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Revista de História da BN

Quem te convidou?
Visita inesperada a uma aula de História gera discussão entre o professor, republicano
militante, e o conde d’Eu, representante da monarquia
Robert Daibert Junior
8/7/2009

No meio da aula, entra na sala uma autoridade. São tempos tensos, e o professor, que se
opõe ao regime vigente, aproveita a situação para afrontar o nobre visitante, acusando sua
família de responsabilidade por um antigo massacre. Os alunos passam então a assistir,
incrédulos, a um acalorado bate-boca – “Isso é que é lição de História!”, pode ter pensado um
deles. Teria toda a razão...

O episódio inusitado aconteceu em 1882, e simboliza perfeitamente a crise política que


dominava o país anos antes da proclamação da República. De um lado, Alfredo Moreira Pinto,
o professor, republicano convicto. Do outro, o conde d’Eu, o visitante, ilustre membro da
família imperial. Bastou um gesto interpretado como descortês pelo mestre para que o
conflito viesse à tona.

Assim que entrou na sala de aula, o conde d’Eu não tirou o chapéu. Vindo de um membro da
monarquia, o que poderia ser apenas um esquecimento foi tomado como prova da empáfia da
nobreza, cujos privilégios irritavam os republicanos. Ofendido, Moreira Pinto resolveu mudar
o tema de sua palestra para os alunos da Escola Militar. Começou a falar sobre a sangrenta
noite de São Bartolomeu – quando, em 1572, milhares de protestantes foram assassinados, em
matança comandada pela casa real francesa. Numa clara provocação, o professor atribuiu a
Carlos IX, o jovem rei da França, a responsabilidade de fuzilar pessoalmente, das janelas do
Louvre, muitos protestantes fugitivos. Descendente de Carlos IX, o conde d’Eu entendeu o
recado e entrou em rota de colisão com o expositor: negou que o rei tivesse sujado as mãos
no massacre. Moreira Pinto insistia em sua versão. Os ânimos se exaltaram, para deleite da
plateia. Até que o professor suspendeu a aula, alegando não admitir contestações no
exercício de seu ofício.

Alfredo Moreira Pinto não era um republicano qualquer. Bacharel em Letras pelo Colégio
Pedro II, dedicava-se ao estudo da história e da geografia do país – publicaria obras de
referência, como o Dicionário Geográfico do Brasil (1884) –, e em dezembro de 1870 foi um
dos que assinaram o Manifesto Republicano. Dois anos depois, quando se comemorava o
cinquentenário da independência, publicou um livro, Martyres da liberdade: às sagradas
cinzas de João Guilherme Ratcliff e de seus companheiros de martírio da Heroica Província de
Pernambuco, Theatro da gloriosa revolução de 1824, em que denunciava D. Pedro I por
condenar à forca João Guilherme Ratcliff, participante da Confederação do Equador,
movimento separatista de 1824.

A discussão com o conde d’Eu rendeu-lhe uma reprimenda de seu superior. O francês não só
era genro do imperador D. Pedro II, como ocupava a posição de marechal do Exército. Por
isso, a afronta de Moreira Pinto foi vista como quebra de hierarquia, e ele recebeu um puxão
de orelhas do diretor do colégio nesses termos: “Devo prevenir a V.S. que só se vestirá de
prestígio e por este modo honrará a Escola, quando, sabendo respeitar a quem deve,
conseguir captar o respeito de quem precisa”. Inconformado, o professor apresentou seu
pedido de aposentadoria. Mas D. Pedro II o recusou.

A reação revela a astúcia política do imperador: ao impedir a saída de Moreira Pinto, D. Pedro
evitou que o episódio servisse de munição aos adversários da monarquia – ainda mais tendo
como palco a Escola Militar, que durante a década de 1880 tornara-se um viveiro de jovens
republicanos. Os alunos chegavam a organizar clubes secretos onde cantavam a “Marselhesa”,
hino da Revolução Francesa. Grande parte deles vinha de famílias pobres e encontrava no
colégio uma oportunidade de ascensão social. Formavam-se oficiais engenheiros aptos a
trabalhar em serviços públicos civis. No entanto, o status social dos jovens militares
continuava baixo se comparado aos bacharéis em Direito, que conseguiam com mais
facilidade acesso a cargos administrativos e políticos. Este era um ponto-chave na crítica dos
militares republicanos ao regime vigente: atacavam os privilégios e defendiam o mérito
pessoal como princípio de organização da sociedade. E embora o conde d’Eu integrasse a
oficialidade do Exército, ele era visto como um apadrinhado: chegara à posição de marechal
por benesses da nobreza, e não por capacidade própria. Sua nomeação desprestigiara os
generais de carreira.

A imagem pública do marido da princesa Isabel não era nada boa, e não só entre os militares.
A população o acusava de ser ganancioso, avarento, agiota e explorador de aluguéis de
cortiços. Era ridicularizado por tudo. Parcialmente surdo, não conseguia se comunicar bem:
muitas vezes interpretava errado o que lhe diziam e falava muito alto em ambientes que
exigiam postura discreta. Pronunciava com dificuldade o português, carregado de erres e em
tom de choro.

Nenhum detalhe escapava aos seus opositores. Reparavam até no desleixo com que se
apresentava: despenteado, com cabelos arrepiados, botinas sujas, casacas cheias de dobras,
cartolas amassadas e calças arregaçadas até os tornozelos. Para piorar, sofria de problemas
gástricos e estava sempre doente. Segundo as más línguas, os incômodos não passavam de
somatizações devido ao poder de sua esposa, futura imperatriz do Brasil. Desde o início do
casamento, pesou sobre ele a obrigação de gerar filhos que pudessem herdar o trono. A longa
espera de dez anos até a primeira gravidez da princesa (que só veio em 1874) provocou
comentários maldosos a respeito de sua masculinidade.

Os rumores, maledicências e boatos ganhavam significado político nas rodas republicanas.


Com o objetivo de anular a figura de Isabel, mostravam-na como simples joguete nas mãos do
marido. Em São Paulo, o jornal humorístico O Grito do Povo foi fundado em 1899 com essa
finalidade. O político e jornalista Silva Jardim, o mais exaltado propagandista da República,
escolheu o genro do imperador como alvo de violentos ataques. Chegou mesmo a segui-lo em
viagem ao Norte do país, buscando neutralizar sua campanha em favor do Terceiro Reinado –
proposta que previa Isabel assumindo o trono do pai. Nos discursos mais inflamados, Silva
Jardim chegou a pregar o fuzilamento do conde d’ Eu.

A tática de Moreira Pinto foi outra: ele tentou fuzilar o conde e a monarquia com palavras.
Ou melhor, com lições de História. Ao recusar o pedido de aposentadoria do professor em
1882, D. Pedro havia conseguido pôr uma pedra sobre o caso. Mas em março de 1889, um fato
novo fez a pedra rolar. O governo vinha tomando diversas providências para neutralizar o
potencial explosivo de ideias e armas cultivadas na Escola Militar. Chegou a dividi-la em duas,
com a criação da Escola Superior de Guerra (em São Cristóvão). Em meio a tantas reformas,
apenas um professor foi aposentado compulsoriamente: Alfredo Moreira Pinto.

O mestre procurou a imprensa, e a discussão travada anos atrás em sua aula de História
ganhou repercussão. Os últimos meses da monarquia no Brasil foram marcados por intensas
agitações políticas, debates e conspirações, e a aula de Moreira Pinto caiu como uma luva na
intensa campanha promovida pelos republicanos. A doença e o enfraquecimento do imperador
alimentavam rumores de que sua filha já governava nos bastidores, e o pior: com o auxílio do
marido. Nas palavras de Rui Barbosa, publicadas no Diário de Notícias, o afastamento do
professor era a “satisfação de uma vingança, incubada na impotência de longos sete anos”.

Silva Jardim também explorou o episódio em suas conferências republicanas. Em defesa de


Moreira Pinto, afirmou que a carnificina promovida pelo rei da França na Noite de São
Bartolomeu precisava ser ensinada sem nenhuma censura. Relacionando o fato histórico com
o presente e com o possível futuro do Brasil, perguntava: “O que seria desse país entregue a
um mau príncipe que pertence à família de gente ruim? (...) Eis em resumo o que é a família
do conde d’Eu: gente sem equilíbrio moral, egoísta e perversa”.

Após a proclamação da República, toda a família imperial foi exilada. O retorno do conde
d’Eu ao Brasil só foi possível em 1921, quando o banimento foi revogado. Voltou
acompanhado do filho mais velho e de alguns netos. A princesa Isabel, já idosa, encontrava-se
em uma cadeira de rodas na França, impossibilitada de voltar ao país. A monarquia não
representava mais perigo, e o conde d’Eu recebeu homenagens em diversas cerimônias.

Uma dessas solenidades, organizada na Vila Militar do bairro de Deodoro, contou com a
presença de autoridades como o ministro da Guerra e o chefe do Estado-Maior do Exército.
Entre os convidados, estavam também alguns daqueles que haviam contribuído para seu exílio
de 32 anos e trabalhado pela anulação de sua patente de marechal do Exército, riscando-a do
Almanaque Militar. Sem se incomodar com isso, o conde passou a narrar sua participação na
Guerra do Paraguai. A conversa assumiu o tom de uma aula de História. A diferença era que,
desta vez, ele era convidado. A surdez avançada não o impediu de ouvir as provocações de
alguns “alunos” presentes, que dispararam altos e sonoros vivas à República. Não havia mais
tempo de incubar vinganças. A resposta do conde d’Eu foi rápida e carregada de fina ironia.
Quebrando o silêncio que se seguira aos gritos, ele exclamou: “Viva o sempre valoroso
Exército brasileiro!”. A lição não terminava ali.

Robert Daibert Junior é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Isabel,
a ‘redentora dos escravos’: uma história da princesa entre olhares negros e brancos (EDUSC,
2004).

Saiba Mais - Bibliografia:

CASTRO, Celso. A proclamação da República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II: ser ou não ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

DEL PRIORE, Mary. O Príncipe maldito: uma história de ódio e conspiração na família
imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

RANGEL, Alberto. Gastão de Orléans: o último Conde d’Eu. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1935.

Estranho no ninho

Desde pequeno, Louis Phillipe Marie Ferdinand Gaston d’Orléans, o conde d’Eu (1842-1922),
acostumou-se à condição de estrangeiro. Aos 6 anos, teve que deixar a França quando a
revolução de 1848 destronou seu avô, o rei Luís Felipe, e levou toda a família ao exílio.
Passou a infância e a adolescência refugiado na Inglaterra, país oficialmente protestante, que
só tolerava o catolicismo em reuniões domésticas. Por muitos anos, sua família viveu de
favores, em um palácio emprestado.

Morou também na Espanha, onde iniciou carreira no Exército, estudou na Academia Militar de
Segóvia e chegou a lutar contra o Marrocos, na África, nos primeiros meses de 1860. Mas era
sempre visto como um príncipe expulso de seu país de origem, e por isso rejeitado.

Em 1864, chegava ao Brasil um jovem marcado por longa experiência distante de seu país de
origem. Aos 22 anos, ainda buscando afirmar sua posição e identidade, casar-se com uma
princesa brasileira pareceu-lhe uma ótima oportunidade. Não teve jeito: uma vez estrangeiro,
sempre estrangeiro.

Quis o destino que o francês sem pátria morresse em alto-mar. Foi no dia 28 de agosto de
1922, quando viajava para Brasil para a comemoração do centenário da Independência. O
corpo foi velado no Rio de Janeiro, retornou a França, mas hoje repousa mesmo no Brasil.
Mais precisamente em Petrópolis, cidade imperial, para onde foi transladado em 1953.

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