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ANDRÉ

André é casado, pai de um filho de 15 anos e a sua família traz-lhe muita alegria.
Recentemente, um colega criticou-o publicamente pela sua gestã o da faculdade,
de que ele é reitor. Ficou muito perturbado, sentiu-se destruído e receou morrer
por ataque cardíaco.

André é judeu, os seus pais, comunistas, entraram na Resistência logo no início


da Guerra e esconderam-no em casa de um casal cató lico. Os pais combateram
activamente os nazis e ele sempre pensou que o que os unia e dava sentido à vida
era a acçã o política, nã o a vida amorosa.

A narrativa do paciente, fora este episó dio particular, é extremamente fria, como
se este assunto fosse apenas um capítulo secundá rio da sua histó ria. Esta frieza,
ao narrar um passado histó rico traumá tico, confronta a analista com defesas
drá sticas do paciente, nomeadamente o triunfo da razã o e a intelectualizaçã o. Ele
deseja, certamente, compreender o seu sofrimento actual mas tenta impedir a
analista de reanimar capítulos da histó ria infantil desinvestidos, recalcados ou
clivados.

Procurando nã o se deixar fascinar pela Histó ria, para permitir que se teça a
ligaçã o entre esta e a histó ria subjectiva, a analista vai procurar abordar o
informe, para que o indizível possa ser dito, o impensá vel possa ser pensado.

Ela pergunta-lhe: “Onde é que estava quando tinha três anos?”

A resposta é rude: “Eu nã o fui uma criança escondida mas uma criança acolhida,
quase adoptada por gente simples mas com um coraçã o muito grande, que eu
amo profundamente”. A tia Margarida e o tio Henrique, que repetiam com amor e
admiraçã o: “Meu querido, tu será s um grande homem, tu será s papa!”.
Encolerizado, ele diz: “Nã o me ponha a fazer parte de toda essa literatura que
fala actualmente dos filhos dos sobreviventes... Eu recusei terminantemente
responder ao pedido de um grupo que queria que eu fosse testemunhar sobre a
minha experiência de criança escondida; eu respondi-lhes que essa situaçã o me
era estranha”. A analista responde-lhe que a sua experiência era singular e que
nã o podia ser assimilada a priori a uma experiência colectiva. André evocou,
entã o, a psicaná lise que tinha feito há cerca de 30 anos, devido à sua
instabilidade sentimental e à sua dificuldade em se comprometer. Nessa altura
mantinha vá rias relaçõ es amorosas ao mesmo tempo e tinha compreendido que
isso era a maneira como se protegia de uma angú stia de separaçã o catastró fica. A
sua primeira mulher era alemã e a sua amante habitual era uma feminista negra,
o que fazia sofrer os seus pais que esperavam que ele casasse com uma judia
praticante para lhes dar netos e assim pagar a dívida da transmissã o da vida.
André volta a referir a sua impossibilidade de pensar uma relaçã o amorosa entre
os pais e de os imaginar numa relaçã o sexual. A ú nica foto pendurada nas
paredes do quarto deles era a de uma vala comum para onde tinham sido
atirados os familiares e os amigos de uma pequena cidade da Poló nia, donde
eram originá rios. “Nã o era o quarto dos pais com amor e vida, era um tú mulo”.

A analista ficou profundamente tocada com esta evocaçã o cuja força sensorial
gelava o seu pensamento, como se a imagem de um passado enterrado atraísse,
com a sua potência perceptiva, a representaçã o da cena primitiva impedindo a
apropriaçã o subjectiva de uma histó ria intergeracional. Ela questionou-se sobre
a afliçã o infantil que parecia ausente em André, ainda que ele procurasse uma
escuta e uma resposta num dispositivo adequado. A tristeza que ele vivencia
concretiza-se quando sente ser objecto de desinteresse e nã o existir para o outro.
“Se nã o existo para o outro tenho o direito de existir para mim?”, interroga
André. E descreve uma segunda fotografia onde a sua cabeça de criança está
apoiada no ombro da tia Margarida, contraponto da foto da vala comum.

O trabalho de co-construçã o e de co-pensamento da cura vai permitir a vivência


partilhada, repetida, de imagens da histó ria passada. Essas imagens vã o servir de
apoio para as transformaçõ es vindouras. Como se os objectos, que estavam à
espera de reanimaçã o, pudessem nascer, animar-se e adquirir um corpo
externalizando-se no campo da relaçã o para poderem, em seguida, ser
introjectados e darem lugar aos processos de subjectivaçã o. A analista pensa que
este trabalho nã o se pode desenvolver senã o graças à presença de um outro que
escuta, e que está disponível para ser utilizado e para inventar um modo de
aproximaçã o.

A tristeza de André seria uma maneira dele recordar a sua infâ ncia e de poder,
apó s tantos anos, partilhar com a analista essas vagas emocionais que o
submergiam, nã o receando morrer nelas? A analista tinha a impressã o de ser
utilizada como um objecto externo, uma testemunha, cujo papel seria tecer os
buracos abertos no seio do seu funcionamento psíquico.

“Todo o passado familiar está nessa vala comum, todos os rostos amados, e a sua
sobrevivência está enraizada nessa terra que contém todos os mortos”, dirá
André abordando os seus fantasmas. A analista propõ e que ele abra os olhos
sobre essa vala comum, cripta duma histó ria com vá rios capítulos que podem ser
partilhados ali, no espaço terapêutico. Um trabalho de luto vai podendo
constituir-se, e ainda que André desconfie da literatura sobre os campos de
concentraçã o, os testemunhos aí encontrados permitem-lhe aceder a uma
transmissã o nã o feita, nã o constituída, porque faltaram palavras. Muito
recentemente ele informa-se da violência que se abateu sobre a sua família, toma
contacto com alguns amigos ainda vivos dos seus pais e responde aos pedidos do
Museu Judaico, dando algumas informaçõ es sobre os pais.

O fantasma de uma cena primitiva melancó lica transformar-se-á na


representaçã o de um casal parental forte e unido na luta pela vida e pela
salvaçã o do seu filho. A vala comum da foto pode agora conter personagens da
histó ria familiar destruída pela loucura humana.

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