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ESPECIALMENTE A PAUUSTA
CARLOS LEMOS
E Sáo Paulo fol urna grande ilha, muito afastada das outras, de alnda
malor personalidade recriadora, decompondo os modelos clássicos do Reino
em saborosas obras de talba, táo bem analisadas por Lúclo Costa (6). As
primeiras ima¡¡ens aqul aportadas nos tempos her6icos da lnstaIacáo lito.
ranea certamente deveriam ter o ·r anco gótico, já que a novidade renascen·
tlsta custou a chegar a escultura portuguesa. Certamente deveriam osten·
t.ar aquela postura caracteristlca das imagens medieval. que, iá desde 11
escultura romanlca, o povo confundia com compostura blerática, enquanto,
na verdade, ela era simples conseqQencia formal das llmitacOes da pedra com
que eraro feitas. Essa postura foi repetida nas pecas de madeira e, depols,
na própria ceramlca que, sem dúvida, poderia oferecer outras Bolucoes plás-
ticas. A verdade é gue a malor produCáo portuguesa de imagens do sé-
culo XVI mostra urna sucessao de madonas gorduchas e sorridentes, de
bracos apertados ao corpo e levemente empinadas para trás, sugerindo urna
gravidez que, as vezes, o panejamento da túnica acentua alnda mals. ASslm·
deveriam ser as imagens trazidas pelos colonos vindos com Mamn Afonso
de Sousa, assim foram· esculpidas as Virgens do Mestre Joáo Goncalo Fer-
nandes e assim deveriam ter sido as que chegaram aos campas de PIra-
tininga, no planalto !solado de todos. Essas imagens fizeram escola - essas
Nossas Senhoras de corpo cheio se multiplicaram pelas capelas e oratórios
de Sao Paulo, conservando sempre a mesma flsionomla. O isolamento elo
planalto, sem dúvida, propiciou essa repetiCiio ou perpetuacao, pOsto que
modeloS novos e freqüentes eram diticeis. E, de mals a mais, o mameluco
da serra acima era multo conservador. A respeito, basta o exemplo da
fixacao da talpa de pilao em Sao Paulo e em tilda a sua zona de lnfluencia,
em detrimento de outras técnicas e o exeroplo da casa bandeirista, que
atravessou séculos sem se alterar em seu partido e ero sua planta básica.
Essas imagens primitivas foraro copiadas e recopiadas - reproduzidas no
barro. e na madeira, em vário. tamanhos e, acreditamos mesmo, feitas até
no século XVIII e, quem sabe, no proprio século XIX. O. modelos
iam longe e nao é imposslvel a idéia de uro santeiro da roca
distante produzir cópias de cópias de imagens veneradas como multo mila-
grosas, perpetuando estilo de séculos passados. Aliás, sao inúmeros o,
exeroplos de arcalsmos presentes na vida cotidiana de iXlpulacoes do Interior
- arcaísmos no llnguajar, no mobiliário repetidO a exaustiio, DO vestumo
dos pobres e dos ricos. l1: conhecida, por exemplo, a história do capitáo-mor
de !tu, Vicente Taques Gois e Aranha, que se apresentou para prestar vas-
salagem a D. Pedro 1 em Sao Paulo, nos dias da Independencia, vestindo
trajes de gala do século anterior, só causando risos ao fazer a reverencia
12 CARLOS LEMOS
com seu chapéu trlcórnlo. Assim, niio achamos descabida a hipótese que
previ!, em Siio Paulo, em pleno século XIX a repetiCiio, abastardada é ver-
dade, de modelos medievals. Multas dessas imagens dos dais prlmeiros sé-
culos sao datadas, é sabido, mas tódas elas siio eruditas, conventuals, cata-
logadas. Serviram de modelo. As outras, as da grande produCiio an6nima,
é que nos interessam e siio de épocas indeterminadas, bastando-nos o seu
valor documental quase sempre aliado i1 louvável qualidade artistica de seu
intérprete rustico.
Nos· prlmórdios do século XVIII iniciou-se noira fase da imaginárla
paulJsta, ou melhor, niio digamos fase, porque a palavra sugere urna se-
qUencia cronológica e, na histórla da toréutica paulJsta houve simultanei-
dade de ocorrencias de estilos ou de interpreta~óes, o que faz bem aceita a
expressao ufaixa". Digamos que nos dois primeiros séculos de Sáo Paulo
situa-se, principalmente, a faixa de inspira\:iio gótica . na imaginária, ande
está também insinuada a presen~a do clássico renascentista, através da
austeridade do panejamento bem ordenado e através dos pol'IIlenores deco-
rativos, tanto esculpidos como pintados. Por exemplo: as f6lhas de acanto,
as ramagens, os fest6es, certas gregas circundando os pedestals, certos pen-
teados de Nossa Senhora, lembrando os cabelos das patriCias romanas. No
come~o do século XVIII, entiio, inicia-se nova falxa que concorre com a
primeira apresentando a novidade barroca, com seus santos mais afidalgados
e descontraldos, mais parecidos com a gente. Santos. de bigodinhos e bubas
bem aparadas, santas de panejamento esvoa~ante e fitas nos cabelos e pi-
sando querubins risoMos de asas ·multicoloridas. Foi gente nova que trouxe
diretamente o barroco polltugues, barroco já bastante cOMecido no litoral
Norte, especialmente Babia e já em processo de reformul~iio nos arralals
de Minas Gerals, cheios de gente instrulda entre os aventureiros - gente
que lrIa criar um centro cultural de alto valor, tanto na música, na litera-
tura como na pintura e na escultura. No com~o do século XVIII, Minas
a1nda nao reflulra - niio se transbordara sóbre as divisas paulJstas. No
com~o tuda ia para Minas - nada voltava, nem influencias. A nossa arte
sacra barrllea nasceu de modelos orlginals vindos do Reino através de gente
aqul arribada com o intuito de a1canear a fortuna rápida nas catas e impe-
dida no intento pelo govérno forte, a quem niio agradava, ou pelo menos,
assustava, a já grande densidade demográfica de Minas e, portanto, abrigada
a permanecer no litoral em outros afazeres ligados mals i1 subsistencia do
poYO das Gerais (7). Muitos desses portugueses vieram para Siio Paulo e,
na segunda metade do século, no tempo do Margada de Mateus, ocupavam
com suas lajas de mercadores grande parte das ruas centrals. Nos reoen-
seamentos das ordenaneas da época, vemos a rua da Quitanda e travessas
cheias de negociantes e artifices de ape1idos de indiscutivel procedencia reinol
recente, em contraste com os nomes sabidos e repetidos da raea mameluca.
Examinamos, no Arqulvo do Estado, vários inventárlos désses negociantes
NOTAS SOBRE A IMAGINARIA, ESPECIALMENTE A PAULISTA 13
e vimos que todos eram relativamente ncos, com dinheiro amoedado e, alguns,
com liga~óes comerciais em Minas Gerais, através de correspondentes. Infe-
lizmente, nao sao identificados naqueles recenseamentos os Usanteiros" que
tenham existido entre nós - porque se eles nao eram amadores, tenam
outra ocupa~ao dita principal a ofuscar a de imaginário. Aliás, há um
silencio sepulcral sóbre tudo que diga respeito ii imaginária nos papéis ofi-
ciais antigos. As imagens, por mais ricas que fossem, MO eram inventa·
riadas e nem avaliadas. Nao eram vendidas e sim 4~trocadas'\ E, talvez,
nao rosse normal dlzer-se santelro de profissao, ou escultor de imagens. O
único imaginário paulista do século xvm que conhecemos, por exemplo,
aparece nos recenseamentos sem especifica~o da profissí!o e se nao fósse
uma sua escultura assinada, jamais poderlamos supor que aquéle Boaventura
dos Santos, jovem de vinte e seis anos, morador na humilde aldela de Gua-
rulhos fosse o autor de uma p~a de tao refinado acabamento e erudita
concep~ao como essa Nossa Senhora das Dores, guardada na Paróqula 6e Sao
Luis de Paraitinga. Nao sabemos se Boaventura dos Santos era paullsta
de nascimento, talvez fosse de Portugal, onde tena estudado, pois sua téc-
nica é aperfei~oada demais para ter sido aprendida aqui, mormente os dou-
rados ero. relevo do Panejamento. Ou da Babia, quem sabe. Enflm, esse
artista deve ser pesquisado porque talvez tenha sido um chefe de escola e
tenha influenciado a imaginária paulista a partir de entiio. Em 1779 e 1780
éle morou em Guarulhos, onde acreditamos tenhp-se casado. Sua mulher
naqueles anos contava 17 anos. Depois disso, vamos encontrá-Io em 1783
morando em S·ao Patilo e, o que é importante, com udisclpulosu - expressio
usada no recenseamento daquele ano para designar tres agregados em sua
casa : Matias, com 50 ano e os jovens Pedro e Miguel. Depois daquele ano,
perdemos sua pista. E o único IImestre entalhadoru de Sao Paulo que 00-
nhecemos; também no século xvm, foi Vicente Ferrelra. CUlO nome deseo-
brlmos numa escntura pública de loca~ao de servi~os (8). Foi éle encar-
regado de fazer o novo retábulo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretas, em 1742. Quem sabia fuer complicadoS ufIarois" e ufulba_
gens" além de urna eoroa imperial com dois aojos pegando nela eom sua
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F /!J. 3 - Quotro i lllO!lC1I 1I do borru d e E~tr 61110;:> fin colo('lio do 1meto JQ.';é Réyio,
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Pinllo'a orioinal. Ccrsn PUI'O illlial ¡/(. S,¡o Luis ti c Parai(illf/n . No
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tla.s de m od o /os Ilif~ re1I t c H. J1 1)1' lm c h'(1 ,',-ocede d 6 Sautu /jll ;:¡" li t) Nn zaré PaulitHa ,
10)í c m . d e altura ,' a sC!1ulI(l n (le Bro!lutl QtI Paulixta , l .' c m d e altrt r o.; a t erce Íl'U
d a ZO,1tI tic P o("ott (l e Cuida s, 12 c m . d e (jl.lllm e, /inaI7l1 6J1t c , (l q uur tu ,Ia :o lla tl e
111t , J.'r,fi c m. Il e altU TU - Co/e(' ijo (I n nul or.
F i ll. I j o
Pif} , ~.'i - '/" 'es 1)C( ' lI,' ¡le ' ( fl(; fi 6 1¡i u/I O" l'eprBRo lltond o
Salll o ..1111611 ;0 IH'ocoll enl o... ¡l e PiTIJCU;II , Alturu,'I: 17,8 t'!
J I! cm, en l er;rio 1/0 d¡d (lr .
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Elm todo caso, pensamos que fol no inicio do século XIX, em qualquer
lugar de Slio Paulo, que alguém come~ou a fazer santinhos conforme mo-
delos ~ deflnlaos do Reino, mais precisamente, modelos de Estremoz. Já
recordamos que a hnaginárla popular de b8J11'Ó do sul portugues surglu na
segw¡aa metade do século XVIII e, dentro' da velocidade da época, nao é
de se estranhar que trinta ou quarenta anos depois estivessem suas pe~
senda reproduzidas aqui. Já encontrarnos várias hnagens "paulistinhas" da-
tadas. 0 artista, no oco ao santo, ainda com o barro molbado, escrevla
com urn estilete a aata aa feitura aa lmagem. Vimos somente datas do
primeiro quaxitel em ruante, o que coincide com a época da ado~lio, na pin-
tura, do azul ultramar de colbalto de Thenarí:!, inventado em 1802 e usado
na prática a partit: de 1820-1830 f9); cor ,sistematlcamente empregada pura
ou misturaaa com branC9, nas decora~óes de ImagiJJáDla paulista: do século
XIX. A produ~lio dl' Est¡'~moz teve urna mda relativamente curta; na
primeira metRde do século passado já estava em declinio, desaparecendo
aos poucos dl!S feiras 'ensolaradas do Alentejo. A nossa del'iva justamente
dessa fase final, mais simples e despojada de ornamentos e durou até os
últimos anos do século, tendo sIdo distribuida por todo o nosso interior desde
Bananal, Areias e Ubatuba até Campos Novas do Paranapanema e Apia!;
desde ltapecirica e Embu até As cidades do norte da 1tfojlana. S6 nao acha-
mas "paullstinhas" foi no vale do Ribeira de 19uape e nas zonas novas da
Noroeste e da Alta Sorocabana. ~ses santinhos, há setenta ou oltenta
anos, nao mais sao fabricados e nao mais viajarn nos baús dos mascates -
todo esse tempo ficaram esquecldos nos velbDs orat6rios da ro~ e das pe-
quenas ' cidades de vida pacata pata ressUl;g!rem agora e voltarem 11 eapltal
nos carros dos antiquários interessados em envolve-Ios numa legenda de
ancianidade que suas frágeis costas de barro mal cozido mal suportam.
A nossa grande produ~¡¡o de "paulistinhas" foi estereotipada. A pri-
meira vista, até parece que .as lmagens tenham sido obtidas a plU'tir de
formas, tao grande é a semelban~ entre pe~ de mesma familia. Iguals no
tanianho, semelbantes no volurne e nas posturas e iaenticas na pintura, que
chega a ser multo bem cuidada. Há imagens que possuem detalbes pre-
ciosos nos pormenores dos rostos : os albos multo bem desenhados, as sobran-
celbas arqueadas e langas, executadas com tra~sfinissimos, dando impress!io
de 'Pintados com pincel de um pelo s6. Existem famruas de "pau1!stinhas".
A grande malaria das lmagens é feita de barro branco, mas a temática e o
tratamento, ou as solu~s esctílt6ricas sugerem vários artistas ou oficinas
diferentes. Quanto a escolba dos modelos ou temas, julgamos que os artis-
tas aglram a esmo, separando modelos das Igrejas ou dos orat6rios, além, é
claro, de se servirem das pe~ oriundas de Estremoz. A sua produ~o niio
toi iniciada segundo urna orienta~o estética pré;dete1'lllinadil. e coerente com
as correntes antisticas da epoca. A varledade est ilistica já nos introduz no
ecletismo que lago maIs ma absol!Ver as produ~ artIsticas do século.
Essas famflias de upaullstinhastl estavam, entáo, condicionadas a Umaneira'1
do artista, As limIta~ do barro e aos seus posslveis modelos. Assim, ve-
18 eMU.OS ¡',EMOS
NOTAS ummOGBAFlCAS
1.. NAo lnteressou a Lourlval Gomes Machado, dlretamente, mas convém ler o seu
artlgo «Para o estudo do santelro" In o «Suplemento LiterArio" de O Estado
de S40 Paulo, de 1S.1G-1956. Ver também cA arte crlstli no Museu Histórico»,
por Gustavo Barroso, In Anal. do Museo. rJIltjt6rlco Nacional, vol. IV, 1943,
Imprensa · Nacional em 1947, Rlo de .Tanelro. E, também, !rréa artlataa bene-
dltlno8 por Dom €lemente !Marta da SUya Nlgra, Minlstérlo da Educal:4p e
Cultura. Rlo de Janelro.
20 CARLOS LEMaS
5. Ver PAclnaa de Hllt6rla FraucllJcana DO Bl"aIIlI, por Frel Baslllo Rower O. F .M.
- EditOra Vozes Ltda., PetrOj)OJls, p. SSl.
7. Ver eNotas sObre a evolucAo da morada pauUsta» por LuJz sata, EdJtora AcrO..
poleo Slo Pauto, 1957, p. 9.