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Goiânia
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
Monografia apresentada à
Faculdade de Ciências Sociais
como requisito parcial para a
obtenção do título de bacharel em
Ciências Sociais.
Goiânia
2017
JORDANNA FONSECA DA SILVA
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A Deus,
Ao meu pai, Walteir, e à minha mãe, Roseany, mãe e pai, sem ordem,
À orientadora deste trabalho, da iniciação científica e das ideias para uma dissertação, profa.
Ivanilda,
Às resistências e mudanças,
Às multidões.
A rua se torna moradia para o flâneur, que,
entre as fachadas dos prédios, sente-se em
casa tanto quanto o burguês entre suas quatro
paredes.
W. Benjamin, O Flâneur
Resumo
The discussions on urban landscape, socio-spatial segregation, citizenship and right to the
city, lead this work to develop a reflection on the social inequalities that inhabit the urban
space of the city of Goiânia, having as main object of analysis Av. Anhanguera. For this,
photographs of the east and west route were used, covering the entire avenue inside the
capital, for later reading and analysis of the images. An urban ethnography was also carried
out, with a simple participant observation of this part of the city from the Eixo Anhanguera, a
vehicle that travels exclusively through this avenue. From this, the conditions of mobility
available to citizens using this mass vehicle, BRT, were analyzed. The results point to a close
relationship between social inequality and spatial segregation, showing how, as we move
away from the central regions and approach the peripheral regions, the places of the city
change significantly, in terms of services and urban aesthetics.
Figura 1 - Introdução: Os vários mundos num só..., St. Central / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
Anhanguera1. Tendo utilizado o veículo diariamente para ter acesso à cidade, frequentar aulas,
passear, me interessei por compreender como se dão as relações sociais percebidas dentro do
Eixo, e como são as alterações das paisagens observadas através da janela do coletivo que nos
leva de uma ponta a outra do corredor. Procurei refletir sobre a apropriação do espaço pelos
sujeitos/agentes sociais; como se conformam as múltiplas territorialidades e fronteiras em sua
dimensão política; e, ainda, se é possível pensá-lo como um espaço de troca entre os sujeitos
sociais ou como uma “guerra de lugares”. Acredito que as pessoas reinventam novas formas
de se apropriar dos espaços públicos, transformando sua paisagem de acordo com seus
interesses e cujos simbolismos encontram-se inscritos nos locais onde vivenciam seu
cotidiano. De modo geral, esse é o tema central da pesquisa, que se desmembra em outros
ramos.
Objetivo apresentar uma visão geral da segregação socioespacial existente no decorrer
da Av. Anhanguera, como um recorte da realidade na cidade de Goiânia e em outras
metrópoles, partindo dos estudos sobre paisagem urbana, espaço urbano, cidadania e
desigualdades sociais. Para isso, percorri com o Eixo Anhanguera, o principal transporte de
massa da capital - a qual não conta com metrô ou trem –, durante vários dias, a Av.
Anhanguera. O veículo biarticulado trafega exclusivamente por essa avenida. Nele
encontramos de bebês de colo a idosos que utilizam muletas enfrentando diariamente a
superlotação, a falta de respeito das empresas para com o/a consumidor/a, do Estado para com
a/o cidadã/o, além da insegurança, preços incompatíveis com o serviço, desconforto, tempo de
espera elevado nos horários de pico, péssimas condições de espera etc.
A proposta metodológica consiste em uma “caminhada virtual” (ARANTES, 2000),
por meio da qual atravesso a cidade a partir da Av. Anhanguera, capturando os trechos com
fotografias para, em seguida, descrevê-las e analisá-las. Procurei estabelecer um diálogo entre
a obra de Arantes e de Benjamin, pois, minha intenção foi olhar para cidade considerando-a
um grande laboratório. Entretanto, diferente do flâneur que caminha sem destino e a “passos
de tartaruga”, cultuando as ruas da metrópole moderna, observo a cidade da janela do coletivo
e meu destino foi pré-estabelecido. Apesar desta diferença, para mim, assim como para o
flâneur benjaminiano:
1
O Eixo Anhanguera foi o precursor de toda a rede integrada de transportes coletivos que hoje opera na Região
Metropolitana. Sua história mistura-se com a da Rede Metropolitana de Transportes Coletivos (RMTC). Ele
representa o principal eixo de estruturação, de interconexão de linhas e de distribuição de demanda do transporte
coletivo em operação na capital. Para saber mais, ver: BORGES, Adriane Tavares. Mobillidade urbana: os
corredores de transporte coletivo de passageiros em Goiânia. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Desenvolvimento e Planejamento Territorial,
2015.
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Cabe definir a flâneurie, antes de tudo, como um tipo de ação social sobre o espaço
urbano, seguindo o traçado da cidade, o movimento da multidão. Para Benjamin (2007), que
se debruçou em encontrar o tipo literário do flâneur nas obras de escritores do século XIX, em
especial Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe, este personagem possui características que lhe
são próprias. Ocioso, vagabundo, observador, caminhante. O flâneur torna-se multidão e
apenas existe em seu meio, sem perder sua individualidade. Benjamin (2007) afirma, todavia,
que a ociosidade resulta de um confronto com a divisão do trabalho social, assim como a
lentidão dos movimentos, a ausência da pressa, são também uma afronta aos modos de vida
urbanos, erguidos na modernidade, com a correria, a velocidade e o controle do tempo pelo
relógio.
O flâneur compõe seus devaneios como legendas para as imagens, parafraseando
Benjamin (2007). Assim, a elaboração das legendas e nomeação das fotografias ocorreu de
maneira livre, seguindo uma linha descritiva ou metafórica, e, por vezes, um tom sarcástico
que se justifica diante das contradições presentes nas imagens. O percurso analisado segue,
necessariamente, um norteamento básico: o coletivo sai de uma região periférica, atravessa
um setor médio-nobre, corta o setor comercial-central, e encontra novamente uma região
periférica.
Ainda sobre a metodologia aplicada adotei a revisão bibliográfica aliada à etnografia
urbana (MAGNANI, 2002) e produção das fotografias. No primeiro caso, o levantamento
bibliográfico, leituras, fichamentos e produção de resumos, fundamentaram o processo de
formação da pesquisadora e o aprofundamento teórico no assunto a ser estudado. Esse
processo inicial contribuiu para a discussão sobre os conceitos indicados nos objetivos
específicos, que foram basilares para o seguimento da pesquisa, tais como “paisagem urbana”,
“lugar”, “mobilidade urbana”, “cidade”, “espaço público”, entre outros.
A metodologia de Leitura e Análise da imagem, proposta por Coutinho (2011), foi
escolhida, considerando a produção de fotografias sob o olhar do flâneur que observa a
paisagem urbana goianiense. Ela será fundamental para a compreensão das mudanças
ocorridas ao longo do tempo, tanto em relação ao “Eixo” como de seu entorno. Segundo a
14
autora, as fotografias poderiam ser tomadas como garantia de que um fato realmente ocorreu,
entretanto, é de suma importância que o/a pesquisador/a tenha sempre em mente que a
fotografia representa um recorte da sociedade ou de um fato, o que leva a conclusão de que
escolhas foram realizadas conforme os diversos interesses que permearam sua produção.
Além disso, ressalta-se a diversidade de interpretações a que estão sujeitas esta tipologia
documental.
Em relação às redes de relações encontradas dentro do “Eixo”, a proposta consistiu na
adoção do método observacional, porque, conforme salienta Gil (2011), este método se
constitui como elemento fundamental para a pesquisa, principalmente, no momento da coleta
de dados. Minha escolha foi pela metodologia da Observação Simples, por meio da qual o
pesquisador, no momento inicial, permanece alheio à comunidade, grupo ou situação que
pretende estudar, participando mais como um espectador. Isso me permitiu captar as
subjetividades inerentes à ação dos sujeitos sociais que se apropriam do espaço estudado
cotidianamente. No entanto, durante os percursos, não me era possível ser invisível,
espectadora. Ao entrar no Terminal, atravessar as Estações, dividir assentos e/ou espaços
apertados entre outros/as transeuntes, situei-me dentro do grupo que buscava estudar.
Justifico minha pesquisa pela necessidade de trazer à discussão problemas reais,
concretos, cotidianos (IANNI, 1976), que a classe trabalhadora, estudantes, grupos de menor
renda, enfrentam diariamente na cidade onde residem e vivem. Além disso, por se tratar de
uma avenida que está presente no desenho da capital desde seus rabiscos iniciais, sua
relevância histórica é significativa e ela tem sido palco para muitas mudanças, tanto no que se
refere às ações do poder público, dos investimentos privados, como do interesse popular,
comunitário, coletivo, auto-organizado.
A pesquisa bibliográfica me possibilitou compreender que os estudos sobre o
fenômeno urbano, sobre as cidades, surgiram com maior fôlego em meados do século XX, no
Brasil. A industrialização, os anseios desenvolvimentistas, o crescimento populacional, o
êxodo rural, as grandes transformações nos modos de vida acompanham o interesse pela
compreensão dos processos de expansão urbana e a consequente adaptabilidade dos diferentes
grupos sociais que passam a compor esses espaços. Camponeses/as se tornam pobres
trabalhadores/as assalariados à procura de cidadania nas avenidas das capitais; seus/suas
filhos/as buscam estudos, profissões liberais, a promessa da ascensão e mobilidade social.
Investidores da agricultura moderna, mecanizada, chefiam poderosas empresas, acordos
multinacionais. A substituição de importação, os investimentos estrangeiros, a expectativa de
formação do capitalismo nacional forte diante da competição do mercado mundial (IANNI,
15
1983), aceleram os contrastes de classes que se traduzem nas visíveis desigualdades das
cidades brasileiras. Em suma, essa é a historicidade do social que moldou nosso presente,
transitório e crítico.
A experiência urbana contemporânea enquadra-se numa complexa arquitetura de
territórios, lugares e não-lugares2 (AUGÉ, 1994), dado o predomínio da formação de
configurações espaço-temporais mais efêmeras e híbridas ao invés de territórios sociais de
identidade, pertencimento, mais fixos e rígidos, estudados pela antropologia clássica. Nesse
sentido, os lugares sociais são construídos a partir de superposições, entrecruzamentos
complexos, formando zonas simbólicas de transição onde atores e cenários em suas mútuas
relações, ordenados em categorias e grupos sociais, erguem coletivamente fronteiras
simbólicas que separam, aproximam, nivelam e hierarquizam os diferentes habitantes da
cidade (ARANTES, 2000). Esta diferença se constitui, fundamentalmente, devido à sua
localização no espaço urbano, ou seja, por sua posição dentro da estrutura social, produzindo
tensões e conflitos que definem a dinâmica da realidade cotidiana nas grandes cidades. As
relações entre centro e periferia, metrópole e cidades satélites; campo e cidade; cidades do
interior e capital etc.; formam uma complexa estrutura que submete uma área a outra numa
situação de aparente dependência mútua e de essencial exploração das zonas marginais.
A partir de pesquisas bibliográficas em revistas e sites especializados, dissertações e
teses, constatou-se que os estudos multidisciplinares sobre Goiânia concentram-se em sua
maioria na Praça Cívica (AZEVEDO, 2016), Avenida Goiás (CARMO, 2014), parques e
praças (OLIVEIRA, 2011), prédios ou construções históricas, com o intuito de investigar
transformações ocorridas nestes espaços após terem sido tombados em patrimônio cultural
local/nacional (LIMA FILHO, 2007) ou após revitalizações, requalificações, de qualquer
natureza. Ou, ainda, tratam dos projetos iniciais da cidade (centro político-administrativo do
estado, modernidade etc.), a arquitetura e os traços de l’Art déco, plano diretor (REZENDE,
2011), entre outros. Além disso, estudos sobre arborização, mobilidade urbana (BORGES,
2015), feiras, comércios, infraestrutura e serviços públicos, percorrem as pesquisas sobre o
fenômeno urbano na cidade tão jovem e de crescimento tão vertiginoso como Goiânia.
O caso da Avenida Anhanguera é pouco estudado. Não foi encontrado nenhum
trabalho específico sobre a avenida que cruza a capital do estado de Goiás de Leste a Oeste.
Isso não significa que não haja nenhuma pesquisa, estudo ou trabalho, mas que as formas de
busca têm seus limites. Alguns estudos encontrados, feitos por órgãos governamentais tinham
2
Não-lugares estão relacionados à aceleração do tempo e à virtualização do espaço, próprios da sociedade
contemporânea e seus processos de globalização (AUGÉ, 1994).
16
Figura 2 - Av. Anhanguera em 1968 / Fonte: Hélio de Oliveira - Acervo de fotografias históricas de Goiás (1968)
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Toda cidade, assim como todos os elementos da realidade (social ou não), possui uma
origem, um ponto inicial, um começo de sua história. Nas cidades, estados ou regiões e até
mesmo países ou continentes, retomar esse marco zero é fundamental para a composição do
mosaico histórico do lugar, de sua população e grupos locais. Isso não significa dizer que as
cidades se constituem isoladamente, com um processo histórico que lhes é restrito, intangível.
Ao contrário, nos sugere pensar a formação dos espaços a partir das relações (de exploração,
de interdependência, de troca, de cooperação, de competição etc.) que eles estabelecem entre
si, seja por meio dos fluxos de pessoas, objetos, ideias, mercadorias, matéria-prima, modos de
vida etc. Todos esses elementos devem ser pensados, ainda que parcelados, em sua totalidade.
Nas cidades litorâneas, o marco zero é encontrado onde, factualmente testemunhado
por documentos e narrativas históricas, as primeiras embarcações levantaram seus vilarejos.
Trata-se de um lugar central da cidade que serve de referência para distâncias e
posicionamento geográfico, geralmente, localizado no centro histórico. No Recife Antigo está
na Praça Rio Branco; em São Paulo, na Praça da Sé; na Praça XV de novembro, no Rio de
Janeiro, por exemplo. No caso dos estados e cidades não-litorâneas, do sertão, do Brasil-
interior, como é o caso do estado de Goiás e de sua capital, o marco zero pode ser encontrado
nos primeiros edifícios erguidos, nas praças centrais e/ou nas monumentais menções à
memória local.
Inicialmente projetada para abrigar cerca de 50 mil habitantes e servir como novo
centro político-administrativo do governo de Goiás, as dimensões de Goiânia ultrapassam,
atualmente, limites territoriais significativos. Poderíamos destacar, em Goiânia, a Praça
Cívica com seus edifícios art déco, ou o Monumento ao Bandeirante, no cruzamento das
avenidas Anhanguera e Goiás, na praça do bandeirante ou praça Atílio Correia Lima, como
marco zero da capital.
Nesse contexto, é preciso refletir sobre os processos de construção da identidade local
a partir da reelaboração de sua narrativa histórica e das considerações acerca do patrimônio
histórico e cultural, uma vez que:
No cruzamento dos eixos das Pedro Ludovico, Araguaia, Tocantins, 10, 26,
34 e 35, deverá ser erigido futuramente um monumento comemorativo das
bandeiras, descobertas, e das riquezas do Estado, figurando como
homenagem principal a figura de Anhanguera (LIMA, 1979, p. 142, grifos
meus).
Além do monumento como homenagem, louvável lembrança, à figura do
Anhanguera3, do bandeirante ou das bandeiras, para a história de Goiás e Goiânia, tem-se
ainda a avenida e o eixo de transporte público (chaves dessa monografia), um canal de
televisão aberta (filial da rede globo), jornal, revista, faculdade particular, vilas habitacionais,
terminais de integração de ônibus coletivo e inúmeras outras referências em lojas e armazéns
locais: Av. Anhanguera, Eixo Anhanguera, Jornal Anhanguera, TV Anhanguera, Faculdade
Anhanguera, Vila Bandeirantes, Terminal das Bandeiras etc.
No caso do monumento o objetivo seria perpetuar, rememorando, os laços históricos
entre Goiás e São Paulo, ao registrar os feitos dos bandeirantes numa obra de arte exposta no
centro da capital. Foi em São Paulo que aconteceu, então, a campanha pró-monumento,
financiada pelos governos dos dois estados. Contou com publicidade, propagandas a nível
nacional, bem como conferências e palestras que versavam sobre a história dos bandeirantes
3
Nomeação indígena conferida à Bartolomeu Bueno da Silva, bandeirante, em uma de suas expedições pelo
território goiano, que significa “diabo velho”. In: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/goias/goias.pdf
21
O autor a quem o texto se refere é Atílio Correia Lima, o principal projetista da capital
goiana. A avenida, hoje, se encontra ancorada não apenas no comércio formal, mas também
no trabalho informal que se estende desde o entroncamento com a Av. Paranaíba até pouco
depois do cruzamento com a Av. Tocantins. Após certo vazio comercial, a forte presença do
comércio é retomada no bairro de Campinas. Ao contrário do que o trecho afirma, o tráfego
25
Figura 4 [Detalhe fig. 3] – “O sono dos justos” ou A informação dos sobreviventes / Fonte: Produção da autora
(2017)
Figura 5 – Estação 1 – O confinamento ou o pêndulo: como ir e vir? O Eixo Anhanguera / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
28
Figura 6: Início da Av. Anhanguera, saída do Terminal Novo Mundo Goiânia – GO / Fonte: Elaboração própria da
autora (2017)
32
4
Metrobus Transporte Coletivo S/A: Empresa de transporte público urbano, gerida por economia mista, com
subsídios estatais, no estado de Goiás, responsável pelo Eixo Anhanguera que trafega em Goiânia e, desde 2014,
alcança Goianira, Trindade e Senador Canedo.
33
Eixão não se prolonga, cerca de 5 minutos e estamos dentro. O horário de pico já passou. O
burburinho dos ônibus e das pessoas nos terminais, os(as) vendedores(as) ambulantes, os
estreitos corredores de circulação, a pouca e confusa sinalização para pedestres, coincidem
com o empurra-empurra por um lugar no veículo. É preciso se esforçar para ser uma das 240
mil pessoas transportadas por dia. “Porta fechando...”, o moderno desenvolvimento da capital
alerta com a voz de uma mulher atenta que a porta fechará em segundos e que caso você não
entre ou saia depressa pode ter suas pernas decepadas. O fechamento é bruto, barulhento,
preciso. O privilégio é de quem conseguiu se sentar, seja criança ou idoso(a), jovem ou
adulto. Aos que permanecem de pé, cuidem de seus pertences: mochilas entre os braços e a
barriga, bolsas firmes coladas ao corpo, nada nos bolsos, mãos onde se pode ver. Se for
mulher, o cuidado é dobrado. Além de cuidar de seus pertences deve cuidar de seu corpo, para
evitar situações constrangedoras de assédio. Para distrair, há monitores de TVs instalados no
veículo, que não vimos ligados em nenhuma das viagens que fizemos, refletindo em seu
espelho negro apenas aquela realidade momentânea.
Olhar para os lados, certificar-se de quem lhe acerca, é arriscado. A depender da
velocidade do gesto, da precisão do olhar, da forma do movimento, o(a) observador(a) torna-
se observado(a). O medo, a insegurança, a incerteza, a falta de confiança, geram um
silencioso percurso, aflito e ansioso pelo fim do trajeto sem surpresas. “Diz-se que a
confiança é ‘um dispositivo para se lidar com a liberdade dos outros’, mas a condição
principal de requisitos para a confiança não é a falta de poder, mas falta de informação plena”
(GIDDENS, 1991), incluindo a possibilidade de o Outro usar sua liberdade para tomar-lhe de
assalto num susto, num ato imprevisível, não informado. Não é lenda, mas todos(as)
conhecem as histórias de assaltos e arrastões do Eixão. Se perguntar algo a alguém, caso não
se conheçam, é provável que a resposta da interação seja distante, precavida e, em alguns
casos, hostil, sem contato visual. Há exceções, obviamente. Uma senhora, mais velha, com
dificuldades para se locomover, um homem ou mulher com uma criança, jovens com
mochilas e uniformizados certamente despertam maior confiança do que um rapaz, alto, forte,
malvestido, “mal-encarado”, de mãos vazias.
Não é raro encontrar jovens mães com seus bebês no colo trafegando pela cidade
dentro do Eixo. Negras/os, pardos/as e brancos/as etc. Crianças de colo e ainda em
crescimento estão sempre acompanhadas. Quando estão prontas para seguir sozinhas, vestem
o uniforme da escola ou do trabalho e seguem com suas turmas. Afinal, na Estação
Universitária, o Eixo corta o Instituto Estadual Goiano - IEG, um dos maiores colégios
públicos de Goiânia, localizado em frente à Secretaria Cidadã, onde vemos slogans de
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igualdade racial, sexual, social, econômica etc. Também não é raro ver idosos(as), geralmente
sozinhos(as) ou acompanhados(as) de algum familiar, utilizando o transporte para chegar até
algum hospital, resolver trâmites burocráticos ou fazer compras. É possível inferir tais
informações a partir de curtos diálogos com dúvidas sobre onde descer ou com resultados de
exames, pasta com fotocópias de documentos ou sacolas de lojas, nas mãos.
da capital, avistamos o começo do Setor Central. Antigos prédios, tombados como patrimônio
por sua arquitetura em estilo Art déco, cedem lugar para contemporâneos prédios comerciais,
principalmente de grandes lojas nacionais de eletrodomésticos, eletrônicos, instrumentos
musicais, brinquedos, roupas, acessórios etc.
A legenda foi construída inicialmente
como um trocadilho entre o fenômeno social
da “Americanização” da vida social e a
presença das “Lojas Americanas”. Essa
imagem nos possibilitaria ir além disso,
principalmente, se levarmos em
consideração essa “americanização” em
todas as esferas da vida social (TOTA,
1993). Alguns estudos indicam o Brasil Figura 8 – “Americanizando”: Av. Anhanguera, Goiânia /
Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
como um exemplo desse fenômeno. Não se
restringindo ao universo do consumo (produtos e serviços estrangeiros, predominantemente
estadunidenses; shoppings centers), a adaptação ao “American way of life” afeta os mais
diversos setores da vida cotidiana, tais como: a política, a economia, a cultura (literatura,
música, filmes, desenhos animados programas de rádio e TV, redes sociais etc.), a língua
(gírias, expressões etc.), os valores, entre outros. Um caso exemplar é a indústria cultural dos
filmes hollywoodianos, sempre reproduzidos com grande público nas salas de cinema
convencionais.
A exemplos dos antigos prédios, vemos o Teatro Goiânia (1942), o Edifício do
Comércio, entre outras casas e sobrados.
Figura 10: O império das mercadorias: St. Central, Av. Anhanguera / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
Figura 11 - Hemocentro de Goiânia, St. Aeroporto / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
bancos para se sentar e as Figura 12 - Jd. Novo Mundo, saída para Senador Canedo, Av.
Anhanguera (lado leste) / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
crianças brincavam na poeira
vermelha e enferrujados brinquedos. À medida que seguimos na direção leste, é possível
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perceber que a paisagem se modifica como ficou registrado na figura 12. Ali já é possível
visualizar o descaso com as regiões periféricas, as quais apresentam construções de baixa
qualidade, terrenos baldios que, muitas vezes, são utilizados como depósitos de lixo, além de
uma infraestrutura que não atende as necessidades dos cidadãos.
Agora falta pouco. Nosso percurso está quase no fim. Em Campinas, no Terminal
“Praça A”, o pulso comercial é fortemente sentido nos camelódromos, feiras, nas grandes e
pequenas lojas. Reconhecida como o lugar onde “se encontra de tudo”, Campinas lidera entre
os locais escolhidos para procurar desde tecidos de costura até móveis, acessórios para festas,
equipamentos para automóveis etc.
Há ainda o Shopping Cerrado,
recém-inaugurado. As grandes lojas
vendem geralmente em atacado, o
que atrai pequenos comerciantes e/ou
vendedores(as) ambulantes.
É interessante notar que
apesar de haver um aviso em todos
os veículos dizendo que “É proibida
a venda no interior do veículo”,
Figura 13 - Espera, corre-corre e aflição: Terminal Praça A, St. os(as) vendedores(as) ambulantes
Campinas / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
são os(as) principais agentes dentro
do Eixo Anhanguera. São os(as) únicos(as) autorizados(as), legitimados(as), a se
movimentarem livremente (ou sempre que houver espaço entre as pessoas), a falar em voz
alta dirigindo-se a todos(as), apresentando seus produtos e preços. Água, chocolates, balas;
fones de ouvido, carregadores; lixas de unha, esmaltes; tampas de tanque, porta-documentos,
cremes para dores musculares, CDs, entre outros, são vendidos por preços que variam de 1 a 5
reais. Além dos(as) vendedores(as) ambulantes, há também os/as pedintes e rapazes de casas
de reabilitação cristãs. Ambos se dirigem às pessoas em tom explicativo, falando ou
entregando pequenos bilhetes, justificando o que estão fazendo ali, suas necessidades e/ou
objetivos. Os rapazes da reabilitação geralmente se apresentam como antigos usuários de
crack, que superaram seus vícios, ou “se libertaram”, graças à clínica e a Deus.
É recorrente em seus discursos que começaram experimentando a droga por influência
de terceiros/as e acabaram dormindo nas ruas ou comendo restos de comida que encontravam
nos lixos. Vários sintomas dos problemas sociais urbanos estão reunidos dentro deste veículo.
Para além da aparente simples desigualdade entre ricos e pobres, as drogas, o mercado
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Figura 15 - Trocas: Terminal Dergo, St. Aeroviário / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
Terminal Padre Pelágio. Nesse fim de percurso, a cidade vai perdendo o fôlego, sofregamente
se arrastando com pouca circulação de pessoas, carros, motos ou bicicletas; fraco comércio e
muitos espaços vazios entre as casas e algumas ruas sem asfalto, deixando para trás a
verticalização e o intenso fluxo comercial. Em compensação, grandes indústrias são vistas, a
exemplo: uma indústria de cortes de aço e outros metais.
Ao passo que o transporte individual permite uma circulação relativamente mais livre
pela cidade – apesar de ainda condicionada pelas vias de tráfego, como todo tipo de
movimento urbano (ônibus, carro, bicicleta, pedestres etc.), o transporte público, coletivo, em
suas condições atuais, dificulta essa circulação. As possibilidades caminham nos limites do
aceitável, do humano. Em horários de pico, pela manhã e fim da tarde, transitar por Goiânia
utilizando o Eixo Anhanguera é um desafio nada divertido. O inevitável contato físico, o
temível assédio, a ilusória privacidade, esmagam uns contra os outros, contra assentos, janelas
e portas. Até mesmo respirar se torna difícil. Mas é preciso ir. Chegar a casa, ao trabalho, à
escola, ou a outro lugar. Atravessar os muros e pontes que cruzam lugares tão diferentes e tão
próximos.
Ribeiro (2005) chama atenção para as formas de associação/filiação a entidades civis
encontradas em algumas metrópoles brasileiras, dentre elas São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,
Belo Horizonte e Salvador. Constatou em suas pesquisas que algumas cidades apresentaram
graus de associativismo maior que outras. Um dado que nos interessa em especial é o de que
nas:
áreas centrais, onde verifica-se com maior força o fenômeno urbano da auto-
segregação das camadas superiores, apresentam os mais altos níveis de
adesão às entidades sindicais, profissionais, esportivas e culturais, que são
menores nas áreas periféricas. Em sentido inverso, os níveis de filiação a
entidades religiosas e comunitárias mostram-se significativos em áreas
periféricas. (RIBEIRO, 2005, p. 58)
Isso nos conduz a uma reflexão sobre a participação popular e a cultura cívica, ou seja,
sobre quais grupos mobilizam-se em reivindicações e lutas sociais por melhores condições de
vida e quais meios utilizam para se organizarem, ainda que visando reformas e negociações
com os governos municipais ou estaduais, pensando localmente. Afinal,
numa Metrópole em que a produção do espaço se faz sem a existência de
uma Sociedade Civil vigorosa na defesa dos interesses básicos da maioria
dos seus habitantes, as transformações urbanas só podem se realizar como
um rolo compressor que esmaga todos aqueles que não têm recursos para
conquistar os benefícios injetados na cidade. (KOWARICK, p. 82)
ônibus sempre muito cheios, são alguns dos principais elementos de eclosão das revoltas
populares. Muitas acontecem de modo espontâneo, num contexto de lutas frequentes, em
terminais de integração. Outras são discutidas e organizadas por usuários/as e estudantes.
Podemos citar o caso das Jornadas de Junho, em 20135, em Goiânia, e no Brasil, que começou
tendo a pauta do transporte público como principal e acabou dissolvendo-se em múltiplas
bandeiras.
De toda forma, o que isso nos mostra é a não-passividade dos/as usuários/as deste
serviço de nome público, mas de ordem privada, diante das arbitrárias condições de
locomoção impostas pelas empresas e governos locais responsáveis por sua gestão e
fornecimento. Poderíamos ainda traçar uma conexão entre a localidade e a esfera global, uma
vez que a mobilidade urbana é um problema não apenas goiano ou brasileiro, mas mundial, já
que, atualmente, a vida urbano-industrial predomina na maior parte do mundo. O que acarreta
uma série de problemas de nível ambiental (desastres “naturais”, mudanças climáticas etc.),
socioeconômico (desigualdades, guerras civis etc.), político (governabilidade deslegitimada
etc.) e cultural.
Outro exemplo de resistência acontece com os/as vendedores/as ambulantes. Durante
todo o ano de 2017, eles/as se confrontaram com a fiscalização municipal que tem promovido
operações para retirá-los/as do espaço que ocupam. A justificativa é que, devido à presença de
suas barracas e carrinhos captados no registro da imagem 10, a segurança dos cidadãos que
usam o transporte coletivo do Eixo, fica prejudicada. Segundo matéria publicada pela TV
Anhanguera, no dia 08 de dezembro de 2017, vendedores ambulantes e seguranças se
envolveram em uma confusão no Terminal Padre Pelágio. Os comerciantes contaram para a
equipe de reportagem da TV, que foram agredidos pelos seguranças do local e afirmaram que
os seguranças chegaram de maneira agressiva, impedindo-os de trabalhar. Sua banca de
goiabas foi derrubada e, ao tentar recuperar o produto do chão, foi agredido.
Já a empresa responsável pelos seguranças, a Pró-Guarda, informou à TV Anhanguera
que os comerciantes, em alguns casos, são violentos com os vigilantes, que precisam se
defender. Conforme aponta a matéria, a companhia informou que os funcionários são
instruídos a orientarem os ambulantes sobre a regra que proíbe o comércio nos terminais.
A Rede Mob informou, por meio de nota, que os ambulantes “impediram a operação dos
veículos do Eixo Anhanguera e agiram de forma violenta atirando frutas e pedaços de madeira
5
“Preço da passagem de ônibus provoca manifestações pelo país”, 07/06/2013, << http://g1.globo.com/bom-dia-
brasil/noticia/2013/06/preco-da-passagem-de-onibus-provoca-manifestacoes-pelo-pais.html >> Acesso em
11/12/2017.
43
nos profissionais do transporte público”. Segundo a empresa, “a Polícia Militar foi acionada e
prestou o apoio necessário, liberando a saída dos Ônibus por volta das 14h” e reforçaram que
“os vigilantes vão continuar coibindo a presença e o comércio de ambulantes no Terminal
Padre Pelágio e nos demais Terminais da RMTC”.
A matéria publicada no dia 08/12, apresenta a situação de insegurança também deve
ser considerada no que diz respeito ao cotidiano dos vendedores ambulantes que podem ser
surpreendidos a qualquer momento por uma operação da empresa de fiscalização. A simples
desconfiança de que os fiscais estão por perto já é motivo para que estratégias sejam adotadas
no sentido de proteger não apenas o produto que comercializam, mas também a si mesmos da
possível violência a que estão sujeitos.
44
Figura 16 - Última parada - A cidade como um lugar de tensão [...] / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
45
Uma vez que “a fotografia permite, pela primeira vez, fixar os vestígios de uma pessoa
de uma forma inequívoca e definitiva” (BENJAMIN, 1994, p.29), escolho, pois, iniciar essa
parte do texto com a descrição de duas fotografias.
Figura 17: Estação Vila Moraes, entrada do Jd. Novo Mundo / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
Figura 18 [Detalhe fig. 17] – Calçada, lixo e barranco / Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
Imagine-se caminhando por esta calçada (Figura 18). Além do desconforto de andar ao
lado da sujeira e das dificuldades de, caso seja um cadeirante, passar por ali, a inclinação é
bastante acentuada e não há cercas ou limites demarcados entre a calçada e o lado
“abandonado”, para segurança dos pedestres. Apesar disso, este é o único caminho possível
para quem trafega a pé do lado direito da Av. Anhanguera na direção do Terminal Novo
Mundo e demais Estações e bairros adjacentes.
Nota-se que no mesmo nível da calçada,
rente à avenida, é possível ver as telhas das casas
e estabelecimentos, o que indica um acentuado
declive e posterior aclive, conforme as moradias
afastam-se da avenida e aproximam-se do
horizonte da imagem (Figura 19). Esta inclinação
do solo fornece ao bairro o desenho de um
morro, influenciando nos diversos tipos de
deslocamentos locais. Adão de Oliveira (2005)
relaciona a ocupação territorial ou socioespacial
Figura 19 [Detalhe fig. 17] – Casas no relevo / Fonte: com a divisão social do trabalho, de forma que a
Elaboração própria da autora (2017)
desigualdade instaurada com a divisão do
trabalho assume a forma de desigualdade na ocupação espacial: “A disposição espacial das
pessoas na cidade obedece à determinação de classes, de maneira que os lugares ordenam-se
47
Figura 20 - Passeio entre árvores e edifícios: Parque Lago das Rosas, St. Oeste / Fonte: Elaboração própria da autora
(2017)
Figura 21 [Detalhe fig. 20] – Prédios e sentidos / cidades estrutura-se em: 1) habitação, 2)
Fonte: Elaboração própria da autora (2017)
estabelecimentos (inclui-se aqui de instituições e
edifícios públicos às feiras de rua), 3) vias de tráfego e locomoção (avenidas, ruas, calçadas,
pontes etc.) e 4) espaços vazios. A moradia está intimamente ligada à reprodução da força de
trabalho (CASTELLS, 2009), assim como também estão as condições mínimas para a
sobrevivência: alimentação, água, vestimentas, transporte casa-trabalho etc.
Neste ponto concordam muitos autores/as da sociologia clássica e contemporânea em
assumir os fatores socioeconômicos como predominantes sobre os demais fatores de ordem
sociocultural (BOURDIEU, 2001; MARX, 2001; WEBER, 2006). Uma vez que os
fenômenos
socioeconômicos tratam
de necessidades humanas,
primárias ou não, tanto na
luta com a natureza como
na associação com outros
seres humanos,
praticamente todos os
fenômenos da vida social
são economicamente
condicionados, pois,
dizem respeito à luta Figura 22 [Detalhe fig. 20] - Entre o trampolim, pedalinhos e obrigações / Fonte:
Elaboração própria da autora (2017)
material pela existência
(WEBER, 2006).
50
O cotidiano da cidade esconde por detrás das relações naturalizadas com o mundo e as
pessoas, da rotina programada, a historicidade do mundo social que ali se forma. Por outro
lado, revela tensões, contradições e conflitos latentes no meio da aparente organização. Os
sistemas de produção industrial, citadino, com suas fábricas, indústrias, empresas; os modos
de consumo, seja da saúde, da educação, do transporte etc.; as formas de distribuição dos
produtos: serviços, comércios, trocas; se apresentam nos territórios da vida cotidiana como
subsolo da nação, da cidade. O espetáculo global, estadual, anuncia-se nas altas finanças, nos
grandes acordos comerciais, empresariais, políticos.
Há ainda um ponto a ser mencionado: Lefebvre (2002) atenta para uma relação de
dependência que se cria entre a metrópole e as cidades pequenas que a formam, configurando
um contexto de semicolônias. Isso acontece, pois, ao fornecerem matérias-primas e mão-de-
obra baratas, as cidades vizinhas submetem-se à metrópole que, no jogo regional, nacional,
possui mais condições de ganhar, justamente por essas relações que a fortalecem econômica e
politicamente.
Para finalizar, essa leitura da economia do espaço urbano a partir de autores marxistas,
nos conduz para uma análise de alguns elementos centrais: valor imobiliário (mercado
imobiliário) e infraestrutura urbana (Estado). Para esses autores, já citados anteriormente, a
realidade histórica de um lugar é marcadamente uma realidade construída a partir das relações
sociais de produção. Nesse sentido, Moraes (2003) chama a atenção para a expansão
imobiliária como fator de grandes transformações na lógica urbana. Ao analisar a segregação
urbana em Goiânia, a autora divide a história da cidade em alguns períodos relevantes: 1)
1933-1950: “Fase de criação do lugar”, 2) 1950-1964: “Fase da ampliação do espaço”, 3)
1964-1975: “Fase da concentração de lugares no espaço”, 4) 1975-: “Expansão urbana”. É
neste último período que se encontram os projetos de transporte coletivo, planos de lazer,
meio ambiente etc. A criação do Eixo Anhanguera, inaugurado em 1976, coincide, portanto,
com essa divisão cronológica.
Na Figura 23, vemos um edifício com o nome de Urias Magalhães, com feições
antigas e desgastadas pelo tempo. Sua entrada está na Av. Anhanguera. Aos fundos e ao lado,
um prédio moderno, alto, novo. Um contraste de tempos e construções. Segundo informações
dos arquivos da prefeitura6, Urias Magalhães foi um fazendeiro, proprietário de uma enorme
área de terras, que hoje circundam o bairro que carrega seu nome, localizado na Zona Norte
de Goiânia. Algumas avenidas e ruas, praças e outros bairros, levam ainda os nomes de seus
6
Para mais informações, acessar: http://www.goiania.go.gov.br/shtml/seplam/dados/dados.shtml
51
parentes, em sua maioria homens: filho, pai, avô, sogro. Conta a história que ele teria doado
50 alqueires de terras, antes de falecer, a Pedro Ludovico Teixeira, com fins de fundação da
nova capital do estado. Somente em 1968, as áreas doadas foram liberadas para
comercialização. Até então o poder público buscava frear os anseios da expansão imobiliária.
Figura 23 – Homenagem ao fazendeiro abandonado: Ed. Urias Magalhães, Av. Anhanguera / Fonte: Elaboração
própria da autora (2017)
Nesse sentido, percebemos que o surgimento das construções, edifícios, prédios, ruas,
praças; as modificações nas paisagens; não acontece de modo espontâneo ou aleatório. Na
verdade, estes processos obedecem à lógica específica da propriedade privada e do direito à
posse da terra, em suas diversas manifestações históricas, legitimada pelas autoridades do
poder público, sendo o Estado a figura representativa desta estrutura. O lado de dentro das
cercas está reservado aos investimentos particulares daqueles/as que ali se refugiam, o lado de
fora permanece inerte até que algum tipo de ação coletiva o transforme, seja de moradores/as
auto-organizados/as, seja de funcionários/as das prefeituras e governos estaduais. Incapazes
de se alterarem naturalmente, os espaços, sobretudo os espaços urbanos, carecem de
52
constantes investimentos para sua manutenção e “progresso”. Refiro-me não apenas aos
serviços urbanos (limpeza, energia, saneamento, transporte, sinalização etc.), mas também às
políticas de educação, saúde, planejamento, lazer etc.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
53
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De modo geral, busquei com este trabalho investigar a atual situação material e social
que articula a mobilidade urbana em Goiânia e atinge grande parte de sua população. Sendo o
principal veículo de massa da capital, sua importância para o tráfego e circulação de pessoas é
inegável: mesmo em péssimas condições, de superlotação, sujeira e violência, caso o Eixo
Anhanguera deixe de transitar, uma quebra nos deslocamentos cotidianos de milhares de
habitantes, trabalhadores/as e estudantes, será sentida. A ideia consistiu em mostrar que o
trajeto da Avenida Anhanguera por onde passa o Eixo não se reduz a um espaço de
circulação, tratando-se de um espaço público. Ou seja, não se restringe ao simples
deslocamento, homogêneo e abstrato, de pessoas e bens, mas integra em seu veículo e
percurso diário redes de sociabilidades, convívios, encontros e agência (ARDILA PINTO,
2016).
Isso foi elucidado com a presença dos/as vendedores/as ambulantes, dos/as pedintes,
dos rapazes da reabilitação; dos grupos mais ou menos estruturados de estudantes, idosos/as,
crianças, dos/as que sabem onde estão e dos/as que precisam de informação, de homens e
mulheres, jovens, grupos étnicos (negros/as, pardos/as, mestiços/as, brancos/as etc.). Apesar
de não termos mencionado, uma vez que não presenciamos durante nossa observação, alguns
grupos de artistas marginais e/ou estudantes realizam dentro do Eixo intervenções artísticas,
visando o entretenimento e o lazer dos/as que assistem, além da divulgação de seus projetos e
trabalhos. Tocam instrumentos, cantam; recitam poesias, cordéis; encenam pequenos jograis,
peças, cujos temas podem fazer referência à vida na cidade, ao cotidiano urbano ou
simplesmente terem um caráter lúdico, humorístico, reflexivo.
Nesta parte do trabalho, questões que envolvem a cidadania, os direitos à cidade, à
mobilidade, ao transporte etc., foram levantadas, de modo a mostrar o vácuo entre a ordem
legal e a cidade real, as salvaguardas constitucionais e a realidade das condições sociais
concretas que abrigam a pobreza, a marginalidade e a exclusão urbana. Apesar das melhorias
implementadas no Eixo Anhanguera, incluindo sua ampliação para cidades da região
metropolitana de Goiânia, as condições de travessia disponíveis aos/às usuários/as ainda não
são satisfatórias. Em horários de grande procura, a superlotação é inevitável, aumentando os
riscos temíveis pela maioria dos transeuntes: roubos, furtos, violências, assédios, empurra-
empurra, agressões involuntárias (cotoveladas, pisar no pé, quedas etc.).
A partir da trajetória desenhada pelo Eixo no percurso da Av. Anhanguera, a paisagem
que se modificava do lado de fora do veículo foi também objeto de análise, uma vez que
54
quer ser assaltada.”; “O ônibus tava muito cheio, veio um, só abriu a mochila e pegou a
carteira. Não tinha nem jeito de correr atrás...”. Depois das histórias, guardei meu celular e saí
abraçada com a mochila até atravessar a porta.
Tive medo. Nas outras vezes que saí para tomar notas do percurso e fotografar, nem
levei o celular. Peguei uma câmera antiga e velha, um livro para apoiar as anotações, uma
caneta; pendurei no pescoço o Cartão do Passe Escolar, vesti-me com uma roupa leve e tênis
confortável o suficiente para correr, saltar ou fugir.
As fotografias permitem a visualização de paisagens urbanas contrastantes no percurso
da Av. Anhanguera. Essas paisagens se formam num processo coletivo sustentado
basicamente pelos governos locais, por investimentos privados e pelos grupos diretamente
afetados, ou seja, moradores/as da região. Apesar das fotografias não terem focado as pessoas
e apresentarem, em alguns momentos, as paisagens “vazias”, sem ocupação humana, podemos
concluir que esse vazio é provisório, uma vez que se trata da paisagem urbana de uma avenida
central, com grande fluxo comercial e de pessoas.
Concluímos, pois, que a Av. Anhanguera é uma amostra da desigualdade
socioeconômica e da segregação socioespacial presente na cidade de Goiânia. Além dos
diferentes acessos aos serviços e entretenimentos urbanos, dos desníveis estéticos da
paisagem, no que se refere aos/às moradores/as das regiões centrais e periféricas, comerciais e
habitacionais, é possível mencionar a presença do Eixo Anhanguera como uma das principais
atrações nas regiões periféricas, e como acessório marginal nas regiões centrais, nobres. Ou
seja, apesar de tratar-se de uma única avenida, ao mudar as regiões e bairros, alterações
significativas são percebidas na paisagem urbana e, consequentemente, nos ambientes à
disposição dos habitantes, nos serviços oferecidos às/aos cidadã/os. Isso pode ser percebido e
confirmado nas imagens analisadas nesta monografia. Os serviços públicos, a estética urbana,
se modificam de acordo com a região (central, comercial, nobre, periférica etc.). Desse modo,
o acesso, o direito, à cidade se configura de modo condicionado, com limites precisos,
resultado da segregação social e espacial presente no mundo urbano.
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