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carreira-de-escritora-aos-professores

Publicado em NOVA ESCOLA 12 de Setembro | 2019

Entrevista

Ana Maria Machado: Eu devo


minha carreira de escritora aos
professores
Autora relembra carreira de 50 anos e fala sobre o papel da Literatura na
Educação
Paula Peres

Foto: Divulgação Bienal do Rio/Felipe Panfili

Sentada no palco do auditório do Fórum da Educação, realizado durante a Bienal do Livro do Rio de
Janeiro, Ana Maria Machado relembrou sua carreira de escritora de livros infanto-juvenis, carreira essa
que completa 50 anos em 2019. “Foi em 1969 que eu, Ruth Rocha, Joel Rufino, Sonia Robatto
começamos a escrever histórias para a revista Recreio (editora Abril)”. A revista foi lançada no ano
seguinte, “e aconteceu uma coisa maravilhosa: eu gostei de ser escritora e os leitores gostaram do que
eu escrevia”, conta.

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Ana Maria atribui boa parte do seu sucesso aos professores. “A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1972
recomendava leituras extracurriculares. Não havia muito livro infantil naquele tempo, mas a revista
saía toda semana. Aí os professores começaram a recomendar a revista ou levar para a sala de aula.
Nossa geração, que depois veio a ser chamada de ‘boom da literatura brasileira’ nos anos 1970, deve
muito aos professores, que nos perceberam, nos resgataram, souberam nos levar aos leitores”. A
ponto de, em 1976, Ana Maria Machado ser convidada para inaugurar uma biblioteca com seu nome
em uma escola de Juiz de Fora. “Eu não havia publicado nenhum livro ainda, e os alunos votaram para
dar o meu nome à biblioteca, de tanto que me conheciam”.

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Para ela, o segredo da literatura infantil é ser um texto que deve ser curtido também pelos adultos.
“Ítalo Calvino, pensador italiano, dizia que a literatura infantil só existe se ela puder ser lida com
proveito pelo adulto, que já leu quando criança e vai encontrar nela coisas diferentes. Eu costumo
dizer que o adjetivo ‘infantil’, aplicado à literatura, ao contrário daquilo que a gente aprendia em
gramática, que o adjetivo tinha uma função restritiva do substantivo, ele não tem, ele é ampliativo. A
verdadeira literatura infantil permite que a gente encontre sentidos novos, e isso é uma prova de sua
qualidade literária”.

Em entrevista à Nova Escola, Ana Maria Machado reflete sobre o papel da Literatura na escola e dá
dicas e sugestões para os professores se aproximarem desse universo e conquistarem seus alunos
para os livros. Confira abaixo:

Nova Escola: Você acha que, em 2019, concorrendo com internet, celular, aplicativos, ainda há
espaço para o livro na vida das crianças e dos adolescentes?

Ana Maria Machado: Sim, sem dúvida. Antes o livro concorria com quintal, subir em árvore, tomar
banho de rio, jogar bola, brincar com os amigos… Hoje, com a tecnologia. Cada coisa tem sua hora.
Inclusive o livro. Sou de uma família grande, tenho três filhos, dois netos, 20 sobrinhos, 19 sobrinhos-
netos, das mais variadas idades. Todos gostam de livro, mesmo os pequeninos que não sabem ler nem
falar e só ouvem histórias ou veem figuras.

Escrever literatura infanto-juvenil hoje é a mesma coisa que há 50 anos? O que muda, e o que se
mantém?

Acho que é bem parecido. Mudam as circunstâncias das histórias (cenário, roupa, tecnologia à
disposição, comportamento, costumes). Mas não muda o cuidado com a linguagem, com a construção
dos personagens, com a estruturação da narrativa, esse tipo de coisa. E não muda o espírito humano.
Continuamos às voltas com as mesmas questões: medo, sonhos, ciúmes, angústia, compaixão com
quem sofre, solidariedade, vontade de ser livre e não ter de obedecer ao que não faz sentido, desejo
de questionar, revolta contra injustiça...

Pesquisas mostram que a média de leitura dos brasileiros é muito baixa: um livro por ano. Por
que lemos tão pouco e como quebrar esse ciclo?

Temos um déficit educacional histórico. Nossa sociedade, como um todo, negou durante séculos o
acesso da maioria da população à Educação. Só a partir da década de 1990 começamos a ter vagas
para todos nas escolas – e com uma qualidade que deixa muito a desejar. Assim, não somos uma
sociedade letrada. E só fomos começando a nos alfabetizar maciçamente quando as novas tecnologias
audiovisuais exerciam enorme atração, dando a impressão de que poderíamos relegar a segundo
plano a palavra escrita. Em consequência, a maioria das famílias não convive ou conviveu com livros –
inclusive as famílias da maioria dos professores. As crianças veem poucos adultos lendo a seu redor. E
o exemplo faz falta. Crescem achando que livro não importa.

Só ler em sala de aula e pedir que os alunos leiam em casa é suficiente para desenvolver a
leitura nas próximas gerações? O que mais está ao alcance do professor que pode ser feito?

Acho que o professor deve procurar ler para seu próprio prazer, descobrir seus gostos leitores, falar
com os amigos sobre o que leu, de modo a se sentir mais seguro nesse universo. Há experiências
positivas que podem servir de inspiração: de estantes de livros bons, não técnicos, na sala dos
professores, de clubes de livros entre eles, de rodas de leitura... Enfim, o professor procurar se
desenvolver como leitor, em termos pessoais. Esse me parece o melhor caminho para entrar nesse
mundo, se sentir seguro e à vontade. Então vai descobrir como contagiar os outros com seu
entusiasmo. Acredito muito na criatividade individual de um professor leitor.

A Base Nacional Comum Curricular é o documento mais importante, hoje, que aponta o que as
escolas precisam ensinar. Ela fala sobre o trabalho com as competências socioemocionais, que
não estão exatamente nos currículos das disciplinas. Há especialistas que dizem que as emoções
podem ser trabalhadas com a Literatura. Você concorda com essa visão? Como isso pode ser
feito?
Concordo inteiramente. Estou convencida de que a arte em geral – e a Literatura, arte da palavra, em
particular – é um dos caminhos mais poderosos para o ser humano, de qualquer idade, explorar suas
possibilidades emocionais. Isso pode ser aproveitado em sala de aula de infinitas maneiras, e o bom
professor saberá encontrar a sua, se for leitor.

Que conselhos você dá aos professores que vão escolher os livros para lerem com suas turmas?

Procure ler o livro antes, comparar com outros, estar consciente dos critérios de sua escolha. Leia mais
de um livro para escolher, selecione aquele ou aqueles de que mais gosta, reflita para tentar entender
a razão dessa preferência. Confie na sua intuição e sua experiência. Quanto mais livros você ler, mais
essa experiência se consolida, mais seguro você fica.

E procure se informar antes sobre o autor, a coleção, a editora. Um livro que já foi premiado traz o
sinal de que especialistas que conhecem o assunto já o destacaram entre vários outros, deve haver
uma razão para isso. A internet ajuda muito. Por exemplo, a Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (FNLIJ) existe há mais de 50 anos e tem especialistas de todo o Brasil premiando e selecionando
anualmente os melhores livros, que então recomenda. É uma garantia de qualidade. Veja se o livro que
você está considerando está entre eles. Ou se há outro do mesmo autor, ou ilustrador. Aos poucos, se
sentirá mais seguro para defender sua própria escolha com mais firmeza e consciência do que está
fazendo.

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