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PERIGOSAS NACIONAIS

O passado do gelo
Eterno
DOZE MUNDOS - LIVRO CINCO

Por Emilly Amite

PERIGOSAS ACHERON
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Emilly Amite

Copyright © 2018 Emilly Amite


Registro: Fundação Biblioteca Nacional
Arte Capa: Emilly Amite
Diagramação: Emilly Amite

Amite, Emilly. – 2ªed – Publicação


independente
2017.
1. Literatura brasileira 2. Fantasia

A autora desta obra detém todos os direitos


autorais

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registrados perante a lei. Em caso de cópia,


plágio e/ou
reprodução completa e/ou parcial indevida
sem a
autorização, os direitos do mesmo serão
reavidos
perante à justiça.
"Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998."

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Sumário
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
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Capítulo 15
Capítulo 16
Extra ― Terra, era congelada.
Agradecimentos

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Prólogo

O sol não havia desaparecido por completo


quando entrei pelo portão lateral das altas muralhas
brancas, indo em direção ao Castelo de Gelo e
deixando um rastro gotejante de sangue na neve
branca e endurecida da nevasca que aconteceu na
noite anterior. Limpei as mãos na neve e ajeitei o
cabelo que caía sobre o rosto, o movimento fez
com que a cabeça dentro do saco de feltro batesse
contra minha perna, sujando meu uniforme azul e
branco e deixando uma mancha escura ali, bufei e
atirei o saco no chão.
Grizzar Domenas, o dono da cabeça que eu
estava carregando naquela sacola, foi um
fornecedor de metais muito rico da costa de
Ciheliz, cidade grande e imunda demais para um
lugar coberto de gelo, pois o mesmo dava a tudo
uma falsa aparência de pureza. Trouxe Grizzar vivo
até o lago Stanaj, a poucos metros das muralhas do

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Castelo de Gelo. Grizzar implorou pela própria


vida, me ofereceu meu peso em ouro para deixá-lo
escapar, uma quantia muito maior que o rei havia
me oferecido pela cabeça dele, mas meu interesse
não era o ouro ou as recompensas, mas sim os
benefícios que Vegahn teria ao se livrar de um
inseto imundo como ele.
“Lamento, minha lealdade está naquela que
criou esses mundos, minha missão aqui é
unicamente me livrar de parasitas como você! ” eu
lhe disse antes de arrancar sua cabeça com um
movimento rápido e preciso. Abri seu tronco e o
enchi de pedras, antes de atirá-lo num buraco no
gelo do lago congelado onde estavam sua mulher e
seu filho também. Retirei sua mão e a marquei com
o símbolo da coroa e a enterrei na neve próxima às
árvores, assim, quando voltasse, poderia levar a
mão até Ciheliz e a pregaria na porta do bordel que
Grizzar usava como fachada para esconder o
escritório que negociava o vitrino retirado das
minas de forma clandestina.

Deixei a cabeça na neve por um bom tempo

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para que o sangue congelasse e não fizesse sujeira


dentro do castelo quando a levasse até o rei. Sentei
na neve, encostado dos paredões de gelo da lateral
do castelo e respirei fundo, sentia o cheiro de neve,
sangue e nitram, as flores que crescem em volta do
castelo e nas colinas do Sul, eram as únicas que
nasciam na neve e tinham um aroma delicado e
único com uma bela cor roxa com riscos
amarelados no centro.
— Aproveitando o fim de tarde? ―
perguntou uma voz irritantemente familiar
aproximando-se de mim.
— O frio está cada vez mais intenso depois
que Apollis parou de nascer, esse sol substituto não
é nem de longe tão brilhante como ele era. ―
respondi.
— Foi feito por magos humanos, você
esperava o que? ― Ela riu debochando, de forma
que eu quisesse a jogar para fora dos muros, fiquei
rolando a sacola com a cabeça na neve. ― Quem
foi o infeliz desta vez?
— Grizzar, o cretino que estava obrigando
crianças a trabalhar nas minas de vitrino. ―

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respondi rispidamente.
— O rei não tinha dado a ordem para que
explodissem as minas?
— Muitas foram destruídas, mas algumas
continuam de forma clandestina.
— Foi fácil? Arrancar a cabeça dele? ― Ela
me encarava com os olhos cheios de divertimento,
o que me irritou ainda mais.
— Mais do que você imagina, Zion, a cabeça
dele soltou tão fácil que parecia já estar fora do
lugar! ― Seus olhos cor de vinho faiscaram.
— Você não tem coração? A mulher dele deu
à luz tem uma semana, um belo menininho. ―
Reconhecia seu tom de deboche.
— Não se preocupe com isso, fiquei com
pena dele sob as camadas de gelo e para não deixá-
lo só, joguei a mulher e o filho dele lá também! ―
respondi friamente, o choque em seus olhos me fez
pensar que ainda havia um pouco de humanidade
nela, embora os anos depois que fora transformada
numa Malvarmo a deixaram com a personalidade
totalmente diferente. Não quis dizer a ela que já os
havia encontrado mortos, provavelmente algum

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rival de Grizzar os havia envenenado, a mulher


estava morta com a criança nos braços quando fui
procurá-lo na noite anterior, Grizzar não os havia
visto daquela maneira, se tivesse visto, talvez
implorasse pela morte e não pela vida.
— Que cruel! ― Ela balançou a cabeça
desviando os olhos da sacola.
— Filho de peixe... ― murmurei achando
que aquilo a fizesse se afastar de vez, mas ela
saltou de cima do muro em um movimento
gracioso e suave e veio até mim, passando as
pernas por cima das minhas e sentou-se em meu
colo, mordeu os lábios e traçou meu rosto com as
pontas dos dedos, parando o polegar sobre minha
boca. Não conseguia entender como as presas
pontiagudas não perfuravam a pele fina e
avermelhada dos lábios cheios dela. Sentia-me
indiferente a ela nos últimos meses, seu corpo tão
jovem e convidativo, seu cheiro provocativo e sua
voz agradável já não tinham mais o mesmo efeito
sobre mim, e agora como acontecera muitas outras
vezes, havia perdido totalmente o interesse na
jovem em minha frente.

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— Você não tem mais o que fazer Zion? ―


Meu tom de voz seco a fez ficar desconcertada, ela
desviou o olhar e suspirou.
— Não me lembro de você sendo tão frio
assim comigo antes, Caalin! ― resmungou ela
fazendo biquinho e mexendo em meu cabelo,
estava irritado demais naquele fim de tarde para
tentar fazê-la se afastar de forma mais gentil, pois
soube, antes de voltar, que o rei tinha uma tarefa
ainda mais difícil para mim e não estava nem um
pouco afim de ir atrás de mais alguém agora, só
queria ir para casa e descansar um pouco, me
preparar para o que estava prestes a vir. Derrubei
Zion de meu colo quando me levantei bruscamente,
ela caiu na neve sujando seu belo traje da guarda
real de neve e sangue e bufou irritada tirando seus
cabelos loiros da frente do rosto e lançando-me um
olhar zangado. Antes que ela pudesse começar a
reclamar, peguei a bolsa congelada e fui até a
entrada lateral do castelo. “Caalin, volte aqui!” a
ouvi gritar e ignorei completamente, deixando-a
resmungando sozinha lá atrás.

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Capítulo 1
Atravessei o salão em passos largos e
rápidos, o rei estaria me esperando como sempre na
sala do trono para ver o resultado da caçada. Aliver
Marchyn, o novo rei de Vegahn, estava sentado no
trono e seu semblante era de preocupação, o manto
de pele de Yeti branco e felpudo caia sobre os
ombros cobrindo-os completamente, fazendo-o
parecer um pouco maior do que era realmente.
Aliver não tinha uma boa aceitação do povo, já que
era um híbrido: seu pai, o antigo rei, era um
Malvarmo, um verdadeiro guerreiro da grande
guerra da nevasca, e sua mãe uma maga humana,
curandeira que cuidou do rei no pós-guerra. Aliver
era muito parecido com ela, Yeferis, tinha herdado
os mesmos olhos amendoados e pele cor de mogno
da mãe, ela era muito bonita para a idade que tinha,
porém ela havia partido com sua filha mais nova,
Oriel, para o retiro das folhas, uma cidade élfica
flutuante que ficava em cima da cidade de Seneris
no centro de Blizzion.

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— Vossa majestade. ― Dei um passo à


frente e fiz uma breve reverência, levantando a
sacola que ele pediu para um dos guardas levar até
ele, que, então, observou por um momento e
dispensou o guarda.
— Livre-se disso, Toghus! ― disse ele
torcendo o nariz. ― Ótimo trabalho, Caalin. Algo a
relatar? ― perguntou ele olhando-me de cima a
baixo.
— Nada em particular sobre essa missão, ―
falei ― mas gostaria de saber por que o rei ainda
não fez nada sobre as minas clandestinas restantes.
Quando tirei Cahadris do trono para que você
pudesse substituí-lo, você me garantiu que acabaria
de vez com as minas e faria com que os
negociantes libertassem os escravos. ― Aliver
empalideceu, pois havia lordes presentes na sala
que não sabiam que eu havia matado o antigo rei
para que seu filho assumisse o trono.
— Estou fazendo o máximo possível para
que eles sejam libertados, Caalin, mas temos que
agir com cautela para não provocar uma rebelião!
O que não precisamos agora é de mais inimigos,

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pois os governantes de Paliath e Fernic estão


interessados na minha cabeça, querendo assumir o
trono em meu lugar, estão quase como cães
perdigueiros farejando a presa! Sair por aí
ameaçando arrancar as cabeças de todos que estão
lucrando com o vitrino das minas ilegais daria aos
meus inimigos aliados poderosos demais! ― disse
ele ajeitando-se no trono, não me olhava nos olhos,
encarava os vitrais azuis que cobriam grande parte
das paredes da sala do trono, que deixavam o
ambiente com um ar fantasmagórico.
— Sabe que se não cumprir com minha
exigência, irei colocar outro em seu lugar, isso se
eu mesmo não o assumir... ― Coloquei a mão
casualmente sobre o punho da espada, fazendo os
guardas do rei sacarem as armas e me olharem
assustados, eles sabiam que de qualquer forma que
lutassem, não teriam nenhuma chance se eu
realmente quisesse matá-los.
— Já disse que vou cuidar disso, Caalin, e
peço que tenha um pouco mais de paciência! ― O
rei pigarreou e ficou de pé, andou em direção ao
vitral. ― Afinal, Grizzar era um dos grandes, então

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muitos começarão a diminuir as atividades ou as


encerrarão de vez! Esse já foi um grande passo para
nós.
— Soube que o rei tinha mais uma tarefa
para mim, se puder dizer logo, gostaria de ir tirar
uns dias de folga depois! ― Toghus, o capitão da
guarda real pigarreou e sibilou, incomodado com a
forma que eu falei com o rei, o olhei de soslaio,
Zion sua filha tinha os mesmos olhos cor de vinho
e carregava a mesma expressão altiva e esnobe que
ele, embora ele ainda fosse humano e ela não. Será
que ainda seria tão tolerante comigo se soubesse de
todas as noites que ela passou em meus aposentos
no castelo? Um sorriso malicioso se formou em
meu rosto enquanto o encarava, fazendo-o ficar
ainda mais tenso.
— Tenho sim e é algo um tanto perigoso...
— Aliver virou-se e aquela expressão de
preocupação tomou conta dele novamente.
— Nada que eu não possa lidar, imagino.
— Talvez... Soube dos rumores que vieram
do Castelo de Cristal? Sobre uma maga negra que
tentou matar a princesa Nyumun e o príncipe

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Kuran?
— Acho que todos nos Doze Mundos estão
sabendo sobre isso, majestade, faz séculos desde
que o último mago negro foi morto, um novo mago
negro surgindo é algo que todos ficariam sabendo
mais cedo ou mais tarde, fora que os criados do rei
Ewren tem línguas compridas demais e deixam
tudo escapar! ― retruquei.
— Pois então, tivemos notícia que há uma
maga negra que está circulando os arredores de
Catadh, ela causou um grande prejuízo destruindo
uma estalagem por lá, disseram que uma mancha
negra engoliu o prédio e que ela saiu caminhando
tranquilamente e rasgou cinco guardas ao meio,
ninguém teve coragem de enfrentá-la depois disso.
Dizem que essa é a mesma maga que quase rasgou
o príncipe Kuran ao meio.
— E qual o motivo de destruir o prédio?
— É isso que quero que descubra, o povo da
cidade está com medo de sair às ruas pois dizem
que ela anda toda de preto com um capuz cobrindo
o rosto e carrega uma foice enorme de vitrino, que
é a sombra da morte em pessoa. Porém um dos

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guardas que a viu e sobreviveu ao ataque disse que


é uma jovem linda. ― Um sorriso surgiu no rosto
do rei.
— Qual é a ordem, então?
— Não quero que a mate, uma maga negra,
dependendo do poder dela, nossos inimigos
pensariam duas vezes antes de querer comprar
briga. Seria interessante ter alguém assim na guarda
real...
— Ou em sua cama? ― O sorriso dele
aumentou.
— Estou interessado em habilidades que
possam nos ajudar com as minas, Caalin! Se o
poder dela for realmente grande, ela pode ser de
grande ajuda para o reino! ― Porém, o olhar dele
dizia outra coisa.
— E se ela não tiver interesse em ajudar o
reino? ― questionei vendo seu rosto passar de
descontraído a decepcionado.
— Se ela não aceitar vir, se estiver só
querendo confusão, livre-se dela! De problemas já
basta todos os que estamos tendo ultimamente! ―
Ele bufou e voltou a sentar-se. Mal sabia ele dos

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verdadeiros problemas, muito maiores do que a


briga pelo reino de Vegahn, talvez uma batalha
começasse em breve pelos mundos, pela vida.
— Vou fazer o possível para tentar trazê-la,
mesmo que precise capturá-la e trazê-la amarrada
até aqui. Algo mais?
— Se puder, quando estiver voltando com a
jovem ou com a cabeça dela, tente conseguir mais
informações sobre nossos aliados do Sul, talvez
possa conseguir uma aliança de verdade com
Bremir, soube que ele tem uma filha e que está em
idade de casar-se. ― Acabei soltando uma
gargalhada divertida vendo a expressão de terror do
rei.
— Acabando os dias de rodízio, alteza? ―
Ele corou. Aliver era muito jovem ainda, não tinha
sequer completado vinte anos e sua mãe não
encontrava nenhuma jovem para o filho, alegando
todas serem “incapazes” de lidar com o
temperamento forte dele, mas a verdade é que
Aliver era um mulherengo depravado que não
conseguia manter um compromisso por mais de
uma semana, motivo pelo qual seu pai havia

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escolhido um primo distante para assumir o trono,


isso custou a cabeça dele.
— Uma hora a diversão acaba, Caalin, não só
para mim, mas para você também! ― Ele passou a
mão sobre os curtos cabelos cor de ouro
envelhecido e suspirou. ― Às vezes é preciso
sacrificar algo para o bem maior!
— A Princesa Jiyeni não é feia, soube que
ela só precisa de três criadas fortes e treinadas e
alguns metros de tecido para conseguir vesti-la de
manhã! ― Debochei lembrando-me da aparência
da princesa, que não era realmente feia, mas tinha
sérias dúvidas se ela caberia na cama do rei.
— Você é cruel, Caalin! Diga, seu coração é
de gelo assim como seus poderes? ― perguntou
tamborilando os dedos sobre o braço do trono
irritado com a brincadeira, lhe mostrei os dentes
num sorriso amigável.
— Peço licença ao rei, tenho que ir atrás de
nossa convidada de honra! ― disse fazendo uma
reverência para não irritar ainda mais o capitão e
saí da sala, nem sequer fui até o quarto especial que
ficava preparado para mim na ala leste do castelo,

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saí pelos corredores direto para os portões


principais, preferia ficar numa estalagem na cidade
Hima, alguns quilômetros à frente do castelo, assim
não correria o risco de Zion querer entrar em meus
aposentos, não estava com paciência para os
caprichos dela desta vez.
O que mais me intrigava era o fato de uma
maga negra ter tentado matar soberanos de dois
reinos e ter saído impune, por que não havia
nenhum prêmio sobre a captura dela? A essa altura
já haveria muitos boatos, ou até mesmo muitos
caçadores atrás dela, então ou ela era conhecida dos
soberanos, alguma parente ou amiga, ou era tão
difícil de ser pega que não foi estabelecido um
prêmio pela sua captura.

Quase um ano desde que Apollis desapareceu


do céu, tinha certeza que mais cedo ou mais tarde
veria Higarath novamente, esperava ser mais tarde,
ainda tinha outros problemas para resolver antes de
enfrentá-lo, ele precisava saldar suas dívidas
comigo.
Ao passar pelos portões de Hima, notei uma

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euforia um pouco incomum por parte dos cidadãos,


o clima festivo e as gargalhadas e brindes por todas
as tavernas da cidade, parecia que algo muito bom
havia acontecido enquanto estive fora. Atravessei a
cidade em silêncio, escondendo Blumarian com o
manto para evitar que algum caçador desavisado
me confundisse com um mercenário qualquer.
Entrei rapidamente pelas portas da estalagem
que ficava perto da saída norte da cidade e pedi o
quarto de sempre. Louise, a dona da estalagem,
uma humana que devia ter sido muito bela em sua
juventude e agora escondia os traços da idade
embaixo da pesada maquiagem, lançou-me um
sorriso travesso ao entregar as chaves, não me
preocupei em sorrir de volta, apenas fiz um gesto
com a cabeça e subi as escadas até o quarto no
terceiro andar, cheguei à porta do quinto quarto à
esquerda e a abri com um leve rangido.
A cama de madeira com uma colcha grossa
de pele de Lobo ficava bem próxima a parede por
onde passavam os canos de aquecimento, tornando
a noite para qualquer humano agradável e aquecida,
porém para mim isso era desagradável. As marcas

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no assoalho de madeira mostravam a quantidade de


vezes que arrastei a cama para o outro lado,
colocando-a sob a janela que permanecia aberta a
noite inteira. O calor excessivo fazia meus ossos
doerem, isso tornava qualquer viagem a outros
mundos um incômodo quando eu não podia usar
meus poderes para não chamar atenção.
O banheiro deste quarto era um pouco maior
que o dos outros, então tinha uma grande banheira
de louça que enchi de água fria e fiquei imerso por
um bom tempo antes de descer até o salão de jantar.
Andei calmamente até uma das longas mesas
rústicas de madeira envernizada no fim do salão,
prestando atenção em cada murmúrio, cada
conversa, procurando descobrir o que havia
mudado naquela pequena cidade congelada nas
últimas semanas que a deixara tão festiva. Porém,
todos comemoravam algo, riam, e brindavam e não
diziam nada sobre o motivo de tal alegria.
Pedi um assado para a atendente que
circulava as mesas equilibrando uma bandeja cheia
de canecos de vinho quente com especiarias.
No centro do salão, alguns humanos

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dançavam e bebiam até ficarem bêbados o


suficiente para desabarem sobre as mesas e riam até
que seus rostos ficassem vermelhos.
— Qual o motivo de toda essa
comemoração? ― perguntei à jovem quando ela
deixou a travessa de assado e uma das canecas de
vinho em minha frente. Ela arqueou as
sobrancelhas e mostrou um sorriso alegre ao
responder:
— Os homens que foram levados da cidade
como escravos no começo do ano retornaram! ―
disse ela apontando com o queixo o grupo que
comemorava. Alguns dos homens que estavam ali
tinham as marcas dos chicotes sobre as peles e
estavam magros, porém felizes agora.
— Como se libertaram? Fugiram? ―
perguntei sabendo que a resposta seria negativa,
pois se tivessem fugido, ela não diria por medo de
serem pegos ou porque já teriam sido recapturados.
— Disseram que uma mulher coberta pelas
sombras entrou nas minas ao anoitecer, ela fez a
mina estremecer e desabar depois que os escravos
saíram, quando os capatazes tentaram capturá-la,

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ela os cortou com um único golpe de uma foice. ―


Ela contou baixinho, tão baixo que suas palavras
eram abafadas pelos gritos de comemoração.
— Parece muito interessante...
— É sim! Estão dizendo que ela é
impressionante e assustadora, ela anda séria, e
quando sorri é porque alguém vai morrer! ― Ela
sussurrou as palavras e se virou para sair.
— Sabe o nome dela? ― perguntei antes que
ela fosse atender outra mesa.
— Os homens daquela mesa perguntaram
quando foram agradecer pela libertação, ela diz se
chamar Yinemí! ― A jovem sorriu e se afastou
levando a bandeja até outra mesa. Alma do gelo?
Por que essa pessoa usaria o nome de um poder tão
antigo e letal para tais feitos?

Após o jantar, caminhei lentamente até uma


das mesas com mais movimento de ex-escravos e
sem aviso arrastei um deles até o corredor que
levava as escadas do segundo piso.
— A mulher que libertou vocês, sabe onde
está? ― perguntei encarando-o, o homem assustado
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estava segurando minha mão com força, podia ver


o medo dele quando passou os olhos no meu
uniforme preto e azulado, na certa achava que eu ia
evitar que os outros fossem libertos, que eu estava
ali para caçar a maga.
— Não tenho ideia de onde ela está! ― disse
ele tentando se soltar.
— Não tenho intenção de impedir os
próximos feitos dela, só quero saber quando irá agir
novamente! ― O soltei, mas não deixei o caminho
livre.
— Até onde eu sei, amanhã à noite ela
pretende destruir as minas restantes próximas a
Catadh, só isso que sei! ― exclamou com a voz
embargada.
— Obrigado. ― Liberei a passagem e o vi
voltar aos tropeços até a mesa onde seus colegas
nem repararam que ele tinha sumido até ele voltar.
Fui até o quarto e fiquei deitado na cama, pensando
sobre a tal Yinemí. A janela estava aberta e a brisa
trazia o aroma agradável da neve, dos plátanos
gigantes ao redor da cidade e das estufas de uvas
azuis que os humanos desta cidade cultivavam.

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O sol me despertou naquela manhã, o que


poderia ser considerado ruim, levando em
consideração que nunca acordei depois do sol
nascer, normalmente despertava no final da
madrugada e partia imediatamente, já que nunca
estava com sono suficiente para dormir mais que
algumas horas. Aquela foi a primeira vez desde que
despertei que tive um sonho que era muito vívido e
podia ser considerado perturbador, estava diante de
uma figura encapuzada com uma longa foice, ela
sorria para mim e se preparava para me atacar, as
sombras giravam em volta dela como se fossem
velhas amigas, mas elas não a dominavam como
era para ser, e sim pareciam responder a ela, ela
estava no controle das sombras e não o contrário!
Levantei e me preparei para partir, desci as
escadas rapidamente e fui até o salão, mas parei na
porta ao perceber que Zion estava sentada junto
com os outros guardas, ela provavelmente sabia
que eu estaria ali. Dei as costas ao salão, fui até a
recepção e deixei a chave e algumas moedas e saí
da hospedaria, não queria correr o risco de ter que

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falar com Zion.


— Saindo de fininho? ― Ela estava do outro
lado da porta encostada na parede de pernas
cruzadas, encarando-me.
— Para ser sincero estava sim, tenho que ir
ao encontro da maga, por ordem do rei e isso tem
que ser feito rápido ou ela pode desaparecer! ―
respondi prendendo Blumarian na bandoleira e
encarando-a.
— Você está me evitando? ― Ela cruzou os
braços fazendo cara feia para mim, senti vontade de
revirar os olhos, mas isso a faria reclamar ainda
mais.
— Por que acha que estou te evitando?
— Talvez porque esteja! Desde que foi a
Ciartes para a coroação de Ericko, você voltou e
não é o mesmo comigo! ― Ela deu um passo à
frente segurando minha blusa.
— Não, Zion, não é desde a coroação que
estou assim com você... É de muito antes, afinal,
nunca disse que tínhamos algum relacionamento
para que você me cobrasse toda essa atenção. ―
Tirei suas mãos de cima de mim. Ela me olhava

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incrédula.
— O que está dizendo?
— Não ficou claro o suficiente?
— Então, fui apenas uma diversão para
você? ― Ela franziu o cenho.
— Falando assim parece que você não se
divertiu nada!
— Você é um idiota! ― Sua mão girou
rapidamente para acertar meu rosto, mas a segurei
com força, força suficiente para quebrar seu braço
se ela ainda fosse humana, Zion soltou um gemido
e puxou a mão, esfregando o pulso, a raiva em seus
olhos chegava a ser divertida.
— Tenho certeza de nunca ter dito nada
sobre termos um relacionamento, Zion! Você não
tem o direito de me cobrar nada, então, para o seu
bem, espero que aceite isso e me deixe em paz! ―
falei virando as costas para ela e caminhando em
direção aos portões. Senti o cheiro do metal quando
ele foi atirado contra mim, virei rapidamente
pegando a adaga longa que ela havia atirado contra
minhas costas, a girei na mão, era uma adaga
bonita, trabalhada em aço e vitrino.

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— Agradeço pelo presente de despedida! ―


Acenei para ela colocando a adaga no alforje e saí
da cidade. Precisava ir rapidamente até Catadh,
pois a maga poderia desaparecer ou ir para outra
região, caso ela estivesse mesmo destruindo as
minas, havia mais duas clandestinas naquela área,
as minas de Gither e Prestin, que provavelmente
seriam os próximos alvos dela, as outras eram mais
distantes. Iria ficar de vigia durante a noite nas
minas para ver se ela as atacaria e a capturaria lá
mesmo. Abri um portal, a luz branca me cobriu
completamente enquanto corria pelo curto túnel até
o outro lado, queria chegar o mais rápido possível
em Catadh e assim poder observar melhor o
movimento e quem sabe encontrar mais pistas
sobre os “Chefes” que gerenciavam o trabalho
escravo das minas.

A cidade de Catadh não havia mudado em


nada desde que despertei, nem sequer uma nova
construção ou reforma. Todas as casas de pedras e
prédios gigantes de gelo continuavam os mesmos.
Os habitantes dessa região tinham uma paixão tão

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grande pelas construções de gelo semelhantes ao


castelo em Velezar, que reconstruíram a cidade em
gelo depois da guerra. O movimento aqui estava
normal, as pessoas pareciam não se importar muito
com o que havia acontecido na mina principal, não
podia esperar nada diferente já que Catadh era uma
das cidades mais ricas do continente norte, nenhum
dos escravos libertos devia ser desta cidade.
A neve caia fraca durante aquela manhã,
segui para um restaurante e hospedaria menos
chamativo no início da cidade, o Castelo Verde, já
que por causa de Zion não havia tomado o café.
Enquanto esperava a refeição vasculhei
mentalmente os mapas da região procurando pelas
trilhas e pelo terreno ao redor das minas, um lugar
seguro que pudesse montar vigia durante a noite
para esperar a jovem maga destruidora.
Ao sair do restaurante, comecei a circular
pela cidade evitando chamar muita atenção, passei
em frente a uma ferraria na qual um Malvarmo
negociava algo com alguém, o comerciante parecia
nervoso diante do cliente, aquilo parecia uma
atitude suspeita, mas tinha outras prioridades no

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momento e podia interrogá-lo mais tarde.

Saí do centro da cidade e fui até uma


pequena vila de casas de pedra que mantinham a
construção original da cidade. Andei até a borda do
lago, me apoiei sobre a grade de proteção e fiquei
ali observando. Havia algumas pessoas se
divertindo na praça da vila, patinando sobre o lago
congelado, algumas crianças arriscavam os
primeiros passos sobre o gelo, a grande maioria
Malvarmos, pequenas criancinhas brancas demais,
de olhos negros ou vinho e cabelos cinzentos ou
brancos, seus sorrisos pontiagudos eram alegres e
divertidos, nem pareciam ser alguns dos seres mais
letais dos Doze Mundos. As poucas crianças
humanas e élficas ali, destacando-se por suas peles
rosadas e olhos coloridos, brincavam em volta
delas como se não representassem mal algum,
juntas sem nenhum preconceito, sem medo algum
daqueles pequenos seres que poderiam destruí-las
sem nenhum grande esforço.
Não me lembrava mais de como era ser um
humano, de como era ter as bochechas coradas ou

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sangue vermelho nas veias, há muito tempo atrás,


antes mesmo dessa cidade pensar em nascer, eu me
tornei o monstro de gelo, como muitos me
chamavam.
— Viajando em pensamentos novamente? ―
A voz suave e trêmula de Mikale me trouxe de
volta.
— Talvez, há muito para pensar, muito para
fazer e pouco tempo. ― respondi. Olhei para
aqueles olhos azuis cinzentos, um sorriso cobria
uma parte do seu rosto enrugado e os cabelos cinza
da idade estavam amarrados num coque sobre a
cabeça. Ela segurava Ira carinhosamente em seus
braços escondidos pelas grossas camadas de roupa
que usava.
— Você tem todo tempo do mundo! ― Ela
acariciou a cabeça de Ira e o colocou em meu
ombro, como se estivesse me cumprimentando, ele
se enrolou em mim e ronronou alto. ― Obrigada
por deixá-lo comigo esses dias, o frio está muito
maior desde o meio do ano passado! ― disse ela
tossindo.
— Não devia estar aqui fora, Mikale! ― falei

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colocando os braços ao redor de seus ombros


frágeis e a guiando de volta à sua pequena casa que
ficava a poucos metros do lago, ela na certa me viu
chegar e veio ao meu encontro como sempre fazia.
— Não devia é passar o tempo todo dentro de
casa! Isso sim é entediante! ― Ela grunhiu e
apertou o braço ao redor de mim.
— Seus netos não têm vindo mais te ver? ―
perguntei franzindo o cenho.
— Eles agora estão na academia, não tem
tempo para sua velha avó, para serem bons
caçadores precisam de muito esforço! ― Ela
pigarreou, abriu a porta da casa e entrou indo em
direção à cozinha, onde alimentou o fogo no fogão
a lenha e colocou uma chaleira cheia de água sobre
ele.
— Como você está?
— Bem, aproveitando os dias cada vez mais
gelados para confeccionar colchas de pele de Yeti,
acabo ganhando mais com as mantas do que como
curandeira! ― Mikale riu enquanto pegava ervas
para seu chá. Ela ainda tinha o mesmo sorriso
divertido e brincalhão que vi dezoito anos atrás

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quando ela me encontrou nas geleiras da encosta


próxima ao mar de Ivelis. ― E você o que faz por
aqui tão cedo, Caalin? Imaginei que fosse levar
alguns meses para te ver novamente por esses
lados!
— Aliver pediu que eu encontrasse a maga
negra que anda aterrorizando os capatazes das
minas de vitrino. ― Mikale olhou-me de soslaio, a
preocupação em seus olhos não era o que eu
esperava ver quando mencionei a maga.
— O que vai fazer com ela? Ela está fazendo
um trabalho maravilhoso, para ser sincera o
trabalho que o rei devia ter feito quando você o
colocou lá! ― Ela bufou e colocou as mãos nos
quadris.
— Calma! Ele quer apenas ter uma conversa
amigável com ela! Aparentemente ele quer que ela
seja uma guarda pessoal dele. ― Os olhos de
Mikale se mantinham semicerrados.
— Tem certeza?
— Sim, ele não ousaria acabar com alguém
que está fazendo todo o serviço dele de graça. ―
Mikale relaxou e serviu-me uma xícara de chá e

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alguns pães de mel com cobertura de chocolate.


— Conheci essa maga há alguns dias... ―
Ela colocou a chaleira sobre o descanso em cima da
mesa e sentou-se perto de mim.
— O quê? Ela te fez alguma coisa? ― Foi
minha vez de ficar preocupado.
— Não seja bobo! Se ela tivesse feito algo a
uma velha como eu, acha que eu estaria aqui te
servindo chá hoje?
— Então, como a conheceu? ― Perguntei
relaxando na cadeira.
— Estava na Vila da Geada, fui chamada até
lá para ver um recém-nascido híbrido que não
conseguia se alimentar direito, isso era pouco mais
de uma da manhã... ― Ela parou para tomar um
gole do chá e comer um doce. ― Estava saindo da
casa e vinha caminhando pela trilha de caça para
chegar logo em casa, o frio estava cortante e não
havia mais ninguém por perto, o céu nublado
demais e eu não estava enxergando muito bem.
Quando cheguei perto dos portões do Leste um
vampiro apareceu. Teria morrido se essa maga não
tivesse aparecido. ― Vi um brilho em seus olhos,

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algo que nunca tinha visto. ― Caalin, as sombras


se moviam junto com ela e pareciam soltar raios ao
redor dela! Mas não consegui ver seu rosto, só os
olhos e cabelos prateados por baixo do capuz, então
ela partiu o vampiro ao meio com uma foice
brilhante e o desmanchou com uma rajada de
chamas brancas, mas não queimou de verdade, não
tinha cheiro de fumaça ou calor nas chamas que
consumiram o vampiro! Ele virou uma poeira fina e
estranha com aparência de cinzas, mas era uma
poeira gelada... ― Ela bebeu o resto do chá e ficou
encarando o nada, um arrepio percorreu minha
espinha com as últimas palavras que Mikale falou
“uma poeira fina e gelada”.
— Acho que você anda tomando chá demais!
— falei brincando afagando suas costas, o rosto
avermelhado pelo frio corou ainda mais e ela me
deu um tapa brincalhão no ombro e riu.
— Talvez esteja mesmo! ― Ela ficou séria e
respirou fundo. ― Não a machuque, Caalin, tente
conversar, se ela estiver causando problemas então
a prenda, mas não a machuque.
— Vou fazer o possível! ― respondi, mas a

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verdade é que se ela era uma maga negra e ainda


tivesse chance de ser a controladora da alma do
gelo, não havia prisão nos Doze Mundos que
pudesse detê-la por mais que alguns minutos.
Mesmo com a minha magia e minha força, se essa
maga estivesse realmente disposta a fugir, eu não
conseguiria capturá-la, precisaria de mais do que
força para conseguir pegá-la.
— Não se esqueça de passar aqui quando
estiver voltando para Velezar, quero que leve uma
coisa para minha neta, sabe alguma notícia dela?
— Mikale, dessa vez nem fiquei no castelo
por mais de alguns minutos, não cheguei a ver se
Glyph estava por lá, mas creio que esteja tudo bem!
— Ela seguiu meus passos e se tornou a
curandeira do castelo! ― Os olhos de Mikale
brilhavam com alegria e orgulho. Glyph era uma
menina de quinze anos e havia se tornado a
curandeira oficial do castelo, pois era a melhor, não
havia nada em termos de cura que ela não pudesse
fazer.
— Quando estiver voltando passarei aqui,
pode deixar! ― Levantei da cadeira e coloquei a

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chaleira de volta sobre o fogão, Mikale apertou


minha mão gentilmente quando passei por ela em
direção a porta. Ira saltou sobre meu ombro e se
enrolou no meu pescoço como sempre fazia,
esfriando-se em mim.
— Pronto para caçar encrenca? ― perguntei
a ele coçando atrás de suas orelhas, só depois de
receber um espirro como resposta me dirigi aos
portões da cidade.

As minas de Gither e Prestin ficavam bem


próximas uma da outra, separadas por um pequeno
vale congelado de árvores antigas e sombrias,
cobertas por neve e espinhos, o tempo naquele
lugar parecia ter parado. Subi um monte de neve
que dava para ver todo o movimento dentro de
Prestin e me posicionei entre grandes pedras
escorregadias que formavam uma pequena caverna
e protegiam pequenos arbustos de flores cinerárias.
— Ira, preciso que vá até Gither e vigie a
passagem! ― Cobri o olho esquerdo com a mão e
concentrei minha energia, depois a passei para Ira,
que bufou irritado com a quantidade de energia que

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correu em seu corpo, logo em seguida desapareceu


pela trilha estreita parando a pouco menos de três
quilômetros a oeste, diante dos muros da mina de
Gither que ficava à beira do lago vermelho, o que
deixava a fuga dali ainda mais difícil. Fiquei
observando cada movimento dentro e fora dos
campos congelados onde os escravos se
concentravam, o túnel que os levava para baixo do
gelo era largo o suficiente para se entrar com um
dragão. O movimento dos escravos entrando e
saindo com carrinhos cheios de peças de vitrino era
no mínimo revoltante. O som dos chicotes e gritos
dos escravos me dava vontade de levantar e ir até lá
e destruir as minas eu mesmo, a única coisa que me
fazia ficar ali era a certeza de que antes da
madrugada, eles estariam livres.

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Capítulo 2

Passava das dez da noite quando acordei,


havia cochilado no final da tarde depois de usar o
corpo de Ira e me certificar que todas as rotas de
fuga para os escravos que sairiam de Gither
estariam liberadas e sem nenhum obstáculo.
Encontrei um lobo selvagem próximo a passagem
das montanhas obscuras, foi fácil acabar com ele
usando as presas de Ira em seu tamanho real, um
glacio chega a ser maior que um urso em sua idade
adulta.
Esta noite o céu estava limpo e não havia
sinal de nuvens em lugar nenhum, a lua cheia
estava ainda mais brilhante que o normal, como se
tentasse de alguma forma ajudar com o que
aconteceria esta noite. Não podia sair para caçar
agora, pois a qualquer momento a maga poderia
aparecer e seria um problema se a perdesse de
vista. Porém, algo chamou minha atenção, da

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estrada principal que vinha da cidade de Catadh,


um grupo de soldados da cidade estava cercando as
muralhas, não fazia ideia do que estavam fazendo
ali, eles poderiam colocar tudo a perder se fossem
vistos, pois todos sabiam que o rei tinha ordenado a
desativação das minas, soldados da guarda da
cidade por aqui podiam gerar problemas
desnecessários ou até mesmo poderiam espantar a
maga. Corri por entre as pedras até a floresta onde
eles estavam se escondendo, esperando por algo.
Passei sorrateiramente entre eles, que nem sequer
notaram minha aproximação, ainda queria entender
porque raios o rei decidiu misturar os exércitos e
recrutar Silfos e Elfos, já que eles tinham poderes
inferiores aos Malvarmos. Aliver havia crescido em
meio a eles, duvidada que ele tivesse medo de que
os Malvarmos o traíssem ou entregassem o reino
aos governantes do Leste ou do Oeste. O capitão da
guarda de Catadh, Fenir, estava entre alguns
arbustos congelados dando ordens a outros dois
soldados armados com bestas.
— Algum problema, capitão? ― Ele quase
deu um pulo com o susto quando me viu.

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— Ah, Caalin é você! ― Não sei se ele


estava aliviado ou irritado por ser “apenas eu”.
— O que fazem aqui capitão? Se me permite
perguntar.
— Ficamos sabendo na cidade que uma maga
iria atacar a mina no início da madrugada, estamos
aqui para tentar capturá-la.
— A pedido de quem? ― Franzi o cenho, o
rei não liberaria essa informação nem por todo ouro
de Vegahn, o capitão ficou pálido, porém
endireitou a postura e me encarou com os olhos
cinzentos semicerrados.
— Não interessa a você uma informação
como essa! ― disse ele rispidamente fazendo sinal
para que seus soldados subissem nas árvores para
terem melhor visão da estrada.
— Você vai tentar matá-la! ― Soltei um
rosnado, o elfo colocou a mão sobre o punho da
espada e deu um passo em minha direção.
— E se for? Não quero problemas com uma
maga negra por perto de minha cidade!
— Sua cidade? ― Ri ― Interessante essa
escolha de palavras, Fenir. Até onde eu sei as
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cidades são do rei. Mas se você insiste nessa


bobagem, estou aqui a serviço do rei, ele mandou
que eu levasse a maga com vida até lá! ― Nem me
preocupei em segurar Blumarian, por mais que um
elfo fosse forte, ele não teria nenhuma chance se eu
resolvesse enfrentá-lo num combate corpo a corpo.
— Nós não a deixaremos sair com vida
daqui! ― Seus olhos faiscaram.
— Vai contra a vontade do rei? Vai
desobedecer a uma ordem direta?
— Não foi dada a mim essa ordem, só estou
pensando no que é melhor para o bem do reino!
— Ou está lucrando com as minas e quer
impedir que sejam destruídas? Afinal, a ordem para
que elas caíssem foi dada há muito tempo. ― Ele
franziu o cenho e deu mais um passo em minha
direção. ― A maga não oferece perigo ao reino, só
aos bárbaros com chicotes lá dentro, se vocês não
entrarem no caminho dela, ela não fará nada a
vocês!
— No que podemos ajudar então? ― Sabia
que ele estava oferecendo ajuda apenas para tentar
afastar a desconfiança de que podia estar ajudando

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os donos das minas.


— Mantenham os caminhos livres e deem
passagem, auxiliem os escravos em fuga ―
respondi. ― Preciso voltar para meu posto, tenho
que ficar de olho quando ela aparecer. ― Saltei
para os galhos onde os soldados com as bestas
estavam só para que eles tivessem a certeza que se
descumprissem as ordens, eu os pegaria facilmente.
Eles mal respiravam quando os encarei e mostrei os
dentes, depois saltei novamente em direção à
estrada.

Voltei à minha posição inicial, escondido sob


as rochas congeladas no alto do monte em frente à
muralha da mina. Quase não havia movimento
dentro da área da mina, exceto pelos capatazes que
andavam de um lado para outro, levando com eles
lobos selvagens, presos à grossas correntes tão
pesadas que um humano normal não poderia
carregar, eles não eram humanos. Quando um deles
passou diante da luz pude ver a pele ligeiramente
azulada marcada por riscos safira, um sereiano.
Verifiquei os arredores de Gither com os olhos de

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Ira, ele estava feliz, havia caçado uma rena para seu
jantar e estava com a barriga cheia. Olhei por cima
dos muros, nada ali também, nada além de um
movimento inquieto dos guardas que andavam ao
lado dos capatazes. Usei o poder de visão de Ira, os
guardas que andavam com eles vestiam o emblema
de Ausiet, o governante de Fernic. Não, aquilo não
era bom sinal! Significava que Ausiet estava
metido até os dentes nos negócios das minas
clandestinas, então o vitrino retirado desses locais
estava sendo levado para ele, precisava descobrir o
que ele estava fazendo com isso.
Estava distraído demais olhando os guardas
de Fernic pelos olhos de ira, que não percebi os
gritos vindos da mina de Prestin.

Voltei minha atenção para meu corpo


rapidamente e me levantei num pulo para descobrir
o que estava acontecendo, meus olhos não podiam
acreditar no que viam. As sombras negras cobriram
grande parte da mina como uma fumaça espessa e
viva, o único ponto de luz vinha de uma arma
brilhante no centro delas, uma figura encapuzada

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coberta por sombras que se movia numa velocidade


assustadora, a arma que ela carregava, uma espécie
de foice, tão grande que por pouco não era maior
do que a figura que a portava. Ela girava a foice e
não errava nenhum de seus alvos, partindo os
capatazes e vigias como se estivesse cortando nada.
Pouco depois que os gritos começaram, um
estrondo fez os grandes portões de ferro, a única
passagem para fora das muralhas da mina,
explodirem e serem arremessados a mais de dez
metros de distância. Centenas de escravos, agora
livres, corriam pelas estradas, subiam pelos montes
de neve e corriam entre as árvores, apreciando o
gosto da liberdade, eles ignoraram a presença dos
guardas que não faziam nada para ajudá-los, mas
pelo menos não estavam atrapalhando.
Voltei a observar a maga, ela agora estava
caminhando entre os escravos que corriam em
direção às saídas, um dos capatazes no chão soltou
a corrente do lobo que, sem pensar duas vezes,
saltou sobre a mulher, mas antes que eu sequer me
movesse para ajudá-la, ela agarrou a corrente do
lobo, o mantendo afastado do corpo dela, ele

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tentava soltar-se dela e entre ganidos e ataques ela


apertou seu focinho e tocou sua cabeça com a
palma da mão aberta. O que houve depois me
deixou com os cabelos em pé: as sombras que
penetraram no lobo o fizeram se voltar contra o
capataz e devorá-lo vivo. Será que ela realmente
não seria uma ameaça?

Antes de sair pelos portões da muralha, ela


foi até a entrada da mina, verificou se não havia
ninguém lá e moveu as mãos na direção dos túneis
subterrâneos, logo após, caminhou lentamente até
os portões, pouco depois a entrada da mina atrás
dela brilhou e se moveu, erguendo uma grande
quantidade de terra e neve para o alto com um som
abafado de uma explosão tão poderosa que a terra
inteira tremeu. Ouvi mais gritos e correria vindos
do local que os guardas estavam, a essa altura os
guardas de Catadh deviam estar tão apavorados que
todos fugiram sem ao menos olhar para trás, porém
os dois que estavam nas árvores continuavam lá.
Eles estavam esperando que ela saísse da proteção
das muralhas, iam desrespeitar a ordem e atirar

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nela.

Acenei na direção deles para alertá-los a não


fazer isso, mas era tarde, assim que que ela
despontou nos portões os dois atiraram, ela não iria
conseguir desviar delas, estava distante demais para
perceber as flechas e as deter, porém para minha
surpresa as flechas se desintegraram quando
tocaram o corpo dela. Vi um brilho prateado e um
sorriso assustador por baixo do manto.
Ela se moveu rápido demais em direção aos
guardas, eles morreriam se eu não chegasse a
tempo de impedir aquela foice de vitrino, corri o
mais rápido que pude, conseguindo alcançá-la no
momento em que ela alcançou a base das árvores,
com um rápido movimento tomei a foice de suas
mãos e me preparei para o que viria a seguir, não
consegui ver seu rosto, mas ela se virou em minha
direção com as garras à mostra, ela estava coberta
de sangue e pó de ufrige, uma erva que impedia
qualquer mágico de detectar o cheiro de quem
estivesse o usando, então não conseguia gravar seu
cheiro para detectá-la caso escapasse.

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Por um instante achei que ela fosse tentar


tomar a foice de mim, mas ao invés disso, ela me
atacou usando as garras afiadas e transparentes,
saltei para trás sacando Blumarian, ela nem sequer
recuou quando me viu sacar a espada, manteve a
postura de ataque, não tinha outra opção a não ser
feri-la para ao menos reduzir sua velocidade, girei a
espada mirando seu ombro esquerdo, mas ela
ergueu a mão e segurou o golpe parando-o com
aquela mão, o som de metal se chocando contra
metal deixou-me atordoado por um instante, olhei o
local onde a espada havia acertado, sangue escorria
da mão dela, mas não passava de um corte não
muito profundo. Ela puxou a mão fazendo com que
o corte abrisse ainda mais, pegou a foice e disparou
pela floresta congelada, sumindo de vista entre os
montes de neve. Fiquei olhando boquiaberto na
direção que ela desapareceu, aquele golpe mesmo
que não muito forte, devia ter arrancado sua mão.
— Idiotas! ― berrei enfurecido com os
guardas. ― Por que não fugiram com os outros?
Agora ela escapou! Se não tivessem atirado eu não
precisaria livrar essas suas carcaças imprestáveis!

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— Eles não desceram das árvores, agora com medo


de mim.

Se eles não tivessem atrapalhado, ela teria


corrido para a mina de Gither, mas ela foi para o
lado oposto. Soltei a mente do corpo de Ira e
assoviei para que ele me seguisse, por sorte a maga
deixou uma trilha de respingos de sangue, ela tinha
menos de dois minutos de vantagem, então eu ainda
poderia alcançá-la, o paralisante na lâmina de
Blumarian a faria reduzir a velocidade em breve.
Segui a trilha, atento a qualquer ruído, para o caso
dela pressentir que eu a seguiria e preparasse uma
armadilha para mim. A trilha continuou por cerca
de trezentos metros, foi onde os respingos de
sangue cessaram, mas as pegadas ainda estavam lá
na neve dura, ela não deve ter pensado em apagar
os rastros, torcia para ser por causa do efeito do
paralisante e não por ela estar aguardando que eu a
seguisse.
Mudei de forma esperando o pior, claro, a
forma de Malvarmo era de longe muito mais útil
numa caçada do que a forma mais humana que

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preservara para evitar tumultos quando ia aos


outros mundos, agora podia facilmente seguir o
cheiro do sangue dos capatazes e da arma de vitrino
que ela carregava e escutar qualquer coisa se
aproximando a quilômetros de mim.
Ela pegou um caminho estreito e sinuoso que
levava a uma caverna na montanha Céo. Fiquei um
bom tempo na entrada da caverna, esperando que
ela pudesse sair a qualquer momento para me
atacar, porém depois de mais de vinte minutos
esperando ela não apareceu, talvez ela não achasse
que ia segui-la e a essa altura o paralisante de
Blumarian devia tê-la deixado pelo menos tonta.
Entrei silenciosamente na caverna de gelo e
rochas que se estendiam para o fundo da montanha,
roupas sujas de sangue estavam próximo à entrada,
aos poucos pude ver uma luz como a de uma chama
e um odor inebriante tomou o ambiente, além do
cheiro feminino, um aroma inconfundível que
tomou conta dos meus sentidos. Não é possível!
Conhecia esse cheiro e o reconheceria de novo em
qualquer lugar que o sentisse, ele estava misturado
agora ao perfume adocicado de mel e hortelã.

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Andei rapidamente até onde vinha a luz.


Uma jovem estava dentro de uma pequena
piscina redonda feita por magia no gelo, vapor
subia da piscina, mas a jovem não estava
completamente imersa, seus braços estavam sobre o
gelo do lado de fora da piscina e uma marca rosada
como de um corte recentemente curado cobria a
palma da mão. Ela respirava rapidamente e parecia
não ter me notado ali ainda.
— Nikella? ― chamei, ela abriu os olhos
espantada, marcas negras se acenderam em seu
corpo e as sombras se moveram em volta dela, ela
saiu da água enrolando-se numa toalha e pegou a
foice ao seu lado. Seus movimentos agora estavam
lentos e ela parecia realmente tonta.
— Vamos! Não vai me atacar? ― Ela rosnou
dando um passo em falso para trás.
— Não se lembra de mim? ― perguntei
calmamente recolhendo as garras e voltando a
minha aparência mais humana. ― Nos conhecemos
no aniversário do príncipe Ericko! ― Ergui as
palmas das mãos, mostrando que não a enfrentaria.
Ela me olhou de cima a baixo e depois de um

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suspiro voltou para dentro d’água, por fim


parecendo aliviada e irritada ao mesmo tempo.
— Vá embora, você me atrapalhou lá! ―
resmungou ela olhando de soslaio para Blumarian
em minha bandoleira.
— Não me lembro de você ser uma maga
negra quando te conheci, nem mesmo lembro de ser
tão... assustadora. ― falei dando um passo mais
para perto da piscina, ela me encarou com uma
expressão irritada.
— Isso porque não era uma maga negra
quando te vi aquele dia no castelo. ― retrucou ela
movendo o pescoço para o lado e estalando-o. ― Já
pedi para sair!
— Não posso ir, não sem você! ― falei
sentando no chão perto da piscina e encarando-a.
— Não vou a lugar nenhum, graças a você
não consegui ir até a outra mina. Então, vou ficar
aqui até destruí-la. ― retrucou com uma voz cada
vez mais irritada.
— Não fui eu que atrapalhei você! Foram os
guardas da cidade Catadh! Eu estava ali para te
ajudar! ― respondi aproximando-me mais,

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respirando fundo para sentir mais aquele perfume.


— Não vi ajuda quando entrei na mina e
comecei a limpeza! ― Ela me encarou com os
olhos grandes e verdes e estalou a língua. O rosto
oval estava exatamente igual ao que vi a primeira
vez em Ciartes, os lábios em formato de coração e
levemente avermelhados estavam torcidos num
bico de frustração. Ela, então, apoiou a cabeça no
gelo atrás dela, arqueando o pescoço, a pele macia
e brilhante a mostra, exposta demais, um
movimento arriscado e perigoso para alguém diante
de um predador.
— Não queria te atrapalhar... ― falei
perdendo o foco da conversa por um momento.
— Mas atrapalhou! ― Ela se moveu, virando
o corpo para o outro lado, a espuma não permitia
que visse nada além dela. ― Se continuar me
olhando assim, juro que vou fazer sua cabeça rolar
antes que você pense em tocar essa espada de baixa
qualidade que você tem aí! ― Arqueei as
sobrancelhas e sorri, voltando meus olhos para
encarar os seus.
— Naquele dia você parecia ser uma pessoa

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tão doce... ― Sabia que não era, só queria provocá-


la, no dia que fui à Ciartes procurar por um dos
receptores de vitrino contrabandeado e a vi na festa
do príncipe, pude ver algo em seus olhos, não uma
chama comum, algo frio como o gelo, capaz de
queimar até mesmo uma alma.
— Pois é, mas não sou! ― As marcas
acenderam novamente e seus olhos ficaram
prateados. Não é possível que ela seja uma maga
negra e consiga controlar a transformação!
— O que aconteceu com você? ― perguntei
reparando nas longas cicatrizes retas em seus
braços e notando que novamente ela não os colocou
na água.
— Nada que seja da sua conta! ― Ela
respirou fundo, saiu da água novamente e foi até
um canto na caverna onde não podia mais vê-la,
logo em seguida apareceu vestida com um longo
vestido negro e um cinto com uma adaga de vitrino,
tentando secar os cabelos com uma toalha. Sua
roupa era quente, mas as mangas felpudas do
casaco negro só iam até os cotovelos, deixando a
maior parte dos braços no frio, havia algo muito

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diferente em seu cheiro, algo familiar, porém não


consegui identificar de imediato. ― Fale logo o que
quer comigo que eu preciso ir até Gither, a essa
altura eles devem ter pensado que fugi, então, a
guarda deve ter sido dispensada. ― disse
rispidamente desistindo de secar os longos cabelos
negros com a toalha e usando magia mesmo, eu
esperava que a qualquer momento aquele poder a
tomasse transformando-a num demônio sedento por
almas e sangue.
— O rei Aliver gostaria de ter uma audiência
com você e pediu que eu a levasse até ele. ― Fui
direto ao ponto já que ela não parecia disposta a
uma conversa mais profunda. Nikella pegou a
foice, limpou-a e a transformou num pingente,
prendendo-a no colar em seu pescoço, um estranho
colar com a réplica da Árvore do Fogo como
pingente.
— Ele gostaria de ter uma audiência ou
gostaria de usar meus poderes em seu favor? ― Ela
franziu o cenho e se apoiou na parede de pedra da
caverna cruzando os braços sobre o peito.
— Não vou mentir e dizer que ele não tem

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interesse em seu poder, mas só pelo fato de ter


mandado destruir as minas de vitrino ele merece a
chance de ser ouvido, não acha? ― Ela estreitou os
olhos e bufou, ainda estava sob o efeito do
paralisante, mas talvez nem tenha percebido.
— Não quero conversa com nenhum rei, só
estou aqui para acabar com as minas e desaparecer.
— Vai voltar para Ciartes? ― Um traço de
dor apareceu em seus olhos quando ela desviou o
olhar.
— Não, só quero achar um bom lugar para
treinar, não acabei a ACV, ainda me falta o V8 e
V9.
— Se vier comigo, pode receber treinamento
dos Malvarmos, sabe que é o mais forte e mortal
exército dos Doze, não sabe? ― Curiosidade
lampejou naqueles olhos verdes quando ela voltou
a me encarar.
— Você treinou com esse exército? ― Sua
pergunta quase me fez rir.
— Podemos dizer que sim.
— Então vai ter que me provar que é bom de
verdade, assim eu posso pensar um pouco mais
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sobre o assunto. ― Ela sorriu.


— Não acho que é boa ideia agora, iria
ganhar antes mesmo que você pudesse pegar sua
arma. ― Apontei a foice com o queixo. ― O
paralisante de Blumarian ainda está em seu sistema,
não fez um grande efeito em você por causa de seus
poderes. ― Na verdade eu a venceria mesmo se
ela estivesse totalmente bem, a não ser que ela
usasse os dois poderes juntos, aí era bem provável
que destruísse Vegahn sem fazer esforço. Esse
pensamento fez meu estômago revirar-se. Medo.
— Você me envenenou? ― Suas narinas
dilataram e a mão dela pousou sobre uma adaga do
cinto sobre o quadril.
— Não sabia que era você a maga negra
terrível e assustadora que todos estavam com medo,
se soubesse teria apenas ido ao seu encontro e
conversado ― retruquei.
— Treinado por um exército que usa truques
sujos para capturar garotinhas... não sei se estou
interessada!
— Já vi caçadores da ACV usando até dardos
envenenados para caçar simples lobos selvagens,

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pelo menos eu estava caçando uma maga negra que


destruiu duas minas de vitrino em menos de dez
minutos! ― Cruzei os braços. Ela suspirou e tirou a
mão da arma, achei que ela fosse começar a discutir
quando a vi abrir e fechar a boca duas vezes, então
ela escorregou na parede da caverna e sentou-se no
chão, prendendo as pernas com os braços forçando
a respiração. Tirei o frasco com o antídoto de um
bolso do alforje e estendi para ela.
— O que é?
— O antídoto! Nossa, você está mal mesmo!
— Ri quando ela torceu a boca num bico e tomou o
frasco da minha mão. ― Não vai conseguir atacar
Gither, é melhor esperar até amanhã! ― Lembrei
dos guardas com uniformes de Fernic, se eles
estavam lá é porque sabiam dela e mesmo se ela
estivesse bem, seria perigoso enfrentá-los, Ausiet
era um Salamandra muito perigoso, fora um dos
antigos mestres de poções e venenos da ACV, ele
podia ter truques piores do que um simples
paralisante de fluoritra que usava em Blumarian.
— A cada minuto que passa, o risco para
aquelas pessoas aumenta, além do mais, não

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sabemos o que eles podem fazer, o tremor da


explosão da mina foi sentido a quilômetros, eles
podem fazer algo com os escravos em represália!
— Ela parecia determinada a atacar Gither e duvido
que algo que eu dissesse a impediria.
— Vai correr o risco de ser capturada? Eles
já sabem sobre você, é provável que fiquem a noite
inteira em alerta esperando que apareça e estarão
exaustos ao amanhecer! Se esperar até o sol nascer
vai ter maiores chances do que tem agora! ―
expliquei numa última tentativa de fazê-la me
ouvir. Nikella respirou fundo e apoiou a cabeça nos
joelhos.
— Acho que uma noite de sono não vai me
fazer mal! ― Ela tomou o antídoto, estendi a mão
para ajudá-la a se levantar, mas ela deu um pulo e
franziu o cenho para mim.
— Você não é de muitos amigos, estou
certo?
— Prefiro manter distância de tudo que pode
ser usado contra mim, algumas pessoas mais do que
outras... ― Ela deixou a voz morrer e caminhou até
a entrada da caverna, a segui mantendo uma certa

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distância, mas esperava que ela caísse a qualquer


momento, ela nem se deu ao trabalho de verificar
se era mesmo um antídoto, podia ser qualquer
coisa. Será que o príncipe não havia dito a ela quem
eu era?
Nikella parou na entrada da caverna e cruzou
os braços, a neve havia começado a cair, cobrindo
os rastros da neve, apagando os vestígios da batalha
na mina sob a fina camada de gelo que teria coberto
tudo ao amanhecer.
— Vamos até Catadh, tem uma hospedaria lá
que é bastante segura para uma fugitiva! ― falei
brincando, mas ela não riu, nem sequer esboçou
alguma reação, parecia perdida em pensamentos
segurando o pingente da árvore entre os dedos e o
girando.
— Tudo bem ― respondeu depois de alguns
segundos em silêncio, deixando os flocos de neve
caírem sobre o rosto e enfeitarem os cabelos
negros. Ira apareceu no momento em que ia
começar a descer a trilha, ele vinha em sua forma
de batalha, quase do tamanho de um urso glacial,
mas ela não parecia assustada, simplesmente

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afagou as orelhas dele, o reconheceu de Ciartes.


— Consegue montar? ― perguntei montando
sobre Ira e estendendo a mão para ela, que dessa
vez não rejeitou ajuda. Ela montou atrás de mim e
passou os braços em volta de meu tronco,
segurando-se firme.
— Catadh ― sussurrei para Ira, que
imediatamente começou a correr montanha abaixo.
Sentia as unhas pressionadas contra mim, o
antídoto que havia lhe dado poderia causar
sonolência, então fiz com que Ira fosse mais rápido
para não correr o risco de ela adormecer no meio
do caminho. As nuvens estavam se dissipando aos
poucos, em breve a lua apareceria no céu, o que era
um bom sinal, assim o dia seguinte não teria novas
camadas grossas de gelo para atrapalhar a ida à
mina.
Ao chegarmos no pé da montanha, quando
entramos na estrada principal e viramos em direção
a Catadh, um vulto apareceu na estrada bloqueando
o caminho, os olhos vermelhos da criatura estavam
acesos e fixos em nós, seu rosto escondido por
baixo de um capuz negro não permitia ver quem

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era, mas pelo corpo devia ser uma fêmea. Nikella


apertou ainda mais as mãos em mim e respirou
fundo, ela desceu de Ira num pulo e cambaleou
para o lado.
— É uma vampira, posso lidar facilmente
com ela! ― falei desmontando também, Ira estava
preparado para atacar e a vampira havia desviado o
olhar para Nikella.
— Ela está me seguindo tem mais de um
mês... ― Ela não pegou a foice como achei que
fosse fazer, estava olhando a criatura de cima a
baixo. ― Quem te mandou atrás de mim? ―
perguntou ela para a vampira que apenas riu,
mostrando as presas afiadas para ela, não parecia
que Nikella estava com medo ou preocupada, afinal
era uma caçadora.
— Alguém que está muito incomodado com
sua intromissão nas minas. ― A vampira sacou
uma espada longa e afiada coberta por uma fina
camada de um limo esverdeado.
— Aquilo é veneno de verdade... ― falei
para Nikella, ela não parecia bem, sua respiração
parecia difícil, o ar condensava-se ao redor dela de

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forma incomum e tinha um olhar assustador


estampado no belo rosto.
— Então, você veio me matar porque estou
atrapalhando os negócios de alguém? ― Nikella
nem piscava ao encarar a vampira.
— Se prefere pensar dessa forma, eu diria
que estou aqui para acabar com um pequeno
problema que está impedindo que eu receba meu
salário! ― Ela girou a espada na mão, com seu
movimento o manto abriu e o emblema de Hobner
bordado em azul celeste no peito dela me deu a
certeza de quem era.
— Priena! Ela é uma mercenária contratada
do governante de Paliath. ― exclamei pousando a
mão sobre o punho de Blumarian, era uma vampira
perigosa, traiçoeira e muito forte, talvez tão velha
quanto eu, mas duvidava que conseguiria me
vencer.
— Então, você também está ganhando com
os negócios sujos dos gerentes das minas? ―
perguntou Nikella encarando a vampira que
respondeu com um sorriso sarcástico, ela se moveu
rapidamente nas longas sombras das árvores que

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cobriam a estrada e veio em nossa direção, saquei a


arma rapidamente para atacá-la também, mas ela
parou no ar a alguns centímetros de nós com uma
expressão aterrorizada no rosto. Olhei para baixo e
vi o que havia a paralisado, um rastro branco de
gelo brilhante havia a alcançado e acertado seus
pés. A vampira não teve tempo nem mesmo de
respirar uma última vez antes de desmanchar-se em
pequenos cristais congelados. Nikella estava parada
ao meu lado com apenas um dedo erguido sobre os
lábios azulados. Seus olhos estavam prateados
assim como os cabelos, presos atrás de orelhas
pontudas e longas, a pele havia se tornado branca
como o gelo e as presas pontiagudas apareciam por
trás dos lábios curvados num pequeno sorriso
sarcástico.
— Yinemí! ― Quase soltei a arma no chão
quando percebi do que se tratava aquele poder. ―
É por isso que você pode controlar a transformação
de maga negra e também controlar as sombras! ―
Dei um passo para trás, não é possível ela ter
aquele poder! Não tinha como um humano o ter,
aquele foi o poder que Ela não passou para

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ninguém! A aparência dela voltou ao normal pouco


antes de cair de joelhos, a amparei, colocando-a
sobre Ira e segui com ela em direção a cidade.
Segui com Nikella direto para o Castelo
Verde, pedi um quarto para a jovem metamorfa
baixinha e ruiva na recepção, que olhava
desconfiada para a jovem em meus braços,
provavelmente pensando o pior de mim com uma
garota desacordada no colo.
— Estou com um pouco de pressa, se puder
me entregar logo a chave. ― resmunguei, tomando
a chave da mão dela e subindo as escadas, sentindo
ainda o olhar da garota sobre mim. Ira havia
mudado de forma e saltou em meu ombro antes que
passasse pela porta do quarto. Coloquei Nikella em
cima da cama mais próxima à porta e a deixei ali
dormindo, sentei na cadeira do outro lado do quarto
para observar e esperar que ela acordasse, tinha
muitas perguntas para ela, perguntas que
precisavam de respostas imediatamente, talvez a
primeira fosse: Por que você tem o poder da Alma
do gelo, se a única pessoa que o possuía morreu e
não o quis passar para frente? Entretanto, ela não

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ia acordar tão cedo.


Estava inquieto e faminto demais para
dormir, deixei Ira tomando conta dela e desci até o
restaurante e pedi algo para comer, sentei perto da
janela e fiquei observando a neve cair tentando
colocar todos os pensamentos em ordem.
Quando estive em Ciartes, tinha certeza que
ela não possuía aquele poder, não podia ter, pois a
energia que ela tinha agora era muito maior, o
cheiro dela havia mudado também, havia entrado
escondido em seu quarto procurando pelas
vibrações do vitrino que senti vindo de lá e acabei
passando a noite em seus aposentos, estava no
corpo de Ira naquela vez. O que será que ela
pensaria de mim se descobrisse que era eu no corpo
do gato que dormiu enrolado em sua cama naquele
dia? Que ela deu banho, pensando ser apenas um
gatinho inocente e sem lar e que a viu sem
nenhuma peça de roupa sobre o corpo. Sorri
maliciosamente com esse pensamento, porém o
sorriso logo desapareceu quando lembrei do
príncipe que a protegia do glacio aquele dia, o que
a levou a tentar matá-lo? Naquela noite da festa,

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eles pareciam muito próximos também, o jeito que


ele havia se aproximado quando me viu
cumprimentando-a, o ciúme gravado em sua
expressão que era sempre tão passiva, tão
indiferente. Ela era uma guardiã, era esse motivo
pelo qual ela não deveria feri-lo, motivo pelo qual
deveria estar até agora protegendo os habitantes de
Ciartes junto com Kuran e não devia estar em
Vegahn. Depois que terminei de comer, pedi à
garçonete que levasse uma tigela de ensopado de
carne até o quarto mais tarde, tentaria acordar
Nikella e perguntaria logo o que havia acontecido
em Ciartes para ela estar aqui agora e como ela
havia recebido o poder Yinemí.
Entrei no quarto sem fazer barulho, Ira estava
deitado sobre a barriga de Nikella, enrolado como
uma almofada cochilando tranquilamente, se ela
não havia acordado com ele subindo sobre ela, não
iria acordar com o que eu ia fazer a seguir. Me
aproximei da cama e sentei perto dela, segurei seu
rosto e encostei em sua testa, sabia que seria difícil
de arrancar a verdade dela, então talvez essa fosse a
única forma de descobrir o que realmente tinha

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acontecido.
Minha mente correu por suas memórias até
sua primeira lembrança, coisas que ela não poderia
acessar mais, que não se lembraria mais. “No colo
de uma mulher, um colo quente e protetor quando
abria os olhos pela primeira vez, olhos aguçados e
atentos demais para um bebê que acabara de nascer.
Olhava um floco brilhante e prateado entrar por
uma janela aberta e cair sobre uma minúscula mão
esquerda ainda fechada. ‘Oi Nikella’ a voz da
mulher me chamou atenção, um rosto tão bonito
distorcido pelas dores do parto, suado, brilhando,
mas sorridente. Ela cerrou os dentes e ergueu-me,
entregando-me a outra mulher de roupas verde-
claras que me embrulhou numa manta e me
carregou para o outro lado da sala ‘A outra vem aí!
’ disse mais uma voz no cômodo. Ouvi alguém
perguntar ‘Está nevando? ’ antes da imagem se
distorcer e desaparecer, eram apenas memórias de
um bebê. Fui mais para frente nas memórias e vi
uma mulher desconhecida preparando almoço
numa cozinha com um grande balcão de madeira,
ela tinha um sorriso gentil e um olhar entristecido,

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era uma metamorfa, um menino entrou correndo


pela porta da frente e sentou-se ao lado de Nikella,
ao meu lado, ansioso pelo almoço, o cheiro da
comida ainda estava gravado ali, aromas de
temperos suaves se misturavam ao cheiro de carne
assada enquanto duas crianças famintas esperavam
ansiosas o almoço ficar pronto. ”
Mais para frente em outra memória, “uma
Sereiana apareceu com um pedaço de um manto
queimado e uma adaga de aço trabalhada com prata
e osso, ela me entregou aqueles pertences e me
contou como meus pais haviam acabado de morrer,
sentou-se no sofá da casa e me puxou para os
braços dela. ‘Quem fez isso? ’ perguntei, senti seu
corpo enrijecer ‘O príncipe Ericko’ respondeu ela
num suspiro cansado. Senti o ódio incontrolável
fervilhar dentro de um corpo pequeno e frágil
demais para tais sentimentos horríveis, um desejo
de vingança, uma força como uma explosão
surgindo lá do fundo. ” Novamente a imagem
mudou, “de pé em uma das filas entre centenas de
alunos da academia de caçadores Venox, peguei a
mão de uma jovem salamandra que estava prestes a

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me fritar, ela se acalmou com meu toque, ignorei a


ardência na mão queimada e sorri para ela com
todas as forças que consegui reunir, mas ainda
assim eu tinha tanta raiva deles, olhei para o lado
que a jovem salamandra acenava” aquele e era o
príncipe Kuran! Corri mais para frente as
memórias, parando em frente à uma muralha,
“diante de uma grande muralha cinzenta cercando
uma das cidades de humanos, os gritos de uma
garota chegavam até mim e fizeram meu estômago
embrulhar, ouvi o guarda zombando, debochando
quando o mandei soltá-la, ele disse que eu seria a
próxima se não o deixasse em paz, até que me
irritei com aquilo e o ataquei, quebrando seu
pescoço com as mãos, a menina se agarrou a mim
agradecendo repetidamente, molhando minhas
roupas com as lágrimas quentes que escorriam, mas
um outro guarda me arrastou até o centro da cidade
e por súplica de meu irmão e da menina que havia
acabado de salvar, ele não me matou, mas mandou
que me dessem vinte chicotadas, fui segurada de
braços abertos no chão por mais dois guardas,
sentia a pele rasgando e a raiva fervendo dentro de
mim novamente, mas me mantive sem chorar,
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apenas encarando o mandante da sentença que


sorria com satisfação ao som de cada uma das
chicotadas, fiquei desejando arrancar aqueles
dentes um por um com um alicate.”
Corri pelas memórias muito mais para frente
e aquela lembrança me deu arrepios “havia acabado
de fugir do conselho dos Hostes para que eles não
descobrissem que ouvi a conversa escondida, corri
até em casa, queria conversar com meu irmão,
queria chorar e gritar e xingar, eles haviam mentido
para nós! Mas ao chegar em casa, Merian e os lixos
que ele chamava de amigos estavam bêbados e
tentaram se aproximar de mim, os espantei atirando
com uma besta contra eles, mas Merian sabia que
eu não o feriria, então ele me desarmou e me
prendeu ao chão, disse que me odiava, então forçou
o corpo contra o meu, lutei, o apaguei e marquei
seu rosto antes de ir embora, um traidor marcado
como um traidor. ” Teria ido até Ciartes naquela
hora e arrancado a cabeça daquele merda, mas
precisava descobrir mais antes que ela despertasse,
depois me acertaria com aquele moleque.
Procurei entre as memórias até o dia em que

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fui até seu quarto com o corpo de Ira, não sabia que
coisas piores havia naquelas memórias e preferia
não as ver para não ficar ainda mais furioso.
“Estava sentada quando Ira apareceu assustando-
me, deslizei a mão sobre a perna macia puxando o
vestido para cima, onde havia uma adaga presa no
pequeno cinto. Ao ver que era apenas o gato, o
peguei no colo, pouco depois vi um homem se
aproximando” era eu, não podia negar que me ver
pelos olhos de outra pessoa era algo estranho, mas
a inquietação e a pulsação acelerada de Nikella
quando a cumprimentei, enquanto ela me analisava,
o calor que surgiu em seu peito quando toquei em
sua mão para cumprimentá-la, aquilo me deixou no
mínimo satisfeito. “Depois que sumi na passagem
do portal, Kuran se aproximou e colocou um colar
em meu pescoço, o toque de suas mãos sobre
minha pele fez meu corpo tremer. ” Essas
sensações eram desagradáveis demais e particulares
demais para que eu as tivesse, então passei mais
para frente. “Na arena da ACV, cansada, com uma
arma de metal barato e de baixa qualidade e uma
grossa algema de prata impedindo que usasse meus
poderes para derrotar aquele guerreiro de olhos
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negros à minha frente, o espartilho de proteção


apertado demais restringindo meus movimentos e
tirando o fôlego, acabei desistindo dele, o cortei
com a espada e fui para cima do adversário, que
havia ficado me observando como um idiota babão
perdendo a concentração da luta” “Sei o que tirou
sua atenção, amigo” pensei enquanto vasculhava
mais para frente e escutava algo perturbador, Sirius,
o sol guardião que assumiu o lugar de Antares
quando ela se foi, contava sobre Higarath, sobre as
sombras e sobre os guardiões. “Não estava nervosa
pelo que ele estava contando, estava angustiada
com a frieza do príncipe que não olhava para mim.
” Revirei os olhos mentalmente, passando mais
para frente e vendo a mansão escondida na Árvore
do Fogo, a quantidade de conhecimento antigo que
existia ali, mas não foi pelos livros que ela foi ali.
“Estava nervosa demais e ao mesmo tempo calma,
com um furacão dentro de mim, uma tempestade
que não podia ser contida, não queria esperar para
ele tomar alguma iniciativa, simplesmente o atirei
em cima da cama e subi em seu colo, beijando-o.”
Essa memória eu preferia não ter visto, mas aquela
lembrança me fez perceber que ela não era nada do
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que eu imaginava que fosse, a menina com


aparência doce e gentil que vira sentada com Ira no
colo, não tinha nada de tímida ou meiga, talvez
Ayrana tenha escolhido a pessoa errada para dar a
alma do gelo, talvez ela devesse ter ficado com a
alma das chamas negras ou a alma das águas.
A próxima memória fez até meus nervos
ferverem, vi através dos olhos dela alguém parar
seu coração para que ela morresse por um
momento. Sentia o que ela estava sentindo ao
despertar, a dor tão intensa que a teria feito
desmaiar se não estivesse sendo mantida acordada
por mágica, ossos de vitrino sendo colocados em
seus braços, para mantê-la livre do bloqueio da
prata e depois a cabeça de seu amigo nas mãos
daquele monstro, o despertar dentro do quarto na
academia, a prisão. O coração partido e o ódio
quando ouviu da boca dele “Eu vou te fazer
queimar de verdade” será que nunca passou pela
cabeça daquele pirralho mimado o que aquela frase
teria feito com ela, já que foi assim que seus pais
morreram pelas mãos do irmão dele? Olhei
atentamente as memórias depois disso, a mestra lhe

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salvando mostrando o verdadeiro culpado, a


conversa com o novo rei, senti o mago tomar a
mente dela e tentar matar o príncipe e a princesa de
Amantia, vi sua raiva na hora que se tornou uma
maga negra, quando o poder fluiu por seu corpo
sem limites e logo depois um misto de serenidade e
ódio, os dois equilibravam-se, a mantinham sã, com
os poderes sob total controle, a magia negra
impedindo que Yinemí a consumisse. Yinemí
controlava a magia negra que agora circulava em
seu corpo e o vitrino a tornara ainda mais forte, a vi
matar o próprio irmão, aquele idiota que eu gostaria
de ter desmanchado em pedaços bem pequenos, e
se livrar daquele mago imundo que ousou controlar
sua mente. Porém, o que veio depois fez minha pele
se arrepiar: Higarath apareceu, tomando a energia
que restara de Fairin e atacando Nike, ela foi salva
pelo novo rei, passou seus poderes para a noiva
dele. “Um lugar tão frio que faça esses ossos não
doerem até que eu me acostume, até que eles se
curem! ” Meu rosto veio à mente dela e as palavras
de Kuran dizendo “É um assassino do rei Cahadris
de Vegahn” então, é pra Vegahn que eu devo ir!

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Capítulo 3

Estava parado ainda tocando em seu rosto,


tentando absorver tudo que havia visto, quando
senti uma lâmina em meu pescoço e notei que
Nikella estava me encarando com os olhos
prateados e não estava nada contente.
–Eu... odeio... quando... fuçam minha mente!
— Ela rosnou levantando-se com a adaga ainda em
meu pescoço.
— Calma Nikella... ― Toquei a lâmina da
adaga com o dedo e tentei empurrá-la para longe de
mim, mas ela não soltou nem cedeu, continuava
com a adaga em meu pescoço.
— Vou te matar e você vai aprender lá no
outro mundo que não se deve bisbilhotar o que não
é da sua conta! ― Ela bufou, aproveitou que estava
distraído com a adaga e me derrubou no chão
puxando minha perna e ergueu a adaga, pronta para
me atacar.
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— Não vai conseguir me matar com isso! ―


Cruzei os braços sobre o peito e fechei os olhos,
mostrando que não me incomodava com o que ela
fizesse. Ela estava ajoelhada sobre mim, conseguia
escutar seu coração tão acelerado que poderia ter
um ataque a qualquer momento.
— Por que acha isso?
— Não acho, tenho certeza! Vitrino não fere
os Malvarmos, se você não sabe! ― expliquei,
como não obtive resposta ou alguma reação, abri os
olhos, ela ainda me encarava e parecia ainda mais
irritada.
— Cortei vários de vocês desde que cheguei
aqui usando vitrino, se for mentir, minta com algo
mais convincente! ― retrucou ela girando a adaga
na mão, lhe dei um sorriso e então agarrei suas
mãos tão rápido que ela não entendeu o que
aconteceu, ergui os joelhos do chão derrubando-a
sobre mim, girei nossos corpos para ficar por cima
dela e a segurei contra o chão apertando seu pulso
tão forte que acabei fazendo-a soltar a adaga.
— Você não se recuperou ainda, o antídoto
ainda está fazendo efeito! Então, fique quietinha aí!

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— falei ficando de pé e puxando-a para cima, ela


não tirava os olhos dos meus. ― Estava apenas
vendo como você conseguiu a alma do gelo, nada
mais que isso! ― menti, mas funcionou, ela
pareceu menos tensa e sentou-se na cama.
— Tô com fome! ― Ela franziu o cenho.
— Pedi para trazerem comida para você,
deve chegar a qualquer momento!
— Descobriu o que queria? ― perguntou ela,
notei um tom sarcástico em sua voz.
— Pode-se dizer que sim.
— O que era?
— Queria saber como você controla a alma
do gelo, já que minha mãe nunca passou esse poder
para nenhum de seus filhos, ela morreu com ele ―
respondi.
— Do que está falando? ― Ela semicerrou
os olhos e cruzou os braços. Sentei ao seu lado e
pressionei a palma de minha mão contra a dela,
então, em seus braços apareceram marcas de flocos
de neve. Ela arqueou a sobrancelha como se
estivesse perguntando “E daí? ”
— A Alma do gelo não é um poder comum
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que qualquer um pode possuir ou controlar. Minha


mãe tinha seis poderes supremos, além da magia de
maga, as seis Almas como chamávamos: a Alma
das chamas negras, a Alma da voz do vento, a
Alma do espírito da água, a Alma da força da terra,
a Alma da energia dos raios e a Alma do gelo
eterno. Quando ela estava prestes a morrer, dividiu
seus poderes com os filhos, ela deu as Chamas
negras para Grisela, a voz do vento para Shurin, o
espírito da água para Antares, A força da terra para
Tanarus e a energia dos raios para mim...
— Espera aí! Como assim ela deu a energia
dos raios para você? Não, você não pode ser o filho
de Ayrana, não tem como ser o mesmo Caalin!
Você teria... ― ela parou, podia vê-la contando o
tempo e seu rosto ficou pálido. ― Você teria uns
dezenove mil anos! ― Sorri para ela.
— Tenho vinte mil e um pouquinho. Ela foi à
terra e conheceu Higarath para ficar com ela quase
dez mil anos depois de criar os mundos.
— Mas pelo que estudei em Ciartes, muitas
das criaturas amaldiçoadas que ouvi Sirius dizer
que Higarath criou já existiam na Terra muito antes

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da criação dos mundos!


— Ah sim, isso é um erro por causa de como
a história foi passada para frente! Quase tudo sobre
a história que Sirius te contou está errada. ― Ela
franziu o cenho, percebendo que eu havia visto
mais do que tinha dito, rápida demais para perceber
as coisas, mesmo assim continuei: ― O maior erro
dele foi falar que ela criou as criaturas dos outros
mundos, todas essas criaturas existiam na Terra.
— Pode me contar a história verdadeira
então? ― pediu ela piscando os olhos para mim.
Respirei fundo, então, comecei a contar:
— Ela não era um espírito, minha mãe me
contou essa história mais de uma vez. Ela nasceu
numa vila humana na terra durante a última era
glacial. Ela percebeu ser diferente dos outros
humanos conforme o tempo passava e ela não
envelhecia, como os outros humanos de sua vila,
quando perceberam isso, a expulsaram de lá,
quando ela se recusou a partir, eles a feriram e a
deixaram para morrer próxima a uma floresta
congelada. Porém, ela foi encontrada por Elfos e
eles a curaram e a levaram para viver nas florestas

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élficas que eram protegidas por magia e lá ela


descobriu seus poderes e sua verdadeira natureza,
ela era híbrida. Haalin, o elfo que a resgatou a
adotou como filha e a treinou, treinou seus poderes
e habilidades físicas, transformando-a numa
guerreira. Seu poder era imenso e mesmo os magos
élficos não eram páreo para ela, mas eles não a
temiam, pois foi criada por eles e seu coração era
puro, não havia sido corrompido pela maldade
humana.
“Depois de muitos anos, ela começou a viajar
pela Terra congelada para tentar encontrar mais
híbridos como ela, porém encontrou outras
criaturas mágicas que vivam escondidas,
ameaçadas pelos humanos, eles a avisaram para
esconder seus poderes, pois se os humanos a
pegassem, eles a matariam. ” Caalin riu. “Mesmo
sem habilidades mágicas, os humanos
representavam uma grande ameaça para aquelas
‘criaturas’. ”
— Continue! ― pediu quando eu parei, seus
olhos brilhavam com a curiosidade.
— Ela ficou com pena vendo os

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companheiros ameaçados, então reuniu os líderes


das raças que encontrou pela terra e lhes perguntou:
“Em que tipo de mundo, vocês gostariam de viver?
” Ela deu a palavra a cada um deles, e eles
contaram como seriam os mundos ideais para os de
sua raça. Enquanto eles falavam, ela juntava as
informações e visualizava como seriam esses
mundos.
“Quando todos terminaram de falar, ela
partiu, foi até um ponto no mundo onde a magia era
mais forte e clamou por Gaia, pedindo a essência
da criação de um mundo para que pudesse salvar
aquelas criaturas. Gaia, que também não queria ver
seus filhos se destruindo, deu a Ayrana as almas
dos elementos para que criasse os mundos de
acordo com a vontade de cada uma das criaturas
dali.
“Ayrana partiu da terra e começou a criar os
mundos, cada um com as características pedidas
pelos líderes das raças, mas o primeiro que criou
foi Amantia, o mundo para abrigar sua família, os
Elfos. Depois de ter criado todos eles, ela voltou até
a terra e usou seus poderes para abrir imensos

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portais que levaram os povos de cada raça para seus


respectivos mundos. Mas antes de deixar a Terra,
ela voltou à vila humana onde nasceu para ver o
que aquele lugar tinha se tornado com o passar dos
anos.
“O frio havia ficado tão intenso nos últimos
tempos que congelou tudo, todas as pessoas das
vilas haviam morrido congeladas, mas em uma
pequena toca escavada no gelo ela encontrou um
casal de crianças ainda vivas e usou a alma do gelo
para que elas se transformassem em humanos
fortes, predadores e principalmente que resistissem
ao frio. Porém, eles não tinham mais suas famílias e
a transformação que Ayrana lhes deu os impedia de
viver em locais quentes ou junto com outros
humanos caso os encontrassem, então ela os trouxe
para Vegahn e eles viveram com os Yetis e Ymir’s.
Assim os primeiros Malvarmos surgiram, as bestas
com coração de gelo. ”
— O que aconteceu com Ayrana depois
disso?
— Ela foi viver em Amantia, criou um
grande reino lá e um castelo feito de cristal para

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mostrar a pureza dos corações élficos, ela tornou


seu pai adotivo, Haalin Ascardian, um rei, lhe deu a
coroa de Amantia em agradecimento a tudo que fez
por ela e assim eles viveram por muitos milênios.
— E ela só viveu em Amantia? ― perguntou
Nikella que estava debruçada sobre os joelhos
ouvindo-me falar.
— Ela chegou a viver em Ciartes por um
tempo, lá não havia nenhuma raça humanoide,
então, da mesma forma que criou os Malvarmos,
ela criou os Igniuns para que vivessem naquele
mundo sem se ferir com o calor escaldante, por
terem sido criados pela alma das chamas negras
eles nasceram com habilidade de se tornar em
brasas ou o próprio fogo.
“Com o passar do tempo Ayrana se sentiu só,
vendo todas as raças procriarem e prosperarem, ela
também queria um companheiro, mas ela não se
interessava pelos Elfos, ela quis um humano.
Haviam se passado mais de oito mil anos na terra
quando ela voltou, a era do gelo havia acabado e as
coisas haviam mudado muito.
“Ela encontrou Higarath em uma pequena

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vila que abrigava soldados de um rei e lhe ofereceu


metade de seus poderes caso ele aceitasse ir viver
com ela em outro mundo e a ajudasse a manter a
paz e a ordem nos mundos que ela havia criado.
Movido pela ganância, ele aceitou, mas sempre
voltava a terra dizendo sentir falta daquele mundo.
Quando ela descobriu o que ele realmente fazia lá,
fez o tempo em os mundos correr de forma
diferente para que isso o atrapalhasse a atravessar
os portais para chegar à terra, mas ele conseguiu
facilmente uma outra maneira, abrindo portais
instáveis, minha mãe ficou decepcionada, ela havia
dado tudo a ele e ele a traiu, então, ela pediu os
poderes de volta. Foi aí que ele começou a levar os
humanos para os outros mundos para corromper e
destruir os mágicos que habitavam neles... bom, o
resto você já sabe.
— Então, até o momento que ela descobriu a
traição, o tempo era igual em todos os mundos?
— Sim... Mas aparentemente Fairin corrigiu
o tempo nos mundos e os colocou iguais
novamente.
— O que são Igniuns? Nunca ouvi falar! ―

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Ela parecia curiosa, esticou o corpo estalando as


juntas e ficou encarando-me com os olhos
brilhando.
— Como não sabe? Você era namorada de
um! ― falei mostrando-lhe o colar em seu pescoço.
— Kuran era um ignium? ― Ela fitou o
colar.
— Todos os Salamandras são Igniuns,
espíritos do fogo! São chamados de Salamandras
por causa da cor avermelhada de suas peles.
— Mas e a primeira salamandra?
— É um conto bonitinho e romântico criado
por minha irmã Grisela quando ela foi viver em
Ciartes, ela usou seu poder das chamas negras para
se tornar uma ignium e viver entre eles. Conhece a
Árvore do Fogo? Era a casa dela! ― Claro que a
conhecia, Ele a levou lá!
— Entendo... Então Sheriah...
— Eram parentes distantes, descendentes na
verdade, de minha irmã, a família real de Ciartes
também tem sangue Arbarus. ― Ela engoliu em
seco e ficou girando o colar entre os dedos.
— Você não era guardiã descendente de
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Ciartes, era a protetora do Guardião de lá! ―


Lágrimas brotaram em seus olhos. ― Kuran é o
portador das chamas negras.
— Era... ― Ela apertou o colar entre os
dedos e engoliu o choro, enxugando as lágrimas
antes que elas rolassem, não sabia se devia lhe
contar a verdade ou se devia mantê-la para mim por
mais um tempo. ― Se eles são imortais, como ele
recebeu as chamas como herança?
— Acho que ela cansou de viver, a vida
eterna às vezes não é lá o que a gente imagina...
— Por que todos me chamavam de guardiã
então? ― Ela me interrompeu.
— Pois você é da família dos guardiões e tem
uma parcela do poder de Ayrana em você também,
além da Alma do gelo. Kuran com certeza não
sabia que você era uma guardiã portadora de uma
das Almas quando escolheu você como protetora
dele. Um é o guardião portador das almas de
Ayrana e o outro é seu protetor, quando se escolhe
um protetor, você o torna um guardião também! Os
guardiões estão sempre em pares. ― Vi a confusão
em seus olhos, mas ela assentiu como se tivesse

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entendido.
— Então, Siorin... Ele é protetor de Nyumun
porque ela o escolheu, certo? Mas não é um
Arbarus?
— Sim, é um protetor e guardião, mas ele
não é Arbarus! ― Tive que rir da confusão mental
que estava causando nela. ― É provável que
Nyumun tenha o poder da voz do vento, já que ela
é descendente de Shurin assim como você.
— Então, existem cinco tipos de guardiões:
os Arbarus, que são os guardiões descendentes de
Ayrana, os guardiões que tem essas Almas
Elementais, os protetores escolhidos que se tornam
guardiões, os guardiões de juramento e salvos pelo
sangue, é isso?
— Sim, mas os de juramento e os de sangue
criam um laço especial, diferente dos outros, você
se torna o guardião da pessoa para quem fez o
juramento, você pode sentir quando ela precisar de
você, em casos raríssimos, podem compartilhar a
mente, memórias e sentimentos. ― Ela franziu o
cenho. ― Tornar-se o guardião de juramento de
alguém é quase uma prova de confiança e lealdade.

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— Então, volte ao começo e me explique,


por que eu tenho essa alma do gelo? ― perguntou
ela ficando com um olhar triste novamente,
provavelmente pela lembrança que Kuran havia
feito o juramento a ela.
— Acho que minha mãe lhe deu esse poder
quando você nasceu, pelo que vi de suas memórias,
no dia em que nevou em Ciartes, na hora em que
você nasceu, um portal foi aberto de Mogyin para
lá e ela lhe mandou esse poder, mas não faço ideia
do motivo, pretendo perguntar a ela quando for
possível!
— Você fala com ela? ― Ela estava
espantada.
— Sim, vou a Mogyin às vezes para vê-la.
— Achei que só os mortos pudessem entrar
lá! ― comentou ela pensativa.
— Animais também podem entrar e sair de lá
tranquilamente.
— Ah, é? Que tipo de animal você é? ― Ela
riu debochando de mim, franzi o cenho e coloquei
Ira em seu colo.
— Um gato, fofo e felpudo de pelo prateado
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que ganhou banho de uma menina bonita quando


invadiu o quarto dela, que dormiu por duas vezes
no colo e nas costas dela... ― Não pude resistir ao
impulso de lhe tirar aquele sorriso debochado do
rosto, ela olhou para Ira em seu colo e depois me
encarou, vi um brilho mortal em seus olhos quando
ela, depois de alguns minutos de silêncio, entendeu.
— Eu vou matar você! Bem devagar! ―
grunhiu ela estalando os dedos, as garras pareciam
bem mais afiadas e assustadoras quando ela mudou
de forma, ficando igual o momento que matou a
vampira na estrada. Por sorte, muita sorte minha ela
estar ainda sob o efeito do antídoto, pois ela teria
me ferido com aquele ataque se tivesse acertado,
ela cravou as garras no chão do quarto, que
congelou e o despedaçou, abrindo um buraco no
que engoliu os móveis.
— Não fique tão zangada, não tem nada aí
que eu não tenha visto milhares de vezes! ―
brinquei desviando de outro ataque, mas ela nem
sequer me ouviu, parecia furiosa, acho que não foi
boa ideia contar isso a ela. Antes que ela destruísse
a hospedaria inteira, resolvi mostrar a ela seu poder

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gêmeo e usei a energia dos raios, prendendo-a


numa gaiola de energia poderosa, capaz de conter
até mesmo Higarath por um século. Ela agarrou as
grades, ignorando o choque violento que devia
estar recebendo, fiquei encarando-a, ela não parecia
estar se ferindo com aquilo, parecia estar
absorvendo a energia. Concertei rapidamente o
quarto antes que alguém lá embaixo visse. Quando
olhei novamente para ela, as marcas brancas dos
flocos estavam mais fortes e suas mãos começaram
a ficar azuladas, ela estava usando uma quantidade
absurda de energia para tentar destruir a grade, a
desfiz imediatamente e segurei Nikella, apertando-a
contra mim com força, prendendo seus braços para
que não me atacasse.
— Me solta! ― Ela rosnou cravando as
unhas em minhas costas, senti as mãos dela tão
geladas que poderiam se partir a qualquer
momento.
— Pare de usar o Yinemí! Tem um motivo
muito bom para ela não ter nos confiado esse
poder, ele é extremamente forte e é bem possível
ela ter tido conhecimento que você se tornaria uma

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maga negra, assim os dois poderes destrutivos se


equilibrariam, você só o libertou e consegue usá-lo
por causa disso! ― falei puxando seus braços e
mostrando a ela suas cicatrizes esbranquiçadas nos
braços. ― Yinemí era o mais forte de seus poderes,
ela não era humana, podia controlá-lo facilmente,
mas você não! É um poder ilimitado num corpo
limitado! Se continuar o usando assim, ele vai te
consumir, a energia liberada vai ser tão grande que
seu corpo não vai aguentar e você vai perdê-lo, o
poder vai escapar de você e poderá ser pego por
qualquer um que tenha um maior controle sobre a
magia Elemental, isso se ele não consumir sua
energia e te matar antes de desaparecer! ― disse
quase num sussurro, olhando dentro de seus olhos
ela nem respirava agora, pelo menos havia
conseguido assustá-la e fazê-la parar de usar o
poder.
— E o que esses ossos de vitrino têm a ver
com o poder da alma do gelo? ― perguntou depois
de um minuto inteiro me encarando assustada.
— Não sabe o que é o vitrino? ― Ela
balançou a cabeça negativamente.

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— Vitrino é o sangue dos Malvarmos que


morreram em guerras, esse sangue foi absorvido
pela neve e se solidificou sob pressão e calor em
minas subterrâneas, é por isso que Malvarmos
odeiam tanto o calor, nosso sangue pode se
solidificar se formos expostos a altas temperaturas.
— expliquei calmamente, ela ficou olhando
boquiaberta para os braços. ― Isso ― Tracei as
cicatrizes em seus braços. ― Significa que seu
sangue foi misturado com o nosso, você virou uma
híbrida.
— Impossível!
— E pela cor azulada do vitrino, talvez seja
da mesma mina que eu fiquei congelado.
— Você ficou congelado?
— Passei uns dez mil anos dormindo no
fundo de uma mina de vitrino, fui despertado pelo
chamado da sacerdotisa de Amantia quando ela
enviou o terceiro guardião ao centro do círculo.
— Então, esse vitrino...
— Provavelmente tem meu sangue também.
— Ela olhou ainda mais assustada para as mãos.
— Fairin sabia que isso aconteceria quando
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ele trocou meus ossos por esses? ― Sua voz não


passava de um sussurro.
— Não, ele era um tolo idiota e não sabia o
que estava fazendo quando implantou os ossos em
você, achou que estava apenas garantindo que
ficasse imune a prata. ― Ela escorregou para a
cama e ficou olhando as garras de vitrino em suas
mãos.
— Eu realmente virei um monstro então...
— Me considera um monstro? ― Ela não
respondeu, nem olhou para mim, apenas ficou
olhando para as mãos em silêncio. ― O que você
faz que te transforma ou não num monstro, não a
sua raça. Os humanos são mais monstruosos e
terríveis que nós, as bestas do gelo. ― falei
agachando em sua frente e segurando suas mãos
frias.
— Mas Higarath era humano e sua mãe
também era parte humana... por que você é um
Malvarmo, então? ― Sorri, nada mais justo que
contar a verdade depois de ter visto quase todas as
suas memórias, ou pelo menos, a parte da memória
que ela poderia saber.

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— Quando escolhi viver em Vegahn não


sabia exatamente o que esperar, quando cheguei
aqui devia ter a sua idade, fiquei encantado com
uma Malvarmo que conheci, mas ela falou que um
humano era perda de tempo, que ela iria viver
muito e eu iria morrer rápido demais e não deixaria
nada além de lembranças que ela apagaria com o
passar do tempo, porém disse que eu podia ser mais
do que um humano e que poderia ser útil a ela,
então ela cortou a palma da mão com uma faca de
vidro e o sangue transparente escorreu sobre a
Lâmina, ela me furou com aquela lâmina, uma
facada direto no coração, assim me transformei
num Malvarmo também. ― Fiquei esperando ela
ter alguma reação, mas ficou apenas me encarando.
— Ainda estou morrendo de fome! ―
exclamou ela depois de um longo tempo em
silêncio, achei que ela fosse dizer algo sobre o que
tinha acabado de lhe contar, mas ela não disse mais
nada, ficou apenas olhando para a porta.
— Vou ver se eles estão trazendo algo para
você comer.
— Prefiro ir lá embaixo! ― disse ela

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levantando-se e indo em direção a porta, resolvi ir


com ela, mas ela bloqueou a passagem quando fiz
menção de passar. ― Você está me devendo,
Caalin! Nunca permiti que entrassem em minha
mente e fuçassem minhas memórias, você sabe
demais sobre mim agora, então preste bem atenção
em como vai se portar comigo, ou eu arranco essa
sua cabeça fora! ― Ela tinha um olhar frio, mas
pude ver uma pontada de irritação naqueles olhos
verdes brilhantes.
— Sabe que não conseguiria me ganhar nem
que vivesse mil vidas, não é?
— Não importa o quão velho você seja,
vovô! Eu vou te dar uma surra se entrar em minha
mente novamente! ― esbravejou ela antes de sair
do quarto e atravessar o corredor em passos largos.
Ser chamado de vovô me irritou muito mais do que
imaginava ser possível, ainda mais por ela,
nenhuma parte de mim desejava que ela me visse
como um parente, ainda mais como um velho.
— Não precisa se fazer de malvada para
cima de mim, agora eu te conheço melhor do que
ninguém e sei que você não é esse bicho marrento

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que acha que é! ― provoquei seguindo-a até o


salão, ela ficou em silêncio, mas vi seu maxilar
trincar enquanto soltava um suspiro de irritação.
Como passava da meia noite, o salão estava quase
vazio, a não ser por um grupo de pessoas
comemorando algo no fundo perto das portas de
emergência. A garçonete havia esquecido de levar
o jantar de Nikella, então, ela aproveitou e pediu
comida suficiente para alimentar três pessoas.
— Batata frita? Isso faz mal para a saúde! ―
falei observando-a comer, ela riu.
— Uma crítica alimentar vinda de alguém se
só se alimenta de carne e sangue! ― retrucou ela
colocando mais batatas na boca.
— Como sabe? ― Ela arqueou a sobrancelha
e mostrou o pequeno pingente de duas espadas
cruzadas dentro de um círculo metálico, o emblema
da ACV na pulseira negra de couro em seu pulso.
— Você é um dos que aprendi a caçar! ―
Foi a minha vez de soltar uma gargalhada
debochada tirando o olhar predatório do seu rosto.
— Você não conseguiria me caçar, não
conseguiria se aproximar de mim nem se eu

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estivesse dormindo!
— Quer apostar?
— Agora não, espera para depois de irmos
falar com o rei. ― Ela torceu os lábios num bico e
desviou o olhar para a janela.
— Como foi que um guardião acabou a
serviço de um rei?
— Não acabei a serviço de um rei, ofereci
meus serviços em troca de que ele destruísse as
minas de vitrino.
— Mas ele não fez isso, não é?
— Não, ele tentou me enganar, fingia estar
procurando meios de livrar os escravos sem acabar
com as minas, mas na verdade ele ajudava os
outros governantes e bancava muitos dos magos
que traziam os escravos para cá! Então, o matei
para que seu filho assumisse. ― Ela nem se
importou quando disse que matei o rei para que
outra pessoa assumisse seu lugar, apenas
perguntou:
— Essas minas, elas só existem aqui?
— Sim, especificamente neste continente por
causa das batalhas que aconteceram por aqui. Mas
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creio que Aliver seja diferente, ele está realmente


se esforçando para mudar as coisas por aqui!
— Estou aqui há quase um ano, destruí nove
minas, e libertei todos os escravos nelas e até agora
não vi nenhum exército real as fechando. ― Ela
tinha acabado de comer, estava tomando um chá de
ervas e ainda olhava pela janela.
— Existiam vinte e duas minas. Dez foram
fechadas e destruídas por ele, antes de vir te
procurar, cobrei dele as doze restantes, mas agora
que você destruiu nove delas, restam apenas três.
— Quantos morreram nessas guerras para
existirem todas essas minas...
— Algumas eram locais onde havia
cemitérios também, depois que um Malvarmo
morre, seus ossos se desmancham e também se
tornam vitrino. ― Expliquei.
— Por que você mesmo não as destruiu?
— Não queria causar tumulto, achei mesmo
que ele pudesse apenas fechá-las sem ter que usar a
força.
— Então, vai me levar até essas minas
restantes antes de irmos ao rei, essa é minha
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condição para ir com você! ― Ela me encarou.


— Entendi... Posso perguntar por que se
importa? Quero dizer, por que sair de Ciartes e vir
ajudar as pessoas daqui? Quando decidiu partir, por
que Vegahn? ― indaguei, ela arqueou a
sobrancelha e sorriu discretamente.
— Você pergunta demais! ― Fiquei
esperando uma resposta e ela ficou brincando com
o colar em seu pescoço, esperando que eu desistisse
das respostas.
— Estou esperando você me responder! Não
te deram educação de onde você veio?
— Você viu que eu não tive educação de
ninguém! ― retrucou fechando o punho sobre a
xícara de chá, então, ela sabia que eu havia visto
mais do que disse a ela.
— O que quer que eu faça para que você
fale? ― Um sorriso malicioso apareceu em seu
rosto de feições delicadas, que ficou corado
imediatamente. ― Posso arriscar um palpite pela
cara que você fez, acho que vou ter prazer em te
ajudar se for o que estou pensando! ― falei.
— Não seja maldoso! ― Ela corou ainda

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mais. ― Tudo bem, eu falo se me der um bolo de


morango ou uma torta de limão! ― Ela riu.
— Mesmo depois de tudo que comeu? ―
Olhei espantado para ela novamente, procurando
por algum lugar que ela escondia toda aquela
comida.
— Merian sempre fazia bolo de morango ou
torta de limão para mim quando queria que eu lhe
contasse algum segredo, algo que eu havia
descoberto e que ele queria muito saber. ― Seu
semblante entristeceu, tinha visto em suas
memórias, sentido a dor quando ele disse que a
odiava, ela não mostrava, mas amava o irmão
adotivo mais do que qualquer um, se ele tivesse
dito que a amava, ela o teria deixado fugir e matado
apenas Fairin, mas o ódio dele, se ela o deixasse
vivo, podia lhe custar mais alguém, afinal, ele não
pensou duas vezes em sequestrar Annie e Sheriah
para usá-las contra Nikella. Fui até o balcão da
cozinha e pedi um bolo ou torta à senhora que
estava quase cochilando sobre o balcão, ela
assentiu e foi bocejando até a cozinha, logo em
seguida voltou com uma torta grande de limão.

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— Duvido você comer ela inteira! ― falei


colocando-a na frente dela, ela começou a rir.
— Quer apostar?
— Você tem um problema com apostas, não
tem?
— Confesso que sim, ainda mais porque não
costumo perder.
— Não vou apostar isso com você, se você
não aguentar comer vai se sentir pressionada pela
aposta e vai comer até passar mal, não quero
ninguém vomitando torta de limão em mim! ― Ela
pareceu frustrada com a resposta, mas pegou a faca,
cortou uma generosa fatia e serviu-se, depois serviu
uma fatia ainda maior para mim também. ― Sou o
devorador de sangue e carne, lembra? ― Observei
o doce em minha frente. ― Não como doces desde
que me tornei Malvarmo. ― Nem me lembrava
mais o gosto que tinha.
— Considere-se especial, quase arranquei a
mão de Kuran uma vez quando ele tentou pegar um
pedaço de bolo que eu estava comendo. ― Ela
colocou um pedaço na boca, ainda assim fiquei
olhando desconfiado, ela revirou os olhos pegou a

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colher e colocou um pedaço perto de minha boca.


— Só dizer “A”!
— Para alguém tão durona, está sendo
boazinha demais! ― exclamei aceitando o pedaço
de torta.
— Me permito ser legal às vezes! ―
Infelizmente sabia que esse “bom humor” passaria
quando o efeito do elixir de mandrágora saísse de
seu sistema, talvez ela tentasse me matar na manhã
seguinte.
— E agora, vai me responder? ― Ela
respirou fundo, comeu mais um pedaço da torta
acabando com o que estava em seu prato e pegou
outra fatia.
— Quando saí de Ciartes, pensei em ir até
Dartaris procurar por Gwynn, minha irmã, mas
pensei que talvez ela não quisesse me conhecer, ou
talvez ela estivesse feliz com uma família e não ia
querer alguém problemático como eu por perto,
ainda mais com o que está por vir, então achei
melhor deixá-la quieta.
— Todos temos problemas...
— Ninguém garante que a qualquer
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momento o rei Ericko não vai ficar com raiva de


mim e decidir mandar os caçadores para me matar.
Aliás, isso foi estranho... ― Ela ergueu a palma da
mão, uma pequena bola de luz negra e azulada se
formou ali. ― Dei meus poderes a Karin quando
saí de lá!
— A magia de um mago negro não pode ser
passada para frente, ela cede e sai do corpo, mas
volta para seu dono. Ela não se tornou a guardiã
portadora da alma também, uma vez que só o
guardião portador verdadeiro quando morre o passa
para frente, se não tiver filhos, vai para um irmão
ou parente mais próximo. ― respondi, ela assentiu
lentamente servindo-se de mais torta, não parecia
estar se forçando a comer, comi mais um pedaço da
que ela havia servido para mim, era estranho comer
qualquer outra coisa depois de tanto tempo. ― Por
que escolheu Vegahn, então? ― Ela olhou as
cicatrizes nos braços.
— O frio não deixa eu sentir dor, esses ossos
vivem me dando choques quando começam a
aquecer, se eu usar magia demais também acontece
isso, eles queimam, mas o frio neutraliza essa dor

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irritante. ― Ela suspirou, acabou o pedaço de torta


que estava comendo e tomou o chá, deixando
menos da metade da torta sobre a mesa, ri por
dentro, pois estava certo, ela não aguentaria comer
tudo. ― Eu estou ajudando as pessoas das minas,
pois no dia que cheguei, quando abri um portal em
Ciartes para vir para cá, parei dentro de uma das
minas, era de noite, muito tarde, os escravos
estavam dormindo no chão gelado das minas
enrolados por trapos que não deviam aquecer nada,
andei devagar procurando pela saída, pois não sabia
que estava em uma mina, depois que eu vi o vitrino
entre os blocos de gelo.
“Quando achei a saída vi um homem de certa
idade do lado de fora, ele estava acorrentado pelo
pescoço e o corpo todo coberto de cortes
profundos, tinha uma menina abraçada nele, para
que ele não congelasse ali fora. Quando ela me viu
veio correndo pedir que o soltasse e que ele só
tinha tentado ajudar um outro escravo que estava
morrendo com o veneno da pedra de vitrino que
eles estavam escavando. ― Ela engoliu em seco, a
ira se acendeu em seus olhos novamente. ― Ele

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também foi castigado por tentar ajudar alguém. Eu


fiquei imaginando quantas pessoas sofreram para
que eu tivesse recebido o material para forjar
Siferath! ― Nikella pegou a foice no colar e ficou
olhando para ela. ― Eu soltei e curei aquele
senhor, depois os acordei e deixei que todos os
escravos fugissem, por fim, explodi a mina com
todos os capatazes dentro. ― Ela sorriu.
— Então, você ficou com remorso por causa
da sua arma? ― Sabia que não era isso, queria
apenas que ela falasse mais. Nikella revirou os
olhos novamente e bufou.
— Eu fiquei com medo, por mais que eu
tenha certeza de que se eu treinar bastante esses
poderes eu tenha uma chance... de derrotar
Higarath, mas se ele dominar os mundos e os cobrir
de sombras... bem, eu queria que eles vivessem
felizes até lá, que aproveitassem sua liberdade, pois
não sabemos quando ela pode ser tirada novamente
deles, de nós! ― Pela primeira vez eu vi uma
pessoa tentando carregar o mundo inteiro nas
costas, ela quase tinha uma ideia do que estava por
vir e queria ter certeza de que todos seriam felizes.

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— Isso soa heróico e pessimista ao mesmo


tempo!
— Não acho pessimista, é uma possibilidade.
— Sabe que isso é outro erro, não sabe? ―
Não conseguia mentir para ela, mesmo que a
verdade fosse muito pior do que ela poderia
imaginar que fosse.
— O que é outro erro? ― Seu rosto
empalideceu.
— A princípio, Higarath não vinha para
tomar os mundos criados por Ayrana, ele ia destruí-
los, um por um e roubar todo o poder que existe
neles, depois disso, ele usaria seu poder para tomar
a terra, o mundo humano que ele nasceu. Por mais
absurdo que pareça, ele só queria o mundo que ele
acha que é dele, ele sabe que a magia ou a maioria
dela foi retirada daquele mundo quando Ayrana
criou os outros treze mundos, então ele pretendia
roubar as seis almas, matando os guardiões que as
possuírem, se ele chegar lá como o único portador
de tais poderes, ele vai ter o mundo aos seus pés!
— Ela apoiou o rosto nas mãos e ficou encarando-
me.

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— Que pensamento pequeno! Se eu tivesse


todo esse poder, eu ficaria com todos os mundos!
— E correr o risco de alguém com mais
poder aparecer e tomar o controle de você um dia?
Fairin tentou fazer isso, aí a filha dele o enganou e
o prendeu, quando ele conseguiu se soltar, iludido
que Higarath ia dividir seu poder, você apareceu
deu uma surra nele e o matou! ― Dei uma
gargalhada zombeteira ― Não Nike, ele não quer
ter esse mesmo destino, não vai arriscar isso.
— Se esses são os poderes supremos, são os
mais fortes, não tem como surgir alguém mais
forte. Mesmo assim, se reunisse toda essa magia, eu
ainda preferiria tomar todos os mundos! Seria fácil
domar as pessoas com uma proposta de paz e
tempos felizes, fazer com que todos voltassem aos
mundos que lhe foram destinados e separar as raças
novamente... acho que muitos iam ficar satisfeitos
com isso e me apoiar!
— Deveria me preocupar com esse
pensamento? ― Aquele pensamento fez com que
algo revirasse dentro de mim.
— Os caçadores Venox só existem porque as

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outras raças estão em mundos que não foram


criados para elas... se cada um estivesse em seu
canto, nenhuma dessas batalhas tolas travadas por
territórios seriam necessárias! ― E por mais que eu
odiasse admitir, aquele pensamento estava certo.
— Mas muitos já se misturaram, imagina,
você separaria famílias híbridas, que tem raças
diferentes? Por exemplo, se você tivesse se casado
com o príncipe...
— Nem conclua essa frase, por favor! ― Ela
se encolheu, gostaria de poder retirar aquelas
palavras. ― Não estava levando isso em
consideração. Ainda assim, não acho que ele vai
destruir os mundos, pelo que me disse pouco antes
de sair de Ciartes, acho que ele mudou de opinião,
acho que percebeu que com as almas juntas ele
pode tomar os mundos... ― Não havia levado em
consideração a conversa dele com Nike, apenas
lembranças de que ele prometeu destruir os mundos
dela.
— Bom, não se preocupe com Higarath por
enquanto, foque em seu treino, ele não vai vir atrás
de nós por enquanto!

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— Ele quase me matou aquele dia em


Ciartes...
— Você estava cansada, esgotada. Ele viu o
seu potencial, ia se aproveitar do momento de
fraqueza assim como fez com minha mãe. ― A
lembrança daquilo ainda me causava náusea, nós
estávamos tão perto e ninguém conseguiu salvá-la,
nenhum de nós teve reação e acabamos deixando
que ele fugisse. Lembro-me ainda de seus últimos
suspiros, quando ela deu seus poderes para cada um
de nós e se foi.
— Acha que estamos seguros por um tempo
então? ― perguntou ela tirando-me de meus
pensamentos.
— Ele provavelmente vai tentar resgatar todo
poder que perdeu com o passar do tempo, Antares
permitiu que ele pegasse seu poder, mas Sirius e
Áries ficaram tomando o poder dele durante todos
os séculos que passaram no centro do círculo.
— Pode parecer bobagem, mas como sabe de
tudo isso? ― Ela indagou olhando-me com
curiosidade.
— Sou bom em me disfarçar e ir atrás de

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informações, tinha que me atualizar quando


despertei do sono.
— E quanto a isso...
— Podemos deixar a conversa para amanhã?
Você ainda não dormiu, está ficando com olheiras!
Vai ficar com aparência de uma velha rapidinho!
— Ela torceu os lábios e se levantou e saiu da mesa
batendo os pés, mas levando o resto de torta com
ela.

Nikella se jogou na cama e ficou deitada de


lado comendo a torta direto da forma com uma
colher.
— Acho que isso é da descendência, só pode!
— falei rindo da cena, ela levantou os olhos para
mim sem entender nada. ― Minha irmã, Shurin, ela
também era assim, louca por doces.
— Como ela era?
— Shurin? Era completamente doida! Ela
arrumava confusão onde quer que fosse...
— Perguntei da aparência! ― interrompeu-
me.
— Ela era igual minha mãe: loira, olhos
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verdes... era muito bonita, mas escolheu a vida


humana normal, passou os poderes à frente para os
filhos, envelheceu mais lentamente que um humano
comum, claro, por causa da aura mágica de
Amantia, mas morreu velhinha e dormindo. ―
Sorri ao lembrar da última vez que a ví ― já era
um Malvarmo, foi pouco antes de Antares morrer,
ela estava bem velha, cercada por seus filhos, netos,
bisnetos e se arrisco dizer, tataranetos também, ela
parecia muito feliz. Um fim invejável, cercada
pelas pessoas que amava e foi se encontrar com
Ayrana...
— Então, você é meu tio com muitos “tatas”
na frente?
— Pode-se dizer que sim... ― respondi a
contragosto.
— Humm, entendi. ― Ela suspirou. ― Será
que tem um cantinho especial para as pessoas da
nossa família em Mogyin? Será que agora todos
que se foram estão lá torcendo para que
consigamos acabar com Higarath, e quando nos
encontrarmos um dia, vamos ter histórias incríveis
para lembrar? ― A pergunta infantil dela fez um nó

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aparecer em minha garganta.


— Acredito que sim, Mogyin é um mundo
como todos os outros, onde as pessoas que decidem
descansar vivem para sempre em paz. Ou aquelas
que não merecerem, ficarão presas até que tenham
se redimido. Mas aqueles como Fairin e Higarath...
suas almas são destruídas assim que entram em
Mogyin, para não ter risco de voltarem um dia, só
então vão apodrecer no inferno.
— Espero que minha mãe esteja lá, em
Mogyin! Um dia, quando a hora chegar, quero ir
pedir desculpas por nunca ter ido vê-la, por nunca
ter pego aquela carta depois que meu pai morreu,
acho que se ela estivesse viva quando Susano me
mostrou a árvore, eu teria ido vê-la imediatamente.
— Vai demorar bastante para isso agora! ―
respondi.
— Por quê?
— Você agora é uma híbrida de Malvarmo e
humano, seu lado humano é mais fraco que esse,
então, você não vai mais envelhecer como os
humanos dos mundos que não tem as mandalas de
proteção, é provável que fique assim por muitos

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séculos. ― A surpresa passou tão rapidamente por


seu rosto que nem sei se isso a incomodou de
verdade, ela não pareceu chocada com a
descoberta.
— Última pergunta... ― Ela estava realmente
com sono, piscava com uma frequência maior,
tentando manter-se acordada. ― Por que esses
poderes são tão especiais, se todos os magos podem
manipular os Elementais?
— Podem manipular os Elementais, mas não
domar a alma deles, isso é o verdadeiro poder que
você recebeu, que nós temos, as Almas dos
Elementais podemos fazê-los nos obedecer,
colaborar a nosso favor, tecnicamente, você tem
Vegahn na palma das mãos. Nenhum mago por
mais talentoso que seja pode queimar alguém e o
destruir com uma rajada congelante, embora possa
fazer uma pessoa ficar presa no gelo e morrer de
frio, mas domar a alma dos elementos e manipulá-
los na forma primitiva, mais forte, nenhum mago
consegue! ― Nikella estava me encarando e não
sabia interpretar aquele olhar, não sabia qual era o
sentimento que estava escondido nele, então, ela

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desviou o olhar para o tabuleiro vazio de torta, o


colocou sobre a mesinha e se levantou, foi até o
banheiro e bateu a porta, talvez ela só quisesse
provar que conseguiria comer a torta inteira e agora
estivesse passando mal.
Mesmo com o ar frio da noite entrando pela
pequena janela, o quarto parecia quente demais,
então tirei a túnica preta com o bordado azul safira
em forma de uma pequena espada sobre uma
estrela e a coloquei sobre a cadeira ao lado da
cama, fiquei tentado a não me cobrir com o lençol,
mas era melhor não perturbar Nikella antes que a
raiva de mim tivesse totalmente contida. Acabei
cochilando na cama mais próxima à janela antes
que ela voltasse.

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Capítulo 4

Nikella:

Fiquei um bom tempo sentada dentro da


banheira vazia em silêncio, aquela tristeza no olhar
de Caalin quando falou sobre Shurin podia
significar muito mais que uma saudade por uma
irmã que se foi, as marcas na alma dele talvez
sejam tão profundas que nem o tempo adormecido
apagou. O pingente em meu pescoço estava
pesando uma tonelada, não havia só matado a
pessoa que mais amava, mas tinha matado um
guardião, havia feito o serviço sujo de Fairin, talvez
ele soubesse disso, por isso me usou daquela forma.
Estava superando bem tudo aquilo até Caalin falar
sobre um casamento entre mim e Kuran, aquilo fez
uma cicatriz quase fechada se abrir novamente.
— Ninguém mais vai tirar as pessoas de
mim! Nunca mais, ninguém nunca mais me
dominará! ― sussurrei baixinho apertando o colar,

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sentindo um nó se desfazendo em minha garganta.


Já havia chorado demais, sofrido demais por algo
que eu não havia feito, por mais que tivessem sido
minhas mãos que tiraram sua vida, não era minha
mente que estava controlando-as naquela hora.
Pedi perdão silenciosamente, esperando que
de alguma forma meus pensamentos fossem
ouvidos por Kuran. “Já está na hora de ir em
frente, a tristeza não vai apagar o passado, mas se
eu for forte e me esforçar, posso lutar pelos outros
que amava e que continuam lá!” Nunca poderia
encará-lo se chegasse a Mogyin um dia sem ter
protegido sua família, sem ter acabado de vez com
todo aquele mal.
Saí da banheira com cuidado, minhas pernas
estavam moles e meus sentidos pareciam muito
lentos, como se tivesse uma névoa sobre eles. Abri
a porta do banheiro e fiz uma rápida análise do
quarto, Ira estava deitado sobre minha cama e
Caalin dormia tranquilamente na outra, fiquei com
muita pena de tirar Ira de lá, mas considerando o
que Caalin falou que fez usando o corpo dele...
sacudi a cabeça afastando o pensamento de que ele

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havia me visto como vim ao mundo, como dormiu


agarrado comigo e eu, boba, achando que era
apenas um gatinho. Tirei Ira da minha cama e o
coloquei no chão, ele pareceu irritado com aquilo,
porém foi até um pequeno sofá cinza e gasto
próximo a janela entreaberta e deitou-se lá. Tirei as
botas com um cuidado sobrenatural, pois toda vez
que tentava soltar os cadarços, os rasgava com as
unhas, elas muitas vezes eram inconvenientes, mas
havia aprendido a gostar delas com o passar do
tempo, muitas vezes, não precisava de outras armas
para me defender.
A princípio fiquei de costas para Caalin,
porém ao lembrar de quem ele era, mesmo sendo
um guardião, ele não pensaria duas vezes em livrar-
se de uma ameaça, então fiquei de frente para ele.
Não conseguia pregar os olhos por mais sono
que tivesse acumulado, desde o dia que meus
poderes se modificaram, quando me tornei uma
maga negra, as sombras entravam em minha mente
quando eu dormia, fazendo-me propostas,
oferecendo um poder ainda maior, algo que eu não
almejava. Não queria dormir, estava com medo de

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sonhar, preferia mil vezes os sonhos com a morte e


com Fairin, do que o medo constante de dizer
“sim” para aquelas sombras.
Observei Caalin dormir, talvez uma distração
que me mantivesse acordada. Ele havia tirado a
túnica, ela estava dobrada perfeitamente sobre a
cadeira ao lado de sua cama, ele respirou fundo e se
virou, fazendo com que o lençol saísse de cima
dele, deixando o peito exposto. Um malvarmo não
ligaria para o frio cortante que entrava pela
janelinha, então parecia que ele estava dormindo
em um quarto quente numa noite de verão em
Ciartes.
Os músculos desenhados e trabalhados lhe
davam uma aparência perigosa, o rosto retangular
nem de longe parecia ser de alguém com mais de
vinte e poucos anos, o maxilar forte se movia
ligeiramente quando ele tinha uma respiração mais
profunda. Parecia muito mais bonito do que na
primeira vez que o vi em Ciartes, naquela vez seu
cabelo estava longo branco cheio de tranças, agora
estava liso e na altura dos ombros, gostava mais
quando estava comprido.

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Fiquei olhando atentamente por tempo


demais, ele virou-se umas duas vezes, a luz da lua
crescente que entrava pela janela fazia sua pele
ficar ainda mais branca, perfeita, sem nenhuma
marca ou cicatriz, era difícil de acreditar que ele
realmente havia estado em alguma batalha ou em
qualquer tipo de briga. Na última vez que ele se
virou, um leve sorriso fazia seus lábios em formato
de arco exibir as presas afiadas, que poderiam
rasgar uma garganta sem o mínimo de esforço, mas
ainda assim não podia deixar de olhar com certa
admiração.
Filho de Ayrana... Tão antigo quanto os Doze
Mundos e mesmo assim estava ali, tratando-me
como alguém igual, sem tentar se mostrar superior,
sem o olhar de desdém por ser “apenas uma
humana inferior”, talvez porque agora não fosse tão
inferior assim, ou por ser alguém que realmente não
se importava com quem eu era. Caalin era muito
parecido com Higarath, os mesmos traços, com a
diferença de que Caalin tinha a pele pálida, tão
branca quanto a neve que caía lá fora, mas algo me
dizia que eram parecidos apenas na aparência e que

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eu podia confiar no malvarmo à minha frente.

O vento gelado me despertou de manhã,


fazendo com que eu me levantasse sonolenta,
puxando as cobertas grossas de pele para cima de
mim, porém deixei os braços para fora delas,
evitando que ficassem quentes e os choques
começassem a me incomodar.
Gither!
Aquela pequena palavra me fez bufar e me
levantar da cama de má vontade e marchar até o
banheiro, as sombras escuras embaixo de meus
olhos pareciam ter melhorado, só então percebi que
havia dormido! Avaliei meus pensamentos
procurando por algum traço de pesadelos ou
sonhos, porém não havia nada, eu havia conseguido
dormir sem ter pesadelos aquela noite. Depois de
lavar o rosto e escovar os dentes, voltei para o
quarto e percebi que Ira havia dormido na minha
cama novamente.
— Achei que tivesse te colocado para fora
daí ontem! ― resmunguei coçando suas orelhas,
ele ronronou satisfeito em resposta, porém tirei a

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mão quando me lembrei de quem “usava” seu


corpo de vez em quando.
— Pode acariciar, só estou no corpo dele
quando a mandala prateada está nos olhos dele! ―
explicou Caalin entrando no quarto com o café para
dois em uma bandeja. Só aí que reparei que os
olhos de ira eram azuis vivos.
— Por que não me chamou para descer e
tomar café? ― perguntei analisando a postura que
estava diferente da noite anterior, parecia mais
tenso, cauteloso.
— Você parecia não ter dormido muito bem,
então deixei que dormisse um pouco mais! ― falou
colocando a bandeja sobre a mesinha de cabeceira e
sentando-se para comer.
— Posso perguntar por que está sendo assim
tão gentil comigo?
— E por que não estaria?
— Você não me conhece para estar me
tratando assim! ― retruquei pegando uma torrada
coberta de creme de amendoim e nata.
— Conheço sim, mesmo que pelas suas
memórias, mas o suficiente para ser gentil com
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você! Mesmo se não conhecesse a trataria assim,


não preciso ser um monstro só porque pareço um,
Nikella! ― Senti meu rosto esquentar.
— Desculpe...
— Sem problemas! ― Ele tomou uma xícara
de café e ficou observando Ira enrolar-se em meu
colo enquanto eu partia para o prato de ovos
mexidos.
— Você não parece um monstro... ―
consegui falar depois de terminar o café, enquanto
ele tirava a bandeja e ia em direção a porta.
— Bom saber! ― Ele piscou para mim e
saiu. Troquei de roupa rapidamente, peguei minha
bolsa e a atravessei no ombro, peguei Ira e bati a
porta do quarto levando a chave comigo, descendo
as escadas correndo até a recepção.
— Já podemos ir? ― perguntei à Caalin que
estava conversando com a jovem atrás do balcão.
— Claro! ― Ele sorriu, pegou a chave da
minha mão para entregar à garota e saiu, o segui em
passos rápidos para o dia gelado do lado de fora da
estalagem aquecida. O movimento do lado de fora
era grande, algumas vezes quase fui engolida pela

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multidão que caminhava nas ruas de pedras


cinzentas. Vegahn não era um consolo para mim, já
que os Malvarmos eram tão altos quanto os
Salamandras, alguns até maiores, Caalin devia ser
quase dez centímetros mais alto que Susano ou
Kuran, e muito maior também, os ombros largos
pareciam capazes de mover montanhas.
— Não está com frio? ― perguntou ele
olhando para mim por cima do ombro quando
passamos pelas muralhas da cidade.
— Frio me incomoda muito menos que o
calor, embora tudo pareça doer bem mais por causa
dele. ― Ele pareceu divertir-se com a minha
resposta.
— Se fosse como eu, ia sentir mais dor com
o calor, o frio é quase como um anestésico.
— Por que eu me sinto assim se sou híbrida
agora? ― perguntei. Ele olhou novamente por cima
do ombro, diferente da primeira vez que o vi, notei
que seus olhos eram azuis, não um azul claro
comum, mas uma azul safira profundo e brilhante,
um olhar tão expressivo que fazia algo se mover
inquieto dentro de mim toda vez que me encarava

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daquela forma.
— Por que a forma humana ainda resiste à
transformação, mesmo quando você muda, ainda
sente tudo como uma humana.
— Isso é frustrante! ― resmunguei
desviando o olhar, pegando Ira no colo e coçando
sua cabeça distraidamente.
— Não gosta de ser humana? ― Caalin
perguntou sem olhar para mim.
— Ser humana em meio ao que está por vir
significa que eu serei mais fraca que os outros! ―
respondi. Ele sacudiu a cabeça e não disse mais
nada, apenas caminhou ao meu lado em silêncio,
observando atentamente cada sombra, cada porção
de neve caindo dos galhos das altas árvores que
cercavam a estrada larga de pedras ásperas, fazendo
com que parecesse um imenso túnel branco e em
tons de amarelo e laranja das folhas das bétulas.
A luz do sol passava pelos galhos frondosos
cobertos de neve e gelo e formavam espectros em
alguns pontos, colorindo a neve no chão. O cheiro
da neve misturado com o perfume adocicado,
agudo e revigorante das bétulas e aveleiras

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gigantes, modificadas magicamente para crescerem


nessa região gélida e frutificarem mesmo com o
frio tão intenso, me fez viajar em minhas próprias
lembranças. Fiquei admirando aquela obra de arte e
imaginando quanto tempo Ayrana trabalhou para
fazer aquele mundo tão perfeito. Uma artista, de
fato, pintando mundos conforme florescia em seu
coração amor por criaturas dignas de suas obras de
arte. Olhei de soslaio para Caalin, ele tinha um
breve sorriso no rosto e parecia tão admirado com
aquilo quanto eu, será que nem mesmo em tantos
milênios aquilo deixava de ser tão belo?
— Queria ter nascido aqui ao invés de
Ciartes! ― falei depois de um bom tempo em
silêncio, Caalin arqueou uma sobrancelha e riu.
— Se tivesse nascido aqui, tudo isso seria tão
comum para você que nem repararia nessas
paisagens! ― respondeu ele, abaixando-se na beira
da estrada e pegando uma folha de bétula
congelada, com uma fina camada de geada por
cima dela, parecia uma pequena joia. Ele estava
prestando atenção em mim enquanto andávamos!
Isso me deixava irritada, pois me lembrava de

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quanto ele fuçou em minha mente. Talvez por isso,


por mais que quisesse não tinha coragem de ser
grosseira com ele, para mantê-lo em seu lugar
como fazia com as outras pessoas, por respeito
talvez, estava no mundo dele, ele viveu o suficiente
para que eu não fosse nada ali, não representava
perigo algum para ele, então não havia motivo para
me mostrar hostil, afinal como ele mesmo dissera,
me conhecia bem o suficiente para saber que aquilo
era apenas uma máscara de defesa.
Foram mais ou menos duas horas de
caminhada até as muralhas de Gither aparecerem
em nosso campo de visão, mas um cenário
assustador nos esperava lá. Apressei o passo para
chegar mais rápido perto da entrada da mina, os
portões estavam escancarados, foram forçados de
fora para dentro até as dobradiças arrebentarem e
caírem.
Havia manchas de sangue por todos os lados
junto com os corpos de lobos selvagens, também
alguns de escravos e feitores. Corri para a entrada
da mina e desci pelos túneis congelados correndo,
as marcas das escavações rasgavam o gelo fazendo-

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o parecer escavado por unhas. Desci ofegante até


um grande salão redondo de onde os escravos
retiravam o vitrino, que ainda estava no teto da
mina e dava a impressão de ser estalactites de gelo
penduradas perigosamente sobre as cabeças de
quem quer que estivessem trabalhando aqui, apenas
as cores amareladas deles que diferenciavam das
peças de gelo. Procurei por qualquer sinal dos
escravos, mas não havia mais ninguém ali, um
tremor.
Corri de volta para fora ao ouvir um som
pesado de algo caindo, fazendo com que a mina
estremecesse e alguns cristais de gelo se soltassem
do teto.
Do lado de fora, Caalin segurava uma
mulher, uma guarda ferida que estava próxima a
pequena cabana que abrigava os capatazes imundos
e inescrupulosos da mina.
— Que barulho foi aquele? ― perguntei a
Caalin que estava imobilizando a mulher para que
não fugisse.
— Ela ia explodir a mina com você lá
embaixo! ― Ele grunhiu pressionando-a com mais

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força contra o chão. ― Vamos, responda o que


Ausiet quer com o vitrino? Para que ele vai usá-lo?
— A voz dele havia se tornado um rosnado, as
presas brancas expostas e as garras longas e
transparentes quase perfurando a garganta da elfa,
que soltou um risinho de escárnio e engoliu algo.
— Ela engoliu veneno! ― falei usando meu
poder para tentar curá-la.
— Não vai adiantar, é pó de agulheira
branca. ― disse ele segurando minhas mãos para
que eu interrompesse o processo de cura.
— Nunca ouvi falar! ― Olhei dele para a
mulher que depois de um estranho gemido, cuspiu
uma bola de sangue endurecido, seu corpo ficou
rígido e branco e ela se foi.
— É um veneno de fabricação complexa e
demorada, ele resiste à magia de cura e só existe
um antídoto, mas é tão difícil de ser fabricado
quanto o veneno. ― Ele explicou e fechou os olhos
da mulher.
— Quem era ela? ― perguntei ajoelhando-
me ao lado dele.
— Uma guarda de Ausiet, o governante de

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Fernic, no continente ao oeste.


— Ela estava aqui para me matar, não é?
— Sim, você estragou negócios de muita
gente! ― Dei de ombros e corri os olhos pela mina,
parecia que uma batalha havia acontecido ali. ― Os
escravos que fugiram de Paliath vieram para cá
trazendo as ferramentas das minas, durante a
madrugada, eles invadiram e mataram os guardas,
capatazes e lobos de caça e libertaram os outros
escravos. Alguns perderam a vida na investida. ―
Ele apontou com o queixo na direção de alguns
escravos, que ainda usavam grilhões com correntes
partidas quando atacaram a mina, por sorte o
número deles era bem maior do que o de guardas
ali dentro, se não a briga poderia ter sido muito
mais feia.
Enterramos os corpos dos escravos próximos
à trilha que levava ao mar de Séil, perto da
liberdade. Quando voltei até a mina, seguida por Ira
que vinha de cabeça erguida atrás de mim,
brincando alegremente com sua cauda felpuda,
parecia que nada de errado havia acontecido ali. Fiz
uma grande bola de energia com as mãos e a rolei

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para dentro da mina, afastei-me lentamente até


onde Caalin esperava no começo da estrada.
Ao chegar do seu lado, ele fez um breve
aceno com a cabeça, fechei os olhos e visualizei a
massa de energia negra rodopiando e se expandindo
dentro daquele salão no gelo. Com um estalo de
dedos, a massa explodiu, levando gelo, terra e
vitrino para o alto. Caalin olhava a mina destruída
com uma expressão de assombro.
— E agora? ― perguntei desviando sua
atenção da destruição que causei. ― Onde ficam as
outras?
— A mais próxima fica na encosta da
neblina, a uma semana de viagem naquela direção.
— Ele apontou para nordeste, distraído observando
a neve revirada acomodando-se aos poucos no solo.
— Por que não nos teleporta para lá de uma
vez? ― indaguei, ele pareceu desapontado com
minha pergunta, mas retrucou:
— Você pode nos levar até lá também!
— Nunca estive lá para saber se me
teleportei para o lugar certo!
— Vamos, nos leve até lá! ― Ele cruzou os
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braços e ficou parado de pé em minha frente


esperando que eu nos teleportasse.
— Não posso...
— Pode sim, o poder de um mago negro é
irrestrito!
— Não é por isso que não posso, droga! ―
gritei. ― Eu não gosto de usar esses poderes! ―
Caalin ficou me encarando por um bom tempo,
afinal ele não tinha visto nada além do dia que saí
de Ciartes.
— Por que isso?
— Podemos ir logo para a próxima mina? Ou
vai querer fazer o rei esperar para sempre? ― Ele
continuou me encarando com aqueles olhos safira.
— Sim, vamos! ― Caalin segurou minha
mão, Ira saltou em seu pescoço e se enrolou ali,
então uma forte luz branca nos cobriu, senti o
puxão da magia de teleporte e poucos segundos
depois, vi o chão congelado novamente sob meus
pés. Minha mente escureceu por um instante
enquanto escutava as vozes novamente, sentei no
chão congelado e abracei as pernas, tentando
respirar normalmente e fazer aquelas sombras

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sumirem.
— Está se sentindo bem? ― perguntou
Caalin estendendo a mão para que eu levantasse,
mas não consegui estender a mão de volta, fiquei
em silêncio por um bom tempo, tentando apenas
espantar aquela horrível sensação de que ficaria
presa dentro de mim novamente.
Senti alguém me puxando para cima pela
cintura, Caalin estava olhando para mim com uma
expressão preocupada, não devia, mas me senti tão
bem por ter alguém perto de mim novamente que
quase chorei na frente dele, sentia muita falta de
Annie e Susano.
— Vou ficar... ― Respirei fundo e olhei em
volta, tentando entender o cenário ao nosso redor.
— Aparentemente, alguém veio até aqui e
fez seu serviço também! ― disse ele indo até onde
deveria haver uma muralha de contenção, que foi
destruída por uma forte explosão.
— O serviço do rei que eu estava fazendo,
foi o que você quis dizer! ― rebati de forma mais
áspera que consegui.
— Que tipo de poder teria feito uma

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explosão como essa?


— Fogo de dragão, talvez. Mas como eles
conseguiram isso é um mistério! ― respondi, ele
olhava surpreso para a destruição causada pela
explosão, que foi tão forte que derrubou as árvores
da encosta. Andei pelos escombros procurando por
algum sinal do que realmente poderia ter feito
aquilo, não podia ser fogo de dragão, pois não
havia cheiro do líquido inflamável deles. Também
não tinha cheiro de pólvora ou fosfato. Passei por
alguns corpos sem querer olhar para eles, mas não
havia cheiro de carne queimada também. ― Foi
uma explosão causada por magia! ― falei ao ver a
massa de terra e neve que cobria um buraco que
devia ter sido a entrada da mina.
— Talvez alguém que tenha se inspirado em
você!
— Ou que tinha algum parente ou amigo que
foi trazido para as minas ― retruquei. ― Os
guardas e capatazes foram mortos por magia
também! ― Tive que me forçar a olhar para eles,
fora os ferimentos após a morte, eles não pareciam
ter lutado com alguém, eles pareciam ter

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simplesmente parado de respirar, uma morte


tranquila demais para monstros como aqueles.
— Pelo menos sabemos que quem fez isso só
veio libertar os escravos, não era um sádico
sanguinário! ― Olhei-o de soslaio e franzi o cenho
— Ah! Desculpe, sem ofensa! ― Ele mordeu o
canto da boca para evitar rir quando amarrei ainda
mais a cara, então para ele eu era uma sádica
sanguinária? Bom saber.
— Essa era uma das maiores, não é?
— A segunda maior... ― Ele andou até a
pilha de entulho da entrada da mina e chutou um
pedaço de pedra. As ondas no mar faziam um ruído
abafado enquanto arrastavam placas de gelo por
toda extensão da praia. ― Foi aqui que eu fiquei
congelado. ― Explicou ele mostrando-me parte de
uma rocha coberta de neve e terra. Sem nenhum
esforço ele a ergueu do chão e limpou a parte que
estava para baixo, quando ele terminou de limpar,
percebi que havia inscrições na pedra, Vegahniano,
o idioma puro e limpo de milênios atrás, só havia
visto aquela escrita tão polida uma vez na
biblioteca da ACV, num livro místico antigo que

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falava sobre as guerras dos quatro continentes. Mas


aquela pedra que mais parecia uma lápide, parecia
conter parte de um poema, um lamento ou uma
despedida...
— O que houve para que ficasse congelado
aqui? ― perguntei analisando atentamente sua
expressão, mas se havia algo ali, ele não deixou
transparecer.
— Precisava de um descanso, de férias, bem
longas. ― Ele sorriu sem alegria. ― Mas se eu
estivesse do lado de fora o dever com Vegahn e
com Ayrana, aquilo nunca me deixaria descansar,
ia sempre me sentir obrigado a continuar lutando,
protegendo as pessoas. ― Ele suspirou.
— Então, você veio para cá depois que
Antares foi morta?
— Sim... Não consegui responder ao
chamado de ir até o centro do círculo mantê-lo
preso, quando Sirius e Áries assumiram, uma certa
paz tomou conta de tudo, eles eram guerreiros
muito temidos e muitos tinham medo de fazer
coisas erradas e serem punidos por eles.
— Por que não conseguiu responder ao

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chamado? ― Quis saber, mas algo no jeito que ele


olhou para longe me fez querer ter retirado aquela
pergunta.
O silêncio só era quebrado pelo vento que
assobiava ao bater nos destroços da mina, Caalin
colocou aquela pedra no chão e a cobriu, deixando-
a escondida no meio da neve.
— Quase dez mil anos dormindo aqui, mas
passou tão rápido como um piscar de olhos, quando
despertei achei estranho, pois parecia que tinha
acabado de fechar os olhos. No dia em que
despertei na mina, ela já estava cheia de escravos
trabalhando e eles estavam bem próximos à galeria
subterrânea que eu me encontrava. No dia que
despertei conheci Mikale, ela cuidava dos
trabalhadores das minas, pois eles se feriam
constantemente com as peças afiadas de vitrino. ―
Ele explicou depois de todo aquele tempo sem
dizer nada, fiquei aliviada por ele quebrar o
silêncio, pois eu não ia conseguir fazê-lo.
— Quanto tempo faz que você despertou?
— Dezoito anos, mais ou menos...
— E os trabalhadores não eram escravos?

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— Não, até então eles não eram escravos,


recebiam um salário conforme o vitrino era vendido
para os magos. Porém, descobriram que o vitrino
depois de derretido uma vez não se derretia mais,
os Salamandras pagariam fortunas por armas que
não derretessem em suas mãos quando
transformados em chamas, então alguém pensou
que podiam usar vitrino para fazer armas contra os
Salamandras, já que o vitrino não derretia ao tocar
a pele deles como acontecia com os outros metais.
Qualquer arma de ataque a distância feita com
vitrino poderia matar um Salamandra. ― Aquilo
me fez lembrar o medo de Annie quando ela viu
Siferath comigo na primeira vez.
— Então, o vitrino só foi explorado dessa
forma por causa dos Salamandras?
— Sim, o maior erro que eu cometi foi
informar ao rei o quanto esse metal podia ser
perigoso para os Salamandras achando que ele
poderia mandar que fechassem as minas, mas ao
invés disso ele contratou magos de outros mundos
para escravizarem pessoas para trabalharem nas
minas, ele dizia que estava sempre trabalhando no

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assunto de fechar as minas, sempre me enviava a


outros mundos em missões que pareciam ser de
grande importância para o bem de Vegahn e dos
outros mundos, e quando estava em casa, nesse
caso, quando ficava no castelo, ele me ocupava de
treinar o príncipe para que se tornasse um grande
guerreiro, fui um idiota de confiar nele. Quando
descobri a verdade, que ele estava planejando usar
o vitrino em uma guerra contra Ciartes eu o matei
para Aliver assumir o trono. ― Senti meu sangue
sumir do rosto.
— Eles planejavam uma guerra contra os
Salamandras?
— Ainda planejam, os governantes do leste e
Oeste ainda acreditam que essa guerra seja
possível, para isso querem tomar o trono de Aliver,
pois ele tem o maior exército de Vegahn, estamos
torcendo para nosso aliado do Sul não ser
comprado pelos dois também.
— E por que você não destruiu o vitrino?
— A maioria foi levada para fora de Vegahn
para ser forjado como armas, o que restou está em
Fernic, muito bem guardado! E embora eu possa

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devastar aquele continente com a Alma dos raios,


acredito que outro guardião está o protegendo!
Acredito que seja o guardião que tem o poder da
Alma das águas...
— O quê? ― falei tão alto que Ira se mexeu
inquieto no pescoço de Caalin e saltou para a neve.
— Nem todos os guardiões são bons, Nike.
Muitos deles não sabem sobre os poderes que tem e
para que eles servem.
— Quando saí de Ciartes, Sirius e Áries
partiram com uma amiga para encontrá-los...
— Muitos também devem se recusar a lutar,
eles não são obrigados no fim das contas.
— Mas é pelo mundo deles! ― esbravejei.
— Mas você não pode obrigá-los a lutar!
— Posso sim! ― bufei ― Ai de quem pensar
o contrário, vão nos ajudar nem que seja para não
apanharem de mim! ― Caalin começou a rir e
bagunçou meu cabelo.
— Você é uma piada! ― Aquele sorriso
alegre foi tão lindo que a única coisa que consegui
fazer foi ficar admirando.
Ira voltou trotando entre os destroços, seu
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pelo cinzento o escondia em qualquer lugar com


facilidade, ele se aproximou e saltou em meu colo,
enroscando-se em meu pescoço e bufando enterrou
a cabeça em meu pescoço. ― Ele gosta de você!
— Que bom! Pelo menos alguém ainda
gosta! ― Sorri apertando meu rosto contra sua
carinha feia e macia. Caalin estava me observando
de forma estranha quando virei para ele novamente,
não consegui interpretar seu olhar, pois ele virou
rápido demais.
— Tem mais uma mina, Arizer, fica a leste
daqui, só algumas horas de caminhada, no limite do
mar da neblina com o Mar de Ohm! Se não se
incomoda, prefiro ir andando.
— Não me incomoda, prefiro ir andando
também! ― O teleporte me enjoava tanto que por
pouco não coloquei o café para fora agora a pouco.
Demos a volta nos destroços da mina e
descemos por uma trilha estreita e escorregadia até
a praia, onde a areia coberta por neve estalava sob
minhas botas de couro, o presente que Annie me
deu em meu aniversário algum tempo atrás. Parecia
que havia se passado uma década desde aquele dia,

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os rostos deles ficavam estranhamente distorcidos


quando tentava visualizá-los em minha mente,
como se estivesse os esquecendo aos poucos.
Forcei minha mente para lembrar do rosto de
Kuran, porém quando fiz isso, foi como se uma
sombra escura tivesse coberto minhas memórias e
uma voz sombria começou a rir em minha mente.
Um calafrio me fez parar no lugar e sondar minha
mente atrás daquela voz. Nada.
Era a mesma voz que muitas vezes escutava
quando adormecia, quando tinha pesadelos com o
que tinha feito ao príncipe e a Merian.
— Nike? Está tudo bem? ― Caalin tocou
meu cotovelo com a mão, levantando-me, não
havia percebido que havia me ajoelhado na areia
congelada até que ele me chamou.
— Estou... ― Respirei fundo e me levantei,
não era comum ouvir aquelas vozes quando estava
acordada.
— O que houve? ― Ele estava pálido, se é
que era possível para alguém com uma pele tão
branca.
— Nada, não precisa se preocupar! ― Puxei

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meu braço para continuar andando, mas ele segurou


minha mão e me girou na sua direção para olhar
dentro de meus olhos.
— Não pareceu que não era nada! ― Ele
segurou meu queixo quando tentei desviar o olhar.
— Me solta antes que eu resolva quebrar
esses seus dedos! ― grunhi desvencilhando-me de
suas mãos e virando de costas para ele, voltando a
andar pela praia, cruzei os braços para evitar que
ele visse que eu ainda estava tremendo. Caalin
continuou andando ao meu lado sempre me
olhando de canto de olho e com uma expressão fria
e calculista no rosto, uma expressão que fez minha
garganta apertar. Ele podia quebrar meu pescoço
antes que eu piscasse, não sei se valia a pena
arrumar briga com ele, mas Caalin era um misto de
calma e indiferença quando o tratava rispidamente,
parecia que preferia ficar em silêncio até minha
raiva passar.

— Não estava com medo de usar sua magia


ontem quando destruía as minas, por que hoje não
quis usá-la, então? ― Ele esticou a mão para que

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Ira passasse de mim para ele, ainda estava me


estudando, observando-me cautelosamente.
— Eu... preferia não ter esses poderes,
prefiro evitar usá-los à toa.
— Não é por isso.
— Claro que é! ― retruquei.
— Vai mesmo mentir para mim? ― Ele
arqueou a sobrancelha e olhou para o mar. ―
Mesmo que não tivesse visto sua mente, saberia
interpretar quando você mente. Não sou nenhum
jovenzinho com a cabeça no mundo da lua, aprendi
muito sobre as pessoas nesse tempo todo...
— É por causa da magia negra! ― O cortei
antes que começasse um sermão. ― Muitas vezes
as mesmas sombras que consigo dominar tentam
tomar o controle, às vezes ficam tão fortes que não
consigo diferenciar aliados de inimigos, igual ao
que aconteceu ontem com os guardas, eu sabia que
eles estavam apenas protegendo a cidade, eu queria
só virar de costas e sumir, mas algo dentro de mim
gritava para ir até eles e matá-los, e eu acabei
cedendo. Não quero mais ser uma marionete, li
sobre outros magos negros quando estive na ACV e

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sei como e porque foram mortos! ― desabafei


sentindo um enorme peso sendo retirado de mim.
Caalin havia parado de andar e agora me olhava
fixamente, daria tudo para descobrir o que ele
estava pensando a respeito.
— Nem o Yinemí consegue controlar isso?
— Não... às vezes perco o controle dele
também, pouco tempo atrás eu quase destruí uma
cidade, ouvi alguns homens falando sobre as jovens
que eles estavam preparando para levar para um
bordel... Eu perdi a cabeça, o prédio virou farelo de
gelo quando toquei a parede. Foi sem querer, mas
os dois poderes se misturaram ali. Queria não ter
nenhum deles...
— Então, foi isso... ― Ele balançou a cabeça
ainda me analisando, como se algo tivesse ficado
claro para ele. ― Nós precisamos treinar esses
poderes, assim você pode ter mais controle sobre
isso.
— Eu sei usar as duas formas de magia,
tenho um bom controle sobre elas, só que as
sombras ficam me atrapalhando!
— É o mesmo que não ter controle. ― Ele

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retrucou.
— Não posso me livrar da magia negra, não
é?
— Poderia, mas ela regula a força do
Yinemí, se você se livrar dessa magia poderá
perder o controle dele com facilidade... A não ser...
— A não ser o quê?
— Esquece! É muito arriscado.
— Agora fale! ― pedi agarrando seu braço
quando ele voltou a andar.
— Vai precisar muito mais do que isso para
me convencer a falar! ― Ele riu, afastando-se
casualmente, saindo da areia da praia por uma outra
trilha íngreme, corri para alcançá-lo quando ele
saiu do meu campo de visão por uma curva na
entrada de uma floresta.

O Sol artificial que estava no céu quase não


aquecia a superfície congelada de Vegahn, e por
mais que eu gostasse do frio, que não permitia
aqueles ossos horríveis doerem, sentia saudade de
ter a pele bronzeada pelas horas aos sóis quentes de
Ciartes, aqui eu havia adquirido uma cor branca
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leitosa que me irritava profundamente toda vez que


olhava meu reflexo no espelho. Alcancei Caalin
antes de ele entrar na estrada principal, Ira saltitava
ao redor dele como um cãozinho adestrado.
— Você me disse uma vez que ele se
chamava Ira por causa do temperamento dele, mas
ele é muito dócil! ― Caalin sorriu.
— É porque ele gostou de você, ele não age
como um monstro na frente de uma dama! ―
Franzi o cenho e dei um baixo assovio.
— Ira? ― O glacio virou a cabeça em minha
direção como se tivesse entendido que eu estava
falando com ele. ― Não sou uma dama, sou uma
caçadora sádica e sanguinária, não precisa ser
fofinho na minha frente. ― Pelo canto dos olhos, vi
a expressão de Caalin endurecer, pois usei as
mesmas palavras que ele usou para descrever os
últimos ataques às minas.
— Sabe que não quis dizer aquilo me
referindo a você, não é?
— Ah, eu fui a única pessoa que atacou as
minas de forma violenta nos últimos dias, então
estava se referindo a quem? ― Ele desviou o olhar

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e pigarreou.
— Desculpe.
— Hum. Não é porque sou jovem que sou
burra, sabia?
— Não foi isso que quis dizer! ― Ele estava
sem graça. ― Posso ser sincero?
— Por favor!
— Esse seu jeito de ser combina mais com
você do que quando você tenta ser gentil! Você
combina com a personalidade que tem, embora isso
me assuste.
— Por que isso te assusta? ― Cruzei os
braços e franzi ainda mais o cenho.
— Porque eu nunca conheci mulheres assim,
todas eram sempre doces, agradáveis, algumas
mimadas, mas nenhuma era assim! Não sei como
lidar com você! ― Acabei rindo dele.
— Não sabe lidar comigo? ― Parei de andar
para encará-lo. ― Não precisa saber... apenas fique
por perto, está bem? Me desculpe se sou muito
grossa às vezes, só não sei lidar com as pessoas de
forma diferente.
— Não vou sair do seu lado, não se preocupe
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com isso, afinal, eu domei Ira, ele era menos


selvagem que você, claro!
— Domar? Não, você não vai conseguir
fazer isso! ― falei brincando.
— Quer apostar? Minha paciência é muito
grande, isso é um requisito indispensável para um
domador de feras. ― Um sorriso malicioso
apareceu em seu rosto e fez com que seus olhos
brilhassem ainda mais. Acabei nem respondendo,
apenas sorri e continuei andando ao lado dele.

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Capítulo 5

Caalin:

Entramos no limite dos campos de Haruyn,


próximos à encosta norte de Blizzion onde a última
mina ficava, Nikella caminhava em silêncio ao meu
lado, parecia estar se divertindo com alguma
discussão interna e pelas vezes que murmurava
sozinha, podia estar muito bem ganhando aquela
discussão. Talvez ela fosse apenas louca, mas isso
parecia dar certo para ela, de certa forma.
— Não quer parar para comer alguma coisa?
— perguntei quando notei que estava próximo do
meio dia, mas ela balançou a cabeça
negativamente.
— Depois que nos livrarmos da mina, aí eu
paro para comer alguma coisa. ― Ela estava
determinada a fechar a última mina, depois disso
iríamos direto ao castelo encontrar com Aliver, e
ver o que ele iria propor a ela. Esperava que ele não
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agisse com ela como sempre ao ver uma mulher


bonita, ou teríamos um problema muito sério, não
saberia dizer se por minha parte ou por parte de
Nike, ela na certa quebraria os dentes dele.

Avistamos os muros que mantinham a mina


isolada próxima à beira do penhasco, ao longe
parecia mais uma prisão do que uma mina, acima
dos muros havia longas grades de vitrino tão
afiadas que até mesmo um pássaro, caso se
chocasse acidentalmente a elas, seria partido em
vários pedaços, as guaritas sobre os muros, agora
vazias, davam uma aparência ainda mais sombria
ao local. Essa era a maior de todas as minas, o local
onde aconteceu o maior derramamento de sangue,
onde houve a última grande batalha de Vegahn pelo
domínio de Blizzion, quando os Reis de Fernic e
Paliath, muito antes da destruição de Antares,
tentaram tomar essas terras da rainha élfica Yriella,
eles atacaram pelo mar, então a mina foi escavada
no local onde a guerra se concentrou nos primeiros
ataques.
— Não está silencioso demais para uma

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mina? ― Nikella quebrou o silêncio da caminhada,


apontando com o queixo na direção dos muros. ―
Quero dizer... era pra estar ouvindo pelo menos o
som das pessoas trabalhando, não é?
— As guaritas também estão vazias ― falei.
Apressamos o passo, algo sobre aquela mina
fazia uma estranha sensação inundar meus sentidos,
uma espécie de bloqueio, olhei para Nike, para ver
se ela também havia percebido algo de estranho,
mas se estava, não deixou transparecer. A floresta
havia crescido ao redor das minas, de forma que a
maior parte dela ficava às sombras das bétulas
gigantes que cresceram ali, deixando o lugar ainda
mais frio do que o normal e dando uma ilusão que
existia algo além dos penhascos não muito altos
bem à frente.
Os portões das minas estavam escancarados,
como se todos tivessem fugido dali às pressas. Ira
saltou diante de nós em seu tamanho real, estava
rosnando e seu pelo estava eriçado, aquilo com
certeza não era um bom sinal, mudei de forma
também, não importa o que fosse, não era coisa boa
que encontraríamos lá dentro. Nike pegou Siferath

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do pescoço e a posicionou atrás dela, preparando


um ataque, entramos com cuidado, pé ante pé sem
fazer ruído. O cheiro de sangue era antigo, velho e
mofado, não havia sinal de que pessoas estiveram
aqui nos últimos meses, tudo estava coberto por
camadas de neve, as portas das salas das sentinelas
haviam se soltado das dobradiças e caíram ao chão,
o telhado de uma das áreas dos vigias também
havia desabado com o peso da neve sobre ela e, no
centro do pátio, a entrada da mina havia sido
fechada com uma grande pedra redonda que
aparentemente deu muito trabalho para ser
arrastada até ali.
— Acho que algo muito, muito ruim
espantou todos daqui! ― disse ela baixinho, tão
baixo que sua voz não passava de um sussurro ao
vento que uivava ao se chocar com as paredes. As
sombras dos galhos que cresceram por cima dos
mundos estavam cobrindo a maior parte do pátio.
— O que sabe sobre monstros em cavernas
subterrâneas?
— O suficiente para saber que essa pedra só
o segurou, pois o que quer que esteja aí dentro

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estava faminto e foi despertado por quem


trabalhava lá dentro. ― Ela parecia tensa.
— Um chute?
— Um dragão das águas, talvez, ou um
Demônio Aariguin.
— Esse demônio nunca ouvi falar.
— É um ser assustador que vive nas cavernas
das montanhas geladas de Amantia, ele se alimenta
de almas e cresce conforme as toma das pessoas,
espremendo seus corpos até que a alma se
desprenda. Eles precisam de muitas vítimas para
ficarem fortes o suficiente, mas se for um e ele foi
parado com essa pedra sem nenhum encantamento,
creio que estava fraco e não conseguiu se alimentar.
— Qual dos dois você prefere enfrentar? ―
questionei quando a vi encolher os ombros ao tocar
na pedra.
— O dragão, sem dúvidas! Posso domar um
dragão facilmente, mas um demônio desses, mesmo
fraco... ― Ela estremeceu.
— Tem a ver com a magia negra? ― Ela
assentiu.
— Ele pode fazer com que eu perca o
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controle das sombras se eu me aproximar demais!


— Quer que eu cuide disso? ― Ela revirou
os olhos e segurou Siferath com mais força.
— Tenho esperança que seja um dragão,
estou precisando de um bichinho de estimação que
voe! ― Nikella mostrou-me aquele sorriso sinistro
que vi no primeiro dia na mina de Prestin.
— E como exatamente você aprendeu a
domar dragões? ― perguntei.
— O filho mais velho do meu mestre, Ariel,
era domador de dragões e me ensinou muita coisa
antes de trocar de profissão, no fim, ele virou
comerciante de metais! ― Ela bufou e esticou a
mão para a pedra.
Nikella tocou a palma da mão na pedra, que
começou a ficar branca, trincar e finalmente
desintegrou transformando-se em uma fina chuva
de lascas de gelo.
— Acho que a Alma de gelo era só um poder
de destruição, por isso ela não passou ele para
frente! ― disse ela analisando a pilha de gelo a
seus pés.
— Pode ser... ― Ela havia dito a verdade
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sobre controlar o Yinemí quase tão bem quanto eu


controlava a energia, embora eu tenha tido muitos,
muitos anos para treiná-lo, ela fazia como se tivesse
o dom natural, como se fosse a verdadeira dona
dele.
O cheiro não muito forte de metal e gás
inflamável me alcançou no momento em que a
pedra desapareceu, o túnel escuro que levava ao
fundo da mina também cheirava a restos em
decomposição e água salobra.
— Está com sorte, é seu dragão que está aí!
— Ela sorriu e guardou a foice, então sem avisar
desceu pelo túnel correndo em minha frente. ―
Nike! ― chamei, mas ela já havia desaparecido na
primeira curva que o túnel fazia para baixo. Não
tinha outra alternativa, a não ser segui-la, será que
ela sabia que o líquido inflamável do dragão se
transformava em gás e que qualquer fagulha
poderia nos transformar em cinzas?
Ela estava parada em frente à entrada de uma
galeria de vitrino, foi só quando parei ao lado dela
que percebi o motivo dela ter parado ali. A
escavação da mina foi tão profunda nas rochas de

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gelo que atingiu o paredão do mar de Ohm, com a


alta da maré, a mina virou uma espécie de lago de
água salgada e no meio do lago, uma pequena ilha
feita de vitrino abrigava um dragão negro
adormecido.
— Por que está tão cheio de gás se tem uma
passagem aberta direto para o mar? ― Ela
perguntou dando um passo adiante, mas a impedi
de prosseguir.
— Ele está adormecido.
— Ela! É um dragão fêmea! Pare de se
preocupar à toa, não vai acontecer nada!
— Como sabe?
— Um ninho, ela está sobre um ninho e ela
não é um dragão aquático! É um dragão negro da
montanha das cinzas! ― Ela estava sorrindo ao
tentar novamente entrar na água para ir até a ilha
onde o dragão dormia.
— Não existem dragões assim em Vegahn!
— falei, impedindo-a de seguir em frente
novamente. ― Ficou louca? Vai fazer essa mina
explodir se despertar o dragão! ― esbravejei o
mais baixo que pude.

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— Relaxa, ela não vai arriscar destruir o


ninho se tiver um ovo lá dentro! ― Nike estava
disposta a teimar comigo.
— E se não tiver ovos? Já pensou no que te
falei? Não existem dragões assim em Vegahn,
Nikella! Ela apareceu aí por algum portal! Talvez
até mesmo um dos prisioneiros que foi trazido para
cá podia ser um mago que abriu um portal para
trazer esse bicho e obrigar todos a fugirem! ―
Nikella torceu a boca novamente.
— Mas e se...
— Não tem como ter ovos ali! Sem um
macho, de onde acha que ela ia arrumar ovos? ―
Nikella mordeu os lábios e me deu um sorriso
malicioso.
— Vai que ela gosta de outras raças e pegou
algum dragão aquático para variar? ― Não sei se
ria ou se batia nela.
— Você só pode estar brincando!
— É uma possibilidade!
— Não, não é! Dragões não fazem isso! Eles
não são idiotas como nós de ficar misturando as
raças! ― falei tentando encerrar aquele assunto.
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— Eu vou até lá e vou pegar aquele dragão!


— Ela bateu o pé.
— Se ela fizer uma fagulha com os dentes,
tudo aqui vai explodir, nós vamos morrer e eu juro
que quando chegar do outro lado vou te dar uma
surra! ― Ela apenas sorriu e entrou na água
ignorando completamente minha ameaça. O lago
era mais fundo do que parecia quando a água lhe
cobriu o peito rapidamente, ela foi em silêncio, um
silêncio felino até a ilha onde o imenso dragão se
mantinha enrolado sobre o vitrino, aparentemente
adormecido demais para sentir o cheiro do almoço
se aproximando. Nikella não percebeu o
deslocamento de ar quando a longa cauda do
dragão se moveu para trás, para atacá-la. Fui
rapidamente até ela para tirá-la dali, mas o dragão
foi mais rápido, a longa cauda negra coberta por
ossos espinhosos se aproximou dela tão rápido que
não havia como impedir o choque.
— Para trás, você vai me atrapalhar! ―
gritou Nikella para mim erguendo a mão e fazendo
com que uma parede de gelo aparecesse ao seu
lado. A cauda acertou a parede despedaçando-a,

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mas Nike já havia saltado sobre a ilha e estava de


pé em frente ao dragão de olhos vermelhos que
abria a boca, enchendo a caverna com aquele gás
esverdeado.
— Nike, sai daí! ― gritei aproximando-me e
desembainhando Blumarian.
— Já disse para sair! ― berrou ela desviando
da investida do dragão, ele parecia lento, sonolento
e com ataques fracos. ― É muito velha!
— Isso não diminui a força dela! ― retruquei
prendendo a cauda com grossas correntes ao chão.
O dragão soltou um rugido que estremeceu as
paredes do salão, irritado com o que eu tinha
acabado de fazer.
— Mas diminui a velocidade! ― Nike pulou
por cima do pescoço do dragão, que ainda tentava
se erguer com dificuldade sob o peso das correntes.
Assustado com o movimento que Nikella fez sobre
ele, o dragão ergueu a cabeça novamente e
começou a raspar as presas gastas, Nike
desequilibrou e escorregou sobre seu pescoço,
caindo entre as asas do dragão.
— Ah! Merda! ― Não ia dar tempo de sair

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dali antes que aquilo explodisse e nos levasse pelos


ares ou nos transformasse em pó.
Nike pulou em minha direção, eu a amparei
quando ela caiu de pé ao meu lado, agarrando meu
braço e correndo para dentro da água.
O dragão ergueu o corpo do chão com
dificuldade e se virou em nossa direção tentando
criar uma fagulha, de soslaio pude ver a pequena
chama vermelha se formando, não ia dar tempo de
fugir.
— Eu disse... ― comecei, mas Nikella parou
no meio do lago e ergueu Siferath com a mão que
não estava me segurando. Senti as sombras me
envolverem também quando as marcas negras se
acenderam em seus braços e seus olhos cor de
vinho brilharam na escuridão da mina, no exato
momento que ela lançou as sombras sobre o dragão
junto com uma massa negra que fez uma redoma ao
redor dele. Ela se colocou em minha frente
protegendo-nos com uma bolha fina quando a
massa negra ao redor do dragão se expandiu com
um ruído surdo de uma explosão que fez a mina
inteira estremecer. A massa que o cobria ficou

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vermelha brilhante quase como brasas expandindo-


se ainda mais, Nike tocou a superfície da água
enviando um pequeno fio branco até a massa que
começou a solidificar. Não houve nenhum tremor,
nenhum som alto suficiente para ser ouvido do lado
de fora daquele salão.
— Eu disse que não ia acontecer nada! ―
Ela ousou dizer após algum tempo em silêncio
dentro da água gelada. Ela tremia tanto quando saiu
da água que mal conseguia ficar de pé. Só quando
saí que notei minha mão suja de sangue, olhei para
o braço esquerdo dela onde o casaco de pele
cinzento estava encharcado de sangue.
— Seu braço... ― Segurei gentilmente seu
pulso, ajudando-a a tirar o casaco e virei um pouco
seu braço para ver melhor, ela havia cortado o
braço ao escorregar sobre o dragão, abrindo um
corte profundo desde o cotovelo até quase o ombro.
— Não aconteceu nada, não é?
— Estava me referindo a explodir e a
caverna desabar! ― disse ela virando o rosto para o
outro lado, ela respirou fundo e colocou a mão
sobre o corte, soltando um gemido de dor ao

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apertar a mão ali.


— Deixa que eu faço isso, pelo que me
lembro, você disse que não gostava de usar magia!
— Ela não reclamou, apenas tirou a mão e deixou
que eu a curasse, o cheiro de seu sangue fez com
que todos os meus sentidos ficassem ainda mais em
alerta e tive que fazer um esforço ainda maior para
não levar a mão suja de sangue à boca.
— Não gosto de usar essa magia, a que eu
tinha antes eu gostava, ela não tentava ferrar a
minha cabeça sempre que eu a usava para coisas
simples! ― Ela resmungou ainda sem querer olhar
para o braço.
— Já está melhor, pode olhar se quiser... ―
Passei a ponta do dedo sobre a fina cicatriz que
aquele corte deixou.
— Obrigada. ― Ela foi até a água lavar o
braço e depois voltou até a bolha congelada que
havia se formado no centro da ilha de vitrino. Ela
girou a foice nas mãos e acertou a ponta que tinha
uma lança na bolha, que se despedaçou deixando o
gelo cair sobre nossos pés. O que ficou lá dentro foi
espantoso, o fogo do dragão foi tão intenso que

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consumiu toda a carne dele deixando-o apenas no


esqueleto e derreteu o vitrino ao redor dele, e na
hora da explosão, o metal líquido o cobriu,
transformando os ossos do dragão numa escultura
gigante de vitrino. Ele estava com a cabeça virada
em nossa direção com a boca aberta e a cauda de pé
na hora em que foi queimado, ficando eternamente
naquela posição de ataque.
— Será que o rei Aliver iria gostar de uma
estátua de um esqueleto de dragão negro envolto
em vitrino na entrada do palácio? Na certa isso
intimidaria os visitantes e daria um ar de poder... ―
falei admirando o fim trágico e belo que havia
acometido aquela fera.
— Nem teve muita graça, ela estava velha e
fraca! E eu sou uma artista mesmo quando não
tento ser! ― Ela estava sorrindo olhando a estátua,
olhei para ela e notei que as marcas negras e a cor
vinho dos olhos não haviam sumido. Mas ela não
parecia ter se transformado em nada perigoso, ou
pelo menos ainda não. A intensidade da fúria
daquelas sombras me alcançou quando ela as
conjurou, foi algo intenso e tão pesado que se eu

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ficasse um minuto sob influência daquelas sombras,


poderia facilmente me unir a Higarath e destruir os
mundos. Sacudi a cabeça tentando me livrar
daqueles pensamentos e usei meus poderes para
encolher a estátua a um tamanho que pudesse
carregar dentro do alforje.
— Vamos embora?
— Sim, mas antes... ― Ela ergueu as mãos
para cima, fazendo outra bola de energia negra e a
levando onde o dragão estava. ― Não pode ser! ―
Ela colocou a bola no chão que começou a pulsar e
aumentar, então pegou uma coisa no chão e a
enrolou no casaco sujo de sangue.
— O que encontrou aí? ― perguntei.
— Já, já vai saber! ― disse ela pegando meu
braço e me puxando na direção da saída. Ao passar
pelo lago atravessando as águas, ela pegou uma
barra de vitrino que estava pendendo no teto do
túnel e a levou para fora também. Ira estava
esperando na entrada da mina, assustado demais
para entrar, quando nos viu, saltou para cima de
meu ombro enquanto corríamos para fora dos
muros.

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Quando alcançamos a estrada novamente,


Nikella juntou as mãos como se fizesse pressão
sobre algo, então a mina explodiu com um estrondo
que balançou a terra com tanta força que nos
derrubou no chão, as árvores deixaram o gelo
acumulado cair sobre nós. A explosão foi tão
poderosa que não só a mina foi destruída, mas parte
da encosta desabou para o mar, levando parte da
mina, da floresta e dos muros com ela. Fiquei
olhando para Nike boquiaberto, ela cobriu a boca
com a mão e me olhou mordendo os lábios para
não rir. Seria realmente engraçado se não fosse
apavorante. Ela só usou uma pequena porção de
energia para criar aquela explosão, isso significava
que conforme ela o usava, seu poder aumentava.
— Seu poder é igual ao poder de
Sirius...diria que você é parente dele se não tivesse
certeza de que você era humana! ― comentei
observando as marcas sumindo lentamente de seus
braços.
— Sirius tem cara de ruim! ― Ela retrucou
franzindo o cenho.
— Você também tem! ― A provoquei

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conseguindo fazê-la corar.

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— Vamos encontrar o rei agora? ―


perguntou ela levantando-se e limpando a roupa
suja de terra e neve.
— Não, quero ir a um lugar primeiro, depois
dessa, preciso de uns dias de folga logo! ― Ela
acenou devagar olhando discretamente para a
poeira e neve que ainda escorregava penhasco
abaixo na destruição que ela havia causado. ―
Aliás, o que você pegou na caverna que não me
deixou ver? ― Ela sorriu maliciosamente
apertando de leve o casaco nos braços. Depois de
fazer um pouco de suspense, ela abriu as mangas
do casaco, expondo um grande ovo azul rajado de
negro dentro do embrulho.
— Não acredito... realmente tinha um ovo lá!
— Não apenas um ovo... é um ovo de dragão
das águas com dragão negro! ― Ela sorria de
forma vitoriosa.
— Me recuso a acreditar que isso seja real!
— falei esticando a mão para pegar o ovo, mas ela
o tirou do meu alcance soltando um rosnado.
— Você, fique bem longe dele! Quero que
choque para provar que o que tem aqui é um dragão

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híbrido!
— Por que acha que eu faria alguma coisa
com esse seu ovo?
— Não sei, vai que te dá vontade de comer
omelete de ovo de dragão! ― Ela ainda me olhava
desconfiada.
— Não vou fazer uma omelete com isso!
Pode ficar com seu ovo, o filhote nem vai notar a
diferença de um dragão para outro! ― Ela me
acotovelou irritada e abraçou o ovo novamente,
sorrindo como uma criança que encontra um
filhotinho fofinho.
— A mãe dele parecia bem velha... ― disse
ela olhando distraída para o ovo ― Qual a
expectativa de vida dos dragões?
— Depende da espécie, dragões de fogo
vivem menos que os dragões aquáticos, os de fogo
vivem em média seiscentos a setecentos anos, os de
água chegam facilmente aos dois mil...
— Então quando ele chocar, vai envelhecer e
morrer e eu ainda vou estar aqui, não é? ― Ela
olhou de soslaio para mim, apertando o ovo
delicadamente nos braços.

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— Vai. Humanos místicos, como são


chamados os humanos híbridos dos imortais, vivem
ainda mais que os humanos dos mundos com
mandalas mágicas em volta... alguns séculos a
mais, talvez.
— Então não sou imortal de verdade, igual a
você? ― Ergui as sobrancelhas e a encarei.
— Não somos imortais, Nike! Nós apenas
não envelhecemos mais depois de certa idade e
morremos muito devagar! Mas todos nós
morremos, se fossemos realmente imortais, você
teria visto meu avô Haalin ainda reinando em
Amantia e não o tataraneto dele! ― Ela estava me
olhando com surpresa contida nos olhos.
— Quantos anos ele tinha quando morreu?
— Pouco mais de dezesseis mil...
— Mas isso é porque ele era um elfo, não é?
Quero dizer, varia dependendo da raça também? ―
Sabia onde ela estava tentando chegar e sorri.
— Nike, eu tenho essa idade, pois fiquei
congelado por todo aquele tempo no gelo! Se não
fosse isso... bom, talvez tivesse chegado a essa
idade, Malvarmos vivem um pouco mais que Elfos!

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— falei tentando tirar a expressão de medo dos


olhos dela e torci para que ela não me perguntasse
mais nada, mas como sempre, ela me contrariou:
— Humanos místicos como eu, vivem quanto
tempo?
— Posso dizer que você vai viver mais que a
sacerdotisa das águas que é híbrida de metamorfo e
humano. ― Ela apenas assentiu.

— Para onde estamos indo? ― Nike


perguntou depois de andarmos por mais ou menos
uma hora na estrada principal em direção à cidade
de Madras.
— Vale do Sol. ― Os olhos dela chegaram a
brilhar quando falei a palavra “Sol”. ― Vamos
apenas parar para comer em Madras, depois
teleportaremos até lá!
— Tudo bem... mas falta muito para chegar?
— Mais uns quarenta minutos de caminhada!
— respondi, ela parou de andar e soltou um
gemido. ― O que houve? Está ferida? ― perguntei
analisando-a rapidamente, procurando por algum
ferimento que podia ter passado despercebido.
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— Estou com fome! ― Ela sentou no chão e


começou a choramingar. ― Não vou aguentar mais
quarenta minutos! O que você acha que eu sou? ―
resmungou com a voz chorosa, fiquei aliviado de
não ser nada grave. Nunca, em toda a minha
existência, alguém tinha conseguido me fazer
passar por variações de humor tão rápido quando
aquela menina sentada no chão, encarando-me com
os olhos verdes brilhantes.
— Pode fritar esse ovo aí se quiser! ―
brinquei ajudando-a a se levantar.
— Você é mau por dentro, Caalin! ― Ela o
abraçou ainda mais forte e fez biquinho para mim,
aquela cara mexeu com algo em mim.
— Se apertar um pouco mais, vai quebrar e
aí não vai nem poder comer, nem chocar! ―
Comecei a rir da cara de assustada que ela fez
arrumando o ovo nos braços. Ira saltou de meu
ombro e cresceu para que pudéssemos montar nele.
Nike pareceu aliviada ao ver que não a obrigaria ir
andando até Madras. A ajudei a subir, deixando que
montasse atrás de mim, seus braços ao meu redor
eram algo que podia facilmente ignorar, mas não

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seu cheiro caso ela montasse em minha frente, os


cabelos roçando em meu rosto e a curva de seu
corpo tocando em mim... afastei rapidamente os
pensamentos antes que fizesse algo que poderia
assustá-la ou pior, afastá-la.
— Vai enrolar a vida toda? ― Ela
resmungou espetando-me com as unhas, tirando-me
de meus pensamentos, aquilo foi de grande ajuda,
pois permitiu que minha concentração voltasse para
chegar à cidade.
— Sabia que essas garras machucam?
— Você não tem nenhuma marca... é bom
que assim eu deixo algumas em você! ― disse ela
em tom de zombaria.
— Andou reparando em mim? ― Sorri
quando a senti prender o fôlego enquanto Ira
disparava pela estrada em direção à cidade.

A torre de gelo vermelha que marcava a


entrada no território de Madras podia ser vista a
quase três quilômetros de distância, ela brilhava
conforme o sol batia nela, hoje o dia não estava
muito ruim, não estava nevando nem chovendo ao

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redor da cidade como era comum, estava um belo


dia de sol, embora frio como sempre, o que parecia
nos dar boas-vindas à cidade.
Porém, ao chegarmos próximos à entrada que
era guardada por dois Ymir’s, notei um movimento
estranho, uma tensão vinha dali de dentro.
Desmontamos de Ira, que dessa vez não saltou
sobre mim, mas pulou no pescoço de Nike,
escondendo a cabeça debaixo de seus cabelos e
qualquer um que olhasse de longe pensaria que era
apenas um cachecol de pelos prateados.
— Vou fazer uma coisa e creio que você vai
achar estranho... ― sussurrei puxando Nike pelo
braço para o meio das árvores que cercavam a
cidade. Ela me olhava assustada, com os olhos
arregalados.
— O quê...
— Malvarmos podem tomar habilidade de
qualquer um que eles matarem, sabe disso, não é?
— Sim, sei. Misty me ensinou isso nas aulas
dela... você me trouxe até aqui para me matar? ―
Ela pegou a foice, vi seus olhos ficarem de cor
vinho enquanto as sombras da floresta se

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arrastavam em nossa direção. Ira saltou de cima


dela, chiando e preparando o bote.
— Calma! Não é nada disso! ― Afastei sua
mão da arma segurando-a contra o tronco
congelado do pinheiro. ― Eu posso mudar de
aparência como um metamorfo! Só ia fazer isso!
Por favor, afaste essas coisas! ― sussurrei
percebendo que as sombras estavam perto demais.
— Se fosse para te matar, teria feito na hora que te
desarmei em Prestin! ― Ela semicerrou os olhos.
— Tem que aprender a ser menos suspeito!
— Em nenhum momento ela tirou os olhos dos
meus. Sua respiração estava ofegante, ela estava
com medo de mim. Não fazia sentido com o poder
que ela tinha, ter medo de mim.
— E você a ser menos desconfiada! Não
faria sentido eu te matar agora!
— Faria, teve tempo suficiente para observar
meus poderes e saber como eu os uso... até me
comparou a Sirius. ― Ela relaxou e as sombras se
dispersaram.
— Seria difícil ganhar de você! ― admiti ―
Te venceria apenas se você não usasse seus poderes

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e apenas com força bruta. ― Queria apenas provar,


mostrar para ela que confiava a ponto de dizer a
verdade sobre sua força. ― Confio em você e
espero que confie em mim!
— Confiança é algo que se conquista com o
tempo, Caalin. Você não deveria confiar em mim.
A última pessoa que confiou, que acreditou que eu
não faria nada de mal contra ele...
— Não sou um pirralho fraquinho que
cresceu num castelo brincando de guerreiro com os
colegas de escola! ― grunhi ― Não me compare a
ele! ― Ela conseguiu me tirar do sério concluindo
que conseguiria me ferir como fez com aquele
macho inferior.
— Sinto muito, eu... ― Ela estava pálida
quando desviou o olhar.
— Me desculpe... não costumo perder a
paciência com tanta facilidade.
— Eu tenho o dom de tirar as pessoas do
sério... ― Não parecia que estava falando
brincando.
— Notei isso. ― Respirei fundo tentando
ficar calmo novamente. Usei meu poder para

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encolher minhas armas e as guardei no alforje, o


coloquei no chão e escolhi um rosto aleatório para
me transformar, um menino humano que vi
patinando no dia em que fui até Mikale. Ele devia
ter pouco menos de três anos, usei as habilidades de
um mago metamorfo que matei quando estava a
serviço de Cahadris. Nike soltou uma risadinha. ―
O que foi? ― bufei, olhando-a de baixo para cima.
— Você está tão fofinho! ― Ela colocou o
ovo na bolsa que carregava, antes que pudesse
entender a maldade em seu olhar, ela esticou os
braços e me pegou no colo.
— FICOU LOUCA ME SOLTA! ― Acabei
gritando com ela tentando me desvencilhar de seus
braços, mas ela me apertou ainda mais e riu.
— Eu gosto muito de crianças! ― Ela me
colocou no chão novamente, apertou minhas
bochechas e ficou ajoelhada em minha frente
mordendo os lábios para não rir ainda mais.
— Ah! Me escute! Nos dias que você andou
pelas cidades, ninguém viu seu rosto, não é? ― Ela
balançou a cabeça negativamente. ― Bom, então
precisamos trocar essa sua roupa preta... creio que a

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cidade esteja cheia de espiões de Ausiet, não


podemos arriscar que eles te vejam aqui, ainda mais
do meu lado, meu rosto é conhecido, o seu não.
Logo atacariam Aliver, achando que ele quer você
por causa de seus poderes...
— Isso se aquele for seu rosto real... ― Ela
murmurou e estreitou os olhos para mim.
— Usar magia de metamorfose é horrível,
faz com que eu me sinta mal e drena uma
quantidade absurda de energia. ― Ela continuou
me encarando desconfiada. Fiz com que as roupas
dela mudassem, colocando-a numa roupa de
curandeira, o vestido longo branco com gola de
pele de Yeti. Ela arqueou as sobrancelhas, jogou o
cabelo para o lado e o trançou, cobriu a cabeça com
o capuz felpudo, o contraste dos cabelos negros
com a roupa branca a deixava ainda mais bela.
— Tudo bem, uma curandeira e... ― Ela
ficou de pé ajeitando o vestido e escondendo os
dois pingentes entre os seios, puxando a gola de
pele para que escondesse a arma.
— Vamos, qualquer coisa você é minha irmã,
uma curandeira a caminho do treinamento no

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palácio.
— E se me perguntarem por que estou
levando um pirralho comigo?
— Diga apenas a verdade, não temos mais
pais, mas ainda temos um ao outro! ― Ela sorriu e
estendeu os braços novamente. ― Não vai me
pegar no colo de novo! ― rosnei saindo de perto
dela, mas ela puxou meu braço.
— Nenhuma irmã mais velha deixa o
irmãozinho andando na neve!
— Eu sou um malvarmo!
— Mas escolheu se transformar em um
menino humano! ― Ela ignorou meus protestos e
me tirou do chão. ― Pare de falar muito também,
um menino com a sua idade não é tão tagarela! ―
Senti meu rosto esquentar, irritado com as
provocações dela. Ela me encaixou em cima de seu
quadril como se fosse um saco de batatas, minhas
pernas, pequenas demais penderam em volta de sua
cintura e na mesma hora me arrependi de ter me
transformado em uma criança.
— Devia ter me transformado em uma garota
da mesma idade que você! ― resmunguei.

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— Assim chama menos atenção! ― Nike me


apertou contra ela enquanto andava de volta à
estrada. O lado bom foi que pude apoiar a cabeça
em seu pescoço enquanto ela andava pela estrada
seguida por Ira. O cheiro de seu corpo causava uma
grande desordem em mim, deixando meus sentidos
primitivos ainda mais aguçados, mesmo que preso
temporariamente num corpo humano, eles estavam
alertas, porém focados apenas nela e isso nem de
longe era bom, podia colocá-la em risco se não
prestasse atenção ao meu redor. Estava com a mão
em seu ombro e a deixei escorregar casualmente
para suas costas. Nikella respirou fundo e me
encarou por um instante antes de passar pelos
Ymir’s que guardavam os portões, um olhar mortal
e sombrio, um alerta silencioso. “Tire essa mão daí
ou arranco esses dedos” quase pude escutar sua voz
dentro daquele olhar e sorri discretamente, ela
desfilou para dentro da cidade com passos firmes
sobre o gelo arranhado da estrada, as botas batendo
no chão com leveza, como se soubesse exatamente
por onde andava.
— Para onde? ― Sua voz foi apenas um

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sussurro.
— Terceira quadra a esquerda, entre dois
prédios antigos, uma biblioteca e um bar, existe
uma rua estreita, um beco na verdade, lá tem uma
pensão que mais se parece uma casa de chá,
fachada azul e branca. ― Eu lhe passei as
instruções o mais baixo que pude, qualquer um que
nos visse, pensaria que era apenas uma jovem
carregando uma criança resmungona, aquilo me
irritava profundamente, mas quem teve a ideia fui
eu.
Exatamente como eu suspeitava, havia vários
espiões de Paliath na cidade espalhados por pontos
estratégicos, alguns até mesmo nos telhados,
observando a movimentação intensa no interior das
muralhas, eram rostos que eu conhecia bem, os
poucos assassinos cruéis de Hobner que não cacei e
matei, eles estavam armados até os dentes,
procurando por qualquer sinal da maga negra que
havia destruído os negócios de seus mestres.
A cidade de Madras era uma das mais antigas
de Blizzion, cada centímetro da antiga cidade
lembrava uma fortaleza a céu aberto, as

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construções em pedras das montanhas brancas nos


davam a impressão de caminhar em um labirinto
indestrutível, apenas as construções mais recentes
nas redondezas da cidade principal tiravam aquela
horrível impressão de caminhar por uma prisão de
pedras. As ruas estavam cheias de comerciantes
eufóricos e compradores impacientes empurrando e
tentando chegar às barracas onde os produtos com
o melhor preço eram ofertados aos berros. Madras
era uma cidade humana. Não me lembrava mais
como era ser humano, mas ainda me lembrava
como era ter os sentidos primários fracos, mesmo
sendo possuidor de magia, aquele antigo bloqueio
às vezes me causava pesadelos, pesadelos em que
dependia apenas dos sentidos aguçados dos
Malvarmos para sobreviver em um mundo hostil.
Os humanos ao nosso redor, com seus rostos
rosados e sangue quente circulando nas veias, às
vezes pareciam ser mais primitivos que nós, as
bestas do gelo, suas vozes altas ecoando pelas ruas,
o calor dos corpos fazendo com que a cidade
parecesse menos fria e antiga do que realmente era.
Naquele momento, estava nos braços de uma

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humana tão diferente deles, Yinemí, ela realmente


o possuía, não só a Alma de gelo, mas uma calma
fria, letal que ela mesma desconhecia, mas que
descobri em algumas lembranças, em que um
humano comum teria agido emocionalmente
colocando-se em risco, mas ela agia de forma
diferente. Talvez essa calma que mantinha o poder
de maga negra sob controle, ninguém em sã
consciência diria que ela tinha apenas dezoito anos,
para mim, ela facilmente se passaria por uma
humana mística, uma sacerdotisa de pelo menos um
século de vida.
Olhei para seu rosto perfeito, inexpressivo
enquanto desviava dos compradores e andava
graciosamente pelas ruas congeladas, seguindo para
onde a havia mandado seguir. Ela virou na terceira
quadra a esquerda, não questionou ou perguntou o
porquê daquele lugar, apenas assentiu e seguiu.
A fachada de pedras pintadas de azul e
branco ficou à vista assim que entramos na rua
estreita entre os prédios sólidos. Nike subiu os
poucos degraus e entrou pelas portas da pensão, o
local assim como imaginava não estava tão cheio, a

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comida dali era uma das melhores da região, porém


a localização não ajudava muito, mesmo assim
continuava firme e forte. Nike me colocou no chão,
mas continuou de mãos dadas comigo. Não havia
percebido antes o quanto aquelas garras
translúcidas e azuladas chamavam atenção, olhei
em volta, as poucas pessoas que almoçavam no
estabelecimento haviam parado de comer para
olhar para ela. Talvez não tenha sido uma boa ideia
vesti-la como uma curandeira, as roupas brancas
destacavam ainda mais sua beleza, a longa trança
negra que pendia ao lado do corpo e os olhos cor de
jade.
Nikella estava chamando atenção demais
para que eu pudesse usar magia e lhe colocar luvas,
as garras eram de Malvarmos, isso era suspeito
demais em uma mulher aparentemente humana. Ira
andava em volta de seus pés como um gato
doméstico, tentando ser o mais normal possível,
talvez minha expressão adulta e séria demais
também estivesse chamando atenção, então fiz o
possível para suavizá-la.
Para meu alívio, Nike foi até uma das mesas

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de madeira nos fundos do salão, próximas às


janelas que davam para uma das ruas do comércio,
onde podíamos ficar de olho no movimento.
— Acho que esse disfarce que você arrumou
para mim, está chamando mais atenção do que se
eu tivesse entrando aqui com o capuz negro. ―
disse ela olhando pela janela.
— Notei isso, mas acho que você chamaria
atenção mesmo se estivesse usando trapos ou um
véu cobrindo tudo! ― respondi o mais baixo que
pude para não ser ouvido por mais ninguém, Nike
deu um breve sorriso ainda olhando para fora.
— Quantos me caçando você viu?
— Dez... pelo menos dez, poucos andando
pelas ruas e alguns nos telhados. ― Outro sorriso
ainda maior iluminou seu rosto.
— Me faz sentir importante! ― ela zombou
— É divertido ser a caça às vezes, ainda mais
quando sei que não vou ser capturada!
— Você é muito convencida para uma
menina tão jovem. ― falei e seus olhos faiscaram
quando ela me encarou.
— Não sou convencida, apenas me garanto!
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Também não sou arrogante!


— Tudo bem! ― exclamei baixinho
abanando as mãos. Uma garçonete se aproximou de
nós com um sorriso simpático no rosto, ela
ofereceu à Nike o cardápio, mas ela fez o pedido
sem ao menos olhar ele. ― Já veio aqui? ―
perguntei.
— Não, mas sinto o cheiro dos temperos,
então já sei qual é o especial. Merian trabalhava em
uma pensão como essa na Cidade do Sol.
— Mudando de assunto... não vi nada em sua
mente depois que você saiu de Ciartes, como se
virou aqui todo esse tempo?
— Sou uma caçadora! Vegahn, como em
todos os mundos, tem pessoas que precisam de
gente que faça alguns servicinhos que a maioria
não quer se arriscar a fazer. ― respondeu ela
aumentando ainda mais o sorriso, assenti enquanto
observava novamente o salão do restaurante, só
então notei que presa à bolsa que ela carregava,
havia uma estalactite de vitrino presa, coberta por
um tecido grosso que não permitia a ninguém ver o
que era, mas o metal tinha uma leve vibração que

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não havia notado até o momento.


— O que vai fazer com isso? ― Estava
curioso, vi quando ela pegou a barra, mas achei que
fosse só para livrar o caminho para fora da mina.
Nike não me respondeu, apenas fez outra pergunta:
— O quanto você é apegado nesse pedaço de
metal barato que carrega consigo? ― Nikella
desviou os olhos para o alforje que pegou de mim
na estrada e o colocou junto à sua bolsa sobre o
ombro.
— Eu a comprei na fonte de ferro a cidade
principal de Dakshin, isso logo depois que
despertei! ― menti olhando seu sorriso aumentar.
— Era tudo que precisava ouvir. ― concluiu
ela fazendo mistério e retirando as mãos de cima da
mesa quando a comida chegou.
— Bom almoço, senhora! ― disse a jovem
para Nikella.
— Obrigada, parece maravilhoso! ― Ela
piscou para a garçonete que saiu de perto da mesa
com o rosto corado. Ignorei aquilo e estiquei a mão
para puxar a travessa com o assado, mas ela não
deixou que eu pegasse, ao invés disso, serviu um

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prato para mim, pegou uma quantidade pequena


com a colher e trouxe em direção a minha boca.
— O que está fazendo?
— Se esqueceu de quem é você, Irmãozinho?
Uma criança com a sua idade vai fazer bagunça na
mesa! ― Ela mordeu os lábios para não rir.
— Você está adorando isso, não está? ―
Franzi o cenho.
— Para ser sincera, estou sim! ― Ela riu
abertamente colocando o prato diante de mim. ―
Se você tivesse apenas mudado de aparência,
escolhido um adulto qualquer, não precisava passar
por isso!
— Ainda acho que assim chama menos
atenção, os que estão atrás de você esperam uma
maga negra, não uma garota com uma criança. ―
Ela suspirou e assentiu, arrastando o prato em
minha frente e me deixando comer.
— Sem bagunça entendeu? ― disse ela um
pouco mais alto para que as pessoas mais próximas
escutassem, ela ainda me encarava, divertindo-se
demais com o papel que estava fazendo.

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Capítulo 6

Nikella estava satisfeita e radiante após o


almoço, ela deixou que eu andasse para fora da
cidade ao lado dela, mas em nenhum momento
soltou minha mão. Era irritante estar no corpo de
uma criança e ter que me movimentar e agir como
tal, atrasando nossa saída da cidade, mas Nike não
parecia incomodada com isso, ela andava olhando
tudo, observando com olhos curiosos e cheios de
interesse, absorvendo tudo ao redor. Ela estava
definitivamente diferente de quando a vi em Ciartes
a primeira vez, não apenas fisicamente, já que sem
os sóis e o calor extremo, sua pele havia perdido o
tom bronzeado, revelando o quão clara sua pele
realmente era: um tom branco porcelana quase
como uma malvarmo. Por mais selvagem que ainda
parecesse, a Nikella que existia em suas memórias
era outra, a de agora era mais segura, mais serena,
embora ainda fosse uma menina audaciosa e de

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personalidade forte.
Passamos quase duas horas rodando pela
cidade, para evitar chamar atenção, Nike parou em
barracas aleatórias no mercado central e por vezes
parou como se fosse para verificar se estava tudo
bem comigo, nessas horas ela confirmava comigo a
localização dos assassinos enviados por Hobner e
Ausiet para caçá-la. Pelo menos três deles haviam
desconfiado de nós e mesmo com todos os sinais de
“normalidade” que tentávamos passar, eles
continuavam nos seguindo a uma distância
razoável.
— Deixe que venham ― disse Nike quando
nos aproximamos da saída leste ― Se eles saírem
atrás de nós, pode ser uma oportunidade para uma
conversinha civilizada! ― Ela sorriu de forma que
teria feito a alma de qualquer um congelar, seus
dedos deslizaram sobre a perna, onde o par de
adagas de vitrino estavam escondidas sob o vestido,
que por sorte fiz parecer solto da cintura para baixo
e não marcava as perigosas armas escondidas ali.
— Você poderia ter se tornado uma das
mestras da ACV se tivesse permanecido em Ciartes

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— falei.
— Se tivesse ficado em Ciartes, eu teria me
tornado capitã da guarda real... Ericko chegou a me
dar o distintivo... ― Um traço de tristeza brilhou
em seus olhos.
— Pode ser guarda real aqui também, ao que
me pareceu, essa é a intenção de Aliver, se você
não representar ameaça, claro! ― Ela arqueou as
sobrancelhas e soltou uma gargalhada divertida.
— E eu represento uma ameaça, na sua
opinião? ― Ela olhou distraidamente por cima do
ombro disfarçando, mas analisando onde os
perseguidores estavam.
— Depende... as sombras, essas sombras que
te rodeiam, se você perder o controle sobre elas...
— Isso não vai acontecer! ― Sua expressão
ficou dura. ― Eu prometi, ninguém mais vai tomar
o controle sobre minha mente! Nada nem ninguém!
— Fiz um breve aceno com a cabeça concordando
com ela.
Passamos pelos portões que levavam a uma
estrada larga de pedras, Ira vinha atrás de Nikella,
montando a guarda e preparado para atacar a

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qualquer sinal de perigo. Minhas marcas acenderam


quando fiz menção de mudar de aparência e voltar
ao normal, mas ela acenou negativamente.
— Por quê?
— Eles não representam ameaça. ― Ela
parou de andar e se ajoelhou em minha frente e
começou a arrumar o casaco que eu vestia,
pretendia levar o disfarce até o limite. Um dos
assassinos que eu não reconhecia saiu pelo portão
sem ser seguido pelos outros dois e veio em nossa
direção, parando à uma curta distância, a mão
pousada sobre o punho da espada. Era um
salamandra, a pele avermelhada e os olhos brancos
característicos não deixavam dúvidas, mesmo sem
os sentidos, podia perceber a cor de sua pele e
olhos por baixo do grosso capuz de linho negro que
vestia.
— Olá, senhorita! ― exclamou ele num tom
ríspido, Nike desviou os olhos de mim para ele e
sorriu com uma doçura que me chocou, parecia ter
se transformado em outra pessoa.
— Olá, senhor... é um guarda da cidade? Fiz
algo errado? ― Ela endireitou o corpo para encará-

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lo.
— A conheço de algum lugar? ― Ele deu um
passo mais para perto, ficando a menos de meio
metro dela, fazendo com que meu sangue gritasse
em alerta, mas a pressão que ela fazia em meu
braço indicava que ainda não era hora de agir.
— Não me lembro do senhor... algum cliente
da Solaris, presumo? -― Ele ergueu as
sobrancelhas, mostrando as presas afiadas num
sorriso enorme.
— Nikella Modjim! Sabia que reconhecia
seu rosto! ― Ele puxou a espada e mostrou a ela.
Era uma bela espada trabalhada em aço de brelim,
obsidiana e marfim, uma obra de arte que deveria
estar exposta em uma galeria, não sendo usada para
matar pessoas.
— Lembro-me dessa espada! Tanarian, não
é? ― Ela sorriu e apertou a mão do salamandra, ele
continuava encarando-a com expressão boba no
rosto.
— Isso mesmo! ― Ele pareceu feliz demais
em ser reconhecido por ela ― Eu era um dos
guardas de Hargas, mas decidi sair quando ele foi

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morto por voc... por aquele metamorfo com a sua


aparência. ― Ele suspirou.
— Sinto muito, se estivesse lá teria protegido
o rei! ― Ela fez o sinal de Ignis, colocando a mão
sobre o peito.
— Tudo bem, não faz mal... já consegui
outro trabalho, estou a serviço de Hobner,
procurando por uma maga negra, mas não quiseram
nos dizer o motivo, apenas temos que capturá-la
viva. Infelizmente ela desaparece nas sombras! ―
Ele bufou e coçou a cabeça, deixando o rosto
descoberto.
— Humm, não sabe que aparência que ela
tem, não é?
— Não, ninguém a viu! Apenas procuramos
por uma mulher coberta por um manto negro e que
se move nas sombras...
— Espero que tenha êxito em sua missão! ―
Nikella aliviou o aperto em minha mão. ― Agora
preciso ir, estou aqui com Ariel em busca de
materiais exóticos, passando umas férias longe do
calor! ― mentiu ela sem nem ao menos ficar tensa
ao fazer aquilo. Tanarian acenou e sorriu para ela,

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mas seus olhos se moveram dela para mim e sua


expressão endureceu.
— Seu filho? ― Ele perguntou franzindo o
cenho.
— Não, claro que não! ― Ela riu. ― Filho
de uma parenta minha, estou cuidando dele por uns
tempos, ela está resolvendo problemas em outro
mundo! ― Ele assentiu ainda olhando para mim.
— Certo então, bom... qualquer coisa, se
souber dessa maga negra, por favor, me avise! ―
Ele fez um breve aceno. ― Mande lembranças ao
rei Ericko quando voltar, ele me disse antes que eu
saísse que você substituiria Claus. ― Ele mantinha
a voz casual, um pouco mais íntima do que deveria,
o que estava fazendo com que eu me irritasse cada
vez mais.
— Vou acertar isso ainda, não está definido
que eu seja capitã da guarda dele... ― Ela sorriu.
— Nos vemos outra hora, preciso mesmo ir,
Tanarian! Boa caçada! ― Ela acenou para ele por
cima do ombro, já caminhando pela estrada e me
arrastando, não percebi o quanto estava tenso até
que ela me arrastou contra minha vontade para

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longe dele. O salamandra fez um aceno e voltou em


direção à cidade. Olhei para Nike novamente, seu
rosto estava indecifrável e ela estava trancando o
maxilar.
— Será que se ele soubesse que eu sou a
maga que Hobner está caçando, ele teria coragem
de me enfrentar? ― Ela olhou para trás, mas
Tanarian já havia desaparecido pelos portões.
— Você acha que ele hesitaria em te levar até
Hobner só por te conhecer? ― perguntei.
Novamente aquele sorriso assustador desenhou em
seu rosto.
— Eu o venci num duelo no V5... precisamos
enfrentar os guardas do castelo para passar para o
próximo nível daquela vez... claro que ele deve
estar mais forte agora, mas mesmo assim, acho que
ele não teria coragem!
— Você venceu um guarda real para passar
para o V6? ― A olhei espantado. ― Que idade
você tinha?
— Quinze anos.
— Vou mudar minha opinião de agora há
pouco, você não é uma ameaça para Aliver, é uma

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ameaça para qualquer um! ― falei rindo, ela


revirou os olhos, mas acabou rindo também.

Depois de nos afastarmos bastante da cidade


pela estrada principal, ao chegar ao final da floresta
voltei a minha forma normal, deliciando-me com a
sensação de estar de volta ao meu corpo. Nike ficou
observando enquanto eu me alongava, ela mantinha
um olhar impassível sobre mim, mas em nenhum
momento desviou o olhar.
— Gostando da visão? ― perguntei, ela
acenou com a cabeça e um sorriso malicioso
curvou o canto de seus lábios, porém ela ficou
vermelha e revirou os olhos.
— Estava apenas imaginando como faria a
espada, estava te analisando para saber a melhor
forma para ela ― disse ela mexendo na trança,
perdendo-se em pensamentos novamente.
— Eu gosto de machados, na verdade, mas
nunca achei nenhum que fosse realmente bom! ―
falei, ela ergueu as sobrancelhas e sorriu. ― Mas
essa quantidade de vitrino não dá para fazer um
machado longo, ou um par de machados curtos.

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— Sinto muito, realmente não dá! ― Ela


suspirou olhando a barra envolta no pedaço de
tecido.
Peguei Ira e dei a mão a Nike, estávamos
longe o suficiente dos olhos de qualquer um para
poder teleportar em segurança até Vale do Sol,
então fiz com que o círculo aparecesse, poucos
segundos depois de ver o clarão da magia de
teleporte, a cor de outono daquele pequeno mundo
no meio do gelo nos cercou.

Nikella:

Depois que o clarão da magia branca de


teleporte de Caalin nos cercou, me esforcei ao
máximo para não ficar tonta e vomitar, queria
muito saber se era a única pessoa afetada por esse
tipo de magia, pois não parecia que mais alguém
sentia que ia perder o trato digestivo cada vez que
pulava de um lugar para outro magicamente.
Abri os olhos devagar para ter certeza que o
mundo ao meu redor havia parado de girar, porém
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ao olhar em volta, perdi completamente o fôlego.


Estávamos dentro de uma floresta imensa, não
conseguia ver os limites dela não importava para
onde olhasse. Havia tantas espécies de árvores ali, a
maioria com folhas marrons, avermelhadas e
alaranjadas, se aquele lugar era de verdade, então
era outono ali. O cheiro de folhas, terra úmida e
bétulas trazidos por uma suave brisa refrescante,
me fez querer deitar no chão coberto por folhas e
ficar ali para sempre.
— Que lugar incrível! ― falei erguendo a
cabeça e inspirando profundamente o perfume
daquele lugar.
— Bem-vinda ao Vale do Sol! ― Ele sorriu
para mim apontando para o horizonte, onde o sol
iniciava a descida indicando que o entardecer
estava próximo.
— Não sabia que existiam lugares assim em
Vegahn! ― Acima das árvores, havia uma enorme
mandala, uma proteção ao lugar, que era na
verdade uma redoma gigante protegida da neve e
do frio.
— Eu que fiz esse lugar, se você reparar bem

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isso aqui é exatamente igual a floresta de Arcádia,


em Amantia. ― O encarei surpresa.
— Nunca fui lá, só conheci o castelo de
Cristal e o Templo de Fogo.
— Eu nasci em Arcádia, é meu lugar favorito
em Amantia. ― Ele olhava com carinho para a
imensa floresta ao nosso redor.
— Quero conhecer a original um dia! ―
Sorri admirando aquela paisagem ao máximo.
— Aqui ficava a antiga cidade do Vale das
Sombras, a cidade foi destruída na última grande
guerra. Depois que despertei, o rei me deu essas
terras como pagamento à proteção que eu dei ao
reino, então fiz esse lugar ficar assim. ― Ele
explicou abaixando-se e pegando um punhado de
terra escura com as mãos.
— Então, estamos sobre uma mina de
vitrino? ― perguntei sentindo a vibração sutil sob
meus pés.
— Sim... eu a lacrei quando criei isso, mas
atrás de minha casa existe uma cachoeira, e passado
pelo véu de águas existe uma grande quantidade de
Vitrino azul, iguais a esses dos seus braços. ―

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Olhei para as garras azuladas que se projetavam


para fora de meus dedos, onde antes havia unhas
curtas e bem cuidadas.
Eu odiava unhas longas, pois sempre me
feria com elas, mas tive que me adaptar a essas
garras, pois nada que eu tentasse conseguia lixá-las
ou gastar as pontas perigosamente afiadas. Caalin
começou a andar, seguindo uma estreita trilha de
pedras marrons e amareladas, que estava ao lado de
um rio de água cristalina. Conforme caminhávamos
o sol nos banhava com sua luz alaranjada, passando
entre os galhos das árvores e fazendo longas
sombras se projetarem pela floresta. Ainda estava
frio, mas não o suficiente para me fazer usar um
casaco.
Andamos por mais ou menos meia hora até
avistar uma casa de madeira em meio às árvores,
ela não era grande, era bem simples e rústica na
verdade, mas não deixava de ser bonita. A madeira
havia sido coberta por hera em algumas partes, o
que deixava a casa com aparência antiga.
Subimos os três degraus da varanda coberta
até a porta que não estava trancada, apenas

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encostada, e, como na Árvore do Fogo, não havia


nenhum sinal de poeira. Caalin colocou o alforje
sobre o banco de madeira na varanda antes de
entrar, respirei fundo e o segui para dentro. A casa
tinha um agradável aroma de canela e plumeria, a
cozinha e a sala eram separadas por um longo
balcão de pedra esverdeada polida.
— Fique à vontade para olhar tudo por aí! ―
disse ele indo até a cozinha, Ira o seguiu enrolando-
se em seus pés, provavelmente pedindo por comida.
Observei tudo em volta, cada detalhe da decoração,
os castiçais de prata e pedras sobre uma grande
lareira no meio da sala, ao lado dela uma estante
cheia de livros, percorri os dedos sobre os títulos,
alguns dos quais eu já havia visto na biblioteca da
ACV, embora a casa tivesse luz elétrica igual às
casas em Ciartes, a maioria das luzes vinha de velas
espalhadas pela casa.
No canto da sala havia uma porta que levava
a um corredor onde havia três portas de madeira, a
última levava a um banheiro com uma pequena
banheira de louça amarela com detalhes de vidro.
As outras duas portas eram quartos, um com uma

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cama de casal, uma poltrona e uma estante com


livros e o outro com uma grande cama com dossel
de pedras brancas, que pareciam estar empilhadas
umas sobre as outras e faziam um arco fechando-se
no topo da cama. Saí de fininho de volta para a
sala, onde Ira estava deitado sobre o tapete. A casa
era mais fria do que podia imaginar, e isso não me
incomodava, muito pelo contrário, já havia me
acostumado com o frio de Vegahn, talvez não
conseguiria dormir se estivesse no calor
novamente.
Caalin estava na cozinha, ele havia colocado
algo no forno e passou por mim, entrando pela
porta no canto da sala em direção aos quartos.
Peguei o ovo na mochila e o observei com cuidado,
o dragão estava tentando chocá-lo da forma que ela
sabia, mas por ser um ovo híbrido aquela forma de
chocar poderia estar errada. Talvez Caalin tivesse
razão e o ovo não chocaria, mas os dragões
marinhos nasciam nas águas quentes, próximos aos
vulcões submersos. Precisava pensar em um jeito
de fazê-lo chocar de qualquer maneira...
Ouvi o som de água, Caalin devia estar

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tomando banho, o imaginei dentro da banheira e


senti o rosto corar, para desviar minha atenção do
som das águas, peguei Ira no colo e fiquei coçando
sua cabeça, em resposta ele ronronou alto e
pressionou o focinho contra minha bochecha.
Ele apareceu novamente vestindo apenas um
moletom, com o cabelo amarrado num coque sobre
a cabeça e uma toalha sobre o ombro, não
conseguia acreditar em como ele era bonito, porém
tão antigo que não devia me meter com ele, sempre
que o olhava algo soava em minha mente como um
alerta, e isso era o suficiente para me manter à
distância, fora que não conseguia parar de me sentir
culpada, toda vez que olhava para Caalin, que o
desejava, me lembrava de como falhei com Kuran,
lembrar dele fazia algo se rasgar dentro de mim e
por mais que tentasse, não conseguia me livrar
daquela culpa.
Caalin passou por mim e deu um sorriso
casual, foi até a porta de entrada e sumiu pela
varanda, voltou pouco depois com a toalha sobre os
ombros e foi direto para a cozinha, abriu o forno
para olhar o que quer que fosse que colocou lá e o

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cheiro de assado preencheu o ambiente, fazendo


meu estômago roncar.
— Você sente fome o tempo todo? ―
perguntou ele, olhando-me de canto de olho.
— Nem sempre, normalmente quando estou
com sono não sinto fome! ― Ele riu com minha
resposta e voltou sua atenção para preparar o jantar.
Fiquei observando-o se mover, os ombros largos
desenhados e perfeitos, sem nenhuma marca
exatamente como tinha visto na primeira noite na
estalagem, exceto por uma pequena cicatriz de um
corte próximo às costelas.
Ele parecia muito íntimo à cozinha, isso
parecia estranhamente familiar, mas estava me
irritando ficar observando-o de longe sem poder me
aproximar. Não conseguia entender o porquê de ter
me apegado tanto a ele, nem conseguia
compreender o carinho que sentia por ele, a
vontade que tinha de ficar perto dele e isso me
assustava, não costumava me apegar tão rápido a
pessoas que não conhecia. Talvez fosse um
sentimento ligado ao fato de ele me conhecer pelas
minhas memórias ou pelo modo que ele me tratava

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sempre de forma tão gentil. Ele é um malvarmo de


mais de vinte mil anos e, ainda assim, com toda
minha habilidade e anos de treinamento com
Merian, consegui tirar Caalin do sério.
— Do que está rindo? ― Ele se aproximou,
trazendo-me um copo com água. Olhei para ele sem
entender, só então percebi que estava rindo de meus
próprios pensamentos.
— Ah, nada! Estava apenas lembrando de
uma coisa... ― Meu rosto esquentou. ― Com
licença! ― falei levantando-me rapidamente e fui
até o banheiro no final do corredor. Ele não havia
tomado banho ali, pois a banheira estava seca e o
espelho sobre a pia não estava embaçado, na certa
havia outro banheiro no quarto principal. Abri a
torneira, deixando a banheira encher de água
morna, quase fria, tirei o vestido de curandeira e o
pendurei no gancho ao lado da porta, entrei na
banheira e fiquei ali de molho enquanto tentava
colocar todos os pensamentos em ordem.
Era tudo que eu não precisava agora,
começar a ter sentimentos por Caalin. Não queria
alimentar isso, pois poderia feri-lo, embora tivesse

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certeza de que ele era muito poderoso, não confiava


em mim com aquelas sombras tentando me
dominar, fora que ele devia ter muitas pretendentes
na corte de Aliver, não havia espaço para uma
criança, uma caçadora em sua vida.
— É bom esquecer isso, Nike, ou você vai
acabar ficando igual a Asahi! ― murmurei
baixinho para mim.

Caalin:

Graças às memórias de Nike que vi, sabia


que ela não tinha nenhuma habilidade na cozinha,
então comecei a preparar o jantar assim que
chegamos a minha casa. Nike havia ficado sem
graça por algo que fiz, ela saiu rápido demais da
sala e foi para o banheiro. Terminei de fazer o
assado com batatas e fiz uma salada, por mais que
não me desse mais energia comer comida humana,
ainda gostava do sabor que ela tinha, então já que
não me fazia mal, não me importava em comer
também, embora tivesse que sair para caçar mais
tarde.

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Nikella apareceu poucos minutos depois, ela


ainda estava com o cabelo trançado, mas agora
usava um vestido preto de alça, na altura dos
joelhos, o pingente da Árvore do Fogo agora estava
bem aparente ao lado da corrente de sua foice.
Aquele simples ornamento me tirava do sério,
gostaria de tirá-lo dali, mas não consegui ver nada
sobre os sentimentos dela em relação àquele objeto,
também não tinha nada entre nós para que eu
pedisse que ela o retirasse.
— Você gosta de preto, hein! ― falei,
observando o suave movimento do vestido quando
ela se aproximou e sentou-se à mesa, como o tecido
escorregou sobre as pernas quando ela puxou a
cadeira para frente, colocando os pés sobre o apoio
da cadeira e me encarou, os olhos verdes faiscantes
com uma expressão divertida.
— Era meu sonho usar o uniforme negro da
academia, acabei cismando com essa cor... ― Ela
sorriu.
— Por que queria tanto assim ser uma
caçadora? ― perguntei servindo um prato para ela,
que não protestou.

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— A princípio, como você viu, eu queria


apenas me vingar. Mas depois eu queria me tornar
a melhor, provar que podia estar entre os melhores
mesmo sendo apenas humana. ― Ela suspirou e
comeu um pouco. ― Por que sempre os humanos?
— Ela parecia estar perguntando para si.
— Desculpe, o quê? ― Ela me encarou e
ficou corada novamente, como suspeitei, foi apenas
um pensamento alto.
— Ah, é porque em todas as histórias que li,
os humanos eram sempre escravizados por outras
raças, nunca o contrário...
— Talvez porque essa é uma rixa antiga, já
que os humanos tentam destruir todos que são
superiores, que têm mais força ou que podem ser
uma ameaça para eles, mesmo não demonstrando
isso, claro. Alguns mágicos, não todos, tentam
escravizá-los por serem mais fracos, mais fáceis de
serem dominados, os humanos não lutam, não
resistem ao serem capturados e terem os grilhões
em seus braços e pernas. Agora tente fazer o
mesmo com um elfo, um silfo, um metamorfo...
eles irão lutar, irão defender os irmãos! Humanos

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são individualistas, poucos são os que realmente se


importam os semelhantes e estes nunca estão entre
os escravos, quando estão, são os primeiros a
morrer, pois os que colocam os grilhões sabem que
eles podem mover as massas... ― expliquei, ela
havia parado de comer para ouvir minha
explicação. ― Você é uma dessas, igual minha mãe
foi mesmo sendo híbrida. Ela viu a necessidade de
todos e criou os mundos perfeitos para cada
criatura viver e deixou os humanos em paz na terra,
mas Higarath destruiu a harmonia que ela criou e
corrompeu muitas das criaturas que antes viviam
em paz, escureceu seus corações...
— Não diga bobagens, eu não sou assim, não
sou uma pessoa boa, nem de longe seria como ela!
— Ela grunhiu soltando o garfo e pegando a taça de
vinho que havia servido para mim.
— Por que pensa assim? ― falei observando-
a virar o vinho em um gole.
— Sei que não sou... ― Sabia que ela estava
pensando apenas nele, em como o feriu. Devia
dizer que ele estava vivo, mas não queria que ela
voltasse correndo para Ciartes, tinha certeza que ela

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faria isso e preferia que ela ficasse um pouco mais,


de preferência, para sempre.
— Só o fato de ter se tornado uma maga
negra e não ter sido controlada pelas sombras já diz
muito a seu respeito, as sombras só tomam os
corações escuros. Se não houvesse nada de bom aí,
elas teriam te controlado no momento em que a
marca do selo sombrio apareceu. ― disse tomando
a taça de sua mão a enchendo, mas não deixei que
ela pegasse. ― Isso não é pra crianças! ― Bufei
quando ela esticou a mão para pegar a taça
novamente.
— Malvado! ― Ela fez biquinho, quando
percebeu que o truque não funcionou comigo, ela
bufou e comeu mais.
— Gostou?
— Está muito bom! Quando aprendeu a
cozinhar assim?
— Faz muito tempo, foi meu avô que me
ensinou... O elfo que adotou minha mãe, na
verdade!
— Um rei cozinheiro! ― Ela riu ―
Interessante!

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— Mais interessante ou devo dizer estranho é


uma mulher que não sabe cozinhar! ― retruquei.
— Para ser sincera, eu nunca tentei
aprender... Estava focada em outras coisas!
— Entendo...
— Meu irmão dizia que eu nunca ia me casar
por isso, ninguém ia querer alguém violenta como
eu e que não sabe cuidar de uma casa!
— Seu irmão é um idiota, não importa o que
a pessoa sabe fazer ou não, o que importa é quem
ela é e o que representa para seu parceiro! Julgar
uma pessoa por suas habilidades é algo que pessoas
vazias costumam fazer! ― falei, Nikella arqueou a
sobrancelha e sorriu, ela havia pegado a taça da
minha mão novamente enquanto estava distraído
falando com ela.
— Mas se as habilidades fossem importantes,
o fato de saber cozinhar te ajudou em alguma
coisa? ― Ela perguntou.
— Muito, na verdade, Mary não sabia
cozinhar nada, nada mesmo!
— Mary?
— Minha esposa. ― Vi seu rosto
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empalidecer ligeiramente quando falei quem era.


— Não sabia que era casado.
— Fui, há muito tempo, antes de Sirius e
Áries responderem ao chamado do círculo. Mary
era uma fada, a princesa de Treezer. Nossos filhos
teriam morrido de fome, pois Mary se transformava
em beija-flor e nunca se alimentava em forma
parecida com a humana. ― O rosto dela ainda era
nítido em minha mente, a pele rosada e os olhos
coloridos, os cabelos curtos de cor azul. Nike
estava olhando para o nada em silêncio.
— E onde ela está agora? ― perguntou com
a voz diferente. Respirei fundo, ainda não era fácil
lembrar daquilo sem me sentir culpado.
— Quando Antares morreu, ela destruiu sem
querer dois mundos, Treezer e Bogkhar, aqui ainda
estava acontecendo a última grande guerra, eu os
tinha mandado ficar com a mãe dela, Frayena, no
castelo das flores em Treezer. Ninguém conseguiu
sair dos mundos a tempo. ― Suspirei ― Ayran e
Lenios tinham a mesma idade, eram gêmeos.
— Sinto muito! ― Nikella apertou as mãos
sobre o colo.

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— Não sinta, eles são os protetores da


guardiã de Mogyin! Embora, não possam sair de lá,
estão a salvo de Higarath, pois Mogyin é o único
mundo que ele não pode entrar!
Nikella se levantou e começou a tirar a mesa.
— O que vai fazer?
— Limpar isso aqui!
— Pode deixar, eu faço isso! ― falei.
— Nem pensar! Eu não sou tão inútil dentro
de uma casa quanto pareço! Só não sei cozinhar! ―
Ela foi até a pia e lavou a louça.
Depois de terminar com a louça, ela sentou
perto da lareira e acendeu o fogo, colocando pouca
lenha, deixando apenas alguns tocos.
— O que está fazendo? ― perguntei me
aproximando, ela mostrou o ovo, depois de mexer
no fogo e deixar apenas brasas, ela o colocou entre
elas, mas puxou as mãos rapidamente.
— Droga.
— Ainda dói muito quando se aproxima do
calor? ― Segurei sua mão, que estava quente e
avermelhada. Ela assentiu e suspirou olhando para
as garras de vitrino.
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— Isso vai passar? ― perguntou ela


encarando-me.
— Sinto muito... é isso que eu sinto no corpo
todo se chegar muito perto do fogo. ― Ela
arregalou os olhos. ― É o que todos os Malvarmos
sentem, nós não detestamos calor, simplesmente
não conseguimos nos dar bem com o fogo.
— Isso não impede de gelo e fogo ficarem
próximos, não é? Sirius e Áries...
— Eles são doidos! ― Comecei a rir. ― Mas
em suas formas humanas, eles não afetam um ao
outro.
— Eu não arriscaria!
— Mesmo se pudesse ficar com Kuran
novamente? ― Me arrependi da pergunta assim
que a deixei escapar. Seus lábios ficaram
pressionados numa linha fina e ela virou o rosto na
direção das brasas.
— Qualquer sentimento que eu tinha por ele
morreu na hora que disse que iria me queimar viva.
— Ela falou num rosnado. ― Seria uma idiota se
depois daquilo eu o perdoasse, ninguém merece ter
alguém do seu lado que não confia em você, que

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não te dá uma oportunidade para se explicar. ― Ela


voltou o olhar para mim, não era raiva que estava
marcado ali, talvez rancor, ou mágoa.
— Me desculpe, eu... ― Ela sacudiu a
cabeça.
— O que me dói foi saber que eu não tive
controle, que eu fiz aquilo com ele e nem tentei
ajudar. Mas eu fui até a mãe dele e Annie, sabia
que elas precisavam de mim. A culpa que me
consome é que ela tinha certeza que eu os
protegeria, ela o confiou a mim e eu não pude
protegê-lo no fim das contas.
— Não era você! ― protestei.
— Era meu corpo. ― Ela suspirou e se
levantou. ― Se não se importa, eu preciso dormir!
— Nikella se levantou, deixou o ovo no calor das
brasas, pegou Ira no colo e seguiu para a porta no
canto da sala, desaparecendo pelo corredor. Devia
ter ficado em silêncio, ou talvez ter dito a verdade
sobre Kuran, testá-la, saber se ela realmente sentia
apenas culpa.

Saí para caçar pouco depois de ter ouvido sua

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respiração ficar calma e ritmada, de ter certeza de


que ela estava dormindo. Dei um baixo assovio
para que Ira me acompanhasse, ele também
precisava caçar. Malvarmos eram pacíficos, apenas
humanos mais fortes e resistentes ao frio, mas
Higarath fez o favor de torná-los amaldiçoados por
serem uma criação de Ayrana.
Ele queria fazê-la sofrer, prejudicá-la ao
máximo atacando seus filhos, assim, os Malvarmos
se tornaram em parte como os vampiros, porém não
sofríamos com a exposição ao sol, mas o calor
extremo poderia nos matar. Ira mudou seu tamanho
e correu ao meu lado para fora da bolha que
protegia a floresta que eu criei. Vale do Sol havia
sido criado em homenagem ao lugar em que nasci,
e que minha mãe deu seus últimos suspiros.
Do lado de fora da proteção, corremos para o
desfiladeiro branco, onde algumas criaturas de
sangue quente habitavam e se escondiam.
— Sem sujeira, Ira! ― sussurrei ao nos
escondermos em uma geleira, um urso polar estava
em uma caverna não muito longe de onde
estávamos, dava para sentir o cheiro à distância,

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aroma doce e fresco da energia pura que emanava


dele.
Fomos rápidos, sem deixar vestígios do
ataque, o urso nem sequer percebeu o que havia
acontecido. Embora preferisse o sangue humano ou
metamorfo, estávamos longe demais de qualquer
cidade para colocar as presas em alguém, já que
atacando o urso, Ira também teria um jantar farto.
Por mais que pudesse viver tranquilamente sem o
sangue, ele aumentava nosso poder, velocidade e
domínio da alma.
Por mais que tivesse a certeza que Higarath
tentaria pegar pelo menos duas das seis Almas
antes de nos atacar, preferia estar prevenido. Não
podia deixar que ele se aproximasse de Nikella, se
ele lhe tomasse a Alma do gelo, não teríamos
esperança. Tinha que haver um bom motivo para
Ayrana lhe dar aquela Alma e eu precisava
descobrir o porquê, a testaria amanhã, testaria seu
treinamento de caçadora, só então poderia ter a
certeza de que ficaria tudo bem.
Voltamos para casa rapidamente, por mais
que somente eu pudesse teleportar para dentro da

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proteção de Vale do Sol, era arriscado demais


deixá-la sozinha, um mago com mais habilidade
poderia facilmente desfazer o bloqueio e entrar ali,
só esse pensamento foi o suficiente para que
corresse de volta a casa e entrasse direto. Fui em
direção ao corredor estreito, abri a porta do quarto
de hóspedes, não sei em que estava pensando ao
colocá-lo ao lado do quarto principal.
Ela estava lá, deitada com o rosto sobre os
braços cruzados e dormia profundamente, os lábios
rosados desenhados num sorriso divertido, o que
quer que estivesse sonhando, era algo alegre. Com
um manto de cabelos negros cobrindo parcialmente
as costas, o vestido havia sido substituído por um
short curto de seda e nada na parte de cima, ela
estava deitada de bruços, por sorte, pois não dava
para ver nada além das costas marcadas expostas. A
janela estava aberta e a brisa suave e fria da noite
entrava por ela fazendo os cabelos se
movimentarem sobre seu corpo como se tivessem
vida própria. Tive que usar toda energia que havia
absorvido para dar meia volta e sair do quarto,
deixando Ira para trás que saltou sobre a cama e se

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enroscou ao lado dela. Queria ir até ela e tocar


aquela pele macia, mas isso iria além e ela não
estava pronta para mim, não era a hora certa para
me aproximar, teria que esperar um pouco mais.
Fui até meu quarto e me deitei, nunca senti
tanta inveja de um felino em toda minha vida, ele
provavelmente estava tocando em sua pele quente e
suave agora, enquanto eu teria que permanecer só.
Fiquei imaginando como seria o gosto do sangue
dela, o sangue da linhagem de Shurin... tive que
afastar aquele pensamento também, para não correr
o risco de acordar no meio da madrugada e ir até
ela, se o fizesse, era bem provável que Nike
tentasse me matar, ela não ia deixar ninguém por as
presas nela, nem mesmo eu.

No outro dia, fiz o café e a acordei cedo para


treinar, queria testá-la, testar o que aprendeu na
ACV, saber se realmente poderia enfrentar
Higarath se fosse preciso. Quando falei que íamos
treinar, ela engoliu o café rapidamente e foi para o
lado de fora, para o meio da floresta, onde os
pinheiros mais altos faziam sombras no lago a

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favor do sol nascente.


— Vai mesmo querer me testar? ― Nikella
era extremamente convencida.
— Eu que deveria perguntar isso! ― falei me
aproximando e lhe entregando uma espada simples.
Ela olhou a espada e torceu o bico. ― Sinto muito,
não temos ferreiros excepcionais como você em
Vegahn, nossas armas são todas “inferiores”! ―
Ela corou e sorriu, girando a espada na mão e
deixando sua foice encostada na árvore mais
próxima.
— Acho que me aposentei, não consigo mais
me aproximar do fogo, então não tem mais como
forjar as armas. ― Pude ouvir a tristeza em sua voz
quando ela disse aquilo, dando um olhar carinhoso
à foice.
— Vamos, quero ver do que você é feita! ―
Nikella mostrou os dentes de forma zombeteira,
mas seu olhar mudou quando ela se posicionou
para atacar, um olhar sombrio, determinado que
causou arrepios em mim, me fazendo lembrar de
um alguém com o mesmo olhar. Girei a espada na
mão e a ataquei, para a minha surpresa, sem usar

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magia, Yinemí, ou as sombras da magia negra, ela


desviou do meu primeiro golpe. Só um teste,
apenas para ver a que velocidade ela conseguia se
mover sem usar a transformação. De novo a
ataquei, com mais velocidade e precisão dessa vez,
movendo a espada na direção do seu pescoço.
Ela não teve tempo de bloquear ou desviar,
apenas parou e não ousou respirar com a lâmina a
milímetros de sua garganta. Bufou frustrada quando
ficou em guarda novamente, e me atacou, ela era
rápida, mais do que podia imaginar e muito precisa
também, porém não conseguia se equiparar a
séculos de treinamento. Depois de mais de sete
tentativas de me desarmar e tendo minha espada a
milímetros do pescoço, ela desistiu jogando a
espada no chão.
— Odeio essa porcaria! ― resmungou
chutando a espada para longe.
— Não consegue usar a espada direito, ou
percebeu que não pode me vencer? ― Ela quase
soltou faíscas pelos olhos ao pegar a foice.
— Não gosto de espadas! ― Ela bufou
girando a foice sobre a cabeça e se posicionando

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novamente. Dei alguns passos lentamente em sua


direção e parei a menos de um palmo dela, tirei as
adagas que ela mantinha nos cintos das pernas,
deslizando meus polegares de leve sobre sua pele.
Ouvi sua respiração acelerar quando me afastei
novamente, apenas uma pequena provocação.
— Não quero que quebre Blumarian com
esse instrumento da morte que você tem aí! ―
falei, ela ainda me observava atordoada, não
entendi o que tinha feito que a deixou assim.
— Disse que não tinha apego nenhum a ela!
— Pois é, mas prefiro que não a quebre! ―
Girei as adagas, mas não me preparei, notei que as
sombras ficavam mais fortes perto dela quando ela
usava Siferath, nome carinhoso que ela havia dado
à foice. “Separadora de almas” parecia mais que
um nome para uma arma mortal, soava mais como
uma promessa, algo letal. Nikella atacou tão rápido
que só tive tempo de formar um escudo com as
adagas, a lâmina da foice havia sido parada a
alguns centímetros do meu rosto, então lhe dei uma
rasteira e pulei para fora de seu alcance, Nikella se
levantou num pulo ágil e novamente estava

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atacando com velocidade mortal, os olhos cor de


vinho e as marcas negras no rosto e ombros
mostrava que ela estava usando o poder do selo.
Ótimo! Queria jogar o mesmo jogo.
Não precisei usar a Alma dos raios, apenas a
transformação de malvarmo, o corpo maior e mais
pesado, porém mais ágil e letal. Ela nem sequer se
assustou quando mudei, apenas sorriu e mudou de
aparência também, se ela não ficava chocada com
minha aparência, eu por outro lado, ficava
completamente chocado com a dela. Nike havia
conseguido dominar a transformação
completamente mesmo sendo híbrida de forma
forçada, ela misturava a transformação de maga
negra com a de malvarmo, os dentes pontiagudos e
o cabelo branco contrastavam com as marcas
negras e os olhos cor de vinho.
— Nem precisa lutar, é fácil assustar os
oponentes assim! ― Sorri. Ela arqueou a
sobrancelha e ficou olhando para seu reflexo no
lago.
— Estou tão mal assim? ― Ela fez um bico.
— Está linda! Mas de uma forma

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assustadora! ― Bati as adagas uma na outra para


que ela voltasse atenção à luta. Ela se aproximou
movendo-se suavemente como uma pantera e
voltamos ao treino, mesmo com a velocidade
aumentada pela transformação, ela ainda não era
páreo para mim, depois de mais alguns golpes em
que a desarmei, sem machucá-la e parei a adaga em
seu pescoço, ela ficou irritada novamente e jogou
as armas para longe, sentando-se no chão. Sentei ao
seu lado e lhe entreguei as adagas, que ficou
brincando com elas.
— Por que todos os seus ataques têm que
terminar com uma lâmina na minha garganta? ―
Ela grunhiu enterrando a adaga que tomou de mim
no chão fofo.
— Vou te explicar uma coisa que não te
ensinaram na Academia, Nike! ― falei fazendo
com que ela olhasse para mim. ― Nós predadores
caçadores e assassinos focamos em acertar o
pescoço, um ponto vital, frágil e de defesa falha
para a maioria dos guerreiros, lembre-se um
predador ou um assassino sempre tem um local
específico na hora de atacar, eles sempre vão no

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ponto vulnerável e vital. ― expliquei colocando as


garras em seu pescoço ― Guerreiros por outro
lado, são treinados em batalhas e tem outro foco,
em que não matem de imediato, para que tenham
tempo de fazer algumas poucas perguntas aos
oponentes antes que estes morram, seus focos de
ataque são tórax, barriga, pernas e braços,
entendeu? ― Ela assentiu afastando minha mão
que ainda estava em seu pescoço.
— Sim, professor! ― Ri de sua provocação.
— Tenho outras coisas para te ensinar
também... ― Ela arqueou uma sobrancelha diante
de meu olhar malicioso, então com o rosto corado,
foi até o lago e pulou na água.

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Capítulo 7

Já estávamos ali há pouco mais de uma


semana, Nikella sempre acordava cedo e ia
verificar o ovo de dragão, mas em nenhum
momento ele dava sinais de que ia chocar e isso a
deixava frustrada. Porém, naquela manhã cinzenta
e armando chuva, fiz exatamente igual aos últimos
dias, fui até o quarto para chamá-la, mas ela não
estava lá. A cama estava arrumada e a bolsa havia
sumido. Ira também não estava ali. Andei pela casa
procurando-a, mas não havia nenhum sinal dela, a
não ser pelo ninho vazio entre as brasas da lareira.
Senti minha pulsação se alterar, mudei de forma e
corri para fora seguindo seu cheiro, não fazia muito
tempo desde que ela havia saído, talvez algumas
horas antes de o sol nascer.
Corri na direção de seu rastro e por sorte a
encontrei próxima a cachoeira, ela estava ao lado
de uma fornalha, sobre o fogo intenso havia um

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globo, não de vidro, mas de vitrino com água


fervente e apenas um pequeno buraco na parte
superior, onde saia uma forte rajada de vapor.
Nikella estava de longe controlando o fogo com
magia. As marcas negras acesas em seu corpo
deixavam isso bem claro. Mesmo à distância que eu
estava do fogo, o calor dele fazia com que me
sentisse fraco, ela estava mantendo a temperatura
tão alta quanto podia sem causar danos à barreira
de proteção ao redor da floresta.
— O que está fazendo aí? ― perguntei, as
sombras se agitaram ao redor dela, como se
fizessem uma barreira ao seu redor, Nike apenas
sorriu, sua pele brilhava com o suor e parecia estar
sentindo dor ao manter aquele fogo.
— Chocando o ovo.
— O ovo está dentro daquilo? ― Apontei
para o globo de vitrino sobre o fogo vermelho.
Nike sorriu e assentiu. ― Ele vai cozinhar!
— Essa é a ideia! ― Ela deu uma gargalhada
maligna.
— Ficou louca, só pode! ― Tentei me
aproximar dela, mas o calor onde ela estava, mais

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próxima ao fogo, era intenso demais. Imaginei a


dor que ela estava sentindo àquela distância das
chamas.
— De onde tirou essa ideia? ― perguntei
ficando mais próximo possível da água.
— Os dragões marinhos são chocados
próximos às fendas de Holon, em Amantia, numa
espécie de vulcão submarino. As águas lá são muito
quentes e tem uma pressão elevada, como esse aqui
não queria chocar pelas brasas, acredito que choque
assim! ― explicou ela aumentando ainda mais o
fogo e soltando um baixo grunhido.
— Nike, cuidado ou vai se queimar! ―
alertei tentando me aproximar, mas ela estendeu a
mão para que eu ficasse longe.
— Está tudo bem! ― Era óbvio que não
estava, seus braços estavam vermelhos, o vitrino
não se derretia mais quando era aquecido uma
segunda vez, mas podia ficar tão quente quando
qualquer metal em ponto de fusão com a simples
proximidade ao calor.
— Sabe que isso pode durar dias, não sabe?
— Ela me olhou de soslaio.

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— Eu sou bastante teimosa!


— Seu corpo vai aguentar? Dias seguidos
mantendo esse fogo assim com o poder?
— Eu aguento! ― Ela resmungou, mas seu
olhar dizia outra coisa, ela já estava exausta, devia
estar naquilo desde o começo da madrugada. Ela
cruzou os braços e sentou no chão, mantendo os
olhos vinho fixos no fogo, o mais estranho era
como ela estava conseguindo manter o fogo aceso
tendo o Yinemí no corpo, ele devia estar lutando
contra ela e retirando toda sua energia para fazê-la
sair dali. Ou ela não havia percebido isso ainda ou
estava teimando com o poder também.
Fiquei por quase meia hora parado, olhando-
a na mesma posição concentrada, focada em fazer o
ovo chocar, ela parecia cada vez mais cansada,
respirava com dificuldade e estava apoiando o peso
do corpo nas mãos.
— É melhor parar, Nike! Esse ovo não vai
chocar! ― falei indo até ela mesmo contra minha
vontade por causa do intenso calor que vinha dali,
quando segurei seu braço, notei que estava tão
quente que poderia queimar sua pele. Ela estava

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fazendo com que sua energia passasse através do


vitrino em seus braços, estava convertendo a
energia da Alma do gelo em calor. Fiquei
boquiaberto e me recusava a acreditar que uma
criança, apenas uma menina tinha tal conhecimento
sobre os poderes que tinha para fazer aquilo,
mesmo para magos experientes e poderosos,
converter um poder Elemental em outro, era quase
impossível.
— O que você é afinal? ― perguntei me
ajoelhando ao lado dela e encarando-a.
— Parente de um doente psicopata... ― Ela
suspirou. ― Eu fiz uma coisa muito errada, Caalin.
— Ela me encarou com os olhos tristes, quase
pedindo perdão.
— O quê...
— Eu estava acordada quando você viu
minhas memórias, algumas eu não permiti que você
visse, outras você simplesmente conseguiu passar
por meu bloqueio e as viu... ― Ela devia estar
falando das memórias com Kuran, pois seu rosto
ficou em um leve tom avermelhado. ― Mas
quando as memórias chegaram perto do que

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aconteceu diante da Árvore do Fogo, eu fiz questão


de te expulsar de minha mente.
— Nike? ― Ela fechou os olhos e pressionou
as mãos contra o peito com força.
— Quando eu matei Fairin, eu tomei, roubei
todas as suas memórias, todas as lembranças e
conhecimento que ele tinha. É por isso que sei tanto
sobre esses poderes e como usá-los, ele era um
mago negro também, eu roubei dele o
conhecimento para manter as sombras sob meu
controle! ― As palavras saíram trêmulas, ela
estava quase chorando. Mesmo com todo calor que
emanava dela, eu a abracei.
— Nike, você é simplesmente um gênio!
— Um gênio?
— Claro! Foi muito inteligente isso que você
fez! Você pode fazer coisas maravilhosas com tudo
que absorveu dele! Usar o conhecimento que ele
tinha para fazer o bem, ao invés de fazer o mal!
— Mas e se eu não conseguir tomar as
decisões corretas? E se for influenciada pelas coisas
que vi, pelas memórias que ele tinha...
— Você só precisa tirar de sua mente tudo de
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mal que ele fez, concentre-se nas memórias ruins e


as mande embora. Use seus poderes para se
desfazer do que não te faz bem! ― Ela olhou para
mim por um longo tempo e por fim assentiu. As
chamas na fornalha diminuíram aos poucos, ela
finalmente havia desistido de fazer o ovo chocar.
Porém, ela se levantou e foi direto em direção a
fornalha e tocou na bolha de vitrino que ainda
fervia, soltando vapor para todos os lados.
— Ei! ― gritei em alerta, aquele vapor
poderia fazer sua pele derreter, mas ela me ignorou,
só então percebi que o chão aonde ela havia pisado
estava congelado. O fogo havia desaparecido e a
bolha de vitrino estava congelada, como um
pequeno globo de neve, Nike puxou uma adaga e
bateu de leve com o cabo na bolha, fazendo-a
rachar e esfarelar em suas mãos. Ela tirou o ovo
dali e veio em minha direção, sentou-se novamente
de pernas cruzadas e colocou o ovo entre elas. Ele
ainda estava muito quente, mas ela não se
importou, apenas ficou olhando para o ovo rajado
de preto e azul no colo.
— Acha que é um menino ou uma menina?

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— Ela quebrou o silêncio depois de longos minutos


admirando o ovo.
— Sinto decepcionar você, Nike, mas acho
que isso é um ovo cozido! ― falei tentando não rir.
Ela me deu um soco de leve no braço, mas não
tirou os olhos do ovo. Quando ia chamá-la para ir
para casa almoçar, ouvi um estalo. O ovo se mexeu
em seu colo, fazendo vários estalos, novamente a
olhei espantado.
— Se eu ganhasse uma moeda de ouro cada
vez que você me olha assim, eu estaria rica agora!
— disse ela sorrindo e girando o ovo com as mãos,
ajudando a casca a se soltar.
— Eu devia te levar numa taverna que tenha
jogos de azar, isso sim! Sairia de lá muito mais rico
que Aliver! ― Fiquei em silêncio logo após isso,
observando o ovo chocar e de dentro dele sair um
pequeno dragão negro de olhos azuis. Ele tinha três
bolinhas azuladas translúcidas na testa, cheias de
um líquido pegajoso que se movia cada vez que ele
virava a cabeça. Com cuidado, Nike retirou o resto
da casca ainda colada nele, seria nojento se não
fosse ela que estivesse fazendo aquilo, com um

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carinho quase maternal.


— É uma fêmea! ― Ela riu. ― Aqui, a
cauda termina com espinhos espetados para dentro!
— explicou segurando de leve a cauda e mostrando
os espinhos longos afiados e negros na ponta da
cauda escamosa, logo em seguida limpou o
dragãozinho com um lenço úmido.
— Você seria uma ótima mãe! ― falei
quando ela terminou de limpar o pequeno dragão e
o aninhou no colo. O sorriso em seu rosto sumiu e
logo imaginei ter dito algo errado.
— Não seria não.
— Por que acha isso? ― Ela suspirou e
puxou a blusa molhada pelo suor para cima,
descobrindo a barriga e mostrando uma cicatriz
fina, que ia desde o lado direito do umbigo para o
lado esquerdo em direção à perna e sumia dentro do
short. ― O que foi isso? ― perguntei ainda
olhando para o local da cicatriz mesmo após ela ter
coberto novamente.
— Quando eu tinha uns treze anos fui pega
numa travessura por Candace, a inspetora da ACV.
Como castigo ela me fez ficar junto com a guarda

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da noite sobre os muros da academia. Estava tudo


tranquilo até que uma movimentação estranha
chamou atenção dos guardas na floresta em volta
dos muros e alguns deles desceram e me deixaram
sozinha na ala leste, disseram que se eu ouvisse
qualquer coisa estranha ou caso algo se
aproximasse, era para eu dar o alerta. ― Ela parou
de falar e ficou mexendo na cabeça do dragãozinho,
que parecia estranhamente confortado por aquele
toque nada convencional. ― Três Aswangs
pularam sobre o muro pouco depois que os guardas
saíram, eles queriam entrar na academia e eu estava
no caminho. Eu corri para dar o alerta, mas fui pega
pouco antes de tocar a sirene, consegui apenas
gritar alto o suficiente para alertar os caçadores que
saíram dali. Aqueles demônios não gostaram nada
do meu alerta, um deles cuspiu uma massa esquisita
e esverdeada que atravessou meu corpo, não sabia
que aquilo era a língua dele, acho que deitar em
uma cama de brasas com esses vitrinos nos braços
seria confortável perto da dor que aquilo causou. ―
Senti como se todo meu corpo tivesse ficado
dormente quando ela disse aquilo.

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— Uma ferida de Aswang é quase impossível


de curar! ― falei, ela assentiu devagar.
— Vienni, a curandeira da academia disse
que eu tive muita sorte de chegar com vida na
enfermaria, eles me levaram até as instalações de
cura da Cidade do Sol, eu não lembro de nada
depois de entrar lá. Só me lembro de quando
acordei dias depois, uma das curandeiras me
dizendo que eu nunca iria ter filhos. Para uma
criança aquela não era uma notícia ruim... bom, não
me importava muito com aquilo antes e não me
importo agora, não faz diferença! ― Mas seu olhar
dizia outra coisa, era algo que lhe tocava o fundo da
alma, que a entristecia profundamente. ― Uma
mulher que não sabe cozinhar, não pode ter filhos.
— Riu sem nenhuma alegria. ― Mas olha o lado
bom, sei fazer armas legais! ― Ela colocou o
dragãozinho sobre uma manta e andou até a beira
da cachoeira, pegando algo dentro da água com
certa dificuldade.
Ela tirou um machado de dentro da água,
quase do tamanho de sua foice, com o mesmo
trabalho no cabo, mas com uma corrente mais

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grossa e uma fina trança de cabelo enfeitando o


cabo até o alto, onde duas lâminas perigosas do
formato de meias luas invertidas foram trabalhadas
com desenhos de runas antigas, um texto gravado
nas lâminas. Na outra ponta, uma ponta de lança
como em sua foice também, porém mais longa e
com o formato de uma flor de lis.
— O que é isso? ― perguntei estendendo a
mão quando ela o ergueu com dificuldade para
colocá-lo em minhas mãos. Só então, notei porque
era tão pesado, dentro das lâminas do machado,
havia cristais azuis de purificação das montanhas
de Vintro.
— Você disse que gostava de machados,
então, entrei na cachoeira, peguei mais vitrino e fiz
esse... estava meio sem ideias e o fiz parecido com
Siferath, mas se não gostou, posso fazer outro!
— É incrível! Maravilhoso! ― O girei no
punho, adaptando a força para conseguir segurá-lo
sem dificuldade.
— Que bom que gostou!
— Sielem... ― falei.
— O quê? ― Ela pegou o dragãozinho no

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colo e me encarou confusa.


— Destruidor de mentes. Só para o nome
combinar com sua foice também! ― falei sorrindo
passando a mão novamente sobre as lâminas
gêmeas.
— Não se pode destruir mentes com uma
arma física! ― ela resmungou.
— Também não se pode matar Almas com
uma arma física! E sim, quem olhar para esse
machado vai ter a mente destruída antes do corpo!
— Sorri para ela. Aquela arma deve ter levado
horas de trabalho, ela poderia ter feito com magia,
mas havia moldes em madeira embaixo da
fornalha, o que me fez ter certeza de que ela os fez
à mão. ― Te deu muito trabalho, não foi?
— Nenhuma obra de arte fica perfeita sem
esforço! ― Ela piscou para mim e caminhou pela
trilha de pedras em direção à casa. Sorri novamente
e a segui com Ira em meu encalço. Enquanto
andávamos o dragão espirrou, cuspindo uma grande
quantidade de ácido que incendiou ao tocar o chão.
Nikella deu um pulo para o lado saindo do alcance
das chamas azuis e me encarou assustada.

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— Ela tem aparência de um dragão de fogo e


os poderes de dois dragões misturados! Perfeita
para você! ― falei rindo da sua cara de assustada.
— Como vai chamá-la?
— Docinho! ― disse ela sorrindo.
— Está brincando, né
— Claro que não, ela é brava! Olhe a cara
dela! ― disse ela virando a cabecinha do dragão
para eu ver.
— Por isso mesmo! O nome não tem nada a
ver com ela!
— Ira é manso, mais manso que um gato
doméstico e tem o nome de Ira, então não reclame
de Docinho! ― Ela fez um bico e andou mais
rápido em minha frente, fiquei observando-a
desaparecer na trilha entre as árvores e ri.
Novamente girei o machado na mão admirando-o e
o transformei em um pingente, acelerando o passo
para ir atrás dela.

Quando estava anoitecendo, saí para caçar


novamente, deixando Ira com Nikella e parti para o
desfiladeiro branco. Iríamos partir para o castelo na
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manhã seguinte, não queria sair me sentindo


insatisfeito, mas sentia que deveria levá-la logo ao
rei, ou ele podia mandar Zion atrás de nós e era
tudo que não precisava, Zion e Nikella no mesmo
aposento, por mais que soubesse que Nike não faria
nada, afinal, não tínhamos nada, Zion poderia
começar a provocá-la, não havia testado o limite de
paciência de Nike nesses últimos dias, coisa que
deveria ter feito, torci para não me arrepender de
ter deixado isso de lado.

Ao voltar para casa, ao me aproximar da


porta de entrada, escutei ganidos de Ira e gritos de
Nikella, aquilo foi suficiente para fazer meu sangue
congelar. Corri para dentro com o meu novo
“brinquedo” na mão, o longo machado de vitrino
que ela havia feito para mim, estava pronto para
usá-lo e quase arranquei a porta ao passar por ela,
mas a cena que vi, era impossível de descrever.
Nikella estava segurando a boca de Ira,
tentando soltar uma massa amarelada dos dentes
dele a todo custo, enquanto ele se debatia
desesperado e esfregava o focinho com as patas

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tentando soltar aquilo dos dentes. Por fim, Nike


usou magia e fez com que aquela bola grudenta
desaparecesse, Ira se acalmou e caminhou
cambaleante até a tigela de água, ficando sobre ela
até acabar com todo líquido do recipiente.
— Céus, o que houve aqui? ― Nike não
queria me encarar, seu rosto estava vermelho
quando ela foi até a pia e fez com que a louça
ficasse limpa com mágica, depois se debruçou no
balcão e pegou uma garrafa de vinho, virando todo
de uma vez.
— Nada...
— Você deu cola de madeira para ele comer?
— perguntei olhando a massa amarelada e grudenta
no chão. Ela me lançou um olhar letal, pegou um
pedaço de pano e recolheu aquilo.
— Estava tentando fazer um macarrão... acho
que deu errado! ― A olhei incrédulo.
— Acha? Você deu uma cola de macarrão
para ele comer! ― Explodi em gargalhadas fazendo
com que seu rosto ficasse ainda mais vermelho.
— Ah! Me deixa em paz! ― Ela me
empurrou para fora do caminho e foi para o quarto.

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Mesmo assim não conseguia parar de rir. Ira estava


encarando-me com cara de irritação, ele
provavelmente tinha noção do que estava fazendo
quando aceitou comer aquilo, e eu a magoei. Levei
Ira para fora, para caçar também, era melhor deixar
Nike sozinha alguns minutos antes de tentar me
desculpar, se tivesse ido de imediato ela nem
sequer me ouviria.
Depois que Ira pegou uma rena e a devorou
em poucos minutos, voltamos calmamente para a
barreira. Não havia percebido que as horas
passaram tão depressa, mas já passava da meia
noite quando entramos em casa. O silêncio era o
mesmo de todas as noites, mas algo me
incomodava, as sombras estavam mais densas, mais
profundas e frias do que de costume.
Fui direto para o quarto onde Nike deveria
estar dormindo, mas a encontrei sentada no chão
embaixo da janela, com o corpo coberto de marcas
negras, olhava distraída para o nada e havia um
brilho maligno em seu olhar, só então notei que
seus olhos estavam cor de vinho, e ela movia a
adaga discretamente nas mãos, a camisola curta que

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usava havia escorregado deixando a maior parte das


pernas a mostra, mas era com seu olhar que estava
preocupado. Dei um passo em sua direção e ela
ficou de pé com a cabeça erguida para conseguir
me olhar direto nos olhos.
— Nikella, você está se sentindo bem? ―
Ela apertou meu braço com força, senti as garras
espetando a pele, mas não ousei tirar os olhos dos
seus, levei uma mão até seu rosto e deslizei a palma
pela sua bochecha quente, ela respirou fundo e
desviou os olhos, soltando a arma sobre o criado
mudo ao lado da cama.
— Às vezes quando eu fico sozinha, elas
falam alto demais, tão alto que eu não consigo mais
ouvir meus próprios pensamentos, eu tenho medo!
— Ela me encarou novamente, com os olhos na cor
normal, mas com medo gravado neles. ― Eu acho
que elas vão con... ― Antes que ela concluísse
aquele pensamento terrível, a segurei e a apertei
nos braços com força, pois talvez se eu não a
segurasse bem firme, aquela menina poderia sumir.
— Não, nem pense em deixar que elas te
vençam! ― falei ― Só você pode decidir se elas te

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dominam ou se você as domina!


— Mas...
— Você é uma caçadora, não é? Você tem
que ser forte, ou vai deixar que as sombras te
transformem? Não desista nunca de lutar, outras
pessoas ainda dependem da sua força! Lembre-se
disso! ― Quando terminei de falar, ela passou os
braços em volta de mim e chorou.
— Promete que se eu tentar machucar
alguém, você não vai deixar? Você vai me parar?
— Aquela pergunta fez com que um bolo subisse à
minha garganta.
— Eu vou cuidar de você, não vai ser preciso
eu te parar, não vou deixar que elas te dominem, eu
prometo! ― sussurrei, ela suspirou e assentiu,
depois se afastou para me olhar novamente.
— Obrigada... ― Ela sorriu, mostrando-me
um sorriso doce de uma pessoa que sempre se
mostrava dura, o sorriso mais lindo que vi em toda
minha vida. Seu rosto, então, ficou corado e ela se
afastou, virou o rosto desviando o olhar e esfregou
os braços com as mãos.
— É melhor tentar dormir novamente,

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amanhã iremos para o Castelo de Gelo! ― falei


dando um baixo assovio, Ira entrou no quarto já
com o pelo limpo e pulou sobre a cama dela. ―
Vou deixá-lo com você, ele não vai permitir que
elas se aproximem novamente! ― Nike assentiu e o
pegou no colo, agradeceu e depois se deitou, foi um
esforço monumental sair do quarto, a minha
vontade era deitar ali e passar a noite inteira
observando-a dormir, ter certeza que ela ficaria
bem, mas ela não havia demonstrado nada, embora
brincasse às vezes e fosse um pouco ousada em
suas atitudes, ela não deu nenhum sinal de que
permitiria que eu me aproximasse. Ainda não é a
hora de agir, de tomar uma iniciativa com ela,
repeti tentando me convencer a não voltar para o
quarto.

No dia seguinte ao amanhecer, Nike parecia


cansada, entristecida, mas mesmo assim sorriu
quando a chamei para tomar café. Docinho estava
enrolada perto da lareira, de um dia para o outro
seu tamanho havia dobrado, ela havia comido uma
boa quantidade de carne durante a madrugada e

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parecia muito bem, virou o focinho quando Nikella


entrou na sala e ela foi até Docinho e afagou sua
cabeça escamosa, depois veio até a mesa para
tomar café.
— Conseguiu dormir? ― perguntei. Ela mal
respondeu, dando um breve aceno com a cabeça e
puxou uma torrada para seu prato, Ira pulou em seu
colo e ficou deitado lá enquanto ela comia.
— Tive que passar boa parte da madrugada
apagando lembranças de Fairin, algumas delas
estavam me dando pesadelos. Chamá-lo de cruel
era elogio.
— Tão ruim assim?
— Uhum... vi as lembranças do que ele fez
com a Leona, vi minha avó também, ela contou a
ele o que fez com minha mãe e com sua irmã.
— Quer contar? ― perguntei, se ela
lembrava disso, foi uma memória que ela não quis
perder. Mas Nike balançou a cabeça
negativamente.
— Acho que é algo que eu tenho que contar
para outra pessoa antes... ― Nike ficou em silêncio
por um minuto. ― Se algumas pessoas ficarem

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cientes disso.... ― Seu rosto empalideceu e ela


respirou fundo, tomou um pouco do chá e deu um
pedacinho de ovo para Ira.
— E sobre Fairin?
— Ele ia matar Karin, ia fazê-la crescer
rápido em outro mundo e ia tomar o sangue dela e
depois que ele tivesse o poder, ia torturar Leona,
fazendo-a assistir as filhas e o marido morrendo. ―
Ela engoliu em seco.
— E eu achando de Higarath era ruim... acho
que ele foi superado no quesito crueldade. Fez bem
em acabar com Fairin quando teve a chance! ― Ela
me encarou e assentiu com um sorriso torto, quase
sofrido no rosto.
— Bom, temos que ir, não é? ― Ela
terminou o chá e apertou Ira no colo.
— Sim, mas antes que eu me esqueça...
Aliver, ele é excêntrico!
— Como assim? ― Ela parecia curiosa.
— Talvez seja a palavra errada para
descrevê-lo. Aliver é mulherengo, não pode ver
uma mulher bonita! E ainda acha que pode tudo por
ser o rei!
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— Já lidei com esse tipo.


— Mas ele é bem bonito...
— Está preocupado, pois acha que posso
ficar interessada? ― Ela sorriu maliciosamente.
— Ah, por favor! Só quero dizer que não se
sinta pressionada a nada por causa do poder dele!
— expliquei sentindo meu rosto esquentar.
— Ele me venceria num duelo?
— Claro que não! Embora tenha sido
treinado por mim, mas duvido muito.
— Então, está tudo bem! Não me sinto
pressionada por gente mais fraca! ― Sem dúvidas
do quanto Nikella era convencida. Ela pegou
Docinho, a colocou no ombro e carregou sua bolsa
no outro braço, havia recolocado o uniforme negro
que marcava cada curva do seu corpo, mas também
mostrava todas as armas e acessórios perigosos que
carregava, infelizmente, não era o suficiente para
assustar Aliver, mas eu cuidaria disso.
Queria ficar ali por mais tempo, ficar perto
dela por mais tempo, mas Higarath não ficaria
parado para sempre, nem Hobner e Ausiet.
Peguei a mão de Nikella quando ela chegou
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até mim, do lado de fora entre as jardineiras, ela


olhou com tristeza para a casa, talvez não quisesse
ir embora também, então se virou para mim e disse:
— Vamos? Temos Doze Mundos para
cuidar! ― Ela sorriu.
Senti-me abraçado pelo vento gelado quando
aparecemos diante da muralha de gelo que separava
o castelo da estrada que levava a Hima. Nikella
ainda estava de olhos fechados, apertados e a boca
numa fina linha quando a olhei.
— Odeio magia de teleporte! ― Ela
resmungou dando um passo para o lado e
respirando fundo.
— A viagem é muito longa de Vale do Sol
até aqui. ― expliquei, quando notei que já estava
tudo bem, comecei a caminhar em direção aos
portões com ela me seguindo.
O portão foi aberto sem ao menos precisar
me identificar, os guardas me reconheceriam
mesmo que eu viesse na forma de algum animal
selvagem, mas não deixei de notar o quão curiosos
estavam com a jovem que trazia comigo.
Logo na entrada do castelo, Zion e Craig

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estavam montando guarda, senti meu estômago


afundar quando Zion sorriu para mim e saiu de seu
posto, caminhando em minha direção.
— Ora, ora! Quem resolveu aparecer! ― Ela
esticou a mão para tocar em meu rosto, mas eu a
afastei com um gesto.
— Aliver me aguarda, então, se puder fazer o
favor de sair da frente...
— Ah, que isso Caalin! Nós temos muito que
conversar! ― Ela forçou uma aproximação, olhei
de canto de olho para Nike, que ignorava a cena
brincando com Docinho, seu rosto estava
completamente coberto com o capuz, impedindo
que Zion visse sua face e que eu visse sua
expressão.
— Não temos nada para conversar, Zion!
Agora se me der licença, preciso ir! ― falei,
tentando passar por ela, que novamente barrou o
caminho colocando as mãos sobre meu peito,
deixando-me ainda mais irritado. Um brilho ao meu
lado me fez desviar a atenção dela para Nike, que
estava com a foice parada a milímetros das mãos de
Zion, prestes a arrancá-las, um olhar perverso

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gravado em seu rosto quando ela baixou o capuz e


encarou Zion, que a olhava com a sobrancelha
arqueada.
— O rei mandou me buscar, vai ficar no
meio da passagem atrapalhando para sempre ou
prefere que eu abra caminho até a sala do trono? ―
Ela soltou um rosnado, as sombras rodeando seus
pés. Zion tirou as mãos com cuidado para que a
lâmina de Siferath não lhe arrancasse a pele, então,
Nike jogou o capuz sobre o manto de cabelos
negros e entrou no castelo, passo após passo, altiva,
firme, como se fosse a dona do lugar. Variações de
humor que me divertiam muito.
— Não sabe ser grosseiro com mulheres, não
é? ― Ela perguntou num tom cortante. Não achei
certo responder, pois não havia entendido aquele
tom de voz.
— Já disse que não gosto de ser grosseiro
com ninguém!
— Com ninguém? Ou não é grosseiro apenas
com mulheres bonitas? ― Eu a olhei de soslaio, ela
estava claramente irritada. Será possível que
estivesse com ciúme de Zion?

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Atravessamos o castelo em silêncio, que era


quebrado apenas pelos ruídos que Docinho fazia,
agora que eu havia percebido, não foi boa ideia
trazer um dragão para o Castelo de Gelo, embora
fosse muito pequena, ainda poderia causar sérios
danos. Paramos na porta da sala do trono, mas antes
de deixá-la entrar, precisava falar com Aliver em
particular.
— Vou entrar, falar com ele e pedir para que
você entre. Tudo bem?
— Tenta não demorar, se alguém me
incomodar eu vou sair atacando! Esse castelo está
me deixando irritada! ― Ela rosnou novamente,
mas assenti e entrei na sala, deixando-a no corredor
em frente a um vitral azul.
Aliver estava caminhando em círculos pela
sala do trono, sendo observado apenas por Toghus,
que não se preocupou em virar o rosto em minha
direção.
— Aliver ― chamei, ele não havia notado
minha presença, mas pareceu muito aliviado
quando me viu.
— Finalmente! ― Ele ergueu as mãos e deu

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uns tapinhas em minhas costas. ― Achei que não


voltaria antes do inverno acabar! ― Ele
resmungou, mas sorriu.
— Tive alguns probleminhas...
— Nós também! Ausiet mandou caçadores
atacarem o castelo duas noites atrás! ― Aliver
bufou e foi sentar-se no trono, pressionando a
cabeça com as mãos.
— E o que houve?
— Eles tentaram me matar, invadiram meu
quarto! Por sorte não estava aqui! Estava em
Hima... ― Ele ficou corado e pigarreou.
— Não conseguiu contato com os aliados do
Sul? ― Meu tom de voz debochado fez Toghus
ralhar.
— Não, não é isso. A filha de Bremir faleceu
alguns meses atrás, ele não disse a ninguém, pois
temeu pela família...
— Entendo.
— Então, encontrou a maga? Conseguiu
trazê-la? ― Ele olhou por cima do meu ombro,
para a porta fechada.
— É sobre isso que quero falar com você...
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Em particular. ― Fiz questão de ressaltar que não


queria a presença de Toghus, após um aceno de
Aliver, ele saiu rosnando e batendo os pés.
— Algum problema com ela? ― perguntou
ele diminuindo a voz.
— Na verdade, o problema é você! ― falei
dando um passo e ficando apenas a um palmo de
seu rosto. ― Eu a trouxe, ela está aqui e está
disposta a te ajudar dependendo do que tem a
oferecer... mas se você fizer algo, alguma gracinha,
ou tentar se aproximar dela de qualquer forma que
não seja profissional, eu vou arrancar sua cabeça e
te usar de alimento para meu glacio de estimação,
entendeu? ― Aliver não parecia muito intimidado,
apenas assentiu e sorriu.
— Que é isso, Caalin? Apaixonado pela
maga negra e está com ciúme de mim?

Nikella:

As sombras pareciam ainda mais vivas


dentro daquele Castelo de Gelo adornado por
enfeites de vitrino azul, um guarda com cara de
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rabugento havia saído de dentro da sala do trono,


pelos detalhes em dourado de seu uniforme azul
marinho, ele devia ser o capitão da guarda. Ele
ficou parado atrás das portas, olhando para mim
sem ao menos piscar, nem sequer me
cumprimentou, apenas ficou ali parado me olhando.
Tinha o mesmo tom de dourado no cabelo e os
olhos cor de vinho da jovem à porta do castelo,
deviam ser parentes, isso explicaria o tom arrogante
que ela falava.
— Perdeu alguma coisa aqui? ― perguntei
ao notar que ele não tirava os olhos do corpete
negro com símbolo da ACV que estava vestindo.
Docinho deu um leve rosnado, tão fofinha que
cocei seu pescoço com minhas garras transparentes.
Ele pigarreou e se endireitou, olhando para
Docinho.
— Não é permitido entrar com essa fera no
castelo, tenho que pedir para que se retire ou me
deixe levá-la para fora! ― disse ele com a voz
rouca e agradável.
— Não vai tocar nela! ― retruquei.
— Sinto muito, mas ele é uma ameaça...

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— Ela não é uma ameaça, EU sou uma


ameaça! ― rosnei girando a foice nos dedos, ele
deu um pulo para trás e puxou a espada, soltei uma
gargalhada ao ver que ele pretendia me enfrentar.
— O que está havendo aí, pai? ― A jovem
estava de volta e vinha com a espada na mão
também.
— Essa jovem se recusa a retirar a fera do
castelo! ― Ele grunhiu puxando uma corrente de
uma caixa de madeira, próxima a porta de entrada
da sala do trono.
— Fera? Me poupe! É um filhote! ―
retruquei afagando a cabeça de Docinho.
— Regras são regras, você não está acima
delas! ― rosnou a jovem dando um passo para
perto de mim com a mão erguida na direção de
Docinho, mas antes que eu pudesse me mover, Ira
ficou em seu tamanho real e soltou um rugido
medonho, fazendo a jovem chamada Zion cair para
trás arrastando-se para longe de Ira. A porta da sala
do trono se abriu, Caalin passou por ela e ficou
olhando para cada um de nós individualmente,
tentando entender o que estava acontecendo ali.

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— Deixe o dragão com ela, é mais fácil


Nikella destruir o castelo se vocês a irritarem, que o
bichinho no ombro dela fazer isso! ― disse ele
fazendo um movimento para que eu o seguisse.
— Agora o nome faz sentido! ― falei
coçando a orelha de Ira em resposta ele bateu o
focinho em mim, quase me derrubando ao chão.
Passei os olhos pela sala do trono, até ver um
jovem sentado no trono de pedras azuis e brancas
encaixadas perfeitamente umas nas outras,
formando uma espécie de quebra cabeças, o
encosto tinha uma fofa almofada felpuda e em volta
era como se fosse um arco de safiras e vitrino, doze
no total, sendo seis de cada. O belo jovem sentado
no trono ficou parado encarando-me da mesma
forma que o capitão da guarda ficou alguns
segundos atrás. Ele passou os dedos entre os
cabelos dourados e sorriu.
— Por Gaia! Nunca vi criatura tão linda em
toda minha vida! ― Ele fez menção a se levantar,
mas algo no olhar sombrio de Caalin o fez ficar
onde estava.
— Nikella Arbarus Modjim, esse é Aliver

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Marchyn, sexto rei de Vegahn ― apresentou Caalin


com a voz ríspida, diferente de sua voz suave e
gentil de sempre comprovando minha teoria de
“gentil apenas com mulheres”. Me curvei
suavemente, só conhecia o cumprimento do Reino
do Fogo, então soltei os braços ao redor do corpo e
lhe dei um sorriso cordial.
— É um prazer conhecê-lo, majestade! ―
falei.
— O prazer é todo meu, Nikella! ― Pude
ouvir o sorriso em sua voz mesmo sem olhar para
seu rosto e a tensão vinda da direção que Caalin
estava. Só podia estar ficando louca, ele com
certeza devia estar tenso com medo que eu ferisse
ou matasse o rei!
— Soube que o rei tinha uma proposta a me
fazer! ― comecei, ele se levantou e veio até mim,
ignorando os rosnados alterados de Caalin. Chegou
perto o suficiente para sentir o cheiro almiscarado
em sua pele, os sentidos de malvarmo, mesmo que
sutis, eram muito maiores que meus pobres
sentidos humanos, Aliver me encarou com os olhos
amendoados e falou:

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— Quero que seja minha nova capitã da


guarda! ― Ele falou sem rodeios segurando minha
mão. ― Caso aceite, você terá todos os privilégios
das damas da corte, e será responsável pela
segurança em meu castelo, e pela minha segurança
pessoal em viagens!
— Quais serão minhas restrições caso aceite?
— Não poderá abandonar a guarda, servir a
outros mestres, nem trair ao seu rei enquanto
carregar meu emblema.
— Quero que Docinho fique comigo no
castelo, se não puder, quero um lugar para ela, que
ela seja bem cuidada e que eu possa vê-la sempre e
treiná-la! ― exigi.
— Quem é Docinho? ― Só então ele a viu
enroscada em meu ombro e deu um passo para
longe de mim, Caalin se aproximou e a pegou com
cuidado. Aliver pigarreou e se endireitou. ― Assim
será, mas antes... quero ver seus poderes! ― Ele
pediu quase num sussurro.
— Aliver... ― Caalin o alertou franzindo o
cenho.
— Tudo bem, Caalin! ― Sorri mudando

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minha aparência e trazendo as sombras até mim,


que se espalharam e tomaram conta daquela sala,
deixando tudo no mais puro breu, apenas a luz que
saía de meus cabelos prateados, das marcas negras
brilhantes e de Siferath podiam ser vistas na sala.
— Bem-vinda à guarda real, Nikella! ―
disse ele com a voz assustada enquanto lhe
devolvia o sorriso.

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Capítulo 8

Depois que Aliver nos dispensou, mandou-


me direto ao alfaiate para que fosse confeccionado
meu uniforme, depois de alguns minutos medindo,
resmungando e anotando tamanhos, a costureira
bufou e me deu um tapinha no ombro, dispensando-
me também, uma criada chamada Luviah me levou
aos meus aposentos, que por cortesia do rei,
ficavam dentro do castelo na ala leste. Como o
castelo era todo de gelo, deixei que Caalin levasse
Docinho para um lugar no lado de fora, garantindo-
me que ele mesmo faria um lugar especial para ela,
depois de ter visto Vale do Sol, tinha certeza de que
ele faria um excelente trabalho.
O quarto para o qual Luviah me levou era
imenso, devia ser maior que a casa que eu vivia em
Ciartes, aliás, o Castelo de Gelo era ainda maior do
que o Castelo de Cristal ou o Castelo do Sol. Meu
quarto era decorado em tons de azul celeste,

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branco, cinza e tinha um agradável aroma de neve e


rosas.
Deitei na enorme cama macia para testá-la e
perdi o fôlego ao olhar para o teto. Aquilo não fora
proposital, tinha certeza disso, o resto do castelo
tinha o teto branco com flocos de neve decorando
toda sua extensão, mas o teto do quarto era de um
azul safira com pequenos raios que iam de uma
extensão a outra, exatamente como os olhos de
Caalin. Virei-me para o lado tentando fazer meu
coração bater normalmente, reparando em outros
detalhes, como os móveis brancos com arabescos
dourados em um padrão floral, lembravam-me as
flores do Jardim do Sol, bufei irritada ao ter minha
mente invadida pelo rosto de Kuran, sua voz, seu
cheiro.
— Pare de tentar aparecer para mim! ―
resmunguei para mim mesma contra os travesseiros
macios, agarrando-me ao frio reconfortante do
quarto.
Não percebi que havia cochilado até ver as
luzes laranja e vermelha se misturarem no
horizonte. Andei até a sacada do quarto e olhei para

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frente, onde um imenso lago congelado podia ser


visto. Não havia ninguém do lado de fora, quando o
entardecer chegava, parecia que tudo do lado
externo perdia a vida nessa parte de Vegahn. Fechei
as janelas e fui até o banheiro, onde uma grande
banheira de porcelana azul aguardava já cheia de
água, não havia notado a presença de Luviah até ela
pigarrear com uma toalha nas mãos.
— Ah, perdão! ― falei curvando-me para
longe dela, que estava tão perto que podia sentir
sua respiração gelada em meu rosto. Assim como
quase todos naquele lugar, ela também era mais de
um palmo maior que eu, seus olhos eram de um
cinza brilhante quase prateado e os cabelos
azulados ondulavam para o coque apertado atrás da
cabeça.
— Estou aqui para ajudá-la ― disse ela com
cortesia forçada.
— Não sou uma dama da corte, sou a capitã
da guarda, não preciso de ajuda! ― murmurei, mas
ela me olhou com desdém e virou para a banheira,
despejando um líquido perfumado na água, o
mesmo que eu sempre usava: hortelã e mel.

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— Não seja tão arrogante, menina! ― Ela


falou vindo novamente até mim e soltando as tiras
do meu espartilho.
— Ninguém te contou nada sobre mim? ―
perguntei num tom doce, tão gentil quanto pude ao
encará-la com um sorriso sarcástico no rosto.
— Não... apenas me mandaram cuidar de
você enquanto estivesse aqui.
— Entendi, Luviah. Agradeço pela ajuda. ―
Segurei firme minha blusa quando ela tentou tirá-
la, exibindo as marcas em minha barriga, ela olhou
a cicatriz e depois me encarou. ― Eu realmente
prefiro fazer isso sozinha ― falei cobrindo a marca
com a toalha. Ela me encarava com um olhar
inexpressivo, sua boca havia se tornado numa fina
linha quando ela desceu os olhos novamente para
onde eu havia coberto a marca.
— Obrigada. ― Ela falou limpando as
lágrimas que começaram a se acumular no canto
dos olhos.
— O quê? ― Fiquei confusa, Luviah ergueu
a manga da blusa, mostrando uma longa marca
vermelha, deixada ali pelo mesmo tipo de criatura

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que havia me marcado daquela forma.


— Eu estava na muralha aquela noite... ―
Ela tirou um pequeno pingente de dentro da blusa.
As espadas cruzadas dos caçadores Venox. ― Se
você não tivesse gritado, dado o alerta, seria o meu
pescoço, não o meu braço, eu havia cochilado na
guarita pouco antes do ataque! ― Ela sorriu
envergonhada.
— Nunca vi um malvarmo na ACV!
— Eu usei magia para me tornar humana, se
estivesse na forma real aquele aswang teria virado
gelo nas minhas mãos! ― Ela projetou as garras
para fora e deu um sorriso feral. ― Obrigada
mesmo! ― disse novamente saindo do banheiro e
me deixando sozinha.
Fiquei na água mantendo meus braços para
fora o máximo de tempo que pude, até que
ficassem dormentes e eu tivesse que sair, Luviah
havia deixado o uniforme sobre a cama ao lado de
um par de botas negras de couro e um manto de
pele de lobo.
Os vesti, amarrei o cabelo em um rabo de
cavalo apertado e desci as escadas longas em

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espiral até a sala do trono, onde Aliver e Caalin


conversavam baixinho, os dois pareciam bastante
tensos quando me aproximei. Toghus nos olhava de
canto de olho, a mim mais que os outros presentes
na sala, alguns homens de aparência importante,
provavelmente a corte de Aliver, sentados em
longas mesas apreciando o jantar enquanto Toghus
me encarava de forma que para ele parecia ser
intimidante, para mim, uma tentativa frustrada de
me assustar, sorri para ele, que não conseguia tirar
os olhos do meu uniforme. Ele era definitivamente
humano, tinha cheiro de humano, as rugas da idade
começavam a lhe marcar o rosto e alguns cabelos
grisalhos despontavam entre as mechas louras.
Ele não parecia ser um dos humanos
imortais, parecia simples e frágil como os humanos
da terra, aquilo me fez sentir pena.
— Nikella, aproxime-se! ― disse Aliver de
maneira formal, diferente de como havia agido
mais cedo, nenhum sorriso, nenhuma demonstração
de sentimentos, apenas permaneceu sério,
sustentando um olhar maldoso de Caalin.
Um malvarmo com uniforme branco surgiu

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ao lado do rei, ele fez um breve aceno quando me


aproximei e fiz uma reverência, então com a voz
grave o malvarmo disse:
— Toghus Fregnert, atual capitão da guarda
real de Vegahn, a partir desse momento o senhor
está dispensado de sua obrigação com a coroa e
receberá as honras pelo seu tempo de serviço ao rei
Cahadris. ― Quando o malvarmo desceu da
plataforma ao lado do rei e foi tirar o emblema do
peito de Toghus, ele empalideceu.
— Majestade! Por favor! Eu tenho servido a
família real desde minha juventude! ― Ele soltou
as palavras quase como se elas o machucassem.
— Toghus, preciso de pessoas que possam
realmente proteger o castelo, proteger a minha
família! O senhor já não tem mais idade para isso!
— explicou Aliver com a voz aveludada. Toghus
adquiriu um tom vermelho brilhante ao encarar
Aliver com fúria e dar um passo para frente, antes
que ele se aproximasse demais, Siferath já estava
em minha mão com a lâmina a centímetros de
Toghus. Ele desviou o olhar de Aliver para me
encarar e tirou a espada.

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— Vadia dos infernos, você seduziu o rei


para que ele te colocasse em meu lugar, não foi! ―
Ele grunhiu para mim, as mãos tremiam no cabo da
espada que ele segurava com força, outros guardas
se aproximaram juntamente com Zion, mas o
rosnado de Caalin fez com que todos recuassem,
inclusive Toghus.
— Não seja estúpido, velho chorão! Acha
que tem peito para me enfrentar? Não é à toa que
esteja sendo substituído! Mal consegue manter a
espada nas mãos! ― debochei, Aliver pigarreou
alto para não rir, mantendo o rosto virado para o
nada. Toghus começou a despejar palavrões para
mim, apenas fiquei em silêncio encarando-o,
precisava demonstrar frieza também, não apenas
minha força.
— Já basta! ― urrou o malvarmo de
uniforme branco, ele tomou o emblema de Toghus
e se virou para mim. ― Nikella Arbarus Modjim,
desse dia em diante você deve honrar, servir e
proteger seu rei, ser fiel à Vegahn e acima de tudo,
ser honesta e verdadeira, a fim de que seu coração
nunca se escureça para seu lar. ― As palavras dele

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encheram minhas veias com algo quente como


brasas, como se algo tivesse reagido a palavra “lar”
dentro de mim. ― Scutum Glaciem! ― disse ele
colocando o broche branco em meu peito.
— Scutum Glaciem! ― repeti fazendo uma
reverência. Toghus teve que ser retirado da sala,
pois estava aos berros xingando e chutando, mas
Zion não foi atrás dele, permaneceu na sala com o
rosto vazio e inexpressivo enquanto me encarava.
Fomos até uma mesa próxima à mesa que o rei
estava sentado junto com sua corte para o jantar.
— Estava certa quanto ao dom de irritar
pessoas! ― disse Caalin depois de alguns instantes
de silêncio, fiz um breve aceno, mas continuei
comendo calada, ao perceber os olhares de Zion
para ele, ela nem tentava disfarçar enquanto tocava
os lábios na beira da taça do cálice de prata como
se estivesse tocando os lábios de alguém, não de
alguém, de Caalin.
— Todos eles respondem a você agora. ―
Ele começou a explicar quando percebeu que eu
não ia dizer nada. ― Você deve verificar a guarda,
os pontos falhos e...

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— Eu sei o que fazer, Caalin! ― resmunguei


quase mostrando os dentes para ele. ― Peço
licença a vossa majestade, gostaria de fazer uma
análise dos postos noturnos ― falei levantando-me
da cadeira após terminar o jantar. Os outros guardas
também já haviam acabado de comer e estavam
apenas conversando, eles se levantaram quando me
viram de pé.
— Dispensada ― disse Aliver com um aceno
casual da mão, mantendo atenção nos homens e
mulheres em sua mesa.
Saí pelas grandes portas de madeira sem
olhar para trás, mas podia sentir o olhar de Caalin
sobre mim, Zion andava ao meu lado com um
sorriso provocativo no rosto, ela era linda, não
havia reparado quando cheguei ao castelo, pois
estava mais encantada com a construção no gelo.
Um jovem que aparentava ser metamorfo
andou ao meu lado, mostrando-me todos os postos
da guarda e onde os soldados da proteção do
castelo se encontravam, por fim, levou-me até uma
sala do outro lado do castelo, onde mais alguns
guardas estavam cochilando, eles se sobressaltaram

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quando me aproximei da mesa cheia de mapas e


papéis e chutei o tampo, que rangeu alto.
— Boa noite, senhores! ― falei, eles me
olharam confusos, depois passaram os olhos no
meu uniforme e no broche em forma de floco de
neve em meu peito e prestaram continência.
— Essa é a nova capitã, Nikella Arbarus ―
disse o jovem metamorfo que eu nem havia
perguntado o nome, me ocuparia disso depois. Eles
murmuraram alguns cumprimentos,
envergonhados, aparentemente a única mulher por
aqui era Zion e agora, eu. Fiz um sinal para que
ficassem à vontade e observei os mapas.
— São as plantas do castelo? ― perguntei.
— Sim, senhora ― balbuciou um dos jovens
virando o mapa para mim, suas mãos estavam
trêmulas, Zion respirou pesado ao meu lado,
quando olhei para ela, ela revirou os olhos e
apontou para as marcações no mapa.
— Esses são os pontos da guarda que
visitamos, essas são as três entradas principais do
castelo. ― Ela começou a mostrar os pontos
enquanto eu os decorava e fazia correções mentais,

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lembrando-me do padrão de defesa da academia em


Ciartes.
— Os seis portões estão protegidos, porém as
guaritas dos muros estão vazias, por quê? ―
perguntei.
— Ni-niguém tenta passar pelos muros de
gelo, capitã! ― disse o rapaz que havia empurrado
o mapa para mim.
— Ah, pelo amor de Gaia, Tristen, ela não
vai te morder! Fale que nem homem, nem parece
um guarda, parece um frango cagão! ― zombou ela
num rosnado para ele, que se encolheu ainda mais,
não sei por que, mas acho que iria gostar dela.
— Diga-me, por onde os invasores entraram
no castelo? ― perguntei.
— Como sabe que houve uma invasão? ―
Zion estava com os olhos semicerrados.
— Escuto bem demais! ― retruquei.
— Não sabemos por onde entraram! ― Um
dos soldados respondeu.
— O castelo não tem uma mandala de
proteção contra teleportes diretos? ― perguntei.
— Não. ― Novamente foi Zion que me
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respondeu. ― Sentiu alguma ao entrar? ― Ela


tinha a língua tão afiada quanto a minha.
— Então, o castelo precisa de uma ― falei
ignorando-a. Tirei Siferath do pescoço e fui até
uma das janelas. Sabia como fazer mandalas de
proteção, foi uma das primeiras coisas que Susano
me ensinou quando descobriu que eu tinha poderes,
fazíamos mandalas durante os treinos com Siorin,
não havia percebido o quanto sentia a falta deles até
aquele momento. Ergui as mãos distraidamente,
lançando ao céu as palavras antigas de proteção,
conforme luzes negras brilhantes deixavam minhas
palmas e cobriam o castelo, como uma cascata, um
véu de fumaça negra e brilhante escorrendo contra
um globo. Os guardas ficaram olhando assustados
até que o véu cobriu completamente o castelo e
brilhou num tom vinho escuro, mostrando as letras
e símbolos antigos, logo depois se apagou.
— Funcionou? ― perguntou o jovem
olhando boquiaberto para o céu.
— Sim, as marcas desaparecem, se não
denunciariam o tipo de magia que protege o local,
assim ficaria mais fácil de quebrá-la. Mas mesmo

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com essa proteção, as guaritas dos muros devem ser


preenchidas. Alternem os turnos com mais
frequência para que não cansem demais! Dois
sentinelas por guarita já é o suficiente!
— Mas...
— Não tem gente o suficiente para cobrir
esses turnos? ― perguntei quando comecei a ouvir
os protestos.
— Ter tem...
— Mas vocês preferem dormir? ― Senti um
sorriso maligno cobrir meu rosto. ― Imagino o
quanto seria divertido para vocês acordarem em
suas camas com armas em seus pescoços ou nem
acordar... seria uma pena, pois os que podiam
vigiar e alertar os companheiros, estavam
dormindo! ― falei brincando com uma de minhas
garras. O rosto do guarda corou levemente.
— Vamos fazer isso.
— Já disse, façam turnos curtos e revezem
com frequência, assim poderão descansar mais! ―
disse dando as costas e saindo da sala. Apoiei as
costas na madeira e respirei fundo, deixando a
tremedeira passar antes de me afastar dali e voltar

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para meu quarto. Mesmo para uma maga negra,


uma mandala de proteção de várias camadas como
a que tinha feito em volta de uma propriedade tão
grande me deixou esgotada.
Por sorte havia memorizado a planta do
castelo gelado, assim não me perdi ao passar nos
arcos da ala leste e seguir direto para meu quarto.
Mesmo com o frio que fazia ali, não me
incomodei ao tirar o uniforme e jogá-lo em cima da
cadeira, desabando na cama apenas com a roupa de
baixo, aproveitando o toque gelado dos lençóis.
Não sabia como havia vivido tantos anos em
Ciartes mesmo amando profundamente o frio,
aqueles ossos me fizeram achar o lugar perfeito
para viver. Porém, me sentia incompleta, como se
faltasse uma parte muito grande, olhei pela janela
aberta, a lua das fadas preenchia o céu escuro lá
fora, como se falasse comigo.
Saí da cama, sentei no chão perto da sacada e
respirei fundo, todos os problemas que cercavam
esse mundo eram pequenos diante do desastre que
estava por vir, eu queria fazer o meu máximo para
impedir Higarath, mas não ia ser de dentro de um

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palácio que conseguiria isso, precisava de algo que


me desse uma vantagem, algo que o impedisse de
pegar as Almas, mas onde eu conseguiria esse
conhecimento? Não poderia perguntar a própria
Ayrana e Caalin também não devia saber, pois ele
já teria me dito, ou feito sozinho.
Algo fez um ruído do lado de fora de meu
quarto, dei um pulo e passei rapidamente ao lado da
cama puxando uma das adagas de vitrino que havia
escondido embaixo do travesseiro, me enrolei num
hobby de seda preto que estava pendurado perto da
porta do banheiro e fui até a porta. A abri num
puxão e dei de cara com Caalin, ele estava de pé
em frente à porta, usando apenas uma calça de
moletom preta e cabelos presos num coque, os
olhos safira encontraram os meus.
— Com a frequência que você arruma
inimigos, não me surpreende que venha até a porta
com uma adaga na mão! ― Ele sorriu dando um
passo para perto, fazendo-me recuar.
— O que quer? ― perguntei baixando a
arma.
— Perguntar uma coisa. ― Ele fechou a

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porta atrás dele, e continuou me encarando, soltei a


adaga em cima da cama e fui até a janela.
— Pergunte logo e saia daqui ― murmurei,
antes que eu virasse na direção dele novamente, ele
apareceu em minha frente, rápido como um raio. A
luz da lua das fadas fazia sua pele parecer uma joia
adornada com aqueles olhos brilhantes ainda mais
belos.
— Você parece outra pessoa desde que pisou
no castelo... tem algum interesse em Aliver? Seja
sincera! ― Ele estava sério, as narinas inflando
como se esperasse a resposta para sentir se eu
estava mentindo. Tive que conter a vontade de dar
uma gargalhada.
— Nenhum, por quê?
— Nada! ― Ele olhou para fora, para a
superfície do lago congelado brilhando sob a luz da
lua ― Mas Aliver parece muito interessado em
você! ― Ou estava imaginando coisas ou ele
realmente estava com ciúme.
— E se tiver? ― Um rosnado saiu baixo de
seu peito quando fiz aquela pergunta, os olhos que
se voltaram para mim eram negros e frios, tão frios

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quanto o Castelo de Gelo nos enjaulando juntos ali.


— Então, Vegahn ficaria sem um rei. ― Sua
voz saiu mais sombria do que eu podia um dia
imaginar ouvir, nem de longe tinha a gentileza e
suavidade de sempre, mas seus olhos estavam
negros, como olhos de uma fera.
— Ciúmes? ― Não consegui conter o sorriso
se formando em meu rosto.
— E se estiver? ― Ele não desviou o olhar
como achei que faria, senti meu corpo esquentar e
meu sorriso desapareceu.
— Acho que é melhor você ir dormir, Caalin
— falei baixo desviando dele ao ir em direção da
porta para abri-la para que ele saísse, mas antes que
eu alcançasse a porta ele me girou e segurou meus
braços juntos em minha frente, colocando-me
contra a parede gelada e ergueu meu queixo para
que eu olhasse para ele.
— Não me respondeu, Nike...
— Não preciso responder, você já tem outras
pessoas se derretendo e com ciúmes de você, não
é? Não precisa acrescentar mais uma nessa sua
longa lista. ― Droga, droga, droga de boca grande!

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Caalin sorriu, mostrando os dentes brancos num


sorriso perfeito.
— Parece que alguém está com ciúmes.
— Não diga coisas que não sabe! ―
resmunguei tentando me soltar, mas estava fraca
devido à magia que agora cobria o castelo,
protegendo-o de verdade. Caalin manteve meu
queixo em sua mão, enquanto a outra soltou meus
pulsos e traçou uma linha em meu pescoço,
curvando-se sobre mim tocando os lábios quentes e
macios na minha orelha. Quentes, não frio ou
gelados, quentes como suas mãos e seu corpo, mas
não causavam dor ou desconforto nos ossos de
vitrino em meus braços. Apenas fez com que meu
coração disparasse e o sangue em minhas veias
fervesse.
— Você não é nem de longe o que esperava
que fosse. ― Caalin sussurrou ao meu ouvido, o
hálito quente fazendo cócegas em meu pescoço,
lançando ondas de calor por dentro de mim.
— Isso é bom ou ruim? ― Consegui fazer
minha voz sair, mas ela me traiu, saindo trêmula e
vacilante demais. Droga! Senti seu sorriso contra

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minha bochecha quando ele se curvou um pouco


mais, enquanto seus lábios roçaram de leve nos
meus e os dedos traçaram círculos na base de
minha coluna, puxando o hobby para cima.
— Muito bom... ― A voz dele saiu como
música para mim. Queria arrancar aquela porcaria
de calça que ele estava vestindo e jogá-lo em cima
da cama, mas um alerta alto soava em minha mente
enquanto imaginava todas as formas diferentes de
fazer isso, enquanto seus lábios ainda roçavam de
leve na curva de meu maxilar, soltei um gemido
quando ele apertou os dedos em meus quadris,
então ele me soltou depois de soltar um riso baixo e
maligno e foi em direção à porta.
— O que está fazendo? ― perguntei, a voz
alta demais, errada demais, quase como uma
súplica.
— Você mandou que eu fizesse a pergunta e
saísse, ainda fui teimoso, fiquei um pouco mais...
— Ele sorriu pegando a maçaneta da porta e num
rápido movimento, desapareceu.
Desgraçado, frio, desalmado, sem coração!
Reclamei comigo mesma pensando se saía atrás

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dele ou esperava por outra ocasião. Por fim, com as


costas congeladas, dormentes e pulsando, deitei
sobre a cama e fiquei ali tentando acalmar o
turbilhão que havia se formado dentro de mim, o
calor entre minhas pernas não diminuía mesmo
dentro daquele quarto de gelo e a porcaria do teto
azul safira não ajudava nada. Enterrei o rosto nos
travesseiros, acabei pensando na sensação de sua
boca quente e macia contra minha pele, nada disso
foi de grande ajuda para que eu conseguisse dormir.
Desisti de tentar dormir quando me virei
novamente encarando o teto, então levantei de um
salto e saí do quarto, procurando por qualquer sinal
dele, mas não fazia ideia de onde ele estava ou
onde era o quarto que ele ficava.
Odiava usar meus poderes à toa, mas aquilo
me parecia uma situação de emergência então, sem
nenhuma vergonha na cara, soltei as sombras pelo
castelo, sentindo-as serpentearem e vasculharem
cada centímetro daquele lugar, fechando meus
olhos e concentrando-me na energia escura que
fluía através delas, procurando com os olhos que
não eram meus.

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Encontrei Caalin dois lances de escadas


acima, em uma pequena sala que parecia uma
biblioteca ou um escritório. Recolhi as sombras
vestindo-me com elas, que em nenhum momento
tentaram cochichar para mim, apenas obedeceram,
focadas no meu objetivo.
Subi as escadas mais rápido que imaginei
poder fazer, quase voando, atravessei o corredor em
poucos passos, as sombras pareciam me ajudar,
deixando-me mais leve e ágil. A porta estava
entreaberta e Caalin estava esticado em um divã
com um livro sobre o peito e uma caneta na mão,
cobrindo o rosto com o braço forte e musculoso. Só
aquela visão já foi suficiente para meu corpo inteiro
esquentar.
Ele não percebeu minha aproximação, nem
se sobressaltou quando passei as pernas por cima
dele, sentando em seu colo e segurei suas mãos.
— O que estava fazendo? ― perguntei
tirando a caneta de sua mão.
— Escrevendo, um hábito que herdei de
minha mãe. ― Os olhos azuis dele encontraram os
meus. ― O que faz aqui? ― perguntou ele com a

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voz indiferente, mas o olhar sedutor.


— Mandei você sair, mas não disse que não
viria atrás de você.
— Demorou demais! ― Ele soltou-se
facilmente das minhas mãos e segurou minha
cintura para me tirar de cima dele. Não lutei contra
isso, quando ele ficou de pé ao meu lado e respirou
fundo.
— O que foi? ― perguntei sentindo minha
garganta se apertar.
— Acho que você deveria dormir ― disse
ele com a voz macia.
— Não quero dormir, você foi até lá, me
provocou e acha que é fácil assim? Simples?
Fechar os olhos e dormir? ― bufei.
— Fez pior comigo durante os dias na
cabana, caso não se lembre bem! ― disse ele
estreitando os olhos.
— Mas eu não fiz por maldade! Aí pensou
em fazer isso em castigo? ― Quase soltei um
rosnado de reprovação quando ele sorriu em
resposta.
— Vá dormir Nike ― disse ele com um
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sorriso travesso andando até a porta. ― Amanhã


terei que ir até Fernic descobrir o que foi feito do
vitrino e o motivo do ataque ao castelo, então
preciso dormir... ― Meu sangue congelou quando
ele disse aquilo, sabia que por ser da guarda, não
teria permissão para acompanhá-lo até Fernic, teria
que ficar e proteger o rei.
— Posso até ir, mas antes tenho uma coisa
para te dar... ― Fui até ele e peguei sua mão, beijei
a palma aberta para mim. ― Deste dia em diante,
serei sua espada, seu escudo, sua luz em meio ao
nevoeiro, a flecha que acerta seu alvo, serei a
tempestade que espanta teus inimigos e o vento que
varre para longe tuas tristezas, o sol em seus dias
mais sombrios. Serei sua guardiã e protetora até o
fim de meus dias. ― Caalin me encarava com
olhos arregalados enquanto a queimação em meu
braço direito era substituída por uma marca
prateada de uma corrente fina.
— Você fez o juramento de guardião a mim?
— perguntou com a voz rouca sem tirar os olhos da
marca prateada em meu pulso.
— Uhum... ― Fiquei nas pontas dos pés e

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beijei seu queixo antes de escorregar para a porta,


ele ainda parecia atordoado encarando o nada. Por
um minuto achei que tivesse feito a coisa da forma
errada, mas seu rosto se abriu num sorriso tão
grande que poderia iluminar o mundo, ele me
segurou antes que eu passasse pela porta, pegando-
me no colo e levando-me para o outro lado da sala,
onde um pequeno sofá de dois lugares se
encontrava. Ele sentou-se deixando que eu
escorregasse sobre seu colo, tracei os contornos do
seu rosto com as mãos enquanto ele ainda encarava
a marca prateada ali.
— Por que fez isso? ― perguntou com a voz
baixa.
— Porque eu quis. ― Não queria dizer o real
motivo a ele, dizer que fiquei com medo, e que com
o juramento, com aquele estranho laço nos unindo,
eu saberia exatamente se algo de errado estivesse
acontecendo, assim eu poderia mesmo à distância,
cuidar dele, cuidar de verdade, ter a certeza de que
ele ficaria bem e que eu seria avisada e chegaria a
tempo caso algo lhe acontecesse, não que ele
realmente precisasse de minha proteção, mas eu

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precisava saber que ele ficaria seguro.


— Você costuma fazer tudo que quer e na
hora que quer sem pensar nas consequências? ―
Ele sorriu, contornando meus lábios com os dedos.
— Às vezes... ― Consegui falar mesmo com
a respiração ofegante.
— Sabe o que acontece com isso, com essa
ligação caso eu fique muito longe de você? ― disse
ele contra minha garganta, apertando de leve meu
corpo contra o seu.
— Não...
— Seus poderes vão ficar fracos. ― Sua voz
não passava de um sussurro, então ele desamarrou a
fita do hobby e o tirou de mim como se não
houvesse obstáculos para o tecido, Caalin ocupava
a maior parte do pequeno sofá, que parecia uma
cadeirinha sob ele.
— Não tem importância, só preciso ter a
certeza de que você vai ficar bem. ― Então, soltei
o coque que prendia seus cabelos e enrolei meus
dedos neles, passei minha língua de leve sobre seus
lábios, apreciando a sensação quente e adocicada.
— Achei que você fosse frio... ― Ele riu contra

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meus lábios, cedendo à pressão de sua boca contra


a minha quando ele abriu minha boca e mordeu
meu lábio inferior, depois minha língua e desceu as
pontas dos dedos, das garras por meu pescoço, até
entre meus seios, rasgando o sutiã de renda, mas
sem ao menos arranhar minha pele.
— Sou uma besta de gelo só nos poderes
mesmo... no resto sou tão quente quanto você.
— Então, me mostre essa sua parte e pare de
ser tão gentil comigo! Não é isso que eu quero, não
agora! ― reclamei quando ele continuou
acariciando minha pele fazendo círculos com os
dedos em meus quadris, mesmo que estivesse
apreciando a sensação, queria mais, precisava
daquele toque. De novo sua risada fez meu corpo
estremecer, Caalin tirou-me de cima dele, apoiando
meus joelhos no sofá e abriu minhas pernas
devagar, um pânico se revirou dentro de mim
quando ele deslizou a mão para a parte interior das
minhas coxas e pressionou o corpo no meu,
fazendo com que tivesse que me apoiar no encosto
do sofá.
— Não vou ser nada além de gentil com

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você, Nike. ― Ele sussurrou contra minha nuca e


passou a língua por minhas costas antes de se voltar
e morder de leve meu ombro. Soltei um gemido
quando suas mãos começaram a dançar em meu
corpo com os movimentos lentos que ele fazia
contra mim, apreciando cada toque, como se fosse
o primeiro e último, tomando-me por completo.
Embora todo meu corpo tremesse, fiz com que ele
se sentasse novamente e me deixasse subir em cima
dele, queria beijar seu rosto, sua boca, seu peito
enquanto ele entrava dentro de mim.
Caalin tinha um olhar feroz, mas ao mesmo
tempo manso e um sorriso predatório no rosto
quando o encarei sorrindo e o beijei de novo e de
novo, absorvendo o máximo do seu gosto, do seu
cheiro. Não queria conter o que havia prendido
dentro de mim, o desejo que me consumia e não se
apagava com facilidade, ele segurou meus quadris
com força antes de me puxar mais para cima,
fazendo com que meus movimentos ficassem ainda
mais intensos, até que meu corpo inteiro tremeu e
se desfez em suas mãos. Antes que acabasse, senti
seu sorriso contra meu pescoço quando ele fechou

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os dentes ali, perfurando minha pele e segurando


minha boca para que eu não gritasse, mas eu não
gritei, apenas deixei um fraco gemido subir a
garganta. Era como se meu sangue quisesse ir em
direção àquelas pequenas feridas causadas por suas
presas, mas eu não me importei, deixei que o
fizesse. Senti a pressão diminuir até que não
passava de um formigamento onde ele passou a
língua e qualquer marca que pudesse ter ficado ali,
desapareceu.

Acordei em minha cama, deitada toda


embolada em lençóis, tateei no escuro a procura de
Caalin, mas não encontrei nada, com medo de ter
sido apenas um sonho, toquei as pontas dos dedos
em meu pescoço, mas estava dolorido ainda e um
leve formigamento em minhas pernas, quadris e
barriga indicavam que não havia sonhado. Abri os
olhos devagar, a luz da lua ainda estava ali, Caalin
estava do outro lado do quarto, sentado sob a janela
e com minha calcinha na mão.
— Achei que não fosse acordar tão cedo ―
disse ele dando um sorriso presunçoso.

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— O que acha que eu sou? ― resmunguei


dando tapinhas na cama.
— Um bichinho mais selvagem do que eu
esperava. ― Mesmo sentindo meu rosto corar eu ri.
Ele se levantou e veio até mim, deitando ao meu
lado e puxando meu pulso, olhando a marca
prateada ali. ― Um animalzinho selvagem,
ardiloso e fogoso demais... ― Foi a vez dele de rir.
— Ardilosa, eu? ― Ergui a sobrancelha.
— Sabia que eu ficaria aos seus pés com um
juramento como aquele? ― perguntou ele
semicerrando os olhos.
— Não te comprei com isso! Só queria ter a
certeza de que você estaria bem e que eu poderia te
encontrar mesmo se você estivesse longe ― admiti
odiando-me por aquilo, por ter sido tão franca em
relação aos meus sentimentos e preocupações. Ele
mordeu os lábios evitando sorrir, logo em seguida
beijou a marca prateada, fazendo com que outra
corrente elétrica passasse por mim.
— Não vou poder ir com você, não é?
— Não, não vai, senhora capitã da guarda!
— Ele falou o título como uma reverência, sem

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tirar meu pulso da boca, xinguei baixinho e me


agarrei a ele, apertando meu corpo no seu e subindo
minha perna para enroscar em sua cintura.
— Nike, eu vou fazer você dormir, se não
sossegar ― ameaçou.
— Está com medo porque está ficando
velhinho e não consegue me acompanhar? ―
sussurrei subindo em seu peito, roçando meus
lábios nos seus. Ele semicerrou os olhos, girando
meu corpo e me prendendo embaixo dele, tinha um
olhar feroz quando abaixou até meu rosto, e beijou
meu queixo, meu pescoço e traçou uma linha com a
língua até minha barriga.
— Não provoque o que não pode aguentar,
menina ― retrucou soltando um rosnado. Soltei
uma gargalhada debochada e tomei sua boca
novamente, enrolando minhas pernas em sua
cintura e perdendo-me em seu corpo, em seu toque,
em seus beijos novamente. Ouvi meu nome entre
outras palavras que ele me dizia ao pé do ouvido, e
eu o trazia mais para mim. Sinceramente, não achei
que ele cairia numa provocação como aquela, mas
se funcionou... bom para mim.

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Na hora que acordei, dessa vez ele não estava


em nenhum lugar do quarto, Luviah estava olhando
para mim pela brecha da porta do banheiro com um
sorriso malicioso nos cantos dos lábios.
— Parece que alguém não dormiu muito
ontem à noite, não foi?
— Do que está falando? ― Tentei parecer o
mais inocente possível, mas ela soltou uma
gargalhada divertida enquanto trazia meu uniforme
para a beirada da cama.
— Seu banho está pronto. ― Ela jogou outro
hobby para mim, só então percebi os retalhos do
que um dia foi o hobby preto de seda.
— Ah! Eu gostava tanto desse... ― falei
chutando os trapinhos para fora de meu caminho.
— Talvez o palácio inteiro saiba como ele
virou esse amontoado de retalhos ― disse Luviah
casualmente os recolhendo do chão, senti o sangue
sumir do meu rosto ao encará-la assustada.
— O quê?
— Você estava fazendo muito barulho, num
Castelo de Gelo, habitado por uma grande
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quantidade de Malvarmos que podem escutar uma


agulha caindo no gramado do jardim. ― Ela piscou
para mim. ― Não se atreva a ficar com vergonha,
mantenha a cabeça erguida e se alguém fizer
piada...
— Eu quebro o pescoço do infeliz ― grunhi.
— Não! Você vai sorrir e provocar, e se isso
não der certo, aí sim você pode quebrar a cara de
alguém, não o pescoço! ― Ela riu.
— Entendido ― respondi.

Assim, oficialmente o primeiro dia como


Capitã da guarda do rei Aliver começou, sem
piadinhas sobre a noite anterior, claro. Uma rotina
monótona e entediante, que ia desde reuniões com a
guarda, verificação de armamento, que na minha
opinião eram todos inferiores, mas não tão ruins
quanto outros que já vira antes, entre outros
afazeres ainda mais chatos. Aliver precisava que eu
estivesse a seu lado a maior parte do tempo, caso
houvesse alguma ameaça, mas naquele momento,
eu era a única ameaça dentro daquelas paredes de
gelo. De vez em quando vasculhava meus

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pensamentos e sentimentos atrás de qualquer


vestígio, qualquer traço do que Caalin pudesse estar
sentindo, pois conhecia bem como funcionava o
laço de guardião embora com Kuran ele tinha algo
de errado, pois nunca podia senti-lo pela ligação,
mas Caalin é um mestre em se manter calmo e
equilibrado, pelo menos quando estava longe de
mim.

— Não achou que ia ser tão entediante assim,


não é? ― Aliver disparou quando me viu mexendo
o prato de comida durante o almoço, ele me
convidou para sentar ao lado dele.
— Já imaginava que fosse algo do tipo.
Prefiro a calmaria do que brigas desnecessárias ―
falei. Aliver gargalhou abertamente pegando a taça
de vinho e tomando, mantenho os olhos cor de
âmbar em mim.
— Não pareceu isso ontem, achei que fosse
partir Toghus ao meio.
— Não faria isso... não quando estava
tentando passar uma boa impressão, fora que daria
trabalho limpar as cortinas ― retruquei terminando

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o vinho em minha taça e servindo mais um pouco.


— Talvez, mas o castelo anda muito limpo
ultimamente, precisamos dar mais trabalho aos
serviçais, ao que parece, eles estão passando muito
tempo ouvindo as conversas alheias! ― Vi um
brilho malicioso em seu olhar.
— Não só eles, não é?
— Ah! Desculpe, mas faz tempo que esse
castelo anda um tanto... sem vida! ― Ele riu.
— Onde está o resto de sua família? ―
perguntei desviando o assunto sentindo minhas
bochechas corarem.
— Em Retiro das Folhas, uma cidade élfica
flutuante. Acredito que estão melhor lá, mais
seguras, mas agora com sua presença talvez pense
em trazê-las de volta, minha irmã ficaria... muito
feliz em conhecê-la. ― Ele pareceu um tanto
desconfortável ao mencionar a irmã.
— Talvez também gostasse, estou sentindo
falta de uma companhia feminina! ― respondi.
— Zion não é exatamente o que você possa
considerar uma amiga, não é? Já que ela e Caalin...
— Soltei a taça em cima da mesa, fazendo Aliver
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perder a cor caramelo de seu belo rosto.


— Preciso voltar a meu trabalho, majestade.
Obrigada pelo convite!
Fiz uma reverência e saí do interior do
castelo, passando em frente à entrada principal,
onde agora havia uma estátua de um dragão de
vitrino em tamanho real, congelado eternamente na
posição em que eu a matara, mãe de Docinho,
espero que ela não cresça e fique ressentida
comigo, mas não achei que Caalin tinha falado
sério quando disse que o traria ao rei, que
aparentemente gostou do presente. O dragão com
sua boca aberta em direção aos portões passava
uma clara mensagem, mostrava o que aguardava
aqueles que ousassem desafiar o poder de Aliver,
meu poder. Fui até o jardim coberto dos fundos,
onde havia um muro de pedra e um portão de ferro.
Uma área grande que Caalin havia preparado para
Docinho ficar. Docinho estava deitada num ninho
de cinzas e brasas quando me aproximei, roçando
os dedos em sua cabeça, fiquei um bom tempo com
ela antes de voltar aos meus afazeres.
No fim da tarde, perto do anoitecer,

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convidados de outro mundo chegaram, então tive


que ir novamente até a sala do trono com os
guardas.
Aquela pele avermelhada fez uma onda
crescente de pânico se remexer dentro de mim. Um
emissário de Ciartes entrou pelo salão trazendo um
pergaminho dourado, fino e perfeitamente enrolado
em sua mão. Gihar, era o nome dele, um emissário
de Hargas, agora de Ericko, tinha medo do
conteúdo daquela mensagem, mas não poderia ser
uma ordem de captura, não em pergaminho
dourado.
— Peço que se apresente. ― falei por mera
formalidade com a voz mais firme do que imaginei
que conseguiria, o salamandra não me reconheceu,
ele fez uma reverência ao rei e um breve aceno para
mim, sem me olhar de verdade então começou a
falar:
— Rei Aliver de Vegahn, sou Gihar Borslin,
emissário do Rei Ericko Salomon e venho hoje em
sua presença lhe trazer um convite do casamento de
vossa majestade, o rei Ericko com a princesa Karin,
filha do Rei Ewren Ascardian, de Amantia. ―

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Aliver respirou fundo e acenou para mim. Fui até o


emissário e peguei o pergaminho dourado de suas
mãos, só então ele me olhou, olhou de verdade para
mim, para meu uniforme e a arma que eu carregava
e seu rosto ficou branco como a face da morte.

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Capítulo 9

Aliver solicitou que eu o acompanhasse


quando o emissário, ainda pálido e assustado saiu
da sala do trono sem esperar uma resposta de
Aliver. Acompanhei o rei até um quarto imenso no
quinto andar do castelo que era todo decorado em
ouro, prata e tons de vermelho e marrom, a cama
grande demais ficava bem no meio do quarto, que
embora estivesse muito limpo, não parecia ser
usado por ninguém. Fiquei gelada quando ele
fechou a porta atrás de mim e colocou uma mão em
minhas costas, fazendo meu coração acelerar.
Apertei firme o pingente em meu pescoço e o
olhei de canto de olho, seu rosto estava um pouco
tenso e um olhar preocupado quando ele indicou
uma porta grande do outro lado do aposento, andei
até ela em silêncio, ele abriu a porta revelando um
escritório com uma biblioteca. Fiquei aliviada
quando ele entrou na sala e sentou atrás da mesa

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grande de mogno entre as várias estantes de livros e


indicou o lugar em sua frente. Contornei a cadeira
devagar e me sentei cruzando as pernas e vigiando
cada movimento de Aliver.
— Quando aquele mensageiro apareceu,
quando vi o uniforme do Castelo do Sol, achei que
estivesse trazendo uma ordem de captura para você,
Nikella! ― disse ele fixando os olhos nos meus.
— Eu também imaginei isso a princípio, mas
quando vi o pergaminho dourado já sabia que
deveria ser de algum evento grande... mas achei
que a essa altura os dois já estariam casados! ―
falei mais baixo.
— Um casamento entre pessoas das famílias
reais de mundos diferentes exige a presença de
todos os reis ou rainhas dos Doze, não é um
simples casamento, é uma prova, a demonstração
de uma aliança poderosa... ― Aliver ficou
pensativo.
— Pretende ir?
— Preciso ir e espero que você vá! Você e
Caalin, na verdade, não arrisco ir até os outros
mundos sem ele... ― Ele percebeu meu olhar

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irritado e continuou ― embora você já seja


proteção suficiente, mas Caalin tem uma habilidade
incomum de fazer com que as pessoas concordem
com suas vontades, ele consegue dobrar a maioria
das pessoas, e isso pode me favorecer.
— Está pensando em fazer uma aliança com
Ericko, por causa dos reinos do Leste e Oeste?
— Ausiet e Hobner auto proclamaram-se reis
de seus continentes e estão planejando um ataque a
Blizzion, eles querem tomar minhas terras e meus
exércitos para invadir Ciartes. ― Senti meu sangue
se esvair.
— Queria entender qual o interesse em
Ciartes, quero dizer, existem mundos maiores e
mais fáceis de serem invadidos! Ciartes tem um
exército poderoso de Caçadores e guerreiros! ―
falei.
— Exatamente, se o rei cair, quem assumir
depois dele governa Ciartes, Ericko é jovem! E não
é tão difícil colocar espiões e assassinos dentro do
Castelo do Sol, a segurança deles é falha, pois
confiam demais que não serão atacados. Se
chegarem a matar a família real... Bom, quem

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assumir terá o controle de tudo!


— Isso não explica o motivo pelo qual iriam
querer logo Ciartes, já que Vastrus é maior e possui
o exército de Gaaris, o gigante. Soube que eles
podem ser facilmente comprados com ouro e
metais preciosos, se Hobner e Ausiet tem o vitrino,
eles poderiam comprar Gaaris facilmente... ― Algo
sombrio no olhar de Aliver fez com que eu me
calasse.
— Imagine, um exército de magos negros?
— Minha pele arrepiou ao mesmo tempo que o
jantar se tornou chumbo em meu estômago.
— Não existe tal coisa...
— Mas pode existir... existem alguns
métodos de como criar magos negros, o método
como ouvi falar que você foi criada é o mais
conhecido, o método de escurecer o coração de
alguém com dor e sangue inocente...
— Basta! ― Bati na mesa ― Não me lembre
disso, por favor! ― Aliver não se abalou com meu
pequeno ataque, mas o meu jantar ameaçou voltar
ao lembrar daquilo, do sangue de Elister em minha
garganta e do rasgo no peito de Kuran e de como

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ele se afogava no próprio sangue.


— Mas existem livros, livros que foram
perdidos por aqueles que o criaram e que podem ser
recuperados no tesouro de Ciartes.
— A Árvore do Fogo! ― Levei a mão ao
colar imediatamente, onde a chave da árvore
descansava silenciosa e morna entre meus seios.
— A Árvore do Fogo, dizem as lendas,
possui todo o conhecimento dos mundos, todos os
livros, tudo! Lá existe um livro escrito por Érebo
que ensina como invocá-lo e como reivindicar seu
poder, o poder das trevas e das sombras, o poder de
transitar entre os mundos sem precisar de portais.
— Minha garganta secou, estive perto desses livros,
tão perto... eu devia realmente ter destruído a
árvore naquele último dia.
— Poderia entrar no castelo deles, poderia
matar Hobner e Ausiet enquanto dormem! ― falei.
— Não, não pode. Eles têm apoio do povo,
são Malvarmos de linhagem pura, eu sou o meio
humano que eles querem derrubar! Se eles
aparecessem mortos o povo logo desconfiaria! Por
que acha que nunca pedi a Caalin que o fizesse?

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Hobner e Ausiet poderiam facilmente tomar os


mundos, todos eles, com o poder do Livro das
Sombras.
— E o que faremos, então? Seria bem-vinda,
Os Ascardian mantem o poder entre eles desde a
criação dos mundos, são respeitados em todos os
mundos, até aqui o nome do rei Ewren tem
influência, mais ainda que o meu! ― Aliver riu ―
O rei de Amantia é mais respeitado em Vegahn que
o próprio rei de Vegahn, se eu tivesse uma aliança
com eles, conquistaria todo o povo de Vegahn. Mas
até onde eu sei, as filhas do rei são todas
comprometidas ― disse ele.
— Nem todas, Asahi não é comprometida.
— Quem é essa?
— A filha mais nova do rei e da sacerdotisa
das águas! ― expliquei, os olhos de Aliver
brilharam com a possibilidade.
— Ela é bonita? ― Revirei os olhos.
— Ela é linda! ― respondi, o sorriso dele
aumentou ainda mais.
— Ela com certeza estará no casamento da
irmã!
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— E o rei também, e já te adianto que ele


tem ciúme das filhas!
— Me viro com essa parte, sou bom em
conquistar as pessoas e Caalin melhor ainda, ele
pode me ajudar com o rei! ― Ele ficou pensativo
novamente. ― Mas eu tenho uma tarefa para você!
— Estava demorando!
— Você é uma caçadora e uma maga negra...
— E?
— Preciso que entre naquela árvore e ache o
Livro das Sombras...
— Não vou dar ele para você! ― rosnei
fazendo menção de me levantar, Aliver arqueou as
sobrancelhas.
— Não pedi para você me dar, pedi para
achar, você me interrompeu! ― Corei e voltei ao
meu lugar. ― Destrua-o.
— Não tem interesse nele?
— Ser um mago negro, ter um poder
imensurável e correr o risco de perder a sanidade e
ferir aqueles que amo? ― Encolhi os ombros para
sua escolha de palavras e baixei os olhos para as
garras em minhas mãos. ― Desculpe, você deve
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ser a única maga negra que não parece com uma.


— Obrigada, acho.
— Bom, preciso pensar melhor no que fazer
e esperar que Caalin retorne com boas notícias. ―
Aliver fez um movimento sutil com as mãos,
dispensando-me.
— Boa noite ― me despedi saindo do quarto
e caminhei pelo castelo, fazendo uma última
vistoria antes de pegar o relatório na sala da guarda
e me recolher.

Estava deitada, não dormindo, mas flutuando


entre dormir e sonhar acordada quando algo entrou
em meu quarto. Ultimamente tinha um controle
maior das sombras, então as deixava como vigias
por todos os lados, assim elas me informavam o
que acontecia. Senti quem quer que fosse se
aproximar da cama, estava com a mão embaixo do
travesseiro segurando uma adaga só esperando ele
se aproximar. Sem aviso alguém pulou sobre mim
na cama colocando uma arma bem perto do meu
pescoço, porém a minha já estava sob o queixo dela
também, usei a transformação em malvarmo para

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me certificar que sua lâmina não me causaria danos


graves.
— O que está fazendo, Zion? Quer morrer?
— chiei derrubando-a de cima de mim, ela ficou
ajoelhada em minha frente na cama, usando nada
mais que um short curto e camiseta deixando parte
da barriga à mostra.
— Ele era meu! ― Ela rosnou baixinho
mostrando os dentes agudos para mim, os olhos cor
de vinho brilhando sob a luz intensa da lua e os
cabelos dourados na altura dos ombros dançando
suavemente com seus movimentos.
— Você parece alguém que conheci um
tempo atrás, alguém que não sabe perder.
— Você não entende nada! ― Ela levantou a
blusa, mostrando o corpo forte, bem definido, mas
não era isso que queria que eu visse, era uma marca
sob seu seio esquerdo, uma marca de uma
perfuração profunda.
— Você era humana? ― falei apoiando-me
sobre os braços para levantar e ver melhor.
— Ele me transformou.
— E isso o prende a você? ― perguntei num
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tom de deboche, ela continuava me encarando com


raiva.
— Tudo que ele fizer com você, saiba que já
tive primeiro! ― Não tinha como negar o quanto
aquilo me irritou. Ela estava tão perto de meu rosto
que podia sentir sua respiração, ela estava me
forçando, tentando me irritar.
— Sabe quando você tem uma bota de couro
novinha? Vai levar um tempo até você conseguir
amaciá-la, até você conseguir que ela fique macia e
se ajuste a seus pés, mas até que ela se ajuste, ela
vai te dar calos, seus pés ficarão doloridos e você
vai se irritar muito com a bota. Eu prefiro as botas
usadas, que alguém já tenha amaciado e que
estejam prontas para meus pés do que me irritar
amaciando uma bota nova! ― Minhas palavras,
meu sorriso deve ter sido a gota para ela, pois ela
ergueu a faca novamente avançando para cima de
mim.
Num movimento rápido a desarmei e prendi
seus braços para trás, e sem querer arranhei seu
ombro com uma garra fazendo o sangue
transparente azulado escorrer numa fina linha.

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Aquilo me atingiu de forma inesperada, algo em


mim foi atraído por aquele sangue e minha
garganta reclamou, ardeu àquele cheiro metálico e
atraente.
Zion estava apavorada, mas as mãos dela
pareciam inertes e ela estranhamente silenciosa
quando me debrucei sobre ela, aumentando aquele
pequeno corte com as presas e tomando seu sangue,
o gosto era estranhamente familiar, tinha um leve
toque do cheiro de Caalin. Zion não lutou, só
depois percebi que as sombras a deixaram
desacordada. Fiquei apavorada com aquilo,
soltando-a sobre a cama e me afastando dela,
caindo sentada no chão o mais longe da cama que
pude, não conseguia me acalmar de jeito nenhum,
achei que a qualquer momento ia colocar as tripas
para fora, mas isso também não aconteceu.

Fiquei a noite toda acordada, assustada


demais com o que tinha acontecido e sobre as
memórias que aquilo despertaram, vigiando de hora
em hora para ter certeza que Zion ainda estava
viva. Pouco tempo antes do sol nascer, ela acordou

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desorientada, olhando em volta até perceber onde


estava e imediatamente levar a mão ao ombro e
olhar em minha direção.
— Você me mordeu? ― perguntou
incrédula.
— Desculpe... eu... ― Ela não disse mais
nada quando saiu correndo para fora do quarto. Fui
cambaleante até o banheiro e deixei a banheira
enchendo, fiquei na beirada sentada olhando para o
nada por um bom tempo, tentando entender o que
havia acontecido, o que me aconteceu para que eu a
mordesse. Estava tão distraída em meus
pensamentos que não percebi que tinha entrado
totalmente na água quente, que o vitrino em meus
braços não estava reclamando com o calor da água,
ela estava quente o suficiente para deixar minha
pele vermelha em poucos minutos.
— Que cara de terror é essa? ― Caalin
estava parado na porta do banheiro olhando para
mim.
— Desde quando está aí? ― Consegui me
forçar a falar.
— Acabei de chegar, encontrei com Zion no

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corredor, e sinceramente não sei quem está com


uma cara pior... o que houve entre vocês, por que
ela estava saindo daqui?
— Não quero falar sobre isso! ― falei
apontando a porta, mas ele não saiu, continuou
parado olhando para mim. Ficamos nos encarando
bom um bom tempo até que ele respirou fundo e
andou até a borda da banheira, retirou as botas e
entrou na água de roupa e tudo, transformando o
banheiro em uma piscina. ― O que está fazendo?
Caalin! ― resmunguei, mas ele me puxou para seu
colo e me embrulhou nos braços, roçando o nariz
em meu pescoço.
— Você realmente mordeu ela? ― Tentei me
soltar de seu aperto, mas ele não cedeu.
— Mordi. ― Caalin se afastou para me olhar
e começou a rir. ― Do que está rindo, idiota! ―
Rosnei fazendo ainda mais força para que ele me
soltasse.
— Desculpe, mas acho que eu teria gostado
de ver isso! ― disse ele mordendo os lábios e
semicerrando os olhos.
— Pervertido! ― resmunguei sentindo meu

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rosto corar.
— Me desculpe, eu devia ter te avisado.
— Me avisado do quê?
— Do chamado...
— Eu sei o que é! Já disse que estudei sobre
vocês, só achei que não fosse acontecer comigo,
afinal...
— Você é híbrida? ― Ele completou, acenei
com a cabeça.
— Até Aliver tem que responder ao
chamado, Nike.
— Por quê?
— A energia que circula no sangue de
qualquer criatura é uma energia pura e viva, mesmo
que você não seja completamente transformada
pela maldição, a parte malvarmo em você ainda
precisa dessa energia. Por isso que seus braços não
estão doendo mais, quando você atendeu o
chamado o ferimento terminou de curar. ―
Explicou ele traçando uma linha em meus braços e
os tirando debaixo d’água. As cicatrizes haviam
desaparecido por completo. Abaixei os olhos e
notei que as marcas em minha barriga também
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haviam desaparecido.
— todas as marcas que eu tinha...
— Sumiram. ― Fiquei boquiaberta
encarando-o, observando seu sorriso divertido. ―
Malvarmos não tem marcas, nem mesmo os
híbridos.
— Uma pena, eu gostava daquelas em
minhas costas!
— Gostavas das cicatrizes das chicotadas?
Não sabia que era masoquista também! ― Revirei
os olhos, Caalin sabia ser engraçadinho quando
queria.
— Não é por isso! É só pelo que elas me
faziam lembrar!
— E o que elas te lembravam? De não se
meter mais onde não é chamada?
— Está muito falante hoje! ― resmunguei.
— Elas me lembravam que nem sempre seria
recompensada por fazer coisas boas. E que as vezes
fazer a coisa certa vai me deixar em apuros e
poderia ser castigada, como daquela vez, mas
mesmo assim, dormir com a certeza de que fiz a
escolha que achei certa, e que isso ajudou pelo
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menos uma pessoa, vale a pena!


Caalin permaneceu em silêncio.
— Achei que você fosse demorar mais por
lá! ― Mudei de assunto tentando sair da água, mas
ele me sentou novamente em seu colo de costas
para ele, tirou meu cabelo do caminho e ficou
traçando linhas e redemoinhos em minhas costas
com as pontas dos dedos, aquilo era tão calmante.
— Fui até lá só para verificar, ao que parece
o vitrino foi levado de Fernic. Mas existe mesmo
um guardião lá!
— O que vamos fazer com ele?
— Ainda não sei, mas precisamos tomar
cuidado com isso... como foram as coisas por aqui?
— Um emissário de Ciartes apareceu. ―
Caalin ficou tenso de repente, parou de brincar com
minhas costas. ― Ele trouxe um convite de
casamento para Aliver, e ele quer que o
acompanhemos.
— Aliver devia tê-la nomeado como guarda
pessoal do rei, e não capitã da guarda real, vou
conversar com ele a respeito disso, senão você fica
presa à família real e podem exigir que você cuide
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dos outros membros da corte.


— Se eu deixasse de ser a capitã da guarda,
agora que dispensaram Toghus, quem seria? ―
Senti Caalin ficar tenso novamente.
— Zion, ela é a mais qualificada entre eles.
Eu a treinei junto com Aliver. ― Virei para trás
para poder encará-lo.
— Ela veio brigar comigo querendo que eu te
devolvesse.
— Sou um objeto para que você possa me
devolver a ela?
— Ela disse que você era dela, então ela deve
pensar que é! ― Ri.
— Eu a transformei, isso cria um laço
também, mas parece que ela não superou isso muito
bem... ― explicou saindo da banheira molhando
ainda mais o banheiro, Luviah ia ficar furiosa
quando visse a bagunça.
— Por que a transformou?
— Ela ia morrer, Ira e eu a encontramos
próxima ao lago Stanaj, havia fugido do castelo
depois de brigar com o pai e atravessou o lago
correndo, mas o gelo estava fino e se partiu. ― Ele
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endireitou os ombros e me ofereceu uma toalha,


usou sua magia e se secou imediatamente. ―
Quando a achamos ela já não respirava mais. Não
podia deixar ela morrer lá.
— Aí você resolveu ficar com ela?
— Por Gaia, não! Ela era uma criança! Mary
me enviaria para o inferno se eu fizesse isso, fico
pensando se ela não fará isso por eu ter ousado te
tocar também... ― Ele começou a murmurar.
— Então? ― Enrolei a toalha embaixo dos
braços e fiquei encarando-o, mesmo que não fosse
da minha conta, queria saber.
— Só aconteceu, Nike, assim como
aconteceu com o príncipe e você. ― Senti o rosto
corar e saí do banheiro, deixando-o para trás,
peguei meu uniforme no armário e o vesti. Caalin
ficou parado na porta do banheiro olhando para
mim, na certa esperando alguma reação.
— Estou com medo de ir a Ciartes ― falei
por fim, desviando o assunto. Caalin ergueu a
sobrancelhas e sentou ao meu lado na cama.
— Medo de quê?
— Da rainha mandar cortar minha cabeça por
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causa do que eu fiz...


— Ela não iria mandar cortar sua cabeça,
Nike, sabe que em Ciartes os condenados são
queimados vivos! ― Um arrepio subiu em minha
espinha fazendo meu estômago revirar. ―
Desculpe! Foi uma brincadeira sem graça!
— Muito sem graça! ― resmunguei.
— Não vão mandar te matar, fique tranquila
quanto a isso! ― Ele deu um beijo em minha testa
e me levantou, seguimos para o salão principal para
tomar o café, estava com tanto sono, mal conseguia
caminhar sem esbarrar em algo.

O salão estava bem mais movimentado


naquela manhã, haviam alguns Malvarmos que não
conhecia e duas mulheres com aparência humana
perto do rei, uma parecia ser sua cópia em versão
feminina, a mulher era magra e alta, tinha os
cabelos em mesmo tom ouro envelhecido e a pele e
olhos cor de avelã de Aliver, um sorriso alegre no
rosto e um ar jovial, a outra tinha cabelos branco-
acinzentados e olhos vivos cor de carvão, a pele tão
clara quanto a minha e as orelhas levemente

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pontudas, não parecia ter mais que dezesseis anos.


— A mulher igual ao rei é Yeferis, sua mãe,
a mais jovem com cara de quem vai comer um dos
guardas como café da manhã é a princesa Oriel,
irmã do rei, ela é híbrida assim como você, meio
humana, meio malvarmo ― explicou Caalin
baixinho enquanto entrávamos pela sala do trono.
— É impossível conquistar a amizade dela, Oriel
não tem nenhuma amiga, nunca teve! ― Fiquei
com pena dela, mas ela não parecia se importar
com isso.
— A mãe dele parece um amor!
— Ela é! ― Nos aproximamos, fiz uma
reverência para o rei, que acenou de volta e apertou
de leve a mão de Oriel.
— Ori, essa é a nova capitã da guarda,
Nikella! Nikella, essa é minha irmã, princesa Oriel.
— Por mais agradável que ele tentasse ser ao nos
apresentar, pude sentir sua tensão. Oriel olhou para
mim da cabeça aos pés, ergueu as sobrancelhas e
um sorriso debochado surgiu em seu rosto.
— Trouxe mais uma garotinha bonita para o
castelo e lhe deu um cargo só para poder levar ela

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para cama também? ― Ela estalou a língua, senti


Caalin enrijecer ao meu lado e o olhar de pânico do
rei para Oriel me surpreendeu, Zion parecia estar
prestes a puxar a arma e ir até a princesa também,
deve ter ficado ofendida pelo “mais uma garotinha
bonita”. ― Se continuar assim irmão, não vai
conseguir pretendentes.
— A princesa é um amor, vossa majestade!
— Nunca precisei lutar tanto para colocar um
sorriso no rosto, mas o esforço valeu a pena, pois
Orion ficou desconcertada, ela provavelmente
esperava que eu perdesse a cabeça e lhe
respondesse a altura.
— Não seja falsa, menina! Diga logo o que
pensa de mim! ― Ela se levantou e veio em minha
direção, ficando a menos de um palmo de mim, era
a primeira pessoa que eu conhecia que não era
maior que eu, tínhamos a mesma estatura, então
poderia encará-la sem ter que olhar para cima, dei
um passo mais para perto dela chegando bem perto
de sua orelha antes de cochichar o mais baixo que
pude para que ela fosse a única a ouvir.
— Acho que vossa alteza está precisando de

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um macho que goste de brincar com um chicote,


talvez ele lhe ensinasse bons modos! Se quiser,
posso te apresentar alguns! O chicote eu tenho, mas
não gosto de domar fêmeas! ― Ela corou e se
afastou cobrindo a boca com a mão.
O silêncio no salão era absoluto quando ela
voltou ao seu lugar, ainda com o rosto tão vermelho
que destacou os olhos negros.
Fui até meu lugar na mesa dos guardas como
de costume e me sentei, pegando uma xícara que
Zion serviu para mim, a olhei desconfiada, mas dei
de ombros, ela não me mataria envenenada com
tanta gente olhando. Caalin estava olhando-me de
soslaio:
— O que falou com ela para que ela perdesse
a pose daquela maneira? ― perguntou ele depois
que comecei a comer um prato de creme.
— Sugeri que ela estava precisando de um
macho e que eu poderia arrumar um para ela! ―
Zion estava atenta me ouvindo, ela e Caalin
engasgaram com o chá e se esforçaram para não rir.
— Você só pode ser louca, Nike! ― disse ele
olhando discretamente para a princesa que ainda

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estava corada e olhava de vez em quando em nossa


direção.

Após o café, Caalin foi encontrar-se com o


rei para relatar o que havia descoberto em Fernic,
eu seria a última a saber, pois havia me esquecido
completamente de perguntar, então fui até a sala da
guarda para obter o relatório da noite anterior,
solicitei a verificação das armas e do arsenal e fui
até Docinho para ver como ela estava e se estava
bem cuidada.
Em menos de uma semana ela já estava com
o dobro do tamanho e começava a soltar fogo por
todos os lados, teria que fazer algo em relação a
ela, não poderia deixá-la aqui, mesmo que o castelo
fosse protegido por uma magia que não permitia
que ele derretesse, não sabia o que um dragão
híbrido poderia fazer com ele caso misturasse seus
poderes.
— Acho que você é o bichinho perfeito para
mim, mas não vou poder te deixar aqui! ― falei
observando Docinho escalar meu braço e aninhar-
se em meu ombro.

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— Por que não a leva e dá de presente de


casamento ao rei Ericko e sua noiva? ― A voz
feminina atrás de mim me fez pular.
— Oriel... ― A olhei desconfiada, mas ela
estava com as feições diferentes, suaves e com um
brilho no olhar.
— Me desculpe por mais cedo, você foi a
primeira pessoa que me enfrentou e não me tratou
diferente por eu ser da família real!
— Não importa quem você seja, se me tratar
com respeito eu te tratarei igual, se me irritar, bom,
confesso que não te dei uns tapas, pois Caalin teria
me impedido! ― falei, ela riu e esticou os dedos
para tocar em Docinho, ela chiou e soltou algumas
fagulhas na direção de Orion.
— Vim para o castelo por causa da festa de
casamento em Ciartes, odeio festas mas gosto da
comida deles! ― Ela sentou ao meu lado no banco
de pedra, o dia havia amanhecido nublado, mas a
neve ainda não havia começado a cair.
— Odeio comida dos Salamandras, acho
nojenta! ― Ela parecia desconfortável sem saber
como manter a conversa mas falou:

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— Bom, espero que possa me fazer


companhia enquanto estivermos em Ciartes, nunca
fui até lá, estou um pouco receosa sobre essa
viagem.
— Pode deixar, vou ficar por perto! ― Eu
lhe dei um sorriso sincero quando ela fez um breve
aceno e saiu dali.
Fiquei pensando sobre o presente, mas dar
Docinho para eles não me parecia boa ideia, já que
eles teriam afazeres demais para poder cuidar dela.
Outra ideia veio em minha mente, poderia pedir
para que Susano e Annie cuidassem dela. Susano
gostava de dragões e certamente poderia
domesticar e cuidar de Docinho, espero que eles
não me considerem uma inimiga por ter tentado
matar Nyumun, esperava também que Caalin
tivesse razão e que Sheriah não resolvesse me
matar quando me visse ao lado de Caalin e Aliver.

Durante o jantar, Aliver anunciou as


mudanças na guarda, colocando Zion como Capitã
da guarda e Caalin e eu como seus guardas
pessoais, Caalin não pareceu muito à vontade com

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isso, mas assentiu quando o mesmo mestre da noite


anterior o nomeou, confesso que fiquei feliz
quando retiraram o emblema de meu peito e deram
a Zion, a rotina de capitã da guarda era chata
demais. Zion pareceu feliz com o cargo, talvez
aquilo ajudasse a fazer seu pai se sentir melhor,
onde quer que ele estivesse agora.
Oriel me encontrou depois do jantar e me
levou até a alfaiate do castelo, ela se recusou a me
deixar usar o uniforme da guarda no casamento,
disse que precisava de algo incrivelmente lindo
para que ela não se sentisse deslocada na festa,
imaginei o quanto era grande o ego dela para que se
visse assim, embora Orion fosse linda.
Quando cheguei em meu quarto, Caalin
estava lá sentado na janela, os flocos de neve que
entravam por ela caiam em sua pele e não
derretiam, enfeitando-o.
— Posso ajudar em alguma coisa? ― Fechei
a porta e comecei a tirar a roupa, entrando dentro
de uma das camisolas de renda vermelha que
Luviah havia trazido sabe deus de onde para mim.
— Não está ajudando em nada com o que eu

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vim fazer, vestida assim! ― disse ele olhando-me


na camisola e mordendo os lábios, peguei o
edredom de cima da cama, me sentei sobre o
colchão e me enrolei com ele.
— E agora? Consegue não se distrair
comigo? ― perguntei de forma debochada, Caalin
riu e assentiu.
— Amanhã vamos até Paliath, ver se o
vitrino foi levado para lá e depois vamos a Fernic
encontrar o guardião com a Alma das águas para
ver se ele ou ela está disposto a conversar! ― disse
ele andando até a cama e tirando o edredom de
cima de mim.
— O quê? Eu vou poder ir junto?
— Sim, o rei quer que você vá também para
que possamos cobrir rapidamente toda a área de
Paliath e voltar o mais rápido possível, já que o
casamento em Ciartes é na próxima semana. ―
Caalin estava brincando distraído com as rendas da
camisola.
— O que faremos se o guardião nos atacar?
— Ele parou de mexer na renda e me encarou.
— Vamos atacar de volta. ― O jantar

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pareceu pesar uma tonelada em meu estômago


quando ele disse aquilo, já havia tirado a vida de
um dos guardiões e não queria precisar tirar de
outro, fazer o trabalho sujo de Higarath, Caalin
pareceu ler meus pensamentos, pois segurou meu
rosto e me beijou, acariciando minhas bochechas
com as pontas dos dedos.
— Vamos fazer o máximo possível para que
não precisemos atacar ninguém!
— Caalin, e se houvesse um jeito de fazer
essas Almas se soltarem de nós... quero dizer,
devolvê-las a Gaia ou fazer com que elas fossem
livres...
— Libertar as Almas dos Elementos? ― Ele
arqueou as sobrancelhas e sorriu. ― Aí só
precisaríamos nos preocupar de lidar com o
primeiro mago negro que existiu, ainda assim ele
seria um tormento, uma batalha muito difícil, já que
os primeiros filhos de Ayrana guerrearam contra
ele e não conseguiram vencer. Se as Almas
desaparecessem e ele percebesse isso, percebesse
que não poderia ter o poder delas, ele controlaria
todos os sombrios dos Doze Mundos num ataque

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aos que mantiveram as mentes livres de suas


maldições, seria uma guerra de luz e trevas. ― Ele
explicou voltando a traçar círculos em minha
barriga.
— Ele tinha o Livro das Sombras, não é? ―
Caalin sugou o ar quando perguntei e me encarou
com terror nos olhos.
— Quem te falou do livro?
— Aliver, ele quer que eu o destrua. Aliver
tem certeza que Ausiet e Hobner querem o livro
para invocar Érebo e usar o poder dele para fazer
um exército de magos negros.
— Você sabe onde está o livro? Tinha algo
sobre ele nas lembranças de Fairin? ― Caalin havia
perdido o resto da cor que nem sabia que tinha.
— Não... mas a Árvore do Fogo, ele tem
certeza de que existe uma cópia do livro lá! ―
Caalin assentiu.
— Não tem como entrar na árvore, só quem
tem a linhagem de Grisela pode entrar na árvore
sem a chave! ― Sorri para ele e mostrei-lhe o
pingente no pescoço.
— Essa é a chave? ― Ele fez uma careta
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para o colar depois me encarou. ― O príncipe deu


a você a chave da Árvore do Fogo, Nike? ― Fiz
que sim com a cabeça, Caalin desviou o olhar para
o nada e suspirou. ― Você nunca o tirou, nem por
um minuto.
— Não, não o tirei porque para mim ele é
uma lembrança constante de como eu falhei e um
lembrete para que eu não aceite o chamado das
sombras. ― Caalin me olhou de novo, os olhos
negros como o céu sem estrelas. Caalin abriu a
boca como se fosse dizer algo, mas desistiu, a luz
do quarto se apagou e ele me puxou para cima e me
enrolou nos braços, dessa vez estavam frios como
gelo, mas não me importei, apenas deitei em seu
peito, cansada demais pela noite anterior para
discutir sobre aquele último olhar frio, então apenas
deitei e dormi.

Caalin me acordou antes do sol nascer, ele se


levantou da cama jogando o edredom por cima de
mim, foi até o armário e pegou meu uniforme de
caça, com o corpete de couro de dragão e as calças
de couro forradas e as jogou em cima da cadeira

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perto da cama, foi até o banheiro e ligou a água da


banheira, cobri a cabeça, estava com preguiça e
sem vontade de sair da cama, mas ele tirou o
cobertor de cima de mim e resmungou:
— Levante-se e se arrume ou vou te deixar
aí! ― Me senti tentada a mandar que ele fosse
sozinho, mas se o fizesse, ele iria mesmo.
— Vai ficar com essa cara para mim até
quando? ― perguntei, ele respondeu com um baixo
rosnado e saiu do quarto. Podia interpretar aquilo
como um “muito tempo”.

Depois de alguns minutos na água pensando


no motivo da cara feia de Caalin, cheguei a única
conclusão que ele estava com ciúme do colar, não
exatamente do colar, mas do que ele podia ou não
representar para mim, talvez Caalin acreditasse que
eu ainda tinha algum sentimento por Kuran, e não
fazia ideia de como fazer com que ele deixasse isso
passar, já que Kuran não estava mais entre nós, e
mesmo se estivesse, não poderia representar uma
ameaça a Caalin ou o que eu sentia por ele.
Aquele pensamento também me fez refletir:

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o que eu sentia por Caalin? Ao ficar perto dele eu


tinha um misto de sentimentos, uma confusão, na
verdade, que não conseguia separá-los, não
conseguia distinguir cada sentimento, cada desejo e
a vontade constante de estar perto dele. Quando me
lembrava de Kuran, de todo o tempo que passamos
juntos, percebi que não sentia o mesmo, nem de
longe ele me causava esse misto de sensações,
embora eu tivesse um forte desejo por ele. Com
Caalin parecia que havia uma ligação, não a ligação
do juramento de guardiã que eu havia feito, não,
muito antes disso. Desde o dia em que o vi em
Ciartes e que depois daquilo me peguei várias
vezes pensando nele, desde que ele entrou naquela
caverna depois que destruí as minas, eu senti que
podia confiar nele, senti que devia ficar ao lado
dele e que era ali que estava minha casa.
— Ainda aí? ― Ele perguntou colocando a
cabeça para dentro do banheiro, a água já estava
fria e eu nem havia percebido. Saí da água e fui me
vestir imediatamente. Caalin trouxe o café no
quarto e serviu uma caneca bem grande de café
para mim, e uma fatia de pão doce com geleia.

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— Você não se importaria em perder o poder


da Alma dos raios? ― perguntei enquanto comia.
— Não me importaria se ele sumisse, desde
que fosse para Higarath não o pegar. Não preciso
dele para derrotar meus inimigos mesmo!
— Precisou dele para me parar aquele dia. ―
Divertimento brilhou nos olhos de Caalin quando
ele me encarou com um esboço de sorriso no rosto.
— Eu quis te mostrar aquele poder, só não
fazia ideia de que ele não ia ter efeito nenhum
sobre você!
— Por quê?
— Também queria saber... ― Ele ficou me
observando enquanto terminava meu café.
— Uma vez, Susano me disse que um mestre
nunca fere seu guardião e vice-versa.
— Eu te prendi na gaiola de energia antes de
você fazer o juramento a mim, Nike ― retrucou ele
fazendo-me lembrar da estalagem logo que nos
encontramos.
— Por que não vai até Mogyin perguntar a
ela?
— Quando vou lá, normalmente levo dias
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para voltar, atravessar o círculo até aqui


novamente, uma vez levou quase um mês... não é
boa ideia sair agora. ― Ele ficou tenso, terminou o
café e se levantou, levantei-me para ir com ele, Ira
abriu a porta e entrou no quarto saltando sobre meu
ombro e enrolando-se em meu pescoço.
— Não podemos mais teleportar dentro do
castelo, sua barreira não permite! ― disse Caalin
quando saímos do quarto, a barreira ia um pouco
além do castelo, provavelmente teríamos que andar
até alguns metros depois do portão para poder
teleportar. Quando estávamos saindo do castelo,
encontramos Zion com os guardas do lado de fora,
ela sorriu e acenou quando passamos por ela.
— Vê se volta logo, menina! Não sei se dou
conta de Oriel sozinha! ― Zion piscou para mim,
Caalin olhava surpreso de Zion para mim. Só
depois que passamos pela “escultura” do dragão e
saímos pelos portões que ele ousou falar:
— Você mordeu ela e a conquistou? ― Ele
tinha uma expressão pasma no rosto.
— Eu sou a líder da matilha, Zion e Oriel
estão abaixo de mim! Quando mostrei os dentes,

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elas abaixaram a cabeça e me reconheceram como


o lobo alfa! ― Comecei a rir da cara de espanto
dele. ― Eu realmente ficaria rica se ganhasse uma
moeda toda vez que você me olha assim, Caalin!
— E onde eu me encaixo nessa história?
— Toda alcateia tem um casal dominante! ―
Mantive o sorriso no rosto. Caalin sorriu e meneou
negativamente a cabeça, respirando fundo.
— Acho que você tem um parafuso a menos!
— Ele me deu a mão, me preparei para teleportar e
acabei me sentindo mal por ter comido tanto no
café.
— Vamos logo! ― Apertei-me contra ele e
fechei os olhos mas vi a luz do portal mesmo de
olhos fechados.

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Capítulo 10

Caalin:

Nos levei até a cidade de Rodsen em Paliath,


a cidade principal próxima ao local onde o castelo
de Hobner foi construído à beira do penhasco das
cinco lanças, o palácio tinha uma visão privilegiada
do mar de Hêsir, com suas águas escuras e
cinzentas, a cor não era bonita ou atrativa, mas ao
anoitecer, no horizonte, podiam ser vistas as luzes
dos espíritos cruzando os céus sobre o mar.
A cidade era cheia de caçadores e
mercadores, uma das maiores cidades de comércio
de Vegahn. Nikella com o uniforme de caçadora
não chamaria atenção desnecessária, pelo menos
não enquanto mantivesse o capuz sobre o rosto, não
tinha como ela não ser vista caso o retirasse, ela era
simplesmente linda. Ira estava enrolado no pescoço
dela, protegendo-a e disfarçando seu cheiro,
haviam poucos humanos em Paliath e mesmo sendo

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híbrida, a diferença podia ser percebida de longe


por aqueles malvarmos à nossa volta. Nike olhou
para mim de soslaio, pegando-me de surpresa
enquanto a estava observando, ela deu um sorriso
sedutor e mordeu os lábios cheios, então puxou o
capuz mais para frente, a cauda de Ira estava
dançando em seu peito, sobre aquele maldito
pingente, a chave da Árvore do Fogo.
“Um lembrete para que eu não aceite o
chamado das sombras”
Não conseguia entender o apego que ela
tinha àquele pingente, se ela não sentia nada por
ele, então por que ainda usava o colar? Ela não
fazia ideia de que Kuran ainda estava vivo, e se
soubesse? Logo iríamos saber, logo ela o veria no
Castelo do Sol e eu tinha certeza de que ela ficaria
com raiva de mim por não ter dito logo a verdade.
Como se tivesse notado meu olhar sobre o
pingente, ela o enfiou para dentro da blusa e bufou.
Ficou brincando com a cauda de Ira enquanto nos
dirigíamos para a saída da cidade.
— O que exatamente estamos fazendo aqui?
— perguntou ela quebrando o silêncio entre nós.

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— O vitrino não vai estar nessa cidade se não


estiver dentro dos armazéns do castelo, já que ele
tem algumas camadas de barreiras de proteção que
você vai desfazer, ele deve estar em outro mundo
sendo forjado. ― Os ombros de Nike encolheram
quando falei sobre desfazer as barreiras.
— Eles vão perceber.
— Não se você não as destruir, só precisa
abrir um buraco para que nós possamos atravessar!
— Por que você não faz isso? ― Ela virou-se
totalmente em minha direção e cruzou os braços.
— Vou estar de vigia, caso nosso
companheiro guardião apareça.
— Isso, eu acabo com minha energia abrindo
brechas na muralha e você fica vigiando, ótimo
plano! ― Ela grunhiu.
— Você é uma maga negra, Nike! Sua
energia nunca acaba! Você só sente o corpo
enfraquecer porque não treinou o suficiente para
expandir sua magia e porque o Yinemí tenta
prender esse poder, como eu disse em uma das
nossas primeiras conversas, seus poderes se
equilibram. ― Ela torceu a boca e continuou

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caminhando.
— E se eu liberar as Almas, o que vai
acontecer com a magia negra que eu possuo? ―
Senti um calafrio percorrer meu corpo.
— É melhor não pensar nisso agora! ―
Preferia mil vezes ter que enfrentar Higarath e um
exército de sombrios sozinho do que ter que erguer
uma espada contra ela.
Estava tudo calmo, calmo demais e ninguém
nos seguia, mesmo que estivéssemos bem
misturados com os outros, essa calmaria me parecia
suspeita. Saímos da cidade pela estrada principal,
indo em direção ao castelo de Hobner. Nikella
permaneceu em silêncio enquanto caminhávamos,
até mesmo Ira que estava ronronando havia parado
de fazer barulho, os únicos sons eram os da cidade
que ficou para trás e nossas botas na neve
endurecida da estrada.
Caminhamos por quase três horas quando
deixamos a estrada para trás e adentramos na
floresta congelada.
— Hobner confia muito nas camadas de
barreiras do castelo, ele não coloca sentinelas nas

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guaritas laterais. ― expliquei ao ver Nike olhar


algumas vezes para a estrada sumindo atrás de nós.
— Idiota igual Aliver.
— Deixa ele te ouvir falando assim!
— Acha que eu não diria isso na cara dele?
— Ela arqueou as sobrancelhas, tinha um sorriso
debochado no rosto.
— Acho que faria pior, tem horas que penso
que você não tem nenhum amor à vida! ―
retruquei, mas ela deu de ombros e continuou a
caminhar.
— Falta muito? ― Ela estava com um olhar
entristecido e fazendo biquinho para mim.
— Mais meia hora e alcançaremos os muros.
— Ela soltou um gemido e bateu os pés no chão. ―
Já sei, com fome! ― Foi a vez dela me olhar
espantada.
— Como sabe?
— Você só fica de mau humor quando está
com fome! ― Ela começou a rir e me empurrou.
— Mentira, eu estou sempre de mau humor!
— Está sorrindo agora! ― Ela corou e
disfarçou brincando com a cauda de Ira. Tirei uma
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pequena garrafa de vidro enrolada em um lenço de


lã de dentro do alforje e lhe entreguei.
— O que é isso? ― Ela desenrolou a garrafa
e um sorriso enorme apareceu em seu rosto.
— Chocolate quente cremoso com avelãs. ―
Ela abraçou a garrafa e suspirou.
— Acabou de ganhar muitos pontos com
isso! ― Ela abriu a garrafa e bebeu com gosto.
— Não sabia que estava contando pontos
quando fazia algo legal por você!
— Ahh ganha, e muitos! Quando eles
chegarem a um número, você vai ganhar um
prêmio.
— Que prêmio seria esse?
— É uma surpresa!
— Não gosto de surpresas, Nikella.
— Vai gostar dessa, pode deixar! E nem se
atreva a tentar fuçar minha mente enquanto durmo,
ou vai perder todos os pontos!
Ela terminou de tomar o chocolate e guardou
a garrafa dentro da bolsa.
— Agora fiquei curioso, quando foi que
ganhei mais pontos? ― Olhei para ela que havia
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parado e se apoiado em uma árvore para arrumar a


bota. Ela me encarou com um olhar indecifrável e
mordeu os lábios, mas não respondeu.
Quando nos aproximamos do castelo, Ira
desceu de seus ombros e correu para longe,
imediatamente passei parte de minha mente para
que ele vigiasse o lado do castelo mais próximo ao
penhasco enquanto eu ficaria perto das guaritas.
Nike se aproximou e colocou as mãos com cuidado
onde a barreira deveria começar, ela xingou
baixinho ao ser repelida pela barreira.
— Cuidado para não soar o alarme! ― falei,
ela olhou para mim e revirou os olhos, então suas
marcas negras apareceram junto com as sombras,
eram centenas delas, quase corpóreas, aquilo me
deixou em alerta, mas o controle de Nike sobre as
sombras era quase absoluto, não parecia que elas
poderiam a influenciar, não mais.
— Vá vigiar, Caalin! ― Ela deu a ordem
para mim, mas as sombras também se espalharam,
misturando-se na neve e desaparecendo entre as
árvores altas e congeladas. Me afastei em direção à
floresta, não muito longe e subi numa das árvores

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para ter uma visão melhor da região, assim poderia


ver qualquer um se aproximando, usando o poder
dos olhos místicos que havia recebido de minha
mãe quando fui à Mogyin pela primeira vez, podia
ver perfeitamente a barreira em volta do castelo.
Ela brilhava num tom azul pálido e tremia
quando Nike colocava sua própria energia para
abrir um buraco na barreira. Em volta dela, a
barreira estava instável, pareciam várias bolhas de
sabão, uma sobre a outra e, no ponto em que
Nikella estava, as cores da barreira tornavam-se
vinho e começavam a desfazer aos poucos, ela
estava fazendo aquilo com todo cuidado para a
barreira não se desmanchar e o alarme não ser
soado. Hobner tinha dois magos metamorfos na
guarda, eu os conhecia e sabia que eles me
reconheceriam caso eu fosse pego quebrando a
barreira, mas Nike não era conhecida deles, ela não
seria associada à Aliver se fosse encontrada ali, e
também é bem provável que não fosse pega, se
fosse, os magos não teriam a mínima chance contra
ela. Mesmo assim vigiaria para lhe dar um sinal
caso alguém se aproximasse dela.

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Estava tão preocupado em não deixar


ninguém se aproximar de Nikella, vigiando através
de meus olhos e de Ira que não percebi que alguém
havia se aproximado de mim, tive tempo apenas de
transformar o machado e saltar da árvore quando
alguém acertou uma espada sobre o galho onde eu
estivera a um milésimo de segundo.
Uma mulher de olhos negros e presas longas
havia saltado sobre mim, ela tinha um sorriso feral
e a pele cor de ébano, os cabelos cacheados
selvagens em volta do rosto formavam uma
moldura para um rosto de traços fortes, porém
belos, ela passou a língua sobre os lábios
volumosos e mostrou os dentes novamente.
— Você é a guardiã da Alma das águas! ―
falei, ela soltou uma gargalhada e girou as espadas
na mão.
— Hisana, rainha de Pollo! ― Ela se
apresentou erguendo o queixo, deixando as marcas
azul safira em seu corpo a mostra. Em sua testa
havia três pequenas esferas brilhantes azuis, os
pontos onde nasciam as marcas que desciam em
espiral ao redor do pescoço até os ombros.

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— Por que está me atacando? ― Mantive o


machado firme na mão, vigiando seus passos
suaves, ela vestia um traje que não combinava com
o que estava fazendo, muito menos com o clima de
Paliath, usava um vestido cinza na altura dos
joelhos, estava descalça e um brinco com presas
amareladas estava preso à sua orelha esquerda. A
rainha de Pollo, se ela dizia a verdade, era uma
amaldiçoada com a licantropia. Tentei me manter o
mais calmo possível para não alertar Nikella, não
podia nem olhar em sua direção para que Hisana
não a visse ali.
— Porque está invadindo a propriedade de
meu mestre! ― Ela mostrou os dentes para mim,
olhei de relance em direção ao castelo, Nike não
havia percebido nada ainda, mandei um aviso
silencioso a Ira para que ele voltasse e ficasse perto
dela, Hisana acompanhou meu olhar e rosnou
quando viu Nikella tentando abrir a barreira.
Quando fez menção de correr até lá, impedi
colocando o machado em sua frente.
— Não se atreva! ― rosnei girando o
machado nas mãos.

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— Quem vai me impedir? Você? ― Ela


gargalhou e suas marcas brilharam num azul ainda
mais forte. Sem que eu tivesse tempo de reagir ela
atirou algo brilhante em minha direção, que parti
com o machado espalhando um pó fino e vermelho
ao meu redor, mas a neve sob meus pés derreteu
formando uma bolha ao meu redor.
Ela pretendia me afogar.
Tentei me soltar da bolha, mas ela estava
impedindo que eu usasse minha magia, impedindo
de usar a Alma dos raios também. Não é à toa que
Higarath pretendia pegar a Alma do gelo e a Alma
das águas primeiro, eram as duas mais poderosas.
— Não vai tentar escapar? ― Ouvi sua voz
através da água. Sorri para ela, ela não entendeu o
porquê do meu sorriso até cair de cara na neve, Ira
havia saltado sobre ela e a pressionava contra o
chão, ela deu um rugido alto, fazendo a terra tremer
quando o derrubou de cima dela, Ira a atacou
novamente, mas ela foi mais rápida e o jogou
contra uma árvore que desabou sob o peso dele.
Em nenhum momento a bolha fez menção de
se desmanchar, e eu já estava quase sem ar,

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invoquei a Alma dos raios, mas ela parecia ter


adormecido dentro de mim. Só então percebi que a
água que ela me envolveu estava misturada com pó
das folhas da Árvore do Fogo, pó que estava dentro
do objeto que ela atirou em mim. Mesmo com
vitrino por todo meu corpo, o pó das folhas da
Árvore do Fogo tinha o poder de adormecer meus
poderes e poderia me matar caso eu engolisse
aquela água. Ela tocou a bolha com as mãos e
suspirou.
— Não achei que fosse tão fácil matar você!
— Ela sorriu de forma doce e acariciou a bolha
com as pontas dos dedos, como se fosse rasgar a
bolha com as garras. O que aconteceu a seguir foi
rápido demais para que eu pudesse registrar com
meus sentidos quase dormentes, uma mancha de
sangue tingiu a água dentro da bolha impedindo
que eu visse o que estava acontecendo, demorou até
que ela se dissolveu na água dando-me a chance de
ver Nikella golpeando as espadas de Hisana com
Siferath com uma força tão grande que enviava
vibrações através da bolha e do chão.
Um corte havia marcado o rosto de Hisana,

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manchando-o de sangue, ela parecia ter dificuldade


em se defender dos ataques cada vez mais rápidos
de Nikella, até que Hisana apontou para mim e fez
a bolha se contrair. O resto do ar que mantinha em
meus pulmões foi expelido, mas o que deveria ter
feito Nikella soltar a arma, fez com que Hisana
preferisse estar ali dentro comigo. Nikella virou um
monstro. Um monstro que eu não gostaria de
enfrentar nem em meus pesadelos. Ela misturou
novamente as transformações, as orelhas pontudas
e os cabelos brancos e as marcas negras e olhos
vinho, mas dessa vez as sombras a cobriram como
um manto e ela rosnou alto, fazendo até Ira que
estava cambaleante fugir. Hisana ficou encarando-a
boquiaberta com as espadas frouxas nas mãos,
antes de cair com um golpe no peito. As sombras
haviam se projetado do punho de Nikella e
atingiram Hisana em cheio no peito, fazendo uma
massa escura sair dela e começar a criar forma. Era
Higarath.
Com Hisana desacordada, a bolha se desfez,
deixando-me cair quase inconsciente no chão.
Queria me levantar e ajudá-la, mas meu corpo não

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respondia aos meus comandos. Nikella ainda


parecia possessa quando avançou sobre Higarath
com a foice nas mãos, depois daquilo o mundo
começou a escurecer, a última coisa que vi foi um
fio vermelho enroscado no punho dela, esticando-se
e deslizando na neve em minha direção, ligando o
fio ao meu punho.

Nikella:

Ele estava diante de mim novamente, ao lado


do corpo caído de Hisana, parecia ter saído de
dentro dela, mas não era o próprio Higarath, era
uma sombra, como as minhas sombras que agora se
projetavam ao meu redor, vestindo-me como uma
proteção, mas ao vê-lo ali, diante de mim, elas
começaram a pulsar, a falar comigo novamente. O
aperto em meu corpo ficou ainda mais intenso
quando elas pareciam tentar entrar em minha pele,
querendo me tomar de fora para dentro.
Soltei outro rosnado quando Higarath deu um
passo em minha direção e levantei Siferath.
— Sei por que ele tentou dominar você,

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tentou te usar, seu poder é quase tão grande quanto


o meu! ― Higarath deu um sorriso maldoso
quando se aproximou mais, e agora suas sombras
estavam vindo em minha direção, dando força para
as vozes em minha cabeça: “Apenas nos aceite,
diga que nos aceita! Peça nosso verdadeiro poder e
nós a faremos a rainha dos mundos! ”
— Vá para o inferno! Você e suas sombras
de bocas grandes! ― urrei tentando fazê-las se
calar.
— É uma oferta tentadora, não é? Rainha dos
Doze Mundos! ― Ele esticou a mão em minha
direção. ― Por que não as aceita?
— Não quero ser igual a você! ― cuspi as
palavras.
— Não? ― Ele ergueu as sobrancelhas e
apontou para Hisana. ― Você já é igual a mim,
querida! Matou seu companheiro por mais poder...
— CALE A BOCA! ― gritei atacando-o
com Siferath, mas ele se desmanchou e apareceu
atrás de mim, segurando Hisana e a erguendo do
chão. ― Solte-a agora! ― bufei sentindo-me cada
vez mais pesada e lenta. Ele controlava as sombras,

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todas elas, até as minhas, que agora tentavam me


prender, mas o Yinemí parecia me ajudar,
mantendo minha mente limpa enquanto tentava
fazê-las ceder. Tentei atacá-lo novamente, mas
Higarath usou Hisana como escudo então hesitei
dando um passo para trás, não queria matar mais
um guardião.
— Não vai me atacar por que posso rasgar a
garganta dela? Que atitude nobre e admirável! ―
Ele estava com as garras pressionadas com tanta
força no pescoço dela que havia perfurado a pele e
uma linha de sangue escorria da ferida aberta.
Higarath então a beijou, e quando a soltou, ele
havia tirado algo de dentro dela, as marcas azuis
em seu corpo haviam se apagado e uma pequena
bolinha viva flutuava ao redor dele. Eu estava
completamente paralisada, o horror tomando conta
de cada pedaço de minha mente, ele havia tomado a
Alma das águas de Hisana.
— Desgraçado! ― Ergui Siferath com
dificuldade, ainda presa pelas sombras, Higarath
ergueu a luz azulada nas mãos e a engoliu, fazendo
as sombras se agitarem e me soltarem, a brecha que

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eu precisava para atacar. Girei a foice nas mãos e o


ataquei, mas um escudo de água apareceu diante
dele, defendendo meu ataque. Eu o congelei e o
quebrei, fazendo várias estacas de gelo se
projetarem do solo e o atacarem, o escudo de água
não foi páreo para as estacas, que atravessaram seu
corpo de sombras apenas fazendo-o se espalhar
pelo ar. Olhos vermelhos pairaram sobre nós
quando ele desceu novamente, só que em direção à
Caalin, que ainda estava molhado e desacordado no
chão. Foi como se o tempo ao meu redor tivesse
desacelerado. Juntei as mãos e com as minhas
sombras e fiz uma espada, corri para Caalin e girei
a espada rápido o suficiente para acertar a massa
negra que ia em sua direção. Um guincho
ensurdecedor fez a terra tremer novamente, caí no
chão pressionando a cabeça, aquele som parecia
que ia fazê-la explodir, mas a massa não voltou,
havia sido destruída por aquele ataque, ou pelo
menos havia conseguido fazê-lo recuar.
— Caalin! ― chamei esfregando suas mãos,
ele respirava com dificuldade, sua pele estava mais
fria do que o normal mesmo depois que usei meus

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poderes para secá-lo. ― Por favor, por favor,


acorde! ― Tirei seu cabelo de cima do rosto, mas,
por mais que eu o sacudisse ele não despertava.
Meu coração começou a bater violentamente,
assustado demais a cada batida mais lenta do
coração dele. ― Por favor! Não posso perder você
também! ― As lágrimas se acumularam nos cantos
dos meus olhos e começaram a escorrer. Uma mão
bateu em meu pé, me virei mostrando os dentes,
mas era apenas Hisana, ela estava com um pequeno
frasco com um líquido verde na mão erguida, o
rosto ensanguentado sujo de neve e folhas parecia
suplicante.
— Pó das folhas de fogo... ― Ela estava
olhando para Caalin. ― Havia pó das folhas de
fogo na água, dê isso para ele!
— Por que confiaria em você? ― gritei.
— Porque é o único antídoto! ― Ela deitou a
cabeça no chão novamente, chiando baixinho e
cobrindo o rosto com as mãos. Rapidamente
entornei o antídoto na boca de Caalin, esperando
por qualquer reação, então, segurei suas mãos e
fiquei desejando, pedindo para quem quer que

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pudesse ouvir minhas orações, para trazer ele de


volta.

Caalin:

“― Acorda, menino humano! ― disse


aquela voz alegre e familiar em minha cabeça, tudo
parecia girar ao meu redor e meu estômago
embrulhou. Abri os olhos devagar, tentando
diminuir a dor na cabeça conforme o brilho do sol
tentava me cegar. Olhei para seu rosto, tentando
ter certeza de que era ela mesma quem falava
comigo. Os olhos brancos e o sorriso feral me
atingiram como uma pedrada. ― Era apenas uma
lembrança, tinha certeza disso, pois ela não estava
mais entre nós.
— Ah, que bom que está acordado! ― Ela
sorriu e estendeu a mão para que eu levantasse.
— Quem é você? ― Sabia quem era, mas a
voz que fez aquela pergunta, mesmo sendo minha,
estava distante, fora de meu controle.
“Uma lembrança! ” repeti.
— Aelita, Aelita Orisher! General do
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exército real de Vegahn, sirvo à rainha Frayena!


— Ela me deu um sorriso incrível, mesmo com as
presas que não me assustavam agora, mas
assustaram um pouco na época daquela
lembrança.
— Caalin Arbarus ― respondi ficando de pé
e limpando a neve da roupa. ― O que houve aqui?
— perguntei franzindo o cenho, estávamos em uma
floresta imensa, congelada, mas cheia de vida,
Aelita olhou em volta e bufou.
— Desculpe, achei que você fosse um
inimigo.
–Você me acertou? ― Ainda sentia uma
pontada na cabeça, passei a mão sentindo o
sangue escorrer, Aelita então se aproximou de mim
e lambeu minha testa, limpando o sangue e
manchando seus lábios com o vermelho. A olhei
sobressaltado e ela riu.
— Você é filho da criadora, não é? ― Ela
mostrou o braço, a marca que minha mãe havia
deixado nela.
— Você é a menina que ela salvou na terra e
transformou em Malvarmo? ― perguntei surpreso.

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Aelita negou com a cabeça.


— Sou descendente dela! ― Ela ajeitou os
cabelos longos e brancos, jogando-os para trás. ―
Fryn era minha tataravó, mas morreu tem um bom
tempo! ― Ela começou a caminhar entre as
árvores, notei que vestia uma armadura de batalha,
porém uma armadura leve e de aparência frágil,
poderia facilmente ser partida se fosse atacada em
alguns pontos.
— Onde estamos?
— Floresta de Ghastath, no coração de
Blizzion! ― Ela olhou para mim por cima do
ombro.
— O que pretende fazer comigo? ―
perguntei, ela parou de andar e ergueu as
sobrancelhas.
— Nada! Só esperei você acordar, pois não
queria que morresse congelado e desacordado na
neve! ― Então, começou a andar novamente.
— Deixe-me ir com você! ― falei
observando atentamente todas as armas que
carregava e a destreza com que se movia, ela era
uma guerreira poderosa, assim como vovô Haalin,

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talvez até mais forte.


— Um humano não tem nenhuma serventia
para mim, menino!
— Posso lutar, treinei com meu avô por
muito tempo. ― Ela soltou uma gargalhada
divertida e me encarou novamente.
— Você é fraco, menino humano, se ficar
comigo, vai morrer! Estamos com muitos conflitos
por aqui, não quero ser responsável caso você
perca sua cabeça!
— Não me julgue antes de me conhecer! ―
Desembainhei a espada do lado do corpo, ela
bufou e se virou cruzando os braços.
— Menino humano, vá para casa! Vai se
machucar aqui!
— Não sou um menino! Tenho um nome! ―
retruquei quando ela se negou a sacar a espada,
ela pressionou os lábios numa linha fina, ainda
marcados com meu sangue.
— Se você conseguir me desarmar, te chamo
pelo nome! ― Ela sacou uma espada de aço com
uma pedra verde na empunhadura e a girou. Fiquei
por mais de uma hora tentando desarmá-la, mas
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ela se movia rápido demais, ágil demais para


minha lentidão humana, meu treinamento perto
dela parecia servir apenas para morrer de forma
menos feia, para dizer que tentei e que lutei. Ela
tomou a espada de minha mão num rápido
movimento, um giro preciso em que segurou meu
pulso e estalou a língua. ― Vá para casa, menino
humano! ― Ela passou a mão em meus cabelos, e
me entregou a espada. Irritado, deixei um raio
escapar em sua direção, fazendo-a derrubar a
arma. Ela arregalou os olhos e mostrou o sorriso
predatório novamente.
— Consegui te desarmar!
— Enfim, uma surpresa! ― Ela andou até
mim. ― Acho que pode ser útil para mim, Caalin!
— Meu nome pareceu música em seus lábios, ela
tirou uma pequena adaga de vidro do cinto na
perna e cortou a palma da mão, deixando sangue
transparente, quase prateado escorrer pela lâmina.
Fiquei paralisado olhando-a, Aelita se aproximou
de mim e sussurrou ao meu ouvido: “Se você
sobreviver a isso vou te tornar o melhor e mais
poderoso guerreiro dos Doze Mundos!” então, a

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dor irradiou em meu peito quando ela cravou


aquela adaga no meu coração. Era como se meu
corpo estivesse congelando de dentro para fora,
cada batida sofrida de meu coração enviava ondas
de choque e gelo em minhas veias. Estava deitado
na neve e Aelita de pé ao meu lado dizia: “Vamos,
Caalin, não desista agora! ” E suas mãos quentes
acariciavam meu rosto, ela não ia sair de meu lado
até que eu mudasse, ou morresse. Alguns minutos,
ou horas depois e a dor se intensificou de maneira
tão absurda que comecei a perder os sentidos.
“Caalin, não morra! ” disse Aelita uma última vez,
ela apertou minha mão com força, o rosto gravado
em uma expressão de pânico, ela devia estar
arrependida, tinha certeza agora de que eu era
fraco, que não sobreviveria a mudança.
Olhei para a mão apertada contra a minha,
um laço vermelho brilhante envolvia nossas mãos,
sabia o que ele significava, minha mãe sempre
falava do laço que une duas metades de uma
mesma alma quando estão em corpos diferentes,
ela havia criado Mogyin com uma árvore
gigantesca que conectava os mundos e deixava

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essas linhas visíveis para ela, quando ela chegasse


em Mogyin, ela cuidaria de todas as almas e se
certificaria que elas encontrariam suas metades
novamente. Mesmo fraco, sorri em agradecimento
a ela por ter mandado Aelita até mim. Num último
suspiro, fechei os olhos como um humano e
despertei como malvarmo, vendo o mundo em que
estava, brilhar pela primeira vez.
— Oi, Caalin! ― O sorriso de Aelita foi a
primeira coisa que vi naquela nova vida.”

Era apenas uma lembrança ― pensei.


Mas por que agora? Por que lembrar de
Aelita depois de todo aquele tempo?
Nikella!
Senti minha mente se embolar, inquieta,
procurando por algo que não devia estar ali.
Quando fechei os olhos há pouco, vi o laço
novamente, o laço em volta das mãos de Nikella,
ela estava me chamando, mas não conseguia
responder.
“Por que a trouxe de volta? ” perguntei à
minha mente, esperando uma resposta que sabia
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que viria do outro lado.


“Porque uma alma partida, ou melhor, um
pedaço de uma alma, sozinho não consegue
cumprir seu destino! Apenas uma alma inteira,
cheia de amor e de paz pode cumprir sua missão,
por isso eu mandei todos de volta! ” O rosto
sorridente, os olhos verdes como folhas e os
cabelos cor de ouro estavam lá, bem no fundo,
Yellen, Ayrana... todos os nomes aos quais ela
respondia, minha mãe estendeu a mão para mim:
“Vamos, Caalin, ela está esperando lá fora! ”

O cheiro dela me alcançou no momento em


que recobrei a consciência, antes mesmo de abrir os
olhos, só de respirar já sabia que ela estava ao meu
lado. O cheiro de mel e hortelã misturado com sua
essência feminina, senti as mãos apertando meu
pulso e abri os olhos. Nike estava olhando para
mim com os olhos cheios de lágrimas, quando
percebeu que eu havia acordado, ela pulou em cima
de mim, fazendo o colchão macio afundar. Onde
diabos nós estávamos?

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— Achei que não fosse mais acordar! ― Ela


segurou meu rosto e começou a beijá-lo, minhas
bochechas, minha testa e minha boca.
— Acho que vou chegar perto da morte mais
algumas vezes! ― falei, ela grunhiu e se apertou
contra mim, escondendo o rosto em meu pescoço,
senti as lágrimas dela escorrendo em mim e notei
que seu corpo tremia.
— Desgraçado! Se fizer isso comigo de
novo, juro que vou em Mogyin te buscar só pra
mandar você de volta para lá eu mesma!
— E eu aqui me perguntando em quanto
tempo a doçura iria passar! ― Ela mordeu os lábios
e saiu de cima de mim, olhando para o lado, onde a
mulher estava encolhida próxima à janela, olhando
para fora com uma profunda tristeza no olhar. O
quarto simples, mas grande, era decorado em tons
de vermelho e marrom, a cama grande com dossel
em que estava deitado parecia ser macia demais
para uma cama de estalagem, estávamos em outro
lugar, mas o único cheiro que detectava nos lençóis
da cama era de produtos de limpeza, um aroma
sutil e floral. Não estávamos mais em Vegahn.

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Nike saiu do quarto sem aviso e fechou a


porta, em nenhum momento a mulher olhou para
mim, ficou apenas observando a escuridão da noite
do lado de fora, sua pele cor de ébano brilhava
contra a luz das velas espalhadas pelo quarto
iluminando o ambiente, a luz da lua do lado de fora
mostrava a verdadeira cor de seus olhos, um azul
tão claro que pareciam ter um pedaço do céu dentro
deles. Nikella voltou trazendo três xícaras
momentos depois, o perfume do chocolate com
avelãs preencheu o quarto quando ela colocou a
bandeja sobre a mesinha de cabeceira e levou uma
caneca para a mulher, Hisana.
— Está sentindo-se melhor? ― Nike
perguntou afagando as costas da mulher, ela a
estava confortando!
— Um pouco, obrigada. ― Hisana pegou a
caneca das mãos trêmulas de Nike, que veio para a
cama novamente e me entregou outra caneca e
sentou ao meu lado, tomando o chocolate e
tentando parar de tremer. Pela expressão de pesar
de Hisana, estava com medo de perguntar o que
havia acontecido.

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— Ele tem o meu poder agora ― disse ela


colocando a caneca vazia sobre a soleira da janela,
um arrepio tomou conta de mim quando aquelas
palavras me alcançaram, como um golpe baixo.
— Higarath... Ele tomou a Alma das águas
de você? ― perguntei, sentindo minha voz sumir a
cada palavra. Hisana assentiu e encolheu as pernas,
colocando a cabeça sobre os joelhos.
— Não morri graças à sua guardiã. ― Ela
encarou Nikella, que fez um breve aceno com a
cabeça e desviou o olhar de Hisana.
— Agora Higarath tem a Alma das águas...
— Um nó havia se formado em minha garganta,
impedindo-me de tomar o resto do chocolate, ele
estivera tão perto de Nike, de lhe tomar a Alma do
gelo também...
— Ele estava rondando minha mente faz
tempo, buscando uma brecha para me alcançar,
sabia que eu o destruiria caso ele se aproximasse de
mim. Mas recebi uma oferta de um dos reis de
Vegahn...
— Só há um rei em Vegahn! ― A repreendi,
ela me encarou irritada pela interrupção.

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— Recebi uma proposta de Hobner, ele


queria que eu o protegesse, não permitisse que
ninguém se aproximasse de seu castelo e em troca
ele me daria um livro, um livro com feitiços
antigos, capaz de desfazer minha maldição... ―
Sua voz havia se tornado um sussurro.
— Você é uma lobisomem mesmo? ― Nike
se inclinou para frente, curiosa como sempre,
Hisana assentiu.
— Hobner queria sua proteção para quê,
exatamente? ― perguntei.
— Para as armas de vitrino dentro do castelo
dele, um arsenal que ele entregaria nas mãos dos
seus guerreiros, para poder atacar o Castelo do Sol
e tomar o poder de Ciartes. ― Era exatamente o
que imaginávamos.
— Então, as armas estão mesmo em Paliath.
— Outra confirmação de Hisana. ― Mas mesmo
com armas de vitrino, os guerreiros Malvarmos não
conseguiriam muito êxito contra o fogo de Ciartes,
eles morreriam caso lutassem corpo a corpo com os
Salamandras do exército de Ciartes, por mais fortes
que os Malvarmos possam ser, o número de perdas

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seria muito maior da parte de cá!


— Flechas, muitas flechas de vitrino que ele
tem lá! ― Ela sorriu sem alegria alguma. ― Fora
que o poder dos Salamandras desapareceu de quase
um ano para cá, nenhum deles pode conjurar as
chamas ou se transformar nelas, a Árvore do Fogo
adoeceu, ficou branca e tirou os poderes deles! ―
Ela explicou, Nike arquejou ao meu lado e
derrubou a caneca no chão, estilhaçando a
porcelana, ela estava pálida e com os olhos
arregalados.
— Eu toquei a árvore com o Yinemí. ― Ela
falou cobrindo a boca com as mãos. ― Não sabia
que a Árvore do Fogo era fonte do poder deles!
— Acho melhor você consertar isso, ou vai
condenar todos eles, a árvore tem que ser curada!
— Hisana falou de forma tão grosseira que se não
fosse Nikella em meu colo, teria levantado e a
atirado pela janela, mas ao invés disso apenas
perguntei:
— Sabe quando ele planeja atacar?
— Em julho, no começo do mês, pois todos
os caçadores em treinamento estão na academia

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para as provas, Hobner e Ausiet pretendem matar


todos dentro da academia também, eles vão invadir
com uma legião de guerreiros montados em
Fermans, vão voar por cima da academia e congelar
tudo, cada um que estiver lá dentro vai morrer. ―
Nikella olhava as mãos abertas como se pudesse
ver algo ali, seus olhos estavam apavorados e ela
parecia não respirar.
— Se está nos contando isso, então não
pretende mais oferecer sua ajuda a Hobner e
Ausiet, estou certo? ― perguntei, ela acenou
negativamente e suspirou.
— Sem a Suujanim eu não sou nada... ― Ela
suspirou e se levantou indo em direção à porta.
Suujanim. Higarath agora tinha a Alma das águas,
o segundo poder mais forte de Ayrana depois do
Yinemí.
— Não diga que não é nada! Eu não tinha o
Yinemí e nem sabia que tinha poderes, era apenas
uma humana quando fui considerada a melhor
aluna da ACV. Então, não se atreva a dizer que não
é nada só porque perdeu aquele poder! ― Nike
levantou ainda tremendo e encarou Hisana, que não

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tirava os olhos dela, olhando-a espantada.


— Devo minha vida a você, então pretendo
ajudar no que for preciso ― disse Hisana depois de
um longo silêncio.
— Bom, então, volte a Hobner e finja que
nada aconteceu. Vou invadir o castelo dele e
destruir as armas e você vai me ajudar a entrar! ―
Hisana ficou a encarando como se fosse louca, mas,
então, assentiu e desapareceu numa coluna de luz
azul.
— Ficou louca? ― Segurei o braço dela
quando ela fez menção de sair também. ― Não
pode destruir Vitrino, esqueceu?
— Eu tirei o poder deles, Caalin. ― Nike me
encarou com os olhos assustados. ― Se eu não
fizer alguma coisa, se eu não tentar impedir...
— Nike, você não está me escutando? Nem
mesmo você pode destruir vitrino! ― Nike puxou
uma das adagas de arremesso do cinto em sua
perna, elas eram de vitrino amarelado, Nike soprou
a adaga e a congelou, então apertou com as mãos
fazendo a adaga esfarelar.
— Fiz a mesma coisa com o globo de vitrino

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que usei para chocar Docinho, esqueceu? ― Ela


deu um sorriso de lado.
— Não tem como...
— Tem, o Yinemí pode destruir qualquer
coisa. Fiquei surpresa de Higarath ter atacado
Hisana e não eu. ― A ideia de ele tocar nela, de lhe
tirar a Alma do gelo... o poder das sombras seria
liberado com força total e a magia negra... afastei
os pensamentos tão rápido quanto pude.
— Vai simplesmente entrar no castelo e
destruir as armas? ― Ela não respondeu, ficou
olhando pensativa para o farelo da adaga em suas
mãos.
— Vou fazer melhor. Mesmo que eles não
tenham as armas de vitrino eles vão atacar Ciartes,
pois os Salamandras estão sem poder por minha
causa... ― Ela suspirou e olhou para a janela. ―
Por favor, não se chateie comigo, ok? ― Nikella
subiu na cama de novo e pegou minhas mãos, as
sombras nos engoliram enquanto o mundo pareceu
girar ao nosso redor dentro daquela massa de
escuridão, pude escutar as vozes, murmurando,
chamando da escuridão. Pouco depois estávamos

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do lado de fora do castelo de Aliver, Nike me


arrastava para dentro, sentia como se meu corpo
respondesse a ela e não a mim, quando passamos
pelos portões Zion veio ao nosso encontro e parou
ao encarar Nikella, elas trocaram olhares estranhos,
então, Zion deu um risinho de escárnio.
— O que está acontecendo? ― perguntei
olhando de uma para outra.
— Caalin, você fica aqui até eu voltar está
bem?
— O que vai fazer, Nikella? ― Soltei um
rosnado.
— Hisana disse que o veneno das folhas
ainda vai demorar um pouco para sair de você... ―
Quando ela falou percebi que não conseguia
acessar meus poderes. ― Então, espere eu voltar!
— Você não vai a lugar algum! ― Estremeci
ao pensar nela sozinha dentro das muralhas do
castelo de Hobner.
— E quem você pensa que é para me impedir
de fazer alguma coisa, Caalin? ― Ela me lançou
um sorriso malicioso e depois acenou
discretamente para Zion.

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— Eu... ― Antes que terminasse a frase,


Nikella segurou meu rosto e beijou minha testa, um
pequeno sopro gelado foi o que senti, então tudo ao
meu redor escureceu.

“― Deveríamos sair daqui Aelita... ―


sussurrei para ela após pararmos entre as pedras
altas e completamente congeladas que formavam
um arco ao nosso redor, os soldados atrás de nós
estavam esperando o nosso sinal, Aelita, no entanto
permanecia irredutível.
— Vamos esperar aqui! É a única passagem
para eles! ― Ela grunhiu em reprovação ao meu
alerta. Estávamos armando uma emboscada para o
exército de Gridmass, o rei do Sul que se voltara
contra Frayena, a rainha de Blizzion. A passagem
para Gither estava fechada pelo caminho leste, se
os soldados de Gridmass fossem nos atacar, eles
teriam que desviar para o norte e passar pelo
desfiladeiro abaixo de nós. Os soldados de Aelita
esperavam um comando, apenas uma ordem e
quando eles passassem sob nós, seriam atingidos
por uma chuva de flechas envenenadas. Pó das

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folhas da Árvore do Fogo é o que tinha nas pontas


de prata das flechas, uma precaução a mais, caso
resistissem ao veneno. A prata sobre a pele não
impedia nossos poderes, mas uma ferida causada
por prata poderia ser fatal.
Aelita parecia não respirar, ela olhava para
a passagem escura abaixo de nós, o sol já havia
sumido há algum tempo e mesmo assim eles não
apareciam, o informante de Aelita havia dito que
eles estariam cruzando o desfiladeiro ao
entardecer, mesmo assim, ela não acreditou numa
traição. ‘Ele não mentiria para nós, não nos
colocaria em risco! ‘ foi o que ela disse depois de
pedir novamente para que ela ordenasse a retirada
das tropas.
— Aelita, por favor! ― implorei sentindo
algo se revirar inquieto dentro de mim, ela me
olhou feio novamente e mostrou as presas, os olhos
agora prateados brilhavam no escuro como um
animal selvagem, aquilo estava cheirando a
emboscada, traição e só ela parecia não perceber.
Vários soldados inquietos já murmuravam, mas
não ousavam discutir uma ordem, pelo menos não

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uma ordem dela.


— Se continuar me olhando assim, vou te
atirar no desfiladeiro para ver se atrai a atenção
deles! ― Ela rosnou tão perto do meu rosto que
podia sentir o calor do seu hálito. Virei o rosto
para o lado contrário e fiquei vigiando a
passagem, a espada tão apertada em meus dedos
que poderia se partir.
Aelita nunca admitiria, nunca aceitaria uma
traição de qualquer um sob seu comando, ela não
acreditava em mim e aquilo me irritava. Dois
séculos haviam se passado desde o dia em que ela
me transformou, dois séculos juntos, unidos por
aquele laço da alma e mesmo assim, Aelita ainda
me escondia segredos, não confiava em mim.
Odiava quando alguém não confiava em mim!
Especialmente ela!
Foi ficando mais tarde, mais escuro e a neve
agora caía sobre nós, a armadura cinzenta de
Aelita estava começando a ficar coberta pela neve
e os soldados começaram a murmurar baixinho. Só
então, com ira mortal nos olhos, Aelita nos mandou
marchar de volta ao acampamento. Ela não disse

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uma palavra durante o trajeto de volta, sua boca


estava pressionada numa linha fina e o olhar feral
no caminho à nossa frente.
— Lita...
— Não, não comece, Caalin! ― Ela rosnou
baixo em alerta.
— Por que você nunca me escuta? ― Ela
permaneceu em silêncio sem me responder até que
chegamos ao acampamento, entramos na barraca e
aguardamos os oficiais, usei meus poderes para
secar minhas roupas, mas Aelita não permitiu que
eu fizesse o mesmo por ela, dispensando minha
ajuda com um gesto das mãos. Sempre tão fria, tão
distante.
Um a um os oficiais entraram na tenda, de
olhos baixos e murmurando. Todos, sem exceção,
tinham medo dela. German, um malvarmo ruivo de
olhos negros foi o primeiro a falar.
— A passagem leste foi desobstruída com
magia, o exército de Gridmass passou por lá horas
atrás, estão acampados em Gither, General. ― A
ira de Aelita aumentou, mas conteve sua raiva
dentro de si e tamborilou com as pontas das garras

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na mesa, sobre os mapas acima dela.


— Preparem os soldados, vamos atacá-los
em Gither essa madrugada! ― Eles a olhavam com
a mesma expressão incrédula que eu devia estar
olhando-a agora.
— General... ― comecei, mas ela ergueu a
mão e me fulminou com o olhar.
— Vou ter que falar mais uma vez? ― Os
oficiais saíram da tenda murmurando ainda mais,
olhando para trás como se ela fosse louca, e um
pouco eu lhes dava razão.
— Tem certeza? ― perguntei.
— Caalin, não sei que raios você pensa
sobre nós, sobre esse laço, mas isso para mim é
apenas um inconveniente! Quando disse que você
serviria para mim, queria dizer seus poderes em
minhas batalhas, não... Ah! Você me entendeu! ―
As palavras dela me atingiram como pedras.
— Você esperou dois séculos para me dizer
que eu era um ‘inconveniente’ para você? ― Um
sorriso de escárnio apareceu em meu rosto. ―
Nunca disse algo parecido com inconveniente
quando estava gemendo meu nome em minha

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cama, em todas as vezes que gritava meu nome


durante todas as noites. ― Aelita estava muito
parada me encarando com aqueles olhos mais
animalescos que humanos. Dei um passo na
direção dela, eu definitivamente tinha ficado muito
maior e mais forte depois da transformação, mas
nunca havia reparado que ela precisava erguer a
cabeça para me encarar, se seu sangue fosse
vermelho, tenho certeza de que seu rosto teria
corado.
— Tenho uma guerra para vencer, pretende
ficar no meu caminho a noite toda? ― Ela falou
mais calma, tão mansa que podia sentir o quanto
havia afetado aquela fera irracional ao comentar
suas fraquezas pessoais. Passei as mãos pela
cintura dela, prendendo-a contra a mesa fria de
pedra e me permiti chegar ainda mais perto para
roçar minha boca na dela.
— Você vai aprender a se comportar
comigo, Aelita, por bem ou por mal! ― falei em
tom de brincadeira, mas ela não gostou nada.
— Se afaste, Caalin! ― Ela rosnou
segurando a espada. Ela estava nervosa, assustada

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com minha investida como se eu realmente


representasse algum mal. Com o choque, com a
certeza de que ela realmente usaria aquela espada
contra mim, me afastei e deixei que ela saísse para
a noite gelada. Sentia um mal, sentia que algo ia
acontecer e que me arrependeria de tê-la deixado
tomar aquela decisão, mas a segui, sem questionar.

Marchamos para Gither momentos depois,


levando o exército inteiro, ela pretendia massacrar
as tropas de Gridmass, mas o que encontramos no
caminho foi o que eu já desconfiava, o que já
imaginava que poderia acontecer.
Uma emboscada, fomos traídos pelos oficiais
de Aelita, que na verdade eram espiões de
Gridmass. O exército de Gridmass era três vezes
maior do que nossas fontes informaram, eles
estavam espalhados pela floresta congelada,
escondidos por barreiras de magia tão perfeitas
que não fui capaz de senti-las. Estávamos cercados
por todas as direções, mas não íamos sair sem
lutar, Aelita rugiu alto, fazendo com que os
soldados se espalhassem num ataque violento

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contra as tropas inimigas.

A batalha se estendeu madrugada adentro, o


chão, a neve, haviam ficados cobertos de sangue
prateado, transparente e vermelho, conforme a
neve os absorvia, ficávamos sobre uma massa
grudenta que dificultava nossos movimentos.
Mesmo estando em desvantagem, nós estávamos
vencendo, não havia visto Aelita em lugar algum
desde o momento que aquela batalha começara.
Então, comecei a procurar entre os sons de metal
se chocando, sabia que ela estava ali, que estava
viva, aquele laço parecia me preencher de certa
forma.
Do outro lado do campo, muito afastado de
onde estava o foco da batalha, Aelita lutava contra
dois homens, não eram Malvarmos, eram
Salamandras. Meu coração parecia ter parado de
bater quando percebi que um deles podia
manipular as chamas e havia revestido sua espada
com fogo e estava tentando usar contra ela, Aelita
estava usando cada gota do gelo em seu sangue
para se manter de pé. Corri para ela, para ajudá-

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la, mas não fui rápido o suficiente, não consegui


chegar antes do primeiro salamandra a distrair
para que o portador daquela espada de fogo
atravessasse seu peito. ”

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Capítulo 11

Acordei sobressaltado sentindo a cama


quente sob meu corpo, olhei em volta ajustando
minha visão até perceber onde estava, deitado em
minha cama no Castelo de Gelo. Respirei fundo e
tirei o cabelo grudado ao rosto, foi apenas um
sonho, uma lembrança, uma lembrança. Repeti até
minha mente clarear, até ter certeza de quem eu era
e do tempo em que estava.
Nike.
Onde ela estava? Levantei da cama rápido e
fui em direção à porta, mas dei de cara com Zion,
que trazia uma bandeja com comida para mim,
quase a derrubei quando abri a porta de supetão.
— Zion! ― Antes que pudesse tirá-la do
caminho, ela colocou a mão em meu peito e me
empurrou de volta para o quarto, chutando a porta
com o calcanhar ao passar.
— Você precisa comer alguma coisa! ―
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disse ela me empurrando novamente sobre a


pequena poltrona sob a janela e colocou a bandeja
sobre meu colo e abriu as cortinas do quarto,
deixando a luz da lua entrar.
— Onde ela está? ― perguntei segurando a
bandeja, pronto para me levantar.
— Não saia daqui! Ela disse que se eu te
deixasse sair, arrancaria minha cabeça! ― Zion
encolheu o corpo e roubou um dos pãezinhos
recheados com queijo da bandeja que trouxe para
mim.
— Perguntei onde ela está!
— Você sabe a resposta! ― Zion não me
olhou quando desabou na outra poltrona. ― Ela
está em Paliath com uma tal de Hisana destruindo o
arsenal de vitrino de Hobner e falou que voltava
antes de amanhecer! ― O ensopado que ela havia
trazido parecia ferver em meu estômago.
— O qu...
— Não faça essa cara, ela pode destruir o
castelo com um estalo dos dedos e você sabe disso!
— Eu sei... as sombras dela podem destruir
Vegahn inteiro se ela quiser ― Se ela as aceitar, foi
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o que não quis dizer ― Mas ela não precisava ter


me apagado para que eu ficasse!
— Você teria ido junto com ela, eu sei que
teria! E como sua guardiã, ela ia ficar nervosa,
preocupada com você sem os poderes perto dela e
poderia fazer uma cagada gigantesca! Então, não
comece a reclamar! ― Ela ralhou pegando outro
pãozinho.
— Porque não pega comida para você
também? ― Olhei enquanto ela comia o pão.
— Não... vou esperar por ela, ela me
prometeu uma coisa muito boa quando voltasse! ―
Um sorriso malicioso desenhou os lábios cheios
dela, expondo as presas.
— Parece que se tornaram amiguinhas... ―
falei com deboche.
— Eu gosto dela, Nike é feroz igual a mim!
— Zion nem fazia ideia de quando aquela garota
era feroz, não fazia ideia de quanto era mansa perto
de Nikella. Zion mordiscou o pão e ficou de pé,
indo novamente em direção à porta, as botas faziam
um ruído baixo sobre o piso de gelo, ela parou
antes de sair e lançou um olhar gélido, quase

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assassino para mim.


— Se brincar com ela, Caalin, eu vou
arrancar a sua pele, fazer um tapete bem grande e
vou chamá-la para dançar comigo em cima dos
seus restos! ― Ela grunhiu e bateu a porta ao sair.
Terminei de comer e fui me sentar na janela
aberta, deixando que o ar frio da noite me
tranquilizasse, A lua cheia banhava a paisagem
branca ao redor do castelo. Vegahn era um mundo
branco e silencioso, calmo, puro, cheio de
tranquilidade, ou era essa a mensagem que a neve
naquela noite tentava passar. Não conseguia ficar
tranquilo com Nikella em Paliath e não conseguiria
descansar enquanto ela não voltasse. O laço de
guardião impedia que eu ficasse tranquilo com ela
longe de mim, e por esse único motivo não dei um
jeito de ir até Paliath, pois sabia que se ela sentisse
a minha presença, ficaria nervosa com o fato de
estar sem meus poderes e iria vir até mim e eu a
atrapalharia, mesmo assim apertei as mãos até que
os nós dos dedos estalassem.
As lembranças de Aelita voltaram com tudo
quando vi aquele laço na mão de Nikella. Muito

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tempo depois da morte de Aelita encontrei Mary, e


me odiei por tê-la mandado para Treezer, havia
perdido as duas em guerras causadas pela sede de
poder de tiranos.
Agora estávamos prestes a entrar em uma
guerra ainda maior e Nikella estava no meio
daquilo, mas diferente das outras, ela confiava em
mim.
Sentado na soleira da janela, tentei invocar
meus poderes, mas eles responderam de forma
lenta, como se estivessem com sono, assim como
eu estava, porém não queria dormir enquanto ela
não voltasse.

O sol já estava quase subindo no horizonte


quando a porta se abriu sem fazer barulho e Nikella
entrou nas pontas dos pés com as botas nas mãos,
ergui os olhos do livro que estava lendo e a vi ficar
branca como a neve quando ela me encarou e viu
que eu ainda estava acordado, ela estava uma
bagunça, suja de neve e sangue com um rasgo na
manga do braço esquerdo, mostrando um corte
recém cicatrizado ali, bufei e voltei a encará-la,

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mas ela deu um sorriso sem graça, de uma criança


que foi pega fazendo arte, tirou Ira de seu pescoço e
entrou no banheiro batendo de leve a porta atrás de
si. Fiquei em silêncio encarando a porta, Ira, com
toda sua destreza felina, saltou para cima da
poltrona, fez alguns círculos sobre a almofada,
afofando-a a seu gosto e finalmente deitou.
Nike só saiu do banheiro quase meia hora
depois, com cabelo ainda úmido e um conjunto de
pijama preto de algodão, a blusa tinha uma carreira
com quatro botões de madrepérola e o short era tão
curto que poderia ser confundido com roupa íntima,
mas ela desfilou até a cama e colocou o joelho
sobre o colchão.
— Posso ficar aqui por enquanto? Estou com
medo de Oriel invadir meu quarto atrás de mim
para que eu prove os vestidos para o casamento! ―
Ela mordeu os lábios esperando uma resposta,
então bati na cama ao meu lado. Ela sorriu e subiu
de quatro deslizando até onde eu estava até ficar
próxima o suficiente para que eu pudesse tocá-la
sem me movimentar muito, fiquei em silêncio
observando-a, mas ela parecia estar disposta a ficar

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em silêncio sobre Paliath.


— E? ― perguntei por fim, desistindo de
esperar ela dizer alguma coisa.
–Prometo que te mostro tudo quando
acordar! ― Ela fez um biquinho e piscou os olhos
para mim.
— Isso não funciona comigo ― reclamei
pegando o braço para verificar a extensão do corte,
ele havia sido profundo. ― Conte.
— Depois que eu dormir! ― Ela suspirou e
apoiou a cabeça em meu ombro e passou a perna
por cima de mim, aninhando-se e dormindo tão
rápido que não tive tempo de protestar ou exigir
que me contasse o que havia acontecido por lá.
Puxei-a mais para perto de mim, passando meus
braços ao redor da sua cintura e ombros e deitei a
cabeça sobre o travesseiro, Nike se mexeu
colocando a boca em meu pescoço, pude senti-la
sorrindo, mas ainda continuava dormindo.

“Estava ajoelhado ao lado dela na neve,


Aelita tentava respirar quando eu os alcancei e
joguei uma forte descarga elétrica sobre os dois

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Salamandras, eles não tiveram tempo de ver o que


aconteceu antes de serem completamente
despedaçados pela onda de poder que os atingiu.
Tirei a espada do peito dela, ela arqueou o
corpo, mas não teve força para gritar, sentia
aquela ligação sendo consumida, desaparecendo
tão rápido que um buraco começou a se formar em
meu peito, coloquei as mãos sobre seu peito para
tentar curá-la, mas Aelita me impediu, segurou
minhas mãos e sorriu como na primeira vez que a
vi.
— Deixe-me curar você! ― Um nó em
minha garganta quase não permitiu que eu dissesse
aquelas palavras. Ela balançou a cabeça, e
colocou a mão em meu rosto.
— Eu não merecia você, te tratei mal todo
esse tempo e mesmo assim, você ficou ao meu
lado... ― A voz dela não passava de um sussurro.
— Não podia te deixar! ― Ela sorriu e
mostrou o punho, passou o dedo sobre algo que eu
não podia ver.
— Isso não significa nada, Caalin.
— Significa para mim ― falei.

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— Eu não menti mais cedo, você sempre foi


inconveniente para mim, porque me afetou de uma
forma que ninguém mais fez, isso me assustava,
tive medo de perder o foco em meus objetivos caso
me deixasse levar pelos sentimentos que tinha por
você... ― Aelita suspirou de forma dolorosa, o
sangue azulado manchando a neve ao seu redor.
— Ache alguém que mereça o seu carinho, não
mude nunca. ― O aperto em minha mão diminuiu
até que seus dedos escorregaram do meu pulso. Ela
havia partido e levado aquele laço com ela,
deixado um vazio tão grande dentro de mim que
não pude conter a ira que explodiu em meu peito
junto com um rugido que fez o céu se abalar. Cobri
toda a área de Gither com uma tempestade
magnética tão violenta que derrubou as árvores,
levantou a neve do chão e matou todos os soldados
que guerreavam ali, tanto inimigos quando aliados.
Eu destruí os dois exércitos mais fortes de Vegahn
com um único ataque, e nem assim aquela dor
diminuiu.

Carreguei Aelita até o Monte Huris, não

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muito longe de Gither e a enterrei ali, fazendo com


que crescessem pequenas flores vermelhas em seu
túmulo de gelo, para que soubesse o que ela levou
de mim, um pequeno laço vermelho que unia
nossas almas. ”

Acordei com uma pequena pressão sobre o


peito e uma mão quente em meu rosto, acariciando
e chamando meu nome baixinho. Abri os olhos e
encarei os olhos prateados dela. Ela estava
transformada sentada sobre mim, prendendo meus
braços com as mãos e parecia assustada, pequenas
fagulhas, traços de energia vazavam de minhas
mãos e passavam por ela.
— Caalin? ― Ela segurou meu rosto e
assoprou, um ar gelado misturado com seu cheiro,
então o mundo clareou ao meu redor.
— Eu...
— Estava tendo um pesadelo? ― Ela
começou a deslizar para o lado, mas eu a segurei
ali, ergui o tronco e a abracei, apertando-a com
mais força do que queria. ― Está tudo bem. ―
Disse ela passando os dedos em minha cabeça. Não

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é a mesma pessoa, não, mas a mesma alma. Tão


diferentes...

Nikella se afastou um pouco para poder me


olhar, ela já tinha voltado a aparência normal e seus
olhos verdes e brilhantes estavam nos meus, não
sabia dizer qual era o sentimento que eles estavam
escondendo. Ela se aproximou mais, entrelaçando
os dedos em meu cabelo e me beijou, passando
suavemente a língua em meus lábios e brincando
com ela na ponta da minha língua, ela estava tão
quente que podia derreter parte do castelo quando
me empurrou de volta para a cama e rasgou minha
blusa com as garras de vitrino passando-as de leve
sobre minha pele, sem tirar os olhos dos meus.
Nike deu um sorriso travesso e mordeu o lábio
inferior, então se abaixou sobre mim e começou a
beijar meu corpo, devagar, traçando linhas longas
com a língua e brincar com as garras nas laterais do
meu corpo, causando arrepios em mim.
Segurei sua cintura e a puxei para cima, ela
protestou, mas não reclamou quando beijei seu
pescoço, ela tomou minha boca novamente abrindo

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seus lábios para mim, soltei a carreira de botões


bem devagar enquanto sentia sua pulsação
aumentar, mordi com leveza seus seios e ela gemeu
arqueando o corpo para trás, passei a língua de leve
contra sua pele quente e seu corpo inteiro se
arrepiou, a deitei contra a cama e tirei seu short
devagar, agora sabia porque ela não usava roupas
quentes no frio de Vegahn, ela era quase como uma
chama, o tempo inteiro ardendo, ri contra sua
barriga ao perceber que ela não estava usando nada
por baixo do short. Ela não se moveu, parecia não
respirar quando comecei a beijar suas pernas, a
parte interior e macia de suas coxas e subindo cada
vez mais, suas mãos fecharam-se contra a colcha da
cama e todo seu corpo começou a tremer quando
cheguei ao ponto que queria, quente, macio, Nike
arqueou o corpo e soltou um gemido baixo, deslizei
a língua para dentro dela segurando firme suas
pernas quando ela tentou se soltar de meu aperto.
— Caalin... ― Ela suspirou e gemeu meu
nome várias vezes até que segurou meus cabelos e
me puxou para cima, enrolando as pernas em volta
de meu quadril, a pele macia e quente roçando

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contra a minha.
— Por que me atrapalhou, não tem
educação? ― perguntei mordendo de leve sua
orelha, passando a língua em seu pescoço e
seguindo em direção à sua boca novamente.
— Se você não percebeu, ainda é dia, estão
todos acordados no castelo! ― disse ela com a voz
trêmula.
— Vamos dar um show para eles! ― Ela
mordeu os lábios e me puxou com as pernas
pressionando mais meu corpo contra o seu, quando
a penetrei, quando nossos corpos se uniram, ela
suspirou e se derreteu com a respiração ofegante e
um sorriso no rosto, Nike moveu os quadris quase
como uma dança hipnótica e única, ela pressionou
os lábios no meu pescoço e gemeu meu nome até o
último minuto, seu corpo brilhava suavemente
coberto de suor e tremia, os olhos estavam com um
brilho divertido.
— Pelo visto, está bem melhor! Que bom...
achei que fosse te perder lá... ― Ela traçou minha
boca com as pontas dos dedos e sorriu de novo. ―
Não me assuste assim de novo! ― Ela reclamou.

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— Quanto a isso... ― comecei, ela revirou os


olhos e suspirou, segurou meu rosto colocando sua
testa na minha para me mostrar o que tinha feito.

Estava olhando pelos olhos de Nikella.

“Sentindo seu coração acelerado enquanto


contava cada passo aproximando-me da muralha,
as botas afundando na neve macia que caía, pela
primeira vez percebi o quanto ela sentia frio, tanto
frio que todo seu corpo doía, mas sempre deixava
os braços à mostra, ela sentia um estranho prazer
no frio, como se todo o tempo que passou em
Ciartes a tivesse feito amar a sensação do frio na
pele mesmo com a dor. As muralhas do castelo de
Hobner agora estavam a poucos passos, muralhas
altas e largas de pedra, sólidas como o penhasco
próximo ao castelo.
Hisana apareceu sobre a muralha poucos
minutos depois, a escuridão parecia ser parte dela
quando ela moveu as mãos e uma pequena brecha
se abriu na proteção, estreita o suficiente para eu
passar de lado, então ela sumiu novamente e a

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barreira de proteção se fechou atrás de mim,


fazendo meus poderes se reduzirem drasticamente,
tanto que parecia haver uma tonelada sobre meus
ombros. Senti a pressão sobre as sombras que
agora se moviam inquietas ao meu redor, mas não
podia usar a magia mesmo, não agora ou seria
descoberta pelos magos que mantinham a proteção
do castelo.
Escalei os muros com uma facilidade
sobrenatural, usando as garras de vitrino para me
agarrar às fendas das pedras e em poucos minutos
estava no alto da muralha, um corredor estreito
com menos de um metro no alto da muralha me fez
olhar para os dois lados para ter certeza de que
Hisana havia deixado o caminho livre para mim.
Saltei para dentro dos muros, agora
totalmente coberta pelas sombras, espremendo-me
contra as paredes para ter certeza que os guardas
não me veriam ali, “eu sou sombra e escuridão”
repetia várias vezes enquanto andava em passos
rápidos até o galpão ao lado dos estábulos, onde
Hisana havia dito que ficavam escondidas as
armas de vitrino.

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Pareceu uma eternidade os poucos metros


que faltavam para entrar pelas portas largas de
madeira, corri os últimos passos com uma destreza
felina até que as alcancei e abri um pouco, só um
pouco para espremer o corpo pela brecha e entrar
no galpão escuro, na verdade o vitrino das armas
espalhadas por todos os lados, clareavam o local
com luzes azuis, amarelas e esverdeadas de forma
fantasmagórica.
Uma mão se fechou ao redor de meu pescoço
atirando-me sobre uma pilha de espadas, abrindo
um corte longo em meu braço, mas não gritei,
mordi os lábios com força para prender o grito e
levantei rapidamente segurando Siferath nas mãos
e procurando por meu agressor. Uma sentinela, ele
olhou aterrorizado para as sombras ao meu redor
e a foice em minha mão.
— A maga negra das minas! ― disse ele
com a voz assustada, então, virou-se de costas para
correr e dar o alarme. Ahh! Merda! Corri na
direção dele e o ataquei, mas ele se defendeu com
uma espada simples de metal que foi partida no
impacto contra Siferath. Ele chegou a abrir a boca

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para gritar, mas a lâmina de Siferath desceu


impiedosa sobre ele, partindo-o ao meio. Meu
estômago se embrulhou com aquilo, não queria ter
que matar ninguém, mas não queria colocar a
operação em risco. Arrastei o corpo partido e o
embrulhei em um saco que encontrei pendurado
atrás de uma das portas do galpão e em seguida
limpei os vestígios, usando o mínimo de magia
possível, então me virei para as armas.
Por favor, escondam o rastro de magia nesse
galpão! ― pedi às sombras, que serpentearam ao
meu redor e todo o galpão se afundou num breu.
Deixei que a mudança acontecesse,
transformando-me em malvarmo e ergui as mãos,
fazendo uma bola de gelo flutuar pouco acima de
mim, então a estourei, fazendo com que o Yinemí
cobrisse todas as armas com gelo. O brilho branco
do gelo que as cobria me fascinou. Não havia
apenas congelado as armas, mas tudo dentro
daquele galpão, suguei o ar e andei devagar até
onde algumas espadas congeladas estavam
apoiadas à parede, quando fui puxar uma delas, a
arma estilhaçou em minhas mãos. Não podia

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deixar tudo congelado daquela forma, se não todos


perceberiam que as armas foram danificadas e
Hisana estaria correndo perigo ali dentro, com um
pouco mais de magia, converti o Yinemí em calor,
da mesma forma que fiz para chocar o ovo de
Docinho. A água começou a gotejar conforme o
gelo derretia e pouco depois começou a chover,
literalmente, dentro daquele galpão.
Apenas mais um pouco... quando deixei tudo
seco, para parecesse que ninguém além das
sentinelas estivera aqui. Peguei o saco pesado com
o guarda morto sentindo meu estômago se revirar
ao levantar o corpo pesado, então o fiz
desaparecer, teleportando-o para qualquer lugar
bem longe. Verifiquei tudo mais duas vezes para ter
certeza de que não havia deixado nenhum rastro,
nenhuma marca ou cheiro da minha presença,
peguei outra arma, uma pequena adaga desta vez e
a quebrei, o vitrino havia se tornado vidro, fino,
frágil, mas que só se quebraria com algum golpe,
para meu alívio, pois se o pegassem e ele se
partisse na mão de alguém, teríamos ainda mais
problemas. Puxei as sombras para mim novamente

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e saí pela porta do galpão, havia mais guardas


agora do que antes, mas eles pareciam não me ver
ou sentir minha presença, pois estava escondida
pelas sombras e elas não permitiriam que eu fosse
pega, afinal, eu era o prêmio que elas queriam
dominar!
Hisana apareceu novamente no alto da
muralha, mas dessa vez acompanhada por um
malvarmo, ele era forte e parecia um guerreiro,
tinha cabelos curtos escorridos ao redor do rosto
de traços fortes, estava a poucos metros deles
escondida pelas sombras com as costas
pressionadas à parede da guarita de pedra. O
malvarmo cheio de pose usava botas de couro
branco limpas demais, uma calça vermelha escura,
quase vinho, e uma camisa branca que não
escondia os músculos por baixo.
Os olhos cor de vinho passaram por mim,
mas não me enxergaram ali. Ele passou um braço
em volta da cintura de Hisana, que mantinha os
olhos nas sombras em que eu estava escondia. O
malvarmo olhou para o galpão, pura satisfação era
o que tinha no sorriso presunçoso que ele deu,

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depois olhou novamente a neve caindo e tirou


alguns flocos dos cachos negros de Hisana, ela
mantinha o olhar sereno embora pudesse sentir seu
sangue fervendo.
— Hisana querida, prepare suas tropas e
aguardem o nosso comando, invadiremos Ciartes
durante as provas da Academia dos Venox. ― Ele
falou com uma voz mansa enquanto acariciava o
rosto de Hisana com as costas da mão.
— Não ia atacar Blizzion primeiro? Tomar o
exército de Aliver? ― Ela perguntou, um sorriso
sarcástico apareceu nos lábios de Hobner.
— Não preciso mais do exército de Aliver,
tenho o seu, que é muito maior e mais letal! ― Ela
assentiu.
— Não é arriscado? Vai ter muitos
caçadores juntos no mesmo lugar nos dias de
provas! ― Ela respondeu, passando os olhos por
onde eu estava novamente.
— Exatamente por esse motivo, atacaremos
a Cidade do Sol em um dia que eles estarão
totalmente concentrados nas provas da academia,
a cidade ficará com a guarda falha e assim será

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mais fácil atacar o castelo e matar o rei, ainda


mais porque os Igniuns perderam o poder da
Árvore do Fogo! Depois, é questão de tempo para
entrar na Árvore e recuperar o livro! ―
Recuperar, a palavra certa seria roubar, já que o
livro nunca foi dele! Hobner contava os planos
para Hisana como se tivesse intimidade o suficiente
para isso, talvez tivessem mesmo, pelo modo que
ele a tocava. ― Se dominarmos Ciartes e
pegarmos o conhecimento escondido na Árvore,
logo poderemos tomar os outros mundos, assim as
guerras finalmente acabarão! O poder precisa
estar em mãos competentes para a paz reinar! ―
Não havia nada em seu sorriso sombrio de desejo
por paz, apenas um desejo absurdo por poder e
dominação.
Hisana deu um último olhar em minha
direção e moveu discretamente a mão em direção à
barreira, abrindo uma brecha para que eu saísse.
— Meu senhor não gostaria de me
acompanhar aos meus aposentos? Gostaria de ter
uma conversa em particular... ― Hisana roçou os
lábios na mão dele, Hobner deu um breve sorriso,

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cheio de malícia e se virou em direção ao castelo,


Hisana fez um movimento quase imperceptível com
a cabeça para que eu saísse, então o fiz.
Atirei-me contra a pequena fresta na
barreira caindo na neve fofa e rolando com um
ruído quase inaudível e corri o máximo que pude
em direção à floresta com o cuidado de cobrir
meus rastros na neve atrás de mim. Caí entre as
árvores, longe o suficiente da muralha, cobri a
boca com as mãos e chorei.” A memória se desfez.

Encarei Nike por um bom tempo depois que


afastei o rosto do dela, ela ficou em silêncio, quase
sem respirar enquanto me observava esperando
algo de minha parte, talvez um julgamento por ter
matado o guarda ou por ter acabado com os poderes
dos Igniuns.
— Pelo menos, sabemos que eles não vão
atacar Blizzion, por enquanto ― falei para quebrar
o silêncio, ela suspirou aliviada.
— Já percebeu que toda vez que alguém diz
que quer a paz, ela trava guerras para tentar
conquistar esse objetivo? ― Sua voz saiu falha, ela

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estava olhando para o pingente de Siferath. ―


Começo a pensar que o certo é deixar cada um
travar as próprias batalhas, sem envolver os outros
que têm ideais parecidos contra aqueles que têm
ideais e pensamentos distintos...
— Mas o objetivo real nunca é a paz, Nike, é
sempre o poder! A dominação e a sensação de
posse. As guerras não são travadas para que os
povos tenham paz, são travadas para que os mais
ricos com exércitos maiores tenham mais poder e
domínio sobre os que não tinham muito a ofertar
pela paz que almejavam...
— E não tem como acabar com tudo isso,
não é?
— Infelizmente as pessoas morrem e o
legado que elas deixaram vai perdendo o valor,
quando outras tomam seu lugar, são as ideias delas
que começam a valer. Isso provoca novos conflitos.
A paz é apenas uma ilusão criada para manter as
pessoas com esperança, domadas ― expliquei,
Nike ficou brincando com os dedos em meu peito.
— Nem quando Ayrana criou os mundos para que
as raças vivessem em harmonia, eles conseguiram

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ter paz, há sempre disputas, brigas e guerras.


— Aliver... você o colocou lá pois ele tem
pensamentos semelhantes aos seus? ― Ela
perguntou depois de alguns momentos de silêncio.
— Eu o coloquei lá, pois não queria assumir
o trono ― falei. ― O que pretende fazer agora que
destruiu as armas? ― Queria desviar o assunto
antes que ela questionasse o porquê de eu não
assumir o trono de Vegahn.
— Avisar a Ericko sobre o ataque para que
eles se preparem, entrar na Árvore do Fogo e dar
um jeito de curá-la e pegar o Livro das Sombras e
destruir ele antes que Hobner e Ausiet o peguem
para fazer um exército de magos negros.
— Acha que eles estão sendo influenciados
por Higarath? ― Nike estava brincando com uma
mecha do meu cabelo.
— Ele estava controlando Hisana... acredito
que esteja por trás de Hobner e Ausiet também.
Talvez os esteja usando para dominar os mundos
com as sombras...
— Não sei como ele conseguiria isso. ― Ela
me encarou confusa. ― Controlar os outros magos

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negros... ― falei.
— Acho que ele não me controla, pois estou
resistindo, naquele dia, quando ele tomou a Alma
das águas de Hisana, as sombras respondiam a ele,
como se ele fosse o mestre de todas elas... ― Sua
pele se arrepiou ao falar aquilo. ― Não consegui
lutar direito, pois ele prendeu minhas sombras
também!
— Vamos dar um jeito em tudo isso! ― A
puxei para meu colo, apertando-a de leve, Nike
acenou com a cabeça e suspirou, depois começou a
beijar meu pescoço e acariciar meu peito com as
pontas das garras.
— Vou dar um jeito em você antes! ― Ela
mordeu os lábios e veio para cima de mim
novamente, ignorando completamente que haviam
coisas a serem feitas, na verdade eu não me
importava, desde que pudesse ficar com ela mais
um pouco.

O sábado chegou mais rápido do que


esperava, nada de fora do normal havia acontecido,
a não ser por um pequeno ataque de Docinho, que

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quase incendiou as roupas de Oriel.


Oriel mantinha Nikella o tempo todo ao seu
lado em idas constantes ao alfaiate para acertar as
roupas para o casamento de Ericko, Nike até
tentava fugir para meu quarto, mas Oriel já havia
descoberto seu novo esconderijo e entrava no
quarto sem bater a maioria das vezes, isso me
irritava profundamente, mas se Nike estava
aguentando aquilo, eu poderia aguentar também,
fora que depois do casamento, Oriel e sua mãe
voltariam para Retiro das Folhas e ficariam lá por
um bom tempo.

No fim da tarde de sábado, pouco antes de


partirmos encontrei Nike, Oriel, Yeferis e Aliver
esperando na sala do trono. Aliver e Oriel estavam
combinando, com roupas em tons de verde claro de
tecidos leves, Yeferis usava um longo vestido preto
de chifon e os cabelos amarrados num coque,
provavelmente uma dica de Nikella por causa do
calor sufocante de Ciartes. Ela mesma estava com
um vestido curto azul claro na altura dos joelhos,
com o emblema de Aliver bordado no peito, os

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cabelos estavam amarrados em uma trança solta e


havia uma longa espada de vitrino na bandoleira
em suas costas, pelo menos estávamos
combinando: meu uniforme era da mesma cor.
— Vamos? ― Aliver perguntou dando um
breve aceno para sua mãe e irmã. Não levaríamos
mais ninguém, no caso de haver algum problema
poderíamos sair facilmente com poucas pessoas.
Andamos até o lado de fora do castelo, em direção
aos portões, mas antes que o alcançássemos, Zion
apareceu trazendo Docinho e a entregou para
Nikella, que entregou Ira para Zion.
— Cuide bem dele! ― disse ela passando Ira
para os braços de Zion e pegando Docinho,
colocando-a em seu ombro, o dragãozinho apenas
soltou uma lufada de fumaça e se aninhou ali.
Zion fez um cumprimento ao Rei e ficou nos
portões enquanto eu abria um portal para que
atravessássemos até Ciartes. Nikella apertou meu
braço com força olhando para o portal prateado e
brilhante em nossa frente.
— Vai ficar tudo bem! ― sussurrei para ela
antes de entrarmos no portal.

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Estava acostumado com a escuridão do


anoitecer em Vegahn antes de me deparar com a
claridade de Ciartes, o calor sufocante me atingiu
como uma tonelada sobre os ombros, ao olhar para
o lado, percebi que não era o único sentindo os
efeitos de poucos segundos naquele calor infernal.
Nikella parecia ter dificuldade de respirar, mas
Yeferis, Aliver e Oriel pareciam normais. Não era
por causa do calor que Nike estava assim, era por
pisar em Ciartes novamente, por ver aquela cidade
novamente, pelo que aquilo a fazia lembrar e sentir.
— Está tudo bem? ― perguntei num sussurro
quando o rei e sua família se afastaram, andando a
poucos passos em nossa frente.
— Vai ficar... ― Nike olhava para frente,
sem ousar olhar a cidade a seu redor. Dei-lhe o
braço e alterei minha temperatura, ficando o mais
frio que pude, ela passou o braço pelo meu e sorriu
ao sentir o frio. ― Obrigada! ― Ela respirou fundo
e caminhou com mais facilidade, mas a calma em
seu olhar desapareceu ao olhar por cima dos muros
e ver as folhas prateadas da Árvore do Fogo, o

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pânico tomou conta dela de forma tão intensa que


seu corpo inteiro tremeu.
— Calma Nike! ― Apertei seu braço um
pouco mais, ela estava prestes a sair e correr em
direção à árvore. ― Vamos deixá-los no castelo,
esperar que se acomodem e depois vamos até lá! ―
Ela me encarou novamente e assentiu.
Ao chegarmos aos portões da cidade
principal, os guardas fizeram uma breve reverência
a Aliver e se afastaram para que pudéssemos
passar, mas o olhar de um deles caiu sobre Nike e
ficou sobre ela, olhando-a espantado. Eu o encarei
e mostrei os dentes, quando ele percebeu que eu o
estava encarando, se ajeitou e desviou o olhar dela.
Minha!

A cidade estava muito movimentada, tudo


estava sendo enfeitado com detalhes em dourado e
laranja, homenageando não só a família do fogo,
como também os Ascardian, os primeiros de
Amantia. A cada passo que dávamos em direção ao
castelo, sentia Nike se apertando mais contra mim,
sua respiração estava irregular e ela parecia que ia

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desabar a qualquer momento. Aliver parou em


frente às portas do castelo, era comum que os reis
fossem na frente, mostrando que protegiam suas
casas e seus reinos, então ele se apresentou, dando-
nos um momento antes de entrar. Segurei o rosto de
Nike e toquei os lábios em sua testa.
— Fique calma, não se esqueça de quemvocê
é! Somos da família, lembra? ― Sorri, aquilo
parecia algo simples, mas de alguma forma a
acalmou, então ela respirou fundo e sorriu antes de
entrar com a cabeça erguida atrás de Aliver e Oriel.
O Palácio do Sol era ainda mais quente do
que a cidade do lado de fora, o piso vermelho de
mármore fazia parecer que andávamos sobre
brasas, sabia que eu me sentia assim apenas por ser
um malvarmo, que os humanos não deviam sofrer
tanto assim com o calor, mas em poucos minutos
ali, eu já sentia uma enorme vontade de voltar para
o Castelo de Gelo e deitar nu no chão.
Dois guardas nos conduziam pelo castelo,
nos levando em direção à sala do trono, Nike estava
ao meu lado direito olhando em volta, ao
alcançarmos um corredor largo e aberto que dava

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para um jardim ela subitamente parou. Nikella


estava olhando vidrada para o meio do jardim,
acompanhei seu olhar para ver o motivo pelo qual
ela havia parado, então, meu coração gelou. Kuran
estava sentado à sombra da árvore, rindo, feliz com
uma jovem no colo, ela tinha a pele levemente
bronzeada e cabelos ruivos, ela estava sentada no
colo dele e o beijava. Antes que eu pudesse tocar
em seu ombro, Nike voltou a caminhar pelo
corredor, alcançando Aliver rapidamente. Ela não
se virou para mim, continuou com os olhos fixos
nas costas de Aliver e seu rosto tinha se tornado
duro.
Ao entrarmos na sala do trono, não havia
muitas pessoas ali, provavelmente foram
dispensados para que Ericko pudesse nos receber. E
lá estava o rei de Ciartes, sentado no trono ao lado
da filha da Sacerdotisa das Águas, Karin, e perto
deles estavam Sheriah e Annie.
— Aliver, Oriel e Yeferis! Bem-vindos a
Ciartes! ― disse Ericko levantando-se do trono e
vindo até nós para nos cumprimentar, Aliver e
Ericko trocaram cumprimentos simples, mas Oriel

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abraçou Ericko como se Karin não estivesse ali,


mas ela aparentemente manteve um sorriso
controlado no rosto, quando Ericko virou-se para
nos cumprimentar ele congelou, ficou olhando
espantado para Nike, que deu um breve sorriso e
colocou a mão sobre o peito:
— Ignis Aeternum! ― disse ela fazendo a
saudação do fogo. Karin deu um gritinho atrás de
Ericko e correu até Nike, pulando nos braços dela
ignorando que era mais de um palmo maior que
Nike, a apertou e depois começou a chorar.
Docinho ficou incomodada com os soluços de
Karin, então estiquei a mão e ela veio para meu
ombro e ficou observando as duas com uma
atenção fora do comum para um animal.
— Achei que nunca mais fosse te ver! ―
Karin não queria soltar Nike por nada, havia
começado a chorar e agora soluçava com a cabeça
apoiada no ombro de Nike. Sheriah as olhava
apreensiva, depois olhou em direção ao jardim,
como se pudesse enxergar através das paredes,
como se tivesse medo que Kuran percebesse a
presença dela.

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Quando Karin finalmente a soltou e começou


a falar sobre todos e tudo que estava acontecendo,
Ericko convidou Aliver para irem até outra sala,
encontrar com os soberanos de Amantia e de
Dartaris, Aliver fez um breve aceno, dispensando-
nos temporariamente. Sheriah conseguiu convencer
Karin a deixar a conversa para mais tarde, então
Oriel e Yeferis acompanharam Sheriah e Karin para
o jardim a fim de conversar sobre o casamento com
uma boa xícara de chá. Nike depois de muito
insistir que tinha algo a fazer, falando sobre a
família com quem vivia, conseguiu desvencilhar-se
delas e seguiu para fora da sala do trono.
Ela ia a passos largos pelo corredor pelo qual
havíamos vindo, por um momento achei que ela
estava indo até ele, porém antes de chegar perto do
jardim, ela desviou para a direita entrando em um
corredor mais largo que dava para a saída oeste do
castelo. Continuei a segui-la até que ela parou no
meio do corredor e virou para trás. Nike podia ter
me incinerado com seu olhar quando ela finalmente
me encarou, não havia nada de doce ali, da garota
que esteve comigo nos últimos dias.

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— Foi por isso que você disse que Sheriah


não mandaria me matar, não é? Você sabia que ele
estava vivo! ― A voz dela saiu embargada, e seus
olhos estavam começando a se encher de lágrimas.
— Nike...
— Não! Não me dê desculpas, Caalin! ― Ela
esticou a mão para que eu não me aproximasse. ―
O que você achou que eu ia fazer se tivesse me
dito? Achou que eu ia correr de volta para Ciartes e
me jogar nos braços dele? ― Mesmo com raiva ela
mantinha o tom de voz baixo, controlado.
— Me desculpe...
— Não desculpo, não! Você sabia o quanto
estava sofrendo, me consumindo por causa da
culpa! Sabe quantos pesadelos você teria me
poupado? ― As lágrimas agora corriam livres pelo
seu rosto, ela encostou na parede e cobriu o rosto
com as mãos e chorou ainda mais. Segurei suas
mãos delicadamente, tirando as da frente do seu
rosto, até que ela me encarasse novamente.
— Nikella, eu sinto muito, eu só não queria
perder você! Sabe desde quando eu estou
apaixonado por você? Desde que te vi pela primeira

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vez pelos olhos de Ira! ― Ela abaixou os olhos,


mas peguei seu queixo de leve e fiz com que ela me
olhasse de novo. ― Quando eu cheguei ao castelo
no dia do aniversário do príncipe Ericko, que eu te
vi naquele banco com Ira no colo, eu queria te levar
para Vegahn comigo! Teria levado se o príncipe
não tivesse aparecido! A ideia de que se eu te
contasse que ele estava vivo e de talvez você voltar
para ele me abalou tanto que eu não consegui
contar...
— Então, você realmente achou que eu fosse
vir atrás dele? ― Ela soltou uma das mãos de meu
aperto e limpou o rosto.
— Achei, e morri de medo disso ―
confessei.
— Idiota! ― Mesmo ainda tremendo muito,
ela pegou minha mão e beijou minha palma aberta.
— Quem você pensa que sou para voltar correndo
para os braços de alguém que disse que ia me
queimar viva? ― Ela deu um pequeno sorriso e
balançou a cabeça suavemente. ― Eu te amo,
Caalin! Acho que percebi isso no dia em que
Hisana quase... a ideia que você morreria e que eu

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nunca mais te veria foi o que me fez avançar para


ela mesmo sabendo que Higarath estava lá... ―
Senti como se todo o mundo tivesse parado de girar
naquele momento.
— Pode... dizer isso de novo? ― pedi.
— Eu te amo, Caalin! ― Ela passou os
braços em volta do meu pescoço e me beijou. ―
Nunca faria o juramento se não o amasse!
Não tinha palavras para responder, apenas a
encostei na parede e a beijei, sussurrei “eu te amo”
contra seus lábios e a beijei várias vezes.
Estávamos tão concentrados em nosso
momento que não havia reparado no cheiro de
outro macho parado perto de nós, um cheiro
amadeirado que me fez soltar um baixo rosnado em
alerta.
Kuran estava parado de braços dados com a
jovem morena no começo do corredor, ele olhava
para nós, não para nós, para Nike. A garota agarrou
seu braço com força, tentando o manter longe de
nós, mesmo assim ele se aproximou arrastando a
menina e encarou Nike.
— Eles me disseram que você tinha

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morrido... ― Kuran conseguiu dizer enquanto


olhava de Nike para mim. Soltei Nike e me afastei
devagar, passando Docinho para o ombro dela e
indo para o outro lado do corredor. A jovem que
estava com o príncipe percebeu o que eu tinha feito
e se afastou também, seguindo-me pouco depois
sob o olhar do príncipe, ele estava me vigiando.
Dei-lhe um sorriso maldoso, um alerta silencioso
de “Não toque nela, ou acabo com você!” Kuran
ficou tenso sob meu olhar, aparentemente a
mensagem foi recebida por ele com sucesso.

No jardim estava soprando uma brisa suave,


aproveitei-a como se nunca mais fosse sentir o
vento tocando em mim, o calor ali realmente me
incomodava, encostei-me na árvore no centro do
jardim, era um pequeno plátano que já estava com
suas folhas amareladas, apenas magia para manter
uma árvore como aquela naquele local.
— Não se incomoda de deixar eles sozinhos?
— perguntou a jovem olhando para o local onde os
deixamos.
— Como se chama? ― perguntei.

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— Melanie... ― Ela me olhou timidamente,


tinha os olhos cor de avelã e cabelos ruivos, mas a
pele era de um tom dourado, bronzeado pelos sóis
de Ciartes.
— Melanie... um lindo nome! ― Sorri para
ela, ela corou e olhou para o corredor, como se
pudesse ver através das paredes. ― Não me
incomodo de deixá-los lá, confio em Nikella, você
não confia no príncipe? ― Melanie me encarou
novamente, um traço de tristeza apareceu em seu
olhar, mas sumiu quase que imediatamente.
— Levei quase um ano para curá-lo do
ferimento que ela deixou, não estou falando do
físico, aquele Asahi curou na hora, mas deixou uma
marca muito grande... estou dizendo da ferida
interna, de um coração partido. Ele sempre falava
nela e ficava triste, perdido nos próprios
pensamentos. Aos poucos eu consegui fazê-lo se
recuperar da perda dela e agora que ela voltou...
— Nada vai mudar, Melanie! ― Segurei sua
mão gentilmente, mas com firmeza. ― Se você o
curou, significa que de alguma forma entrou no
coração dele, e se for realmente seu, ninguém pode

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tirar seu lugar de lá! ― Ela suspirou e deu um


sorriso tímido.
— Ela nunca disse aquilo para ele.
— O quê? ― perguntei quando ela se virou
para a entrada do jardim e começou a se afastar em
passos lentos.
— Ele me contou que ela nunca demonstrou
muito seus sentimentos por ele, sempre foi um
pouco fria e distante. Quando os vi agora a pouco
no corredor, que ouvi o que ela falou para você, o
modo como ela te tocou... ― Melanie sorriu. ― Ela
nunca disse que o amava! Talvez gelo e fogo não
seja o certo como todos dizem, acho que gelo e
gelo seja a combinação correta! ― Com essas
palavras ela sumiu pela pequena trilha entre os
cactos cobertos de flores e desapareceu no interior
do castelo.
Gelo e gelo.
Era o que nós éramos: um alguém com o
coração congelado e o outro com a Alma do gelo...
A combinação correta, o fogo derreteria o gelo,
como ele a feriu uma vez, quando ameaçou
queimá-la, quando não confiou, quando não ouviu

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sua explicação. Eu nunca a machucaria.


Gelo não derrete gelo.

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Capítulo 12

Nikella:

Kuran ainda me mantinha no corredor, o


cheiro dele me atingiu, acariciando meus sentidos
como um cumprimento, mas eles agora pareciam
errados para mim, errados de uma forma que não
sentia antes, quando ele era tudo que eu queria. Ele
deu mais um passo em minha direção. Espelhei seu
movimento quase me enterrando na parede, Kuran
estava me encarando com os olhos vermelhos,
vidrados, como se não acreditasse que eu realmente
estivesse ali.
— Ericko me disse que você morreu aquele
dia, na Árvore de Fogo...
— Eu não morri, fui banida por ter matado...
você. ― Consegui fazer minha voz sair firme.
— Nike...
— Desculpe. ― Era apenas uma palavra, e
era tudo que eu podia dar a ele, nada mais, mesmo
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que uma parte de mim ainda sentisse raiva das


palavras que ele disse para mim uma vez, eu
precisava me desculpar, por tudo. Ele olhou para
meu pescoço, para onde Siferath agora pendia entre
meus seios, no lugar que o pingente estivera pelos
últimos dias, mas que o tirei para evitar problemas
quando chegasse aqui, e ainda assim teria que usá-
lo para entrar na Árvore do Fogo e tentar consertá-
la. Algo se acendeu nos olhos de Kuran, o espanto,
a confusão havia passado e agora algo estava
dançando ali quando ele me encarou novamente.
— Você nem olhou para mim, você apenas
saiu por aquela janela e desapareceu na escuridão,
nem olhou para trás para ver se eu sobreviveria. ―
Kuran cuspiu as palavras e suas mãos fecharam em
punhos, os nós dos dedos brancos quando ele deu
mais um passo e ficou tão perto que podia ver os
raios alaranjados no vermelho de seus olhos.
— Tinha muita gente lá para cuidar de você.
— Você era o que importava para mim! Eu te
levei até lá pois queria que eles te ajudassem!
— Você me levou até lá sabendo que eu
poderia perder o controle e matar Nyumun! ―

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gritei em resposta. Kuran ergueu a mão em direção


ao meu rosto, mas Docinho em meu ombro cuspiu
o líquido ácido seguido por alguns estalos e ele se
afastou.
— Fogo não me afeta, esqueceu? ― Ele deu
um sorriso sarcástico.
— Eu falei a verdade, eu sinto muito, por
tudo...
— Você foi para Vegahn, atrás do assassino
que apareceu aquele dia no aniversário de Ericko,
correu para ele depois de me rasgar ― Ele inspirou
fundo. ― Eu devia ter imaginado que havia mais
que curiosidade naquele dia no seu olhar, da
maneira que você olhou para ele, então você sabia
o que estava fazendo quando saiu sem olhar para
trás, quando me deixou para morrer no castelo, saiu
e correu pra Vegahn! Nem esperou o meu sangue
sair de suas mãos para ir se esfregar nele... ― Meu
movimento foi tão rápido que ele não teve tempo
de erguer o braço para se defender, o tapa que lhe
dei foi tão forte que o fez cambalear para o lado e
as garras de vitrino nas pontas de meus dedos
abriram pequenos cortes em seu rosto perfeito.

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— Não fale como se soubesse tudo, Kuran!


— rosnei quando ele se virou para me encarar,
agora com ódio fervendo nos olhos, como das
primeiras vezes que o vi. Dei as costas a ele e
comecei a caminhar lentamente pelo corredor.
— Diga a verdade! ― exigiu ele agarrando
meu braço antes que eu pudesse me afastar, suas
mãos quentes fizeram meus braços doerem, mesmo
assim não me afastei.
— Naquele dia, quando eu vi o que tinha
feito com você... ― Me obriguei a respirar com
calma. ― Eu não tive tempo a perder, sabia o que
Fairin iria fazer já que havia perdido o controle
sobre minha mente, eu vi seus últimos pensamentos
antes de expulsá-lo de minha cabeça e a única coisa
que eu pensei foi que eu tinha falhado com você,
mas quando eu entrasse em Mogyin eu ia poder te
encarar de cabeça erguida por ter corrido a tempo
de salvar Sheriah e Annie. ― Ergui a cabeça e
coloquei a mão no bolso do vestido e tirei o colar, a
chave da Árvore do Fogo, puxei a mão dele e
coloquei o colar em sua palma, ele olhou do colar
para mim e engoliu em seco.

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— Nike.
— Eu nunca o tirei, pois era um lembrete de
como eu falhei com você e de que eu não queria
falhar com mais ninguém, nunca. Só o tirei hoje,
pois fui obrigada a vir e não queria que sua mãe o
visse comigo, não queria lembrar a ela o que fiz
com quem me deu esse colar!
— Você não sabia... que eu estava...
— Não, para mim, você estava morto. ―
Então, virei as costas e saí sem dizer mais nenhuma
palavra. Saí para a cidade, para a praça em frente
ao castelo, procurei por um banco que estivesse
escondido em sombras de alguma árvore e me
sentei, cruzando as pernas e fiquei brincando com
Docinho no colo.
— Dia difícil? ― perguntou uma voz
familiar perto de mim, uma voz que fez minha pele
se arrepiar, não pensei duas vezes antes de pular em
Susano e o abraçar o mais apertado que pude.
— Ah! ― Tentei engolir o choro. ― Como
senti sua falta! ― Ele fechou os braços em volta de
mim e riu.
— Ficou mole em Vegahn? ― Ele se afastou

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para que eu pudesse ver seu rosto, estava


exatamente como da última vez que eu vi, os olhos
verdes brilhantes e o cabelo negro sedoso caindo ao
redor dos ombros, embora pudesse jurar que ele
estava mais forte agora pois os músculos dos
braços eram visíveis por baixo da camisa cinza que
ele usava.
— Talvez... ― Ri quando ele se afastou o
suficiente para observar curioso Docinho em meu
colo. ― Onde está Annie? ― perguntei olhando
para os lados, esperando que ela estivesse com ele,
Susano rolou os olhos e sentou no banco, puxando-
me com ele.
— Ela e as gêmeas estão vendo roupas para a
festa, passaram as últimas semanas fazendo isso,
acho que se pudessem se dividir em dez, elas
usariam roupas diferentes!
— Ah, entendo! ― Sorri um pouco com a
imagem mental de dez Asahi’s, se uma já dava todo
aquele trabalho aos pais... Susano esticou a mão
para Docinho em meu colo, ela não se incomodou
com seu toque, apenas passou para o colo dele e
soltou um som parecido com um grunhido.

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— O que é esse dragão, afinal? Nunca vi um


assim! ― Ele abriu as asas negras dela com
delicadeza, a membrana ficou avermelhada com a
luz do sol que descia no horizonte agora.
— Um híbrido, dragão marinho e dragão de
fogo! ― Susano soltou a asa de Docinho e me
encarou com a boca levemente aberta.
— Impossível!
— Eu mesma a choquei! ― Susano sacudiu a
cabeça e brincou com os dedos sobre a cabeça de
Docinho, foi então que reparei em uma folha
laranja brilhando no anelar da sua mão esquerda e
corei.
— Nós nos casamos tem menos de dois
meses. Minha mãe quase enlouqueceu, pois
fizemos tudo em segredo, não queríamos uma
plateia! ― Ele adivinhou o que eu estava pensando
quando torci os lábios num bico e continuou. ―
Sabíamos que eles mentiram, que você estava viva
por causa do nome na Árvore dos Espíritos, mas
não tínhamos ideia de onde você estava, se não,
iríamos querer você lá na hora, só Kuran e Melanie
estiveram lá conosco.

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— Melanie...
— A filha da minha tia Yurin, irmã de
Datani.
— Acho que me lembro dela, estava na mesa
do refeitório no dia das provas! ― Susano assentiu.
— Desde quando... eles estão juntos? ― Foi
um esforço fazer meu tom de voz soar indiferente.
— Quando Asahi o curou, transformando ele
em seu guardião, ela tentou de tudo para que Kuran
ficasse com ela, mas ele não reagia a nada, nem
ninguém. Mas Mel o consertou aos poucos.
— Entendi.
Susano olhou em direção ao castelo e bufou,
depois ficou de pé e esticou as pernas, alongando-
se.
— Vamos tomar um sorvete? ― Ele
estendeu a mão que não estava segurando Docinho
para mim, então me levantei e fui.
Andamos em silêncio até o outro lado da
praça, as sombras longas dos muros começaram a
desaparecer e as luzes da cidade agora estavam
sendo acesas, os enfeites vermelhos e dourados por
todos os lados deixava a cidade com a aparência de
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uma caixinha de jóias aberta, o povo parecia


eufórico com o casamento, com a aliança com
outro mundo. Fiquei sentada em frente a sorveteria
com Docinho no ombro, ela provavelmente
causaria um estardalhaço dentro do
estabelecimento, então fiquei esperando Susano
trazer os doces para nós, enquanto observava em
silêncio o movimento da cidade. Meu coração se
apertou ao olhar na direção da Solaris e ver a loja
fechada, a poeira estava acumulada nas janelas, era
Elister que fazia a limpeza da loja, aquilo arrasou
meu peito. O hotel de Gih continuava lá, estava
lotado, devia estar cheio de visitantes de outros
mundos para o casamento.
Susano apareceu poucos minutos depois com
duas taças cheias de sorvete de chocolate com
avelãs. Sorri e quase pulei para abraçá-lo de novo.
— É meu favorito! ― falei pegando a taça
que ele colocou em minha frente e comendo uma
colherada.
— Meu e do meu pai também. ― Ele riu e
meu estômago afundou.
— Eu queria te dizer uma coisa... ― comecei

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a falar, olhando em volta para ter certeza de que


não havia ninguém ouvindo a conversa.
— Essa sua cara está me assustando, Nike.
— Susano agora estava sério olhando para mim,
encarando-me com os olhos verdes e brilhantes,
meu estômago parecia chumbo.
— Eu só quero te contar isso, para que você
saiba também, só pra tirar o peso de mim, sei que é
algo egoísta, mas eu só confio em você para dizer
isso. ― falei inspirando profundamente.
— Pode falar, não vou contar para ninguém!
— Eu confiava nele, sabia que ele realmente não
contaria, e o que mais me doeu foi isso, pois sabia o
quão difícil seria para manter o segredo.
— Eu tomei todas as memórias de Fairin
antes de matá-lo. ― Susano sugou o ar num baixo
assobio. ― E descobri algo sobre a Árvore dos
Espíritos, ele sabia sobre ela, mas não conseguia
encontrá-la no castelo. Os nomes, os nomes das
pessoas nas árvores podem ser arrastados ou
modificados por qualquer portador de magia. ―
Susano arregalou os olhos e sacudiu a cabeça.
— Não pode ser...

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— Pode, e já foi feito antes... com alguns


nomes.
— Nike, você está me deixando maluco, por
favor, chegue logo no ponto! ― Eu respirei fundo,
comi mais algumas colheradas do sorvete que
estava derretendo e então falei.
— Belve, ela era híbrida também, de
metamorfa e humana. Ela se encontrou com seu pai
alguns anos antes de sua mãe ir para Amantia... ―
O rosto de Susano havia ficado completamente
pálido quando comecei a contar. ― Dezenove anos
antes, para ser mais precisa, Belve estava usando
aparência de outra mulher, seu pai não sabia que
era ela... um tempo depois ela teve duas filhas, uma
morreu, e a que sobreviveu, ela vendeu para um
comerciante de Ciartes, meu avô. ― Susano estava
olhando fixamente para o sorvete derretendo em
sua taça.
— Como...
— No dia que seu pai foi levado para Vintro
e teve a mente apagada por Moan, Belve estava lá,
ela alterou sua aparência quando o viu, virando a
mesma mulher de dezenove anos antes e contou a

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ele sobre as filhas que teve. Mas seu pai estava


atordoado demais com a magia de Moan e não deu
ouvidos. Guinn perguntou a ela depois porque ela
havia contado aquilo, e ela disse que foi só para
perturbá-lo, e contou o que tinha feito com as
crianças. A que morreu ela enterrou na beira de um
lago a outra ela vendeu, ela era um monstro sem
coração e não queria contato com a menina.
“Belve foi a única a escapar da maldição por
muito tempo, ela enganou a maldição com um
feitiço do tempo que paralisou sua idade, mas o
feitiço perdeu o efeito e ela não percebeu, então
movida pela necessidade de passar a maldição para
frente ela enganou seu pai, Belve sabia que ele
tinha sido casado com a irmã mais nova dela,
Emma, então ela alterou sua aparência para que ele
não a reconhecesse e ficou com ele. Belve contou
tudo isso para Guinn, não faço ideia do motivo que
a levou a contar isso, mas depois de tudo, ela
invadiu o Castelo de Cristal e mexeu na árvore e
colocou como se Fairin fosse o pai das suas filhas.

— Então, você...

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— Sou sua sobrinha. ― Susano olhou para


mim e para o sorvete novamente então suspirou.
— Acho que minha mãe teria um treco, se
soubesse que meu pai pegou metade das mulheres
da família! ― Não consegui evitar uma gargalhada.
— Não está com raiva de mim?
— Por que estaria? ― Ele sorriu, um sorriso
divertido e depois me lançou um olhar malicioso.
— Fiquei imaginando como seria ter sobrinhos
quando minhas irmãs se casassem, mas não posso
te paparicar, você está velha demais para isso! ―
Ele gargalhou quando o chutei por debaixo da
mesa.
— Você sabia sobre as Almas? ― perguntei
depois de um tempo enquanto acabava o sorvete
que já estava líquido.
— Sim, eu tenho a Alma do vento. ― Quase
engasguei quando um vento forte soprou a praça,
fazendo algumas pessoas soltarem gritinhos
assustados.
— Achei que Nyumun...
— Ela tinha a Alma do vento, mas a passou
para mim. ― O olhei incrédula.
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— Por quê?
— Siorin, ele começou a ficar paranoico,
com medo de Higarath aparecer e matá-la para
tomar a Alma.
— Então, quer dizer que se ele vir e tentar te
matar para tomar a Alma está tudo bem? ― Ele
moveu as mãos para que eu baixasse meu tom de
voz.
— Você me contou um segredo, eu te
contarei outro. ― Susano respirou fundo. ―
Nyumun está vivendo com Siorin e Misa no
Castelo dos Sete Dragões, pois lá é mais seguro
para ela, atualmente.
— Agora você que está enrolando, Susano!
— resmunguei.
— Nyu está grávida. ― O sangue sumiu de
meu rosto e acho que escorreu até meus pés.
— Seus pais sabem? ― Susano riu.
— Vão saber em breve! Ela não vai
conseguir esconder pra sempre...
— Ela é louca! ― Consegui dizer. ― Com
essa guerra que está se aproximando...
— Então, você já sabe? ― Ele apoiou os
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cotovelos na mesa e me encarou sério. Assenti.


— Pode me contar?
— Pelo que descobrimos, Higarath está
despertando e controlando todos os sombrios, todos
que ele corrompeu com as maldições... vamos ter
uma guerra feia, uma parecida com a de dezoito
anos atrás, mas muito, muito maior. Envolvendo
todos os mundos e todas as raças. ― Olhei para a
lua crescente surgindo no céu e agradeci por não
ser uma lua cheia.
— Quando você diz os sombrios, quer dizer
todos eles? ― perguntei baixando ainda mais a voz.
— Todos! Inclusive, as missões da ACV
foram suspensas, apenas os caçadores formados
podem realizar as missões. Muitos dos sombrios
desapareceram e os que ficaram estão inquietos,
violentos demais! ― Ele xingou baixinho ao
perceber a aproximação de alguém e colocou a mão
no pingente. Caalin se aproximou de nós em passos
largos, vinha sério e em sua forma completa de
malvarmo, sua pele branca quase parecia emanar
luz, a mesma luz da lua, notei. Os olhos azuis
brilhavam quando ele se aproximou de nós e

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arrastou uma cadeira, sentando-se ao meu lado,


Caalin deu um sorriso para Susano, mostrando os
caninos longos e um brilho quase predatório no
olhar. Então, ele parou, o sorriso sumiu, suas
narinas dilataram enquanto ele olhava de Susano
para mim e soltou um palavrão baixo.
— Alguém já disse que vocês parecem
gêmeos? ― Ele encarava Susano, que mantinha a
mão na espada, mas um olhar tranquilo agora.
— Caalin, esse é Susano, meu...
— Tio. ― Susano completou e fez um leve
aceno com a cabeça, roçando os dedos na cabeça de
Docinho em meu ombro. ― Ele estava escutando a
conversa, olhando pelos olhos dela! ― Susano
agora sorria.
— Como soube? ― perguntou Caalin a ele.
— Os olhos dela mudaram, ficaram iguais
aos olhos dos Sumons quando recebem a alma de
alguém! ― Susano era observador, muito.
— Estava me espionando? ― grunhi para
Caalin, ele não encolheu os ombros, apenas roçou
os lábios em minha bochecha.
— Você sumiu do castelo, não sabia onde
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estava então, dei uma olhadinha pelos olhos dela


para ver se estava tudo bem!
— Aí aproveitou e ficou escutando a
conversa!
— O assunto me interessava! ― Ele deu
outro sorriso e olhou para Susano. ― Só vim
interromper, pois vocês entraram em um assunto
um pouco perigoso demais para um local como
esse... ― Ele desviou o olhar, mostrando uma
sombra no canto do castelo.
— Onde acha que deveríamos conversar,
então? ― perguntei.
Caalin e Susano olharam para o mesmo lugar
ao mesmo tempo.
— Vamos resolver dois problemas de uma
vez! ― Soltei um suspiro cansado ao olhar a árvore
de folhas prateadas por cima dos muros. Caalin se
levantou e me deu a mão, Susano ficou olhando-
nos por um tempo antes de eu escutar um “click”
em sua cabeça, então ele fixou o olhar em meu
pulso, onde a marca prateada da corrente estava,
mas parecia olhar além dela, algo que eu não podia
ver.

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— Algumas coisas ruins precisam acontecer


para que possamos descobrir as boas! ― disse ele
com um sorriso no rosto, então puxou uma folha
entre os dedos e a assoprou, criando uma ave
gigante. Os guardas já estavam olhando de cara feia
para nós quando subimos nela e Susano nos levou
acima dos muros, em direção à Árvore do Fogo.
Caalin estava me apertando gentilmente, ele
sentou-se atrás de mim com a desculpa de me
segurar, Susano estava quase sobre a cabeça da
grande ave avermelhada e segurava Docinho no
colo, pelo menos, ela não o estranhou, se eu a
deixasse com ele não me sentiria tão mal. Senti a
boca de Caalin roçando em minha orelha e sua voz
falou baixa ao meu ouvido:
— O que houve entre Kuran e você? ― Virei
para o lado para poder encará-lo, estava ficando
irritada por ele já estar pensando que eu havia feito
algo, mas ele completou: ― Quando fui até o
corredor procurar por você, para ver se estava tudo
bem, o encontrei de pé no corredor olhando para a
saída do castelo, vi uma marca vermelha no rosto
dele e alguns furos dessas unhas... ― Ele pegou

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minha mão e beijou as pontas de meus dedos. ―


Não sei por que bateu nele, mas eu gostei! ― Ele
riu, uma risada grave, baixa e divertida.
— Ele me ofendeu, eu só respondi da forma
que devia ― expliquei.
— Você está na casa deles, não é mais a
favorita do príncipe, então, se você machucar
alguém da família real de Ciartes, estando aqui
como proteção de Aliver, você pode prejudicá-lo.
— Caalin, se fosse o próprio Ericko que me
ofendesse daquela forma, ele poderia ser o
imperador dos Doze Mundos, que eu ia afundar a
cara dele! ― rosnei ― Não importa o quão a
pessoa se ache superior, eu sempre irei mostrar que
estou a altura para responder! ― Caalin riu
novamente.
— Não esperava menos de você, enfrenta
Higarath como se ele fosse uma pessoa qualquer!
— Ele é uma pessoa qualquer Caalin! ―
falei, sombras apareceram sob os olhos dele quando
virou o rosto para me encarar.
— Não, Nike, ele não é! Você precisa ter
cuidado, se ele perceber uma falha, uma fraqueza,

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ele vai usá-la para te destruir, então não pense nele


como uma pessoa qualquer, ou então vai usar sua
força de forma errada quando a hora chegar! ―
Estava prestes a lhe responder quando um frio
muito intenso nos atingiu, os ventos gelados me
deixaram em choque por um instante. Olhei em
volta e percebi que havíamos atravessado uma
barreira, ela estava mantendo a Árvore isolada,
olhei para o chão abaixo de nós e a base da Árvore
estava completamente coberta por neve, quando
olhei novamente, meus cabelos estavam cheios de
flocos de neve.
— O quê...
— Você substituiu o poder da Alma do fogo
que mantinha a árvore pelo da Alma do gelo, se
essa barreira não estivesse aqui, Ciartes poderia ser
chamado de segundo Vegahn. ― Susano olhou
para trás e deu um sorriso triste.
— Quem fez a barreira?
— Eu... a mantenho com a Alma dos ventos.
— O olhar de Susano ficou estranho, quase
sombrio. ― Esse é um poder que ninguém deveria
ter, nem eu, nem você, nem ninguém! ― Ele olhou

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para Caalin como se soubesse que ele também tinha


uma das Almas, talvez soubesse.
Rodeamos a Árvore algumas vezes, mesmo
que cavássemos para encontrar a porta, eu tinha
devolvido a chave para Kuran.
— Tem uma janela no alto entre os galhos
mais largos, pelo que me lembro, a janela fica de
frente para a Cidade do Sol. ― Susano virou a ave
para que fossemos da direção certa, desviou dos
galhos e começamos a procurar. Nem pensei em
mudar minha aparência para melhorar minha visão,
uma vez que a tempestade de neve e os ventos
fortes dentro da barreira não me deixavam enxergar
nada. Caalin apontou para um pequeno ponto de luz
entre a neve e os galhos, Susano inclinou a ave e
mergulhou naquela direção, por sorte a janela era
grande o suficiente, pois no momento que a ave
desmanchou, fomos jogados para dentro da árvore.
A porta do quarto em frente estava aberta,
olhei a grande cama de madeira com a colcha de
veludo verde ainda a cobrindo, Caalin desviou o
olhar do quarto para a escada em espiral e a
escuridão que estava lá embaixo.

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— Vamos? ― Não esperei respostas, apenas


pulei para o lado de fora do corrimão, caindo pelo
centro da escada em espiral, o chão chegou mais
rápido que eu esperava, usei minha magia para
parar antes que o tocasse, mas as sombras negras se
agitaram ao meu redor e meu coração parou por um
momento.
“Voltou para nós?” “Voltou por nós?”
“Vamos, deixe-nos entrar!” As vozes ficaram tão
altas que abafaram o som de meu coração
acelerado.
— Vão embora! ― rugi, mas elas
gargalharam e começaram a debochar de mim. “Eu
poderia te dar o poder para derrotar o segundo
sombrio...” Aquela voz foi diferente das outras, era
uma voz grave, masculina e ressoou em meus ossos
de vitrino, como se cantasse uma canção para eles.
Eu não pensei em responder, fiquei apenas
ouvindo, sentindo a voz ao meu redor e deixei que
ela continuasse a sussurrar, diferente das vozes das
sombras, daquela eu não tive medo.
Um conjunto de raios iluminou todo o lugar,
as sombras desapareceram como se estivessem

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vivas, fugindo dos raios que agora me circulavam,


não havia percebido que estava de joelhos e mãos
no chão até que Caalin se abaixou ao meu lado.
— Você está bem? ― Ele segurou meu rosto
e beijou minha testa.
— O que foi aquilo? ― Susano estava
olhando em volta, as luzes da Árvore se
ascenderam, mas não eram quentes como foram
antes, eram brancas, brilhantes e puras, tão claras
que machucavam minha visão.
— Só... fiquei um pouco tonta, está tudo
bem! ― Me levantei ignorando a mão que Caalin
ofereceu para me ajudar. Ele me olhava
desconfiado, sentindo a mentira em meu tom de
voz.
— Caalin, acho que você deveria ir até o
castelo, Aliver pode precisar de você!
— Não vou deixar você sozinha aqui! ―
Susano pigarreou e cruzou os braços, incomodado
por ser esquecido e eu revirei os olhos.
— Não vou estar sozinha, eu preciso que
você fique de olho, dessa vez sem morrer, ok? ―
Falei em tom de brincadeira, ele apertou os lábios

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numa linha fina.


— Me distraí com você, por isso que ela me
pegou! ― Ele resmungou franzindo o cenho para
mim.
— Sem desculpas! Está velhinho e lerdo e
ela te pegou porque já tinha passando da hora do
seu cochilo! ― Susano teve um acesso de tosse,
virou para as estantes abarrotadas de livros,
olhando qualquer título.
— Não disse nada sobre eu ser um velhinho
lerdo nas últimas noites... ― Ele sussurrou mais
baixo para apenas eu ouvir, mas tenho certeza de
que Susano escutou, seu rosto ficou corado e se
afastou um pouco mais.
— Aliver tinha dito algo sobre querer que
você o ajudasse, graças a seu poder de influência!
— Caalin sorriu um pouco e se levantou, dando um
longo olhar para Susano, algo como um sinal de
alerta, para que ele ficasse longe. Não podia culpá-
lo, Kuran e Susano eram meus parentes tanto
quanto ele, Susano um pouco mais próximo.
— Se precisar de mim, envie um alerta e eu
estarei aqui em menos de um minuto! ― Ele beijou

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minha testa e desapareceu num clarão de luz.


— Não sabia que podíamos teleportar aqui
dentro! ― Susano também parecia surpreso.
— Não podemos... ― Ele soltou o livro que
estava segurando sobre uma mesa e bufou. ― O
que estamos procurando aqui?
— Um livro... quero o Livro das Sombras. ―
O rosto de Susano ficou pálido, branco como osso e
ele sacudiu a cabeça.
— O que quer com esse livro? ― perguntou
com a voz mais baixa que o normal, Docinho
parecia inquieta em seu ombro.
— Destruí-lo! ― Então, contei sobre Hobner
e Ausiet, seus planos e sobre o ataque a Ciartes,
contei sobre Higarath e sobre o poder roubado de
Hisana. Susano sentou no chão e ficou olhando
fixamente para as estantes cobertas de livros.
— Mas se você destruiu as armas...
— Eu as incapacitei, quando eles forem usá-
las, elas irão se partir, mas de um jeito ou de outro
eles irão atacar! ― Sentei ao seu lado e apoiei a
cabeça em seu ombro, ele tinha um cheiro bom, de
lavanda e folhas de bétula secas.
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— Se Aliver tiver uma aliança com meu pai e


com Ericko antes de julho, eles estarão em
desvantagem e não atacarão! Ou pelo menos, não
de imediato, com certeza enviarão espiões ou
assassinos atrás do livro.
— Mas ninguém consegue passar por essa
barreira a não ser você, não é? ― Susano assentiu.
— Eu não sei se você vai gostar Nike, mas eu
quero destruir as Almas! ― Ele se afastou para
poder me olhar nos olhos.
— Eu ia fazer o mesmo, mas creio que elas
não possam ser destruídas, apenas libertadas ou
devolvidas à verdadeira dona, Gaia!
— E como pretende fazer isso?
— Esse era o outro motivo pelo qual queria
vir aqui, imagino que Ayrana tenha deixado algum
diário, algumas anotações, já que tudo que é escrito
vem parar aqui...
— E como acharemos neste mundo de
livros? ― Ele lançou um olhar entristecido para a
sala ao nosso redor.
— Não faço ideia... ― Soltei um suspiro
cansado e fui até a prateleira mais próxima, uma
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estante de livros esculpida na madeira da própria


árvore, olhei os títulos, alguns deles, a grande
maioria na verdade, estavam em línguas de outros
mundos, não pareciam ter um padrão para serem
arrumados ali conforme apareciam, de vez em
quando alguns ruídos chamavam nossa atenção, um
arrastar de couro, papel e até madeira.
— São livros aparecendo ― explicou Susano
olhando para o alto da sala, seus olhos estavam
dourados, na certa ele estava vendo os livros que
agora apareciam nas estantes mais altas, em minha
forma humana eu não conseguia enxergar, pois
estavam muito altos.

— Acho que isso é uma missão impossível,


levaríamos décadas para achar algo aqui! ―
reclamei depois de meia hora olhando os títulos.
— Não reparou no padrão? ― Ele soltou um
livro sobre a mesa no centro da sala fazendo
Docinho pular de susto e soltar uma lufada de
fumaça, ela se enroscou novamente em cima da
mesa e ficou ali nos observando, Susano andou até
onde eu estava.

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— Acho que não tem um...


— Essa mansão está com magia de
organização, tudo se arruma sozinho, então, tudo
está organizado num padrão! ― Ele pegou um livro
perto de onde eu estava encostada, um livro grosso
com capa de couro.
— Livros novos e antigos estão misturados,
Susano! ― expliquei mostrando um livro com capa
frágil de papel brilhante a poucos centímetros de
onde ele retirou o livro de couro.
— Você não presta atenção nos detalhes,
Nike! ― Ele pegou o livro novo e o abriu,
mostrando o nome do autor, no livro antigo de
couro o nome era quase o mesmo.
— Estão organizados em ordem alfabética,
não pelos títulos, mas por nome de autor! ―
Poderia ter lhe dado um abraço por isso.
— Mas se estamos na letra “S” aqui, então
onde está o resto? ― O salão principal inteiro, só
tinha autores com a letra “S”.
— Vamos procurar a biblioteca. ― Susano
entrou por uma porta quase escondida por pilhas de
livros, andei pelos corredores, encontrei um

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banheiro gigante em mármore branco e com uma


banheira em uma pedra vermelha semelhante a uma
ágata de fogo, a banheira mais parecia uma piscina,
talvez fosse o único lugar da mansão que não
estava abarrotado por livros, a cozinha também
tinha prateleiras cheias de livros, dois dos três
quartos que encontrei também estavam tomados
por prateleiras e estantes com livros, mas todos nas
últimas letras também. Voltei arrastando os pés
para o salão principal, Susano estava descendo as
escadas em espiral vindo do quarto e tinha uma
expressão frustrada estampada no rosto.
— Lá para cima só tem do “T” para frente!
— Ele cruzou os braços e sentou-se na cadeira atrás
da escrivaninha, desaparecendo atrás dos livros.
— Impossível! Tem que haver uma
biblioteca aqui! Kuran me falou que tinha uma! ―
Olhando em volta, procurando por alguma
passagem que pudesse ter deixado escapar. Mudei
de aparência, usando a transformação em
malvarmo, quando me viu, Susano deu um salto
para trás quase capotando a cadeira.
— Céus! Nike! ― Ele se levantou e

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aproximou-se de mim, tocando a mão em meu


braço, observando atentamente as marcas brancas
do Yinemí, as orelhas pontudas e o cabelo
prateado. ― Como? ― Dei de ombros.
— Fairin fez isso. Agora, faça silêncio! ―
Fechei os olhos ignorando o olhar horrorizado de
Susano, não por minha aparência, mas pelo fato de
que Fairin conseguiu afetar até a mim. Comecei a
ouvir atentamente cada som que aquele lugar fazia.
A mansão inteira rangia sob a força dos
ventos que mantinham a barreira do lado de fora,
podia ouvir os livros aparecendo e estalando contra
outros livros, o som do piso de pedra estalando
levemente sob meus pés... e, então, um ruído
abafado vindo do chão, como se algo se movesse
por baixo da árvore, entre as raízes.
— Tem algo lá embaixo! ― falei olhando
para o chão, só então, reparei no piso do salão, por
todos os lados o piso era de madeira, pois a casa era
esculpida na madeira, mas no centro do salão não.
Havia blocos longos de pedra cor creme formando
uma superfície redonda ali, no centro onde
estávamos, outros blocos menores vermelhos e

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laranjas se encaixavam para formar um desenho


dentro de um círculo de palavras élficas, a mesa,
um tapete e um pequeno sofá de dois lugares
estavam cobrindo o desenho, logo percebi que
esses eram os únicos móveis que não eram fixados
no piso.
— Me ajude aqui! ― Empurrei a mesa para
fora do círculo fazendo Docinho se irritar e pular
para fora da mesa, tentando voar para o outro lado
da sala, Susano empurrou o sofá e o encostou em
uma das paredes abarrotadas de livros, arrastei o
tapete com o pé, revelando a folha vermelha da
árvore no centro do salão.
— “Apenas aqueles de minha morada serão
agraciados com o conhecimento de todos os
tempos” ― Susano virou a cabeça, lendo a
inscrição ao redor da folha, no centro da folha
havia uma marca, a árvore de cabeça para baixo
talhada cuidadosamente na pedra.
— Ah! Merda! Precisa da chave para abrir!
— resmunguei batendo o pé na marca.
— Essa? ― Dei um pulo como um gato
assustado ao ouvir a voz de Kuran que apareceu

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atrás de nós com o pingente na mão.


— O que faz aqui? ― perguntei franzindo o
cenho.
— Eu sempre venho aqui! ― Ele deu um
sorriso sarcástico. ― Vocês é que não deviam estar
aqui afinal, nada disso pertence a vocês! ― Ele
olhou de mim para Susano e apertou os lábios
numa linha fina.
— Minha irmã está te procurando! ― Ele
falou com Susano de forma mais grosseira do que
deveria.
— Então, estamos indo. ― Susano parecia
estar prestes a voar na garganta de Kuran, acho que
o relacionamento deles não ficou bom depois que
parti de Ciartes, me lembraria de perguntar o
porquê depois.
— Preciso achar o livro, Susano! Vá na
frente! ― Ele me deu um olhar de advertência, mas
eu apenas assenti e apertei de leve sua mão. Ele
tirou um pequeno espelho de dentro do bolso da
calça jeans escura e me deu.
— Qualquer coisa, me chame! ― Ele olhou
para Kuran e saiu da sala em direção às escadas,

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pegando Docinho que estava sobre uma das


estantes, esperei que ele sumisse de vista e estendi
a mão para Kuran.
— A chave! ― Ele riu de forma debochada
quando a pedi.
— Não tem nada aqui para você, Nikella,
está vendo a inscrição? Você não faz parte da casa
Salomon para poder entrar aqui!
— Deixa de ser idiota, Kuran! ― rosnei ―
Essa casa era de Grisela Arbarus, eu sou uma
também, se você não sabe! ― Ele semicerrou os
olhos e analisou minha transformação, podia jogar
em sua cara que eu só estava assim graças ao seu
péssimo trabalho em ser um guardião, mas preferi
manter o silêncio.
— Quero que saia daqui.
— Eu vou afundar os seus dentes se você não
me der a droga da chave! ― Peguei Siferath do
pescoço e as marcas brancas do Yinemí foram
substituídas pelas marcas negras. Ele me olhou com
espanto e cambaleou para trás.
— O que é isso?
— Me transformei numa maga negra quando
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achei ter matado você... Fairin queria que eu te


matasse, pois sabia que aquilo me afetaria tanto que
eu terminaria de me transformar.
— Eu... sinto muito.
— Não sinta, com isso eu posso te dar uma
boa surra agora, coisa que não conseguiria antes,
então me dê a chave! ― Ele ergueu as sobrancelhas
e balançou a cabeça.
— Não...
— Sabe o que é isso? ― Eu lhe mostrei a
cicatriz longa em meu braço que o guarda de
Hobner havia deixado quando invadi o castelo para
destruir as armas. ― Foi quando quase perdi a
cabeça ao invadir um galpão lotado de armas de
vitrino que Hobner mandou fabricar para atacar
Ciartes, eu fui até lá para destruir as armas e
proteger o mundo que eu nasci! Então, se você não
quer Higarath venha até aqui e arranque a Alma do
fogo de você a tapas, é bom que me dê essa chave!
— Grunhi mostrando os dentes, ele teve a decência
de parecer abalado com o que eu disse, então
colocou a chave na palma de minha mão. Fiquei de
joelhos sobre o piso, encaixei o pingente na

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fechadura e o girei. Para meu assombro, o chão


começou a girar, não o chão inteiro apenas o centro
da sala. A pedra começou a descer em espiral até
uma câmara sob a sala, as raízes da Árvore agora
apareciam ao redor de uma porta de pedra onde a
mesma fechadura aguardava pela chave para ser
aberta, peguei a chave dei alguns passos até a porta,
mas mesmo com a chave na posição correta a porta
não se abriu.
— Apenas os descendentes de Grisela podem
entrar! ― Kuran fez um pequeno corte na palma da
mão e cobriu a chave, a câmara foi iluminada por
folhas laranja incandescentes, só então a pedra da
porta se moveu, então entramos. Senti meus joelhos
cederem e tive que me segurar no corrimão de
raízes trançadas e envernizadas que cercava o
estreito corredor.
— Acho que eu nunca vi algo assim! ― Eu
estava boquiaberta, estávamos parados na borda de
um corredor, havia uma longa plataforma em nossa
frente que se estendia até o meio da sala e descia
em uma escada em espiral até o centro da biblioteca
e ao nosso lado havia uma escada, alguns degraus

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para baixo que levava ao primeiro andar da


biblioteca redonda, ela formava uma espécie de
cone para baixo, em cada um dos três andares
superiores, havia prateleiras intermináveis de livros
cobrindo todas as paredes com quase quatro metros
de altura cada, e no quarto e último andar sob nós,
haviam corredores e mais corredores de livros
partindo do centro da sala para além.
— Foi o modo de Grisela dizer que as raízes
da vida são o conhecimento! ― Kuran riu e deu um
baixo assobio.
— Quanto... qual você acha que é o tamanho
dessa biblioteca?
— Acho que deve ter uns quinze mil metros
quadrados! ― Ele começou a rir. ― Cada andar...
— Qual é a graça? –Perguntei franzindo o
cenho para ele.
— E mesmo assim, lá em cima já está quase
cheio!
— Ah, conhecimento de Doze Mundos... ―
Por um momento havia esquecido de que estava
com raiva dele.
— O que estamos procurando? ― Ele olhou-
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me de canto de olho, mesmo que quisesse mandá-lo


para o inferno, não conseguiria achar o livro
sozinha, talvez, nem com umas cem pessoas aqui
acharíamos o livro rapidamente.
Descemos as escadas em espiral até o centro
da biblioteca, me senti uma formiga em túneis de
livros dessa vez.
— Procuramos pelo quê?
— Ayrana Arbarus, provavelmente... ―
Olhei as capas dos livros, procurando por algum
indício de que estávamos no caminho certo, mas
Kuran cutucou meu ombro com o nó do dedo e
apontou para cima, olhei na direção que seu dedo
apontava, havia uma pequena placa dourada com
um “F” em vermelho ali. O centro da sala onde
ficava a escada não era tão grande, havia um
círculo de sofás e no centro algo que parecia com
um aquecedor. Só então percebi que ali estava
muito frio, minha transformação em malvarmo não
deixou que eu percebesse a temperatura baixa.
Comecei a procurar até encontrar a placa com a
letra “A”, a maioria das letras se repetiam até a “S”,
dali para frente estavam nos andares superiores e

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no salão principal, quando Kuran começou a me


seguir até a prateleira eu o impedi.
— Tem outro livro, o Livro das Sombras...
preciso que você ache esse! ― pedi, ele teve a
mesma reação que Susano ficando pálido, franziu o
cenho, mas assentiu e foi em direção a um corredor
estreito e sem marcação.
Entrei no corredor da letra “A” e comecei a
procurar por Ayrana nos nomes nas prateleiras,
pelo visto a biblioteca oficial era mais organizada
que o resto da mansão que recebia livros de
qualquer maneira.
Depois de passar pela prateleira mais de
cinco vezes pela área onde deveria estar o nome
dela e não encontrar nada, comecei a arrancar os
cabelos num desespero total.
— Nikella! ― Kuran chamou de algum lugar
que fez sua voz soar baixa e nervosa. Fui até o
corredor que ele havia entrado, havia mais um
esconderijo no final dele, uma outra antessala
apertada com uma escada em espiral, respirei fundo
e desci os poucos degraus até uma espécie de
escritório, era bonito e confortável com um

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agradável aroma de terra molhada e mais um cheiro


amadeirado e alegre. A mesa de mogno com tampo
de pedra ocupava a maior parte da sala, havia
documentos e papéis sobre ela. As prateleiras ali
tinham poucos livros e uma forte energia estranha
vinha destes.
— Uma vez eu imaginei os livros com poder
devastador que devia ter dentro dessa Árvore, não
estava errada, não é! ― Kuran estava sentado na
cadeira de veludo verde atrás da mesa, ele pegou
um embrulho pesado que estava em seu colo, o
colocou sobre a mesa e deslizou-o em minha
direção.
— Era isso? ― Abri o embrulho com
cuidado, revelando o livro com capa de couro com
apenas um símbolo na capa, uma espada
atravessando uma meia lua. Quando toquei a capa
do livro, minhas sombras apareceram e se agitaram
ao meu redor, fazendo com que as luzes da sala
oscilassem, Kuran levou a mão à espada, alarmado.
— O que quer que saia desse livro, você não
vai conseguir combater com uma espada, Kuran!
— O alertei embrulhando o livro novamente e

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colocando debaixo do braço.


— O que pretende fazer com ele? ― Ele não
tinha tirado a mão da espada, entendi que o livro
não era a ameaça na sala, mas eu sim.
— Destruí-lo. ― Virei de costas para ir até a
escada, mas uma fresta de luz branca quase
magnética na parede oposta chamou minha atenção.
Andei até ela, a luz estava escondida por uma
cortina de veludo negra, eu a puxei rapidamente e
fiquei maravilhada ao ver a esfera pulsante, viva e
fria ali numa pequena câmara escavada na terra, ela
estava presa sob um emaranhado de raízes finas e
parecia pulsar vida para elas.
— Uma parte da Alma do gelo! ― falei
tocando a bola com as mãos, sentindo todo meu
corpo se arrepiar, responder a ela.
— Você congelou a Árvore! ― Ele parecia
furioso.
— Não sabia que isso ia acontecer, sinto
muito.
— Você podia ter nos matado! Se Susano
não tivesse isolado a Árvore...
— Eu não sabia, Kuran! ― O encarei séria,
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ele apenas respirou fundo e observou a esfera. ―


Acho que você tem que substituí-la por uma parte
da Alma do fogo.
— Acha? ― Ele deu um sorriso debochado,
revirei os olhos engolindo minha vontade de lhe
acertar os dentes usando a força do gelo, então
cuidadosamente soltei as raízes que prendiam a
parte da Alma. Ela cedeu ao meu toque e aos
poucos foi sendo absorvida pela minha pele.
Porém, quando ela foi completamente absorvida
por mim, a Árvore apagou. A escuridão tomou
conta de tudo como se tivesse engolido a Árvore,
do lado de fora, mesmo muito abaixo da superfície
pude escutar o rugido da tempestade de neve
cessando. Mas o que me preocupou foi a escuridão
pulsante ali.
— Kuran, rápido! ― implorei sentindo meu
coração acelerar e as vozes começarem a
murmurar.
— Tá! ― Pude sentir ele se aproximando por
causa do calor insuportável de sua pele, então uma
explosão de luz amarela e laranja irrompeu ao meu
redor, os ossos em meus braços começaram a arder

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de forma tão violenta que me fez gritar e cair de


joelhos, tentei esfriar o corpo com o Yinemí, mas
parecia que todo meu poder havia desaparecido,
logo em seguida a dor irradiou por todo meu corpo,
queimando minha garganta, meus olhos, minha
pele... não conseguia nem gritar mais, havia
perdido totalmente as forças, vi Kuran olhando para
mim assustado, então ele juntou as chamas
vermelhas numa pequena bolha e a pressionou
contra as raízes, que na mesma hora reagiram
absorvendo-a, as luzes laranjas se acenderam por
todos os lados e o calor da Árvore voltou
imediatamente, o aroma amadeirado e agradável da
Árvore foi substituído por algo que fez meus
pulmões se encolherem e lutarem contra aquele
cheiro, até meu sangue parecia querer sair de dentro
de mim, tudo escureceu novamente.

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Capítulo 13

Caalin:

Já passava da uma da manhã, estava sentado


numa sala com Aliver, Ericko, Ewren e Sylvia, os
quatro reis conversavam incessantemente sobre
alianças, terras e reinos. Há muito já não prestava
mais atenção naquilo, estava apenas aguardando a
ordem de Aliver para começar a manipular os
outros reis sobre possíveis alianças. Sylvia com sua
voz alta e melodiosa, não parava de falar sobre o
Reino das Brisas e a prosperidade de seu povo, ela
era a rainha dos Silfos e tinha um dos maiores
exércitos dos Doze Mundos.
Quando vivia com Mary, nunca acreditei que
as fadas pudessem oferecer alguma resistência, até
dizimarem metade do exército dos Silfos numa
batalha que acabou com o continente sul de
Treezer, se ele ainda existisse, Saldazaris e Treezer
seriam inimigos até os dias de hoje.

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Comecei a pensar que Aliver deixaria o


assunto de uma aliança para depois do casamento,
porém Ericko tocou no assunto pouco antes de eu
quase me render ao cansaço que o calor de Ciartes
me proporcionou e sair da sala. Ericko acreditava
que dois mundos com poderes que poderiam
destruir um ao outro, seriam melhores aliados que
inimigos. Aliver e Ericko não faziam ideia da
verdadeira ameaça, mas algo no olhar sombrio de
Ewren me dizia que ele já sabia sobre Higarath e
estava disposto a começar a falar sobre o assunto
em breve.
Sylvia estava começando a me incomodar
com seus longos e demorados olhares, se não
estivesse com tanto calor, teria apenas a ignorado,
mas já estava irritado por ter deixado Nike sozinha
com Susano na Árvore e até agora não ter nenhum
sinal dela, que acabei esgotando o resto da minha
paciência.
— Peço permissão para me retirar,
majestade. ― Aliver olhou-me preocupado, não sei
ao certo se era por minha causa ou por que iria
deixá-lo sozinho com seus próprios argumentos

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fracos para conquistar uma aliança.


— Pode se retirar, boa noite! ― Fiz uma
saudação a todos e me virei de costas para sair.
— Vossa majestade, o noivo, deveria dormir!
Ou depois da festa não vai ter ânimo para as
alegrias do casamento! ― Estava tão irritado que
esqueci que Ewren era o pai da noiva, o rosto dele
ficou vermelho de pura raiva e me lançou um olhar
que eu interpretei quase como hostil, tive vontade
de sorrir de volta já que ele não teria chance
alguma, caso resolvesse me castigar pela minha
“insolência”, porém estava cansado demais até para
brincar com ele.
Saí da sala em passos rápidos, havia
reservado um quarto no hotel do outro lado da
praça, não aguentaria passar uma noite inteira
naquele castelo que mais parecia uma frigideira
gigante, nem mesmo sem minha forma verdadeira
completa, porém sem me transformar totalmente
em humano, estava conseguindo aguentar o calor.
Ao sair do castelo percebi que a tempestade
de neve ao redor da Árvore do Fogo havia cessado
e que ela estava escura, sem nenhum brilho. Aquilo

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fez uma sensação terrível se enroscar em meu


estômago, pouco depois vi que Susano e a princesa
Annie vinham em minha direção, reduzi o espaço
entre nós rapidamente e nem os cumprimentei ao
perguntar:
— Você a deixou sozinha lá? ― Susano
sustentou meu olhar e balançou a cabeça de leve.
— Kuran foi até lá pouco depois que
chegamos...
— Você a deixou sozinha lá com ELE? ―
rosnei perdendo completamente a calma, a princesa
se sobressaltou puxando uma espada de vitrino, que
pelo trabalho impecável, percebi ser uma das armas
de Nike.
— Calma, Caalin! ― Susano pediu, mas
antes que pudesse lhe responder, uma luz vermelha
incandescente cobriu a Árvore do Fogo e suas luzes
voltaram, a vida voltou a ela, a Árvore foi coberta
por chamas de todas as cores antes de voltar ao
brilho vermelho normal. Algo estava errado!
Uma dor irradiou por meu peito como se
estivesse pegando fogo, agarrei o pingente do
machado que Nike havia feito para mim e me movi

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mais rápido do que imaginei ser possível. As luzes


do teleporte me engoliram, em um piscar de olhos
estava em frente à Árvore.
Porém a energia pulsante e ardente que saiu
dela não permitiu que eu me aproximasse, a neve
ao redor da Árvore havia evaporado, não derretido,
não havia nem sequer vestígio de água ali, só um
vapor quente que cobria os céus.
— A Árvore... ela está curada! ― Não havia
reparado que Susano segurou meu braço ainda
segurando Annie para que fossem teleportados
juntos comigo.
— Vá tirar ela de lá! Rápido! ― gritei
forçando-me ficar de pé. Susano não esperou que
eu dissesse novamente, ele abriu as asas e voou
para cima, desaparecendo pela janela perto da copa.
— Se ele fez algo a ela... ― rosnei
novamente, meu corpo inteiro tremia com o ódio
puro que queria apenas se libertar e rasgar a
garganta de alguém.
— Meu irmão não é louco, ele sabe que você
o mataria! ― A jovem retrucou aproximando-se de
mim e tocando gentilmente em meu ombro. Dei

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uma gargalhada rouca e a encarei.


— Eu destruiria seu mundo, se ele a fizesse
mal! ― Ela não se espantou, muito menos se
afastou de mim.
— Eu destruiria qualquer um que fizesse mal
a ela novamente, independente se fosse meu irmão
ou não, ela é minha melhor amiga desde sempre!
— Ela rosnou de volta, algo sobre o olhar assassino
que ela me deu, conseguiu me tranquilizar um
pouco. Menos de um minuto depois a porta se
escancarou e Susano saiu da Árvore com Nike nos
braços ainda em sua forma malvarmo, ela estava
inconsciente e mal respirava.
— A Árvore, o veneno... ― Susano não
esperou que eu entendesse, ele simplesmente abriu
as asas novamente e desapareceu no ar indo em
direção à cidade numa velocidade surpreendente.
— O que você fez! ― Peguei aquele
moleque pela gola da camisa, não precisaria da
espada para matá-lo, eu o rasgaria com meus
próprios dentes.
— Só fiz o que ela mandou! ― Ele se
esquivou de mim usando a Alma do fogo. O ódio

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cresceu em mim tão intenso que não liguei para


estar sob a Árvore do Fogo, sob o efeito
enfraquecedor de suas folhas venenosas para os
Malvarmos, apenas liberei uma fração do poder da
Alma dos raios e o fiz ficar de joelhos,
contorcendo-se com os choques, não ia matá-lo,
apenas torturá-lo um pouco.
— CHEGA! ― Annie gritou acendendo o
corpo em chamas e se colocando entre mim e
Kuran. ― Caalin, ela precisa de você lá! Agora! ―
Ela me empurrou, mas não movi um centímetro
mesmo quando ela me queimou com as mãos
incandescentes.
— Ele...
— Caalin, a Nike precisa de você lá! ― disse
ela novamente apontando para a cidade, mesmo
querendo acabar com tudo de uma vez, usei o
teleporte novamente e voltei ao centro da cidade a
tempo de ver Susano descendo em direção ao hotel
do outro lado da praça. Caminhei rapidamente até
ele e peguei Nikella de seus braços.
— Vamos, eu posso curá-la! ― exclamou ele
abrindo as portas do hotel e nos guiando para

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dentro, lá, uma senhora salamandra sorridente ficou


pálida ao olhar para Nikella em meus braços, ela
ignorou os clientes que faziam fila na recepção e
veio até nós.
— Ah! Minha Nike! O que fizeram com ela?
— Eu a ignorei e segui para o quarto enquanto
Susano dava explicações rápidas à mulher.
A porta do quarto se abriu quando me
aproximei, mal notei que era Susano controlando as
coisas com magia.
Coloquei Nike em cima da cama no meio do
quarto, Susano fechou a porta atrás de si e seguiu
para um aparelho próximo a cama e o ligou, uma
lufada de ar frio aos poucos começou a refrescar o
forno que estava ali dentro. Só então me permiti
olhar de verdade para ela, ver o que havia
acontecido dentro da Árvore.
— Caalin. ― Susano não estava me
chamando, estava apenas dando-me um alerta,
correntes elétricas passavam por meus braços e
minhas mãos quando ousei tocá-la, a pele
avermelhada, com febre e os braços... ah! Cheios
de bolhas, queimaduras terríveis como se sua pele

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tivesse cozinhado de dentro para fora. O vitrino


havia superaquecido quando aquele príncipe
imbecil usou a Alma do fogo perto dela, perto
demais para que causasse aqueles danos.
— Você pode curar isso? ― perguntei com a
voz baixa, Susano assentiu, então eu saí do
caminho e sentei numa cadeira ao lado da cama, ela
respirava com dificuldade e tremia muito.
Susano tomou meu lugar ao lado dela, ele se
ajoelhou no chão do lado da cama e estendeu as
mãos sobre o corpo trêmulo e vermelho. Uma brisa
fria formou uma bolha ao redor dela, uma espécie
de barreira que emanava uma fraca luz branca, uma
luz calmante e suave.
Devagar, muito lentamente ela foi se
curando, mas pelo menos ela estava se curando.
Susano estava concentrado em seu trabalho, ele
com certeza era um humano místico, um mago com
aqueles poderes de cura tão avançados era muito
raro.
Quando ele acabou, não havia nem cicatrizes,
nem marcas, Nikella estava respirando
normalmente e parecia dormir tranquilamente

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agora.
— Sirius me ensinou a cultivar o dom da
cura que recebi de meu pai, nenhuma das minhas
irmãs o tem. ― Ele fechou a mão em punho,
selando o poder e fazendo com que a barreira ao
redor dela desaparecesse.
— Achei que estivesse usando a Alma do
vento! ― Ele negou e sorriu.
— As Almas são poderes de destruição,
sinceramente não sei como elas foram usados para
criar os mundos, talvez apenas tenham sido
convertidos, ou juntos sejam outra coisa..., mas
nada de bom que tentei fazer usando isso deu certo!
— Fui obrigado a concordar com ele.
— Vou atrás de Kuran e Annie, saber o que
aconteceu. Nos vemos amanhã, Rei de Vegahn! ―
Ele fez uma reverência deixando-me inquieto.
— Passei esse título há muito tempo...
— Aliver sabe?
— Não e prefiro que não saiba. ― Ou então
ele poderia querer ceder o trono a mim novamente.
Susano olhou de mim para Nike e franziu o cenho.
— Ela sabe?
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— O quê?
— Que vocês têm as almas ligadas?
— Você percebe demais, garoto, isso pode
ser perigoso... ― O encarei de forma ameaçadora,
mas ele não parecia intimidado, no fim ele era igual
a ela no espírito também, apenas menos tagarela
que Nike. ― Ela não sabe e se sabe, não falou nada
nem demonstrou.
— Ser um bom observador me dá vantagens
sobre quase todos, mas ser observador e discreto
faz com que os outros confiem em mim... por isso
que ela contou sobre o que descobriu na mente de
Fairin. A primeira coisa que fiz quando a conheci,
foi observar ao redor e perceber que ela tinha mais
inimigos que amigos, então eu lhe dei a mão e
ofereci o que ela precisava, algo que ninguém
nunca ofereceu, nem mesmo Annie que era a
melhor amiga dela. ― Susano deu um tapinha no
pé de Nike e sorriu.
— O que ofereceu?
— Uma família de verdade. ― Os olhos
deles eram os mesmos, verdes, vivos e brilhantes,
como se guardassem um mundo inteiro no olhar,

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como se houvesse uma floresta cheia de vida


plantada no fundo se suas almas, ele bateu a porta
de leve quando saiu, e eu continuei olhando para a
porta.
— O que ele quis dizer com almas ligadas?
— Nike estava com o rosto apoiado na mão e me
olhava com curiosidade.
— Céus, Nike! O que houve lá? ― Subi na
cama e a apertei nos braços.
— Perguntei primeiro! ― Ela me afastou
para poder me encarar.
— Nike... ― Ela se desvencilhou de meus
braços e fez menção de se levantar. ― Aonde vai?
— Perguntar a meu tio, já que você não quer
me responder. ― Ela me lançou um olhar frio. A
puxei pelo braço com cuidado, não sabia se eles
ainda doíam pelas feridas recém curadas.
— Não faça isso comigo, por favor! ― pedi
enterrando o rosto em seu pescoço e puxando ela
mais para perto de mim. ― Eu senti você
morrendo...
— Não estava morrendo! ― Ela retrucou se
afastando novamente.
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— Estava sim, Nike! Você é meio malvarmo,


seu corpo não reage bem às folhas da Árvore do
Fogo, quando ela foi curada você foi envenenada
pelo poder dela! Não é só pelo calor que
Malvarmos não vivem em Ciartes, o pó das folhas
que a Árvore solta nos mata lentamente! ―
expliquei, ela se endireitou na cama e torceu a boca
num bico. Passei os dedos pelo seu rosto, ela
suspirou pesadamente e deitou sobre mim,
colocando a cabeça em meu peito.
— Eu não podia curar a Árvore, nas raízes
dela havia um pedaço da Alma do gelo que eu
deixei lá quando feri a Árvore antes de sair de
Ciartes. Kuran podia curá-la, pois ele tinha a Alma
do fogo, eu mandei que ele a curasse quando tirei a
Alma do gelo de lá... não sabia que o poder dele
poderia me afetar daquela maneira já que não me
afetou antes.
— Não te afetava antes, pois vocês tinham
um vínculo! ― respondi entre os dentes.
— Então... é por isso que a Alma dos raios
não me afeta? Por causa do que Susano falou sobre
as almas ligadas?

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— É. ― Ela esperava mais que apenas uma


confirmação, então, respirei fundo e expliquei:
— Em Mogyin, Ayrana criou uma árvore
para que se tornasse visível a ela os fios que
conectam as pessoas, não as pessoas exatamente,
mas suas almas. É uma árvore grande de folhas
prateadas plantada sobre o espelho da vida, um
espelho que não mostra um reflexo, mas mostra a
espiral dos Doze Mundos, a árvore, pela qual os
fios das almas atravessam, está com suas raízes
conectadas aos Doze Mundos, então os fios passam
por ela para que Ayrana saiba quem está conectado
a quem e assim ela tenta juntar as almas, mas
muitas vezes renascem tão separadas que uma
existência não é suficiente para juntá-las. ― Ela
assentiu lentamente. ― Então, nós...
— Sim, nós estamos ligados um ao outro por
um dos fios do destino. Quando duas almas
destinadas não se encontram, elas se sentem
incompletas, vazias, por mais que tenham alguém,
nunca irão sentir-se completos.
— Interessante. ― Ela sorriu.
— Triste às vezes, algumas almas

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simplesmente não se reencontram nunca. ― Ela


deu um beijo em meu queixo, então seu olhar se
tornou vazio e ela deu um gritinho histérico.
— O livro! ― Ela pulou de cima da cama.
— O quê?
— Nós achamos o Livro das Sombras, eu
estava com ele embaixo do braço quando tudo
aconteceu... será que ele foi destruído pela Alma do
fogo? Tinha algo nas mãos de Kuran quando ele
saiu da Árvore?
— Não ― respondi as duas perguntas com
uma única palavra, Nikella bufou e foi em direção à
porta em passos rápidos.
— Aonde vai? ― Franzi o cenho e me
levantei para segui-la.
— Se eu estiver em forma humana, a Árvore
não me afeta, não é?
— Não...
— Então eu tenho que ir pegar o livro! As
sombras lá dentro são mais fortes do que do lado de
fora! ― Ela abriu a porta para sair, mas a peguei
antes que saísse. ― Caalin, não é hora de ser um
macho dominante e querer me prender aqui! ― Ela
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rosnou mostrando os dentes.


— Vou com você! ― falei, ela ergueu as
sobrancelhas e riu.
— A Árvore não afeta os Malvarmos? ― Ela
colocou as mãos nos quadris, fazendo uma pose
debochada.
— Não se eu usar minha forma humana
também. ― Ela riu.
— Você está em sua forma humana e mesmo
assim não pôde entrar lá!
— Nunca te mostrei minha forma humana.
— Falei lhe mostrando um sorriso felino, ela ficou
séria e me encarou.
— Achei que essa fosse sua forma humana!
— Ela fez um gesto com as mãos sinalizando
minha aparência atual.
— Não, só estou com as garras e presas
recolhias. ― Ela soltou um palavrão e cruzou os
braços.
— Me mostre! Estou esperando! ― Ela
começou a bater o pé no chão de forma nervosa e
quase ri dela, mas então eu deixei o poder
adormecer lentamente e desaparecer aos poucos,
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até que senti os sentidos enfraquecendo e meu


corpo ficando um pouco mais leve. Nike estava me
olhando de boca aberta e um leve sorriso puxava
seus lábios nos cantos quando ela me observou da
cabeça aos pés.
— Mãe do céu! ― Ela cobriu a boca e corou.
— O quê?
— Você é tão lindo que dói! ― Ela diminuiu
a distância entre nós e riu, traçando os contornos de
minha boca com os dedos, olhei no espelho ao
fundo do quarto, já estava tão acostumado com a
pele branca dos Malvarmos que havia me
esquecido da minha verdadeira cor. Os cabelos
negros e pele cor de cobre destacavam os olhos
azuis que herdei de Ayrana.
— Obrigado.
— É igualzinho a Higarath... ― Seus lábios
se apertaram numa linha fina. ― Só os olhos que
não são parecidos.
— Sinto muito. ― Ela riu e deu um passo à
frente, pressionando os lábios em meu peito, o
único lugar que alcançava sem ter que ficar nas
pontas dos pés.

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— Na hora que eu o vi no dia em que matei


Fairin, a primeira coisa que pensei foi: agora sei
por que Ayrana foi enganada, eu também seria! ―
Acabei soltando uma gargalhada, ela estava
mordendo os lábios, parecia que ia me atacar a
qualquer momento, então respirou fundo e desviou
o olhar com esforço. ― O livro. ― Ela virou
novamente para a porta e eu a segui.
— Vamos... ― Nikella falou com a senhora
chamada Gih quando saímos do quarto, ela estava
angustiada esperando por notícias, mas quando viu
Nike bem ela apenas sorriu e lhe deu um beijo na
testa.
Teleportamos para perto da Árvore e nos
encontramos novamente com Kuran, Susano e
Annie, eles estavam sentados sobre os nós das
raízes que despontavam sobre a areia do deserto,
Nike ficou tensa de repente e encolheu um pouco
os ombros, ela não esperava que eles ainda
estivessem por aqui. Susano não pareceu
impressionado com minha transformação, Annie e
Kuran olhavam surpresos para mim, com as bocas
parcialmente abertas.

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— Achei que já estivessem na cidade. ―


disse ela passando os olhos por eles, Annie desviou
o olhar de mim para a amiga, ao ver que ela estava
bem, saltou sobre Nike com os olhos cheios de
lágrimas e cochichou algo para que apenas Nike
escutasse. Lancei um olhar gélido a Kuran, que
endureceu e desviou o olhar. Susano respirou fundo
e se levantou vindo em minha direção, então um
sorriso divertido apareceu em seu rosto.
— Não parece tão assustador assim! ―
exclamou ele brincando, mesmo assim não contive
a vontade de lhe responder.
— Ainda assim, consigo quebrar seu pescoço
num piscar de olhos.
Annie juntou as sobrancelhas e mostrou os
dentes para mim, lhe dei uma piscada para que
soubesse que eu estava brincando, tudo que não
precisava agora era de uma salamandra territorial e
irritada ateando fogo em tudo.
— Eu vim atrás do livro. ― Nike estava
olhando diretamente para Kuran agora, ele franziu
o cenho e se levantou.
— Não estava com você quando trocou a

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Alma nas raízes? ― Ele perguntou dando alguns


passos para perto.
— Estava, mas o deixei cair quando... ― Ela
deixou a voz morrer.
— Quando ele quase te matou. ― Completei
colocando as mãos nos bolsos da calça, Nike me
lançou um olhar suplicante, “chega de brigas!” era
o que estava implícito ali.
— Estamos quites então. ― Kuran ergueu
um pouco a cabeça, deixando uma parte do pescoço
à mostra, onde uma cicatriz longa desaparecia para
dentro da blusa, pude jurar que Nikella ficou verde
e tive que me segurar o braço dela para não
arrancar-lhe a cabeça, ou simplesmente dizer a ela
o quanto estava orgulhoso de suas garras afiadas,
mas isso não me deixaria satisfeito, porém antes
que eu não conseguisse segurar minha vontade de
bater em Kuran, Susano lhe deu um soco no
estômago, foi algo tão repentino que todos ficamos
espantados, em choque. Kuran cambaleou para trás
e fez um esforço para respirar, ele olhava incrédulo
para o cunhado, e parecia que Annie fazia força
para não rir.

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— O quê...
— Estava te devendo desde a vez que você a
jogou no calabouço do castelo, mas só paguei agora
pela merda que você disse. ― Kuran o fulminou
com o olhar e desapareceu numa coluna de fogo.
— Susano! ― Nike cobriu a boca com uma
das mãos. ― Achei que você fosse sempre doce...
— Ela sorriu.
— Eu me lembro de ter dito que te trataria
igual às minhas irmãs e isso inclui o modo que os
outros a tratam também! ― Ele me lançou um
olhar, uma pequena ameaça, eles eram realmente
iguais, não sabiam medir suas brigas, enfrentariam
não importa o tamanho do adversário, isso me fez
gostar um pouco mais dele.
— Apenas deixe isso passar, meu irmão está
visivelmente abalado por causa dela! ― Annie
apontou com o queixo para Nike. ― Ela foi o
primeiro amor dele e ele passou esse tempo
achando que ela tinha morrido, aí ela aparece
com... ― Ela me encarou e disfarçou o rosto
corado. ― Um malvarmo muito mais interessante
— exclamou ela apertando os braços de Nike.

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— Não estou com raiva dele, Annie. Aliviada


por ele não estar morto, por não o ter matado
naquele dia, talvez agora os pesadelos acabem... ―
Ela suspirou e olhou feio para mim, tinha uma leve
impressão de que o fato de eu não ter lhe dito que
Kuran estava vivo ainda não tinha sido
completamente perdoado.
— Vamos lá, quero pegar o livro logo e sair
daqui! Senão amanhã vou estar horrível para o
casamento! ― Nike coçou o pescoço, pois para ela,
por ser híbrida, a Árvore ainda lhe afetaria mesmo
em forma humana. Annie estava com a chave da
Árvore nas mãos, ela abriu a porta para que
entrássemos. Eles não haviam fechado a passagem
que levava ao andar debaixo da Árvore, quando
atravessamos o portal, que me deparei com a
biblioteca gigantesca, Annie olhava boquiaberta
para a quantidade absurda de livros ali dentro,
havia tantos que não podia numerar. Meus sentidos
fracos humanos me davam a terrível sensação de
impotência enquanto descíamos até o centro
daquela biblioteca, uma gaiola, era o que parecia,
milênios no corpo de malvarmo me fizeram odiar

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aquela forma, mas os olhares famintos de Nikella


para mim, o modo com que ela mordia a boca ao
me encarar me fez suportar aquela forma um pouco
mais.
Depois de descermos mais uma escada
escondida no fundo da biblioteca, mesmo no corpo
humano senti as sombras se moverem, dançarem ao
nosso redor ao entrar na pequena sala iluminada
por folhas laranja incandescentes. Havia uma
espécie de embrulho no chão, dele saíam gavinhas
de algo negro, sombrio. Segurei o braço de Nike
apertado quando ela tocou o livro, ela me deu um
olhar tranquilizador, então fez com que uma caixa
de prata aparecesse ao redor do livro, lacrando-o lá
dentro, depois cortou a palma da mão com a garra e
colocou-a sobre a tampa da caixa, marcas negras a
cobriram, palavras antigas há muito esquecidas, um
lacre de sangue. Menina esperta!
— Você não ia destruí-lo? ― Susano cruzou
os braços e franziu o cenho, Nike assentiu e
colocou a caixa sob o braço.
— Se o fogo de Kuran não o destruiu, não
creio que consiga fazer isso com Yinemí, preciso

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descobrir uma forma de fazer isso e até lá, um lacre


é a melhor opção para mantê-lo protegido. ―
Susano assentiu e tomou a caixa das mãos dela
enquanto subíamos novamente as escadas de volta
para a biblioteca principal.
— E agora? ― Annie perguntou, atirando-se
no sofá no centro da biblioteca.
— Precisamos achar um livro escrito por
Ayrana... Mas já cansei de rodar as prateleiras da
letra “A” e não encontrei nada! ― Nike parecia
frustrada, ela cruzou os braços e passou os olhos
pela sala procurando por algo que pudesse ter
deixado passar.
— Não encontraria o livro que ela escreveu
por aqui! ― falei, os três me olharam curiosos,
apenas sorri e disse: ― O nome verdadeiro de
minha mãe era Yellen. ― Nike arqueou as
sobrancelhas e revirou os olhos.
— Por que não me disse isso antes?
— Você nunca perguntou!
— Caalin, eu vou te matar! ― Ela rosnou
dando alguns passos em minha direção com as
mãos fechadas em punhos. ― Fiquei horas aqui

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procurando o livro com um nome errado e você não


pensou em me dizer isso antes?
— Desculpe. ― Aquilo não foi o suficiente
para tirar o olhar psicótico do seu rosto, mas
Susano a fez quebrar a pose ao falar:
— Temos que ir lá para cima, então! ― Ele
apontou a escada em espiral. ― Vão na frente,
quero tentar encontrar uma coisa primeiro! ― Ele
circulou o sofá colocando a caixa de prata sobre o
colo de Annie e percorrendo os ombros dela com as
pontas dos dedos, um movimento quase
imperceptível, ela sorriu e corou, então se levantou
e nos seguiu até as escadas. Vi de relance Susano
entrando no corredor com a letra “E” e
desaparecendo entre as estantes. Nike correu escada
acima e quando saiu no salão principal, ela foi
direto para as escadas que levavam à copa.
— Aonde vai? ― perguntei.
— Susano disse que lá para cima estão os
livros de autores com a inicial “T” para frente. ―
Ela parou com a mão no corrimão da escada e
soltou um suspiro cansado.
— Vou esperar ele aqui. ― disse Annie

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olhando as escadas com a mesma expressão de


preguiça estampada no rosto, fui até onde Nike
estava, decidindo se subiria ou não, então ela deu
um passo para o centro da torre e olhou para cima.
— O que pretende fazer? ― perguntei
olhando sua expressão mudar para divertida.
— Vou subir! ― Então, ela puxou a foice do
pescoço, fazendo-a ficar em seu tamanho normal e
colocou o calcanhar na curva da lâmina e bateu
suavemente com a arma no piso. Um círculo de
gelo apareceu sob nossos pés e disparou para o alto
com sons como de centenas de trovões, segurei em
seu braço com força e olhei para baixo, para a
escada em espiral se movendo ao nosso redor como
uma cobra enrolando a presa, nós paramos a poucos
metros abaixo do teto de vidro que protegia a
mansão, de frente para a janela que tivemos como
entrada mais cedo. Nike havia feito uma coluna de
gelo para nos levar para cima.
— Dá para fazer coisas boas com o poder
também! ― Ela riu.
— Você podia ter nos feito apenas flutuar até
aqui!

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— Podia, mas eu queria ter certeza de que


podia usar esse poder para algo que não fosse
terrível! ― Ela olhou para a coluna ao saltar de
cima dela para o corredor de madeira da escada. Fiz
a coluna de gelo desaparecer antes que derretesse
com o calor dali e destruísse os livros, ou tombasse
e destruísse parte da Árvore. Entramos no quarto,
Nike passou por ele sem olhar para nada, direto
para uma porta no canto direito do quarto, onde
havia uma sala grande de artes, o ateliê de Pintura
de Grisela.
— Achei que ela tivesse desistido de pintar
depois que saiu de Amantia ― falei observando as
pinturas penduradas, espalhadas pelas paredes que
eram entalhadas com pequenas folhas delicadas em
alto relevo e pintadas com tinta laranja suave e
rajadas de vermelho. Os cavaletes ainda com
pinturas inacabadas e um violino sobre uma
mesinha no canto da sala, perto de uma janela
redonda de vidro, cuja armação lembrava a
biblioteca circular sob a Árvore, com o mesmo
padrão de disposição das prateleiras.
— É um mapa da biblioteca! ― Ri ao

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perceber aquilo.
— Dá para ver o Vale Cinzento daqui. ―
Nike andou até o sofá de veludo vermelho com
detalhes em dourado sob a janela e se sentou
olhando para o vale.
— Sinto muito por não ter conseguido
completar a ACV. ― Ela me encarou surpresa e
sorriu.
— Não se preocupe com isso, eu sou muito
melhor que eles, as provas deles eram fracas para
mim! ― Convencida! ― Essa é a única sala que os
livros não estão em ordem! ― Nike andou até a
única estante de livros na sala, ela era de vitrino e
estava fechada com um lacre de sangue, assim
como a caixa do Livro das Sombras. Os livros dali
eram todos antigos, com capas trabalhadas em
couro.
— Droga! Como vamos abrir? ― Ela
perguntou analisando o vitrino trabalhado da
estante. Revirei os olhos, peguei suas mãos e as
coloquei sobre o vidro, ela me encarou confusa.
— Yinemí. ― Ela o fez, congelou o vidro
que eu quebrei chutando a proteção.

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— Era só pedir para Annie fazer isso! ― Ela


franziu o cenho.
— Eu gosto de quebrar as coisas às vezes! ―
Sorri e pisquei para ela, tirando um dos livros da
estante, era um livro muito antigo de poções,
venenos poderosos e poções de transformação.
— O conhecimento de todos os tempos, não
é? ― Nike sacudiu um pequeno livro de couro
branco, as páginas feitas com folhas grossas
amareladas, o livro que via muitas vezes minha
mãe sentada escrevendo-o.
— É esse mesmo! ― confirmei, ela sorriu e
o colocou dentro de uma pequena bolsa de tecido
que não fazia ideia de onde ela tirou.
— Acho que deveríamos levar esses livros lá
para baixo e trancá-los na sala que estava o Livro
das Sombras, Nike. ― Mostrei-lhe o conteúdo do
livro que peguei e ela assentiu.
Os movemos para dentro de caixas usando
magia e flutuamos até o salão central, onde Annie e
Susano estavam debruçados sobre um livro, lendo
avidamente e com os rostos vermelhos.
— O que estão fazendo? ― perguntou Nike

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olhando por cima do ombro deles.


— Lendo o diário de meu pai ― disse
Susano sorrindo sem graça.
— Estou preocupada com o conteúdo por
causa da cor de vocês, Annie está quase deixando
impressões em brasa na mesa! ― Annie se ajeitou
olhando se havia mesmo deixado marcas na
madeira.
— Ele era um depravado! ― Annie sacudiu a
cabeça e Susano pigarreou, fechando o diário e o
colocando sob o braço.
— É de família! ― falei, Nike me acotovelou
e revirou os olhos.

Guardamos os livros que pegamos no ateliê


de Grisela e saímos da Árvore. Annie e Susano
voaram conosco até a cidade, nos acompanharam
até a porta do hotel e insistiram para que fossemos
até o castelo com eles, mas Nike preferiu ficar por
perto de Gih.

Enquanto ela tomava banho, fiquei na cama


observando a caixa de prata que selava o poder do
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Livro das Sombras, mesmo em forma humana eu


sentia a energia que ele emanava e podia sentir,
ouvir as vozes que ela sempre escutava, então antes
que ela retornasse eu voltei a minha forma normal,
respirei aliviado com a sensação dos sentidos
retornando com força total, tudo ficou claro
novamente como se uma lâmpada tivesse sido
acesa naquele pequeno quarto, só então percebi que
o quarto tinha o cheiro de Nikella, andei até o
armário e abri, as roupas dela estavam todas ali, um
vestido cinza, o uniforme formal da ACV, era o
quarto que ela permaneceu depois de sair de sua
casa, não havia percebido mais cedo pois estava
nervoso com Nike quase morrendo envenenada
pelas folhas da Árvore do Fogo, voltei para a cama
e fiquei em silêncio, esperando-a para dormir.
Depois de um bom tempo, ela saiu do
banheiro vestida apenas com uma camisola de seda
vermelha, curta o suficiente para que parecesse
uma camiseta longa, ela fez um bico quando me viu
de volta à forma de malvarmo e não consegui evitar
um sorriso.
— Achei que fosse brincar com você em

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forma humana... ― Ela fez um biquinho e se


inclinou sobre mim, deslizando para a cama. Não
tinha como descrever o quanto era agradável sentir
seu cheiro nessa forma novamente, era como um
cumprimento para meus sentidos aguçados.
— Talvez depois, quando voltarmos para
Vegahn. ― Não deixei que ela ficasse em cima de
mim, a derrubei gentilmente para o lado, a cama era
estreita o suficiente para que ela ficasse com
metade do corpo em cima do meu.
— Você é um chato, Caalin! Não se estraga a
brincadeira dos outros assim!
— Durma Nike! Daqui a pouco vai
amanhecer e se você não se lembra, estamos aqui
escoltando Aliver, ele já deve estar doido sozinho e
derretendo naquele castelo, se não estivermos lá ao
amanhecer, ele vai entrar em pânico! ― expliquei,
ela apertou os lábios numa linha fina e me lançou
um olhar maldoso.
— Talvez eu devesse ir até lá e esfriar o
quarto dele! ― Ela brincou com gelo nas pontas
dos dedos, deixei um rosnado de irritação sair, ela
sorriu e apoiou a cabeça em meu peito. ― É tão

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fofo você com ciúmes!


— Não acharia fofo se pudesse ver o que
penso em fazer com eles quando você diz essas
coisas...
— Eles?
— Kuran... ― Susano.
— Esqueça ele, Caalin!
— Difícil, ainda mais quando entramos na
Árvore, naquele quarto...
— Esqueça, apenas esqueça! ― Ela
resmungou com os olhos pesados, ela passou os
lábios sobre meu peito e riu.
— Qual a graça?
— Dessa vez, você está frio, geladinho! ―
Ela enrolou os braços quentes em mim, apertando-
me contra seu corpo extremamente quente, se não
soubesse o motivo daquele calor, de seu fogo que
queimava constantemente, diria que ainda estava
com febre depois de quase ter sido queimada viva.
Queimada como ele ameaçou que faria!
— Se eu não ficar frio, você vai incendiar
esse lugar! ― Consegui manter minha voz calma
ao responder.
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— Engraçado, Kuran dizia que eu era uma


pedra de gelo, já você diz o contrário, acho que eu
nasci com algum defeito! ― Sua voz estava
embargada.
— Você não tem defeito, Nike, apenas ele
não sabia lidar com você como eu sei! ― Ela
abafou uma gargalhada escondendo o rosto em
mim e ajustando seu corpo, refrescando-se em
mim, logo estava dormindo profundamente.

Não haviam se passado nem quatro horas


quando me obriguei a acordar, Nike ainda estava
enroscada em mim, o quarto estava frio o suficiente
para que eu não quisesse enfrentar o mundo ardente
lá fora, mas sabia que uma hora ou outra teria que
levantar.
— Nike, acorde! Já são quase seis horas! ―
falei traçando uma linha de beijos em seu ombro,
ela soltou um rosnado medonho quando puxou um
lençol para cima e se enroscou ainda mais. Sabia
que seu sono era quase sagrado, mas não estávamos
ali a passeio. Levantei da cama e me vesti, estava
prestes a ir até o restaurante do hotel para buscar

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café para ela, talvez comida comprasse seu bom


humor, quando ela acordasse cuspindo raios.
Antes que alcançasse a porta, batidas
ritmadas e altas fizeram a porta balançar.
— Nike, Nike, Nike, Nike! ― Alguém
gritava do lado de fora esmurrando a porta. ―
Nikella! É bom que não esteja fazendo coisas
pervertidas porque estou entrando! ― Oriel! Ela
havia nos encontrado ali, estava pronto para jogá-la
para fora do hotel quando sua cabeça despontou na
porta.
— Caalin, Nike! Venham, vamos tomar café!
— Oriel saiu entrando no quarto e pulou em cima
da cama, mesmo com os rosnados assustadores de
Nike para ela, ela não saiu.
Depois de alguns minutos de tentativas de
fazer Nike sair da cama, Oriel ameaçou deixar Nike
sem comer até o casamento, só então, com uma
cara assustadora, Nike saiu da cama.
— Vou me arrumar e já desço! ― Nike
passou a mão pelo emaranhado de cabelos e Oriel
saiu saltitando, bati a porta quando ela saiu, mas
pude escutar sua voz no final do corredor: “Não

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volte a dormir! ”
— Desculpe, ia pegar café para você quando
ela apareceu.
— Mhmmm. ― Nike estava sentada na
beirada da cama, sacudindo as pernas e olhando
para o nada.
— Aconteceu alguma coisa? ― perguntei me
aproximando e tocando sua testa com as costas da
mão.
— Não... estou apenas esperando tudo em
mim começar a funcionar direito.
— Isso não acontece em Vegahn. ―
Observei.
— Claro que não, lá é sempre fresco e
agradável, aqui é um inferno dessa porta para fora!
Ciartes é uma merda! ― Ela resmungou e levantou,
colocando o vestido azul claro do uniforme e as
botas brancas e curtas, enrolou o cabelo num coque
e foi até o banheiro lavar o rosto.
— Vamos! ― Ela embainhou a espada e saiu
do quarto.
No restaurante do hotel, Annie, Oriel e
Susano nos esperavam sentados em uma mesa
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próxima à porta.
— Bom dia! ― disseram quando nos
aproximamos, Nike murmurou algo e sentou,
puxando uma caneca de café para ela.
— Alguém não dormiu bem! ― Annie tinha
um sorriso maldoso no rosto ao observar Nike, que
respondeu mostrando-lhe a língua.
— Ela tentou me agarrar à força ontem, mas
eu a coloquei para dormir, por isso o mau humor!
— Oriel engasgou com o chá e quase teve um
ataque de tosse ao ouvir aquilo e Annie quase
incendiou o prédio, ficando com a pele ainda mais
vermelha, Nikella estava com o rosto vermelho e
me deu uma cotovelada.
— E Aliver? ― Nike perguntou, tentando
mudar para algum assunto seguro.
— Quase morreu essa noite! Achei que ele
fosse derreter!
— E você, não se sentiu mal com o calor? ―
Perguntei, Oriel riu sem graça.
— Dormi dentro da banheira com água fria.
A cama parecia uma frigideira! ― Ela bufou
cutucando o bolo com o garfo.
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— Parece que você acabou se acostumando


com o calor, não foi Susano? ― Nike perguntou a
ele, Susano sorriu discretamente e assentiu. Annie
parecia se derreter perto dele, era realmente um
casal muito bonito.
Terminamos de tomar café e partimos para o
castelo. Era estranho demais, acordar de manhã e
não ver o sol nascer cedo, no céu junto com a lua
estava Saldazaris, era uma bela visão, o mundo dos
Silfos ocupava uma grande parte do céu e seus
anéis brancos brilhavam, Nike acompanhou meu
olhar e sorriu:
— Era uma das coisas que me animava em
acordar no escuro, ver esse mundo brilhar... A
rainha Sylvia deve se sentir muito orgulhosa, ainda
mais se vir seu mundo daqui! ― Ela apertou um
pouco mais minha mão.
Atravessamos a praça escura e silenciosa,
parecia que todos os habitantes da cidade ainda
dormiam, os Salamandras deviam despertar junto
com o sol.
Acima dos muros, o brilho da Árvore do
Fogo agora parecia um sol prestes a nascer, as

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folhas dançavam com o vento. Mesmo muito longe,


podia sentir o cheiro do pó das folhas, o veneno que
nos enfraquecia espalhando-se no ar.
Assim como Oriel havia dito, o castelo
estava um forno, o ar abafado era quase impossível
de se respirar. Atravessamos o salão vermelho em
direção à sala do trono, onde os soberanos
deveriam estar tomando café, mas ele estava vazio,
a não ser por uma jovem élfica que vinha em nossa
direção em passos largos. Ela estava com os
cabelos escuros presos em um coque e usava um
vestido verde claro na altura dos joelhos, foi direto
em Susano e passou o braço em volta dele.
— Estão todos no jardim tomando café! ―
disse ela para nós, sem nem ao menos nos
cumprimentar.
— E quem seria você? ― Oriel já estava com
sua postura de ataque, não físico, mas se
preparando para um duelo de grosserias, Nike
revirou os olhos e antes que Susano as
apresentasse, ela disse:
— Oriel, princesa de Vegahn, conheça Asahi,
princesa de Amantia, irmã de Susano ― apresentou

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ela com a voz mais ríspida que o normal, Asahi


estava de frente para nós agarrada a Susano, ela
passou os olhos azuis por Nikella, por seu uniforme
e a postura informal, e finalmente em nossas mãos
dadas.
— É um prazer, princesa! ― O sorriso de
Oriel parecia querer dizer outra coisa, mas algo no
olhar raivoso de Nike para ela a fez se comportar e
aquilo me deixou no mínimo espantado. “Elas
abaixaram a cabeça e me reconheceram como o
lobo alfa!” Foi o que Nike disse em Vegahn sobre
Zion e Oriel. Agora entendia o que realmente havia
acontecido entre elas, Nike as domou como
bichinhos, as adestrou para que elas se
comportassem! Teria rido se não corresse o risco de
Nike querer colocar uma coleira em mim também,
embora soubesse que eu havia feito o mesmo com
ela, mas de forma mais sutil e ela nem havia
notado. Asahi havia feito um breve aceno para
Oriel e voltou a encarar Nike.
— Outro mundo te fez bem. ― Aquilo talvez
fosse o mais educado que Asahi conseguiria dizer a
Nike.

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— Não diria outro mundo, diria outro


homem. ― Annie deu uma piscadinha em minha
direção e Nike bufou com o rosto corado.
— Vamos, Aliver deve estar entrando em
pânico sozinho lá! ― falei por fim.
— Espere! Preciso falar com ela. ― Asahi
pegou o braço de Nike e arrastou na direção oposta,
ela ergueu as sobrancelhas para mim e acenou para
que fossemos na frente. Andei com eles a
contragosto até o jardim no centro do castelo, onde
pequenas folhas de luz pulsavam e dançavam em
volta de nós, já que os sóis ainda não haviam
nascido.
Cactos floridos dividiam espaço com os
plátanos de folhas vermelhas e douradas, um jardim
modificado magicamente para manter plantas de
vários climas vivos no mesmo ambiente. Aquele
pequeno pedaço de deserto alterado no centro do
castelo mostrava muito sobre os soberanos daquele
lugar, eles mantinham a diversidade como algo a
ser cultivado e não destruído. Do lado de fora
corria uma brisa agradável, me fazendo odiar
menos aquele lugar.

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Aliver parecia ligeiramente mais pálido que o


normal e encarava o prato com seu café com uma
expressão de profunda tristeza, a mesma expressão
perdida que Nike tinha ao acordar, percebi que ela
não estava mentindo quando disse que Ciartes era
uma merda.
— Bom dia! ― dissemos ao nos
aproximarmos, o Rei Ewren estava ao lado de sua
esposa, ela estava distraída apertando as mãos do
rei, tentando acalmá-lo, parecia que ele não estava
muito contente com a festa de mais tarde. Sylvia
continuava falante, contando sobre várias coisas do
Castelo dos Ventos, que eu fazia questão de não
escutar, ignorei também os olhares maliciosos dela
para Aliver, que parecia senti-los também e se
encolhia. Sentei ao lado de Aliver, a jovem ao lado
de Ewren e Leona, a gêmea idêntica de Asahi,
Nyumun, ela usava um vestido cinza escuro largo
demais e seu rosto estava levemente pálido, ela
terminou seu café e sem cumprimentar nenhum de
nós, saiu pelo caminho que havíamos vindo.
— E a noiva? ― perguntou Oriel sentando-se
à mesa e servindo-se daquelas comidas terríveis.

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— Está junto com minha mãe, elas disseram


que não dá sorte que eu a veja hoje até a hora da
cerimônia. ― disse Ericko dando uma rápida
olhada para o rei de Amantia, ele tinha adquirido
um tom avermelhado e Leona estava encolhida ao
seu lado, olhando-o nervosa.
— Vou me juntar a elas! ― exclamou Annie
que mal havia se sentado, ela deu um beijo na mão
de Susano ao sair, seguida por Leona que a olhava
como se fosse devorá-la. Talvez o mesmo ciúme do
rei com suas filhas, ela tivesse com Susano. Sylvia
acabou deixando a mesa também, seguindo as duas,
olhei para Oriel que estava nervosa, tendo ficado
apenas ela de mulher à mesa.
— Vá com elas! ― sussurrou Aliver para ela,
Oriel suspirou agradecida e saiu quase saltitando.
Yeferis não estava em lugar algum, na certa havia
voltado para Vegahn na madrugada, ela odiava o
calor.
— Bom, agora que estamos a sós, podemos
conversar sobre um possível ataque a Ciartes. ―
falei fazendo Ericko largar o garfo no prato e me
encarar, Ewren cruzou os braços e me encarou

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também.
— Sabemos sobre Higarath e sobre suas
sombras! ― Ericko começou, mas o interrompi.
— Não é sobre esse ataque, Higarath não
deve atacar agora, não enquanto não conseguir pelo
menos duas das Almas Elementais. Estou falando
sobre o ataque que vem de Vegahn, os governantes
de Paliath e Fernic pretendem tomar Ciartes em
breve! ― expliquei calmamente, Susano olhou para
seu pai e para o rei de Ciartes e se retirou
rapidamente da sala. Aliver endureceu ao meu lado,
mas não se encolheu como achei que faria, apenas
tomou a palavra, vendo o olhar de desconfiança de
Ericko.
— Hobner e Ausiet estão contra mim, pois
me acham indigno do trono de Vegahn pela
minha... linhagem impura. ― Ele começou e olhou
para mim como se pedisse confirmação de que
estava fazendo a coisa certa, esquecia que ele era
apenas um menino.
— E como vou saber que vocês não estão
aliados a eles e estão aqui como espiões? Pelo que
soube, seu pai bancava as minas de vitrino e a

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captura de escravos também! ― Ericko segurava a


faca de forma ameaçadora e Ewren dava sinais de
que o apoiaria, caso resolvesse acabar conosco ali
mesmo, a raiva dirigida a mim era talvez por ter
insinuado sobre a noite com sua noiva na noite
anterior, embora fosse adorar vê-los tentar me
atacar, havia coisas mais importantes em jogo.
— Viemos aqui não só pelo casamento, mas
por uma aliança com Ciartes e Amantia ―
expliquei calmamente ignorando as posturas
ofensivas dos dois.
— Por meio de um casamento seria
impossível, minha irmã já é casada com o príncipe
Susano. ― Ericko olhou de Relance para Ewren,
que empalideceu, ele sabia exatamente onde
queríamos chegar, mas antes que soltasse a torrente
de palavrões que pude ler em seus olhos, ele
desviou o olhar para trás de mim e sua expressão
suavizou.
― Não precisa ser assim. — Susano
apareceu com Nike no jardim, ele passou seus
olhos por nós até parar em mim, pelo sorriso em
seu rosto, soube exatamente o que ele tinha em

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mente e meu estômago afundou.


“Não fale! ” pedi a Susano num sussurro,
mas ele apenas sorriu e apontou em direção a Nike
com o queixo.
“Ela decide! ” foi sua resposta.

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Capítulo 14

Nikella:

Depois de conversar com Asahi, de deixá-la


chorar e desabafar sobre Kuran, na verdade, sabia
que de nada adiantaria tentar uma aliança entre
Vegahn e Amantia através do casamento de Aliver
e ela, Asahi amava Kuran mais que qualquer um e
não desistiria dele.
Embora não quisesse conflitos com Melanie,
ela se recusava a deixá-lo, tinha certeza de que era
pelo laço de guardião que os unia, talvez oferecesse
a ela ajuda para quebrar o laço, quem sabe mais
para frente ela mudaria de opinião.
— Acho que a ideia de Aliver em ter uma
aliança com seu pai foi por água abaixo ― falei
para Susano, que estava recostado no arco de
pedras vermelhas na entrada da sala do trono,
ficamos observando em silêncio Asahi subir as
escadas em espiral, na certa, indo encontrar com
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Karin e as outras.
— Tenho um plano muito melhor que esse,
que poderia acabar com os planos de Hobner e
Ausiet e iria fazê-los tremer e se ajoelhar diante do
rei ― disse ele encarando-me sério.
— E qual seria esse plano? ― perguntei
olhando desconfiada para o sorriso assustador que
apareceu no rosto de Susano.
— Basta colocarmos o verdadeiro rei de
Vegahn de volta no trono. Assim, todos os conflitos
naquele mundo acabariam também. ― Eu franzi o
cenho para aquelas palavras.
— Onde quer chegar, Susano? ― Ele apenas
sorriu e me deu a mão.
— Confia em mim? ― perguntou ainda
sorrindo daquela forma que me fazia querer abraçá-
lo.
— Confio! ― respondi sabendo que ele
nunca faria algo que nos colocaria em risco.
— Então, vamos! ― Ele me puxou em
direção ao jardim. Passamos andando rapidamente
pelos corredores abertos, o jardim de plátanos de
Sheriah estava florescendo, ela os mantinha vivos
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mesmo naquele calor constante. Susano apontou


para o centro com o queixo, onde Caalin, Aliver,
Ericko e meu avô, o Rei de Amantia, estavam em
posições ameaçadoras e se olhavam como cães
prontos para a briga.
— Aparentemente, meu pai não gostou muito
da ideia de Aliver e Asahi também! ― disse ele
entrando depressa no jardim e parando a alguns
centímetros da mesa. Ericko e Ewren olharam para
nós em silêncio.
— Não precisa ser assim! ― Foi o que
Susano disse a eles, mas estava olhando
diretamente para Caalin, que implorava por algo
silenciosamente. Susano fez um leve movimento
com a cabeça em minha direção.
— O que quer dizer? ― perguntou Ericko
corrigindo a postura na cadeira, parecendo aliviado
com nossa chegada. Ewren parecia tenso, ele
olhava para mim e para Susano, como se estivesse
nos comparando, e pelo olhar nervoso dele, era
exatamente o que estava fazendo.
— Quero dizer, que se o verdadeiro Rei de
Vegahn assumir o trono, os conflitos em Vegahn

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acabarão e teremos automaticamente uma aliança


com Vegahn ― disse Susano puxando uma cadeira
para que eu me sentasse ao lado de Caalin e Aliver,
ele andou até seu pai e sentou-se ao seu lado.
Aliver estava pálido e encarava Susano, ele sacudia
a cabeça para os lados e parecia em choque.
— O que quer dizer, com verdadeiro rei? ―
perguntou. Vi de soslaio Caalin trincar o maxilar o
fechar os olhos, suas mãos se fecharam em punhos
e ele as escondeu embaixo da mesa.
— O verdadeiro rei, que se casou com
Frayena nos últimos dias da rainha e assumiu o
trono ao lado dela. Depois da morte de Frayena, ele
formou uma aliança com as fadas de Treezer,
casando-se com a princesa Merry, depois que
Treezer foi destruído o rei desapareceu, porém não
foi dado como morto, como os filhos dele
morreram com Treezer, quem assumiu o trono de
Vegahn foram os descendentes de Fryn, a primeira
Malvarmo, mas eles assumiram sem a bênção dos
Anciãos e isso já os deixava em desvantagem
perante o julgamento do povo. O antigo rei
Cahadris se casou com uma humana e isso deixou o

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povo de Vegahn descontente, ainda mais quando o


rei morreu e quem assumiu foi um híbrido, sem
ofensa! ― disse Susano a Aliver, que assentiu
ainda o encarando, esperando-o concluir aquela
história que estava fazendo meu estômago revirar,
não conseguia olhar para Caalin.
— Continue ― foi Ericko que pediu, pois
todos nós estávamos meio que em choque.
— O Rei que foi casado com Frayena e
Merry ainda está vivo, e todos em Vegahn o
respeitavam por ser um Arbarus, filho da própria
criadora e também por ter sido um guerreiro
poderoso e ter lutado por Vegahn sempre. ―
Susano deu um breve sorriso para Caalin, Aliver
agora o encarava boquiaberto.
— Caalin... Não tem o nome parecido com o
do filho da criadora, você é o próprio Caalin
Arbarus! ― Aliver parecia estar prestes a ter um
ataque.
— Então, Caalin continua sendo o verdadeiro
Rei de Vegahn? ― perguntei, Susano assentiu.
— Pelas leis de Vegahn, o poder ainda está
nas mãos de Caalin, pois ele não passou o trono

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para ninguém antes de desaparecer, e não foi


declarado morto pelos Anciãos, para que fosse
legalizada a coroação dos reis que vieram depois.
— explicou Susano, Aliver olhava para as mãos
como se tentasse acreditar no que estava ouvindo e
Caalin encarava Susano irritado.
— Como sabe de tudo isso? ― Aliver
perguntou com a voz baixa demais. Susano sorriu
novamente, como um predador encarando a presa.
— Eu sou o melhor aluno da ACV, estudo
muito! ― disse piscando para mim, nós éramos os
dois melhores, com as mais altas pontuações.
— E quanto a parte de “teremos
automaticamente uma aliança com Vegahn”? ―
perguntou Ericko, por dentro parecia que meu
corpo havia se dissolvido e o que restara estava
rolando procurando uma saída, meu corpo inteiro
ficou dormente quando Susano olhou para mim e
deu outro sorriso travesso.
“Não se atreva! ” disse silenciosamente, no
escândalo de um olhar, ele piscou para mim.
“Eu disse para confiar em mim! ”
— Nikella é herdeira do rei de Amantia, ela é

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neta dele, minha sobrinha ― concluiu Susano com


um sorriso triunfal. Todos olhavam para mim, mas
apenas Aliver e Ericko pareciam surpresos. Susano
devia ter contado para seu pai na noite passada e
isso me fez ficar ainda mais nervosa.
— E por que isso faria com que tivéssemos
uma aliança automática com Vegahn? ― Ewren
estreitou os olhos e encarou Caalin, ele estava
quase bufando, querendo avançar sobre ele, talvez
porque eu era sua neta e quase uma criança aos
seus olhos, e provavelmente sua proteção também
se estenderia a mim agora.
— Porque eles compartilham a alma, assim
como você e mamãe, assim como Annie e eu.
Podem destruir os mundos se quiserem, mas não
conseguiriam separar uma alma depois de unida
novamente! ― Ele deu um sorriso vitorioso e
cruzou os braços sobre o peito, sorrindo para mim.
Não sabia se era certo querer matá-lo e abraçá-lo ao
mesmo tempo, então permaneci sentada, esperando
que alguém reagisse às palavras de Susano.
Vovô se levantou e parou ao meu lado, ele
estendeu a mão para mim, não sabia se deveria ir

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ou ficar ali, já que Caalin parecia ter vontade de


cortar as mãos que estavam estendidas para mim.
— Vamos ― chamou vovô encarando-me.
Olhei para Susano, ele assentiu para que eu fosse
com ele. Respirei fundo e me levantei, deixamos o
jardim para trás em passos rápidos, Ewren me
levou até o grande salão do castelo, mas ali haviam
muitos criados, eles estavam cuidando dos
preparativos do casamento, ele olhou aquilo e
torceu o bico, então me deu a mão novamente.
Quando a peguei, uma luz dourada nos cobriu e
aquele puxão me fez agradecer por não ter comido
nada no café da manhã, apenas a xícara de café.

Não fazia a mínima ideia de onde estávamos,


mas o sol banhava todo o lugar, entrando pelas
janelas altas e simples de madeira com detalhes em
metal, as paredes eram revestidas por lajotas de
pedras claras e novas, mostrando que aquele lugar
havia sido construído há pouco tempo. Não era um
cômodo muito grande, devia ser um escritório, pois
havia uma mesa de madeira e pedra no centro da
sala, coberta por mapas e livros. Vovô deu alguns

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passos para longe de mim, abrindo uma das janelas


que ficava de frente para uma montanha e suspirou:
— Quando a passagem do tempo era
diferente nos mundos, era terrível abrir um portal
de um mundo para outro, às vezes demorava horas!
— Ele deu um breve sorriso.
— Nunca tentei teleportar antes da passagem
do tempo se igualar, não sabia que tinha poderes.
— respondi voltando à minha “normalidade
grosseira”.
— É muito bom acordar cedo e ver o sol, as
manhãs de Ciartes são um pouco perturbadoras por
causa da ausência do sol até mais tarde, não
conseguiria me habituar com aquilo! ― Ele estava
tentando começar uma conversa por um assunto
que me fosse familiar, ri por dentro e me
aproximei, observando o sol nascer por trás da
montanha, banhando aquele lugar com uma luz
azul brilhante.
— Sempre odiei viver em Ciartes, não
gostava do calor, não gostava das poucas horas de
sono e morria de medo de morrer toda vez que saía
de casa para treinar ― confessei. Ele desviou os

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olhos da paisagem para mim, um olho azul, outro


prateado, os olhos de uma fera domada. ― Eu
achava que minha mãe me odiava a ponto de ter me
deixado lá com meu pai e ido para um lugar
melhor. Quando conheci Susano na ACV, pouco
depois falei para ele que quando completasse o
treinamento, quando fosse uma caçadora de
verdade, viria para Amantia servir a família real,
minha família, não quis dizer a ele o real motivo,
mas era porque assim eu estaria mais perto da
minha família de verdade, a única que me restou!
— falei sentindo as lágrimas escorrendo por meu
rosto.
— E deu tudo tão errado para você... ― Ele
me puxou para seus braços com delicadeza e me
abraçou forte, um abraço quente, tranquilizador,
parecia que cada pedaço quebrado dentro de mim
estava sendo colado por aquele aperto. ― Eu sinto
muito! Se eu soubesse antes, teria mandado que a
trouxessem para cá! ― disse beijando o topo de
minha cabeça.
— Está tudo bem!
— Não, não está! Tudo que você passou...

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tudo que Annie nos contou sobre você desde


quando vinha a Amantia as primeiras vezes...
quando nós não sabíamos quem você era...
— Todas as situações ruins são necessárias
para moldar o caráter, assim como diversas
temperaturas para moldar uma arma! ― falei.
— Você não é uma arma, Nikella.
— Mas eu quero ser, até nos livrar de
Higarath é isso que eu vou ser!
Ele me afastou um pouco para poder me
encarar e limpou as lágrimas que escorriam por
meu rosto.
— É isso que você quer? Vai se tornar rainha
de Vegahn se aceitar ser minha herdeira, eles irão
querer que você seja uma ponte entre Amantia e
Vegahn...
— Eu não quero nada disso, nunca quis!
Queria apenas viver em paz, em segurança e
tranquila, construir uma família, mas é muito
egoísta querer voltar para o Vale do Sol com Caalin
e deixar Aliver se virar com Ausiet e Hobner,
deixar que eles arrumem outra maneira para evitar
os conflitos e essa guerra, se Caalin é o rei de

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Vegahn, e isso corrige as coisas, então é o que deve


ser feito! E se ele nunca me disse nada é porque
imaginava que eu pudesse me afastar. ― Ele
franziu o cenho, mas assentiu.
— Você é igualzinha a ele, Susano, além da
aparência vocês têm o mesmo senso de justiça e a
mesma força interior! ― disse sorrindo para mim.
Acabei chorando um pouco mais, vovô me abraçou
novamente e afagou minhas costas.
— Leona... ela sabe? ― Ele assentiu.
— Ela descobriu quando viu você e Susano
no castelo quando estavam matando aula, então ela
foi atrás de Mariah, que era muito amiga de sua avó
Belve e a fez contar tudo... ― Ele fez uma careta e
sacudiu a cabeça. ― Tinha esquecido o quanto ela
podia ser assustadora!
— No final, somos todos iguais então! ―
falei girando o pingente de Siferath entre os dedos,
ele deu uma gargalhada e afagou minha cabeça,
então segurou minhas mãos juntas, formando uma
concha com suas mãos em volta delas.
— Nikella Arbarus Ascardian, eu reconheço
você como minha herdeira, como um membro da

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família real de Amantia, como uma das raízes que


guiam e protegem os Doze Mundos. Que sua luz
seja a luz que guia não apenas você, mas todos
aqueles que a aceitarem e a seguirem! ― dizendo
isso ele beijou as costas de minhas mãos, por um
instante, minhas marcas negras foram substituídas
por raios dourados, assim como as marcas de
Susano, quase chorei novamente ao ver aquelas
marcas, mas elas foram engolidas novamente por
aquela luz negra e se apagaram.
— Obrigada ― agradeci lhe abraçando
novamente.
— Sempre que quiser, tem um lugar especial
para você aqui em Amantia ― disse.
— Onde estamos? ― perguntei olhando a
montanha que brilhava azulada em nossa frente.
— Em Vintro, aquela é a montanha Azul, é
um vulcão na verdade, ele expele uma lava azul
que se transforma em cristais de purificação, iguais
aqueles que você coloca em algumas armas!
–Então aqueles cristais vêm daqui? ―
perguntei surpresa, ele assentiu.
Podia ficar por horas observando aquele

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mundo banhado em azul e dourado, mas sabia que


tinha coisas a fazer em Ciartes.
— Melhor voltarmos! ― disse ele segurando
meu braço para que pudéssemos teleportar.
— Vamos. ― Apertei seu braço e fechei os
olhos o mais forte que pude. Mal senti o puxão
quando fomos levados de volta a Ciartes, o calor
sufocante foi a certeza de que estávamos de volta.
Mas para minha surpresa, não fomos levados para o
castelo, e sim para algum lugar alto, tão alto que
estávamos entre as nuvens.
Bati as mãos com força fazendo aquelas
nuvens se dissiparem com uma onda de choque.
Estávamos em uma cidade flutuante cheia de
prédios altos de vidro e metal, eles pareciam ser
espirais gigantes e quando o vento batia nos
prédios, uma canção assustadora parecia ser tocada
neles.
— Onde estamos? ― perguntou vovô dando
um passo para trás, notando que a cidade estava
completamente vazia, faltava pouco para o sol
nascer, percebi pelo horizonte avermelhado.
— Vila Nakhlans... ― falei baixo sentindo o

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sangue sumir de meu rosto, peguei Siferath do


pescoço e a girei nos dedos, dando-lhe sua forma
original.
— Nike, o que houve? ― Vovô perguntou
pondo a mão sobre o punho da espada.
— Essa é a vila dos magos metamorfos,
assassinos... ― sussurrei tão baixo que só tive
certeza que ele me ouviu, pois sua aparência
mudou, os olhos e cabelos dourados se acenderam
assim como as marcas de mago. Pela primeira vez
agradeci por ter os poderes de maga negra, alterei
minha aparência também, ficando com as marcas
negras à mostra, sentia as sombras dançando
inquietas ao meu redor, como se tentassem se
afastar de mim.
— Vovô, temos que sair daqui! ― falei
virando para ele, mas ao olhar em sua direção meu
sangue congelou. ― CUIDADO! ― gritei saltando
rapidamente e girando Siferath, ele percebeu o que
estava acontecendo e se esquivou em velocidade
assombrosa, quando Siferath passou por cima de
seu ombro e se chocou contra a lança do metamorfo
que ia atacá-lo pelas costas.

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— Ora, ora, ora... ― disse uma voz


estranhamente familiar que fez meu estômago
revirar e meus joelhos tremerem. ― Quem voltou
para me ver!
— Merian! ― Minha voz saiu engasgada, ele
segurava uma lança com uma destreza fora do
comum, ele nunca soube manusear armas, vovô deu
um passo para meu lado e girou a espada em
punho.
— O que está havendo aqui? ― perguntou
ele erguendo o queixo, passando os olhos
rapidamente pela cidade, que dessa vez não estava
mais vazia, vários magos se aproximavam de nós,
vindos de todos os lados, envoltos em mantos
negros e com armas perigosas nas mãos, mas nada
neles me assustava, apenas Merian, diante de nós.
— Eu matei você! ― falei segurando
Siferath ainda mais forte, sentindo meus dedos
doerem.
— Não é seu irmão ― disse Vovô fazendo
um pulso de energia revelar a verdadeira forma do
metamorfo. Ela me encarou com os olhos amarelos
e os cabelos louro pálido caíram sobre os ombros

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largos.
— Brieli! ― grunhi mostrando os dentes
para ela, ela deu um sorriso ameaçador e um passo
em minha direção, ao lado dela Kilua apareceu
girando duas adagas nas mãos.
— Não queremos problemas com o rei de
Amantia, saia daqui e deixe que acertemos as
contas com ela! ― disse Brieli para vovô, ele
arqueou as sobrancelhas e apoiou a espada no chão.
— Não querem problemas? Acabaram de me
atacar pelas costas! Já arrumaram um problema
comigo por isso! ― Ele rosnou.
— Só queremos a essa nojenta de língua de
trapos! ― Brieli apontou a arma para mim.
— Acho que não! ― disse vovô preparando-
se para atacar, mas antes que nos movêssemos,
duas gaiolas de prata apareceram ao nosso redor,
prendendo-nos ali, revirei os olhos mentalmente, os
magos ao redor deles tinham os cetros e cajados
apontados para nós.
— Garginus era meu pai! ― gritou Brieli
girando a lança na mão e dando mais alguns passos
em minha direção. ― Por sua culpa ele foi

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queimado na fogueira na praça da Cidade do Sol, e


eu tive que assistir! ― berrou ela apontando a lança
para mim.
— Se ele não tivesse matado o rei, ainda
estaria aqui com você, e não teria virado
churrasquinho! ― retruquei dando-lhe um sorriso
zombeteiro. Ela xingou e partiu para cima de mim,
mas foi impedida por Kilua.
— Ela vai ter o que merece em breve! ― Ele
a segurava e me encarava com um ar de deboche,
em seguida deu um aceno para os magos que
começaram a murmurar palavras antigas e de suas
armas luzes vermelhas começaram a brilhar e subir
em espiral para o céu.
— Estão conjurando um lacre! ― disse Vovô
olhando-me assustado, ele havia perdido os poderes
com a prata, mas o vitrino em meus braços
mantinha meus poderes correndo livremente por
mim.
— Eu não consegui te matar aquela vez, mas
agora, vou tomar seus poderes para mim, depois eu
acabo com você! ― Kilua se aproximou da gaiola e
riu. “Tomar meus poderes, era quase o mesmo que

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me usar, quase o mesmo que Fairin queria de


mim.”
— Kilua, você não passa de um fraco! ―
sussurrei para ele, estava prestes a partir aquela
gaiola quando uma queimação surgiu em meu peito
e o ar foi tirado de meus pulmões.
— Deixe ela em paz! ― gritou vovô
tentando sair da gaiola, mas alguns magos
mantinham uma barreira em volta da gaiola que ele
estava preso, mantendo seus poderes adormecidos,
e por mais forte que fosse, aqueles magos eram
letais e eles iriam nos matar e tomar nossos
poderes.
— Eu sei o que você é, Nikella, eu estava
junto quando ele te transformou, lembra? Eu sei o
que te para! ― disse Kilua mostrando uma folha da
Árvore do Fogo para mim. Meus sentidos
começaram a ficar lentos e meu corpo estava
dormente. Então, eu as senti, ouvi seus sussurros, e
pela primeira vez permiti que inundassem minha
mente, meu corpo e alma, fechei os olhos e as
recebi, aceitando-as. Então as espalhei! Tudo foi
coberto por sombras, sombras negras, densas e

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vivas!
O poder tomou conta de mim e pela primeira
vez senti que ele fluía sem nenhum impedimento,
era como o sangue correndo em minhas veias,
como o ar em minhas vias aéreas. Algo vivo,
pulsante e que destruiria o mundo se eu não o
controlasse.
A gaiola de prata havia desmanchado ao meu
redor, nada me impedia, nada podia me conter. Eu
os sentia, ouvia os magos tentando respirar,
tentando gritar, podia sentir a essência de cada um
deles enquanto caminhava através das sombras, que
eram tão densas que podia tocá-las, senti-las
roçando minha pele. Segui a essência de Kilua, ele
seria o primeiro, porém, uma voz chamou minha
atenção:
— Oi, Nikella. ― Aquela voz fez com que
eu parasse de andar.
— Quem é você? ― Não podia ver nada
dentro da escuridão, mas aquela voz fez as sombras
se agitarem e pulsarem ao meu redor.
— O senhor das Sombras, Érebo. ― Ele
apareceu diante de mim, mas não senti medo do ser

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que estava em minha frente, era quase como um


velho amigo.
— Você que estava em meus sonhos, não
era? ― perguntei dando um passo na direção da
figura encapuzada em minha frente.
— De fato.
— Por quê? ― perguntei baixinho.
— Porque eu quero que alguém devolva meu
poder, então resolvi te testar, testar o quão honesta
seria consigo mesma se descobrisse a verdade sobre
seu pai, sobre a morte deles. ― Ele estava em
minha frente, segurando uma foice negra que
pingava algo escuro, como a própria essência das
sombras. Podia vê-lo perfeitamente, e me ver
também, como se apenas nós estivéssemos naquele
mundo de escuridão.
— Não estou entendendo!
— Você está disposta a destruir meu livro
para que ninguém mais use meu poder! ― disse ele
movendo a foice, as sombras dançaram ao redor
dela, reconhecendo seu mestre.
— Oras! Não estou fazendo isso por você! ―
retruquei colocando a mão sobre o quadril e
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jogando Siferath sobre os ombros. Ele soltou uma


gargalhada grave que arrepiou os cabelos em minha
nuca.
— Eu sei, porém aquele livro contém o
segredo para dominar as sombras, e, como eu, você
não quer que os mundos sejam dominados por
magos negros. Nossos motivos são diferentes,
claro! Cada vez que um mago negro é criado, uma
pequena parte de meu poder é transferida para ele,
num acordo que eu fiz com o primeiro mago negro,
Higarath.
— Ele fez um acordo com você? ― Érebo
assentiu.
— Emprestei meu poder para ele, para que
pudesse corromper os poderes que recebeu da maga
Yellen. Porém, ele me enganou e roubou meu livro,
passando o conhecimento sobre como criar outros
como ele adiante. Se você destruir o livro, minha
escuridão ficará contida apenas àqueles que já a
possuem, até a hora de sua morte, quando as
tomarei de volta ― explicou ele calmamente
brincando com a foice.
— Então, serei uma maga negra até morrer?

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— Minha voz não passou de um sussurro.


— Ou até que seja purificada!
— Não posso simplesmente te devolver esse
poder? ― perguntei olhando as marcas em meus
braços.
— Não, não pode. Acredito que o faria agora
mesmo se pudesse, não é?
— Sim, faria.
— Por que acha que nunca foi controlada
pelas sombras? ― perguntou ele sorrindo,
mostrando dentes longos e pontiagudos por baixo
do capuz.
— Pela força que estou fazendo em mantê-
las sob controle? ― Ele gargalhou novamente, me
deixando irritada. ― Ora! Vamos, não seja um
idiota! Apenas fale logo o que quer! ― O sorriso
havia desaparecido.
— Quero que destrua o livro, destrua
Higarath para que meus poderes voltem.
— O que vai fazer depois que seus poderes
voltarem?
— Continuo lacrado, não posso soltar meus
poderes pelos mundos! O lacre que me mantém
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apenas na escuridão não pode ser quebrado por


nada desse mundo.
— Se está lacrado, como está aqui? ― Ele
riu novamente da minha pergunta.
— Não estou aqui, isso é apenas minha
sombra, um fiapo da minha existência, o poder que
vocês têm não passa de um sopro perto do meu real
poder, porém o quero de volta! Afinal, o que é meu,
é meu!
— Entendo.
— Faça o que tem que fazer, sei que vai agir
de forma correta, pois pretende devolver as Almas
Elementais de volta à sua dona, então vai fazer o
mesmo por mim. ― Ele apontou a foice para mim.
— Você não dá a mínima para o que
acontece com os mundos, não é? ― perguntei, ele
deu de ombros.
— Destruam-se à vontade! Isso é apenas um
passatempo para mim. Vê-los se destruir é a única
diversão que tenho! Por isso dei meu poder àquele
idiota, mas já perdeu a graça, quero uma nova
diversão! ― Ele soltou uma gargalhada medonha e
desapareceu, misturando-se com as sombras que eu

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ainda mantinha ali.


Senti Kilua a poucos passos de mim na
escuridão, podia ouvir sua voz engasgada enquanto
ele tentava gritar por ajuda. Ao perceber que Érebo
havia desaparecido, e que eu havia aceitado aquelas
sombras, as senti pulsar ao meu redor, dizendo o
que fazer, dizendo para matá-lo, matar todos
aqueles magos. Eles eram maus, assassinos cruéis e
inescrupulosos e mereciam ser castigados. Um
estranho desejo me tomou, então comecei a andar
novamente na direção deles, arrastando Siferath ao
meu lado, o som do vitrino no chão de pedras
transmitia uma onda de prazer pelo meu corpo. Ia
matá-los, todos eles, e faria agora.
Porém, luz irrompeu por todos os lados
fazendo-me cair de joelhos ao chão, raios como
numa tempestade magnética fizeram com que as
sombras desaparecessem. Olhei em volta
atordoada, os magos estavam enrolados por
sombras, quase morrendo sufocados, assim como
Brieli e Kilua, mas vovô estava bem, porém
desacordado.
A tempestade ficou ainda mais forte,

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lançando raios por toda a cidade até que os prédios


começaram a se distorcer e desmanchar. O braço de
alguém passou em volta de minha cintura,
erguendo-me e apertando-me contra ele.
— Nike, olhe para mim! ― Era Caalin, ele
segurou meu rosto e apertou com carinho, tocando
minhas bochechas com as pontas dos dedos. ―
Solte-os, agora! ― disse para mim, desviei meus
olhos dos dele para os magos ao nosso redor,
morrendo sufocados por minhas sombras.
— Não consigo... ― sussurrei, não era
verdade, eu não queria soltá-los.
— Solte-os, não seja o monstro que Fairin
queria que você fosse! ― Eu o olhei por mais um
segundo, então deixei que as sombras
desaparecessem. Caalin me abraçou apertado,
sentia as pontas de seus dedos contra minhas
costelas, estava doendo, ele estava tremendo.
— Está tudo bem. ― Consegui falar,
passando os braços em volta de seu pescoço.
— Não, ainda não está! ― disse ele soltando-
me. Caalin passou à minha frente e girou Sielem
em punho. ― Não costumo dar segunda chance a

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traidores! ― rosnou ele. Kilua, que estava de


joelhos segurando Brieli, olhou o machado erguido,
mas não tinha forças para se mover. Um sorriso
perverso apareceu no rosto de Caalin antes de uma
luz cobrir a lâmina do machado.
— Pegue o rei de Amantia e teleporte.
Agora! ― disse ele para mim, mas antes que me
virasse, vovô me pegou no colo e abriu asas
grandes e negras e voou para longe da cidade, olhei
por cima de seus ombros a tempo de ver um clarão
seguido de um trovão tão poderoso que uma onda
magnética atingiu a proteção que vovô mantinha ao
nosso redor.
— O quê... ― Olhei assustada a cidade se
desmanchando, esfarelando e caindo por entre as
nuvens numa chuva de destroços. Um raio imenso
rasgou o céu de fora a fora, conjurando uma nuvem
negra de tempestade, pouco depois a chuva
começou a cair. Senti meu coração apertar.
— Ele está bem ― disse vovô olhando-me
de soslaio, pouco depois, a luz dourada nos cobriu
de novo, quando abri os olhos, estávamos no jardim
do castelo. Ainda estava no colo de vovô e tremia

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tanto que estava prestes a vomitar.


Susano e Annie vieram até nós, eles estavam
sentados à sombra de uma das árvores quando
aparecemos.
— Pai! O que aconteceu? ― perguntou
Susano tirando-me do colo dele e me ajudando a
ficar de pé.
— Podemos dizer que a Vila Nakhlans foi
apagada do mapa de Ciartes! ― disse ele passando
os olhos em mim novamente. ― Está bem? ― Não
consegui responder, apenas assenti lentamente.
— Mamãe estava procurando por você! ―
Susano lhe deu um olhar significativo, vovô
assentiu e desapareceu pelo caminho estreito entre
as árvores.
— O que houve? ― perguntou Annie
sentando-me no chão macio, a areia morna foi
quase tranquilizadora, mas ao olhar para o céu, vi a
nuvem de tempestade se aproximando.
— Não quero falar agora ― disse aos dois e
saí dali correndo, corri pelos corredores do castelo
rapidamente em direção às escadas em espiral que
levava à torre leste do castelo. Subi as escadas

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pulando os degraus e alcancei a torre com meus


pulmões quase rasgando. Fui até a sacada, podia
ver o Vale Cinzento dali, a Árvore do Fogo e o
Deserto de Sal.
— Começou mal o dia? ― perguntou Ericko
aparecendo na porta da torre com uma tigela cheia
de sorvete na mão.
— Você viu como foi o começo do meu dia!
— respondi fazendo uma careta, Ericko riu e me
entregou o sorvete.
— Olha o lado bom, você não acorda com a
certeza que é odiada por seu futuro sogro todos os
dias! ― disse dando uma gargalhada baixa.
— Vovô não te odeia, e se você não
percebeu, Higarath quer minha cabeça em uma
bandeja de prata, então, tecnicamente, estamos
empatados!
— Se estamos empatados, significa que
Ewren me odeia mesmo! ― Fiz uma careta e ele
riu mais, comi uma colherada do sorvete de flocos
que ele havia trazido e sentei sobre o parapeito da
sacada.
— Ele não te odeia, só tem ciúme de Karin,

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talvez medo por tudo que passaram... Eu vi as


memórias de Fairin, ainda tenho a maioria delas, o
que ele pretendia fazer com Karin... ― Ericko
soltou um baixo rosnado e suas mãos se
transformaram em brasas.
— Eu sei. Mesmo não tendo passado por
tudo isso, teria ciúme também. ― Ele suspirou e
sentou no parapeito também, se encostando na
parede de pedras amarelas, quase douradas.
— A vila flutuante dos metamorfos foi
destruída ― falei mais baixo do que pretendia.
Ericko assentiu.
— Eu sei! ― O olhei surpresa. ― Sob a sala
do trono tem um escritório com um globo gigante,
um mapa de Ciartes. Vi a vila desaparecer, logo em
seguida Ewren entrou na sala e contou o que havia
acontecido lá.
— O que vai ser, então?
— Nada. Foi um ato de traição, por sorte não
havia Salamandras naquela Vila, senão, Ewren
poderia quebrar a aliança com Ciartes, mas os
metamorfos não são reconhecidos como nativos
desse mundo ― explicou.

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— Mas quem destruiu a Vila foi Caalin... ―


Ericko sorriu.
— Graças aos deuses por ter sido só a vila.
Depois de tudo que você passou aqui em Ciartes,
não me surpreenderia se ele destruísse metade do
mundo.
— Isso não é coisa que uma pessoa normal
faria! ― retruquei.
— Eu faria por Karin. Ewren faria por
Leona... Não somos humanos, caso você não se
lembre! ― disse ele piscando para mim. ― Talvez
por isso eles tenham nos considerado inimigos
desde o início, somos apenas feras irracionais com
aparência quase humana. Talvez Ayrana nunca
devesse ter criado os outros mundos para nos
salvar, talvez devesse ter nos deixado morrer nas
mãos deles. ― Engoli em seco e apertei sua mão,
ignorando o calor que feria o vitrino em minhas
mãos.
— Todos têm seus defeitos! Os humanos
sabem ser tão bárbaros quanto quaisquer outros
monstros ― falei.
— Se não existíssemos, será que eles seriam

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assim? ― perguntou Ericko olhando para longe,


para a árvore com folhas vermelhas dançando com
os ventos da tempestade que Caalin havia
conjurado.
— Os humanos na terra, a maioria não sabe
de nós e existem muitos monstros entre eles, com a
mesma aparência. Independente da raça, existem os
bons e os maus, isso nunca vai mudar. ― Ericko
sorriu novamente e afagou o topo de minha cabeça.
— E Susano me disse uma vez, que se você precisa
de um motivo para ser bom, você não é bom de
verdade!
— Sabe Nike, acho que valeu a pena não
arrancar sua cabeça anos atrás! ― disse ele
soltando uma gargalhada ao perceber meu olhar
assustado.
— Obrigada, acho! ― Ele saiu da torre e eu
continuei sentada ali, tomando o sorvete e vendo a
tempestade se aproximar. Não sabia quando Caalin
voltaria, então saltei da torre, usando meus poderes
para aterrissar do lado de fora do castelo. Andei
pela praça decorada para o casamento, as pessoas
pareciam animadas e não se incomodavam com a

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tempestade se aproximando.
Fui até o hotel de Gih, por sorte ela estava
ocupada demais com os clientes e não me viu entrar
de fininho, fui até o meu quarto e me deitei na
cama, o calor já estava quase insuportável, então
assoprei o Yinemí e deixei tudo quase congelado.
Peguei o livro de Yellen na bolsa, e comecei a
folhear. As primeiras páginas já me deixaram
apreensiva, aquilo não era exatamente um livro, era
um diário onde contava coisas pessoais.
A forma com que foi expulsa pelos humanos
da vila em que vivia quando a terra ainda era
completamente coberta por gelo, o encontro com
seu pai, Haalin. Pai! Li novamente a frase: “No
momento que me encontrou na floresta, ele riu e
disse: Yellen, você é igual sua mãe, Ren! Eu a amei
no minuto que a vi, me desculpe por nunca ter ido
buscar você! Um pai nunca deixaria sua filha com
aqueles monstros! ” Yellen era mesmo filha de
Haalin, e Haalin era tataravô de Eirien, a antiga
rainha de Amantia, isso significava que as duas
famílias, Ascardian e Arbarus eram uma só!
Continuei lendo, folheando as páginas e

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procurando por qualquer coisa sobre as Almas


Elementais. Ao passar as páginas notei uma um
pouco amassada, onde a caneta havia sido
pressionada com mais força e as manchas de
lágrimas ainda estavam lá, aquilo não era uma
cópia do diário de Yellen, era o original!
Na página estava um trecho sobre ela ter
descoberto o que Higarath fazia na terra com a
amante humana, ela o amava tanto que queria
perdoá-lo, mas ele não parou de ir atrás da mulher,
ele continuava indo vê-la. Yellen fez com que o
tempo em cada um dos mundos passasse de forma
diferente, menos Ciartes e Amantia, eles
continuavam com tempos iguais. Ela fez aquilo de
forma aleatória, não sabia que na terra o tempo
passava mais devagar.
Fiquei naquilo na maior parte do dia, não
quis sair para almoçar, pois estava muito vidrada
lendo o diário de Yellen e esperando Caalin
aparecer. Não fazia ideia do que ele estava fazendo,
ou porque não havia voltado ainda, mas depois de
vê-lo destruir aquela cidade com apenas um ataque,
preferi deixá-lo se acalmar primeiro.

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Passava das cinco da tarde quando cheguei às


últimas páginas escritas do diário, foi onde toda a
alegria que eu ainda mantinha, desapareceu. Havia
apenas um trecho em que Yellen havia chorado
muito, onde ela havia desistido de devolver as
Almas que Gaia lhe emprestou e o motivo dela não
ter devolvido as Almas à Gaia era simples: ela teria
que pagar com seu próprio poder, ela teria que
gastar até a última gota de seu poder para liberar as
Almas, incluindo sua imortalidade, isso significava
que se tornaria humana.
Se ela o fizesse, se libertasse as Almas
pagando com seu poder, ela se desmancharia,
viraria pó, pois tinha mais de dez mil anos. Fechei
o diário e o apertei em meu colo. Yellen estava
disposta a abrir mão da própria vida para criar os
mundos para que seus semelhantes mágicos
pudessem viver em paz, mas seu amor por Higarath
a fez desistir do auto sacrifício, então ela manteve
as Almas com ela até o dia de sua morte, onde já
não tinha mais forças para liberá-las. Higarath tinha
a intenção de tomá-las dela quando a matou, mas

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em seus últimos suspiros, ela dividiu as Almas


entre seus filhos e foi de corpo e alma para Mogyin.
Eu estive tão perto de manhã, e nem sequer
havia percebido, Yellen, Ayrana... Ela havia criado
a montanha azul em Vintro, onde o poder de
qualquer um ficava mais forte e mais vivo em
Amantia, ela criou um altar no centro daquele
vulcão para que as Almas fossem libertas, os
cristais não purificavam, eles absorviam a energia,
principalmente a energia maligna para poder
dispersar as Almas Elementais.

Estava entardecendo quando fui para o


telhado do hotel, a tempestade havia se dissipado e
os sóis brilhavam no céu. Gálatas e o sol artificial
criado por Leona. Fiquei sentada no parapeito do
telhado observando a movimentação na praça, a
festa seria algo para ser lembrado pelos próximos
séculos, todos estavam felizes e alvoroçados. Eu
apertava aquele diário no colo, sentindo um caroço
em minha garganta.
Se eu abrisse mão da magia e dos poderes de
malvarmo para liberar as Almas, seria apenas uma

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humana comum, se sobrevivesse quando toda a


magia deixasse meu corpo. Mas sabia que
precisava fazer aquilo, vivi antes como humana,
sem poderes e isso não faria diferença agora.
No centro do telhado, uma bola de luz
começou a crescer e vibrar, sabia que era Caalin
chegando, então, antes que ele visse o livro em
minhas mãos, o fiz virar farelo usando o Yinemí e
limpei rapidamente as lágrimas em meu rosto. A
luz se dissipou e pude vê-lo agora, ele me encarou
por um tempo longo demais, mantinha os olhos
negros fixos nos meus.
— Onde esteve? ― perguntei casualmente,
tentando mostrar que não estava com medo dele.
— Caçando os magos que fugiram da cidade.
— Suas mãos estavam fechadas em punho ao lado
do corpo, tentei não deixar o nervosismo
transparecer em mim.
— Não sei o que dizer Caalin...
— Diga o que está pensando. ― Ele não se
moveu, não se aproximou de mim, então levantei
do parapeito e dei um passo em sua direção, ele se
moveu em minha direção rápido demais e me

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apertou em seus braços.


— Estava pensando que não acredito mais
quando você diz que a Alma do gelo é a mais forte
— falei contra seu peito, ele estava me apertando
tanto que podia facilmente me sufocar, mas quando
disse aquilo, ele apenas riu e se afastou.
— Você nunca a usou de verdade.
— Depois do que vi hoje, nem quero, só
quero me livrar dela de uma vez! ― falei sentindo
aquele nó voltar à minha garganta, Caalin me
afastou um pouco para poder me encarar.
— Está com medo de mim? ― perguntou.
— Nunca, ainda teria coragem de te dar uma
surra ― respondi, ele riu novamente e me beijou ―
eu teria matado todos eles, se você não tivesse
aparecido ― sussurrei.
— Eu sei, mas se você tivesse feito, seria
castigada, pois tecnicamente, ainda é uma das
alunas da ACV, os alunos não podem matar outros
alunos, e também não podem matar ninguém fora
das missões oficiais enquanto não completarem o
curso, independentemente de ser neta de Ewren,
você teria sido castigada.

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— Não me importava, não tenho medo de


castigo algum! ― Caalin franziu o cenho.
— No entanto, morre de medo de Sereianos
— disse baixinho para mim, senti minha pele se
arrepiar, ele gargalhou da minha cara assustada. ―
Nossa! Tantas coisas assustadoras de verdade, e
você tem medo de Sereianos.
— Eles comem gente! ― retruquei irritada.
— Tudo bem, vamos mudar de assunto antes
que eu resolva te deixar com medo de tudo! Já que
eles não ensinam muitas coisas para vocês na
ACV! ― disse ele passando a mão em meu cabelo.
— Vai reivindicar o trono de Vegahn? ―
perguntei, Caalin fez uma careta, mas assentiu.
— Mesmo que eu dissesse não, Aliver iria
me denunciar aos Anciãos, e de qualquer forma eu
teria que voltar ao trono. Graças ao seu tio de boca
grande! ― Ele grunhiu.
— É para o bem de todos, Caalin! ― O
repreendi.
— Eu sei.
— E Frayena? ― perguntei, Caalin ergueu as
sobrancelhas, tentando entender a pergunta. ―
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Quando Susano falou sobre os últimos dias dela,


entendi que ela era bem... velha. ― Ele acenou. ―
Velha quanto?
— Muito velha, mas tinha aparência de uma
mulher lá pelos seus vinte e cinco anos...
— Qual a idade? ― Caalin sorriu de forma
maliciosa.
— Doze mil...
— Ela não tinha filhos?
— Frayena nunca havia se casado antes de
mim. ― Fiquei em silêncio olhando para ele, que
começou a rir novamente. ― Ela não gostava de
machos.
— Sério? ― Ele assentiu.
— Então, vocês...
— Ela nunca me deixou chegar perto! ―
Acabei rindo. ― O que foi?
— Ela iria ter mudado de opinião! ― Ele riu
também.
— Vamos descer, o casamento será às seis,
Susano vai fazer a noite cair mais cedo hoje!
Depois terei que voltar com Aliver para Vegahn e
arrumar as coisas por lá. ― Ele tinha uma
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expressão cansada no rosto, antes que saíssemos do


telhado, segurei sua mão e a beijei.
— Eu vou estar lá com você, vou te ajudar
com isso! ― falei.
— Claro que vai! Parte disso é culpa sua,
acha que te deixaria escapar disso? ― Ele
gargalhou. ― Vou adorar ver você de noiva no
altar de gelo. ― Meu estômago afundou.
— Você é mau, Caalin! ― sussurrei.
— Você nem faz ideia! ― Ele me deu um
sorriso malicioso e me guiou de volta ao castelo.

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Capítulo 15

Encontramos com Annie e Asahi no corredor


no caminho até o salão principal, elas estavam
arrastando Oriel, que tinha uma expressão de tédio
gravada no rosto e nem tentava disfarçar. Oriel
pareceu aliviada ao me ver, ela soltou o braço de
Caalin que estava ao meu redor e me arrastou para
longe dele.
— Vamos começar a nos arrumar! Aliver
queria te ver! ― disse Oriel mostrando a língua
para Caalin, ele deu um suspiro de irritação e
acenou para ela, não sei se ela mudaria o modo de
falar se soubesse que estava falando com o
verdadeiro rei de Vegahn.
— Nos vemos depois! ― falei acenando para
ele e me deixando ser arrastada por elas por uma
escadaria, atravessamos os corredores do castelo.
— Preparei um vestido maravilhoso para
Nike! ― disse Oriel depois da tagarelice de Asahi e
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Annie sobre os vestidos, Annie tinha escolhido


outro para mim e agora ela e Oriel travavam uma
batalha para saber qual dos dois eu usaria. Oriel
começou a soltar fogo pela boca quando Annie
disse ter um bom gosto melhor que o dela.
— Vou usar o de Annie, Oriel! ― falei por
fim, colocando um ponto final naquela briga. Oriel
me olhou incrédula, magoada e me fulminou com o
olhar, ficou em silêncio o resto do caminho pelos
corredores vermelhos e dourados até a sala de
banho, que diferente do resto do castelo, era
completamente verde! Pedras verdes rajadas de
tons terrosos no piso e paredes feitas com conchas
esverdeadas e peroladas, o vapor tomava conta de
todo ambiente e o som das águas caindo das
piscinas de pedras era tranquilizante.
Ao perceberem que estávamos lá, Karin,
Palloma, Nyumun, Áries, Leona e as outras
mulheres nos deram rápidos cumprimentos e
sorrisos, mas voltaram sua atenção para a noiva,
afinal era o dia dela, apenas Leona continuava
lançando olhares para mim, analisando-me. Karin
parecia radiante e não parava de sorrir.

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— Vamos! ― disse Annie nos puxando para


uma área separada por vestiários com paredes de
bambu trabalhados com conchas e fios dourados.
Antes de entrarmos lá, segurei o braço de Oriel, que
ainda estava zangada comigo e a puxei para um
canto.
— O quê? ― Ela rosnou.
— Deixe Annie me colocar no vestido que
ela quiser, eu deixo você escolher o do meu...
casamento. ― Consegui fazer a palavra sair com
uma careta, nem sabia ao certo se teria um, se
sobreviveria à magia para libertar as Almas. Ela
arqueou as sobrancelhas e riu.
— Do jeito que você falou, casamento parece
ser uma coisa horrível.
— Não é, só que de tanto Merian falar que eu
nunca me casaria, acabei acreditando... fora que eu
nunca poderia dar uma família de verdade a ele. ―
Suspirei contando apenas meia verdade, Oriel
pegou um palito que estava num cesto de vime em
cima de uma mesinha e enrolou meu cabelo,
prendendo-o num coque.
— Ele sabe disso? ― Ela perguntou, assenti

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sem tirar os olhos dos seus. ― E ele disse que não


queria mais você depois que soube disso?
— Não, mas sei...
— Você não sabe de nada, Nike! Mas se
fosse o contrário, você se importaria?
— Claro que não! ― respondi.
— Então, tá ai sua resposta! Agora vamos!
Você tem que tomar um banho! Está fedendo às
folhas daquela Árvore! ― disse ela me empurrando
para o trocador.
Entramos na piscina com as outras mulheres,
Leona e Áries agora olhavam para mim e
cochichavam baixinho.
— Senti sua falta por aqui! ― comentou
Karin vindo até onde eu estava sentada me
banhando, ela sorria de forma doce.
— Senti falta de todos daqui também! ―
falei.
— Mas não tem intenção de ficar, não é? ―
perguntou.
— Não, minha casa não é mais aqui! ―
respondi. Melanie também me encarava de forma
estranha e aquilo me irritou muito, porém Asahi
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sentou ao meu lado e passou um braço ao redor de


meus ombros, fazendo com que Melanie desviasse
o olhar. Tive que aguentar aquilo em silêncio por
um bom tempo, mas os olhares de Leona e Melanie
para mim começaram a me irritar tanto, que fiz a
água ficar gelada, cheia de gelo na verdade,
fazendo com que todas saíssem dando gritinhos
assustados. Annie gargalhou e saiu da água
também, por um instante achei que ela fosse
derreter o gelo, aquecer a água novamente, mas ela
não fez.
Saí da água e me enrolei numa toalha,
seguindo Annie até o vestiário, mas no meio do
caminho, Leona ficou parada em meu caminho
olhando para mim, ela era menos de um palmo
mais alta que eu.
— Algum problema? ― perguntei.
— Nenhum... ― Ela baixou os olhos e
limpou uma lágrima que lhe escapou. ― Obrigada.
— Pelo quê?
— Você, aquele dia, conseguiu tomar o
controle de volta e não feriu Nyumun, depois ainda
se livrou de Fairin.

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— Tudo bem! ― Não sabia o que lhe dizer,


ela me deu um abraço, me senti completamente
desconfortável, mas sorri de volta para ela e fui até
Annie, ela me fez vestir um roupão e me arrastou
para seu quarto, deixando as outras para trás.

O quarto de Annie era lindo! Não tinha a


mesma decoração vermelha e dourada que o resto
do castelo, era verde-musgo com salpicos de tintas
com as cores de outono e os móveis eram
trabalhados em troncos e galhos de árvores, a cama
redonda tinha um dossel circular e um véu verde-
claro cobria a cama, fazendo parecer que estávamos
dentro de uma floresta.
— Homenagem a Susano ― disse ela
timidamente segundo meu olhar pelo quarto. Deixei
que ela me arrumasse, colocando-me num vestido
azul safira, longo de renda que descia apertado até
quadril e se abria numa roda de seda no mesmo tom
brilhante, as alças eram feitas de pequenos cristais
azuis escuros em formato de losangos e as costas
eram abertas até a lombar num decote em “U” e me
deu um sapato na cor dos cristais, o salto me fez

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soltar um gemido, mas o olhar psicótico que ela me


lançou foi o suficiente para que eu ficasse em
silêncio. Ela trançou meu cabelo para o lado e
colocou vários daqueles pequenos cristais entre os
gomos da trança, passou um delineador em meus
olhos e um batom vinho.
O vestido dela era azul marinho e brilhante
de tule, ela deixou os cabelos presos num coque
alto e colocou um pequeno diadema dourado com
rubis sobre a cabeça.
— Por que isso tudo? ― perguntei me
olhando no espelho.
— Porque eu gosto de chamar atenção e no
fundo eu sei que você também gosta! ― disse ela
dando uma piscadinha para mim. Asahi entrou no
quarto usando um vestido verde de chifon na altura
dos joelhos e os cabelos escuros soltos, com uma
pequena tiara de folhas prateadas presa neles, mais
simples do que imaginei que ela estaria.
— Nossa Annie! Caalin vai passar mal ao ver
ela assim, Kuran também, e Melanie vai querer te
matar depois!
— Essa é a ideia! ― Ela deu uma risadinha

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maléfica.
— Vamos? ― perguntou Asahi estendendo a
mão para que fôssemos juntas.
— Achei que você viria com o vestido preto,
Asahi! ― disse Annie enquanto caminhávamos
pelos corredores em direção à saída principal.
Asahi apenas riu em resposta.
Ao chegarmos à escadaria do castelo que ia
até a praça, meu estômago começou a dar
cambalhotas. Susano havia realmente mergulhado
Ciartes em uma noite, porém a lua das fadas
brilhava forte e azul no céu, na praça, pequenas
folhas vermelhas e laranjas flutuavam, iluminando
todo o ambiente. Desde a entrada do castelo até o
altar havia uma trilha feita com areia fina do
deserto, e o altar era feito de pedras redondas
brancas e orquídeas vermelhas as decoravam.
— Por que aqui fora? ― perguntei.
— Porque Ericko quer mostrar ao povo que
não os exclui de nada! A festa é para todos os
habitantes da Cidade do Sol também, e em todas as
cidades, hoje será um dia de festa!
— E a trilha de areia?

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— Tradição! A trilha do deserto simboliza a


jornada árdua e a caminhada através das
dificuldades até a paz e a felicidade da união de
duas almas ― explicou Annie segurando minha
mão e me levando até onde os convidados estavam
sentados em cadeiras brancas, os soberanos dos
onze mundos restantes, criados por Ayrana estavam
ali. Caalin não havia tomado seu lugar na primeira
fileira ao lado de vovô, o Rei de Amantia, que
estava ao lado de sua rainha, Leona era
simplesmente linda! Ela deu um pequeno sorriso
para nós e piscou para Asahi. Aliver estava ali, ao
lado deles e deu um sorriso e um aceno para nós,
quando passamos por eles. Asahi corou e apertou
mais meu braço.
— Aquele é o rei de Vegahn? ― perguntou.
— Por pouco tempo... ― respondi, ela
sorriu. ― Você não o tinha visto ainda? ―
perguntei, ela negou com a cabeça e foi sentar-se
ao lado de Nyumun e Siorin, eles estavam sentados
perto de Kuran, Melanie com o rosto apoiado no
ombro dele, sorria feliz. Atrás dos dois, um
sereiano ruivo simplesmente lindo estava os

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observando, fulminando Kuran com o olhar e uma


elfa exatamente igual vovô Ewren estava ao lado
dele.
— Aquele é o pai de Melanie e Datani? ―
perguntei a Annie.
— Lindo, né! ― Ela deu uma gargalhada
divertida e foi comigo até onde Susano e Caalin nos
esperavam.
Caalin me olhava vidrado enquanto nos
aproximávamos, senti meu rosto corar pelo olhar
malicioso em seus olhos.
Ao me sentar em seu lado, Caalin passou o
braço em volta de minha cintura e tocou minha
orelha com a boca:
— Eu vou rasgar esse vestido inteirinho essa
noite...
— Não se atreva! É uma obra de arte! ―
grunhiu Annie para ele, ela nem sequer disfarçou
que estava ouvindo o que ele disse e acendeu as
pontas dos dedos, transformando-os em brasas,
Caalin apenas riu e piscou para ela.
— Por que essa cor? ― perguntou ele para
Annie.
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— Porque ela fica linda com essa cor e


porque a faz combinar com você! ― disse Annie
apertando minhas bochechas, Susano e eu
reviramos os olhos ao mesmo tempo.
— Ela combinaria comigo em qualquer cor,
princesa! ― Caalin sorriu e piscou para mim,
deixando-me corada.
Não demorou muito para estarem todos
sentados em seus lugares, Ericko apareceu no altar
vestido com uma túnica branca de seda e calça cor
de areia, ele estava descalço sobre a areia do altar,
com os cabelos ruivos até a cintura soltos e usava a
coroa feita das folhas da Árvore do Fogo. Parecia
tudo muito simples para a forma que Annie nos
arrumou.
— Durante a festa eles trocam de roupa, não
se preocupe! ― disse ela notando meus olhares
preocupados.
Quando o pequeno grupo de Salamandras
começou a cantar, todos ficaram de pé, a noiva
apareceu na trilha de areia na escadaria do castelo,
lá na frente via Leona começar a chorar e vovô a
apertou carinhosamente. Karin estava com um

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vestido longo e vermelho de seda e tinha detalhes


em dourado, como pequenas folhas. Os cabelos
escuros estavam presos no alto da cabeça com
folhas da Árvore do Fogo e ela trazia nas mãos uma
pequena esfera de vidro com areia, uma miniatura
do globo de areia das mãos da estátua dos primeiros
Salamandras, em frente à sala do trono. Karin
também estava descalça e caminhava conforme a
melodia da música aumentava.
— O globo significa que como esposa e
rainha ela dividirá o peso do mundo com ele, suas
obrigações como rei e as dificuldades que tal título
representa ― sussurrou Annie para mim, não fazia
ideia de quantas coisas bonitas existiam nas
tradições deles, sempre fui movida pela vingança e
nunca os estudei, nunca acompanhei seus costumes.
Quando ela chegou no altar e a música parou,
Karin estendeu aquele pequeno globo de areia e
Ericko colocou sua mão por debaixo da de Karin.
O sacerdote começou a falar e eu parei de
prestar atenção àquilo, Caalin segurava minha mão
entre as suas e fazia pequenos círculos em minha
palma aberta. Engoli em seco olhando aquelas

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mãos grandes e brancas, as garras transparentes


quase iguais as minhas, olhei para seu rosto, os
olhos safira fixos na cerimônia, ele percebeu que eu
o estava encarando e sorriu para mim.

Depois dos votos e da pequena folha


vermelha aparecer nas mãos deles, os convidados
se levantaram e aplaudiram, seguindo o casal, os
soberanos de Ciartes, até a festa no centro da praça.
Deixei que Caalin me levasse até lá, onde todos
dançavam e sorriam, comemorando a aliança entre
dois mundos. Ericko e Karin estavam tão felizes
que pareciam brilhar, não pareciam, Ericko estava
com sua pele quase pegando fogo e sorria, era
como se o mundo deles estivesse em outro lugar.

— O que tem de errado? ― perguntou Caalin


ao meu ouvido enquanto dançávamos uma música
suave e lenta no meio da praça, Leona e Ewren
estavam bem perto de nós e pareciam perdidos em
seu próprio mundo também.
— Nada! Por que acha que tem algo errado?
— Você está com o mesmo olhar de Ira

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quando ele fica vários dias sem comer. ― Ele


sussurrou fazendo-me rir.
— Talvez porque não tenha comido nada o
dia inteiro além do sorvete que Ericko levou para
mim depois que voltamos de Nakhlans. ― Caalin
apertou um pouco mais os dedos em minha cintura.
— Então, essa cara é fome?
— Provavelmente ― respondi.
— Por que mentir pra mim? ― Ele parou de
dançar e segurou meu rosto entre as mãos.
— Não estou mentindo, tô morrendo de
fome! ― resmunguei fazendo bico.
— Nike...
— Eu disse que Ciartes é uma merda! Estou
incomodada com o calor, com as roupas
escandalosas, com fome... ― Ele me encarou por
um longo momento com os olhos semicerrados e
seus lábios se apertaram.
— Caalin! ― Aliver e Oriel estavam bem
perto de nós, para meu alívio eles interromperam
aquele olhar que poderia a qualquer momento
perfurar minha alma, meus bloqueios e ver o que
estava escondendo. Aliver veio rápido até Caalin e
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começou a falar baixo, o suficiente para que eu não


escutasse. Asahi me puxou pelo braço e me levou
para longe de Caalin e Aliver.
— O que é? ― perguntei, ela revirou os
olhos e sorriu.
— É errado querer me dividir em duas e ficar
com Kuran e com Aliver?
— É claro, Asahi! Muito errado! ―
resmunguei achando que ela teria me levado até ali
para falar algo sério, porém, as palavras dela
fizeram uma das memórias de Fairin voltar à minha
mente e meu corpo inteiro vibrou com a
possibilidade. ― Asahi, você é um gênio! ― quase
gritei as palavras, fiquei nas pontas dos pés e beijei
sua testa.
— O quê?
— Onde está Susano? ― perguntei apertando
os braços dela. Asahi olhou por cima do ombro,
onde Susano e Annie dançavam. Sem dar
explicações a Asahi voltei até onde Caalin e Aliver
conversavam.
— Precisamos voltar para Vegahn, agora! ―
disse Caalin num baixo rosnado.

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— O que houve? ― perguntei.


— Tentaram invadir o Castelo de Gelo,
porém Zion os colocou para correr, mas ela disse
que Hobner ameaçou voltar. Eles descobriram
sobre as armas danificadas e estão ameaçando
destruir Blizzion! ― explicou ele olhando em
volta.
— Como soube? ― perguntei. Ele apontou
Hisana no meio da multidão, não havia a visto entre
os soberanos, no lugar dela estava um homem de
pele escura e olhos prateados.
— Não posso voltar agora, Caalin, tenho algo
a fazer e é importante! ― falei apertando o braço
de Caalin, sabendo que talvez ele não interpretasse
aquilo muito bem, mas para minha surpresa ele
assentiu.
— Não arrume problemas e fique fora de
perigo!
— Digo o mesmo! ― Ele sorriu dando um
beijo em minha testa e saiu da festa, seguido por
Aliver, Oriel e Hisana.
Corri até onde Susano e Annie estavam
dançando e os interrompi.

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— Susano, preciso de sua ajuda! ― falei


baixo para que ninguém mais nos escutasse. Annie
parecia confusa.
— O que está havendo? ― perguntou ela
olhando onde Caalin e Aliver desapareceram
alguns instantes antes.
— Te explico depois! Confie em mim, tudo
bem? ― A abracei rapidamente, pegando o braço
de Susano e o arrastando comigo.
— O que está acontecendo, Nike? ― Ele
perguntou olhando-me desconfiado.
— Já vai saber!

Entramos no hotel de Gih, que estava


completamente deserto e subimos as escadas
praticamente voando até meu quarto, havia
trancado a porta com selo de sangue para evitar que
alguém entrasse ali durante a festa. Peguei o Livro
das Sombras escondido dentro da caixa de prata
debaixo da cama.
— Nos leve para Vintro! ― Pedi a Susano,
ele não questionou, apenas passou um braço ao
redor de meus ombros e a luz dourada nos cobriu,
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não me incomodei com o puxão da magia ou com o


meu estômago se revirando agitado.

Caalin:

Os Anciãos ainda olhavam para mim


sobressaltados, estavam com as mesmas expressões
de adoração desde a hora em que entramos no
Templo em Vilehas, nas montanhas do extremo sul
de Blizzion, próximas ao Mar Negro, o Templo do
Gelo Eterno. Havíamos chegado ali há pouco mais
de uma hora, acompanhado de Hisana e Aliver, que
insistiu que eu reivindicasse o direito à coroa o
quanto antes, para evitar que Hobner e Ausiet
atacassem novamente, pois o meu nome era
conhecido e eu seria respeitado pelo povo de forma
que ele não era, assim, Hobner e Ausiet perderiam
seus “seguidores”, ainda mais com um rei lendário
retornando ao trono com mais de vinte milênios nas
costas.

Estes Anciãos do templo eram os netos dos


Anciãos que me coroaram ao lado de Frayena e me

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casaram com Merry, embora eles não parecessem


ter mais que trinta anos, tinham pelo menos cinco
milênios de vida. Dei um sorriso feral a eles
quando o mais velho de todos, Claris, apareceu
com um globo de vitrino com uma pequena mecha
de cabelo trançada no seu interior e meu nome
escrito em letras de ouro, dentro do vitrino também.
Aquele era o globo feito com meu sangue,
então ele só reagiria a mim. Claris ainda se
lembrava de mim, ele era apenas uma criança
quando estive ali pela última vez, pouco depois da
destruição de Treezer. O olhar de profunda
admiração quando ele se aproximou dizia isso, mas
ele tinha que provar aos outros Anciãos, eu tinha
que provar a eles que era o verdadeiro rei.
Claris estendeu o globo para mim, olhando-
me nos olhos, ele tinha os olhos cor de vinho como
a maioria dos nascidos Malvarmos, apenas alguns
transformados, como eu, mantinham a coloração
original dos olhos.
— Caalin Arbarus Ascardian, prove ser o
verdadeiro e único rei de Vegahn. ― Estendi as
mãos para que ele colocasse o globo na concha,

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quando o vitrino tocou minhas palmas abertas, sua


cor se alterou, tornando-se vermelho brilhante e o
globo ficou quente. Os Anciãos ali se
sobressaltaram e se ajoelharam.
— Scutum Glaciem! ― Eles saudaram com
as mãos em punho sobre o coração, senti um
desconforto com aquilo, mas era para o bem de
todos, era para o bem dela também!
Nikella estava escondendo algo de mim, algo
ruim, pois era muito difícil que ficasse com aquele
olhar tristonho, perdido. Queria ir até ela, saber a
verdade, exigir que ela me contasse o que quer que
fosse que a estava deixando daquela maneira.
Não escutei nada que eles disseram depois da
saudação de honra de Vegahn, apenas deixei que
me levassem de volta ao Castelo de Gelo, enquanto
os mensageiros se espalhavam por Vegahn para
contar sobre o retorno do Rei, o filho da criadora
que havia retomado ao trono. Aliver, para minha
surpresa, não estava triste com a saída do poder,
parecia até aliviado, como se aquilo fosse um fardo
pesado demais para seus ombros jovens.
— Sei que não era isso que queria ― disse

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ele enquanto voltávamos ao castelo.


— Não, não era. Mas é por uma boa causa ―
respondi, Hisana estava sentada ao meu lado na
carruagem, que cortava os céus, puxada por quatro
Fermans, ela estava analisando-me, e tinha um
sorriso tristonho no rosto.
— Os Arbarus são soberanos em todos os
mundos, parece até algum tipo de maldição ―
disse ela num suspiro. ― Por mais que tentemos
nos libertar, viver livres, a obrigação volta até nós.
— Eu assenti, aquilo era quase verdade, pois os
Arbarus eram os guardiões, então, estávamos
sempre no lugar em que o povo mais precisava de
nós.
— Que idade você tem? ― perguntou Aliver
curioso, passando os olhos descaradamente pelo
corpo dela, His soltou um rosnado e lhe mostrou os
dentes.
— Sou velha demais para um pirralho como
você! Então, tire esse olhar predatório do rosto,
filhote, pois se eu me transformar, eu devoro você
como prato de entrada! ― Ela tinha um sorriso
maligno no rosto, mas não fez Aliver se encolher,

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ele mal ligou para as sombras negras de Nike, não


seria uma lobisomem com um quarto da minha
idade que o assustaria.
Porém, Claris se encolheu no banco ao lado
de Aliver, ainda com o pequeno globo de vitrino na
mão, objeto necessário para provar a todos quem eu
era. Rapidamente lhe passei algumas informações
para que não dissesse bobagem diante dos
governantes, e lhe passei detalhes importantes, para
o caso de alguns ainda se oporem a mim.

Não teleportamos para o castelo, para que


desse tempo de todos os governantes dos
continentes e líderes das cidades, aldeias e vilas
fossem levados até lá para saudarem o rei que havia
retornado e provar sua lealdade ao coração de
Vegahn, o rei. E se Hobner e Ausiet tivessem um
problema comigo, eles não deixariam a sala do
trono, não inteiros, pelo menos.
Chegamos ao castelo após meia hora de
viagem, Se Nikella estivesse conosco, ela teria
adorado os Fermans que puxavam a carruagem de
gelo, eram iguais às fênix, porém brancos e

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peludos. Zion nos recebeu nos portões do castelo


com Ira nos ombros, ela também havia sido avisada
sobre as mudanças, pois quando me viu entrando à
frente dos outros, fez o sinal sobre o peito e sorriu.
— Onde está sua futura rainha? ― perguntou
ela andando ao meu lado. Olhei para o esqueleto do
dragão envolto em vitrino em frente às portas do
castelo e sorri, agora elas combinariam
perfeitamente com os soberanos daquele lugar.
— Está em Ciartes, é melhor que fique lá até
termos a certeza de que está tudo seguro por aqui!
— expliquei enquanto entrávamos e
atravessávamos os corredores. O brilho azulado e
fantasmagórico daquele lugar era sempre o mesmo,
porém, quando Nike estava ali, aquele castelo tinha
vida.
Ao entrarmos no salão principal, notei que
estava cheio, os rostos conhecidos dos líderes e
governantes, muitos me conheciam como o
assassino e caçador de Cahadris e de Aliver, eles
nem faziam ideia de quem eu era na verdade
quando livrava suas cidades de problemas.
Claris andou atrás de nós em silêncio, ele

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estava vestido com o manto cinzento e azul dos


sacerdotes e seus cabelos brancos na altura dos
ombros estava trançado. Ele mantinha a postura
séria e a cabeça erguida, olhando para o além.
Hobner e Ausiet estavam na primeira fila, de
pé diante do trono e trocavam palavras baixas, sem
terem reparado que já estávamos dentro da sala.
Quando finalmente cheguei ao trono, eles ficaram
mudos, os olhares surpresos que me lançaram foi o
suficiente para que eu soubesse o que eles estavam
pensando. O medo escondido no fundo daqueles
olhares surpresos.
Aliver parou ao lado do trono azul e branco
adornado por safiras, eu andei até ele e o olhei uma
última vez antes de me sentar, odiando aquela
sensação, odiando estar novamente ali.
— Eis o rei Caalin Arbarus Ascardian, que
desapareceu após a última grande guerra! ―
começou Claris, ele estendeu o globo para mim e o
colocou em minha mão. Assim que o metal ficou
vermelho sangue, os murmúrios começaram,
muitos se sobressaltaram e olhavam espantados,
assustados ou admirados. Já podia ouvir as

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perguntas se formando nas mentes dos presentes:


“onde esteve todo esse tempo? ” “Porque não
voltou antes? ” Mas não importa quem as fizesse
hoje, não iria responder ninguém. ― Ele retornou
em tempos difíceis para reestabelecer a paz e trazer
novos tempos a Vegahn! ― Claris tirou a coroa de
Aliver e a colocou em mim. ― Scutum Glaciem!
— O sacerdote fez uma reverência e todos na sala
se ajoelharam e saudaram também. Hobner, mesmo
de cabeça baixa mantinha os olhos em mim, e sabia
que aquilo não tinha acabado, ainda não. Fiz um
aceno para Claris que continuou:
— E como prova de que o melhor está por
vir para Vegahn, o Rei Caalin irá estabelecer uma
aliança com Amantia, através do casamento com
uma das herdeiras do Rei Ewren Ascardian
Lomérius! ― disse Claris, Ewren entrou na sala e a
atravessou em passos largos, fez uma breve
reverência e apertou minha mão. O olhar mortal em
seu rosto era quase reconfortante, então sorri de
volta. Hobner e Ausiet mantinham os olhos em nós,
assustados.
— Sabe que eles dois não tem nenhuma

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intenção de desistir, não sabe? ― sussurrou Ewren


para mim.
— Eles vão ter o que merecem em breve ―
respondi.
— Não a coloque em risco, Caalin. Ela já
esteve em problemas demais em Ciartes...
— Eu sei. ― Queria lhe falar algumas
verdades, mal havia descoberto sobre ser seu avô e
já queria impor sua dominância sobre ela, mas era
melhor não discutir por enquanto.
Os dispensei antes que começassem as
perguntas, alegando que tinha muitos afazeres e
problemas a resolver, enfatizei essa parte olhando
diretamente para os dois governantes. Quando
todos saíram, Ewren me acompanhou até o lado de
fora do castelo, onde o dragão repousava
eternamente na escultura de vitrino.
— Combina com esse lugar! ― disse ele
cruzando os braços e analisando a estátua. ― Um
dragão congelado.
— Foi sua neta que o fez! ― Ri com a
lembrança, Ewren sacudiu a cabeça e riu também.
— Leona domesticando dragões e Nikella os
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matando.
— Na verdade, ela tentou domesticá-lo, mas
ele estava protegendo um ovo... ― Não consegui
terminar a frase, algo parecia que me rasgaria de
dentro para fora. Uma força pulsando em minhas
veias, queimando e se dissipando. Era a Alma dos
raios, parecia que estava lutando para ficar em meu
corpo, mas ela estava sendo arrancada de mim por
um poder tão grande que me fez dobrar os joelhos,
até que eu o senti, senti a Alma dos raios me deixar
e desaparecer numa bola de luz branca e pura.
Ewren puxou meu braço, ajudando-me a ficar
de pé, seu rosto bronzeado estava pálido quando ele
me encarou com os olhos dourados.
— Higarath está em Amantia! ― disse ele
segurando uma frágil bolha de ar nas mãos. Uma
mensagem de Susano, talvez a última que ele tenha
conseguido enviar com a Alma dos ventos.
— Nikella! ― grunhi segurando o machado
nas mãos. Fomos engolidos pelas luzes douradas do
teleporte de Ewren.

O lugar em que aparecemos parecia o

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inferno. Não pelo fogo, pois não havia nenhum ali,


mas pelas trevas, pela escuridão e pelas sombras
que pareciam ter engolido aquele lugar. Olhamos
em volta tentando encontrar algo em meio à
escuridão, mas nada podia ser visto ali.
— O que diabos é isso?
— A escuridão de Higarath ― respondi.
Um único ponto de luz estava muito distante
de nós, no alto e protegido por rochas e fendas.
— A Montanha Azul! ― falei sentindo a
presença dos cristais, os mesmos cristais do interior
de Selem. Outra luz dourada apareceu atrás de nós,
segurando um cetro brilhante, fazendo uma onda de
luz se espalhar por todos os lados;
— Asahi, vá embora daqui! ― Ewren rosnou
para ela, mas ela não lhe deu ouvidos.
— Kuran está lá! ― Ela falou num soluço
apertando o peito. Ele era seu guardião de sangue,
pois ela havia dado seu sangue para salvá-lo, e pela
forma que ele apertava o peito, a coisa não estava
boa.
— Vá para casa, cuidaremos de tudo aqui! ―
Ele a segurou, mas ela se desvencilhou e fez três
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lobos grandes de terra aparecerem sob nós, então


eles dispararam em direção a montanha. ― Asahi!
Não me desobedeça!
— Eu vou levá-los até lá! Depois prometo
que volto para casa! ― Ela parecia implorar e ele
assentiu, as marcas douradas em seus braços
acenderam, ela transferiu parte de sua energia para
os lobos e corremos ainda mais rápido.
Conforme nos aproximávamos da entrada do
vulcão, ouvi o som das espadas se chocando, metal
com metal e gritos, muitos gritos, aquilo fez meu
sangue ferver. Entramos correndo por uma
passagem estreita que levava a um imenso salão no
interior da montanha, escavado e forrado por
aqueles cristais azuis, eles brilhavam suavemente
quando entramos.
Lá dentro estava um caos, no centro daquele
salão, uma barreira de proteção havia sido erguida,
uma jovem ajoelhada do lado de fora da bolha a
estava mantendo intacta, ela usava todo seu poder
para manter aquela barreira e dentro dela, junto
com seis bolhas de luz coloridas, estava Nikella.

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Capítulo 16

Nikella estava com os braços estendidos


sobre dois cristais longos, que mais pareciam duas
lanças apontando para o teto, das palmas de suas
mãos, sangue escorria sobre aqueles cristais e seu
poder era transferido para dentro deles, aquilo fez
meu sangue congelar.
Corri o mais rápido que pude e alcancei a
barreira, mas quando a toquei, fui repelido com um
choque violento, era uma barreira espiritual. No
chão, em volta daquele altar, havia duas mandalas
grandes, uma dentro da outra, uma mandala de
invocação e a outra de liberação, Nike não parecia
me ver, seus olhos estavam desfocados e as marcas
do selo sombrio desapareciam aos poucos de seu
corpo.
— Nike! ― berrei batendo na barreira, mas
ela não reagiu. O som de metal se chocando
chamou minha atenção para o que realmente estava

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acontecendo em volta. Higarath estava ali, de pé


lutando contra Susano, Kuran e Annie. Os três
estavam feridos, e agora Ewren assumia a luta
também. Higarath urrava e girava a espada
violentamente, tentando abrir caminho até a
barreira.
Quando ele me viu ali, seu olhar se tornou
ainda mais animalesco e ele virou sombras e
apareceu atrás de mim, girando a espada para me
golpear, ergui Sielem e impedi seu primeiro ataque,
mas ele foi mais rápido e começou a brandir a
espada numa velocidade assombrosa, atacando
cada vez mais rápido, tentando quebrar meu
bloqueio. Seu alvo era a menina que mantinha a
barreira de pé, percebendo isso, lancei uma barreira
em volta dela também.
— Saiam de meu caminho! ― ele urrou
fazendo as sombras se espalharem e criarem formas
físicas para nos atacar, ouvi um grito de dor e
defendi seus outros ataques, Higarath brandia a
espada violentamente contra mim, porém de forma
desesperada demais, e isso estava lhe custado
muito, pois os meus ataques o acertavam, mas era

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como se não estivesse acertando nada além de


sombras e fumaça. Olhei de soslaio para o lado de
onde o som havia vindo e senti meu estômago
revirar. Susano estava segurando Annie pela
cintura, ela tinha um rasgo no peito feito pelas
garras das criaturas malignas, ela estava banhada
em sangue e fazia força para tentar respirar.
As sombras os estavam encurralando, eles
seriam mortos por elas se eu não fizesse algo
imediatamente, porém um pulso de energia fez as
sombras se desmancharem. Olhei para a barreira ao
mesmo tempo que Higarath, ele rosnou ao ver o
que tinha nas mãos ensanguentadas de Nike. O
Livro das Sombras estava aberto e manchado com
seu sangue, não sabia ao certo o que ela havia feito,
mas havia conseguido paralisar as sombras que
Higarath mandou contra eles.
— Eu vou rasgar você ao meio! ― gritou ele
avançando sobre a barreira, mas eu girei Sielem e o
acertei no meio do peito, jogando-o contra uma
parede de cristais, que soltaram-se da parede e
caíram sobre ele. Fui em sua direção com o
machado nas mãos, talvez essa fosse a chance de

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matá-lo, Higarath se levantou em meio aos cristais,


puxando as sombras novamente para ele, os olhos
castanhos vidrados, olhando apenas a barreira atrás
de mim, como se não representássemos ameaça
alguma a ele.
Os demônios de sombras voltaram e
começaram a se mover lentamente, ainda estavam
sob influência do poder que Nike lançou sobre eles,
mas sentia aos poucos aquela energia deixando-a,
sendo consumida por aqueles cristais conforme seu
sangue era absorvido para dentro deles. Aquilo não
estava certo! Se ela continuasse assim...
— Nike! ― gritei, ela abriu os olhos em
minha direção e deu um meio sorriso. Higarath
grunhiu e as sombras se libertaram daquele selo, e
recomeçaram a atacar. Dessa vez, duas vieram
contra mim com as longas garras negras tentando
me rasgar. Notei que a arma de Ewren não surtia
nenhum efeito contra elas, mas o vitrino sim.
— Ewren! As espadas de Annie! ― gritei,
Kuran estava de pé ao lado dele, usando a própria
espada de vitrino para mantê-los longe enquanto
Susano curava Annie.

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As sombras eram muitas, elas nos cercaram e


começaram a atacar novamente cada vez mais
rápido, uma delas me acertou, as garras abriram
cortes profundos em meu ombro direito, a dor me
consumiu, os ataques daqueles seres de trevas eram
mais fortes e faziam parecer que a dor do aço era
cosquinha comparado aquelas garras.
Ewren e Kuran também estavam tendo
dificuldade em mantê-las longe. Estávamos
perdendo, estávamos todos prestes a morrer, sentia
os cortes daquelas garras por todo meu corpo e não
conseguia me mover rápido o suficiente. Higarath
estava desmanchando a barreira que fiz ao redor da
jovem.
— Ei! Pedaço de merda! ― Asahi apareceu
na entrada da caverna com uma mulher, uma
salamandra que não conhecia e com Misty, a
mestra de sobrevivência da ACV. As sombras se
espalharam novamente, indo até elas, mas Asahi
deu um grito e girou uma lança feita de fogo, as
sombras que estavam em volta delas foram
consumidas por aquele fogo verde e brilhante.
— Vamos Kuran! ― berrou ela para ele,

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Kuran assentiu e transformou-se em brasas, ele


esticou a mão na direção dela e absorveu aquelas
chamas verdes, logo em seguida, explodiu num
clarão consumindo todas as criaturas de sombras,
mas sequer aqueceram a caverna.
Higarath deu uma gargalhada zombeteira e
moveu as mãos, conjurando as sombras novamente.
— Posso fazer isso quantas vezes quiser! ―
disse ele fazendo as sombras tomarem forma
novamente.
— Pode, mas será que vai ter tempo de
quebrar a barreira antes que as Almas se soltem? ―
Misty perguntou avançando sobre ele com aquela
estranha arma redonda, ela se transformou em ar e
se espalhou ao redor dele, prendendo-o junto com
as sombras tempo suficiente para que outra chama
verde irrompesse pela sala.
— Por que está fazendo isso? Desista de uma
vez, Higarath! Você nunca tomará os mundos dela!
— gritei desviando sua atenção por um momento,
ele fez uma careta e respondeu:
— Eu venho tentando ganhar esses mundos
há muito mais tempo do que você imagina! Sabe

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quem manipulou a mente de Fairin? Quem mexeu


com a cabeça de Veruza para que ela lançasse a
maldição sobre os Arbarus? ― Ele deu uma
gargalhada medonha e se livrou de Misty, que
cambaleou para o lado retomando o fôlego.
— Por que...
— Porque eu poderia saltar de corpo, eu
dominaria o corpo e a mente dele e seria o senhor
dos Doze Mundos! O lacre de vocês teria sido
facilmente rompido com o poder dele se Fairin
tivesse conseguido o poder daquela última menina.
— Higarath olhou de soslaio para Ewren. ― Ele foi
o primeiro a estragar meus planos! Você, elfo, vai
ser o primeiro que eu vou matar! ― Higarath
apontou a espada para Ewren, mas novamente
Misty o atacou, impedindo-o de atacar o rei de
Amantia.
Meus ferimentos estavam se curando
lentamente, talvez esse fosse o poder daquelas
sombras, ou talvez fosse apenas resultado da minha
idade.
Algo brilhou dentro da barreira e ela se
desfez no exato momento que as esferas coloridas

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de luz explodiram e desapareceram diante de


nossos olhos.
As Almas Elementais haviam sido soltas.

Higarath urrou e atacou Misty, jogando-a em


cima de Asahi, a outra salamandra o atacou,
entrando numa luta corporal feroz com ele,
Higarath estava furioso, ele se virou na direção de
Nike que estava ajoelhada e coberta de sangue,
Kuran também entrou em seu caminho ajudando a
salamandra que ainda tentava impedi-lo. Fui na
direção dela, mas parei no meio do caminho em
choque. Ela tremia violentamente e seus olhos
estavam no chão, ela deitou sobre o piso de pedra
daquele altar e respirou fundo, então as marcas
negras em seu corpo apagaram e desapareceram e
ela parou de respirar.

Meu mundo havia parado ali. Tudo em volta


não passava de um borrão, de sombras, silêncio e
de escuridão.
E de novo aquilo se repetiu, só podia ser
algum castigo, eu estava tão perto e não pude

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impedi-la de morrer. Andei até o corpo no chão e o


toquei. Era real, ela era real e havia partido
também. Ewren urrou fazendo as paredes daquela
caverna tremerem, mas eu o ignorei.
— Caalin! ― gritou Susano chamando
minha atenção. ― Sinta a ligação! ― Aquilo não
fazia sentido algum para mim. Ele ainda segurava
Annie no canto da caverna, ainda tentava curá-la e
ela estava horrível, em uma poça de sangue escuro.
Higarath deu uma gargalhada, livrando-se dos dois
Salamandras que o atacavam e se virou para mim.
— Alguns têm o castigo que merecem! ―
Ele zombou pegando as espadas novamente.
Avancei para cima dele sem pensar duas vezes, não
sentia mais a dor daquelas feridas que ainda não
haviam cicatrizado completamente, a dor em meu
peito me consumia completamente e não me
importava se morresse agora, ia levá-lo comigo.
Girei Sielem em punho, um presente dela, o
gêmeo de sua Siferath. Golpeei Higarath com toda
minha força, suas espadas partiram e não me
importei quando as sombras brotaram novamente e
avançaram para cima de mim. Eu só queria destruí-

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lo, me vingar de tudo, por tudo, mas principalmente


pela gota de luz que ele havia tomado de mim.
Higarath se esquivou, Sielem cravou no chão onde
segundos antes a cabeça dele estivera. Os outros ao
meu redor ainda lutavam com as sombras, Annie
ainda estava desacordada no chão da caverna
protegida por Susano, mas nada importava para
mim.
Higarath brandiu outra espada num
movimento rápido e preciso, um movimento que
cortaria minha cabeça, mas ergui o machado e
impedi aquele golpe, puxando o machado para
cima e o desarmando. Ele ainda tinha as sombras,
ainda tinha seus poderes, mas eu tinha um
machado. Usei a ponta de lança de Sielem para
rasgá-lo no meio, porém eram apenas sombras, ele
se espalhou por toda a caverna, aquela massa negra
e densa sufocando-nos, tentando acabar conosco de
uma vez.
Asahi estava ao lado do corpo de Nikella,
ainda segurando a lança de fogo que se apagava aos
poucos. Talvez ela ainda não tivesse percebido que
não havia mais tempo, que não havia mais o que

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proteger ali.
— As Almas eram apenas um poder a mais!
Eu ainda posso matar os guardiões e tomar seus
poderes! Ainda posso dominar os mundos com as
trevas e provar para Ela que nem Ela e nem vocês
nunca serão páreo para mim! Ela ainda vai me
pagar pelo que me tirou! ― Higarath gritou, e
aquilo não fazia sentido algum. Ele se manifestou
em forma física novamente e aproximou das duas
para pegar o Livro das Sombras aos pés de Asahi,
ela estava paralisada, com medo dele.
Ele ergueu a espada, Ewren estava preso
pelas sombras assim como os outros, olhando em
choque a espada de Higarath descer em direção à
sua filha. Nós não nos soltaríamos a tempo, não
conseguiríamos ajudá-la. Por mais que lutasse, não
conseguia me soltar daquela escuridão.
— Asahi... ― A voz dele ficou engasgada.
A espada desceu rápida e cruel, fechei os
olhos, não queria ver aquilo, não queria ver o
quanto fui fraco novamente contra ele. O silêncio
havia tomado conta da caverna. Mas o que era para
ser o som de pele e ossos sendo partidos foi o som

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de uma explosão. A Alma do fogo, um fogo negro


e brilhante tomou conta daquela caverna,
queimando, consumindo tudo, o altar, as sombras,
os cristais.
Tudo, menos nós.
O fogo não nos queimava, mas queimava
Higarath, ele gritou, urrou e se debateu tentando se
livrar das chamas que o consumiam. Olhei em
volta, procurando por qualquer sinal de onde
poderiam estar vindo aquelas chamas, até ver
Kuran de pé em frente à Asahi com a palma
erguida para Higarath, as marcas de Kuran que
antes eram folhas vermelhas, haviam se tornado
pequenas chamas azuis ao longo do braço direito,
elas subiam em espiral até seu pescoço e em sua
testa brilhava uma pequena chama azul, como a
chama de uma vela.
Só então notei algo em mim, uma luz quente
e branca pulsando dentro de mim, como se me
cumprimentasse, dissesse um “Olá”!
Pequenos raios subiam em meu braço
esquerdo até meu ombro.
A Alma dos raios havia voltado para mim!

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Higarath fez outra onda de magia negra nos


atirar para trás, ele deu um urro e desapareceu,
subindo numa coluna negra em espiral para o
centro da montanha.
Parecia que uma calmaria havia tomado
conta do ambiente, um silêncio sobrenatural
enquanto todos se olhavam, tendo a certeza que
todos estavam bem, todos menos...
Me ergui do chão e andei até ela, Asahi e
Kuran estavam sentados no chão ao lado do corpo
segurando o Livro das Sombras, os dois se olhavam
de maneira estranha, mas os ignorei, toquei em
Nikella sem querer acreditar que aquilo era real.
Quando a tirei do chão, o corpo se desmanchou
numa pequena nuvem de cinzas. Senti a Alma dos
raios tomando forma, pronta para explodir para fora
de mim, mas uma mão tocou meu ombro.
— Caalin. ― Era Susano novamente, Annie
estava de pé ao lado dele, respirando com
dificuldade, toda suja de sangue, mas sorrindo. ―
Vou na frente, encontro vocês no Castelo de Cristal
mais tarde! ― disse ele para os outros apertando
meu ombro. Luz branca e clara nos envolveu.

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O frio fez meu corpo agradecer


silenciosamente a Susano, não importava para onde
ele tinha nos levado, mas o frio me ajudou a
respirar novamente.
— Onde está me levando? ― perguntei
olhando-o de canto de olho, não entendia a
calmaria que senti ao pisar naquele lugar, não
queria aquilo, queria apenas ficar só.
— Você já vai ver! Mandei que sentisse a
ligação, mas você me ignorou! ― Ele bufou o olhei
com estranheza, mas andei com ele mesmo assim.
Entramos em um túnel de gelo, dentro dele
havia um grande salão esculpido na neve e grandes
portas de gelo.
— Que lugar é esse?
— A fortaleza de Áries, em Lastar ―
explicou ele abrindo as portas, não conseguia
prestar atenção nos detalhes à minha volta, queria
apenas sair logo dali, mas algo lá dentro chamava
por mim.
Susano me levou até uma escadaria, por um
corredor longo e finalmente até uma porta de
madeira pintada de branco. Dentro daquele quarto

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havia uma malvarmo baixinha, Áries, ela estava


segurando outra mulher sentada em uma cama,
minha garganta oscilou e meus olhos queimaram e
não acreditaram no que viram.
Ela ainda estava naquele vestido de renda e
seda azul-safira a pele agora estava de um branco
brilhante e as garras e presas também estavam lá,
mas os olhos verdes e os cabelos negros longos
caindo em volta da cintura ainda continuavam os
mesmos.
— Desculpe por não ter ido até lá
novamente! Perdi meus poderes de maga, não pude
teleportar! ― Ela falou torcendo o bico como
sempre fazia. Andei até ela e a abracei, apertei com
força, com medo que ela pudesse desaparecer, que
aquilo fosse apenas um sonho. Susano e Áries
saíram da sala, deixando-nos a sós.
— Como...? ― Ela segurou meu rosto nas
mãos e me beijou de forma suave, me
cumprimentando.
— Desculpe! ― disse ela dando um sorriso
tímido e tocando minha testa com a sua. Fechei os
olhos e esperei ver através de suas memórias.

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“Abri os olhos lentamente, já havia


anoitecido de verdade quando chegamos a Vintro,
estávamos no mesmo castelo de pedra em que
estive mais cedo com vovô.
— Onde estamos, exatamente? ― perguntei
olhando a sala.
— Na fortaleza de Esperas, em Vintro ―
disse Susano sentando em um sofá no centro da
sala em que estávamos, só então percebi que era
uma biblioteca e arqueei as sobrancelhas. ―
Desculpe, fiquei pensando no livro quando usei o
teleporte! ― Ele ainda me encarava preocupado.
— Descobri o motivo de Ayrana não ter
devolvido as Almas a Gaia. Ela exigiu como
pagamento pelo “empréstimo” de seu poder, todo
o poder de Ayrana, incluindo sua imortalidade
élfica. ― Susano se inclinou para frente franzindo
o cenho.
— Então, apenas os que têm as Almas, os
atuais guardiões delas as podem devolver...
— Exatamente.
— Mas o pagamento ainda é o mesmo, o que
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significa que quem as devolver vai... ― Eu assenti


antes que ele concluísse a frase.
— Não se atreva, Nike! ― Susano soltou um
rosnado medonho, desmanchando aquela máscara
pacífica que ele sempre vestia.
— Muitos outros vão morrer se não
devolvermos as Almas, Higarath tem a Alma das
águas e quase roubou a dos raios também! Não dá
para arriscar! ― retruquei.
— Você não vai se sacrificar assim! ― disse
ele andando até mim e prendendo minhas mãos.
— Não, não vou! ― Um sorriso se formou
em meu rosto. ― Asahi me deu uma ideia agora a
pouco! Fairin fez um segundo corpo para ele e
tirou dele todos os sentimentos bons, ele tirou uma
parte de seu corpo e criou outra vida com aquilo
para se livrar de uma parte que ele achava inútil.
— Ele era um monstro nojento!
— Sim ele era! Mas isso vai ser útil agora!
— Aonde você quer chegar? ― Ele
semicerrou os olhos.
— Preciso que você me ajude a separar
minha forma malvarmo da humana! ― Susano
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sacudiu a cabeça negativamente.


— É loucura!
— Não é! Eu dividiria os poderes também,
separaria o Yinemí e a magia negra! Viraria
malvarmo, definitivamente, mas a parte humana
continuaria com os poderes de maga negra. Assim
sacrificaria os poderes de maga negra, deixando
de ser uma e me livraria das sombras de uma só
vez!
— E quem garante que sua parte humana vai
te obedecer? ― Ele cruzou os braços e me
encarou.
— Aí é que está! Eu vou deixar o corpo de
malvarmo adormecido dentro do Castelo de
Cristal, você vai me levar até lá, e vou ficar no
corpo humano!
— Da mesma forma que Caalin controla
outros seres, como ele toma seus corpos! ―
Susano sorriu e me abraçou. ― Você é um gênio!
— disse beijando o topo de minha cabeça.
— Eu sei! ― Dei uma gargalhada.
— E quanto ao Livro das Sombras? Ele não
pode ser destruído com magia!
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— Podemos sim! O Livro das Sombras vai


desmanchar se o jogarmos em Holon!
— Isso pode dar certo! Vamos! ― Ele
agarrou meu braço e me guiou até uma escada
escondida em uma porta no final da sala.
Descemos as escadas em espiral até uma sala
escura com cheiro metálico e de produtos químicos
fortes. Susano bateu as mãos e uma luz forte e
branca acendeu no centro da sala, iluminando uma
espécie de laboratório de alquimia.
Nas paredes haviam papéis colados com
anotações sobre as plantas e desenhos detalhados.
Observei boquiaberta a quantidade de plantas e
ervas em estufas e redomas de vidro decorando a
sala, a grande maioria eram plantas extremamente
venenosas que nem mesmo Lola tinha em suas
estufas na ACV por causa da periculosidade.
— Deveria me preocupar com você me
trazendo aqui? ― perguntei olhando
distraidamente as pequenas plantas letais nas
redomas. Algumas com o potencial de matar ao
simples toque. Susano revirou os olhos e começou
a liberar espaço em cima de uma mesa longa e

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branca de pedra.
— Posso te sufocar até a morte com a Alma
do vento e você poderia me transformar em farelo
com a Alma do gelo, então, não, não precisa se
preocupar! ― retrucou tirando cuidadosamente
uma pequena plantinha vermelha da beirada da
mesa e a colocando bem longe de nós.
— Griveriana ― explicou, notando meu
olhar curioso sobre a plantinha, suas folhas eram
longas e pareciam ter folhinhas arroxeadas
brotando delas, como folhas sobre folhas.
— O que isso faz? ― Ele deu um sorriso sem
graça e se afastou limpando as mãos com álcool.
— É um paralisante tão potente, que com um
simples toque naquelas folhas, você perde o tato.
Uma gota do extrato dessa planta é suficiente para
desligar o sistema nervoso completamente e matar.
— Dei um passo para longe dela, como se ela
pudesse saltar de dentro da redoma e me morder.
Susano limpou a mesa, tirando qualquer vestígio
de veneno que qualquer uma daquelas plantas
poderiam ter deixado, então, se apoiou na mesa e
olhou para mim.

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— Como vamos fazer isso? ― Susano olhou


para mim, a boca pressionada numa linha fina.
— Fairin criou um segundo corpo como um
summon, mas usando como base as emoções que
ele queria descartar, depois colocou dentro do
summon um pedaço dele com uma parte de sua
alma, assim Guinn criou vida ― expliquei ― eles
eram duas consciências separadas, mas podiam
compartilhar memórias.
— Então, você tem que criar um summon e
expulsar sua parte humana. Acho que vai precisar
estar na forma malvarmo para fazer isso! ―
comentou.
Então, o fiz, concentrei-me na transformação
em malvarmo, sentido meu corpo mudar, tudo ao
meu redor continuou igual, mas a minha percepção
ficou completamente diferente. Os cheiros
acentuados e vivos, as cores mais vívidas e
brilhantes. Estava menos de um metro de Susano e
podia sentir seu cheiro perfeitamente, sua essência
e algo como sândalo e grama recém cortada.
— Você é híbrido? ― perguntei abrindo os
olhos e encarando-o, podia ver os raios

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amarelados do centro de seus olhos, ele deu um


sorriso contido.
— Humano e elfo. ― Ele sorriu. ― Nenhum
de nós é humano puro. Karin também é meio elfa.
— Interessante. ― Ele sacudiu a cabeça
olhando-me novamente.
— Malvarmos são... estranhos ― disse ele
erguendo uma sobrancelha.
— Hã? Por quê? ― Cruzei os braços e o
encarei.
— Sei lá, são iguais aos Elfos na aparência,
porém, são predadores, mais fortes, mais ágeis e
com essa aparência... ― Ele semicerrou os olhos.
— Ficam parecendo dóceis, acho que por isso
tenho mais medo deles do que dos outros. ― Eu dei
uma gargalhada e me aproximei estalando os
dedos com as garras azuladas a mostra. Susano
deu um passo para trás, só então percebi que ele
estava falando sério, ele realmente temia os
Malvarmos.
— Não acho eles tão assustadores.
— Isso tem algo a ver com Caalin? ― Senti
meu rosto esquentar.
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— Talvez...
— Bom, vamos logo com isso, estou com
fome! ― Ele resmungou soltando a longa trança
que Annie havia feito e cortando uma pequena
mecha da parte de baixo do cabelo.
— O que vai fazer?
— Você precisa da essência para fazer um
summon! ― disse ele me mostrando a mecha de
cabelo prateada, que depois de cortada voltou a
ficar preta. Ele amarrou o cabelo e me entregou.
— Agora, faça como eu te ensinei nos treinamentos
com Siorin!
— Tá! ― Me concentrei o máximo que pude
imaginando aquela mecha criando uma forma
física, mas por mais que eu me esforçasse, por mais
que tentasse fazer o summon aparecer, nada saía,
as sombras apenas se moviam como se o outro
corpo fosse tomar forma, porém desaparecia.
Quase meia hora depois ainda estava
tentando conjurar um summon, mas não conseguia.
— Nike, tente usar sua magia para outra
coisa! ― Tentei fazer os cadernos de anotações
flutuarem pela sala, mas foi em vão, neguei com a

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cabeça. Susano se aproximou de mim e tocou


minha testa com a palma das mãos, o selo sombrio
apareceu em meus braços, mas dessa vez estava
num tom cinza claro, quase da cor da minha pele
malvarmo.
— Isso é normal? ― perguntei, Susano
estava me olhando assustado quando balançou a
cabeça negativamente.
— Não, não é! ― Ele franziu o cenho. ―
Talvez o poder tenha mais autonomia do que
imaginamos, talvez ele esteja tentando não ser
destruído... Vamos, deixa eu te ajudar com isso. ―
Ele passou para trás de mim e segurou minhas
mãos, como se estivesse transferindo sua energia
para mim, então suas marcas acenderam.
— E agora?
— Faça o summon. ― Obedeci
concentrando-me na parte humana que queria
expulsar do corpo malvarmo, então, aos poucos
aquela mecha de cabelo ondulou e tomou forma e
finalmente Eu estava diante de mim! Era estranho
olhar para eu mesma, desviei os olhos do rosto
inexpressivo de olhos apagados e só então percebi

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que ela, eu, estava sem roupas. Susano estalou os


dedos, e o summon ficou vestido com uma túnica
cinza e calça preta na altura das canelas, ele
estava com o rosto corado, e eu deveria estar
também, porém percebi algo errado em meu corpo.
Arquejei tentando respirar normalmente, mas
minha garganta parecia estar queimando, meu
corpo inteiro doía, tudo parecia forte demais, as
luzes, os cheiros e os sons, até meus movimentos
pareciam errados, rápidos demais e brutos.
— Calma, Nike! ― Susano prendeu meus
braços, mas soltar-me de seu aperto foi fácil com
afastar uma criança, ele ergueu as mãos, e se
afastou um passo. ― Nikella, se acalme! ― disse
ele se aproximando de vagar.
— O que está acontecendo? ― Minha voz
parecia diferente, mais alta e ameaçadora.
— Você tirou sua parte humana! Não é mais
híbrida! Está num corpo seu, mas totalmente
malvarmo! ― Ele se aproximou devagar e pegou
minha mão para que eu pudesse sentir, era tudo
diferente demais! Até o toque de sua mão parecia
diferente, quente demais.

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— Humanos do gelo uma ova! ― reclamei


tentando manter a calma, a normalidade. ―
Parece que estou habitando o corpo de uma besta
selvagem! ― Grunhi e me assustei com meu
próprio rosnado. Susano gargalhou, encerrou o
espaço entre nós e me deu um abraço.
— Você sempre foi uma besta selvagem,
Nike, mesmo humana! Só que agora seu corpo faz
jus à sua personalidade! ― Bufei e o empurrei,
rindo também.
— O que faço agora? Apenas... transfiro a
mente? ― perguntei.
— Não, espere! ― Susano passou os olhos
pelo summon, meu corpo humano de pé em nossa
frente, então ele puxou o braço do summon e
pressionou a palma até que aparecesse um
pequeno símbolo vermelho, uma marca pequena de
um círculo com um olho dentro. Ele pegou meu
braço também e o pressionou, aquela marca
queimou como brasa quando apareceu em minha
pele branca.
— O que é isso? ― perguntei olhando as
marcas gêmeas.

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— Uma ligação entre vocês, na hora em que


o corpo humano começar a morrer,
automaticamente a alma voltará ao corpo original,
pois corre o risco de sua alma aceitar o summon
como o original e você ir para Mogyin ao invés de
voltar ao corpo malvarmo ― explicou. ― Agora
sim, pode transferir a mente! ― Ele deu um passo
para trás, me aproximei do summon devagar e
peguei seu rosto, meu rosto nas mãos, foi uma
tristeza perceber que nem como malvarmo eu fiquei
maior.
Toquei a minha testa e deixei que a energia
passasse de mim para ela, a sensação foi a mesma
que se esparramar em uma cama macia, tomar
aquele corpo, esticar a mente para que o tomasse
por completo. E quando abri os olhos, tomei um
susto e quase derrubei a mesa atrás de mim. Estava
olhando para meu corpo malvarmo, as presas
longas e as orelhas pontudas, as garras azuladas,
extremamente afiadas e os cabelos prateados, o
corpo branco cheio de curvas dentro daquele
maldito vestido azul. Agora entendia porque Caalin
queria arrancá-lo. Era lindo, eu estava linda, mas

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a renda daquele vestido coçava, era quente e me


fazia parecer...
— Parece uma rainha! ― disse Susano
segurando o corpo malvarmo desacordado.
— Parece um demônio sanguinário, isso
sim! ― retruquei segurando minhas mãos e
brincando com as garras. Susano riu e assentiu.
— Isso também! ― Mas toda diversão havia
sumido de seu rosto quando ele pegou o corpo
vazio no colo. ― Vou deixá-la em Lastar com
Sirius e Áries, seu corpo malvarmo não está... em
condições de ficar no Castelo de Cristal.
— Por quê? ― Franzi o cenho para ele.
— Lá é mais seguro e frio, tenho certeza que
será melhor! Agora fique quietinha aí que eu já
volto! ― Dizendo isso, ele sumiu em uma coluna
de luz dourada.

Só quando fiquei sozinha que pude perceber


o real poder das sombras, quase caí de joelhos ao
sentir a pressão daquele poder sombrio me
rodeando, tomando forma dentro de mim, sem o
Yinemí para controlá-lo, ele circulava livre em
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mim. “Não precisa ficar com medo, você nos


aceitou, lembra? ” A voz suave sussurrou em
minha mente e aquela escuridão que começou a me
circular diminuiu até tudo ficar calmo novamente,
Meu coração ainda batia violentamente
contra as costelas, mas me forcei a ficar tranquila,
já que a escuridão havia cessado e eu não iria me
transformar em uma besta das trevas, pelo menos
não agora. Subi as escadas em espiral e voltei para
a pequena biblioteca, andei até a janela e fiquei
observando o céu noturno. A lua das fadas também
brilhava em Amantia hoje, porém o céu aqui era
mais escuro e as estrelas brilhavam mais
intensamente do que em Ciartes e Vegahn. “Fiquei
me perguntando se estaria tudo bem por lá e o quê
Caalin estaria fazendo agora. ”
Parecia algo bobo, mas fiquei feliz por ela
estar pensando em mim, então voltei à memória:
“Um brilho atrás de mim me fez ter a certeza
de que Susano havia voltado, e pelo cheiro, voltado
com comida. Virei para falar com ele, mas não era
Susano e sim Annie, Palloma e Kuran.
— O que estão fazendo aqui? ― perguntei.

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Palloma veio até o sofá onde eu estava jogada.


— Eu trouxe comida! ― Palloma estendeu a
tigela para mim, o cheiro fez meu estômago roncar,
não havia comido nada o dia inteiro.
— O que fez com o vestido? ― Annie estava
olhando feio para mim, para a roupa simples que
eu estava vestindo.
— Está no meu corpo verdadeiro. ― Falei
com um sorriso tímido mostrando a ela o símbolo
que Susano havia deixado no meu braço. Kuran
não olhava para mim, estava olhando pela janela,
para o alto da montanha. Annie sentou na poltrona
próxima à janela e ficou olhando para fora
também.
— E Susano? ― Annie perguntou quando
acabei de comer.
— Foi levar meu corpo para Lastar. ― Ela
arqueou as sobrancelhas e assentiu.
— Soubemos o que aconteceu em Vegahn,
Ewren nos contou sobre o rei, sobre Caalin. ― A
voz de Kuran saiu engasgada. ― E sobre quem
você é e o que fez para evitar que Ciartes fosse
atacada...

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— Agora há pouco chegou uma notícia de


Vegahn. Os mensageiros estão indo notificar a
todos os soberanos dos Doze Mundos que o
verdadeiro Rei de Vegahn retornou. ― Palloma
explicou passando os braços em volta de meus
ombros e afagando minhas costas carinhosamente.
— O que aconteceu quando foram atrás dos
outros guardiões nos mundos? ― perguntei
mudando de assunto. Palloma empalideceu e
pigarreou.
— Encontramos a maioria dos descendentes
de Ayrana, os outros Arbarus da Árvore! Mas a
maioria se recusou a lutar... ― Sua voz foi
sumindo aos poucos até se tornar um sussurro ―
Passamos por todos eles, todos os mundos. E eles
simplesmente nos ignoraram, muitos não tinham
acesso aos seus poderes. A guardiã da Alma da
terra era apenas uma criança, uma menininha
humana de nove anos...
— Vocês a trouxeram para cá? ― perguntei,
mas algo sombrio no olhar de Palloma fez a
comida que ela havia me trazido, se dissolver junto
com tudo dentro de mim.

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— Pouco depois que saímos da Terra,


sentimos uma presença maligna lá e voltamos
imediatamente. Higarath havia rasgado a garganta
da menininha para tomar a Alma da terra. ―
Palloma soluçou e começou a chorar, escondendo
o rosto em meu pescoço, meu corpo havia
congelado mesmo sem ter o Yinemí. ― Nós
pedimos para a mãe dela para nos deixar trazê-la,
mas ela se recusou, falou que éramos monstros e
afastou a menina da gente! O pior é que a menina
queria vir! ― Palloma contou com a voz trêmula e
chorosa.
— Quando foi isso? ― perguntei sentindo
meu corpo formigar com o nervoso.
— Semana passada.
— Então, agora ele tem duas Almas! ―
Engasguei com o nó que havia se formado em
minha garganta.
— Como assim, duas Almas? ― Foi Kuran
que perguntou, aproximando-se de mim,
queimando-me com o olhar. ― Ele tomou a Alma
do gelo de você?
— Claro que não! Mas tomou a Alma das

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águas de Hisana, a rainha de Pollo.


— Então, por que não sinto mais a Alma do
gelo em você? ― Ele perguntou, aproximando-se e
respirando fundo como se estivesse me farejando.
— Por que está humana também? ― Ele arqueou
as sobrancelhas e pegou meus braços, notando que
o vitrino também havia desaparecido. Puxei os
braços dele, poderia quebrar seus dentes ou lhe
dar um chute nas partes baixas, mas ele percebeu
minhas intenções malignas e as sombras mais
fortes ao nosso redor, então se afastou.
— Não escutou o que eu disse? Esse não é
meu corpo verdadeiro, é um summon que recebeu a
minha parte humana, meu corpo verdadeiro é
completamente malvarmo agora e está com a Alma
do gelo! ― expliquei calmamente, tentando fazer
as sombras cederem, era muito mais difícil mantê-
las sob controle agora.
— Está a salvo ― disse Susano aparecendo
numa torre de luz dourada ao meu lado, fazendo-
me quase pular do sofá.
— O que houve para você resolver fazer
isso? ― Kuran perguntou olhando de mim para

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Susano, da forma casual em que eu estava


encostada a ele.
— Descobri como libertar as Almas
Elementais, para que Higarath não as tome de nós,
assim as Almas serão liberadas e as duas que ele
tomou vão se libertar também!
— Porém, vamos perder esses poderes, não
é? ― Olhei incrédula para Kuran.
— Não podemos “perder” algo que não é
nosso, Kuran! ― retruquei rispidamente me
levantando do sofá, mas Susano fechou o punho em
volta de meu braço e balançou a cabeça
negativamente para mim.
— É melhor que façamos isso de uma vez! ―
disse Susano por fim, então explicou a eles o que
eu iria fazer para que as Almas se libertassem.
Ficaram todos em silêncio por um bom
tempo olhando para mim, Palloma me apertou
ainda mais contra ela e respirou fundo.
— Caalin sabe?
— Não, destruí o diário de Ayrana, de Yellen
— me corrigi ― antes que ele o lesse, ele nunca
teria me deixado vir para cá se soubesse como
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podemos soltá-las. Temos que andar logo, quando


eu começar o ritual, as Almas irão se agitar e
Higarath irá perceber nossos planos, então virá
atrás de nós! ― expliquei.
— Então, temos que ir até a Montanha Azul.
— Susano fez um sinal para que eu me levantasse.
— Vamos acabar com isso de uma vez, para que
você possa voltar ao seu corpo. ― Ele estava perto
demais, agindo de forma diferente, de um jeito que
me fez franzir o cenho.
— Algo errado? ― perguntei, Annie também
o olhava de forma estranha, com ciúmes, percebi.
— Nada. ― Ele deu um meio sorriso e foi
até a porta grande de madeira da biblioteca. ―
Vamos! ― Sem mais o que discutir o seguimos
para fora da biblioteca.
— É agora ou nunca!”

Quando a memória se desfez, abri os olhos e


a encarei, ela tinha um olhar suplicante, como se
repetisse “desculpas”.
— Não acredito que você fez isso... ― falei o
mais baixo que pude, tentando me acalmar, a
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mantive apertada em meus braços até que estivesse


certo que ela não desapareceria.
— Desculpe.
— Eu vou te castigar. ― A afastei um pouco
para poder encará-la, ela mordeu os lábios,
evitando um sorriso.
— Se me lembro bem, você estava me
devendo por não ter me contado que Kuran estava
vivo! ― Ela semicerrou os olhos. O que ela havia
feito era infinitamente mais grave, mais perigoso e
quase me enlouqueceu, mas ela havia pensado
direito e havia dado um jeito de se proteger.
— Tudo bem, estamos acertados, então! ―
disse beijando-a e passando a língua em sua boca.
— Mas ainda estou cismado com esse vestido azul!
— falei baixo ao seu ouvido, ela respirou fundo e
me apertou com força num abraço, parecia que
nada havia mudado nela, o cheiro ainda era o
mesmo, os olhos os mesmos, tudo exatamente
igual.
— As Almas voltaram, não foi? ― ela
perguntou num sussurro.
— Não sei por que, mas elas voltaram! ―

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respondi.
— Eu as ouvi. ― Me afastei um pouco para
encará-la. ― Quando as libertei, quando eu usei até
a última gota do poder para liberá-las, eu as ouvi
falando comigo. Elas disseram que nós éramos
mestres melhores, elas ficaram um bom tempo aqui
comigo e me perguntaram se eu achava que elas
deveriam voltar para nós, voltar aos guardiões que
elas serviam, ou se dissipar nos mundos. Eu pedi
que elas ficassem conosco pelo menos até nos
livrarmos de Higarath, mas que elas estariam livres
e não presas ao acordo que Ayrana fez com Gaia.
“Então, elas disseram que só as seis juntas
podem matá-lo e que vão ficar com seus guardiões
até que seus dias chegassem ao fim! ― Ela sorriu
para mim e beijou a marca dos raios em minha mão
direita. ― Só que a mestra da Alma da terra, a
menininha chamada Bia, morreu. Então, a Alma da
terra ficou comigo também! Mas eu só consigo
acessar o Yinemí, só consigo fazer ele responder a
mim, a Alma da terra não!
— Talvez porque você tenha afinidade
apenas com a Alma do gelo, já que você sempre a

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teve! ― respondi.
— Talvez!
— Se você não tivesse pedido as Almas para
ficarem conosco, Higarath teria matado Asahi. Mas
quando as Almas voltaram, Kuran foi o primeiro a
perceber e lançou as chamas negras contra
Higarath. ― Ela respirou fundo e pressionou meu
rosto com as mãos, todas as marcas, as feridas que
eu tinha pareceram congelar por um instante, então,
todas elas desapareceram, junto com o sangue
transparente que me cobria.
— O lado bom, é que agora podemos usá-las
para coisas boas também! ― Ela deu um sorriso,
fiquei admirando aquele sorriso lindo, aquelas
presas afiadas, uma humana que havia se tornado
malvarmo sem passar pela transformação
convencional.
— Onde está todo mundo? ― Ela perguntou
saindo da cama e indo em direção à porta, mas a
impedi.
— Os veremos depois! Eles foram para o
Castelo de Cristal, devem estar todos descansando
agora. ― A peguei no colo e fiz o teleporte nos

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levar de volta a Vegahn.

Nikella:

Minha barreira ainda estava em volta do


castelo, firme e forte, como se nunca tivesse
perdido meus poderes, então o teleporte nos deixou
do lado de fora do castelo. Entramos no castelo em
silêncio, sendo vistos apenas pelos guardas. Caalin
não disse nada, apenas me arrastou para dentro até
seu quarto. Não havia notado a coroa de prata em
sua cabeça até então, ela era em forma de flocos de
neve ligados uns aos outros por safiras em formato
de gotas.
— Nem estava aqui para ver Hobner e Ausiet
tremendo de medo da cabeça aos pés! ― disse ele
fechando a porta do quarto atrás de nós. Era um
prêmio estar ali novamente, ambos vivos.
— Isso eu teria gostado de ver! ― respondi.
— Lembro de ter dito que iria destruir esse
vestido essa noite! ― Então, soltou um baixo
gemido e me empurrou contra a parede de gelo,
meu corpo inteiro tremeu e incendiou com a
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pressão do seu corpo forte contra o meu, meu


coração batia tão rápido que estava prestes a sair
pelas costelas.
— Annie disse que você não podia fazer
isso! ― sussurrei passando a língua de leve em sua
orelha. Ele segurou minhas mãos apertadas sobre
minha cabeça e deslizou sua mão livre pelo meu
quadril, puxando o vestido para cima.
— Ela não está aqui para me impedir! ― Ele
sussurrou de volta, beijando de meu queixo até a
primeira linha de cristais da alça do vestido e
soltando-a.
— Ela vai ficar muito brava comigo por ter
deixado você fazer isso! ― Caalin me encarou, os
olhos faiscando quando um sorriso travesso
apareceu em seus lábios.
— Então, você quer que eu faça isso, não é?
— Sua voz fez algo se revirar inquieto dentro de
mim, ele mordeu minha orelha de leve com aquelas
presas afiadas, meu sangue fervia. Ele pressionou
os lábios contra minha garganta e passou a língua
em meu pescoço, um baixo gemido escapou de
meus lábios quando ele moveu os dedos por entre

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minhas pernas, deslizando-os suavemente.


— Caalin...
— Eu quero que você peça, com jeitinho! ―
disse ele contra meus lábios, estava quase
encostando sua boca na minha, fazendo-me perder
completamente o controle. Ele soltou minhas mãos
e roçou o nó do indicador sobre meu seio enquanto
movia os dedos para dentro de mim, fazendo
minhas pernas ficarem frouxas e se abrirem ainda
mais. Abri a boca para ele, Caalin sorriu contra
meus lábios e passou sua língua suavemente na
minha, mordendo meu lábio inferior.
Duas pulseiras de energia apareceram ao
redor de meus pulsos e ergueram meus braços,
mantendo-me de pé contra aquela parede fria, num
movimento rápido, Caalin rasgou meu vestido,
espalhando retalhos de seda e renda pelo quarto,
deixando-me apenas com a calcinha de renda preta
que eu usava. Dei uma gargalhada divertida
observando aquilo.
— Agora, definitivamente Annie vai me
matar! ― Caalin riu também, mordendo meu
pescoço e acariciando meu corpo com as mãos

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quentes, ele me encarou com aqueles olhos azuis


brilhantes. Todo meu corpo clamava por ele, pelo
seu toque, pela sua boca.
— Agora já era! ― Um sorriso perverso
apareceu em seu rosto, então ele se ajoelhou diante
de mim e colocou minhas pernas sobre seus
ombros, traçando uma linha de beijos pela parte
interior de minhas coxas. Não conseguia fazer
minha respiração normalizar, não conseguia fazer
meu corpo parar de tremer ou minha voz sair.
Caalin rasgou minha calcinha com as garras, quase
gritei com o prazer quando ele me lambeu,
impulsionando a língua para dentro de mim em
movimentos rápidos e suaves, dois dedos ainda
estavam dentro de mim. Eu gemia e tremia tomada
por ondas de prazer. Então, ele parou e me encarou,
olhando-me de baixo.
— Caalin, por favor! ― pedi, mas ele não me
soltou, não até que meu corpo inteiro tremesse,
incendiasse com sua boca em mim. Ele me soltou e
eu avancei sobre ele prendendo-o com minhas
pernas e enrolando meus dedos em seus longos
cabelos prateados, aproveitando a sensação de sua

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língua em minha boca, do seu corpo quente e da


pele macia roçando contra a minha, num rápido
movimento ele me girou, prendendo-me ao chão.
— Hoje não! ― disse ele sorrindo,
mordendo os bicos dos meus seios e passando a
língua sobre eles.
— Caalin... ― gemi alto quando ele se
apoiou nos cotovelos e me penetrou, devagar, para
que eu saboreasse cada centímetro dentro de mim.
Movi os quadris no ritmo de suas investidas, ele riu
e tomou minha boca, enrolando nossas línguas e
enterrando suas garras em meus quadris, forçando
cada vez mais meu corpo contra o seu. Alcancei o
prazer novamente com seu nome nos lábios ao
mesmo tempo que ele.

Caalin me tirou do chão, não me importei


com o gelo, ele não feria mais minha pele, era
agradável a sensação do frio agora. Ele me levou
até a cama e me deitou lá, apertando-me em seus
braços.
— Prometa Nike! Prometa que vai me avisar
desses planos com antecedência, prometa que não

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vai esconder mais nada de mim, nunca! ― pediu,


passando os dedos suavemente em minha barriga.
— Vou pensar! ― Ele grunhiu.
— É muito difícil lidar com vocês caçadores,
são todos terrivelmente teimosos!
— Pelo menos, eu sou a melhor! ― Caalin
riu e assentiu.
— É, é sim!
— E agora, vossa majestade? ― perguntei
mordendo os lábios.
— Agora? ― Ele semicerrou os olhos e
beijou a marca dos flocos de neve em meus braços.
— Agora você casa comigo, pois lembro-me de
você ter dito que iria me ajudar com Vegahn!
— Eu vou! ― respondi, beijando-o.
— Casa comigo?
— Caso! Mas, quero que me prometa algo
antes! ― pedi.
— Qualquer coisa.
— Quando isso tudo acabar, quando Higarath
for destruído, você vai passar o trono para Aliver e
nós dois vamos ir morar em Arcádia! ― pedi,
abraçando-o o mais apertado que pude.
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— Isso é fácil prometer! Não quero o trono


mesmo! ― Ele sorriu e me beijou novamente.
Fechei os olhos agradecendo silenciosamente por
aquele pedacinho de felicidade em meio a
escuridão, lembrando-me das palavras do mestre
Taures: “espero que fique bem, e que encontre
aquela felicidade que perdeu e que tanto busca, e
quando a encontrar, a segure com unhas e dentes!
Não dê a chance de ninguém tomar sua felicidade
de você! ”
“Prometo, mestre, ninguém vai tomar minha
felicidade de mim, não dessa vez! ” falei para mim
mesma antes de adormecer no calor dos braços da
minha felicidade.

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Extra ― Terra, era


congelada.

A neve caia pesada naquela manhã quando os


caçadores da vila armados com lanças longas feitas
de ossos, machados de pedra e arcos saíram para
encontrar comida, cada dia mais escassa e preciosa
para a pequena vila que foi erguida em um ponto
estratégico em meio as rochas escuras cercadas por
pinheiros desfolhados, onde a neve caía com menos
força.
As pequenas cabanas de pedras, cobertas de
fuligem que subia pelos buracos de fumaça, feitos
grosseiramente nas pedras mais finas no canto mais
alto das cabanas onde geralmente ficavam o
cercado de pedras para as fogueiras, o resto do
telhado era feito de chifres de animais enroscados
uns nos outros e galhos de abetos recobertos com e
couro e relva.
Éramos uma pequena comunidade, uma das

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poucas que ainda se mantinham naquela região. Os


outros, mais espertos ou tolos demais, migraram
para o sul para as proximidades das florestas vivas,
locais que só os mais tolos ousavam se aproximar.
Lendas diziam que naqueles lugares existem seres
místicos, diferentes de nós humanos, seres que
emanavam luz, mas que também podiam invocar as
sombras e a morte para aqueles que ousassem tirar
sua paz.
De tempos em tempos, as tribos se reuniam
afim de adentrar as florestas afim de caçar esses
seres e os destruir para que pudéssemos ter o
privilégio de caçar nas terras verdes, terras que
ainda tinham as memórias da primavera, onde os
animais eram fortes, bem alimentados e gordos,
onde podíamos caçar e nos fartar com suas carnes e
não tentar encontrar alguns animais magros e
famintos da neve e torcer para que eles
alimentassem toda a comunidade por pelo menos
um dia. Quando tínhamos alimento, comíamos até
as barrigas doerem, por medo de não encontrarmos
mais nada, por medo daquela ser a última refeição.
Mas da última vez que as tribos se uniram

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para adentrar as florestas, os seres estavam a nossa


espera. Foi um massacre, eu era jovem demais
quando aquilo aconteceu, não havia nem duas luas
que o primeiro sangue havia escorrido de mim,
marcando-me como mulher.
Esperei que meu pai o líder de nossa aldeia
voltasse para casa, mas tudo que restou dele foi o
colar de presas de lobo que um dos guerreiros fez
questão de trazer de volta, para que pudesse nomear
meu irmão o novo líder da aldeia. Ele já era um
homem feito, só precisava arrumar uma esposa para
ser nomeado o líder e assim o fez, mas como era o
homem da casa, nos levou para viver com ele em
sua nova mulher. Ela não gostava muito de mim
por ser mais bela que ela, pelo menos assim dizia
minha mãe.
Por ser o novo homem da casa, meu irmão
teria que escolher um marido para mim e isso era
algo que me fazia querer fugir, não queria me casar,
não queria gerar filhos e deixar que eles morressem
de fome, pois cada dia a neve ficava mais perigosa
e a comida mais escassa.
Algumas luas após o massacre dos povos das

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florestas, uma praga se abateu sobre os homens de


nossa aldeia, a maioria não podia nem se levantar
das peles de lobo, abatidos com febre e dores
terríveis que nem as curandeiras vindas de outras
tribos maiores podiam curar. A fome ficou ainda
mais terrível, com meu irmão doente e sua esposa
esperando um filho, me senti na obrigação de não
os deixar morrer de fome, então peguei a única
ferramenta que sabia usar, o machado, e parti para
o sul em busca de algo para alimentar minha
família.

**

Havia acabado de voltar da floresta


congelada com lenha e galhos para a fogueira, tirei
a neve presa sob as botas de couro de rena e corri
para dento da cabana, levando comigo a pilha de
lenha seca que havia escondido alguns dias atrás
em uma pequena clareira, afim de deixar a madeira
secar. Uneia, a esposa de meu irmão Gris, estava
sentada próxima ao fogo quase extinto da roda de
pedras no fundo da cabana, ela havia tirado o

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casaco de pele, e estava apenas com a blusa fina de


lã que havia recebido como presente de casamento.
Suas costelas podiam ser vistas mesmo por baixo
da blusa, sua pele que outrora foi corada e bela,
agora estava pálida e macilenta e seus olhos já não
brilhavam mais. Do outro lado da cabana, Gris
estava deitado em suas peles de dormir, vermelho
de tanta febre e minha mãe cuidava dele, colocando
tiras de couro molhadas em neve no rosto.
Aticei o fogo colocando lenha suficiente para
aquecer toda a cabana, tirei o alforje do ombro,
onde tinha uma boa quantidade de raízes
comestíveis e dois galos silvestres já depenados e
limpos, magros por causa do frio, mas poderia
prepará-los em um ensopado. Uma das curandeiras
de uma vila maior havia trazido um caldeirão de
pedra polida como presente de casamento para
Uneia e nos ensinado como usá-lo sobre o fogo
para cozinhar a carne, tornando-a mais macia e
fácil de comer. Coloquei o caldeirão pendurado no
espeto de osso sobre o fogo e o enchi com água,
depois usei as facas de caça de meu irmão para
picar os galos em pedaços menores e as raízes e os

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coloquei dentro do caldeirão. Uneia, abatida demais


para tentar me ajudar com os afazeres da casa, ela
alisava a barriga que começava a despontar,
olhando distraída para o nada.
— Trouxe comida. ― Falei para ver se ela se
animava.
— Hum. ― ela murmurou e continuou
olhando para o nada, sua expressão tristonha era
algo que me dava ainda mais certeza de que não me
casaria e não teria filhos tão cedo, ou talvez nunca.
— O que tem aí? ― Perguntou minha mãe
aproximando-se do fogo.
— Trouxe algo para comer, não é muito pois
as raposas ficam pilhando as minhas armadilhas. ―
Falei observando a água começando a esquentar no
caldeirão.
— Isso mal dá para alimentar a mim e a meu
marido. ― Resmungou Uneia olhando de lado o
caldeirão.
— Não é obrigação de Ren trazer comida
para dentro dessa cabana e mesmo assim ela faz,
então não ouse reclamar! ― Minha mãe já estava
irritada pela fome e pelo estado de saúde de meu

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irmão, não ligou para o olhar maldoso de Uneia


para ela e acariciou meus cabelos.
— Não se dê ao trabalho de responder, mãe,
já não ligo mais para as implicâncias de Uneia. ―
Murmurei baixinho sentando perto da porta, minha
mãe pegou um pente entre suas peles de dormir,
desfez minha trança e começou a pentear meus
cabelos.
— Já te contei que você é abençoada pelo
sol? ― Revirei os olhos quando ela perguntou isso,
desfazendo alguns nós em meus cabelos. Ela já
havia contado aquela história mais de cem vezes.
— Ainda não, mãe! ― Falei mesmo assim,
gostava de ouvi-la contar.
— Você nasceu no último dia do outono, na
hora em que as luzes de sol estavam desaparecendo
por trás das montanhas vivas. Então, a última luz
me iluminou na hora em que você estava nascendo
e te deixou com a marca do fogo! ― Ela sempre
contava a história de forma diferente, mas o
resultado era sempre o mesmo. ― Aí você nasceu
com os cabelos vermelhos da cor do sol poente. ―
Ela terminou de desembaraçar meu cabelo e me

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virou para ela, os olhos fixos nos meus e sorriu.


— Os olhos da loba e os cabelos do fogo. ―
Falei. Era por isso que Uneia tinha tanta inveja de
mim, os caçadores da vila me desejavam por que eu
era diferente das outras mulheres, a maioria tinha
os cabelos escuros, algumas tinham cabelos da cor
das folhas secas, mas apenas eu tinha os cabelos do
sol.
— Isso! ― Ela sorriu novamente, ficou de pé
e foi até a fogueira vigiar o ensopado. Uneia ficou
olhando-me com os lábios torcidos, mostrando os
dentes para mim, fiquei tentada em lhe mostrar a
língua, mas ela era a dona dessa casa, logo não
podia desafiá-la.

Os dias se passavam cada vez mais devagar e


as noites mais longas, lobos rondavam cada vez
mais próximos a vila, esperando por nossas mortes,
pela falta dos caçadores abatidos pela praga, muitas
famílias pereceram de fome e frio, todos os dias as
mulheres carregavam corpos para serem enterrados
próximos ao rio e ficavam naquilo o dia inteiro,
pois a terra congelada era dura demais, e precisava

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ser trabalhada o dia inteiro para abrirem as covas.


Minhas armadilhas voltavam com cada vez
menos comida, já que sem caçadores, as mulheres
agora as roubavam com tanta frequência quanto os
animais selvagens. Uneia já estava com a barriga
maior e parecia uma criança doente com a barriga
pontuda e os ossos aparentes, as curandeiras diziam
ser um menino, não sei se para animar Uneia,
diziam que ele seria um grande guerreiro que
libertaria o povo da fome e da doença, se é que iria
sobrar algum povo até lá! ― Pensei.
Naquela tarde, quando percebi que meu
irmão não levantaria mais daquela cama, resolvi
que precisava fazer algo, ou todos nós morreríamos
de fome em poucas luas. Peguei o machado e a
lança de meu irmão e iria para o sul, caçar algum
animal grande o suficiente para nos manter até o
fim do inverno, se é que esse inverno teria um fim.
Sem que ninguém me visse, saí das peles de
dormir de madrugada, o único som que podia ouvir
eram os suspiros doloridos de meu irmão e os
estômagos roncando deles. Vesti as calças de couro
e as botas, o casaco de pele com capuz grosso de lã

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que fora de meu pai e saí de mansinho da cabana.


Sabia que se dissesse o que pretendia fazer, minha
mãe seria do contra.
O machado e a lança eram pesados demais,
então levei apenas o machado, que pelo menos
sabia usar. Sabia que as florestas vivas ficavam a
pelo menos duas mudanças de lua de distância com
um grupo grande, então uma pessoa só, sem muito
peso poderia chegar lá em metade do tempo,
carregava comigo apenas uma bolsa de raízes e
tiras de couro para que pudesse fazer armadilhas
para caçar e ter o que comer no caminho.
A floresta de pinheiros escondia muitos
abrigos para que eu pudesse passar as noites, então
me mantinha próxima ao rio, pois sabia que se o
seguisse, chegaria à floresta viva em breve. As
noites eram congelantes do lado de fora das
cabanas, tinha noção disso quando peguei as peles
de lobo escondida para trazer comigo, se não
fossem elas, não teria passado da primeira noite.

Consegui me manter segura e alimentada


durante todos os dias de caminhada, embora

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sentisse dores por todo o corpo por causa do frio,


não me abatia pelo cansaço, saiba que eles
dependiam do que eu traria para casa e se não fosse
por isso, talvez tivesse desistido no segundo dia
quando a neve caiu forte durante a noite e tive que
me esconder em uma toca de lobo para não morrer
congelada.
Alcancei a floresta viva pouco antes da
mudança da lua, pois passava os dias andando o
mais rápido que podia, dormia tarde da noite e me
levantava antes do sol nascer, tinha certeza do
quanto a situação estava difícil quando notei que
nem havia rastro das feras que temia encontrar no
caminho.
Parei no limite da floresta congelada com a
floresta viva do Sul, temendo entrar ali e ser morta,
mas se morresse, morreria tentando fazer a coisa
certa, tentando cuidar de minha família, e não de
fome encolhida perto das cinzas da fogueira como
as outras mulheres da vila.
Ao pisar no começo da floresta viva, para
minha surpresa, a neve foi deixada para trás! Olhei
incrédula as camadas de neve e gelo atrás de mim e

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as folhas secas que agora estavam sob meus pés, a


brisa morna soprava em meu rosto e o cheiro que
nunca havia sentido, mas que nunca esqueceria
ficou preso em minhas narinas, era como a terra
remexida da beirada dos rios, grama fresca e
bétulas. Tive que tirar boa parte das roupas, ou iria
acabar cozinhando dentro delas, bem próxima de
onde eu havia entrado havia um rio não muito
largo, de águas cristalinas. Caminhei até ele
devagar, olhando apreensiva em volta, procurando
por sinais de perigo ou pelos monstros de garras e
presas longas e olhos cruéis que eram os donos
dessas florestas, mas não via nada a não ser os raios
do sol que banhavam a floresta, marcando-a com
longas sombras e o canto de pássaros e do rio.
Tirei toda a roupa e entrei na água devagar, a
última vez que havia tomado banho foi algumas
luas atrás, quando todas as mulheres se juntaram
para banhar os bebês. Mas diferente do rio
congelado, a água aqui era fresca e parecia acariciar
minha pele. Soltei os cabelos e afundei na água,
agradecendo por aquele presente. Próximo a
margem do outro lado do rio, tinha um pequeno

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arbusto de folhas doces, plantas que as anciãs


usavam para banhar as noivas antes da primeira
noite com os maridos, elas tinham um perfume
suave e deixavam a pele macia. Arranquei algumas
e as usei em mim, apreciando a sensação e o cheio
doce que elas deixavam em minha pele.
Não havia esquecido do meu objetivo, mas o
rio foi muito tentador e estava a dias correndo para
conseguir caçar algo para minha família, um banho
era mais que merecido.
Sai da água em direção ao meu montinho de
roupas, sem perceber que o perigo havia se
aproximado tanto que não teria tempo de fugir,
entre as árvores, bem próximo onde eu havia
deixado as roupas, um par de olhos cinzentos e
brilhantes me observava. Tentei ignorar o medo
que cresceu dentro de mim, não podia pegar o
machado pois a criatura estava perto dele, perto
demais. Também não podia voltar para o rio pois se
tentasse atravessá-lo, poderia morrer afogada na
parte mais funda. Duas escolhes cruéis, morrer
pelas garras da criatura escondida pelas sombras,
ou engolida pelo rio. Preferi a segunda opção e me

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virei para correr de volta ao rio, mas antes que


pudesse entrar nele, um par de mãos prendeu meus
braços. Comecei a gritar, o mais alto que podia,
mas estava no território deles e não haveria
ninguém que pudesse me salvar ali.
Mesmo tentando lutar, a criatura era forte
demais, nem sequer cedeu quando lutei com todas
as forças para me soltar de seu aperto, escoiceando
e rosnando como uma raposa numa armadilha. A
criatura me virou para ela, dizendo coisas que eu
não conseguia entender, mas estava com tanto
medo que não queria olhar, não ousaria abrir os
olhos. Ele segurou meu queixo e ficou parado em
silêncio até que eu me arrisquei a abrir os olhos.
Perdi o ar ao perceber que não se travava de um
monstro, mas de uma criatura com aparência
semelhante a nossa, a diferença estava nos longos
cabelos cor do sol do meio dia e orelhas longas, era
bem mais alto que homens de nossas vilas também
e não havia nenhum pelo em seu rosto.
— Consegue me entender? ― Disse ele na
língua normal, para meu espanto. Fiz que sim com
a cabeça, não conseguia desviar os olhos dele, de

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como era belo, os olhos eram da cor das folhas


verdes das árvores ao nosso redor, ele não me
soltou.
— Como se chama? ― Perguntou ele para
mim.
— Ren, e você?
— Haalin. ― Ele sorriu, tirando os cabelos
molhados da frente do meu rosto. Só então percebi
que ainda estava nua, tentei me soltar novamente,
mas ele não permitiu. ― Nunca vi uma humana
como você, Ren. Você parece com os raios do sol,
como uma luz com os olhos de céu. ― Ele apertou
meu corpo contra o dele, mas eu já não estava com
medo, havia algo errado comigo, um calor em meu
corpo e um estranho formigamento entre minhas
coxas quando ele se dobrou sobre mim, passando a
boca em meu pescoço até meus ombros, meu corpo
respondeu a ele sem que eu mandasse, arqueando
minhas costas enquanto ela deslizava suas mãos
sobre meu corpo.
— Eu preciso ir...
— Não vai, você entrou em minha floresta,
em meus domínios e só vai sair daqui quando eu

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permitir.
— Minha família está morrendo de fome...
— E você veio até aqui para caçar? ― Ele
me afastou sem me soltar e ficou me encarando
com algo terrível brilhando em seu olhar, engoli
com dificuldade e acenei com a cabeça.
— Meu irmão está doente e não pode caçar,
sua esposa está grávida e morrendo de fome junto
com minha mãe, eu era a única que podia caçar por
eles. ― Haalin ficou me olhando por um tempo,
então falou:
— Eu tiro a maldição, a praga que lançamos
contra aqueles que ousaram invadir as florestas e
envio os animais de volta para aquela região, se
você ficar comigo essa noite.
— Como pode fazer isso?
— Sou o senhor dessas florestas, eu as
protejo dos monstros que tentam destruí-las. ―
Estava diante da criatura que matou meu pai, dei
um passo para trás, assustada demais para
responder, mas se ele podia retirar a praga que
havia caído sobre os homens, eles voltariam a caçar
e as pessoas de nossa vila não morreriam de fome.

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— Aceito sua oferta. ― Falei sentindo meu


coração pesar, mas sabia que era a única forma de
salvar meu povo. Haalin então sorriu, mostrando as
presas afiadas, mas que não me assustavam, ele me
deitou no chão da floresta, as folhas macias e
mornas sob meu corpo pareciam tentar me acalmar.
— Não precisa ficar nervosa, não vou te
machucar! ― Disse ele apoiando-se nos braços
sobre mim, sua boca tocou meu pescoço novamente
e desceu entre meus seios nus até minha barriga,
onde ele colocou a palma da mão, murmurando
novamente palavras que não conseguia entender.
Tive medo quando ele tirou a roupa,
revelando o corpo musculoso e belo, Haalin
segurou meu corpo contra o seu, passando as mãos
por minhas penas e dobrando meus joelhos quando
colocou seu corpo junto ao meu, o senti me
penetrar, não havia nada com que comparar aquela
sensação, aquele prazer que tomou conta de mim
enquanto ele se movia dentro de mim, enquanto sua
boca estava contra a minha, como se fosse me
devorar, porém sem me ferir, o suor quente escorria
em meu corpo quando comecei a tremer sem sentir

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frio, quando tudo em mim parecia ter se destruído e


criado de novo.
Ouvia Uneia e meu irmão as vezes durante a
noite, fazendo sons parecidos com o que eu fazia
agora, porém duvidava que ela se sentisse tão bem
quanto estava me sentindo agora, pois a única coisa
que eu conseguia fazer era sorrir e tentar respirar
normalmente, Uneia sempre ficava de cara azeda
ao acordar de manhã. Enrolei os dedos nos cabelos
de Haalin, desci minhas mãos por suas costas
enquanto o puxava mais para mim, com medo de
que aquilo acabasse.

Acordei no chão da floresta com o sol em


meus olhos, deitada sobre a pele de lobo, minhas
roupas estavam no chão perto de mim, mas não
havia nem sinal de Haalin por parte alguma.
Sem pensar duas vezes me levantei e me
vesti, voltaria imediatamente para casa, para ver se
a praga havia desaparecido e os animais voltado,
meu alforje estava pesado, quando olhei dentro
percebi que haviam alimentos, um presente de
Haalin para que eu tivesse uma boa viagem. Dei

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uma última olhada para a floresta atrás de mim


antes de partir, não sei o porquê, mas aquilo fez
uma dor aparecer dentro de mim, queria ficar, mas
precisava ir, então fiz um esforço e parti.
Durante os primeiros dias de viajem foi tudo
normal, já esperava pelo frio cortante e pelas noites
mal dormidas, mas depois de alguns dias, pouco
antes de chegar a vila, comecei a me sentir mal e
colocar para fora tudo que comia, minha cabeça
doía e me sentia fraca demais. Cheguei na cabana
naquele mesmo dia pouco depois de anoitecer,
olhei para dentro da cabana aquecida, com pilhas
de lenha recém cortada e carne assando sobre a
fogueira, meu irmão, Uneia e minha mãe estavam
em volta da comida, pareciam todos bem.
Eles me receberam desconfiados, pois havia
passado muito tempo fora, contei que havia saído
para caçar animais grandes e me perdi muito longe
nas florestas e que fiquei presa em uma caverna
depois de uma nevasca, eles aceitaram bem minha
mentira, pois estava magra e realmente parecia
estar fraca. Meu irmão contou como alguns dias
atrás todos os homens que ainda estavam doentes

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acordaram saudáveis e fortes e as caças começaram


a voltar para essa região, Haalin cumpriu sua
palavra e eu nunca teria chance de agradecê-lo.
Depois de comermos bastante, saí da cabana
com minha mãe, fomos até o rio pegar água e nos
limpar, acabei vomitando a carne que tinha comido,
fazendo com que minha mãe desconfiasse de mim.
— Você esteve com um homem sem estar
casada, Ren? ― Era impossível mentir para ela,
meu pai sempre dizia que era mais fácil esconder
carne de um lobo na neve do que algo de minha
mãe, então contei a ela tudo que havia acontecido
na floresta. Ela me olhava com misto de espanto e
pena quando terminei de contar, então me abraçou
forte.
— Se contarmos o que aconteceu, eles vão
caçar o monstro! ― Disse ela.
— Não! Não pode contar! ― Estava com
medo de que fizessem mal a Haalin.
— Mas Ren, você está esperando um filho
dele! Todos te olharão errado quando perceberem
isso!
— O que podemos fazer? ― Perguntei.

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— Teremos que arrumar um marido para


você antes da mudança da lua, assim, a criança
nascerá com alguns dias a menos. ― Disse ela
como se já tivesse decidido, a ideia de outra pessoa
me tocar fez meu estômago revirar, não queria me
deitar com outro homem, nenhum, mesmo que isso
me tornasse impura.
— Não, isso eu não quero. ― Ela pareceu
compreender meu olhar.
— A única coisa que podemos dizer para te
proteger é que você foi atacada por caçadores de
outra aldeia e que ficou com vergonha de contar,
assim você será protegida pelo líder da vila, que é
seu irmão, e cuidará de seu filho sozinha quando
ele nascer. Não irei contar sobre Haalin para
ninguém, afinal, se não fosse isso, todos nós
morreríamos de fome. ― Fiz que sim com a cabeça
e a abracei, agradecendo por sua sabedoria.
Naquela noite enquanto dormia, sonhei com Haalin
e com a floresta viva e tive certeza de que não iria
querer que ninguém mais me tocasse.

Com o passar do tempo, minha barriga foi

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crescendo, o povo havia aceitado a história de que


havia sido forçada por caçadores de outras vilas
que perambulavam por nossas florestas e
começaram a vigiar para que eles não invadissem
novamente. Muitas mulheres me traziam presentes
que me ajudariam com o bebê, já que as mulheres
que eram violadas antes do casamento contra sua
vontade eram protegidas pelo líder, muitos dos
presentes Uneia usava em seu bebê recém-nascido,
eu não me importava, ficava grata por dividir as
coisas com ela já que eram presentes ganhados por
uma mentira. Minha mãe mandava que eu os
aceitasse sem me sentir mal, pois se não fosse por
mim, elas não estariam mais vivas a essa altura.
Em uma noite que o frio não estava tão
intenso, sai de casa e fui até o rio congelado para
beber água, a barriga grande pesava e me impedia
de ir até a floresta catar lenha e pinhas com as
outras mulheres, então ficava o mais perto de casa
que podia. Estava abaixada tomando água quando
vi algo brilhando do outro lado do rio, um par de
olhos verdes e brilhantes na escuridão. Ele ficou
parado me observando do outro lado do rio, era

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Haalin, parado no escuro me observando, tentei não


chorar quando o vi se aproximar, mas não
consegui. Ele saltou facilmente sobre o rio e ficou
ao meu lado, sem aviso o abracei e apertei o
máximo que pude.
— Não posso ficar muito tempo, se a verem
comigo saberão a verdade! ― Ele segurou meu
queixo e beijou minha testa.
— Por que se arriscou? Vir até aqui? Eu
menti para que eles não te cassassem! ―
Murmurei.
— Yellen, vai chamá-la de Yellen! ― Disse
ele tocando minha barriga com as pontas dos dedos.
— Yellen...
— Libertadora. ― Ele sorriu e me beijou
antes de desaparecer em meio a neve. Depois
daquela noite, todas as noites ia até o rio para ver se
ele voltava, mas nunca mais o vi ali.

**

Era o dia mais frio da minha vida quando


acordei de madrugada com dores muito fortes em
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minhas costas e quadris, tentei mudar de posição e


voltar a dormir, mas até respirar estava difícil.
Minha mãe e Uneia acordaram com meus gritos,
mas foi Gris que correu até a curandeira para avisar
que o bebê estava nascendo.
A dor era terrível, não sabia se Uneia havia
sentido dor semelhante, pois ela não gritava como
eu quando Nime nasceu. Minha mãe não saia do
meu lado, ela ficou ajoelhada para que eu pudesse
sentar sobre seus joelhos e facilitar o trabalho da
curandeira, mas a cada dor que vinha eu me sentia
mais e mais fraca.
— Se desistir agora, esse bebê não vai ver a
luz do dia. ― disse a Curandeira ao ver que eu já
não tinha mais força. Uneia entregou Nime para
Gris e o mandou sair da cabana, ficando por perto
para ajudar a curandeira, tentando me manter
acordada com provocações, no fim das contas, ela
queria me ajudar e não me odiava tanto assim.
O sol já estava nascendo no horizonte quando
com as últimas forças, dei um grito e a criança saiu,
a luz do sol entrou pela fresta da casca que protegia
a entrada da cabana, iluminando o pequeno ser nas

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mãos da curandeira. Ela olhava apavorada a criança


nas mãos, minha mãe tomou o bebê de suas mãos e
começou a explicar rapidamente o que havia
acontecido, Uneia parecia tão apavorada quanto a
curandeira, mas agora tudo que via estava ficando
distante e escuro. Minha mãe limpou o bebê e a
trouxe para mim sob protestos da curandeira, que se
calou com o olhar cortante de Uneia. A bebê tinha a
pele rosada e brilhante, os cabelos ralos eram do
mesmo dourado que os cabelos de Haalin, minha
voz parecia distante quando consegui fazê-la sair.
— Yellen ― e aquele foi meu último suspiro,
o último rosto que vi foi o belo rosto da minha filha
que não era humana.

**

Yellen:

Era fácil para mim, afastar-me da vila


durante o dia, corria como o vento e desaparecia
em meio as árvores congeladas. Vovó Riena
sempre me mandava colocar o casaco antes de sair,
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mas não sentia o frio da mesma forma, porém de


qualquer maneira tinha que andar com um capuz de
pele cobrindo a cabeça, minha avó dizia que era
para espantar os maus espíritos, mas toda vez que
íamos nos banhar no rio, eu tinha que me afastar
das outras moças da vila para tirá-lo da cabeça.
Elas não tinham orelhas como as minhas, que eram
pontudas e longas como as orelhas das raposas,
minha pele também era mais bela, as vezes quando
o sol estava alto, eu sentia que podia brilhar como
ele, por isso também só podia sair ao entardecer.
Havia saído naquela tarde da cabana para
buscar lenha, mas ao pisar na floresta, tirei as botas
e comecei a correr. Ninguém corria como eu,
muitas vezes corria com os lobos do outro lado do
rio, eles nunca me atacaram, sempre me
acompanhavam até o anoitecer, nunca contei isso
para vovó, claro! Ela nunca mais permitiria que eu
saísse se soubesse. Os lobos as vezes roubavam a
carne e atacavam as pessoas da vila quando se
afastavam das trilhas de caça, mas nunca atacaram
a mim, muitas vezes me ajudavam a encontrar
raízes e castanhas. Eu evitava comer a carne que tio

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Gris caçava, não gostava de seu sabor, preferia as


raízes e alguns frutos que encontrava na floresta e
estava sempre satisfeita com pouco, quase nunca
sentia fome.
O tempo parecia correr para o mundo a
minha volta, os dias eram curtos demais e tudo
parecia se gastar rapidamente ao meu redor. Riena
ficava cada vez mais velha, já não conseguia
enxergar direito e mal saía da cabana, apenas
quando a tirava de lá para tomar sol. Uneia também
já aparentava como uma anciã e Nime havia se
casado com uma jovem trazida de outra aldeia e se
preparava para ser o líder no lugar de Gris. Porém o
tempo não passava para mim. Eu tinha a mesma
aparência desde o momento que o primeiro sangue
desceu e que fui marcada com as marcas da lua
para mostrar que já era uma mulher, porém nenhum
homem vinha até mim, nenhum vinha a Gris para
me tomar como esposa, não que eu os quisesse,
mas assim como eu, muitos pareciam notar o
quanto eu era diferente.

O dia em que Riena finalmente foi embora de seu

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corpo, quando ele já estava velho demais para


manter sua alma, ela se libertou com um sorriso no
rosto enquanto dormia. Suas últimas palavras para
mim naquele dia antes que fossemos dormir foi:
“Yellen, vá embora, vá para a floresta viva, lá é seu
lugar! ”. Enquanto carregávamos seu corpo pelas
margens do rio até o local sagrado onde eram
enterrados os mortos, todos me observavam. Havia
esquecido que não podia sair durante o dia, pois
minha pele tinha um brilho como o do sol.
Eles não me deixaram enterrar Riena.
Os homens e mulheres da vila vieram com
paus e pedras e começaram a gritar, me mandar
embora, dizer para que eu nunca mais voltasse, mas
eu não queria ir, ali era meu lar. Agarrei-me ao
braço de Nime o mais forte que pude, mas ele me
afastou e sua mulher começou a me bater. Não que
ela realmente conseguisse me machucar com as
mãos frágeis. Mas após me acertarem com um
pedaço de madeira, soltei um rugido como o das
leoas das montanhas e todos começaram a se
afastar, assustados, acuados.
— Ela é um mostro, um dos demônios da

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floresta viva! ― Gritou uma das mulheres que


tomava banho comigo no rio quando éramos
crianças. A esposa de Nime se aproximou
novamente e tirou meu capuz, mostrando minhas
orelhas. Então todos queriam me atacar, queriam
me matar por ser apenas diferente.
— Nunca fiz mal a nenhum de vocês! ―
Gritei. ― Até mesmo agora quando tentam me ferir
eu não revido! Só me defendo!
— Vá embora, animal! ― Gritou Nime
segurando sua lança. O olhei incrédula, depois de
todos aqueles anos, depois de todas as brincadeiras
e sorrisos. Ele ficaria ao lado de sua esposa, claro.
Novamente eles começaram a me atacar para
que eu me afastasse, mas das florestas congeladas
os lobos surgiram em bando, uma alcateia inteira
vindo a meu favor. Eles começaram a rosnar e
mostrar os dentes, seus pelos prateados e olhos
amarelos brilhando contra o sol eram apavorantes
para todos, menos para mim.
— Eu sinto muito, vovó! ― Falei uma última
vez com ela, esperando que onde quer que ela tenha
ido, não tivesse visto o que mais temia acontecer.

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Então virei as costas para eles, que ainda atiravam


paus e pedras contra nós e corri. Corri como o
vento acompanhando os lobos floresta a dentro.
Enquanto corria, me libertava das roupas e de
tudo que me fazia semelhante a eles, os verdadeiros
monstros, não me importava de ficar sem as roupas,
o vento me vestia, a neve fazia parte de mim o sol
me mostrava o quanto era livre. Depois de um
tempo, até mesmo os lobos ficaram para trás, sem
eu ter ao menos agradecido a eles o socorro. Parei
em uma clareira próxima a um rio de margens
congeladas e me sentei, não estava ofegante ou
cansada, apenas queria me sentar e ouvir. Estava
muito, muito longe do campo dos mortos e mesmo
assim podia ouvir os homens trabalhando com as
lanças para cavar o descanso de Riena.
Soltei os cabelos da trança e os joguei para
frente, para que o vento os levasse, os fizesse
dançar. Ouvi passos leves perto de mim, tão perto
que não sabia como alguém havia se aproximado
tanto sem que eu percebesse, fiquei de pé num
rápido movimento e olhei na direção do som,
mostrando os dentes para quem quer que tivesse

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vindo atrás de mim. Olhos como as folhas me


encaravam, olhos iguais aos meus que via no
reflexo do rio.
— Yellen. ― Ele deu um passo e num
instante estava em meu lado, jogando um manto ao
meu redor. Ele limpou o ferimento que uma
pedrada havia feito em meu ombro e sorriu. Em
todos os anos que vivi entre os humanos, nunca
havia visto alguém igual a mim.
— Quem é você? ― Perguntei baixinho
prendendo o manto em volta de mim.
— Alguém que pode te dar um lar, um lar de
verdade, longe daqueles monstros. Ele estendeu a
mão para mim, e mesmo sem conhece-lo, eu lhe dei
a mão, pois era o ser que tinha uma luz tão bela que
emanava bondade.
— Como é seu nome? ― Perguntei enquanto
andávamos devagar pela neve.
— Haalin Ascardian, o líder das florestas
vivas. ― Ele sorriu para mim, então começou a
correr e eu o segui, não importava para onde ele
fosse, eu o seguiria.

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Continua em breve:
Doze Mundos ― As histórias não contadas.

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Agradecimentos

Tenho que agradecer com todo carinho as


minhas filhas, que bagunçavam tudo ao meu redor
enquanto eu escrevia este livro, pois muitas vezes,
suas gargalhadas e gritinhos me deixaram mais
animada para escrever.
A minha mãe, Simone, por ter me dado tanto
incentivo, por ter ficado ao meu lado desde o início,
desde começo do sonho em escrever um livro.
As minhas amigas, pelas horas de conversa,
ou às vezes o simples silêncio, pelos conselhos,
pelas choradeiras, pelos altos e baixos, mas
principalmente por todo o carinho desde o dia em
que criei aquele grupo, para que pudéssemos
conversar sobre livros!
Obrigada a todos que estiveram presentes em
minha vida enquanto eu escrevia, pela presença,
apoio e incentivo.

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