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AS PALAVRAS DA HISTÓRIA: ENSAIO DE POÉTICA DO SABER.


Jacques Rancière*
LISBOA, EDIÇÕES UNIPOP, 2014.

Na obra As palavras da História: Ensaio de centração porventura excessiva numa «concep-


poética do saber, escrita por Jacques Rancière e ção científica do processo histórico e experi-
publicada pela primeira vez em França no ano mentava um profundo desprezo pelo indivi-
de 1992, pelas Éditions du Seuil, o seu autor dualismo e pela subjectividade» (Rui Bebiano,
parece operar um «deslocamento», não apenas O Poder da Imaginação: Juventude, Rebeldia e
temático mas também semântico no seu per- Resistência nos Anos 60. Lisboa: Angelus Novus,
curso bibliográfico, abordando um assunto 2003, p. 62).
bem diverso dos arquivos e da imaginação dos Em As palavras da História: Ensaio de poé-
operários, que até então o ocupavam, para se tica do saber, o seu autor procura avaliar criti-
focar em questões epistemológicas do foro da camente os Annales, colocando em considera-
História, substituindo uma análise de dimen- ção o seu carácter revolucionário. A obra em
sões político-literárias da acção revolucionária análise terá sido influenciada em parte pelo
dos aparentemente destituídos de poder por Discours de l’histoire de Barthes, pela aborda-
um trabalho de natureza linguística, eventual- gem de Foucault em As Palavras e as Coisas e
mente situável na órbita problemática e difusa em A Arqueologia do Saber, ou pela narrativa dos
do Pós-Estruturalismo e do Linguistic Turn. factos verosímeis, defendida por Paul Veyne, em
Rancière recusa uma metodologia hermenêu- 1971, na obra Comment on écrit l’histoire. O
tica, em favor da abordagem das práticas dis- objecto desta recensão partilha com White o
cursivas. Importa observar alguns momentos interesse pela narrativa histórica. Rancière não
do trajecto do autor para perceber que o deslo- cita explicitamente uma parte dos intelectuais
camento (palavra tão cara ao filósofo) plas- referidos, mas nota-se a influência maior ou
mado por As palavras da História terá consubs- menor deles ao longo da obra, dividida em sete
tanciado um reequacionamento temático- capítulos. O primeiro intitula-se Uma Batalha
-metodológico, em detrimento de uma ruptura Secular e constitui uma panorâmica da temá-
face ao caminho percorrido. Desde pelo menos tica em agenda, das teorias e metodologias uti-
1968, nas investigações do pensador, a superfí- lizadas pelo autor, que analisa os sentidos da
cie dos eventos possui uma identidade própria, palavra «história», que, em francês, designa
associada à valorização dos «jogos de lingua- simultaneamente uma série de eventos mas
gem», na linha de Wittgenstein, e dos «actos de também a narrativa sobre ela empreendida.
fala» (na esteira de Austin e Searle), enten- Enunciada a problemática a tratar, o autor
dendo estes não como emanações superestru- procura centrar-se, no segundo «andamento»,
turais de causas ausentes ou profundas, afir- denominado Rei Morto, num discurso especí-
mando-se como gestos de natureza política em fico da Nova História, abordando o historiador
si mesmos. Jacques Rancière (n. Argel, 1940) Fernand Braudel. No terceiro capítulo, Ran-
cursou Filosofia na École Normale Supérieure, cière foca a irrupção de acontecimentos revolu-
onde foi aluno de Louis Althusser. Viveu inten- cionários, comparando um texto da Antigui-
samente o Maio de 1968, potenciando uma dade, os Anais de Tácito, com um trabalho de
pulsão igualitária, afastando-se do marxismo um comentador da Revolução Francesa, Alfred
ortodoxo, dado que este evidenciava uma con- Cobban, considerado pelo filósofo francês um

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CEM N.º 6/ Cultura,
ESPAÇO & MEMÓRIA

«real-empirista», e criticado pelo seu alegado torno de Braudel. Poderia ter desenvolvido
revisionismo. No quarto capítulo, Rancière uma perspetiva mais abrangente.
procura a genealogia da Nova História e Existem alguns trabalhos sobre As palavras
encontra um precursor que esta assume com da História. Desde logo, em 1993, Sophie
reservas, mas que marca a forma «annaliste» de Wahnich, numa recensão, considera que o
se posicionar. Trata-se de Michelet. No enten- autor não se detém exaustivamente a apresen-
der de Rancière, com Michelet a narrativa do tar alternativas sistemáticas e sistematizadas
acontecimento revolucionário torna-se narra- aos Annales, embora se percebam determina-
tiva do seu sentido. O discurso faz-se narrativa das diferenças fundamentais. Por outro lado,
para que esta se possa fazer discurso. Em Gérard Noiriel, em 1994, dedica significativa-
seguida, no quinto capítulo, o pensamento do mente uma atenção escassa à obra. No mesmo
historiador romântico ajuda a perceber e situar ano, o labor de Rancière no texto em análise foi
«o lugar da fala dos Annales» e, sobretudo, de ampliado por Philippe Carrard, no seu estudo
Braudel. No sexto capítulo, depois de se debru- Poetics of the New History: French Historical
çar sobre a importância de Michelet para os Discourse from Braudel to Chartier. Por seu
Annales e para Braudel em particular, Rancière turno, em 2002, Pierre Campion, num estudo
procura entender o espaço do livro braudeliano mais aprofundado, analisa o ensaio de Ran-
interpenetrando-se a «historialidade e a litera- cière, problematizando foucaultianamente a
riedade» do Mediterrâneo através dele e por respectiva Ordem do Discurso. Em 2010, Phillip
seu intermédio. No derradeiro capítulo, Jac- Wats desenvolve uma intuição certeira desde o
ques Rancière parece defender que a História, título do seu artigo, considerando que o ensaio
sendo ciência, literatura e política, deve cen- de Rancière configura, de certo modo, uma
trar-se nos acontecimentos, muitas vezes «heré- Heretical History and the Poetics of Knowledge.
ticos», solidarizando-se com essas «heresias», Fora do âmbito mais restrito da análise de As
na medida em que configuram uma voz pró- palavras da História, convém assinalar a exis-
pria, resistente aos poderes dominantes. tência de um número da revista Labyrinthe,
Efectivamente, a atitude de desmontagem e publicado em 2004, sobre Jacques Rancière,
desmistificação crítica e informada de alguns ou as biografias intelectuais acerca do autor
preceitos e certas actuações dos Annales fora escritas por Oliver Davies (2010) e Joseph Tan-
prodigalizada por J. H. Hexter (no artigo deno- keray (2011), ou a colectânea de artigos coor-
minado Fernand Braudel and The Monde Brau- denada por Jean Phillipe Deranty: Jacques Ran-
dellien), e por Hervé Coutau- Bégarie, na sua cière: Key Concepts. Em Portugal, realizou-se,
dissertação doutoral, publicada em 1983 e inti- no ano de 2014, um encontro para discutir a
tulada Le Phénomène «Nouvelle Histoire»: Stra- obra de Jacques Rancière. Os organizadores da
tégie et ideologie des nouveaux historiens. iniciativa publicaram, igualmente, uma anto-
Do nosso ponto de vista, Rancière consegue logia genérica do Pensamento crítico contempo-
demonstrar em As palavras da História que o râneo. O artigo sobre o pensador francês é da
discurso historiográfico é construído pela rea- autoria de Manuel Deniz da Silva, que acentua,
lidade histórica e dela construtor. O autor rela- acertadamente, a complexidade do trabalho
ciona, de modo proveitoso, três domínios do analisado.
saber: a Literatura, a Filosofia e a História.
Acresce que Rancière comprova que os Annales NUNO BESSA MOREIRA*
comportam dimensões narrativas. Todavia, o (CITCEM/FLUP)
filósofo francês centra-se talvez em demasia na
segunda geração Annaliste, afunilando-a em * E-mail: Knunocliomail@gmail.com.

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