirização como resposta à evolução dos modos de produção industrial
no Brasil: uma análise crítica do instituto. Ano: 2020. In: II Encontro Virtual
do CONPEDI: Direito do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho II. p. 219-234.
Disponível em: <http://site.conpedi.org.br/publicacoes/nl6180k3/7va7p7f3>.
Acesso em: 02/05/2021.
TRIERWEILLER, Andréa Cristina et al. A estratégia operatória utilizada pelos
trabalhadores e o hiato existente entre o trabalho prescrito e o trabalho real.
Revista Gestão Industrial, v. 4, n. 1, 2008.
VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administra-
ção. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A., 1998.

72

indag indic_gabriella.indb 72 22/07/2021 09:53:12


MEDIDAS PROTETIVAS DE
URGÊNCIA: marcos normativos
para proteção contra violência
em razão do gênero para além da
Lei nº 11.340 de 2006
Gabriella Andréa Pereira1

1 INTRODUÇÃO

O cenário de instabilidades gerado pela crise sanitário-econô-


mica em que o Brasil se encontra inserido, desde o início do ano
de 2020, devido ao vírus SARS-CoV-2, tem potencializado a neces-
sidade de proteção especial a determinados grupos socialmente
vulneráveis. Entre esses, merece singular atenção a célula mater da
sociedade, qual seja, a família, tendo em vista a premente ressignifi-
cação do ambiente “casa”, que antes poderia ser entendido somen-
te como “local-dormitório” e, agora, com mais razão, carece ser lar.
Lar, mais do que o local de coabitação, constitui-se como o
ambiente de convivência familiar, em que os membros se iden-
tificam e desenvolvem a sua personalidade. De igual modo, é
também o local em que mais acontecem violências que atraem a

1
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais;
pós-graduanda em Direito de Família Aplicado pelo Instituto de Educação Con-
tinuada da mesma instituição. Presidente da Comissão de Direito de Famílias
e Sucessões da 83ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Mi-
nas Gerais (triênio 2019-2021). Diretora Adjunta de Eventos da Comissão de
Direito de Família da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Minas Gerais
(triênio 2019-2021). Capacitada em práticas colaborativas pelo Instituto Brasilei-
ro de Práticas Colaborativas (IBPC). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de
Família (IBDFAM). Advogada. E-mail: gabriella.andrea@hotmail.com.

indag indic_gabriella.indb 73 22/07/2021 09:53:12


medidas protetivas de urgência: marcos normativos para proteção contra violência em
razão do gênero para além da lei nº 11.340 de 2006

imposição do olhar estatal, para proteção integral dos membros


ali desprotegidos.
Nesse contexto, o presente estudo analisa marcos legais prote-
tivos que servem para coibir e prevenir a violência contra a mulher,
assentados constitucionalmente, em razão de tratados internacio-
nais ratificados pelo Brasil para promoção de igualdade material
de gênero. Faz-se também breve análise da estrutura normativa
da Lei nº 11.340, de 2006, a “Lei Maria da Penha”, com vistas a
entender a sua natureza jurídica e, consequentemente, o correto
modo de sua aplicação.
Para fundamentar de maneira crítica o estudo aqui realizado,
serão utilizados dados primários, que se consubstanciam na aná-
lise dos dispositivos legais, e dados secundários, prioritariamente,
referindo-se à análise bibliográfica aventada.
Assim, no intuito de compreender a sistemática de aplicação
da Lei Maria da Penha, em especial, o seu principal instrumento,
que são as medidas protetivas de urgência – as quais se dão em
razão do princípio da proteção integral –, far-se-á, em um primei-
ro momento, um recorte histórico da legislação, buscando enten-
der a conexão da citada Lei com o estudo do Direito das Famílias
para, ao fim, atestar a necessidade de aplicação conjunta de tais
matérias, com o propósito de se materializar o princípio e funda-
mento constitucional da dignidade da pessoa humana.

2 MARCOS LEGAIS DE PROTEÇÃO À MULHER

A Lei Maria da Penha, qual seja, Lei nº 11.340 de 2006, repre-


senta, no cenário jurídico, um importante marco normativo de
proteção à mulher, principalmente na atualidade, em que todo o
mundo se voltou para dentro de casa, devido à pandemia pelo
vírus invisível SARS-CoV-2. Nesse sentido, o ambiente que mais
deveria acolher é também o que mais reproduz violências, pelo
que se faz necessário o estudo da base normativa de proteção às
mulheres, para que se possa aferir, verdadeiramente, o sentido do
microssistema de proteção vigente, em conjunto com o sistema
normativo constitucional.

74

indag indic_gabriella.indb 74 22/07/2021 09:53:12


gabriella andréa pereira

Observa-se aqui a importância do estudo da Lei Maria da


Penha de maneira interligada ao Direito das Famílias, pois o seu
art. 1º estabelece que os mecanismos ali criados devem ser utili-
zados para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar, em
quaisquer formas que essa se manifeste2, sobretudo porque o
art. 226, da Constituição da República de 1988, revela que a famí-
lia, na pessoa de cada um dos seus membros, merece a proteção
especial do Estado, significando dizer que nessa relação incidem
as normas de Direito de Família.
Na própria origem e estrutura do art. 226, da CR/88, supra-
citado, e especificamente em seu § 8º, fica estabelecido que “o
Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um
dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
no âmbito de suas relações” (BRASIL, 1988, grifou-se). Mostra-se,
pois, estampada a luta das mulheres pela proteção de seus direi-
tos, movimento conhecido como “Lobby do Batom”, que foi um
momento de reivindicações femininas, no período de instalação
da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), para que mais
mulheres ocupassem locais públicos nas estruturas de poder, so-
bretudo, no ambiente parlamentar.
Nesta eira, “[...] deputadas e senadoras formaram a aliança su-
prapartidária que serviu de elo entre os constituintes e os movi-
mentos de mulheres e que passou a ser denominada de “Lobby do
Batom”” (MONTEIRO, 2018, s.p). Em março de 1987, o movimento
permitiu que fosse enviado ao deputado Ulysses Guimarães, en-
tão presidente da Assembleia Nacional Constituinte, a “Carta das
Mulheres Brasileiras aos Constituintes”, que, além do estabeleci-
mento de princípios regentes, ainda pontuava questões relativas

2
Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e fa-
miliar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher,
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do
Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação
de violência doméstica e familiar (BRASIL, 2006).

75

indag indic_gabriella.indb 75 22/07/2021 09:53:12


medidas protetivas de urgência: marcos normativos para proteção contra violência em
razão do gênero para além da lei nº 11.340 de 2006

aos direitos fundamentais da mulher: o direito à saúde, ao traba-


lho, à família e a não violência.
Sobre isso, destacam-se dois pontos aqui relevantes. Em pri-
meiro lugar, quanto aos direitos da família, a Carta recomendava
que a nova Constituição trouxesse mudanças na legislação civil
no que se refere à igualdade entre cônjuges e em todos os direi-
tos e deveres relacionados à comunhão, bem como a igualdade
de direitos e deveres sobre a prole, não importando o vínculo
existente entre os pais. Requereu-se, ainda, a proteção da famí-
lia, independentemente da forma em que se encontrasse insti-
tuída, e que a maternidade e a paternidade constituíssem valo-
res sociais fundamentais, os quais deveriam ser protegidos pelo
Estado. Como um importante direito decorrente da família, no
item 7, a Carta assim já dispunha que “a lei coibirá violência na
constância das relações familiares, bem como o abandono dos
filhos menores” (BRASIL, 1987), fazendo-se notável que o intento
de proteção à mulher já existia muito antes da entrada em vigor
da Lei nº 11.340 de 2006.
Em segundo lugar, e não menos importante, quanto à violên-
cia, a Carta recomendava a criminalização de quaisquer atos de
violência contra a mulher, em qualquer ambiente que ela ocu-
passe, não só dentro de casa, sendo o Estado o garantidor de
uma assistência médica, jurídica, social e psicológica às vítimas.
Nesse viés, ressaltam-se os pontos 9 e 12, que dizem, respecti-
vamente:
9 – Será responsabilidade do Estado a criação e manutenção de alber-
gues para mulheres ameaçadas de morte, bem como o auxílio à sua
subsistência e de seus filhos.

[...]

12 – Criação de Delegacias Especializadas no atendimento à mulher


em todos os municípios do país, mesmo naqueles nos quais não se
disponha de uma delegada mulher (BRASIL, 1987).

Não constitui, portanto, novidade jurídica o trabalho interdis-


ciplinar para cuidado da família, com foco na proteção contra a

76

indag indic_gabriella.indb 76 22/07/2021 09:53:12


gabriella andréa pereira

violência causada em face do gênero; afinal, os movimentos so-


ciais de mulheres há muito se atentam ao papel desempenhado e
ocupado por elas no seio familiar e também na sociedade.
Isso porque quando a mulher entra, por exemplo, no mercado
de trabalho, existe uma preocupação substancial com os espaços
por ela ocupados socialmente como mãe, esposa, dona de casa e,
só depois, como profissional, significando dizer que os locais pre-
enchidos pelas mulheres na sociedade refletem a representação so-
cial esperada e construída pelo imaginário comum, que é patriarcal
e, infelizmente, ainda machista, causando a diferenciação de expec-
tativas dos papéis sociais dos corpos femininos e masculinos3.
Devido a essa diferenciação e consequente discriminação de
gênero, arraigada na história da sociedade, que é responsável pela
estruturação do poder e também da violência, é que os marcos
normativos se fazem tão necessários quando o assunto é a pro-
teção da mulher e as ações afirmativas para prevenir e coibir a
violência em razão do gênero.
Por esse motivo, importante se faz, ainda, citar duas conven-
ções de que o Brasil é signatário, as quais fazem parte do sistema
protetivo às mulheres; a saber.

2.1 Convenção sobre a eliminação de todas as formas de


discriminação contra a mulher (CEDAW) e a Convenção
Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência
contra a mulher (Convenção de Belém do Pará)

Também conhecida como CEDAW ou Convenção da Mulher, a


Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discrimina-
ção contra a mulher é datada de 1979, foi ratificada no Brasil em
1981, com algumas reservas, pelo que seu texto entrou de fato em

3
A teoria da representação social é atribuída à Serge Moscovici (1925-2014), pelo que,
nas palavras de Raquelli Natale (2015, p. 71), “[...] a representação social é um con-
junto de crenças socialmente compartilhadas (conhecimentos, atitudes, ideologias,
etc.) localizados na memória social. Nesse sentido, os atores sociais envolvidos no
discurso não exclusivamente fazem uso de suas experiências e estratégias individuais,
eles baseiam-se principalmente em “quadros coletivos de percepção”, chamados de
“representações sociais”.

77

indag indic_gabriella.indb 77 22/07/2021 09:53:12


medidas protetivas de urgência: marcos normativos para proteção contra violência em
razão do gênero para além da lei nº 11.340 de 2006

vigor após a última ressalva, em 1984, trazendo a necessidade de


um olhar não discriminatório à mulher, em razão de seu gênero,
sexo, raça, classe ou qualquer de suas características.
Salta aos olhos que, em 1984, o art. 3º da Convenção já previa
que os estados-parte deveriam tomar as medidas cabíveis para
prevenir a violência, assegurando a igualdade de gênero, inclusive
de maneira legislativa. Entretanto, a Lei nº 11.340 somente entrou
em vigor em 2006, ou seja, vinte e dois anos depois; leiamos:
No Brasil, é somente no século XXI, em aparente atraso com relação
ao movimento internacional supracitado, que realmente começam a
surgir legislações pátrias especialmente destinadas a tratar de direi-
tos humanos de mulheres e da violência de gênero e, de modo pro-
gramático, a dar eficácia e aplicabilidade à legislação internacional já
ratificada pelo Estado Brasileiro. Até esse momento, pelo contrário, o
que se vislumbra é um verdadeiro conjunto de legislações brasileiras
que reforçam a discriminação contra as mulheres, principalmente no
âmbito privado, institucionalizando o papel da mulher como subal-
terna e impedida de praticar atos de autonomia na relação familiar
(BAZZO; LACERCA; DALTOÉ, 2017, p. 6).

No mesmo sentido, outro importante marco é a Convenção


Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher, também conhecida como “Convenção de Belém do Pará”,
de 09 de junho de 1994, que foi inserida no ordenamento jurídico
como Emenda à Constituição, assim como a anterior, na forma do
seu art. 5º, § 3º e, por isso, tem conteúdo de direito fundamental4.
Esta Convenção estabelece o que é a violência contra a mu-
lher – texto que foi incorporado pela Lei Maria da Penha, quando
de sua edição –, quais são os direitos das mulheres em contexto
de violência e quais são os deveres dos estados-parte para pro-
tegê-las, bem como os mecanismos por meio dos quais o Estado

4
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
[...] §3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais
(BRASIL, 1998).

78

indag indic_gabriella.indb 78 22/07/2021 09:53:12


gabriella andréa pereira

deverá agir para fazer valer tais direitos. Cabe evidenciar os moti-
vos que levaram à ratificação desse texto normativo:
RECONHECENDO que o respeito irrestrito aos direitos humanos foi
consagrado na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Ho-
mem e na Declaração Universal dos Direitos Humanos e reafirmado
em outros instrumentos internacionais e regionais;

AFIRMANDO que a violência contra a mulher constitui violação dos


direitos humanos e liberdades fundamentais e limita total ou parcial-
mente a observância, gozo e exercício de tais direitos e liberdades;

PREOCUPADOS por que a violência contra a mulher constitui ofensa


contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder
historicamente desiguais entre mulheres e homens;

RECORDANDO a Declaração para a Erradicação da Violência contra a


Mulher, aprovada na Vigésima Quinta Assembléia de Delegadas da Co-
missão Interamericana de Mulheres, e afirmando que a violência contra
a mulher permeia todos os setores da sociedade, independentemente
de classe, raça ou grupo étnico, renda, cultura, nível educacional, idade
ou religião, e afeta negativamente suas próprias bases;

CONVENCIDOS de que a eliminação da violência contra a mulher é


condição indispensável para seu desenvolvimento individual e social e
sua plena e igualitária participação em todas as esferas de vida; e

CONVENCIDOS de que a adoção de uma convenção para prevenir, pu-


nir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher, no âmbito
da Organização dos Estados Americanos, constitui positiva contribui-
ção no sentido de proteger os direitos da mulher e eliminar as situa-
ções de violência contra ela [...] (BRASIL, 1996).

Pela leitura acima, pode-se conceber que a proteção à mulher,


enquanto gênero já desigualmente visto na sociedade, dá-se como
forma de materialização do princípio da dignidade da pessoa hu-
mana5, fundamento da República, como bem ressalta Dias (2021):
Trata-se de princípio que não representa tão só um limite à atuação
estatal. Constitui também um norte para sua ação positiva. O Estado

5
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos [...] III – a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988).

79

indag indic_gabriella.indb 79 22/07/2021 09:53:12


medidas protetivas de urgência: marcos normativos para proteção contra violência em
razão do gênero para além da lei nº 11.340 de 2006

não tem apenas o dever de abster-se de praticar atos que atentem


contra a dignidade humana. Também deve promover essa dignidade
através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada
ser humano em seu território (p. 65).

A igualdade de gênero aqui requerida à mulher é também um


dos objetivos do Desenvolvimento Sustentável no Brasil, con-
forme estabelece a Organização das Nações Unidas – ONU6, de
modo que a Lei Maria da Penha faz parte de um sistema robusto
de proteção integral à mulher em situação de violência doméstica
e intrafamiliar. É, pois, considerada uma ação afirmativa legislativa,
que tem a função de cumprir uma invocação constitucional.

3 A NATUREZA JURÍDICA DA LEI MARIA DA PENHA

Conforme supramencionado, a Lei nº 11.340 de 2006 con-


siste em um microssistema de proteção contra violência de gêne-
ro, no âmbito doméstico e intrafamiliar, corolária de proposições

6
Objetivo 5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulhe-
res e meninas: 5.1 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas
as mulheres e meninas em toda parte; 5.2 Eliminar todas as formas de violência
contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo
o tráfico e exploração sexual e de outros tipos; 5.3 Eliminar todas as práticas
nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações
genitais femininas; 5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e do-
méstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos,
infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da respon-
sabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos na-
cionais; 5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade
de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão
na vida política, econômica e pública; 5.6 Assegurar o acesso universal à saúde
sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em conformi-
dade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População
e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos
resultantes de suas conferências de revisão; 5.a Realizar reformas para dar às
mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a pro-
priedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços
financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais;
5.b Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de
informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres;
5.c Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção
da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas
em todos os níveis (BRASIL, 2021).

80

indag indic_gabriella.indb 80 22/07/2021 09:53:12


gabriella andréa pereira

normativas constitucionais, pelo que pode ser entendida como


uma espécie de ação afirmativa, pertencente ao gênero das políti-
cas públicas, de sorte que refletem uma:
[...] estratégia de ação pensada, planejada e avaliada, onde existe uma
racionalidade coletiva na qual tanto o Estado quanto a sociedade
desempenham papeis ativos. Há a intervenção do Estado, que en-
volve diferentes atores que podem ser governamentais ou não-go-
vernamentais, através de demandas, apoios ou controle democrático
(LEANDRO, 2014, p. 11).

Quer-se dizer que a Lei Maria da Penha não se trata apenas de


um conjunto de regras, mas sim, de normas imbuídas de conteú-
do axiológico, as quais devem ser aplicadas com primazia em prol
da devida proteção dos direitos fundamentais, sendo suficientes
à garantia da proteção integral de suas destinatárias. Entretanto,
para que se dê a real proteção, é preciso entender a intenção da
lei, sua essência, mais precisamente sua natureza jurídica, pois, a
partir disso, é que seu manejo será adequado e correto ao fim a
que se destina.
Nesse sentido, voltando o olhar para o procedimento em si
e para os casos concretos das mulheres inseridas em contexto
de violência doméstica e intrafamiliar, que se dirigem às Dele-
gacias Especializadas no Atendimento à Mulher - DEAMs, reve-
la-se necessário compreender que não raras vezes essa mulher,
no momento da denúncia, ainda está no ciclo da violência, com
pensamentos confusos, muitas vezes fora de ordem cronológica
e totalmente embaraçados, sendo que seu único intento, indo à
delegacia, é o de ser ouvida, acreditada e integralmente protegi-
da. Por esse motivo, não lhe são requeridos subsídios exagerados
para ingressar com um pedido de medida protetiva de urgência,
porque isso já seria suficiente para fazê-la desistir, mediante sua
hipossuficiência técnica.
Há que se dizer, novamente, que o microssistema tem como va-
lor fundamental a proteção da dignidade da mulher. Pensando nis-
so é que as medidas protetivas de urgência devem ser suficientes
em si mesmas, autônomas e satisfativas, como ressalta Pires (2011):
81

indag indic_gabriella.indb 81 22/07/2021 09:53:12


medidas protetivas de urgência: marcos normativos para proteção contra violência em
razão do gênero para além da lei nº 11.340 de 2006

O deferimento das medidas protetivas não depende do interesse da


vítima na persecução penal e, uma vez deferidas as medidas, a ma-
nutenção de sua vigência, embora transitória, não depende da pro-
positura de eventual ação cível ou penal. As medidas protetivas têm
demonstrado que se afiguram eficazes em termos penais de preven-
ção especial, ao diminuir a probabilidade de reincidência do agressor
destinatário da medida e contribuir para a interrupção do ciclo da
violência de gênero, trazendo alívio e segurança à vítima (p.162).

Assim, a medida protetiva de urgência, quando requerida pela


mulher em contexto de violência doméstica ou intrafamiliar, não
deve ser, necessariamente, subsidiada de demandas de outra na-
tureza, conforme estabelece o art. 19, §2º, da Lei Maria da Penha:
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo
juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.

[...] § 2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou


cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por
outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta
Lei forem ameaçados ou violados (BRASIL, 2006).

Todavia, quando essa for acionada como causa de pedir em


outras demandas judiciais, impende necessária atenção para que
seja utilizada de maneira adequada ao procedimento que se dese-
ja instaurar para proteção integral de sua destinatária.

3.1 A violência doméstica e intrafamiliar como causa de pedir


nas demandas cíveis, familiares e penais

Por todo arcabouço teórico já apontado até aqui, evidente se


mostra a relevância do estudo das medidas de proteção contra
violência de gênero em todo o sistema jurídico e, principalmente,
no âmbito do Direito das Famílias, afinal, a Lei nº 11.340 de 2006
não é uma lei penal. Ao contrário, a lei destina-se a prevenir e coi-
bir a violência que acontece dentro do próprio lar, apontando um
único tipo penal, incluído pela Lei nº 13.641 de 20197.

7
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência
previstas nesta Lei:

82

indag indic_gabriella.indb 82 22/07/2021 09:53:12


gabriella andréa pereira

Assim, em que pese o rol exemplificativo do art. 7º, da Lei Ma-


ria da Penha8 apontar os tipos de violências praticadas contra a
mulher, os mecanismos para combatê-las não são penais, mas
sim, de ordem civil-administrativa e se encontram dispostos no
seu art. 22:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra
a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao
agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas pro-
tetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comu-


nicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de
dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. §1º A configuração do crime


independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. § 2º
Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder
fiança. § 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis
(BRASIL, 2019).
8
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade
ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique
e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilha-
ção, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto,
chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do
direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica
e à autodeterminação; II - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que
a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar
ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite
ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimo-
nial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destrui-
ção parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que
configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006).

83

indag indic_gabriella.indb 83 22/07/2021 09:53:12


medidas protetivas de urgência: marcos normativos para proteção contra violência em
razão do gênero para além da lei nº 11.340 de 2006

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas,


fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qual-


quer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integri-


dade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores,


ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e


reeducação;

VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendi-


mento individual e/ou em grupo de apoio.       

§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de


outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da
ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser
comunicada ao Ministério Público.

[...]

§ 3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência,


poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial
[...] (BRASIL, 2006).

Nesse sentido, quando a Lei Maria da Penha é requerida pela


mulher em situação de violência doméstica e intrafamiliar, tais
mecanismos de proteção deverão ser aplicados, de forma isolada
ou cumulativamente, de modo que o seu descumprimento é que
gera a aplicação do tipo penal. Assim sendo, as medidas prote-
tivas de urgência poderão ser utilizadas como fundamento, em
outras demandas, afinal, como explicado em tópicos anteriores, a
proteção à mulher, em contexto de violência, deve ser integral e
suficiente, de acordo com as necessidades apresentadas.
Logo, o que diferencia uma demanda de outra, quando em seu
bojo existe uma violência doméstica e intrafamiliar, é a sua causa
de pedir. Desse modo:

84

indag indic_gabriella.indb 84 22/07/2021 09:53:12


gabriella andréa pereira

a) quando se ajuíza uma ação de natureza cível, em que a cau-


sa de pedir seja a violência doméstica, o pedido poderá ser a
concessão de uma tutela provisória, de natureza cível, como
a ação de danos morais em razão da violência praticada, por
exemplo;
b) quando se ajuíza uma ação de família, em que a causa de
pedir seja a violência doméstica, o pedido poderá envolver a
concessão de uma tutela provisória para aplicação das me-
didas protetivas de urgência, mas o pedido deverá ser, ao
fim, o divórcio;
c) e, quando se ajuíza uma ação penal, em que a causa de pedir
seja a violência doméstica, deve-se atentar para a existência
de crime subjacente para composição da justa causa, que é
a prova da materialidade e os indícios de autoria, para que
seja decretada, por exemplo, uma medida cautelar penal.

Perceba-se, então, que a proteção integral da mulher, em con-


texto de violência doméstica e intrafamiliar, inicia-se pelo atendi-
mento especializado nas DEAMs, ou por meio particular, podendo
se desdobrar em várias demandas no Poder Judiciário, a fim de
que se faça suficiente à garantia de sua dignidade, tal qual esta-
belece a Constituição da República de 1988.

4 CONCLUSÃO

Por meio desse breve estudo, buscou-se analisar o campo


axiológico que envolve e estrutura a Lei nº 11.340 de 2006 que,
em seu conteúdo, mantém, de forma explícita, o princípio da
proteção integral, que também ocorre em outros microssistemas
protetivos.
Nesse sentido, para bem compreender o modo de aplicação
da Lei Maria da Penha, em especial, os seus mecanismos de pro-
teção contra a violência de gênero, é necessário entender como
se estrutura o sistema constitucional de proteção à mulher, a fim
de que o espírito da lei possa irradiar aos seus aplicadores, no
momento de sua invocação, de modo que a proteção dispensada
seja suficiente a quem lhe reclama.
85

indag indic_gabriella.indb 85 22/07/2021 09:53:12


medidas protetivas de urgência: marcos normativos para proteção contra violência em
razão do gênero para além da lei nº 11.340 de 2006

O estudo da Lei Maria da Penha perpassa o Direito das Famílias,


porque as diferenciações em razão do gênero acontecem desde a
tenra idade, nas ditas brincadeiras para meninos e para meninas,
que, inocentemente, transmudam-se em formas de estruturação
de poder na sociedade, em favorecimento de uma cultura estabe-
lecedora de papéis sociais.
Assim, conceber o Direito das Famílias sob a lente da proteção
integral, invocada pelo microssistema da Lei nº 11.340 de 2006,
significa ofertar igualdade material a cada um dos membros da
família, que serão vistos a partir de sua individualidade, porquanto
os direitos da personalidade garantem, também, o direito consti-
tucional à diferença.
Nesse contexto, buscou-se entender os valores que fundamen-
tam o microssistema de proteção à mulher para, após, entender a
sua natureza jurídica, que influencia diretamente no modo de sua
aplicação tanto como medida autônoma, satisfativa em si mesma,
quanto como causa de pedir em demandas de outra natureza.
De maneira breve, foi possível compreender o modo de apli-
cação da Lei Maria da Penha para proteção integral à mulher, em
contexto de violência doméstica e intrafamiliar. Isso significa, em
linhas gerais, facultar e ratificar a promoção da assistência so-
cial constitucionalmente prevista, bem como a materialização de
princípios, também de ordem constitucional, que fundamentam
não só as relações familiares, mas também o Estado Democráti-
co de Direito.

5 REFERÊNCIAS

BAZZO, Mariana Seifert; LACERCA, Susana Broglia Feitosa de; DALTOÉ, Camila
Mafioletti. Aplicação da Lei Maria da Penha em relações de parentesco e a pre-
sunção da vulnerabilidade da vítima mulher no contexto de desigualdade de
gênero. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Paraná. Ano 4,
n. 6, jun/2017, p. 573-595. Disponível em: <http://femparpr.org.br/site/wp-con-
tent/uploads/2017/06/6-Revista-MPPR-web.pdf>. Acesso: 12 mai. 2021.
BRASIL. Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes. Portal da Câmara
dos Deputados, 1987. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade
-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/a-consti-

86

indag indic_gabriella.indb 86 22/07/2021 09:53:12


gabriella andréa pereira

tuinte-e-as-mulheres/arquivos/Constituinte%201987-1988-Carta%20das%20
Mulheres%20aos%20Constituintes.pdf>. Acesso em: 12 de mai. 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso
em: 11 mai. 2021.
BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Conven-
ção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm#:~:text=DECRETO%20
N%C2%BA%201.973%2C%20DE%201%C2%BA,9%20de%20junho%20de%20
1994.>. Acesso em: 19 maio 2021.
BRASIL. Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Conven-
ção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,
de 1979, e revoga o Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm#:~:text=DECRE-
TO%20N%C2%BA%204.377%2C%20DE%2013,20%20de%20mar%C3%A7o%20
de%201984.>. Acesso em: 19 maio 2021.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 13
mai. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.641, de 3 de abril de 2018. Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13641.htm#:~:text=L13641&-
text=LEI%20N%C2%BA%2013.641%2C%20DE%203,de%20medidas%20prote-
tivas%20de%20urg%C3%AAncia.>. Acesso em: 13 mai. 2021.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual
– Salvador: JusPodivm, 2021.
LEANDRO, Amaranta Úrsula Fiess. Implementação de políticas públicas e desa-
fios ao enfrentamento da violência contra a mulher. Anais II Semana de Ciên-
cia Política da Universidade Federal de São Carlos: repensando a trajetória
do estado brasileiro. 2014. Disponível em: <http://www.semacip.ufscar.br/wp-
content/uploads/2014/12/Implementa%C3%A7%C3%A3o-de-pol%C3%ADti-
cas-p%C3%BAblicas-e-desafios-ao-enfrentamento-da-viol%C3%AAncia-con-
tra-a-mulher.pdf>. Acesso em: 12 mai. 2021.
MONTEIRO, Ester. Lobby do Batom: marco histórico no combate a discrimina-
ções. Fonte: Agência Senado. Agência Senado, 2018. Disponível em: <https://
www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/03/06/lobby-do-batom-marco
-historico-no-combate-a-discriminacoes>. Acesso em: 18 mai. 2021.

87

indag indic_gabriella.indb 87 22/07/2021 09:53:12


medidas protetivas de urgência: marcos normativos para proteção contra violência em
razão do gênero para além da lei nº 11.340 de 2006

NATALE, Raquelli. A representação social da violência de gênero contra a


mulher no Espírito Santo. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito). Universi-
dade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015.
ONU, Organização das Nações Unidas. Objetivos do desenvolvimento sus-
tentável. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5>. Acesso em:
12 mai. 2021.
PIRES, Amom Albernaz. A opção legislativa pela política criminal extrapenal e a
natureza jurídica das medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Revista do Mi-
nistério Público do Distrito Federal e Territórios, v. 1, n. 5, p. 121-168, 2011.

88

indag indic_gabriella.indb 88 22/07/2021 09:53:12


entendimentoS do Superior
Tribunal de Justiça sobre a
beligerância E ANIMOSIDADE
DOS GENITORES como óbice à
guarda compartilhada
Flávia Lee Cardoso Dias1

1 INTRODUÇÃO

O instituto da guarda de menores, assim como todo o conteúdo


do Direito das Famílias e Sucessões, vem passando por transforma-
ções e evoluções consideráveis ao longo dos anos. Sabe-se que o
Direito acompanha o ritmo do caminhar da sociedade, pelo que,
então, ao progredir-se e distanciar-se de critérios machistas, pa-
triarcais e conservadores, almeja refletir as conquistas advindas do
respeito dado às novas configurações familiares.
A independência feminina, a luta contra o machismo e estru-
turas arcaicas familiares levaram o Direito de Família a discus-
sões e análises sobre o papel dos cônjuges e genitores na criação
e cuidados da prole. Isso alavancou a necessidade urgente de se
reconhecer que, contemporaneamente, as supostas obrigações
pré-definidas para cada gênero – masculino e feminino – estão
em questionamento e à iminente conclusão de que os direitos e
deveres em relação aos filhos devem se dar de maneira equilibrada

1
Advogada, graduada em Direito pela Faculdade PUC Minas; pós-graduada em Direito Públi-
co pela Faculdade Newton Paiva; Assistente Social, graduada pela Faculdade Estácio de Sá.
Conselheira da 83ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro da Comissão de
Direito de Famílias e Sucessões da 83ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil. E-mail:
flavialeedias@yahoo.com.br.

indag indic_gabriella.indb 89 22/07/2021 09:53:12


entendimentos do superior tribunal de justiça sobre a beligerância e animosidade
dos genitores como óbice à guarda compartilhada

e condizente à igualdade entre homens e mulheres, devidamente


preconizada na Constituição da República.
Acompanhando a progressão dessa observação social, o Poder
Judiciário, já há razoável tempo, dispõe de decisões embasadas
em doutrinas e legislações que referenciam a guarda compartilha-
da como mecanismo ideal à aplicabilidade do princípio do melhor
interesse do menor, ao passo que preserva com maior qualidade e
eficiência a convivência e as relações parentais. Ao mesmo tempo,
celebra o entendimento de que homens e mulheres possuem as
mesmas obrigações de zelo, cuidados e sustento, sem distinções
e divisões de papéis socialmente impostos.
Assim, tem-se que o instituto da guarda compartilhada nasceu
da vontade do legislador em assegurar aos filhos a plenitude de
seu desenvolvimento junto a ambos os genitores. Demonstra-se,
com isso, que o Direito das Famílias não mais pretende renegar
um genitor em detrimento ao outro, posto que a guarda unilate-
ral deixa a critério exclusivo de um dos pais as decisões e manejo
da criação e educação das crianças, restando ao outro cônjuge a
figura de mero visitante e provedor material.
A Lei 13.058 de 2014 veio então para estabelecer a guarda
compartilhada como regra geral, significando que, ainda que au-
sente o acordo entre mãe e pai, quanto à guarda do filho, o juiz
deverá aplicá-la.
Ocorre que, não raras vezes, a aplicabilidade da guarda com-
partilhada é questionada justamente porque as partes envolvidas
encontram-se em conflitos, mágoas e estresses graves, decorren-
tes do rompimento do vínculo amoroso, demonstrando dificulda-
des extremas para se alcançar o diálogo e a harmonia necessária
ao bem estar do menor. Torna-se, pois, inviável sua concretização
prática, porquanto o objetivo principal de sua possibilidade é exa-
tamente a divisão equilibrada de convívio, decisões e responsabi-
lidades administrativas sobre a vida e rotina das crianças.
O presente estudo tem, pois, como objetivo principal, através da
verificação de alguns acórdãos, analisar as conjunturas e obstáculos
colocados pelo STJ, o Superior Tribunal de Justiça, à aplicação da
90

indag indic_gabriella.indb 90 22/07/2021 09:53:12


flávia lee cardoso dias

guarda compartilhada, sobretudo no que diz respeito à beligerân-


cia e animosidade entre as partes, argumentos sempre aventados
em tais disputas judiciais e que representam desafios constantes
para os jurisdicionados e operadores do Direito.

2 PRESSUPOSTOS E EVOLUÇÃO DA APLICABILIDADE


DA GUARDA COMPARTILHADA NO STJ EM CASOS DE
ANIMOSIDADE ENTRE AS PARTES

Ao serem responsáveis pelo compartilhamento da guarda, os


genitores devem entender que as decisões a respeito da prole se-
rão tomadas em conjunto, com base no diálogo e no consenso.
Apesar de tal compartilhamento, o filho deverá morar com apenas
um dos pais, sendo este endereço definido como lar de referên-
cia. Insta pontuar também que a regra geral é a de que a guarda
compartilhada não altera a obrigação alimentícia e seus valores.
O Código Civil diz que a base de moradia deverá ser aquela que
melhor atenda aos interesses dos filhos. O tempo de convívio deve
ser dividido da forma mais equilibrada possível, sempre tendo em
vista as condições das partes e os interesses dos menores. Nas
palavras de Pereira (2005): “A guarda compartilhada é um modelo
novo, cuja proposta é a tomada conjunta de decisões mais im-
portantes em relação à vida do filho, mesmo após o término da
sociedade conjugal” (p.134).
Para que a definição do regime de convivência, antigamente
designado como dias de visitação, seja feita de forma eficiente,
é necessário que os pais analisem a rotina de cada um em pro-
porção ao cotidiano dos filhos, percebendo com cuidado as res-
ponsabilidades assumidas, sob pena de frustração na finalidade
precípua da guarda compartilhada, qual seja, a participação ativa
e mútua na vida dos menores. Estas participações devem se dar
no tocante à vida escolar, religiosa, de lazer, socializações, prática
de esportes, tratamentos de saúde, entre outros.
Segundo informado no site do STJ, em seu portal de notícias, mes-
mo antes da vigência do atual marco legislativo – Lei 13.058/2014,
“a modalidade da guarda compartilhada já era adotada em casos
91

indag indic_gabriella.indb 91 22/07/2021 09:53:12


entendimentos do superior tribunal de justiça sobre a beligerância e animosidade
dos genitores como óbice à guarda compartilhada

onde se observava a concordância entre os pais, quanto à maneira


e o padrão de responsabilidade relativo à manutenção, criação e
educação dos menores” (STJ, 2017). Como relatado no mesmo site
acima informado:
O conceito de guarda compartilhada no ordenamento jurídico na-
cional surgiu em 2008, com a Lei 11.698 e foi aperfeiçoado com a
Lei 13.058/14. Esclarece-se na referida notícia que uma das posições
interpretativas adotadas pelo STJ e que posteriormente fora incorpo-
rada na legislação é a ideia de que o convívio da criança com ambos
os genitores é a regra e, na falta de acordo, mesmo havendo clima
hostil entre os pais, deveria ser determinada pelo juiz, salvo quando
comprovada no processo a sua absoluta inviabilidade (STJ, 2017).

Conforme o disposto no artigo 1.584, §2º do Código Civil, após


o tratamento específico conferido pela norma, a guarda compar-
tilhada passou a ser determinada pelo Poder Judiciário como me-
dida imperativa, ainda que não haja consenso sobre quem de-
sempenhará tal papel. O entendimento do STJ, desde a alteração
legislativa, foi sempre no sentido de priorizar o interesse da crian-
ça, partindo-se do pressuposto de que não é indispensável haver
convívio amigável entre os pais separados para que se dê o com-
partilhamento da guarda, estabelecendo que o modelo compar-
tilhado previsto no parágrafo 2º do artigo 1.584 do Código Civil
(com a redação então dada pela Lei 11.698/08) deveria ser uma
regra, e não mais uma mera possibilidade.
Segundo a ministra Nancy Andrighi,
Essa linha jurisprudencial vencia a ideia reinante de que os filhos, de
regra, deveriam ficar com a mãe, restringindo-se a participação dos
pais a circunstâncias episódicas que, na prática, acabavam por desi-
dratar a legítima e necessária atuação do cônjuge que não detinha a
custódia física – normalmente o pai – fazendo deste um mero coad-
juvante na criação dos filhos (STJ, 2014).

Um julgamento da Terceira Turma em 2017, relatado pelo


ministro Villas Bôas Cueva, reafirmou o entendimento de que
“a guarda compartilhada não deve ser aplicada apenas em duas
situações: quando não houver interesse de um dos pais, ou quan-
do um deles não for capaz de exercer o poder familiar” (STJ, 2017).
92

indag indic_gabriella.indb 92 22/07/2021 09:53:12


flávia lee cardoso dias

Em outro julgamento, de junho de 2014, também relatado pela


ministra Nancy Andrighi, a magistrada explicou por que a guarda
compartilhada deve ser vista como regra, e não apenas uma pos-
sibilidade dependente de convívio amistoso entre os pais:
A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de consenso,
faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos
pais. E diz-se inexistente porque contrária ao escopo do poder fami-
liar, que existe para a proteção da prole (STJ, 2014).

Segundo o Superior Tribunal de Justiça, para impedir o com-


partilhamento da guarda, as brigas entre os pais precisam ser su-
ficientemente graves, de sorte que a simples menção a um estado
de beligerância não pode ser utilizada pelo juiz como fundamento
para deferir a guarda unilateral em favor do pai ou da mãe. Resu-
miu o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em voto apresentado
na Terceira Turma, em março de 2016:
Os motivos aptos a justificar a supressão da guarda de um dos ge-
nitores devem ser graves o suficiente para comprometer o convívio
saudável com os filhos, tais como ameaça de morte, agressão física,
assédio sexual, uso de drogas, etc (STJ, 2018).

Antes dessa evolução jurisprudencial, era comum que a guarda


compartilhada fosse indeferida devido a animosidades entre os
pais. Para a ministra Nancy Andrighi, tais decisões muitas vezes
acabavam por prejudicar tão somente a criança. Segundo voto
apresentado por ela, em junho de 2014:
Acolher tais argumentos sustentados por um dos pais seria premiar
um comportamento “egoísta” de quem exige a guarda, negando à
criança o direito de conviver com ambos os genitores. Nancy Andrighi
declarou que a inovação legislativa da guarda compartilhada visou
quebrar a monoparentalidade na criação dos filhos, que gera, segun-
do a ministra, a figura do “pai de domingo” (STJ, 2014).

No conceito de guarda compartilhada, ambos os pais têm os


mesmos direitos e os mesmos deveres, o que se aplica a deci-
sões sobre escola, viagens, questões de saúde, enfim, qualquer
decisão exige a participação de ambos, pelo que, então, somente
por situações extremamente graves, extremas e severas é que se
93

indag indic_gabriella.indb 93 22/07/2021 09:53:13


entendimentos do superior tribunal de justiça sobre a beligerância e animosidade
dos genitores como óbice à guarda compartilhada

deve deixar de aplicar a guarda compartilhada. O entendimento


de nosso Tribunal Superior, portanto, defendia, majoritariamente,
a compreensão de que a simples falta de diálogo, ou impossibi-
lidade de harmonia entre os pais, não seriam motivos suficientes
para a determinação da guarda unilateral.

3 ENTENDIMENTO ATUAL DO STJ SOBRE A INVIABILIDADE


DA APLICAÇÃO DA GUARDA COMPARTILHADA PELAS
CONDUTAS CONTURBADAS E O ALTO GRAU DE
BELIGERÂNCIA ENTRE OS GENITORES

Embora o Superior Tribunal de Justiça, como dito, venha


aplicando a intenção do legislador, consagrando a guarda com-
partilhada como regra geral, haja vista entender ser este o ins-
tituto que melhor atende aos interesses dos filhos, não significa
dizer que o mesmo Tribunal não relativize e analise caso a caso, de
acordo com as provas e circunstâncias coligidas, o que, de certa
maneira, representa tênue mudança nos entendimentos anterior-
mente citados.
As decisões abaixo mostram com exatidão que o instituto da
guarda compartilhada comporta exceções, e que a animosidade
e beligerância entre os genitores aparecem como fatores prepon-
derantes para que o STJ entenda sobre a imprescindibilidade de
relativização e análise particular de cada situação específica, des-
mistificando entendimentos anteriores de que a guarda compar-
tilhada deveria obrigatoriamente ser aplicada como instituto pa-
drão imposto pela legislação; senão, vejamos:
PROCESSUAL CIVIL. (...) FAMÍLIA. PRETENSÃO DE ADOÇÃO DA GUAR-
DA COMPARTILHADA DOS FILHOS MENORES. ACÓRDÃO RECORRI-
DO QUE, COM BASE NOS ELEMENTOS E PROVAS CONSTANTES DOS
AUTOS, CONCLUIU QUE A GUARDA COMPARTILHADA NÃO ATEN-
DE O MELHOR INTERESSE DOS FILHOS. (...) 2. Esta eg. Corte Supe-
rior já decidiu que a guarda compartilhada dos filhos é o ideal a ser
buscado no exercício do poder familiar, na medida em que a lei foi
criada com o propósito de pai e mãe deixarem as desavenças de lado,
em nome de um bem maior, qual seja, o bem-estar deles. 2.1. Contu-
do, a questão envolvendo a guarda de menores não pode ser resolvi-
da somente no campo legal, devendo também ser examinada sob o

94

indag indic_gabriella.indb 94 22/07/2021 09:53:13


flávia lee cardoso dias

viés constitucional, consubstanciado na observância do princípio do


melhor interesse da criança e do adolescente, previsto no art. 227 da
CF, que também deve ser respeitado pelo magistrado, garantindo-lhes
a proteção integral, que não podem ser vistos como objeto, mas sim
como sujeitos de direito. 2.2. Em situações excepcionais e, em obser-
vância ao referido princípio, a guarda compartilhada não é recomen-
dada, devendo ser indeferida ou postergada, como nos casos em que
as condutas conturbadas e o alto grau de beligerância entre os seus
genitores ao longo do processo de guarda não observam o melhor
interesse dos filhos. 3. No caso dos autos, as instâncias ordinárias
concluíram pela inviabilidade da instituição da guarda compartilhada
não apenas em virtude da intransigência dos genitores das crianças,
mas porque as circunstâncias do caso e a dinâmica familiar indicaram
que aquele instituto não atenderia, pelo menos naquele momento, o
melhor interesse dos infantes. Alterar tal entendimento demandaria o
reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência vedada
em recurso especial, a teor da Súmula nº 7 do STJ. (...) (STJ, AgInt no
REsp 1808964/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em
09/03/2020 ( STJ, 2020) (grifou-se).

O entendimento acima, recente sobre o tema emanado pelo


STJ, deixa clara a perspectiva atual de nossa instância superior, re-
afirmando que, em situações excepcionais, a guarda compartilhada
não é recomendada, devendo ser indeferida ou postergada, como
nos casos em que as condutas conturbadas e o alto grau de be-
ligerância entre os seus genitores prejudicariam ainda mais os fi-
lhos, quando da necessária tomada de decisões em conjunto.
In casu, tem-se que as instâncias ordinárias concluíram pela
inviabilidade da instituição da guarda compartilhada, não apenas
em virtude da intransigência dos genitores, mas porque as cir-
cunstâncias do caso e a dinâmica familiar indicaram que aquele
instituto não atenderia, pelo menos naquele momento, o melhor
interesse dos infantes. O STJ, então, entendendo pela impossibi-
lidade de reanálise de provas em sede de recurso especial, tratou
de julgar improcedente o apelo:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.060.732 - SP (2017/0040015-
6) RELATOR: MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO AGRAVAN-
TE: R V B ADVOGADOS: PRISCILA MARIA PEREIRA CORREA DA FON-
SECA E OUTRO (S) - SP032440 CAROLINA SCATENA DO VALLE -

95

indag indic_gabriella.indb 95 22/07/2021 09:53:13


entendimentos do superior tribunal de justiça sobre a beligerância e animosidade
dos genitores como óbice à guarda compartilhada

SP175423 CAROLINE AOKI - SP329959 AGRAVADO: K P ADVOGADOS:


CLITO FORNACIARI JÚNIOR E OUTRO (S) - SP040564 FERNANDO
HELLMEISTER CLITO FORNACIARI - SP194740 AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL. PROCESSO CIVIL (CPC/1973). AÇÃO DE GUARDA COMPAR-
TILHADA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO
DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. ORIENTAÇÃO PRE-
TORIANA SEDIMENTADA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO COM-
PROVADO. AGRAVO CONHECIDO PARA, DESDE LOGO, NÃO CONHE-
CER DO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO Vistos etc. Trata-se de agravo
interposto por R V B contra inadmissão, na origem, de recurso espe-
cial fundamentado nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105 da
Constituição Federal, manejado contra acórdão do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo assim ementado (e-STJ Fl. 897): Apelação cí-
vel - Ação de guarda compartilhada - Sentença que fixou a guarda
compartilha - Beligerância e falta de consenso - Impossibilidade do
exercício duplo da guarda - Laudo pericial desfavorável ao modelo de
guarda compartilha - Necessidade de mediação com assistência de
profissional técnico - Provimento parcial do recurso da ré para modi-
ficar o regime de guarda - Negado provimento ao recurso do autor
para determinar a escola da criança próximo à residência da mãe -
Criança tem direito de estudar em escola mais próxima a sua residên-
cia - Comunicação do presente julgamento no agravo de instrumento
interposto pelo genitor - Recurso da ré provido em parte e do autor
desprovido (Voto 4147) Opostos embargos de declaração, foram re-
jeitados (e-STJ Fl. 917/920). Nas razões de seu recurso especial, sus-
tenta a parte agravante a vulneração ao art. 1.584, II, § 2º, CC/02, bem
como dissídio jurisprudencial. Insurge-se contra a conversão da guar-
da compartilhada em guarda unilateral, ainda que não haja acordo
entre os genitores do filho menor. Contrarrazões à e-STJ Fls. 955/966.
Parecer do MPF à e-STJ Fls. 1036/1039, opinando pelo desprovimento
do agravo. É o relatório. Passo a decidir. A irresignação não merece
prosperar. Com efeito, não obstante deduza o agravante que a regra
geral da guarda implica a possibilidade de seu compartilhamento, ve-
rifico que o Tribunal de origem assim se manifestou quanto à hipóte-
se (e-STJ Fls. 900/902): Diante destes fundamentos inegável que na
concessão da guarda ou na regulamentação de visitas, há que se res-
peitar o direito de pais ou avós, no entanto, não se pode perder de
vista que a figura principal a ser tutelada é a criança ou o adolescente,
que será colocada na guarda de um ou de ambos, e certamente, so-
frerá as consequências da decisão. Na hipótese dos autos, não vejo
como prevalecer a guarda compartilha. Inquestionável que o modelo
da guarda compartilha tem o propósito de manter ambos os pais no

96

indag indic_gabriella.indb 96 22/07/2021 09:53:13


flávia lee cardoso dias

exercício direto do poder familiar, permitindo-se que tomem as deci-


sões em conjunto. O modelo afasta-se da guarda tradicional, na qual,
ainda que preservado o poder familiar dos pais, àquele que não se
encontra no exercício da guarda acaba sendo alijado de participar das
decisões do cotidiano da criança. Também é sobejamente sabido que
a guarda exercida com exclusividade por um dos pais é a que mais se
afasta da situação da criança que existia antes do rompimento da vida
em comum. A convivência junto com os pais. Contudo, para o exercí-
cio da guarda compartilhada necessário se faz que haja consenso en-
tre os guardiães. É preciso, acima de tudo, tolerância, cooperação e
respeito entre os pais, visando, sempre, o bem estar dos filhos. (...) E
é, exatamente, a falta dessa boa convivência, para dizer o menos,
como afirma o autor do livro “pouco beligerante” que não se verifica
na hipótese destes autos. As divergências dos pais estão acirradas.
Não existe consenso nem mesmo com relação a escola que a criança
deva frequentar, ainda que todas as escolas aparentemente sejam
boas. A presente ação já se encontra no seu quarto volume. No ano
passado a matrícula da criança na escola foi realizada por força deci-
são judicial. O problema repete-se neste ano. Existe novo agravo de
instrumento. O |ano letivo está por acabar e a criança não sabe ainda
onde vai estudar. O pai quer que vá para uma escola e a mãe para
outra. O estudo psicológico não mostra ser a guarda compartilhada a
melhor opção, ao menos, por enquanto. A perita judicial indica que as
partes estão na construção de um caminho para a guarda comparti-
lha, mas, existe necessidade de mediação com o acompanhamento
de uma assistência por um profissional técnico (fls.376). (...) Existe um
descompasso entre os entendimentos das partes nas questões de in-
teresse filha. São posições inconciliáveis por intransigência, posto que
partem de valores e perspectivas diferentes. A psicóloga, perita judi-
cial, percebeu na criança a preocupação na manutenção do bom diá-
logo dos pais, colocando-se muitas vezes como o “fiel da balança”, ou
seja, aquela que levará o equilíbrio entre os dois lados, acomodando-
se em alguma situação para que não haja mais conflito, o que não é
saudável ao seu desenvolvimento. (...) Assim, é presente a situação
desfavorável à menor, que vem apresentando sinais de angústia. Fu-
tura é a possibilidade de diálogo e entendimento entre os genitores.
O provimento jurisdicional deve atender à necessidade imediata da
menor, tratada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como pes-
soa em processo de desenvolvimento, assim suas necessidades de-
vem ter primazia e atendimento imediato, pena de não surtir o efei-
to necessário e desejado. (grifos nossos) Assim, elidir as conclusões
do aresto impugnado, tendo em vista que o TJ/SP expressamente

97

indag indic_gabriella.indb 97 22/07/2021 09:53:13


entendimentos do superior tribunal de justiça sobre a beligerância e animosidade
dos genitores como óbice à guarda compartilhada

consignou que a guarda compartilhada estaria em contrariedade aos


interesses do menor, e acatar a tese do agravante para o deferimento
de tal medida, demandaria o revolvimento do conjunto fático-proba-
tório dos autos, providência vedada nesta sede especial a teor da
Súmula 07/STJ. Frise-se que o referido entendimento encontra-se em
harmonia com a jurisprudência desta Corte (Súmula 83/STJ), não sen-
do absoluta a regra da guarda compartilhada quando não atendido o
princípio do melhor interesse do menor. A propósito: CIVIL E PROCES-
SUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. GUARDA COMPARTILHADA.
DISSENSO ENTRE OS PAIS. POSSIBILIDADE. 1. A guarda compartilha-
da deve ser buscada no exercício do poder familiar entre pais separa-
dos, mesmo que demande deles reestruturações, concessões e ade-
quações diversas para que os filhos possam usufruir, durante a
formação, do ideal psicológico de duplo referencial (precedente).
2. Em atenção ao melhor interesse do menor, mesmo na ausência de
consenso dos pais, a guarda compartilhada deve ser aplicada, caben-
do ao Judiciário a imposição das atribuições de cada um. Contudo,
essa regra cede quando os desentendimentos dos pais ultrapassarem
o mero dissenso, podendo resvalar, em razão da imaturidade de am-
bos e da atenção aos próprios interesses antes dos do menor, em
prejuízo de sua formação e saudável desenvolvimento (art. 1.586 do
CC/2002). 3. Tratando o direito de família de aspectos que envolvem
sentimentos profundos e muitas vezes desarmoniosos, deve-se cui-
dar da aplicação das teses ao caso concreto, pois não pode haver
solução estanque já que as questões demandam flexibilidade e ade-
quação à hipótese concreta apresentada para solução judicial. 4. Re-
curso especial conhecido e desprovido. (REsp 1417868/MG, Rel. Mi-
nistro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em
10/05/2016, DJe 10/06/2016) - g.n. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO
EM RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. GUARDA COMPARTILHADA. ME-
LHOR INTERESSE DO MENOR. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência
do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs
2 e 3/STJ). 2. A implementação da guarda compartilhada não se sujei-
ta à transigência dos genitores. 3. As peculiariedades do caso concre-
to inviabilizam a implementação da guarda compartilhada em virtude
da realização do princípio do melhor interesse da menor, que obsta-
culiza, a princípio, sua efetivação. 4. A verificação da procedência dos
argumentos expendidos no recurso especial exigiria, por parte desta
Corte, o reexame de matéria fática, o que é vedado pela Súmula
nº 7/STJ. 5. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp n. 879.361/DF,
Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA,

98

indag indic_gabriella.indb 98 22/07/2021 09:53:13


flávia lee cardoso dias

julgado em 13/3/2018, DJe 22/3/2018) - g.n. Ademais, a par dos refe-


ridos óbices, constato que o dissídio jurisprudencial não foi compro-
vado conforme estabelecido nos arts. 541, parágrafo único, do CPC/73
(art. 1.029, § 1º, do CPC/2015), e 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ. A divergên-
cia jurisprudencial deve ser demonstrada com a indicação das cir-
cunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados.
No caso concreto, o recorrente aponta julgado que não guarda simi-
litude fática com o caso dos autos, mormente no que tange à guarda
compartilhada e ao melhor interesse da criança. Outrossim, não se
procedeu ao devido cotejo analítico. Destarte, inviável a pretensão do
recorrente. Advirta-se que eventual recurso interposto contra este
decisum estará sujeito às normas do CPC/2015 (cf. Enunciado Admi-
nistrativo n. 3/STJ). Ante o exposto, conheço do agravo para não co-
nhecer do recurso especial. Intimem-se. Brasília (DF), 30 de maio de
2018. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO Relator (STJ -
AREsp: 1060732 SP 2017/0040015-6, Relator: Ministro PAULO DE
TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 04/06/2018) (STJ, 2018).

Do julgado acima, percebe-se também leve inclinação do Su-


perior Tribunal de Justiça no sentido de entender como inviável a
aplicação e o exercício da guarda compartilhada em casos em que
os genitores não possuem capacidade de diálogo suficiente para
gerirem em conjunto a rotina dos filhos, o que vem sendo obser-
vado nas últimas decisões proferidas.

4 CONCLUSÃO

O que se mostra como tendência não só de iniciativa do STJ, mas


também dos próprios Tribunais Estaduais, é o reconhecimento da
guarda compartilhada como o melhor modo para proteção do con-
vívio e afeto entre pais e filhos, permanecendo a homenagem à dou-
trina e a legislações sobre o tema. Contudo, a construção jurispru-
dencial moderna inclina-se à verificação cada mais cautelosa acerca
da dinâmica familiar e sobre as vulnerabilidades nela presentes.
As características peculiares de cada núcleo familiar podem
apontar para a inviabilidade e temeridade da guarda compartilha-
da, mediante existência de beligerância e animosidades instranspo-
níveis entre os genitores, razões que se mostram, por si só, suficien-
tes para que não seja feita a determinação do compartilhamento,
99

indag indic_gabriella.indb 99 22/07/2021 09:53:13


entendimentos do superior tribunal de justiça sobre a beligerância e animosidade
dos genitores como óbice à guarda compartilhada

no intuito constante de observância aos princípios da proteção in-


tegral e do melhor interesse dos menores.
Em conclusão, pela análise de acórdãos mais recentes profe-
ridos pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça, acima transcritos,
apurou-se que a guarda compartilhada, sem dúvidas, é o ideal a
ser perseguido. Todavia, essa configuração não pode ser imposta
em detrimento do bem estar dos próprios filhos, pelo que se torna
consequência natural sua impossibilidade, quando as relações pes-
soais e o contexto de sentimentos das partes envolvidas assim o
demonstrem, circunstâncias nas quais será preconizada a aplicação
da já famigerada guarda unilateral, ainda que momentaneamente.

5 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 24 mai. 2021.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014. Altera os arts. 1.583, 1.584,
1.585 e 1.634 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para
estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre
sua aplicação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13058.htm>. Acesso em: Acesso em: 22 mai. 2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ, AgInt no REsp 1808964/SP, Rel. Min.
Moura Ribeiro, Terceira Turma, Julgado em: 09/03/2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ, AREsp: 1060732 SP 2017/0040015-
6, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Data de Publicação: DJ
04/06/2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ, REsp: 1428596 RS 2013/0376172-9,
Relator(a): Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 03/06/2014, T3 – Ter-
ceira Turma, Data de Publicação: DJe 25/06/2014.
Guarda compartilhada foi consolidada no STJ antes de virar lei.
STJ, 2017. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comu-
nicacao/Noticias-antigas/2017/2017-06-04_08-00_Guarda-compartilhada-foi-
consolidada-no-STJ-antes-de-virar-lei.aspx>. Acesso em: 24 mai. 2021.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito
de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 134.

100

indag indic_gabriella.indb 100 22/07/2021 09:53:13


NUANCES DA AÇÃO NEGATÓRIA
DE PATERNIDADE QUANDO
HÁ SOCIOAFETIVIDADE
E POSSIBILIDADE DE
MULTIPARENTALIDADE
Nathália de Souza Pires1

1. INTRODUÇÃO

Diante de um dos artigos mais reprováveis do Código Civil de


2002, de nº 1.601, é justamente o dispositivo legal que trata da
ação negatória de paternidade e de sua imprescritibilidade, eis
que simplesmente ignora a possibilidade de paternidade socioa-
fetiva (TARTUCE, 2020).
A ação negatória de paternidade pode culminar em duas situa-
ções: na confirmação da ruptura da paternidade, ou na declaração
de existência da socioafetividade paterno-filial.
Na hipótese de reconhecimento da paternidade socioafetiva,
vislumbra-se a possibilidade de inclusão do pai biológico no re-
gistro de nascimento, caso haja interesse de aproximação das par-
tes, existindo, a partir desse momento, a multiparentalidade, por-
quanto estarão presentes na vida do filho tanto o pai socioafetivo,
quanto o pai biológico.
O presente artigo pretende, assim, destacar alguns pontos que
merecem atenção, tanto para quem propõe a ação negatória de

1
Advogada graduada pela PUC MINAS – Unidade Contagem. Presidente da Comissão
de Direito Internacional da OAB/MG 83ª Subseção Contagem. Membro da Comissão
de Direito de Famílias e Sucessões da OAB/MG 83ª Subseção Contagem. E-mail: na-
thaliapires@nonatopires.com.br.

indag indic_gabriella.indb 101 22/07/2021 09:53:13


nuances da ação negatória de paternidade quando
há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade

paternidade, quanto para quem figura como parte ré da referida


ação, expondo elementos bastantes para que as partes litigantes
estejam municiadas do devido conhecimento para lograr êxito no
intento em comento.
Para tanto, serão apontadas quais as hipóteses em que a so-
cioafetividade pode ser acolhida como vínculo paterno-filial, bem
como sob quais circunstâncias a paternidade registral pode ser
mitigada, à luz dos julgados dos tribunais pátrios.
Por derradeiro, reconhecida a paternidade socioafetiva do pai
registral, atenta-se para a possibilidade do reconhecimento de
eventual multiparentalidade, seja pela via judicial ou extrajudicial,
propondo uma reflexão acerca das ramificações da relação pater-
no-filial, bem como de suas implicações.

2 DAS NUANCES ESSENCIAIS À AÇÃO NEGATÓRIA DE


PATERNIDADE

Quem pretende ingressar com a ação negatória de paternidade


deve estar atento a diversas questões. Compondo a fase instru-
tória, será realizado o teste de DNA. Sendo rechaçado o vínculo
biológico, passa-se à apuração da existência do vínculo socioafe-
tivo, simultaneamente, se for o caso, apura-se se houve vício de
consentimento no ato do registro do filho.
Basicamente esses são os pontos que serão ventilados durante
a marcha processual, cabendo às partes alegá-los, assim como
devem comprová-los sempre em momento oportuno, sob pena
de preclusão do direito de fazê-lo, nos termos do art. 223 do CPC
(BRASIL, 2015).

2.1 Do vício de consentimento

Caso o pai registral tenha sido alvo de alguns dos elementos


que caracterizam o vício de consentimento, é primordial a realiza-
ção de prova robusta, dado que meros indícios de prova não são
suficientemente capazes de demonstrar a existência cabal de vício
de consentimento.

102

indag indic_gabriella.indb 102 22/07/2021 09:53:13


nathália de souza pires

Acerca da prova do vício de consentimento e da socioafeti-


vidade, apresenta-se o entendimento do TJMG, na SEGUNDA
CÂMARA CÍVEL, sob relatoria do Des. Afrânio Vilela:
EMENTA APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE -
REGISTRO CIVIL - NULIDADE - VÍCIO DE CONSENTIMENTO - COM-
PROVAÇÃO - AUSÊNCIA - EXISTÊNCIA DE VÍNCULO SÓCIOAFETIVO
- IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO – SENTENÇA MANTIDA.

Ausente prova quanto ao suposto vício existente quando da


assunção da paternidade da menor, incabível o acolhimen-
to do pedido de nulidade da declaração exposta no registro
de nascimento, mormente quando comprovado o vínculo so-
cioafetivo estabelecido ao longo de vários anos (TJMG - Apela-
ção Cível 1.0534.12.001353-5/001, Relator(a): Des.(a) Afrânio Vilela,
2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 12/11/2014, publicação da súmula
em 26/11/2014) (MINAS GERAIS, 2014) (grifou-se).

Além da prova ROBUSTA do vício de consentimento, para re-


chaçar a paternidade registral, deve ser comprovada a ausência
de socioafetividade, pois uma vez comprovada a socioafetividade,
presente está o elemento configurador do laço paterno-filial ab-
soluto, em atendimento ao melhor interesse da filiação.
Observe que na expressão acima houve alteração de criança
para filiação, propositalmente, visto que a prova da socioafetivida-
de pode se dar a qualquer tempo, sendo o estado de filiação con-
solidado inclusive após a maioridade, situação em que se prioriza
impreterivelmente a manutenção da identidade de filiação. Isso
se dá, ainda que contra a vontade do pai registral, considerando a
função constitucional atribuída ao Estado para tutelar a entidade
familiar de qualquer natureza, sendo inegável que a filiação socio-
afetiva goza de proteção especial do ordenamento jurídico com
um todo (TARTUCE, 2020).
Portanto, a socioafetividade paterno-filial consolidada sobre-
põe-se à existência de vício de consentimento, justamente para
proteger toda a construção da identidade familiar do filho, aliada
à definição de sua personalidade, concedendo especial destaque
às relações cunhadas pelo afeto.
103

indag indic_gabriella.indb 103 22/07/2021 09:53:13


nuances da ação negatória de paternidade quando
há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade

2.2 Da impossibilidade de aplicação dos efeitos da revelia

Insta salientar que o direito à filiação é um direito indisponível,


portanto, para a ação negatória de paternidade, não há que se fa-
lar em audiência de conciliação, porque o filho não pode transigir
acerca deste direito, independentemente de maioridade ou meno-
ridade. A filiação, tanto socioafetiva, quanto biológica, é um direito
indisponível, razão pela qual não há que se falar em sujeição do
filho aos efeitos da revelia, nos termos do art. 345, inciso II do CPC,
in verbis: “A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se:
II - o litígio versar sobre direitos indisponíveis” (BRASIL, 2015).
A impossibilidade de aplicação dos efeitos da revelia coaduna-se
ao entendimento da 5ª Câmara Cível do TJMG; ipsis litteris:
EMENTA: APEALAÇÃO CÍVEL - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE
- REVELIA - JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE - IMPOSSIBILIDADE
- DIREITO INDISPONÍVEL.

- Os efeitos da revelia não incidem nas ações de investigação de


paternidade não contestadas, porquanto o estado de filiação se en-
quadra na modalidade de direito indisponível, aplicando-se o disposto
no art. 320, II, do CPC. V.V - A produção da perícia genética é recomen-
dada pelos princípios da busca da verdade real e da economia proces-
sual. - Para se concluir pela procedência da negatória de paternidade,
necessário esteja demonstrado tanto a ausência de vínculo biológico
de paternidade quanto de vínculo afetivo, entre os supostos pai e filho.
- Negar provimento ao recurso, vencido o revisor (TJMG - Apelação
Cível 1.0718.10.000276-2/001, Relator(a): Des.(a) Luís Carlos Gambogi,
5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/02/2015, publicação da súmula
em 10/03/2015) (MINAS GERAIS, 2015) (grifou-se).

O entendimento de que não se aplicam os efeitos da revelia


por se tratar de direito INDISPONÍVEL converge à cognição da
1ª Câmara Cível do TJMG; infra:
AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - NOMEAÇÃO DE CURADOR
ESPECIAL - AUSÊNCIA - JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE - DI-
REITO INDISPONÍVEL - IMPOSSIBILIDADE. - O artigo 9º, I, do C.P.C.,
impõe a nomeação de curador especial ao incapaz que tiver os seus
interesses em colisão com os interesses do seu representante legal,
não se tratando de faculdade do julgador, mas de dever que lhe é

104

indag indic_gabriella.indb 104 22/07/2021 09:53:13


nathália de souza pires

imposto, notadamente diante da existência de real prejuízo aos interes-


ses do menor. - Se o direito à paternidade é um direito indisponível,
a revelia da requerida não induz o efeito mencionado no artigo
319 do C.P.C., de tornar verdadeiros os fatos afirmados pelo autor,
nos precisos termos do artigo 320, II, do mesmo Diploma Legal,
e, consequentemente, não autoriza o julgamento antecipado da
lide (TJMG - Apelação Cível 1.0183.08.143174-8/001, Relator(a): Des.(a)
Eduardo Andrade, 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 31/03/2009, pu-
blicação da súmula em 08/05/2009) (MINAS GERAIS, 2009) (grifou-se).

Perceba que o entendimento da impossibilidade de sujeição


dos efeitos da revelia já era aplicado sob a égide do Código de
Processo Civil ainda de 1973 (BRASIL, 1973).
Portanto, ainda que o filho não apresente a contestação em
tempo hábil, jamais será revel, vez que seu direito à filiação, seja
biológica ou socioafetiva, é indisponível, nos termos do art. 27 do
Estatuto da Criança e do Adolescente: trata-se de um direito per-
sonalíssimo (BRASIL, 1990).

2.3 Das provas com ênfase no estudo técnico

Os meios de prova para a demonstração efetiva da socioafeti-


vidade são diversos, dentre os quais compreendem conversas via
e-mail, chats das redes sociais, fotos de festas de família, cartões,
cartas, fotos de viagens, vídeos, ou seja, tudo que puder compro-
var o convívio paterno-filial, de forma ampla.
O estudo técnico realizado nos autos da ação negatória de
paternidade também é um aliado para fins de comprovação ou
afastamento da socioafetividade. Quando de sua realização, serão
ouvidos pai, filho e genitora.
O relatório do estudo técnico deve se atentar aos quesitos for-
mulados pelas partes. Por isso, a formulação dos quesitos de for-
ma técnica e vinculada aos documentos juntados ao processo é
de suma importância, quanto mais detalhado e completo, melhor.
A diligência de formular os quesitos é uma atribuição do advo-
gado, em conjunto com a parte assistida. Nenhuma das perguntas
deve deixar margem para respostas dissonantes do que a parte
105

indag indic_gabriella.indb 105 22/07/2021 09:53:13


nuances da ação negatória de paternidade quando
há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade

almeja para seu intento, seja para confirmar ou rechaçar a socio-


afetividade.
Os quesitos do estudo técnico podem ser respondidos em
conjunto ou individualmente, desde que todos, sem exceção, se-
jam respondidos. Não há limite de quesitos, serão formulados e
respondidos quesitos tantos quanto bastem para demonstração
cabal da confirmação ou do afastamento da socioafetividade, nos
termos do art. 473, inciso IV, do CPC (BRASIL, 2015).
O prazo para apresentação dos quesitos é de 15 dias, contados
da data que o magistrado determinou a realização do estudo téc-
nico, nos termos do art. 465, §1º, inciso III, do CPC (BRASIL, 2015).
As partes podem ser intimadas do estudo técnico via contato
telefônico, postal ou por oficial de justiça. Primando pela cele-
ridade processual, comumente o agendamento da entrevista do
estudo técnico é feito por telefone.
Quanto à junta do relatório do estudo técnico no processo,
esta não pode ser gravada com sigilo. Caso o técnico do Centro de
Psicologia assim o faça, é dever do advogado peticionar, solicitando
a disponibilização do relatório para todas as partes, em prol da
publicidade dos atos processuais, em consonância com princípio
do devido processo legal e da segurança jurídica, de acordo com
art. 477, §1º, do CPC (BRASIL, 2015).

3 DA SOCIOAFETIVIDADE E DA MULTIPARENTALIDADE

Necessário enfatizar que não existe hierarquia, de nenhuma


espécie, entre as formas de filiação, seja socioafetiva ou biológi-
ca, corolário do princípio constitucional da igualdade, bem como
do art. 1.953 do Código Civil: “o parentesco é natural ou civil,
conforme resulte da consanguinidade ou outra origem” (BRASIL,
2002).
A ausência de hierarquia entre a filiação socioafetiva e biológi-
ca também é confirmada pelo art. 1.596 do Código Civil: “os filhos
havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os
mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 2002).
106

indag indic_gabriella.indb 106 22/07/2021 09:53:13


nathália de souza pires

Passa-se a apresentar as formas de reconhecimento da socio-


afetividade, tratando também da multiparentalidade e de suas
nuances.

3.1 Do reconhecimento da socioafetividade pela via judicial

Importante reportar ao concepto o raciocínio do tópico 2.1 Do


vício de consentimento, em que já houve a exposição de que mes-
mo sendo comprovado o vício de consentimento, havendo socio-
afetividade paterno filial, não há que se falar em possibilidade de
alteração do registro civil de nascimento, devendo ser mantida a
filiação socioafetiva em detrimento ao vício.
Nesta oportunidade, ratifica-se o referido entendimento, me-
diante o acórdão da Terceira Turma do STJ, sob relatoria da Ministra
Nancy Andrighi:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CI-
VIL. OMISSÕES E CONTRADIÇÕES. INOCORRÊNCIA. EMENDA À INI-
CIAL APÓS CITAÇÃO. POSSIBILIDADE, DESDE QUE INEXISTENTE AL-
TERAÇÃO DO PEDIDO OU DA CAUSA DE PEDIR. ADMISSIBILIDADE
DE SIMPLES MODIFICAÇÃO DO NOMEN JURIS DA AÇÃO E DO FUN-
DAMENTO LEGAL. OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DO CONTRADITÓRIO,
COM A POSSIBILIDADE DE ADITAMENTO À CONTESTAÇÃO. REGIS-
TRO CIVIL DE FILHO COM A CIÊNCIA DE QUE INEXISTIA VÍNCULO
BIOLÓGICO. ATO VOLUNTÁRIO E CONSCIENTE. REGISTRO IMODIFI-
CÁVEL. AUSÊNCIA DE ERRO OU DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. RE-
GISTRO CIVIL DE FILHA SOB A CONVICÇÃO DE QUE EXISTIA VÍNCULO
BIOLÓGICO. CONFIGURAÇÃO DE ERRO SUBSTANCIAL. REGISTRO
IMODIFICÁVEL, TODAVIA, DIANTE DA CONFIGURAÇÃO DE RELAÇÃO
PATERNO-FILIAL SOCIOAFETIVA. RELAÇÃO AMOROSA E AFETUOSA.
CONVIVÊNCIA PÚBLICA E DURADOURA POR LONGO PERÍODO.

1- Ação distribuída em 11/03/2004. Recurso especial interposto em


27/09/2013 e atribuídos à Relatora em 25/08/2016.

2- Os propósitos recursais consistem em definir se a ação de reti-


ficação de registro civil deverá ser extinta sem resolução de mérito
e, ainda, se estão presentes os vícios que autorizam a retificação do
registro civil dos dois filhos diante do reconhecimento da paternidade
inicialmente realizado pelo pai registral.

107

indag indic_gabriella.indb 107 22/07/2021 09:53:13


nuances da ação negatória de paternidade quando
há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade

3- Ausentes os vícios de omissão e de contradição elencados no


art. 535, II, do CPC/73, e tendo o acórdão recorrido enfrentado todas
as questões relevantes para o desfecho da controvérsia, não há que
se falar em negativa de prestação jurisdicional, nem tampouco em
vício de fundamentação na decisão judicial.

4- É admissível a determinação de emenda à petição inicial, mesmo


após a citação do réu e a apresentação de defesa, quando não houver
alteração no pedido ou na causa de pedir. Precedentes.

5- A mera retificação do nomen juris da ação judicial e a alteração do


fundamento legal em que se assenta a pretensão não implicam em
modificação das causas de pedir remota ou próxima, de modo que
é válida a determinação de emenda à inicial quando não são acres-
centadas à petição inicial novos fatos ou novos fundamentos jurídi-
cos da pretensão, inclusive porque observado o contraditório com a
possibilidade de aditamento à contestação inicialmente apresentada
pelos réus.

6- A ciência prévia e inequívoca acerca da inexistência de vínculo bio-


lógico entre o pai e filho impede a modificação posterior do registro
civil do menor, por se tratar de ato realizado de forma voluntária,
livre e consciente, inexistente qualquer espécie de erro ou de vício de
consentimento apto a macular a declaração de vontade inicialmente
manifestada. Inteligência do art. 1.604 do CC/2002.

7- O registro civil de nascimento de filha realizado com a firme


convicção de que existia vínculo biológico com o genitor, o que
posteriormente não se confirmou em exame de DNA, configura
erro substancial apto a, em tese, modificar o registro de nasci-
mento, desde que inexista paternidade socioafetiva, que prepon-
dera sobre a paternidade registral em atenção à adequada tutela
dos direitos da personalidade dos filhos.

8- Hipótese em que, a despeito do erro por ocasião do registro,


houve a suficiente demonstração de que o genitor e a filha man-
tiveram relação afetuosa e amorosa, convivendo, em ambiente
familiar, por longo período de tempo, inviabilizando a pretendi-
da modificação do registro de nascimento.

9- Recurso especial conhecido e parcialmente provido (REsp 1698716/


GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em
11/09/2018, DJe 13/09/2018) (BRASIL, 2018) (grifou-se).

108

indag indic_gabriella.indb 108 22/07/2021 09:53:13


nathália de souza pires

Note-se que houve o reconhecimento do vício de consenti-


mento, mas diante da confirmação da socioafetividade, houve
a mitigação da tese do erro, sendo enaltecida a tese da socio-
afetividade.
O assento de privilegiar a socioafetividade, em detrimento do
vício de consentimento, vem do entendimento de que, para além
da lesão sofrida pelo pai enganado pelo erro, sofrerá golpe ainda
maior o filho que em nada concorreu para ocasionar o vício de
consentimento. Este filho figura-se tão somente como uma vítima
da circunstância, motivo pelo qual jamais poderá ter subjugada
sua identidade paterno-filial, bem como seu sentimento de filho
em relação ao pai registral, calcado por anos a fio de relação de
afeto, tendo, para si, bem como para a sociedade, o reconheci-
mento somente do pai registral como figura paterna.
Em contraponto, não poderia faltar o posicionamento dos
tribunais pátrios, da hipótese em que não há vínculo biológico,
tampouco afetivo, pela primazia da verdade real. Rechaçando a
paternidade registral, em espeque foi o entendimento da Terceira
Turma do STJ, sob a relatoria do Ministro João Otávio Noronha,
quando do julgamento do Recurso Especial:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. NEGATIVA DE PATERNIDADE. PECULIA-
RIDADES DO CASO. VÍNCULO GENÉTICO AFASTADO POR EXAME DE
DNA E INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO AFETIVO. PRINCÍPIO DA VERDADE
REAL. PREVALÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO.

1. Se, à época da realização do registro de nascimento, a filiação foi


declarada tão somente com base nas afirmativas feitas pela genitora
do menor, que induziram o declarante a acreditar ser o pai da criança,
é possível questionar a paternidade em ação negatória, com base em
vício de consentimento.

2. Se o vínculo biológico foi afastado por prova genética (exame de


DNA) e, por depoimentos, comprovou-se a ausência de vínculo afe-
tivo entre o declarante e o menor, não há como manter filiação em
desacordo com a realidade.

3. Nas ações de estado, prevalece o princípio da verdade real, que


deve ser afastado apenas em circunstâncias particulares e especiais,
considerando-se o caso concreto.
109

indag indic_gabriella.indb 109 22/07/2021 09:53:13


nuances da ação negatória de paternidade quando
há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade

4. Recurso especial desprovido (REsp 1362557/DF, Rel. Ministra NANCY


ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TER-
CEIRA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe 09/12/2014) (BRASIL, 2014).

Judicialmente, restando afastado tanto o vínculo biológico,


quanto o vínculo afetivo, prima-se pelo princípio da verdade real,
oportunidade em que será anulado o registro de nascimento, sendo
excluído o pai registral do referido registro.

3.2 Quando é possível reconhecer a socioafetividade pela via


extrajudicial?

A partir do Provimento 63 de 2017, o CNJ - Conselho Nacio-


nal de Justiça permitiu o reconhecimento da socioafetividade pela
via extrajudicial, o qual sofreu algumas modificações com o Provi-
mento 83 de 2019, também do CNJ (CNJ, 2017).
Uma das principais alterações foi a limitação de idade para o
reconhecimento da socioafetividade. A partir de 2019, somente é
possível incluir a paternidade socioafetiva na via extrajudicial para
adolescentes acima de 12 anos, de acordo com art. 10 do Provi-
mento 63, alterado pelo Provimento 83 (CNJ, 2017).
Houve também a inclusão da alínea “a” no art. 10 do provi-
mento 63 do CNJ, por meio da qual exige-se a comprovação obje-
tiva de 3 critérios: tratamento, reputação e nome (CNJ, 2019).
A prova da afetividade é de incumbência de quem requer o
registro extrajudicial. Para tal comprovação, não há uma regra es-
pecífica. Pode-se comprovar por meio de dependente de plano
de saúde, residência na mesma unidade domiciliar, casamento ou
união estável com a genitora, fotos em momentos relevantes, de-
clarações de testemunhas. Ainda que não seja apresentada esta
documentação, é possível realizar a inclusão da socioafetividade,
desde que justificada a impossibilidade de fazê-lo, sendo ato dis-
cricionário do Oficial do Cartório, conforme art. 10-A, § 3º, do Pro-
vimento 83 do CNJ (CNJ, 2019).
O registro da socioafetividade pode ocorrer em cartório di-
verso daquele em que foi realizado o registro da pessoa natu-

110

indag indic_gabriella.indb 110 22/07/2021 09:53:13


nathália de souza pires

ral, devendo ser apresentada a certidão de nascimento original


do filho e os documentos de identificação do pai, exigência do
art. 11 do Provimento 63 do CNJ (CNJ, 2017). Em se tratando de
filhos menores de 18 anos, será exigido o consentimento do filho
para a inclusão da paternidade socioafetiva, sob a inteligência do
art. 11, §4º do Provimento 83 de CNJ (CNJ, 2019).
Desde 2019, há a exigência de que cartório encaminhe o pedido
de registro da socioafetividade para o Ministério Público, sendo
efetivado o registro da socioafetividade somente após parecer fa-
vorável e do parquet, nos termos do art. 11, § 9º do Provimento 83
de 2019 (CNJ, 2019).
Inegável se mostra o avanço com a possibilidade de reconhe-
cimento da socioafetividade pela via extrajudicial. Embora tenham
ocorrido algumas restrições a partir de 2019, os provimentos do
CNJ 63 e 83 trouxeram celeridade, diminuíram os custos, e repre-
sentam grande valia para o reconhecimento de situações fáticas
há muito existentes.

3.3 Casos em que é obrigatório o ingresso na justiça para o


reconhecimento da socioafetividade

Extrai-se da análise do Provimento 63, considerando-se as al-


terações do Provimento 83, que somente poderá acontecer o re-
conhecimento da socioafetividade na via judicial de crianças abaixo
de 12 anos. Sendo estas maiores de 12 anos, se houver mais de
2 pais ou mais de 2 mães, cabe a cognição do art. 14 do Provimen-
to 83 do CNJ (CNJ, 2019).
Também necessitam de prestação jurisdicional os casos em
que houver parecer desfavorável do Ministério Público acerca do
assento da socioafetividade, nos termos do art. 11, §9º do Provi-
mento 83 do CNJ (CNJ, 2019).

3.4 Da multiparentalidade

A paternidade socioafetiva, declarada ou não no registro de


nascimento, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação
111

indag indic_gabriella.indb 111 22/07/2021 09:53:13


nuances da ação negatória de paternidade quando
há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade

concomitante, baseado na origem biológica, mediante efeitos jurí-


dicos próprios; consoante entendimento firmado pelo julgamento
do Recurso Extraordinário 898.060, originário do Estado de Santa
Catarina, com repercussão geral (BRASIL, 2016).
A possibilidade de reconhecimento de outros vínculos, sejam
biológicos ou socioafetivos, é o que define a multiparentalidade,
propiciando o reconhecimento de vínculos parentais múltiplos
(TARTUCE, 2020).
Acerca da possibilidade de vínculo parentais múltiplos, vem à
baila o julgamento do reconhecimento da multiparentalidade em
um caso de adoção, julgado pela Quarta Turma do STJ, sob relato-
ria do Ministro Luís Felipe Salomão:
AGRAVO INTERNO E EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PROCESSUAL CI-
VIL E CIVIL.DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATER-
NIDADE DE FILHO QUE JÁ FORA ADOTADO PELOS TIOS MATERNOS.
INTEMPESTIVIDADE DOS EMBARGOS DECLARATÓRIOS. HOMOLO-
GAÇÃO DO PEDIDO DE DESISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE JULGAMENTO
EXTRA PETITA E DE INOVAÇÃO NA LIDE. POSSIBILIDADE JURÍDICA
RELATIVAMENTE À INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE RECONHECIDA
POR ESTA CORTE. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE JULGADA PRO-
CEDENTE.

MULTIPARENTALIDADE. POSSIBILIDADE.

1. Homologa-se a desistência dos segundos embargos de declaração


(fls. 1.881-1.893) pleiteada por JRM às fls. 1.899-1900, requerimento
decorrente da certidão de fl. 1.897, na qual atestado que o recurso foi
apresentado fora do prazo legal.

2. Este recurso especial foi distribuído por prevenção de Turma, em vir-


tude do REsp 220.623/SP, de relatoria do Ministro Fernando Gonçalves.
Naquele feito, foi afastada a pretensão de cancelamento do registro de
nascimento decorrente da adoção e reconhecida a possibilidade jurídi-
ca do pedido relativamente à investigatória e aos alimentos.

3. Não se verifica a ocorrência de julgamento extra petita, nem de


tema não prequestionado ou de inovação na lide no que se refere à
determinação de duplo registro no assento de nascimento. O autor
moveu, contra o agravante, investigação de paternidade e alimentos,
cumulando tal ação com “anulatória de paternidade e maternidade”

112

indag indic_gabriella.indb 112 22/07/2021 09:53:13


nathália de souza pires

em face de seus tios maternos/pais adotivos. O duplo registro decor-


re, simplesmente, da procedência do pedido formulado na ação de
investigação de paternidade e da improcedência do pedido de cance-
lamento do registro de adoção - valendo registrar que, no julgamento
do mencionado REsp 220.623/SP, já transitado em julgado, a Quar-
ta Turma concluiu pela possibilidade jurídica do pedido formulado
na investigatória, bem como pela impossibilidade jurídica quanto ao
cancelamento da adoção -, sendo perfeitamente possível ao magis-
trado julgar procedente apenas uma das demandas, sob pena de ter
de julgar procedentes ou improcedentes todos os pedidos conjunta-
mente, sem poder fazê-lo somente quanto a um deles. Além disso,
ao contrário do que afirma o agravante, em momento algum o autor
restringiu sua pretensão à “mera ciência da ancestralidade genética e
alimentos”, buscando, isto sim, desde a inicial, a inclusão do nome do
pai verdadeiro em seu registro de nascimento.

4. O fato de ter havido a adoção plena do autor não o impede


de forma alguma de ter reconhecida a verdade biológica quanto
a sua filiação. Isso porque “o art. 27 do ECA não deve alcançar
apenas aqueles que não foram adotados, porque jamais a inter-
pretação da lei pode dar ensanchas a decisões discriminatórias,
excludentes de direitos, de cunho marcadamente indisponível e
de caráter personalíssimo, sobre cujo exercício não pode recair ne-
nhuma restrição, como ocorre com o direito ao reconhecimento do
estado de filiação” (REsp 813.604/SC, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI,
Terceira Turma, DJ de 17.09.2007), processo no qual, a exemplo do
que se verifica nestes autos, não havia “vínculo anterior, com o pai
biológico, para ser rompido, simplesmente porque jamais existiu
tal ligação, notadamente, em momento anterior à adoção”. Nunca
constou do registro de nascimento do autor o nome do pai bioló-
gico e, no tocante à mãe biológica, que faleceu por complicação
do parto, única pessoa com quem havia vínculo prévio reconheci-
do, trata-se de tema que não foi sequer analisado no recurso espe-
cial, pois não apreciado pelas instâncias ordinárias.

5. A procedência do pedido de investigação de paternidade - o que


não é objeto de insurgência por ambas as partes - de filho que fora
adotado pelos tios maternos, com o pleito de novo assento, cons-
tando o nome do pai verdadeiro, implica o reconhecimento de todas
as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais daí advindas, sob
pena de admitir-se discriminação em relação à condição de adotado.

113

indag indic_gabriella.indb 113 22/07/2021 09:53:14


nuances da ação negatória de paternidade quando
há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade

6. Esse entendimento está em consonância com a orientação dada


pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a repercussão ge-
ral do tema no RE 898.060/SC, Relator Ministro Luiz Fux, DJe de
24/8/2017, preconizando que “a paternidade socioafetiva, declara-
da ou não em registro público, não impede o reconhecimento do
vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica,
com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimo-
niais”. Com efeito, a multiparentalidade é admitida tanto pelo STJ,
como pelo STF.

7. A tese defendida pelo agravante de que “aqui não se trata de coe-


xistência entre as paternidades biológica e socioafetiva”, reconhecida
pelo Supremo Tribunal Federal, o que impediria o reconhecimento
da multiparentalidade, revela-se, na verdade, contrária aos seus pró-
prios interesses. É inegável que, muito antes da filiação adotiva,
estava configurada também a filiação socioafetiva do autor para
com seus tios maternos/pais adotivos desde o nascimento, não
havendo qualquer razão que justifique interpretação diversa da-
quela dada pela Suprema Corte a respeito do tema. 8. O Direito
de Família vem evoluindo de modo significativo nos últimos tem-
pos, rompendo-se com décadas de tratamento discriminatório
dispensado tanto aos filhos havidos fora do casamento, como à
própria mulher, principalmente se envolvida grande desigualdade
social, como na espécie dos autos.

9. Diante das circunstâncias do caso concreto, inexiste qualquer


impedimento para o reconhecimento da multiparentalidade, sob
pena de punir o filho em detrimento do descaso de seu pai bio-
lógico por anos a fio. Se este não pode ser compelido a tratar o
autor como filho, deve ao menos arcar financeiramente com a
paternidade responsável em relação à prole que gerou.

10. Agravo interno não provido. Homologada a desistência dos em-


bargos de declaração intempestivos formulada às fls. 1.899-1.900
(AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp 1607056/SP, Rel. Ministro LUIS
FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/10/2019, DJe
24/10/2019) (BRASIL, 2019) (grifou-se).

A declaração da multiparentalidade pelos tribunais pátrios vem


sempre no sentido de velar pelo melhor interesse da filiação, com
um diferencial, no caso em comento, acerca do cuidado do acór-
dão em nivelar uma fenda de desigualdade social histórica com
114

indag indic_gabriella.indb 114 22/07/2021 09:53:14


nathália de souza pires

o condão de interromper a discriminação dispendida aos filhos


havidos fora do casamento. Fez-se, assim, possibilitando o reco-
nhecimento da multiparentalidade do vínculo biológico, contra a
vontade do pai, mesmo a criança tendo sido adotada pelos tios.
Logo, reconhecida a socioafetividade, não há nenhum óbice
para que o filho vindique sua ancestralidade biológica, confor-
me entendimento respaldado pelo Enunciado n. 29 do Congresso
Brasileiro do IBDFAM em 2019: “Em havendo o reconhecimento
da multiparentalidade, é possível a cumulação da parentalidade
socioafetiva e da biológica no registro civil” (IBDFAM, 2019).
Dessa forma, o reconhecimento do estado de filiação, além da
questão personalíssima de vínculos parentais, também está no
mundo jurídico para romper uma herança histórica de discrimi-
nação de filhos havidos fora do casamento, muitas vezes assim
aviltados pela precariedade da condição social da genitora.

4. CONCLUSÃO

O reconhecimento de múltiplos vínculos parentais privilegia o


afeto e o princípio da afetividade, tão intrínsecos às relações fami-
liares como um todo. Propiciar à condição de filho o direito de ser
e ter reconhecidas, para todos os fins, as relações multiparentais
afetivas e biológicas é fruto da vivacidade do Direito de Família.
A possibilidade jurídica da socioafetividade e da multiparen-
talidade vai além do íntimo personalíssimo da filiação em si, ser-
vindo, ainda, como instrumento de justiça social para reparar o
histórico aviltamento da dignidade filial havida fora do casamen-
to, reparando concomitantemente a discriminação de gênero das
genitoras, socialmente vulneráveis.
Ademais, há a reflexão de que o direito à família e à filiação
se sobrepõe a qualquer suposto sentimento de engano do pai
registral, em casos de vício ou erro no momento do registro, vez
que a relação de pai e filho, uma vez construída no íntimo, não é
possível se desfazer por simples ato judicial.
Por fim, o reconhecimento dos tribunais pátrios da multiparen-
talidade e socioafetividade no direito brasileiro, em detrimento do
115

indag indic_gabriella.indb 115 22/07/2021 09:53:14


nuances da ação negatória de paternidade quando
há socioafetividade e possibilidade de multiparentalidade

art. 1.601 do Código Civil, cumpre com os deveres constitucionais


relacionados aos princípios da dignidade da pessoa humana e da
família.

5 rEfeRÊNCIAS

BRASIL. Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível


em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm.>.
Acesso em: 07 mai. 2021.
BRASIL. Lei n. 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/
l13105.htm.> Acesso em: 07 mai. 2021.
BRASIL. Lei n. 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869impressao.htm.>.
Acesso em: 27 mai. 2021.
BRASIL. Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Ado-
lescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.>
Acesso em: 07 mai 2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno nos Embargos de
Declaração nos Embargos de Declaração no Recurso Especial n. 1607056/
SP, Relator (a) Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgamento em
15/10/2019, publicação da súmula em 24/10/2019.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1362557/DF, Rela-
tor (a) Ministra Nancy Andrighi, Relator p/ Acórdão Ministro João Otávio de
Noronha, Terceira Turma, julgamento em 07/10/2014, publicação da súmula em
09/12/2014
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1698716/GO, Rel. Mi-
nistra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgamento em 11/09/2018, publicação
da súmula em 13/09/2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 898.060,
originário do Estado de Santa Catarina, com repercussão geral, Rel. Minis-
tro Luiz Fux, julgamento em 21.09.2016, publicado no Informativo n. 840
do STF.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento n. 63 de 14 de agosto
de 2019. Altera a Seção II, que trata da Paternidade Socioafetiva, do Provi-
mento n. 63, de 14 de novembro de 2017 da Corregedoria Nacional de Justiça.
Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2975.>. Acesso em:
30 mai. 2021.

116

indag indic_gabriella.indb 116 22/07/2021 09:53:14


nathália de souza pires

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento n. 63 de 14 de novem-


bro de 2017. Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento
e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais,
e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e
maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emis-
são da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponí-
vel em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2525>. Acesso em: 30 mai. 2021.
IBDFAM. Instituto Brasileiro de Direito de Família. XII Congresso de Brasileiro
do IBDFAM. Enunciado n. 29. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/conheca
-o-ibdfam/enunciados-ibdfam.>. Acesso em: 31 mai. 2021.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Apelação Cível
n. 1.0183.08.143174-8/001. Relator(a): Des.(a) Eduardo Andrade, 1ª Câmara
Cível, julgamento em 31/03/2009, publicação da súmula em 08/05/2009.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Apelação Cível
n. 1.0534.12.001353-5/001. Relator(a): Des.(a) Afrânio Vilela, 2ª Câmara Cível,
julgamento em 12/11/2014, publicação da súmula em 26/11/2014.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Apelação Cível
n. 1.0718.10.000276-2/001. Relator(a): Des.(a) Luís Carlos Gambogi, 5ª Câ-
mara Cível, julgamento em 26/02/2015, publicação da súmula em 10/03/2015.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. vol. único. 10. ed. São Paulo: Método,
2020.

117

indag indic_gabriella.indb 117 22/07/2021 09:53:14


indag indic_gabriella.indb 118 22/07/2021 09:53:14
A REALIDADE “INVENTADA”
NAS REDES SOCIAIS VIRTUAIS
E A APLICAÇÃO DA TEORIA DA
APARÊNCIA NA DEFINIÇÃO DA
CAPACIDADE ECONÔMICO-
FINANCEIRA DO ALIMENTANTE
Renato Horta Rezende1

1. INTRODUÇÃO

A vida vem se tornando cada vez mais virtualizada, e as redes


sociais também se tornaram virtuais. Porém, estas foram se amoldan-
do aos objetivos dos provedores que exigem de seus usuários e, ao
mesmo tempo, fazem com que os próprios usuários passem a exigir
comportamentos que, por vezes, não retratam a realidade, com o fim
de tornar a vida de qualquer pessoa um verdadeiro espetáculo.
A adesão ao comportamento desejado é condição para que o
usuário possa se integrar a determinada comunidade, ainda que
para tanto seja necessário encenar uma vida que não é própria,
mas que seja espetaculosa. A ousadia em não apresentar a vida
como espetáculo pode custar ao usuário o seu descrédito frente à
comunidade em que se encontra inserido.
Todavia, a criação de uma realidade “inventada” em redes
sociais virtuais pode ter consequências jurídicas. Isso se dá quando
as informações capturadas forem utilizadas para demonstrar os

1
Mestre, especialista e bacharel em Direito. Advogado, professor universitário, escritor
e palestrante. Secretário-Geral da Comissão de Direito de Família da OABMG (2019-
2021). E-mail: profrenatohorta@gmail.com.

indag indic_gabriella.indb 119 22/07/2021 09:53:14


a realidade “inventada” nas redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da
aparência na definição da capacidade econômico-financeira do alimentante

sinais de riqueza exteriorizada, com a finalidade de apurar as possibi-


lidades econômico-financeiras do alimentante, em ação de alimentos.
Frente a esta possibilidade, cada dia mais presente nos processos
judiciais de alimentos, deve-se apurar se poderiam ser as informa-
ções colhidas das redes sociais virtuais suficientes para definir a capa-
cidade econômico-financeira do alimentante em prestar alimentos.
Diante do problema supramencionado, partiu-se da hipótese
segundo a qual, para o exame dos sinais exteriores, não podem
ser estes avaliados observando-se isoladamente as informações
contidas em redes sociais, devendo, para tanto, ser analisado todo
o arcabouço probatório, considerando-se que os conteúdos das
redes sociais virtuais podem ser resultados de mera ficção.
O desenvolvimento teórico e investigativo impresso na pesqui-
sa compreende o método científico hipotético-dedutivo, partindo
de concepções gerais e históricas em um desenvolvimento lógico
para o enfrentamento da hipótese apresentada, com a finalidade
de testá-la, propondo soluções ao problema levantado e, ainda,
opções especulativas a auxiliarem na ampliação da pesquisa sobre
o tema, cada vez mais presente no cotidiano forense.
A pesquisa foi construída em três partes. Na primeira seção,
perquiriu-se acerca da necessidade do usuário em performar sua
vida como meio de pertencimento, frente aos atuais arranjos de
comunicação e sociabilidade nas redes sociais virtuais. Na seção
seguinte, examinou-se a aplicação da Teoria da Aparência, na ve-
rificação da capacidade econômico-financeira do alimentante no
processo de alimentos. A seção final restou dedicada à averigua-
ção da possibilidade e limites da aplicação da Teoria da Aparência
e o conteúdo de redes sociais virtuais, como indício de prova da
possibilidade econômico-financeira do alimentante.
Para o desenvolvimento do trabalho, foi realizado levantamen-
to bibliográfico com consultas a livros nacionais e estrangeiros
especializados, assim como artigos científicos e textos normativos
pertinentes, sob o fito de contribuir para a elaboração do raciocí-
nio jurídico-científico sobre o tema voltado à resolução suficiente
do problema proposto.
120

indag indic_gabriella.indb 120 22/07/2021 09:53:14


renato horta rezende

2. A NECESSIDADE PERFORMÁTICA COMO MEIO DE


PERTENCIMENTO FRENTE AOS ATUAIS ARRANJOS DE
COMUNICAÇÃO E SOCIABILIDADE NAS REDES SOCIAIS
VIRTUAIS

A expressão rede social possui conotação ampla e está as-


sociada às relações interpessoais praticadas por pessoas, estan-
do presente em todas as relações humanas de forma atemporal
(FIGUEIRA, et al. 2019). Aguiar (2008) define redes sociais como
método de interação entre agentes com interesses bem definidos,
dirigido a provocar mudanças concretas individuais, coletivas ou
organizacionais, decorrentes de necessidades subjetivas e identi-
ficação de vontades.
Dentre as várias redes sociais em que nos encontramos co-
nectados, uma em especial compreende o recorte desta pesqui-
sa, as autodenominadas “redes socais virtuais”, estruturadas em
plataformas a gerenciar “relações assimétricas de comunicação,
desencadeadas em vários pontos simultaneamente, de fluxos
acentrados e não-regulares de informação (no tempo e no espa-
ço), nos quais não é possível identificar um ponto ‘gerador’ único”
(AGUIAR, 2008, p. 6).
Inicialmente, o desenvolvimento das redes sociais virtuais tinha
como intuito reunir mentes individuais para construção de uma fu-
tura inteligência coletiva, por meio da elaboração de uma cibercul-
tura reorganizada na forma de rizoma. Entretanto, especialmente
no início do século XXI, com a expansão dos sites de relacionamen-
tos, tais como Myspace, Orkut, Twitter, Facebook, Instagram, Tik-Tok,
Club House, dentre outros – estruturados para capturar, sistematizar
e moldar “tendências” de comportamento social –, tanto a forma
quanto o objetivo inicial foram completamente alterados. As gran-
des massas foram cooptadas, reagrupadas por meio de critérios
mercadológicos preestabelecidos, atomizando, convolando qual-
quer indivíduo, ora em consumidor real ou potencial, ora no pró-
prio produto a ser comercializado (SIBILIA, 2016).
Individual e subjetivamente, os usuários das redes sociais
virtuais aderiram rapidamente à mudança de paradigma. Este
121

indag indic_gabriella.indb 121 22/07/2021 09:53:14


a realidade “inventada” nas redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da
aparência na definição da capacidade econômico-financeira do alimentante

antes centrado na preservação da privacidade, e agora voltado à


grande exposição, algo, aliás, característico da sociedade líquida
pós-moderna, em que tanto os seus membros, como a própria
sociedade, estão em constantes mudanças, não se aguardando
o tempo necessário para consolidação das alterações precoce-
mente realizadas, ou mesmo os resultados e consequências ad-
vindas (BAUMAN, 2001).
A necessidade da exibição da intimidade e a relativização da
privacidade, apesar de não ser algo exclusivamente contemporâ-
neo, tornou-se ainda mais evidente com as redes sociais virtuais,
sendo observado com espanto aqueles que ousam não se integrar
ao rizoma, fora do contexto.
Em todo caso, a integralização individual exigida pela comu-
nidade não se dá apenas por meio de simples conexão, sendo
exigido que o usuário se comporte de forma proativa, perfor-
mando sua personalidade e encenando sua vida no espaço vir-
tual que deve parecer, ainda que de forma ficta, com a realida-
de, o que de fato acaba tornando-a realmente menos palpável
(SIBILIA, 2016).
Observa-se aqui o paradoxo da incerteza: a sociedade do
espetáculo exige, de forma proativa, a criação de uma intimi-
dade “inventada”, pois quanto mais o usuário conseguir retra-
tar de forma performática e espetacular uma vida, que de fato
é comum, maior pertencimento, autoridade, reconhecimento
alcançará.
Frente a esta condição, a necessidade de se mostrar hiper
proativo e valorizar-se excessivamente, que outrora poderia ser
considerada uma patologia, nos tempos atuais, é compreendi-
da como algo desejável, incentivado, esperado pela sociedade.
Esta continua a se adaptar incansavelmente na direção da me-
nor fronteira entre privacidade e publicidade, mesmo se con-
siderando as fictícias vidas apresentadas como se reais fossem
(DEBORD, 1997).
O mundo “real” fantasiado existente nas redes sociais virtuais
reflete bem a sociedade do espetáculo e da cultura da ostentação.

122

indag indic_gabriella.indb 122 22/07/2021 09:53:14


renato horta rezende

A internet se coloca como o palco ideal para a disseminação de


informações inverídicas, com a finalidade de se vender uma ima-
gem de originalidade, riqueza, bem-estar, sucesso, intelectualida-
de e felicidade cotidiana, visando alcançar credibilidade e auto-
ridade suficiente para que o indivíduo venha a ser aceito em sua
bolha social on-line e off-line (ALVES, 2020).
Reflete Sibila (2016) que, em uma sociedade abalada pelas
incertezas, característica do mundo pós-moderno, o deslumbre
frente ao simulacro e à espetacularização da vida afastou qualquer
certeza acerca da realidade e verdade, não sendo mais possível
confirmar, a prima facie, a consistência das informações isolada-
mente encontradas.
A reflexão da referida autora potencializa a indagação impul-
sionadora de sua obra, “O show do eu”, que é justamente saber
se o que hoje vemos retratado nas redes sociais virtuais seriam
realmente vidas ou meras obras de ficção.
Por sua vez, Alves (2017) argumenta que a vivência descrita
virtualmente não é meramente uma negação da realidade. Não
deve, pois, o fenômeno da virtualização da vida ser compreendido
como uma simples quimera, mas como algo em potencial, ainda
que carente de efetivação, que também carrega um sentido real
condicionante e necessário à vida material.
O apontamento explicita tanto a realidade “inventada” nas
redes sociais, como a necessidade atual das pessoas integra-
rem ativamente a construção de simulacros virtuais para que,
por meio desta, se insiram materialmente no mundo que hoje
as cerca.
Diante de tamanha incerteza do que é descrito nas redes so-
ciais virtuais, torna-se importante reconhecer a considerável pos-
sibilidade da existência de simulacro, embora possa, por ora, ser
baseado em fatos passíveis de serem confirmados – o que não
dispensa o exame holístico para se determinar até que ponto se
pode afirmar real, e até que ponto se pode afirmar fantasioso o
que é narrado nas redes sociais virtuais.
123

indag indic_gabriella.indb 123 22/07/2021 09:53:14


a realidade “inventada” nas redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da
aparência na definição da capacidade econômico-financeira do alimentante

3. OBRIGAÇÃO/DEVER2 ALIMENTAR E A TEORIA DA


APARÊNCIA

O ordenamento jurídico brasileiro, fundado no princípio da


dignidade da pessoa humana e no princípio da solidariedade,
ambos de cunho constitucional, atribui aos membros das famílias
obrigações/deveres alimentares recíprocos (PEREIRA, 2021).
Farias e Rosenvald (2020) destacam que antes mesmo de
constituir obrigação/dever jurídico, historicamente, a obriga-
ção alimentar decorrente do parentesco e conjugalidade pos-
sui fundamento ético e teológico, retratado inclusive em textos
sagrados.
No Direito das famílias3 brasileiro, os alimentos compreendem
prestações periódicas. Estas podem ser pagas em espécie, ou for-
necidas em utilidades diretamente por pessoa obrigada, em virtude
da parentalidade ou conjugalidade, destinadas a suprimir necessi-
dades básicas, ou a manter o status social anterior de pessoa atu-
almente incapaz de provê-los, parcial ou integralmente, de forma
temporária, ou definitiva, como se pode extrair do subtítulo III, do
título II, do livro IV, da parte especial do Código Civil (BRASIL, 2002).
Por sua vez, a extensão do quantum alimentar restou fixada
nos parágrafos que integram o art. 1.694 do Código Civil, sen-
do convencionada entre juristas a classificação dos alimentos em
côngruos ou naturais, em virtude de sua maior ou menor ampli-
tude (DIAS, 2020).
Todavia, as balizas para a fixação do quantum alimentar estão
definidas nos caputs dos arts. 1.694 e 1.695, ambos do Código Ci-
vil, que estabelece o binômio da necessidade de quem pretende
os alimentos e a possibilidade daquele que deve, ou está obriga-
do a pagar.

2
“A doutrina distingue obrigação e dever alimentar. Pais têm o dever de sustento para
com os filhos (CC, art. 1.566, IV). A origem é o poder familiar. A obrigação de pres-
tar alimentos surge do dever de mútua assistência nos vínculos de conjugalidade e
companheirismo e na solidariedade familiar entre os parentes tanto em linha reta
como entre colaterais” (DIAS, 2020, p. 24).
3
“O direito a alimentos pode originar-se de várias fontes, inclusive não reguladas pelo
direito de família” (CARVALHO, 2018, p. 767).

124

indag indic_gabriella.indb 124 22/07/2021 09:53:14


renato horta rezende

Vale destacar, na esteira do que pontua Dias (2021), que o bi-


nômio acima revelado deve ser lido à luz do critério axiológico da
proporcionalidade4, que, por sua vez, exige “bom senso, prudên-
cia, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e
valores afins, precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive
a de nível constitucional” (p. 842).
A inserção da regra de interpretação, apesar de não estar es-
tabelecida ipsis litteris no Código Civil, reduz, sem eliminar, a difi-
culdade da aplicação prática dos requisitos balizadores instituídos
nos art. 1.694 e 1.965, ambos do Código Civil.
Todavia, a dificuldade na fixação do quantum alimentar persis-
te, não em virtude da apuração fática e prática das necessidades
do alimentando, mas frente a estratagemas ou omissões das pos-
sibilidades financeiras daquele a quem é imposto o dever ou obri-
gação alimentar, com a finalidade de apequenar seus rendimentos
e, com isso, reduzir o valor a ser pago.
Diante da dualidade de interesses, receber alimentos e pa-
gá-los, conforme a necessidade e capacidade de cada polo da
relação, torna indispensável a aferição da real capacidade contri-
butiva do alimentante. Isso porque o ordenamento jurídico não
tem como finalidade o esgotamento econômico ou financeiro
do eventual devedor de alimentos, tampouco o sacrifício do fu-
turo credor, sob pena de trazer sofrimento a ambos (CARVALHO,
2018).
Frente a esta necessidade, Cardoso (2018) adverte que os tri-
bunais pátrios passaram a reconhecer sinais exteriores de rique-
zas, quando evidenciada a dificuldade de se apurar com maior
precisão a capacidade econômico-financeira do alimentante. Foi
assim aprovado, em junho de 2013, o enunciado nº 573 da VI Jor-
nada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, o qual dispõe
acerca da aplicabilidade da Teoria da Aparência para apuração da
possibilidade do alimentante (CJF, 2013).

4
Fernandes (2020) leciona que a proporcionalidade estaria assentada em três postu-
lados sequenciais quais sejam “(1) adequação, (2) necessidade e (3) proporcionalidade
em sentido estrito” (2020, p. 277).

125

indag indic_gabriella.indb 125 22/07/2021 09:53:14


a realidade “inventada” nas redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da
aparência na definição da capacidade econômico-financeira do alimentante

Vale destacar, desde logo, que a Teoria da Aparência tem lar-


ga aplicabilidade no Direito Civil brasileiro, não estando restrita
ao exame da capacidade econômico-financeira do alimentante
(FIUZA; CHAVINHO, 2015). Assim se observa dos arts. 309, 310,
1.211, §1º do 1.245, 1.561 e 1.817, todos do Código Civil, bem
como do enunciado nº 87, I Jornada de Direito Civil, e enunciado
nº 145 da III Jornada de Direito Civil, ambos do CJF.
Observa-se que, em todos os dispositivos listados, apenas a tí-
tulo exemplificativo, a Teoria da Aparência cria, transfere ou exclui
obrigações a pessoas até então aparentemente desvinculadas da
relação jurídica posta. Contudo, inexiste, entre os dispositivos elen-
cados, disposição geral a apontar contornos a sua aplicação, já que
ora se funda na proteção à boa-fé objetiva, ora na proteção contra
a publicização de atos que, de fato, são irregulares, concedendo
primazia à realidade fática e segurança jurídica às obrigações.
Quanto aos alimentos, a Teoria da Aparência tem previsão no
caput do art. 2º da Lei nº 5478, de 25 de julho de 1968, admitin-
do, para o pedido inaugural, apenas a alegação do rendimento
aproximado do alimentante, certamente diante dos sinais exte-
riores de riquezas.
Diante do dever/obrigação de que trata a Lei de Alimentos,
diferentemente do que foi apontado quanto aos demais artigos
acima listados, contidos no Código Civil, havendo reconhecimen-
to da filiação ou conjugalidade, a Teoria da Aparência não seria
utilizada com a finalidade de impor obrigações, tratando estas de
ato-fato jurídico decorrente do reconhecimento anterior. Todavia,
a aplicação da referida Teoria estaria restrita à apuração da possi-
bilidade financeira do alimentante em prestar alimentos ao neces-
sitado, já que a responsabilidade está legal e faticamente definida.
Assim, quanto aos alimentos, a aplicabilidade da Teoria da
Aparência está restrita à apuração da possibilidade financeira de
quem tem o dever/obrigação de prestá-los. Faz-se, portanto, di-
versa daquela dirigida à definição de responsabilidade, não se
mostrando, por conseguinte, suficientes os contornos gerais an-
teriormente apontados que definem a aplicação da Teoria, pois

126

indag indic_gabriella.indb 126 22/07/2021 09:53:14


renato horta rezende

estaria restrita à apuração do responsável fático que, quanto aos


alimentos, já está definida.
Restando bem definido o campo de aplicabilidade da Teoria
da Aparência nas ações judiciais que avaliam alimentos, pontua
Farias e Rosenvald (2020) bem como Dias (2021), que a examinada
Teoria terá ainda maior aplicabilidade quando o alimentante exer-
cer atividade como profissional liberal, autônomo ou empresário,
diante da grande dificuldade de apuração de suas possibilidades
econômico-financeiras, enquanto para celetistas ou estatutários
esta condição restaria mais distante.
Mesmo consciente da eventual dificuldade prática em deter-
minados casos concretos, a toda evidência, a Teoria da Aparência
não deve ser aplicada a todo e qualquer caso. Mostra-se indis-
pensável o exame casuístico, pois, mesmo aqueles que possuem
rendimentos variados, como profissionais liberais, autônomos e
empregados, não se pode partir do pressuposto que, invariavel-
mente, escondem valores, sob pena de se inverter a presunção ju-
rídica da boa-fé subjetiva, como, aliás, parece ser o entendimento
de Carvalho (2018), in verbis:
A demonstração da possibilidade do devedor, especialmente quando
se trata de profissional autônomo ou empresário, raramente condiz
com a realidade, ocorrendo, quase sempre, sonegação das informações
da totalidade dos ganhos, necessitando exame acurado da aparência
para obter um resultado satisfatório e próximo da realidade (p. 811).

Apesar do apontamento acima colacionado, observa-se que


nas relações privadas a boa-fé subjetiva é presumida, enquanto a
má-fé que viola a boa-fé objetiva exige provas de sua existência,
provas estas que devem ser robustas e associadas aos demais ele-
mentos que compõem o caderno probatório, não provenientes de
máximas de experiências particulares.
Afastando fundamentos arrimados em pré-concepções ou
presunções de má-fé, e, observando a prática exagerada das nar-
rativas encontradas em peças processuais, atento à dualidade de
interesses entre alimentantes e alimentados, Gonçalves (2012)
adverte quanto à fixação de alimentos provisórios fundados na
127

indag indic_gabriella.indb 127 22/07/2021 09:53:14


a realidade “inventada” nas redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da
aparência na definição da capacidade econômico-financeira do alimentante

Teoria da Aparência, aduzindo que “deve o magistrado, todavia,


agir com prudência e cautela, para evitar injustiças, tendo em
vista que o autor costuma, na inicial, exagerar os ganhos do ali-
mentante” (p. 471). A ausência de cautela, somada à presunção
de má-fé, poderia impor ao devedor ou obrigado a produção de
prova diabólica, de sorte a subverter a ordem jurídica.
Nesta esteira, forçoso se faz estabelecer que a aplicação da
Teoria da Aparência, na apuração da possibilidade financeira do
alimentante, exige a comprovação de determinado comporta-
mento praticado pelo devedor/obrigado contrário à boa-fé ob-
jetiva. Constitui-se juridicamente inconcebível a presunção de
má-fé fundada em máximas de experiências que somente po-
dem ser aplicadas de forma congruente com os fatos, quando da
valoração das provas, e não diante da sua completa inexistência
(MONTENEGRO FILHO, 2018).
Examinados os contornos da aplicação da Teoria da Aparên-
cia, observa-se que esta possui previsão legal, quando da fixação
de alimentos iniciais, e maior relevância quando da apuração das
possibilidades econômico-financeiras do alimentante, na fase de-
cisória em exame à conduta praticada pelo alimentante durante
todo o processado. Entretanto, a sua aplicação deve ser pautada
por extrema cautela e em consonância com os demais elementos
que compõem o caderno probatório casuisticamente.

4. APLICAÇÃO DA TEORIA DA APARÊNCIA E O CONTEÚDO


DE REDES SOCIAIS VIRTUAIS COMO INDÍCIO DE PROVA
DA POSSIBILIDADE ECONÔMICO-FINANCEIRA DO
ALIMENTANTE

Cumpre observar que documentos que comprovam fatos


omitidos em demandas judiciais familiaristas sempre se fizeram
presentes em ações judiciais (DIAS, 2021). Como meios de prova,
as fotografias possuem lugar de destaque diante da eloquência
das imagens na comprovação da publicidade de relacionamen-
tos, traições e exteriorização de sinais de riquezas. Por sua vez, a
utilização de meios digitais como comprovação de fatos e direi-
tos também não é algo tão recente no Direito brasileiro, sendo
128

indag indic_gabriella.indb 128 22/07/2021 09:53:14


renato horta rezende

possível apontar como marco de sua existência a edição da


Medida Provisória nº 2220-2, de 24 de agosto de 2001, que
institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Bra-
sil), a qual trata sobre a validade da assinatura digital (BRASIL,
2001).
Todavia, diante da virtualização da vida (ALVES, 2017), desen-
volvimento vertiginoso do E-commerce5 no século XXI, bem como
a intensidade e dinâmica das relações virtualizadas, fatos regis-
trados em redes sociais virtuais não certificados pela ICP-Brasil
também passaram a ser objeto de exame como provas em proces-
sos judiciais. Deu-se também com a finalidade de conceder maior
segurança jurídica e preservar as provas obtidas por outras mídias
digitais não certificadas. O atual CPC disciplinou uma “nova mo-
dalidade de prova, denominada ata notarial, em um único artigo”
(MONTEIRO FILHO, 2018, p. 451), que guarda congruência com o
que estabelece o art. 3º da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994,
o qual confere fé pública ao tabelião.
Todavia, mesmo sem utilizar da cautela estabelecida pelo art.
384 do CPC, que versa sobre a ata notarial, o conteúdo das redes
sociais digitais passou a integrar os autos em demandas que tra-
tam de alimentos, com o sentido de demonstrar maior possibili-
dade econômico-financeira do alimentante do que aquela efetiva-
mente reconhecida por este, por meio da exteriorização de sinais
de riquezas expostas em redes sociais virtuais.
Dessa forma, a aplicação da Teoria da Aparência para apuração
da possibilidade dos alimentantes em pensionar o necessitado,
que anteriormente estava reservada quase que exclusivamente
aos profissionais liberais, autônomos ou empresários, diante da
dificuldade de descobrir seus reais rendimentos, passou a fazer
parte de todos os processos judiciais que tem como finalidade a
fixação do quantum alimentar, mesmo quando o alimentante pos-
sui vínculo laboral celetista ou estatutário. O argumento refere-se
à existência de outros rendimentos não demonstrados, mas que

5
Cf: <https://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2020/08/27/e-com-
merce-cresce-47-maior-alta-em-20-anos.html>. Acesso em: 17 abr. 2021.

129

indag indic_gabriella.indb 129 22/07/2021 09:53:14


a realidade “inventada” nas redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da
aparência na definição da capacidade econômico-financeira do alimentante

podem vir a ser revelados, diante de sinais exteriores de riquezas


demonstrados em suas próprias redes sociais virtuais (DIAS, 2021).
Figueira et al. (2019) informa que é cada vez mais comum a
utilização do conteúdo disponível em redes sociais virtuais como
prova nos processos que envolve alimentos6. Muitas vezes, as fan-
tasiosas e inverídicas informações prestadas pelos próprios usu-
ários, e disponibilizadas com a finalidade de se autoprojetar so-
cialmente, podem acarretar consequências jurídicas inesperadas.
Os conteúdos das redes sociais digitais apresentados em pro-
cessos judiciais são postos como se fossem provas produzidas pe-
los alimentantes de uma fidedigna realidade, impondo ao usuário/
alimentante a difícil, e até mesmo impossível, tarefa de compro-
var sua inexistência, mediante improvável capacidade de produzir
prova negativa.
Figueira et al. (2019) compreende que esta consequência de-
riva da escolha perpetrada pelo autor do conteúdo da rede social
digital que, volitivamente, preferiu expor sua intimidade ou fanta-
siá-la, assumindo o ônus decorrente.
Nada obstante, consoante tratado na seção 2 deste estudo,
por vezes, os autores dos perfis de redes sociais digitais se veem
incentivados a simular a própria realidade, expondo, ou criando no
imaginário de seus seguidores a existência de sinais de riquezas e
situações de sucesso as quais, faticamente, não foram experimen-
tadas. Tudo isso com a finalidade de se sentirem pertencentes, ou
na expectativa de assim se inserirem em ambientes ou extratos
sociais ora distantes, para auferir vantagem ou oportunidades na
vida tangível, o que de fato afasta o aspecto volitivo e insere a
concepção impositiva.
Não se tratando de uma vontade e, por vezes, não sendo esta
a realidade vivida pelo usuário/alimentante, mas sendo este com-
portamento uma necessidade imposta pelo modelo de vida es-
petaculoso atual, a utilização de conteúdos das redes sociais ar-
rimados sob o aspecto da Teoria da Aparência para apuração da

6
Cf: AI 1000020530435-5, TJMG; AI 10021652520208110000, TJMT; AC 10018570
6220178260637, TJSP; AI 70084267509, TJRS; APL 00992608620108050001, TJBA.

130

indag indic_gabriella.indb 130 22/07/2021 09:53:14


renato horta rezende

capacidade econômica e definição do quantum alimentar deve ser


examinada com extrema cautela e ponderação. Impende tal utili-
zação ser conjugada com todo o complexo probatório construído,
não podendo seu conteúdo virtual ser tratado como componente
definidor da capacidade econômico-financeira, mas como auxiliar
na apuração das condições financeiras e econômicas.
O afastamento dessas premissas poderá levar ao desenvolvimen-
to de raciocínio jurídico sobre pré-concepções irreais ou fantasiosas.
Estas podem resultar numa imposição ao alimentante da falsa opção
de escolher entre afastar-se das redes sociais virtuais e toda a sua
“lógica” paradoxal e narcisista, assumindo a consequência de isolar-
se inclusive frente a oportunidades, ou sofrer com injustas decisões
judiciais fundadas em provas de uma realidade “inventada”.

5. CONCLUSÃO

As redes sociais virtuais tornaram-se espaços de convivência


ampla, voltados e estruturados segundo a lógica mercadológi-
ca, possuindo objetivo diverso do inicialmente desejado por seus
criadores, que idealizaram a formação de uma inteligência coleti-
va, desenvolvida dentro de uma futura cibercultura organizada na
forma de rizoma.
A integração do indivíduo às redes sociais não se dá apenas por
meio de cadastro no sistema, pois tanto as plataformas digitais, como
os demais usuários, exigem do indivíduo proatividade incessante e a
exibição de sucesso ininterrupto, mesmo que este efetivamente não
ocorra com a frequência exigida ou, por vezes, sequer exista.
Frente a isso, o indivíduo estaria obrigado a, por vezes, en-
cenar uma vida feliz, original, bem-sucedida, próspera financeira
e economicamente, como condição para alcançar credibilidade e
autoridade suficiente para ser aceito na comunidade.
Paralela a essa realidade inventada, tem-se a aplicação da Teo-
ria da Aparência, utilizada com cada vez maior frequência na apu-
ração das possibilidades econômico-financeiras dos alimentantes
para fixação de suas obrigações/deveres alimentares, fundada na
exteriorização dos sinais de riquezas.

131

indag indic_gabriella.indb 131 22/07/2021 09:53:14


a realidade “inventada” nas redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da
aparência na definição da capacidade econômico-financeira do alimentante

Diante da facilidade de obtenção de informações disponibili-


zadas por usuários em suas redes sociais virtuais, tais conteúdos
são levados aos processos judiciais como meios de se compro-
var a exteriorização de riquezas e demonstrar a incompatibilidade
entre as possibilidades admitidas pelo alimentante e aquelas
demonstradas no meio virtual.
Todavia, conforme afirmado acima, as informações dispostas
em redes sociais podem não retratar a realidade experimentada
por seu usuário, o qual se vê forçado a encenar uma vida inexis-
tente, com a finalidade de se sentir integrado à determinada co-
munidade, ou buscar a inserção e reconhecimento de que ainda
não desfruta.
Assim, o exame das informações colhidas de redes sociais
virtuais deve se operar de forma extremamente cautelosa, pois
simplesmente podem não refletir a realizada e, por isso, afastar o
sentido da própria aplicação da Teoria da Aparência, que é aproxi-
mar-se da realidade, e não de um simulacro.
Soma-se ao acima apontado a necessidade de se realizar o
exame de todo o caderno probatório, não se fixando balizas ape-
nas sobre informações colhidas nas redes sociais virtuais, que po-
dem auxiliar, mas não definir a capacidade econômico-financeira
de um usuário/alimentante, tampouco servir como justificativa
para impor a produção de prova a este.

6. REFERÊNCIAS

AGUIAR, Sônia. Redes sociais na internet: desafios à pesquisa. In: Congresso


Brasileiro De Ciências da Comunicação. Anais. Natal: Intercom, 2008.
ALVES, Cristiane Guerin. Tecnologia, pós-modernidade e a prova nas ações
de família: a influência das redes sociais na análise da capacidade econômica
do devedor de alimentos. 2019. 32 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Gradua-
ção em Direito) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020.
ALVES, L. R. A virtualização humana. Prometeus. Ano 10, nº 22, p. 185-198,
abr-jun 2017.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Zahar, 2001.

132

indag indic_gabriella.indb 132 22/07/2021 09:53:14


renato horta rezende

BRASIL. Conselho da Justiça Federal (CJF). Enunciado nº 87. Disponível em:


<https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/961>. Acesso: 3 mai. 2021.
BRASIL. Conselho da Justiça Federal (CJF). Enunciado nº 145. Disponível em:
<https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/238>. Acesso: 3 mai. 2021.
BRASIL. Conselho da Justiça Federal (CJF). Enunciado nº 573. Disponível em:
<https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/644>. Acesso: 3 mai. 2021.
BRASIL. Lei nº 5478, de 25 de julho de 1968, Lei de Alimentos. Dispõe sobre
ação de alimentos e dá outras providências. Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5478.htm>. Acesso: 17 abr. 2021.
BRASIL. Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8935.htm>. Acesso: 17 abr. 2021.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso: 17 abr. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso: 17 abr. 2021.
BRASIL. Medida Provisória nº 2220-2, de 24 de agosto de 2001. Disponí-
vel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas_2001/2200-2.htm>.
Acesso: 14 mai. 2021.
CARDOSO, Fabiana Domingues. A indignidade no direito aos alimentos. São
Paulo: IASP, 2018.
CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2018.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos
Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DIAS, Maria Berenice. Alimentos: direito, ação, eficácia e execução. 3. ed. Sal-
vador: Juspodivm, 2020.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. Salvador: Jus
Podivm, 2021.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. vol.
6. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 12. ed.
Salvador: Jus Podivm, 2020.
FIGUEIRA, S. F.; Cabral, H.L.T.; SOUZA, C.H.M. Alimentos: Majoração com Base
nas Redes Sociais? A Teoria da Aparência no Direito das Famílias. Revista
Nacional de Direito de Família e Sucessões. Vol. 5, p. 60-82, 2019.

133

indag indic_gabriella.indb 133 22/07/2021 09:53:15


a realidade “inventada” nas redes sociais virtuais e a aplicação da teoria da
aparência na definição da capacidade econômico-financeira do alimentante

FIUZA, C.A.C; CHAVINHO, M.B.M. A teoria da aparência no D de Família: breves


considerações sobre a necessária distinção entre o casamento putativo e o ca-
samento aparente. Revista de Direito de Família e Sucessões. Belo Horizonte,
Vol. 2, nº 1, jun. 2015, p. 278-307.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: Direito de Família. 6º vol.
9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MONTENEGRO FILHO, Misabel. Novo Código de Processo Civil Comentado.
São Paulo: Atlas, 2018.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2021.
SIBILA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. 2. ed. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2016.

134

indag indic_gabriella.indb 134 22/07/2021 09:53:15


INCONSTITUCIONALIDADE
DO REGIME DE SEPARAÇÃO
OBRIGATÓRIA DE BENS PARA
OS MAIORES DE 70 ANOS
Cristiane Gomes Botelho de Oliveira1
Luciana Carvalho Pimentel2

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo versa sobre a imposição aos maiores de


70 anos em aderir ao regime de separação obrigatória de bens,
como aquele que estabelecerá as regras jurídicas, durante o matri-
mônio e ao fim dele. Aos septuagenários não é atribuída qualquer
opção de escolha a outro regime, como acontece com qualquer
pessoa, quando resolve unir-se em matrimônio a outra.
O intuito aqui reside em trazer à baila questionamentos doutri-
nários acerca da inconstitucionalidade do artigo 1.641, inciso II, do
Código Civil, que normatiza esta imposição do regime nos moldes
mencionados.
São vários os direitos fundamentais que cerceiam o tema e,
quando se restringem estes direitos, expõe as pessoas maiores
de 70 anos a um tratamento desigual na sociedade, visto que não
podem dispor livremente sobre sua vida e seus bens.

1
Advogada. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Una. Pós-graduanda em Di-
reito Tributário e Processo Tributário pelo Instituto Prominas. Pós-Graduanda em Direito
Público pela Faculdade Legale. Membro da Comissão de Direito de Famílias e Sucessões
da 83ª Subseção da OAB Minas Gerais. E-mail: cristianebotelho.adv@gmail.com.
2
Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Ge-
rais. Pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Legale. Membro
da Comissão de Direito de Famílias e Sucessões da 83ª Subseção da OAB Minas
Gerais. E-mail: lucianacarvalho.advocacia@gmail.com.

indag indic_gabriella.indb 135 22/07/2021 09:53:15


inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos

Como estamos falando dos direitos de pessoas no grupo da


terceira idade, o Estatuto do Idoso reforça a necessidade de pro-
teção, concedendo um tratamento de forma a igualar os direitos
dos idosos aos de qualquer pessoa dotada de personalidade.
Nesse contexto, críticas e questionamentos doutrinários, refe-
rentes à obrigatoriedade na imposição do regime de separação de
bens a todos que possuem mais de 70 anos, serão citados como
forma de embasar o texto. Importante ressaltar que a doutrina não
se mostra pacífica nesse caso, e parte majoritária defende a ideia
da inconstitucionalidade da norma, que é o tema em questão.
Para ser constitucional, qualquer que seja a imposição, deve
respeito aos direitos fundamentais. Portanto, a todos, sem distin-
ção, deve ser atribuído o direito à escolha do regime de bens que
irá reger seu matrimônio.

2 REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS


Desde os tempos mais remotos, o casamento faz parte da cultu-
ra dos povos. Notório que em cada região há uma cultura diferente,
mas, via de regra, as crianças são instruídas para crescer e se casar.
O casamento é um vínculo entre duas pessoas que desejam
unir-se de forma voluntária, no intuito de constituir família, for-
mando um elo conjugal, nos moldes do Código Civil. Ao decidir
pelo matrimônio, o casal faz a escolha pelo regime de bens que
irá regulamentar as questões relativas ao patrimônio dos cônju-
ges, delimitando as diretrizes que deverão ser seguidas por eles
enquanto o casamento existir, ou se ao fim chegar, seja em razão
de divórcio, ou falecimento de uma ou ambas as partes.
Adentrando no regime de separação obrigatória de bens, que
é o enfoque deste estudo, as regras são as mesmas que se dão na
separação total de bens, em que todos os bens adquiridos antes e
depois do casamento pertencerão ao cônjuge que o adquiriu, não
havendo comunicação com os bens do outro cônjuge; conforme
tipificado no Código Civil:
Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob
a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá
livremente alienar ou gravar de ônus real (BRASIL, 2002).

136

indag indic_gabriella.indb 136 22/07/2021 09:53:15


cristiane gomes botelho de oliveira, luciana carvalho pimentel

O regime de separação de bens é faculdade de livre escolha


dos noivos, entretanto, todas as pessoas que possuem 70 anos ou
mais devem obrigatoriamente aderir a este regime, independen-
temente de sua vontade. Neste contexto, vejamos o que aduz o
Código Civil, in verbis:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos (BRASIL, 2002).

Então, quando uma pessoa que possui idade superior a 70 anos


resolve casar-se, não tem que se falar em livre iniciativa na escolha
do regime de casamento, porque a eles o regime de separação
obrigatória de bens é imposto de forma coercitiva.

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS

A Constituição de 1988 é a lei fundamental e suprema do or-


denamento jurídico, estando acima de toda a legislação brasileira.
Seguem hierarquicamente abaixo as leis e normas infraconstitu-
cionais, que devem obediência a três pressupostos dogmáticos,
quais sejam, unidade, coerência e completude (BOBBIO, 1999),
devendo andar em consonância com a Carta Magna. A norma
jurídica é gênero que se divide nas espécies princípios e regras.
Vejamos o que menciona Novelino (2014) a esse respeito:
A Constituição é um sistema normativo aberto de princípios e regras
que, assim como os demais estatutos jurídicos, necessita das duas es-
pécies normativas para exteriorizar os seus comandos. Isso porque um
sistema baseado apenas em princípios poderia conduzir a um sistema
falho em segurança jurídica. Por seu turno, um sistema constituído
exclusivamente por regras exigiria uma disciplina legislativa exaus-
tiva e completa (legalismo, “sistema de segurança”), não permitindo
a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de
valores e interesses de uma sociedade plural e aberta (p. 170).

Para diferenciar normas-regras de normas-princípios, Mendes


e Branco (2015) assim relatam:
Quando se trata de estremar regras e princípios, porém, e bastante
frequente o emprego do critério da generalidade ou da abstração.

137

indag indic_gabriella.indb 137 22/07/2021 09:53:15


inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos

Os princípios seriam aquelas normas com teor mais aberto do que as


regras. Próximo a esse critério, por vezes se fala também que a distin-
ção se assentaria no grau de determinabilidade dos casos de aplica-
ção da norma. Os princípios correspondem as normas que carecem
de mediações concretizadoras por parte do legislador, do juiz ou da
Administração. Já as regras seriam as normas suscetíveis de aplicação
imediata (p. 81).

Há alguns dos princípios fundamentais que versam sobre o


tema da discussão aqui em pauta, bem como a respectiva violação
constitucional e o que ela representa na personalidade de cada
pessoa que se vê envolvida no contexto do regime de separação
obrigatória de bens; a seguir.

3.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A priori, convém esclarecer que


a palavra dignidade tem sua origem etimológica no termo derivado
do latim dignitas, que significa respeitabilidade, prestígio, considera-
ção, estima, nobreza, excelência, enfim, indica a qualidade daquilo que
é digno e merece respeito ou reverência (QUEIROZ, 2015, p. 140-1).

Prevista no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988,


a dignidade da pessoa humana é o resultado das lutas e conquis-
tas sociais do povo brasileiro, visto que seu auge ocorreu em um
período pós-ditadura. Sarmento (2016) afirma ser a dignidade da
pessoa humana um dos fundamentos mais importantes da Repú-
blica Brasileira. Por sua vez, Farias (2000) afirma que:
O princípio da dignidade da pessoa humana refere-se às exigências
básicas do ser humano no sentido de que ao homem concreto sejam
oferecidos os recursos de que dispõem a sociedade para a mantença
de uma existência digna, bem como propiciadas as condições indis-
pensáveis para o desenvolvimento de suas potencialidades. Assim, o
princípio em causa protege várias dimensões da realidade humana,
seja material ou espiritual (p. 63).

A dignidade da pessoa humana encontra-se proclamada tam-


bém no âmbito internacional, tanto na Convenção Interamericana de
Direitos Humanos de 1969 – Organizações dos Estados Americanos
138

indag indic_gabriella.indb 138 22/07/2021 09:53:15


cristiane gomes botelho de oliveira, luciana carvalho pimentel

(OEA) –, como também na Declaração Universal de Direitos huma-


nos de 1948 – Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta últi-
ma, o artigo 1º já faz menção ao princípio, quando diz que “todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns
aos outros com espírito de fraternidade”.
Nas palavras de Tepedino (1999), a dignidade da pessoa humana
é tida dentro dos direitos humanos; leia-se:
Os direitos humanos são, em princípio, os mesmos da personalidade;
mas deve-se entender que quando se fala dos direitos humanos, re-
ferimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito
público, quando desejamos protegê-los contra as arbitrariedades do
Estado. Quando examinamos os direitos da personalidade, sem dú-
vidas, nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém sob o
ângulo do direito privado, ou seja, relações entre particulares, deven-
do-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras
pessoas (p. 33).

Portanto, a personalidade é a aptidão para ser sujeito dotado de


direitos e deveres, não correspondendo a um único direito, mas
sim, a um conjunto ilimitado de direitos que orientam tanto o in-
térprete como o legislador na proteção da dignidade da pessoa
humana. A arbitrariedade existe no abuso do legislativo, dado que
a lei é taxativa e não atribui escolhas a somente uma parte da po-
pulação, ferindo, assim, sua personalidade.

3.2 Princípio da Igualdade

A Carta Magna traz, no caput do seu art. 5º, o princípio da


igualdade juntamente com outros princípios, como um direito in-
violável, portanto, como faculdade essencial para uma vida digna.
Em seu texto, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangei-
ros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liber-
dade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988).
A este ponto, cabe ao Estado o dever de proporcionar ao indi-
víduo uma vida digna na sociedade, e, por meio desse princípio,

139

indag indic_gabriella.indb 139 22/07/2021 09:53:15


inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos

limitar a atuação do legislador, do intérprete ou autoridade públi-


ca e do particular, coibindo as diferenciações arbitrárias, absurdas
ou não justificáveis. O legislador deve ter cautela ao editar nor-
mas, primando para que não violem o princípio da igualdade, sob
pena de flagrante inconstitucionalidade.
Desse modo, o tratamento a todos deve se dar sem distinção,
haja vista ser clara a lei quando traz a expressão “todos” no seu
escopo: todos são iguais vem englobar, além da raça, cor, etnia,
religião, opção sexual, dentre outros, o idoso, que também não
pode ser tratado de forma diferente.

3.3 Princípio da Autonomia da Vontade

Autonomia é um termo de origem grega, cujo significado está


relacionado à independência, liberdade ou autossuficiência. Nesse
contexto, “vontade é a faculdade de que dispõe o ser humano de
querer, de optar e de fazer ou deixar de fazer determinados atos
livremente, sem qualquer tipo de interferência” (MICHAELIS3). Em
outras palavras, autonomia da vontade é reconhecer que a capaci-
dade jurídica da pessoa lhe confere o poder de praticar ou abster-se
de certos atos, conforme sua vontade.
O Princípio da Autonomia da Vontade está intimamente ligado
à liberdade, reconhecida como garantia constitucional que atribui
ao homem o poder de escolher suas decisões. Liberdade é um
direito essencial para uma vida digna, pois é a manifestação de
decidir livremente sem interferência de ninguém em questões in-
timamente pessoais e que dizem respeito somente à pessoa. Isso
engrandece o ser que, por agir com autonomia de vontade, assu-
me responsabilidades, passando a responder por todos seus atos:
“ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas para cuidar
de si mesmas e para influenciar o mundo, questões centrais para
o processo de desenvolvimento” (SEN, 2000).

3
Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues
-brasileiro/vontade>. Acesso em: 15 mai. 2021.

140

indag indic_gabriella.indb 140 22/07/2021 09:53:15


cristiane gomes botelho de oliveira, luciana carvalho pimentel

Volvendo para os aspectos concernentes ao regime de bens, o


Princípio da Autonomia da Vontade confere a liberdade de esco-
lha do regime que se quer pactuar no casamento, com critérios a
escolha de cada um. Porém, nos moldes do artigo 1.641 do Có-
digo Civil, quem tem mais de 70 anos não possui autonomia de
vontade para expressar sua liberdade de escolha.

4 DIREITOS CONSTITUCIONAIS E A PROTEÇÃO NO ESTATUTO


DO IDOSO

No Brasil, a Lei no 10.741/2003 dispõe sobre o Estatuto do


Idoso, de modo a garantir aos idosos uma maior proteção dos
direitos fundamentais previstos na Constituição, assegurando, tam-
bém, qualidade de vida:
Art. 2º. O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta
Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as opor-
tunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental
e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em con-
dições de liberdade e dignidade (BRASIL, 2003).

O Estatuto do Idoso, em seu artigo 10, além de trazer os di-


reitos inerentes à pessoa idosa, também coloca como obrigação
do Estado e da sociedade assegurar o cumprimento de todos os
preceitos constitucionais:
Art. 10. É obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa
idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e
sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na
Constituição e nas leis (BRASIL, 2003).

Contudo, o Estatuto não traz nenhuma novidade, mas sim,


uma reafirmação de tudo o que já vem descrito na Constitui-
ção, vez que o texto da Carta Magna traz a atribuição desses
direitos. O que acontece é que, visando garantir a aplicabilidade
das garantias fundamentais inerentes a todos os cidadãos, o
Estatuto primou pela necessidade de trazer tais preceitos em
seu texto legal.
141

indag indic_gabriella.indb 141 22/07/2021 09:53:15


inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos

5 INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO


OBRIGATÓRIA DE BENS PARA OS MAIORES DE 70 ANOS

No casamento, o casal decide se unir visando à formação de


uma família; logo, nos moldes do artigo 1.639 do Código Civil,
“é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular,
quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”. Vemos aqui que a es-
colha é de quem quer se casar, não trazendo qualquer imposição
quanto ao regime de bens a ser adotado.
Entretanto, como já vimos, a faculdade de escolha é atribuição
dada somente às pessoas que estiverem na faixa etária máxima de
69 anos de idade. Neste ponto, a doutrina levanta questionamen-
tos acerca do tratamento que as pessoas com mais de 70 anos re-
cebem, perfazendo-se em uma enorme diferenciação de valores.
Para Madaleno (2013):
Causa o Estado Democrático de Direito dano irreparável à cidadania
do idoso ao constrangê-lo com a restrição de seus direitos; ao moni-
torar e desconsiderar a sua vontade na suposição de sua proteção, e
acreditar estar defendendo o seu patrimônio, sem perceber que fere
de morte o mais precioso atributo humano depois da vida, represen-
tado pelo respeito constitucional á dignidade da pessoa humana, sem
limite em razão da idade. (p. 67).

Pensando na atualidade, vivemos um grande e monstruoso


avanço da medicina e tecnologia, em que as condições e preo-
cupações com a saúde, alimentação, estética e bem-estar encon-
tram-se no auge de todos os gêneros e idades. Academias lota-
das, clínicas de estética com agenda cheia, e nos supermercados,
em muitos carrinhos de compras, os alimentos foram substituídos
por outros mais saudáveis, devido a uma determinada prudência
para com a alimentação, que é levada para dentro dos lares. O que
se busca é viver e envelhecer da melhor forma e com saúde.
Segundo Vieira (2012), cada pessoa envelhece de uma forma,
mas a alimentação, o acesso à saúde e a qualidade de vida muda-
ram as condições gerais dos idosos, sendo os mesmos mais sau-
dáveis e lúcidos atualmente, em comparação com gerações ante-
riores. Conforme a classe social, a saúde e autonomia são maiores,

142

indag indic_gabriella.indb 142 22/07/2021 09:53:15


cristiane gomes botelho de oliveira, luciana carvalho pimentel

pelo acesso a condições de vida saudáveis, tratamentos médicos


e afins.
Na sociedade atual, há pessoas que possuem 70 anos ou mais,
que se encontram em pleno gozo de suas capacidades mentais,
tendo total discernimento de todas as obrigações a que se subme-
terão ao contrair um matrimônio. Algumas vezes, são estes idosos
que tratam de uma família inteira, incluindo-se netos, bisnetos e
demais. Muitos costumam dizer que “a vida só começa após os
60”, e como isentos da cobrança de passagem, passeiam, viajam,
esbanjam felicidade nos forrós para a terceira idade, comportan-
do-se como jovens e sem aquela preocupação de quando eram
mais novos.
Nesse feito, as pessoas que estão acima de 70 anos não podem
ser tratadas como desprovidas de sanidade mental plena, tam-
pouco forçadas a se casar sob um regime a elas impostas.
Para que uma pessoa seja considerada como incapaz dos atos
da vida civil, a lei dispõe do processo judicial próprio de interdi-
ção. Dias (2013) disserta sobre o tema:
A limitação, além de odiosa, é inconstitucional, pois, ao se falar no
estado da pessoa, toda cautela é pouca. A plena capacidade é adqui-
rida quando do implemento da maioridade e só pode ser afastada em
situações extremas e por meio do processo judicial de interdição, que
dispõe de rito especial (arts. 1.177 a 1.186 do CPC). É indispensável
não só a realização de perícia, mas também é obrigatória audiência
de interrogatório pelo magistrado. Raros processos são revestidos de
tantos requisitos formais, sendo imperiosa a publicação da sentença
na imprensa por três vezes. Tal rigorismo denota o extremo cuidado
quando se trata da capacidade da pessoa (p. 414).

Compreende-se, assim, que somente ser idoso não pode se


fazer como pressuposto rígido para se aventar incapacidade aos
atos da vida civil; nas palavras de Lôbo (2011):
A idade avançada não é por si deficiência ou enfermidade mental. A
pessoa pode viver muito tempo como idosa, sem qualquer compro-
metimento de sua higidez mental. Todos os órgãos da pessoa, inclu-
sive o cérebro, sofrem mutações com o passar dos anos, reduzindo-se
as habilidades antes desenvolvidas. Mas essa circunstância natural não

143

indag indic_gabriella.indb 143 22/07/2021 09:53:15


inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos

é suficiente para suprimir ou reduzir a capacidade de exercício da


pessoa, se permanece nela a faculdade de discernir (s.p).

Outrossim, a violação dos direitos não pode ser utilizada sob


o argumento de proteção ao idoso, vez que afronta nitidamente
garantias essenciais para alcançar uma dignidade justa, pois que
o Código Civil, em seu art. 1º, traz que: “toda pessoa é capaz de
direitos e deveres na ordem civil”.
Portanto, impor aos idosos um regime de forma totalmente
arbitrária, sem sequer analisar a situação do caso concreto, não
pode ser considerado como parâmetro de proteção, dado que o
artigo 1.641 do Código Civil comete uma inconstitucionalidade
sem precedente algum. A esse respeito, leciona Pereira (2010):
Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesse nestas
faixas etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode
existir, de modo que a regra da obrigatoriedade do regime de separa-
ção de bens em razão da idade não encontra justificativa econômica
ou moral, pois a desconfiança contra o casamento dessas pessoas
não tem razão para subsistir (p. 281).

Quando não é disponibilizada a opção de escolha quanto ao


regime de bens, ainda existe o outro lado da moeda a ser obser-
vado, quando um dos nubentes, revestido de boa-fé no casamen-
to, ao possuir menos de 70 anos, pode ser prejudicado. Se esta
pessoa tem total interesse em se casar para constituir família e
viver conforme os votos do matrimônio, mas é obrigada a aceitar
que o regime será imposto por lei porque seu(sua) parceiro(a) tem
70 anos ou mais, a ideia que poderá ser suscitada é a possibilidade
de enriquecimento ilícito de um dos nubentes da relação conju-
gal, conforme relatado por Dias (2013):
De forma desarrazoada, presume a lei que, a partir dos 70 anos, nin-
guém mais tem plena capacidade, pois, se resolver casar, não pode
escolher o regime de bens. É impingido o regime da separação, ne-
gando-se consequências patrimoniais do casamento. Não é admitida
sequer a divisão dos bens amealhados durante a vida em comum, o
que gera o enriquecimento ilícito de um dos cônjuges em detrimento
do outro. Não se pode olvidar que a convivência faz presumir a mútua
colaboração, e vetar a divisão dos aquestos prejudica um do par (p. 77).

144

indag indic_gabriella.indb 144 22/07/2021 09:53:15


cristiane gomes botelho de oliveira, luciana carvalho pimentel

É uma idade delicada, em que este tratamento desigual pode


trazer a ideia de impotência ou incapacidade na resolução de suas
próprias questões pessoais.

6 CONCLUSÃO

Consoante a lei aduzida no Código Civil, todos os maiores de


70 anos devem se casar sob o regime de separação obrigatória de
bens, não sendo atribuído qualquer outro regime como opção de
escolha. Viu-se, com isso, que o assunto faz emergir questiona-
mentos vários acerca da inconstitucionalidade da lei que tipifica
essa obrigatoriedade. No intuito de analisar a referida inconstitu-
cionalidade, foram levantados os direitos humanos fundamentais
que a abarca, bem como sua devida violação.
Concluiu-se que a dignidade da pessoa humana diz respeito a
uma necessidade vital de todo indivíduo, que molda outros tantos
direitos essenciais, os quais devem ser garantidos, por se tratar
de princípios constitucionais. Portanto, não há que se falar em ser
tratado de forma digna, visto que a pessoa possui total discerni-
mento de sua vida patrimonial e não pode fazer a escolha do que
quer para sua união a outra pessoa. Nota-se que o legislador edi-
tou uma norma autoritária, efetivando um tratamento de forma
desigual, avaliando somente a proteção necessária pelo aspecto
da idade, sem se preocupar com a situação de cada um, in casu.
Há, ainda, que se considerar a autonomia da vontade, que,
quando atribuída a alguém que vai decidir sobre os pontos ati-
nentes a sua própria vida, traz um senso de responsabilidade e
capacidade. Sendo assim, quando se obriga alguém a aderir a um
regime de bens diferentemente de outras pessoas, extinguindo-
lhe qualquer liberdade de escolha, traz-lhe o sentimento de inca-
pacidade, mesmo que esse alguém não o seja.
Compreende-se que os direitos fundamentais necessários
para se viver em sociedade são atribuídos a todos, nos moldes da
Constituição Federal, e os idosos ainda contam com o texto legal
do Estatuto do Idoso, o qual reforça a garantia da Carta Magna
em seus artigos. Faz-se, portanto, imperativa a aplicação de um
145

indag indic_gabriella.indb 145 22/07/2021 09:53:15


inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos

tratamento justo a todos, no que concerne ao regime de separa-


ção obrigatória de bens, outorgando-o somente aos judicialmente
interditados.
Por todo o exposto, resta claro que a doutrina majoritária de-
fende que a obrigatoriedade quanto ao regime de separação de
bens é imposição legal, porém nitidamente inconstitucional, pois
ultrapassa todos os limites impostos na Carta Magna, ferindo os
direitos que são essenciais e inerentes a todo cidadão.

7 REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria


Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 6. ed. Brasília: Editora Universidade de Bra-
sília, 1999.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília: Senado,1988.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.
htm>. Acesso em: 29 abr. 2021.
BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de Outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do
Idoso e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm>. Acesso em: 29 abr. 2021.
DIAS, Maria Berenice. Artigo 1.641 do Código Civil: inconstitucionais limita-
ções ao direito de amar. Disponível em: <https://egov.ufsc.br/portal/sites/de-
fault/files/anexos/9994-9993-1-PB.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2021.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos: a honra, a intimidade, a vida
privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2. ed. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2000.
LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de
Janeiro: Forense, 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. 10 ed. rev. e atual. Saraiva: São Paulo, 2015.

146

indag indic_gabriella.indb 146 22/07/2021 09:53:15


cristiane gomes botelho de oliveira, luciana carvalho pimentel

MICHAELIS. Dicionário on-line. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/


moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/vontade>. Acesso em: 15 mai.
2021.
NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2014.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre
Direitos Humanos. San José da Costa Rica, 1969.
ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos
Humanos. 1948. Rio de Janeiro: Unic/Rio, 2009.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18. ed. Revista e
atualizada por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
QUEIROZ, Juliane Fernandes. O espectro incidente: do princípio da dignidade
da pessoa humana. Percurso Acadêmico, Belo Horizonte, v. 5, n.9, jan./jun. 2015.
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetórias e
metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Mot-
ta. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
VIEIRA, Kay Francis Leal. Sexualidade e qualidade de vida do idoso. Tese
(Doutorado). 234 f. Departamento de Psicologia - Universidade Federal da Pa-
raíba, João Pessoa, 2012. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/bits-
tream/tede/6908/1/arquivototal.pdf>. Acesso em: 08 mai. 2021.

147

indag indic_gabriella.indb 147 22/07/2021 09:53:15


indag indic_gabriella.indb 148 22/07/2021 09:53:15
A IMPORTÂNCIA DO
PLANEJAMENTO PATRIMONIAL
E SUCESSÓRIO NO CONTEXTO
DA PANDEMIA
Larissa Helena Nascimento Capucho1

1 INTRODUÇÃO

Uma das maiores certezas que se tem na vida é a morte, mas


nem sempre os entes queridos estão preparados para esse mo-
mento, não só emocionalmente, mas também financeira e patri-
monialmente.
A morte, apesar de ser um fato esperado, não é desejada e o
assunto é tratado como um tabu, ou seja, não é devidamente abor-
dado. As pessoas renegam o tema e preferem evitar falar sobre
esse acontecimento futuro, principalmente quando relacionado
ao aspecto patrimonial, e é justamente por esse motivo que gran-
de parte das famílias não está de fato preparada para lidar com os
assuntos patrimoniais e financeiros que envolvem os bens deixa-
dos por um ente falecido.
Existem diversas situações que podem interferir de forma ne-
gativa na realização do inventário, fazendo com que o procedi-
mento se arraste por longos e desgastantes anos, gerando, não
só inúmeros conflitos familiares, mas também a deterioração e a
perda do patrimônio deixado pelo falecido.

1
Advogada, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Contagem; pós-gra-
duanda em Direito Imobiliário e Notarial pela Escola Superior de Advocacia; Secre-
tária Geral da Comissão de Direito Imobiliário e membro da Comissão de Direito de
Família e Sucessões, ambas da OAB subseção Contagem. E-mail: larissanascimento.
lh@gmail.com.

indag indic_gabriella.indb 149 22/07/2021 09:53:15


a importância do planejamento patrimonial e sucessório no contexto da pandemia

Dessa forma, e considerando o atual cenário pandêmico en-


frentado pelo país e pelo mundo, a busca pela realização do plane-
jamento patrimonial tem aumentado, demonstrando a preocupa-
ção das pessoas com o futuro de seu patrimônio e seus herdeiros
após a sua morte.
Assim, o planejamento patrimonial se apresenta como a forma
mais acertada de organizar e planejar esse momento tão difícil
na vida das pessoas, haja vista que pode ser realizado por meio
de vários mecanismos jurídicos, os quais deverão ser empregados
de acordo com a análise da viabilidade, e até mesmo de qual se
apresenta mais adequado para cada caso.
Diante disso, o presente estudo busca, por meio de pesquisas
doutrinárias, demonstrar algumas das formas de planejar-se pa-
trimonial e sucessoriamente, bem como a importância de realizar
esse planejamento, considerando os impactos futuros que a mor-
te de alguém pode causar no seu próprio patrimônio e na vida dos
herdeiros, concedendo ênfase ao presente cenário de pandemia
da COVID-19.

2 O DIREITO DAS SUCESSÕES E OS ASPECTOS LEGAIS

O direito das sucessões surge da premissa fática de que a vida


é finita e que a morte é a única verdade concreta.
A sucessão consiste no ato de que uma pessoa irá suceder ou-
tra em algum aspecto que, neste caso, será o de bens e direitos
do titular. Nesse contexto, Gonçalves (2014) definiu que “a palavra
sucessão num sentido amplo, significa o ato pelo qual uma pessoa
assume o lugar de outra, substituindo-a na titularidade de deter-
minados bens” (p. 17).
Diante disso, foi necessário que o direito regulamentasse a su-
cessão ou a transmissão dos bens, dos direitos e das obrigações
de uma pessoa a outra, em razão do falecimento do titular, como
forma de garantir que o patrimônio fosse resguardado e passado
para os herdeiros, na qualidade de herança.
O direito a herança constitui um direito fundamental previsto no
art. 5º, inciso XXX, da Carta Magna de 1988 e, também, encontra-se

150

indag indic_gabriella.indb 150 22/07/2021 09:53:15


larissa helena nascimento capucho

positivado na legislação civil, a qual dedica, com maestria, um livro


de seus dispositivos ao direito das sucessões (Livro V – Do direito
das sucessões), regulado pelos artigos 1.784 a 2.027, do Código
Civil pátrio.
Sobre o tema, brilhantemente, Tartuce (2017) conceitua o direito
sucessório como:
O conjunto de normas que disciplinam a transferência do patrimônio
de alguém, depois de sua morte, ao herdeiro, em virtude de lei ou
de testamento (CC, art. 1.786). Consiste, portanto, no complexo de
disposições jurídicas que regem a transmissão de bens ou valores e
dívidas do falecido, ou seja, a transmissão do ativo e do passivo do de
cujos ao herdeiro (DINIZ, 2013, apud TARTUCE, 2017, p. 3).

No mesmo sentido, o autor supracitado conceitua o Direito


das Sucessões como sendo “o ramo do Direito Civil que tem como
conteúdo as transmissões de direitos e deveres de uma pessoa a
outra, diante do falecimento da primeira, seja por disposição de
última vontade, seja por determinação da lei, que acaba por pre-
sumir a vontade do falecido” (TARTURCE, 2017, p. 5).
Dessa forma, pode-se dizer que o direito das sucessões consiste,
em suma, no conjunto de disposições, regras e princípios que tem a
finalidade de regulamentar a transmissão de bens, de direitos e de
obrigações que deixam de ser de titularidade de uma pessoa para
passar a ser de outra, em razão do falecimento do primeiro.
Conscientemente, as pessoas são levadas a pensar, por meio
de um raciocino lógico, que os bens deixados pelo de cujus, isto
é, por alguém que faleceu, devem ser transmitidos para os entes
mais próximos, como os pais, filhos e o(a) esposo(a), e tal pensa-
mento é comum, haja vista ser a forma mais justa, por assim dizer,
de se realizar a transmissão dos bens de titularidade do falecido.
Sobre esse aspecto, a legislação brasileira não destoou do sen-
tido de que os bens a serem transmitidos em razão da morte do
titular devem ser deixados para os familiares mais próximos, pois o
Código Civil pátrio prevê, em seu art. 1.845, que os bens deixados
pelo falecido serão passados aos herdeiros necessários, quais se-
jam, os descendentes, ascendentes e o cônjuge ou companheiro.

151

indag indic_gabriella.indb 151 22/07/2021 09:53:15


a importância do planejamento patrimonial e sucessório no contexto da pandemia

Entretanto, deve-se ressaltar a possibilidade de o autor da he-


rança ter deixado em vida a parte disponível de seus bens, ou seja,
metade de seus bens a pessoas diversas daquelas previstas na
lei como herdeiros necessários, garantindo, sobretudo, que pelo
menos metade do patrimônio seja destinado aos filhos, aos pais
e ao cônjuge.
Vale lembrar, ainda, que o direito sucessório também possui
o aspecto financeiro e econômico, ligado ao contexto tributário.
Este, por sua vez, está relacionado ao pagamento imposto decor-
rente do fato gerador morte, o chamado Imposto sobre Trans-
missão Causa Mortis e Doação (ITCD), que deve ser pago ao ente
federativo, em razão da transmissão dos bens do de cujus aos her-
deiros legítimos e testamentários, e também aos gastos decorren-
tes da administração dos bens e de sua transmissão.
Assim, os entes queridos deixados pelo falecido devem-se pre-
ocupar não só com os aspectos sucessórios que circundam o fator
morte, mas também com seus aspectos financeiros.

3 O PLANEJAMENTO PATRIMONIAL E SUCESSÓRIO

A sucessão ou a transmissão de bens e direitos do titular da


herança poderá ser realizada de duas formas: a primeira, da forma
legal, em que a transmissão do patrimônio, objeto da herança, se
dará na forma e termos estabelecidos em lei. Já a segunda diz res-
peito àquela realizada quando há uma postura ou uma conduta
ativa do autor da herança, que se valerá de mecanismos jurídicos
legais para estabelecer a forma em que será realizada a transmis-
são de seus bens para os seus herdeiros após a sua morte, surgin-
do, assim, a figura do planejamento patrimonial e sucessório.
O planejamento patrimonial e sucessório, como o próprio
nome já sugere, consiste em planejar, ainda em vida, sobre a
transmissão dos bens e do patrimônio do titular, ou proprietário
do patrimônio, de forma a planejar não só o aspecto patrimonial,
mas também o sucessório. Ou seja, aqueles que estão ligados
aos sujeitos (herdeiros) que receberão os bens em razão da morte
do titular.
152

indag indic_gabriella.indb 152 22/07/2021 09:53:15


larissa helena nascimento capucho

Nas palavras de Dias (2013), “o planejamento sucessório tem


por objetivo o exercício prático de uma atividade preventiva com
a adoção de procedimentos realizados ainda em vida pelo titular
da herança, com vistas à distribuição e ao destino de seus bens
após a sua morte” (p. 390).
No mesmo sentido, na concepção de Gagliano e Pamplona
Filho (2017), “consiste o planejamento sucessório em um conjunto
de atos que visa a operar a transferência e a manutenção orga-
nizada e estável do patrimônio do disponente em favor dos seus
sucessores” (p. 404).
Como bem colocado nos conceitos supracitados, o planeja-
mento sucessório é realizado em vida pelo titular do patrimônio,
o qual irá estabelecer regras de distribuição e destinação do seu
patrimônio para que, quando da ocorrência de sua morte, esse
patrimônio seja distribuído conforme suas determinações.
Nesse diapasão, apesar da limitação trazida pelo Código
Civil pátrio acerca da disponibilidade dos bens, haja vista que, nos
termos do art. 1.846, do mesmo diploma legal supramencionado,
“pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade
dos bens da herança constituindo a legítima”, existem mecanis-
mos jurídicos que possibilitam a realização do planejamento patri-
monial. Isso pode se dá sem que se viole o estabelecido no dispo-
sitivo legal supracitado, garantindo a destinação dos bens a serem
partilhados após a morte do autor da herança.
Existem várias formas de se realizar o planejamento sucessório,
as quais devem ser minuciosamente pensadas e estudadas. Deve-se
considerar não só o aspecto jurídico, mas também o econômico e o
tributário, pois a realização do planejamento patrimonial dá-se jus-
tamente com a finalidade de garantir a sucessão/transmissão dos
bens do titular aos herdeiros da forma menos onerosa possível e
pensando, ainda, no equilíbrio e harmonia das relações familiares.

4 ALGUNS MECANISMOS JURÍDICOS DE PLANEJAMENTO


PATRIMONIAL E SUCESSÓRIO
As inúmeras formas de planejar-se patrimonialmente resu-
mem-se nas várias maneiras de garantir que os herdeiros e demais
153

indag indic_gabriella.indb 153 22/07/2021 09:53:15


a importância do planejamento patrimonial e sucessório no contexto da pandemia

familiares sintam-se mais confortáveis com a perda de uma pes-


soa querida, inclusive por meio de pequenos instrumentos jurídi-
cos que nem sempre estão diretamente ligados a sucessão, mas
que constituem institutos jurídicos capazes de auxiliar no plane-
jamento patrimonial e sucessório. Como exemplos, têm-se a rea-
lização de um pacto antenupcial, a escolha do regime de bens do
casamento, ou até mesmo a sua posterior alteração, a realização
de um seguro de vida, a partilha em vida, a doação de um bem,
dentre outros mecanismos que assumem papel imprescindível no
momento de realizar o planejamento sucessório.
Nesse diapasão, podem-se citar algumas das formas de plane-
jamento sucessório mais comuns e que abrangem de forma mais
incisiva e completa o patrimônio do autor da herança, como a
doação realizada com cláusula de reserva de usufruto, a partilha
em vida, o adiantamento de legítima e até mesmo a constituição
de uma holding familiar; conforme veremos em sequência.

4.1 Da doação com reserva de usufruto

A doação é uma possibilidade jurídica de se transferir a pro-


priedade de um bem, seja móvel ou imóvel, para outrem, ainda
em vida e de forma gratuita. Tal possibilidade encontra-se prevista
no art. 538 do CC/02, que assim dispõe: “considera-se doação o
contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu
patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.
Entretanto, em se tratando da doação como mecanismo de
planejamento patrimonial e sucessório, a doação não poderá ser
simples e pura, devendo conter uma cláusula de reserva de usu-
fruto para garantir e resguardar ao doador o usufruto dos bens
doados. Cabe, ainda, a este o poder de administração e posse
desses bens até a sua morte, quando se extinguirá o usufruto,
passando o donatário a ter propriedade plena sobre aqueles bens.
Trata-se, pois, de um instrumento de planejamento patrimo-
nial e sucessório muito utilizado quando o proprietário do bem e
também autor da herança deseja realizar em vida o planejamento,
estabelecendo a forma de transmissão e sucessão de seus bens
para os respectivos herdeiros.
154

indag indic_gabriella.indb 154 22/07/2021 09:53:15


larissa helena nascimento capucho

4.2 Do adiantamento de legítima

O adiantamento de legítima consiste na possibilidade de o au-


tor da herança realizar a doação em vida dos seus bens aos seus
futuros herdeiros, implicando no adiantamento da parte que lhes
caberiam, caso o proprietário dos bens estivesse falecido. Sobre
isso dispõe o art. 544 do Código Civil pátrio que “a doação de
ascendente a descendente, ou de um cônjuge a outro, importa
adiantamento do que lhes cabe por herança”.
Desse modo, quando realizada a doação em vida, nos termos
do dispositivo legal supramencionado, os herdeiros devem efeti-
var a chamada colação dos bens recebidos em vida pelo autor da
herança, quando da abertura da sucessão, conforme determina o
art. 2.002, do CC/02, in verbis:
Art. 2.002. Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascen-
dente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o
valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonega-
ção (BRASIL, 2002).

Nesse contexto, a título de esclarecimento, a colação de bens


consiste, nas palavras de Gonçalves (2014), em um “ato pelo qual
os herdeiros descendentes que concorrem à sucessão do ascen-
dente comum declaram no inventário as doações que dele em
vida receberam, sob de pena de sonegados, para que sejam con-
feridas e igualadas as respectivas legitimas” (p. 539).
Dessa forma, nos termos do estabelecido no dispositivo legal
supramencionado, considerando-se que a doação realizada de as-
cendente a descendente e de um cônjuge a outro importam no
adiantamento da herança e, porquanto, precisam ser levadas à
colação quando da abertura da sucessão, faz-se necessário que,
quando utilizado o adiantamento de legítima como forma ou ins-
trumento de planejamento patrimonial, sejam averiguados e apu-
rados os valores dos bens para que, quando do falecimento do
autor da herança, não seja necessária a redistribuição dos bens
entre os herdeiros para igualar os quinhões de cada um. Isso por-
que, no direito brasileiro, o sistema de distribuição da herança

155

indag indic_gabriella.indb 155 22/07/2021 09:53:16


a importância do planejamento patrimonial e sucessório no contexto da pandemia

adotado é o da igualdade de bens ou quinhões para quantos fo-


rem os herdeiros deixados pelo de cujus.
Assim, o adiantamento de legítima é uma das formas mais uti-
lizadas, hoje, para se realizar o planejamento patrimonial e suces-
sório, haja vista constituir forma segura de garantia que o patri-
mônio do autor seja resguardado ao longo do tempo.

4.3 Do testamento

Previsto no art. 1.857, do CC/02, o testamento constitui a ma-


neira formal de determinar a transmissão dos bens do autor da
herança após a sua morte e, diante disso, consiste em uma das
formas mais comuns de se realizar o planejamento patrimonial e
sucessório.
Nas palavras de Gagliano e Pamplona Filho (2017), o testa-
mento é:
um negócio jurídico, pelo qual alguém, unilateralmente, declara a
sua vontade, segundo pressupostos de existência, validade e eficácia,
com o propósito de dispor, no todo ou em parte, dos seus bens, bem
como determinar diligências de caráter não patrimonial, para depois
da sua morte (p. 281).

Por meio do instrumento de testamento, o proprietário dos


bens, isto é, o autor da herança, poderá determinar a destinação
de seus bens, a qual terá validade após o seu falecimento, deven-
do-se observar, entretanto, a possibilidade de dispor de todo o
seu patrimônio ou somente de parte dele.
Conforme já abordado, é possível dispor do patrimônio, desde
que observada e preservada a legítima dos herdeiros necessários
previstos no art. 1.845, do CC/02. Assim, caso existam herdeiros
necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge ou compa-
nheiro), o instrumento de testamento somente poderá estabele-
cer disposições de metade do patrimônio total, haja vista que, nos
termos do art. 1.857, §1º, do CC/02, a parte do patrimônio que
corresponde à legítima não poderá ser objeto de sucessão testa-
mentária, isto é, não poderá ser incluída no testamento.

156

indag indic_gabriella.indb 156 22/07/2021 09:53:16


larissa helena nascimento capucho

Ao contrário disso, quando inexistirem herdeiros necessários


para herdar o patrimônio do autor da herança, este poderá dispor,
por meio do instrumento de testamento, da totalidade de seu pa-
trimônio.
Nesse diapasão, ainda que o testamento seja uma das formas
de realização do planejamento patrimonial, deve-se ter o cuida-
do de observar os parâmetros estabelecidos na legislação civil,
a fim de que o planejamento sucessório ocorra de forma eficaz,
não sendo objeto de eventual anulação. Vale também prevenir
para que não se dê o rompimento do testamento, nos termos do
art. 1.973, do CC/02. Nada obstante, cabe salientar ainda que o
art. 1.967, do CC/02, determina que as disposições testamentá-
rias que excederem a parte disponível, isto é, abranger também
a legítima dos herdeiros necessários, deverão ser reduzidas nos
limites da parte disponível, não sendo anulado todo o testamento
somente em razão do excesso.
Assim, pode-se dizer que o testamento é uma boa forma de
realizar o planejamento patrimonial e sucessório, visto que respei-
ta a vontade do testador, resguardando o seu patrimônio e ainda
produzindo os efeitos jurídicos somente após a sua morte.

4.4 Da constituição de holding familiar

A constituição de uma holding familiar é também um mecanis-


mo de planejamento patrimonial e sucessório, caracterizando-se
pela constituição de uma sociedade empresária que visa à admi-
nistração e à transmissão de patrimônio de uma pessoa após a
sua morte, por meio da integralização de bens.
Nas palavras de Carvalhosa (2009),
as holdings são sociedades não operacionais que têm seu patrimônio
composto de ações de outras companhias. São constituídas ou para
o exercício do poder de controle ou para a participação relevante em
outras companhias, visando, neste caso, constituir a coligação (p. 14).

Nesse contexto, pode-se aduzir que as holdings são sociedades


formadas com o fim meramente administrativo, ou seja, concentram
157

indag indic_gabriella.indb 157 22/07/2021 09:53:16


a importância do planejamento patrimonial e sucessório no contexto da pandemia

em si a administração do patrimônio integralizado, podendo este


patrimônio ser constituído por outras sociedades, quotas e até
mesmo bens móveis ou imóveis, não exercendo ou desempe-
nhando nenhuma atividade econômica ou comercial.
A constituição de uma holding familiar busca, portanto, jus-
tamente efetivar de forma eficiente e menos onerosa possível a
transmissão de patrimônio de uma pessoa, que será o autor da
herança, aos seus herdeiros, bem como gerar uma proteção patri-
monial dos bens integralizados na empresa.
Dessa maneira, tem-se que a figura da holding familiar vem sendo
destaque dentre as formas de planejamento patrimonial e sucessório,
dado que traz consigo inúmeros benefícios não só para os herdeiros
que, por sua vez, serão sócios, mas também para o patrimônio. Isso
porque, por meio da holding, é possível que haja uma melhor admi-
nistração dos bens, uma incidência de tributos reduzidos, nos termos
da legislação, e ainda se evitem ou previnam conflitos familiares, bem
como litígios judiciais que se arrastam durante anos, fazendo com
que o patrimônio seja desvalorizado, ou até mesmo perdido, acome-
tendo uma série de prejuízos aos herdeiros.
À vista disso, pode-se dizer que a constituição de uma holding
familiar é uma boa opção para planejar-se sucessória e patrimo-
nialmente, devendo, claro, assim como nas demais formas de pla-
nejamento, tomar os devidos cuidados e realizar a análise de risco,
bem como observar as disposições legais, principalmente quanto
aos aspectos sucessórios, tributário e empresarial.

5 A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO PATRIMONIAL E


SUCESSÓRIO

O luto pós-morte é um processo que deve ser vivido, pois a


dor da perda somente é aliviada com o passar do tempo. Ocorre
que, não raras as vezes, as famílias perduram com o sentimento
de dor e vazio, principalmente quando é necessário lidar com os
assuntos relacionados ao patrimônio deixado pelo falecido.
De modo geral, a família e, principalmente, os herdeiros, não
conseguem entrar em um consenso quanto à partilha dos bens

158

indag indic_gabriella.indb 158 22/07/2021 09:53:16


larissa helena nascimento capucho

deixados pelo de cujus, gerando conflitos familiares e discussões in-


termináveis, prolongando e aumentando a dor da perda. Tal situa-
ção é intensificada quando o falecido deixa um patrimônio conside-
rável, com vários bens a serem partilhados, principalmente quando
há vários herdeiros que, por vezes, disputam pelos bens da herança.
Além das diversas discussões familiares que circundam o tema, a
ausência do consenso familiar para tratar dos assuntos relacionados
aos bens deixados pelo falecido gera um grande problema que, por
vezes, resulta em uma desgastante e interminável disputa judicial.
Há, ademais, várias outras situações que podem dificultar a
realização do inventário.
A falta de regularização imobiliária dos bens imóveis deixa-
dos pelo falecido é um dos casos comuns que podem impedir a
realização do inventário e a consequente partilha entre os herdei-
ros, vez que a propriedade não registrada em nome do de cujos
impossibilita a transmissão do bem. Além disso, a doação de um
bem a um descendente de maneira informal, isto é, sem a devi-
da observância dos procedimentos legais, também pode causar
conflitos familiares no que tange à partilha, já que esse bem será,
nesse caso, partilhado entre todos os herdeiros de forma igual, de
acordo com o quinhão de cada um.
Até mesmo o desconhecimento por parte dos herdeiros acerca
dos tributos e despesas com o procedimento de inventário podem
prejudicar, sobremaneira, a realização e finalização do inventário,
além de aumentar consideravelmente os gastos a serem dispendi-
dos, de sorte que o não pagamento do imposto de ITCD (Imposto
sobre Transmissão Causa Mortis e Doação) no prazo legal estabe-
lecido ensejará a aplicação de multa.
Os casos supracitados representam apenas alguns dos exem-
plos comuns que interferem e dificultam a realização do inven-
tário, gerando não só o descontentamento e desgaste familiar,
como também podendo ocasionar a desvalorização e perda do
patrimônio.
Nesse feito, justamente buscando evitar e prevenir esse tipo de
situação, o planejamento sucessório é a melhor alternativa para
159

indag indic_gabriella.indb 159 22/07/2021 09:53:16


a importância do planejamento patrimonial e sucessório no contexto da pandemia

salvaguardar os bens e direitos que serão transmitidos aos her-


deiros, bem como conferir uma mínima segurança jurídica e esta-
bilidade financeira e emocional para que a família passe por esse
momento com tranquilidade.
Conforme já exposado em tópicos anteriores, o planejamento
sucessório e patrimonial consiste na utilização de mecanismos e
institutos jurídicos que possibilitam uma organização do patrimô-
nio para que, após o falecimento do autor da herança, surtam os
efeitos sucessórios, transmitindo-se os bens de forma inteligente e
menos onerosa, conferindo maior estabilidade e segurança jurídica,
bem como evitando os conflitos familiares e as disputas judiciais.
Planejar-se patrimonial e sucessoriamente é pensar no futuro
de forma otimizada, pois esse tipo de planejamento certamente
irá trazer vários benefícios, porquanto poderá: (I) evitar eventuais
conflitos familiares, principalmente entre os herdeiros – que difi-
cilmente chegam a um consenso para a distribuição e partilha dos
bens, quando da realização do inventário de forma convencional –,
proporcionando, assim, maior conforto e harmonia entre os her-
deiros e a família; (II) reduzir de forma considerável a incidência
de tributos, tendo em conta que a carga tributária já é alta, de tal
forma que a falta de um planejamento patrimonial e sucessório po-
derá onerar ainda mais a incidência tributária; (III) facilitar e conferir
maior celeridade na transmissão dos bens aos herdeiros, fazendo
com que o patrimônio não se deteriore e até mesmo se perca, em
razão do decurso do tempo, quando realizado o inventário sem
o prévio planejamento patrimonial e sucessório; (IV) evitar os cus-
tos com o procedimento de inventário que, quando inexistente o
planejamento, onera demasiadamente com os gastos do processo,
honorários advocatícios, administração dos bens em condomínio
e demais; (V) continuar a atividade empresarial, ou os negócios da
família, sem prejudicar a gestão da empresa, nem seu patrimônio.
Destarte, o planejamento patrimonial e sucessório mostra-se
como a forma mais eficiente e segura de resguardar a transmissão
dos bens do autor da herança para os seus herdeiros, pois carrega
consigo benefícios não só tributários ou monetários, mas também
emocionais.
160

indag indic_gabriella.indb 160 22/07/2021 09:53:16


larissa helena nascimento capucho

6. O PLANEJAMENTO PATRIMONIAL E SUCESSÓRIO NO


CONTEXTO DA PANDEMIA

Ainda no contexto do planejamento patrimonial e sucessório,


é inevitável relacionar o tema com o atual cenário pandêmico vi-
venciado em razão da COVID-19, que o Brasil e o mundo vêm
enfrentando, desde o final do ano de 2019.
Com as incertezas trazidas pelo cenário, não só no aspecto da
saúde, mas também no campo econômico nacional e mundial, o as-
sunto morte passou a ganhar maior visibilidade e a ser objeto de
discussões entre as famílias, tendo em vista o grande número de pes-
soas que morreram e ainda estão morrendo em virtude da doença.
Diante disso, houve uma mudança na perspectiva da socieda-
de, no sentido de abrir um espaço maior para tratar do assunto e,
principalmente, de se preocupar com as consequências e reflexos
patrimoniais e sucessórios dos bens que serão deixados, no caso
de haver eventual falecimento de um ente querido.
Nesse sentido, o planejamento patrimonial e sucessório pas-
sou a ser mais quisto e mais procurado pelas pessoas que, por
sua vez, buscam, no referido mecanismo, resguardar e garantir
o patrimônio aos herdeiros após o seu falecimento, podendo tal
fato ser comprovado por meio dos dados coletados pelo Colégio
Notarial do Brasil, que registrou um aumento de 170% (cento e
setenta por cento) do número de testamentos realizados, somen-
te no Estado de Minas Gerais, durante a pandemia da COVID-19.
Segundo o presidente do Colégio Notarial do Brasil, Seção Mi-
nas Gerais, Eduardo Calais, “as pessoas estão vivenciando a mor-
te mais de perto e de forma repentina durante esta pandemia e
isso pode ter influenciado o interesse nos testamentos”2 (CALAIS,
2020, s.p).
Assim, apesar da importância do planejamento patrimonial
e sucessório e suas vantagens, já apresentadas em tópico ante-
rior, o atual cenário vivenciado traz consigo a necessidade de se

2
Fonte: <https://cnbmg.org.br/clipping-g1-registros-de-testamentos-em-cartorios-
de-minas-tiveram-aumento-de-170-durante-a-pandemia-da-covid-19/>.

161

indag indic_gabriella.indb 161 22/07/2021 09:53:16


a importância do planejamento patrimonial e sucessório no contexto da pandemia

dedicar a esse tipo de planejamento, não só pelo medo ou receio


da morte, mas também pela incerteza e instabilidade do cenário
econômico. Mostra-se o planejamento imprescindível e essen-
cial para salvaguardar a segurança jurídica do patrimônio e dos
herdeiros, a fim de que estes não fiquem à mercê da fatalidade,
evitando-se os inconvenientes do procedimento de inventário
que, por vezes, podem ser desgastantes e demandarem substan-
cial dispêndio financeiro, ocasionando um prejuízo patrimonial
consideravelmente alto.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Certo é que um grande problema existente na atualidade é a


falta de preparo das famílias para as consequências jurídicas, pa-
trimoniais e sucessórias decorrentes da morte. Diante disso, con-
siderando o surgimento de dificuldades quando da perda de um
ente querido, principalmente quando diz respeito ao patrimônio
e aos herdeiros deixados, tem-se que o planejamento patrimonial
precisa ser pauta nas reuniões familiares, ainda que a temática
seja mal vista ou indesejada.
Conforme demonstrado por meio do presente estudo, o pla-
nejamento patrimonial e sucessório é uma alternativa necessária
e adequada para prevenir e evitar que problemas, tais como os
conflitos familiares, perda patrimonial, onerosidade do procedi-
mento e o desgaste emocional ocorram, deixando à mercê toda
a possível harmonia que a família poderia ter, se o planejamen-
to patrimonial e sucessório fosse realizado, independentemente
de qual instrumento ou mecanismo jurídico utilizado para tanto,
como a realização do testamento, a doação com reserva de usu-
fruto, a partilha em vida, a constituição de uma holding familiar,
dentre outras.
Assim, pode-se dizer que planejar-se patrimonial e sucessoria-
mente é imprescindível para garantir não só a harmonia familiar,
mas também para conferir segurança jurídica aos negócios, asse-
gurar uma gestão patrimonial eficiente e inteligente, e investir em
um procedimento de inventário menos oneroso.

162

indag indic_gabriella.indb 162 22/07/2021 09:53:16


larissa helena nascimento capucho

8 REFERÊNCIAS

BRASIL. Congresso Nacional. Código Civil. Brasília, 2002.


BRASIL. Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988. Brasília, 1988.
CALAIS, Eduardo. Clipping – G1 – Registros de testamentos em cartórios de
Minas tiveram aumento de 170% durante da pandemia da Covid-19. Colégio
Notarial do Brasil Minas Gerais, 2020. Disponível em: <https://cnbmg.org.
br/clipping-g1-registros-de-testamentos-em-cartorios-de-minas-tiveram-au-
mento-de-170-durante-a-pandemia-da-covid-19/>. Acesso em: 24 de mai. de
2021.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de Sociedades Anônimas. Volume
4. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013.
GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito
civil, volume 7: direito das sucessões. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. Volume 7: Direito das
Sucessões. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
MADALENO, Rolf. Planejamento Sucessório. Anais do IX Congresso Brasileiro
de Direito de Família. Famílias: Pluralidade e Felicidade. Instituto Brasileiro
de Direito de Família. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/assets/upload/
anais/299.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2021.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Volume 6: Direito das Sucessões. 10. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2017.

163

indag indic_gabriella.indb 163 22/07/2021 09:53:16


indag indic_gabriella.indb 164 22/07/2021 09:53:16
TESTAMENTO VITAL E A
AUTONOMIA DA VONTADE
Renata Pires Simas Dal Ferro1

1 INTRODUÇÃO

Cógnito é que o testamento vital trata de uma espécie das Di-


retivas Antecipadas de Vontade (DAV), tendo sua origem nos Esta-
dos Unidos da América, com Luis kutner, advogado e defensor dos
direitos humanos que, preocupado com a autonomia da vontade
do paciente terminal, e reconhecendo a ilicitude da eutanásia e o
suicídio assistido, propôs um documento chamado Living Will, o
atual testamento vital.
No Brasil, ainda não existe norma específica sobre o tema, o
que faculta insegurança jurídica e frustração à manifestação de
vontade do paciente terminal ou incapaz de se expressar. Essa ine-
xistência de norma jurídica pode alimentar desacordos em relação
à opção do paciente a não se submeter a tratamentos médicos
para prolongamento da vida a todo custo, diante dos direitos dos
familiares a auxiliar na manutenção da vida.
Nesse sentido, a ausência de norma específica sobre o tema,
bem como possíveis desacordos familiares em relação à auto-
nomia de vontade do declarante, podem gerar dúvidas quanto
à validade do instituto. Nada obstante, o princípio da autono-
mia da vontade e a autonomia privada encontram-se amparados

1
Graduada em Direito pelo Centro Universitário Estácio de Sá. Pós-graduada em Di-
reito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade Legale. Pós graduanda em Direito
de Família e Sucessões pela Faculdade Legale.  Membro da comissão de Direito das
Famílias e Sucessões da 83ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, seção
Minas Gerais. Advogada. E-mail: dalferroadvogados@gmail.com.

indag indic_gabriella.indb 165 22/07/2021 09:53:16


testamento vital e a autonomia da vontade

pela Constituição Federal, como também na Resolução do CFM


1.995/2012.
Este estudo tem, portanto, cunho hipotético-dedutivo, porque
busca verificar a realidade da validade e eficácia do testamento
vital frente à falta de norma específica e possíveis desacordos fa-
miliares quanto à autonomia da vontade do declarante, mediante
o diagnóstico de finitude da vida a curto prazo, ou incapacidade
de se expressar.
Dessa forma, torna-se necessário pesquisar sobre a autonomia
da vontade como princípio essencial do testamento vital, tal como
a origem, regulamentação, os limites e a possibilidade ou não da
impugnação do referido documento.

2 TESTAMENTO VITAL: UM BREVE HISTÓRICO

Nos Estados Unidos da América (EUA), na década de 70, houve


uma grande preocupação sócio-jurídica em relação à morte dig-
na, com o intuito de evitar o prolongamento da vida a todo cus-
to, baseando-se na dignidade humana e no princípio da autono-
mia da vontade, em outras palavras, o pretenso direito de morrer.
O norte-americano Luis kutner, advogado e defensor dos direitos
humanos, publicou um artigo em que defendia o direito de mor-
rer, a autonomia da vontade do paciente em estado terminal de
escolher a qual tratamento que deseja ou não se submeter, caso
se encontre em incapacidade de se expressar, reconhecendo, po-
rém, a ilicitude do suicídio assistido e a eutanásia. O referido au-
tor propôs um documento chamado Living Will, com as seguintes
formalidades:
(i) o paciente capaz deixaria escrita sua recusa a se submeter a de-
terminados tratamentos quando o estado vegetativo ou a terminali-
dade fossem comprovados; (ii) a vontade manifestada pelo paciente
no living will se sobreporia à vontade médica, dos familiares e dos
amigos do paciente, e o documento deveria ser assinado por, no mí-
nimo, duas testemunhas; (iii) esse documento deveria ser entregue
ao médico pessoal, ao cônjuge, ao advogado ou a um confidente do
paciente; (iv) deveria ser referendado pelo Comitê do hospital em
que o paciente estivesse sendo tratado; e (v) poderia ser revogado a

166

indag indic_gabriella.indb 166 22/07/2021 09:53:16


renata pires simas dal ferro

qualquer momento antes de o paciente atingir o estado de incons-


ciência (DADALTO, 2015, p. 26).

Surgiu-se, assim, o que hoje conhecemos como Testamento


Vital. Todavia esta nomenclatura é questionada doutrinariamente,
como não sendo a melhor denominação, pois o instituto testa-
mento tem referência a negócio unilateral, personalíssimo, gratuito,
solene e revogável, com eficácia post-mortem. O testamento vital
distancia-se em dois aspectos essenciais: solenidade e efeito pos-
t-mortem. Por conseguinte, foi proposto o nome de “Declaração
prévia de vontade do paciente terminal”, o que, segundo disserta
a autora Luciana Dadalto2, vem sendo acolhido pelos bioeticistas.
Em 1991, surgiu a Lei Federal Norte Americana “Patient Self-
Determination Act” (PSDA), que reconhecia a autodeterminação
do paciente, e apresentou, em segunda seção, as Diretivas Ante-
cipadas de Vontade (DAV), como gênero. Também deixou clara a
noção de testamento vital como uma espécie, dentre outras, da
manifestação da vontade, em relação a paciente em tratamento
médicos, sob a situação de fim de vida.
Assim, o testamento vital diz respeito a um documento espécie
do gênero Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV), como uma
manifestação da vontade para tratamento médico a ser submeti-
do ou não, em caso de ausência da capacidade de expressar, ou
no tocante a doentes em fases terminais.
Segundo Nunes (2016),
[...] diretivas antecipadas de vontade são entendidas como instruções
que uma pessoa dá antecipadamente, relativas aos tratamentos que de-
seja ou que recusa receber no fim da vida, para o caso de se tornar inca-
paz de exprimir a sua vontade ou de tomar decisões por si própria (p. 76).

Após a lei americana PSDA, a discussão a respeito das Direti-


vas Antecipadas da Vontade chega à Europa, sendo a Finlândia,
a Hungria e Holanda os primeiros países a legislar sobre o tema.
No Brasil, a DAV, ou testamento vital, ainda não se encontram
regulamentadas por norma jurídica. Entretanto, em 2012, ocorreu

2
2013; in: Testamento Vital. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris.

167

indag indic_gabriella.indb 167 22/07/2021 09:53:16


testamento vital e a autonomia da vontade

o seu reconhecimento pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)


com a Resolução CFM nº 1.995/2012, estabelecendo ser ético ao
profissional da medicina o respeito à autonomia da vontade dos
pacientes previamente expressa – mas não diferenciam as Direti-
vas Antecipadas de Vontade do Testamento Vital.
Segundo Dadalto (2013), as Diretivas Antecipadas de Vontade
estabelecem um gênero do qual são espécies o testamento vi-
tal e o mandato duradouro, sendo o testamento vital documento
específico para pacientes com diagnóstico de terminalidade, ou
da comprovação do estado vegetativo sem possibilidade de reco-
brar suas faculdades: é aquele cujas condições são irreversíveis. Já
o mandato duradouro estabelece a manifestação de vontade do
paciente de nomear uma pessoa para tomar decisões relativas a
tratamento médicos, quando ele não for mais capaz de exprimir
sua vontade, ainda que por uma situação transitória.
Assim sendo, a diferenciação dos institutos testamento vital e
mandato duradouro revela-se de suma importância, porque estabe-
lece as diferentes formas de manifestação de vontade do paciente.

3 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE E O


TESTAMENTO VITAL

De origem grega, a palavra Autonomia é composta pela jun-


ção do adjetivo autos, que significa o “mesmo, ele mesmo, por
si mesmo”, e do substantivo nomos, com o significado de “lei do
compartilhar, instituição, convenção, lei”3. Nesse sentido, auto-
nomia concerne à liberdade de agir, de pensar, de ditar suas pró-
prias regras, de manifestar vontade, capacidade humana de se
expressar, competência para gerir sua própria vida, aptidão para
tomar suas próprias decisões. Assim, cabe aqui explanar acerca
da autonomia da vontade e da autonomia privada, tal como ve-
remos a seguir.
A autonomia da vontade refere-se à liberdade de praticar atos
e estabelecer relações jurídicas, sendo livre a manifestação de
vontade por meio de acordo, determinando o conteúdo, a forma
3
CAMPOS & OLIVEIRA, 2017.

168

indag indic_gabriella.indb 168 22/07/2021 09:53:16


renata pires simas dal ferro

e o efeito, conforme seus interesses, devidamente tutelados pela


ordem jurídica. Já a autonomia privada diz respeito à criação de
autorregulamentação de suas atividades jurídicas, nos limites da lei.
Em outras palavras, a autonomia privada é uma espécie de au-
tonomia da vontade, em que suas disposições devem estar alinha-
das ao direito regulamentado e ao direito da deliberação volun-
tária dos particulares. No mesmo sentido, a autorregulamentação
encontra limites sobre aspectos constitucionais protetivos.
Sendo assim, o ato de expressar a manifestação de vontade,
e revogá-la a qualquer tempo revela-se como o próprio exercício
da autonomia na sua genuinidade. Portanto, afiguram-se a au-
tonomia da vontade e a autonomia privada requisitos essenciais
para a formação do Testamento Vital. A liberdade de manifestar
a vontade subjetiva para a finitude da vida, mediante casos extre-
mos, como a incapacidade ou doença terminais, deve ser expressa
e formalizada em instrumento próprio, com o paciente exercendo
sua autonomia da vontade, bem como a autonomia privada, ou
seja, ratificando seu direito de morrer naturalmente, sem interven-
ções médicas ou tratamentos fúteis.
O Princípio da Autonomia tem fator fundamental nas Dire-
tivas Antecipadas da Vontade (DAV), acolhidas pela Resolução
n° 1.995/2012 do CFM, pois é nesse princípio que a declaração de
vontade encontra amparo constitucional.
Logo, o paciente pode manifestar expressamente sua vontade
de desistir ou não do tratamento médico, e viver os seus últimos
dias de vida com seus familiares, ou esperando pela morte natu-
ral, ou anunciando o seu desejo de não prolongamento da vida a
qualquer custo.
O testamento vital materializa-se como instrumento hábil, com
supedâneo no Princípio Constitucional da Autonomia da Vonta-
de, prevalecendo, assim, o desejo do declarante, não sendo este
submetido a outras opiniões, tampouco a vontades de terceiros.
Por outro lado, a manifestação de vontade encontra limites, vez
que não são reconhecidos em nosso ordenamento jurídico a eu-
tanásia, nem o suicídio assistido. Dessa maneira, o testamento
169

indag indic_gabriella.indb 169 22/07/2021 09:53:16


testamento vital e a autonomia da vontade

vital, conforme Resolução nº 1.995/2012, aplica-se à ortotanásia


ou morte natural, digna e na hora certa.
Diante do exposto, pode-se afirmar que a autonomia da vonta-
de e a autonomia privada são princípios essenciais ao testamento
vital. A liberdade do paciente em optar pela ortotanásia de forma
expressa não pode ser questionada, em respeito ao princípio da
autonomia, deixando o curso natural da doença acontecer, sem
quaisquer intervenções que extrapolem os cuidados básicos.

4 A POSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO DO TESTAMENTO


VITAL QUANTO AOS DIREITOS DOS FAMILIARES NO
AUXÍLIO DA MANUTENÇÃO DA VIDA E A AUTONOMIA DE
DECLARAÇÃO DE VONTADE DO PACIENTE TERMINAL

A morte é a maior certeza da vida, porém falar em morte ou


determinar quando morrer dignamente pode gerar muito incô-
modo a muitas pessoas. Culturalmente, não gostamos de falar
sobre morte e doenças. A morte ainda é algo que provoca medo.
Nesta eira, o testamento vital torna-se o instrumento adequado
para a manifestação da vontade quanto ao tratamento médico que
o paciente, acometido de doença terminal ou degenerativa, que
leva à incapacidade de se expressar, desejar ou não se submeter.
Diante disso, indaga-se: quais seriam as probabilidades de eficácia
do tratamento? Poderia um familiar questionar a possibilidade do
tratamento médico mediante a negativa do paciente declarante?
No Brasil, conforme anteriormente pontuado, não há, ainda,
norma jurídica acerca do referido instituto. Entretanto, cabe sa-
lientar que a Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Me-
dicina, reconhecendo a importância da autonomia da vontade do
paciente na escolha do tratamento ou rejeição deste, através do
Testamento Vital ou via Diretivas da Autonomia de Vontade, dian-
te de uma doença terminal ou incapacidade de manifestar sua
vontade, é norma da classe médica, como as demais do CFM. Des-
sa forma, basta o paciente manifestar sua vontade, estar em gozo
de suas faculdades mentais, entender as informações prestadas
pelo médico e fazer a escolha da DAV.

170

indag indic_gabriella.indb 170 22/07/2021 09:53:16


renata pires simas dal ferro

Impende pontuar que a falta da norma jurídica não gera a


invalidade do testamento vital, pois que se encontra amparado
por princípios constitucionais: da Dignidade da Pessoa Humana,
da Liberdade e da Autonomia, bem como a própria proibição ao
tratamento desumano. Todavia, recomenda-se que o documento
seja registrado em cartório para garantir a vontade do declarante
e a segurança jurídica. Não há, pois, que se aceitarem, em sequ-
ência, atitudes imperiosas, seja de órgãos governamentais, família,
médicos, qualquer pessoa ou entidades que pretendam impor sua
vontade – há que prevalecer a vontade do paciente, consoante
ratifica o Código Civil, em seu artigo 15, quando assim determi-
na: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de
vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
Nessa perspectiva, em 2014, o Conselho Nacional de Justiça
aprovou, dentre outros, o enunciado 37 da I Jornada de Saúde,
o qual estabelece que as diretivas ou declarações antecipadas de
vontade – que especificam os tratamentos médicos a que o decla-
rante deseja ou não se submeter, quando incapacitado de expres-
sar-se autonomamente – devem ser feitas preferencialmente por
escrito, por instrumento público ou particular, com duas testemu-
nhas, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação
admitidas em direito (CNJ, 2014).
A Resolução do CFM foi de grande avanço para as diretivas an-
tecipadas de vontade, porém se faz necessária uma norma jurídica
específica para tratar o tema, que tem ganhado notória relevância,
com vistas a evitar, desse modo, possíveis discordâncias a respeito
da manifestação de vontade do paciente a subordinar-se a trata-
mento médico, o qual ele não acredita trazer benefícios.

5 CONCLUSÃO

Fato é que o testamento vital ou as diretivas antecipadas da


vontade não se encontram regulamentados em nosso ordena-
mento jurídico. Contudo, o tema torna-se relevante, pois produz
efeitos sociais e jurídicos. O paciente, ao recusar um tratamento
médico diante de diagnóstico da finitude da vida, pode antecipar
sua morte. A decisão de morrer com dignidade pode ser difícil
171

indag indic_gabriella.indb 171 22/07/2021 09:53:16


testamento vital e a autonomia da vontade

para o paciente e seus familiares, de sorte que a necessidade do


diagnóstico preciso e acompanhamento médico constituem-se
fundamentais.
Diante disso, é essencial que o paciente esteja com sua capaci-
dade cognitiva preservada para exercer a autonomia da vontade e
sua autodeterminação, ao escolher a qual tratamento ou não deseja
ser submetido, as chamadas diretivas antecipadas de vontade. Estas
se encontram regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina
na Resolução 1.995/2012, referendadas no Enunciado 37 da I Jor-
nada de Saúde CNJ, e amparadas pelos Princípios Constitucionais.
No entanto, a decisão de fazer um testamento vital só é cabí-
vel ao paciente declarante – e pode ser este revogado a qualquer
momento, de acordo com a sua autodeterminação, dificultando a
possibilidade de outrem sobrepor sua vontade – mediante docu-
mento atestado e reconhecido pelo médico, com o consentimento
do paciente, e registrado em cartório.
Mostra-se evidente a grande necessidade da regulamentação
jurídica do tema, pois mesmo não havendo legislação específi-
ca sobre as diretivas antecipadas de vontade, especificamente
o testamento vital trata-se de documento unilateral e persona-
líssimo, reconhecido pelo órgão de classe CFM, embasado no
relacionamento médico/paciente, que, diante de um diagnóstico
da finitude da vida, em curto prazo, registra a manifestação da
vontade do paciente quanto ao tratamento ou não para a sua
enfermidade. Cabe lembrar que este documento deve ser regis-
trado em cartório, devendo ser lavrada uma escritura pública,
gerando, dessa maneira, uma segurança jurídica ao documento,
que, apesar de não ter uma norma específica no ordenamento
jurídico, tem sua base solidificada nos Princípios Constitucionais,
dificultando, assim, possíveis impugnações à manifestação de
vontade do declarante.

6 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 14 mai. 2021.

172

indag indic_gabriella.indb 172 22/07/2021 09:53:16


renata pires simas dal ferro

BRASIL. Lei nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Código Civil, Brasília,


DF, jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/
l10406> Acesso em: Acesso em: 16 mai. 2021.
CAMPOS, Adriana; OLIVEIRA, Daniela Rezende de. A relação entre o princípio
da autonomia e o princípio da beneficência (e não-maleficência) na bioética
médica. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte. n. 115, p. 13-
45, jul./dez. 2017.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM nº 1.995/2012. Dispõe
sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Disponível em: <ht-
tps://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=244750>. Acesso em: 16 mai. 2021.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). I Jornada de Direito da Saúde.
Enunciado 37. 15 de maio de 2014. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2019/03/e8661c101b2d80ec95593d03dc1f1d3e.pdf>. Acesso
em: 16 mai. 2021.
DADALTO, Luciana. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade.
Civilística. 2013. Disponível em: <https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/arti-
cle/view/135/103>. Acesso em: 15 mai. 2021.
DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê
é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente termi-
nal). Revista de bioética y derecho. 2013. Disponível em: <https://scielo.isciii.
es/pdf/bioetica/n28/articulo5.pdf>. Acesso em: 31 mai. 2021.
DADALTO, Luciana. História do Testamento Vital: entendendo o passado e refle-
tindo sobre o presente. Revista Mirabilia. 2015. Disponível em: <https://www.
revistamirabilia.com/sites/default/files/medicinae/pdfs/med2015-01-03.pdf>.
Acesso em: 31 mai. 2021.
DADALTO, Luciana. Reflexos jurídicos da Resolução CFM 1.995/12. 2013.
7 f, Revista Bioética, Brasília, 2013. Disponível em: <https://www.scielo.
br/j/bioet/a/jt5d9PVQgWkffwMLzvvDM7h/abstract/?lang=pt>. Acesso em:
20 mai. 2021.
DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas
antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. 2013. 14 f, Revista Bioética,
Brasília, 2013. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/bioet/a/SzZm7jf3WDTc-
zJXfVFpF7GL/?lang=pt>. Acesso em: 21 mai. 2021.
GOMES, Bruna Mota Machado et al. Diretivas antecipadas de vontade em geria-
tria. Revista Bioética. 2018, v. 26, nº 3, p. 429-439. Disponível em: <https://doi.
org/10.1590/1983-80422018263263>. Acesso em: 31 mai. 2021.

173

indag indic_gabriella.indb 173 22/07/2021 09:53:16


testamento vital e a autonomia da vontade

NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Conselho Federal de Medi-


cina. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, 2016. Disponível em:
<https://sbgg.org.br/wp-content/uploads/2017/01/diretivas_antecipadas_de_
vontade_-_rui_nunes.pdf>. Acesso em: 14 mai. 2021.
The Patient Self-Determination Act of 1990. Washington: House of Repre-
sentatives, H.R. 4449. U.S. 101st Congress, 2d Session, 1990: 1-9. Lei Federal
Norte Americana “Patient Self-Determination Act” (PSDA). Disponível em:
<https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1588296/>. Acesso em: 14 mai. 2021.

Impresso em de agosto de 2021

174

indag indic_gabriella.indb 174 22/07/2021 09:53:16

Você também pode gostar