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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa


Departamento de Filosofia

Rodrigo de Souza Camargo Mitre

“BOM E MAU” E “BOM E RUIM” NA PRIMEIRA DISSERTAÇÃO DA


GENEALOGIA DA MORAL, DE FRIEDRICH NIETZSCHE

Belo Horizonte
2017
1

Rodrigo de Souza Camargo Mitre

“BOM E MAU” E “BOM E RUIM” NA PRIMEIRA DISSERTAÇÃO DA


GENEALOGIA DA MORAL, DE FRIEDRICH NIETZSCHE

Monografia apresentada ao curso de filosofia


da PUC Minas do Inst. de Fil. e Teol. D.
Resende Costa, como requisito para a
conclusão do curso de bacharelado.

Orientador: Prof. Ibraim Vitor

Belo Horizonte
2017
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3

RESUMO

O presente trabalho pretende fazer um estudo sobre os juízos valorativos


“bom e ruim” e “bom e mau” na filosofia de Nietzsche. Para isso, demonstraremos
que esses valores não estão inseridos em qualquer contexto filosófico, porque eles
estão presentes na concepção filosófica de Nietzsche, que os tratou de acordo com
o seu método genealógico. A referência ao método genealógico consiste na
necessidade de apresentar uma abordagem mais completa sobre esses valores.
Depois de observarmos os atributos referentes ao método de Nietzsche, com
características relacionadas ao conceito nietzschiano de vontade de poder e à
pesquisa vinculada com a história, concebemos que o valor “bom e ruim” é superior
ao valor “bom e mau” na concepção de Nietzsche. Essa superioridade do “bom e
ruim” está de acordo com o movimento ideal do que o filósofo denomina como “vida”
e é superior no sentido de não estar vinculado com uma artificialidade impotente.

Palavras-chave: Bom. Mau. Ruim. Método genealógico.Vida.


4

ABSTRACT

This work intends to study the value judgments "good and bad" and "good and evil"
in the philosophy of Nietzsche. For this, we will demonstrate that these values are not
inserted in any philosophical context, because they are present in the philosophical
conception of Nietzsche, who treated them according to his genealogical method.
The reference to the genealogical method consists of the need to present a more
complete approach to these values. After observing the attributes of Nietzsche's
method, with characteristics related to the Nietzschean concept of will to power and
the history-based research, we conceive that the value "good and bad" is superior to
the value "good and evil" in the conception of Nietzsche. This superiority of "good
and bad" is in accordance with the ideal movement of what the philosopher calls "life"
and is superior in the sense of not being linked to an impotent artificiality.

Keywords: Good. Evil.Bad.Genealogical method. Life.


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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 6

2 O MÉTODO GENEALÓGICO DE NIETZSCHE PRESENTE NA OBRA GENEALOGIA


DA MORAL: UMA POLÊMICA ........................................................................................... 8
2.1 Genealogia e vontade de poder ............................................................................... 10
2.2 Vontade de poder: interpretação e crítica à metafísica ........................................ 14

3 “BOM E MAU” E “BOM E RUIM” NA PRIMEIRA DISSERTAÇÃO DE GENEALOGIA


DA MORAL: UMA POLÊMICA ......................................................................................... 22
3.1 O juízo e conceito de “bom”: algo iniciado com os nobres ................................. 22
3.2 Moral dos senhores e moral dos escravos ............................................................. 28
3.3 Os tipos psicológicos e as duas morais ................................................................. 30
3.4 Explicações sobre a formação da moral escrava: sua inversão de “bom e ruim”
e as conseqüências para os valores do homem ao longo da história ...................... 31
3.4.1 O ressentimento da moral escrava e o prejuízo para o homem ....................... 33
3.4.2 Aprofundamentos da inversão judaica e suas conseqüências históricas. .... 36
3.4.3 A impossibilidade do retorno da aristocracia guerreira .................................... 37
3.5 A miséria e decadência da vida relacionadas com a valoração “bom e mau” .. 39

CONCLUSÃO..................................................................................................................... 44

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 45
6

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como base um estudo que pretende demonstrar, na


concepção de Nietzsche na Genealogia da moral, o que estava relacionado com o
valor “bom” e o valor “mau” quando esses juízos valorativos foram submetidos a uma
investigação que permitiu analisar as condições de seus aparecimentos na história e
o próprio valor desses valores. Para Nietzsche, a análise referente à emergência
histórica desses valores e o próprio valor referente a eles não foram colocados por
nenhum outro pensador e, por causa disso, esses filósofos tomaram o juízo e valor
“bom” como dado, como acima de qualquer questionamento. Ou seja, para
Nietzsche, os filósofos pensavam o valor “bom” como sempre fecundo e útil para as
condições da vida e o valor “mau” como oposto; - mas isso talvez não fosse tão
simplificável assim se verificássemos suas origens históricas. Daí, o pensador dizer
que essas cristalizações dos filósofos para os juízos “bom” e “mau” poderiam
comprometer o futuro do homem, porque, além de serem considerados como
eternos e, por isso, servirem como formas equivocadas para explicarem a cultura e
todas as realidades do homem, já que poderiam existir forças históricas obscuras
referentes à emergência desses valores que não foram pensadas pelos filósofos,
Nietzsche sentia um cansaço contra a vida, uma narcose e acomodação com
relação ao “bom” e à moral de sua época que dava privilégio inquestionável para
esse valor.
Portanto, pretendemos demonstrar, embasados no pensamento de Nietzsche,
a verdadeira origem e realidade relacionadas com os valores “bom” e “mau”,
supondo que tal esclarecimento poderá fornecer saídas para a decadência futura do
homem. Com esse intuito, dividimos nosso trabalho em dois capítulos. No primeiro
capítulo, apresentaremos características referentes ao procedimento genealógico de
Nietzsche em Genealogia da moral. Trata-se de um procedimento fundamental para
compreendermos melhor nosso tema principal, relacionado com “bom e mau” e “bom
e ruim”, já que o procedimento genealógico é uma das características que fazem
com que Nietzsche aborde os valores “bom” e “mau” de forma diferente da vinculada
aos outros filósofos, graças ao fato de se vincular esse método com o conceito
denominado de “vontade de poder”. Significa dizer que todas as coisas estão em
movimento e relacionadas com embates complexos de forças isentas de qualquer
teleologia, mas incluídas na necessidade de acréscimo de poder. Disso, resulta que
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esses valores não são eternos ou excluídos desses choques de forças.


Depois de apresentarmos as características da genealogia, ela será colocada
em prática quando, no segundo capítulo, refletirmos sobre o tema “bom e mau” e
“bom e ruim”, e concluirmos que a realidade vitoriosa do valor “bom e mau”, na
verdade, é derivada do valor “bom e ruim”. Portanto, além de analisarmos que o
valor “bom e mau” depende de outros (“bom” e “ruim”) e, logo, não ser valor em si,
observaremos que houve um embate complexo (vontade de poder) entre os
portadores dessas duas valorações, a ponto da valoração “bom e mau” vencer na
história e ser a forma de valorar predominante na época de Nietzsche.
Buscaremos confirmar que o valor dos valores “bom e mau” e “bom e ruim”
está relacionado com a consonância ou dissonância do que Nietzsche concebeu
como vida e, portanto, observaremos que o valor “bom e mau” está realmente
vinculado com a miséria vital, no sentido de estar em dissonância em relação ao
que Nietzsche pensou como valor, vida e vontade de poder, já que, como
analisaremos, “bom e mau” possui vinculação com a impotência.
8

2 O MÉTODO GENEALÓGICO DE NIETZSCHE PRESENTE NA OBRA


GENEALOGIA DA MORAL: UMA POLÊMICA

Para compreendermos melhor o tema relacionado com os valores “bom e


mau” e “bom e ruim”, é fundamental entendermos o método genealógico de
Genealogia da moral.
Segundo Paschoal, o termo “genealogia” diz respeito às origens, porque” [...]
„genealogia‟ pode ser associado ao radical „geneá‟, que designa „gênero‟, „espécie‟
ou, mais propriamente, „geração‟ e „família‟; e ao radical „génos‟, que designa
„nascimento‟, „origem‟” (PASCHOAL, 2000, p. 2). Nietzsche se utilizou dessa
semântica da palavra para criar o seu método genealógico, mas o método
genealógico do filósofo foi endereçado ao homem e aos seus valores, de acordo
com Paschoal (2000).
Segundo Nietzsche (1998), seu método genealógico, em Genealogia da
Moral, consistiu em uma análise que se utilizou de conhecimentos históricos para
observar a emergência dos valores morais ao longo da moral vivida na história. O
filósofo se utilizou, também, em tal história peculiar da emergência dos valores, os
seus conhecimentos filológicos e, de acordo com suas próprias palavras, “[...] um
inato senso seletivo em questões psicológicas” (NIETZSCHE, 1998, p. 9). O trabalho
de Nietzsche foi bem exposto por ele:

Por fortuna logo aprendi a separar o preconceito teológico do moral, e não


mais busquei a origem do mal por trás do mundo. Alguma educação
histórica e filológica, juntamente com um inato senso seletivo em questões
psicológicas, em breve transformou o meu problema em outro: sob que
condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? e
que valor tem eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do
homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida?
Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua
coragem, sua certeza, seu futuro?. (NIETZSCHE, 1998, p. 9).

Nietzsche (1998, p. 13) disse que “o objetivo é percorrer a imensa, longínqua


e recôndita região da moral – da moral que realmente houve, que realmente se viveu
– com novas perguntas, com novos olhos”. Portanto, está evidenciado que a
intenção do filósofo, com a sua genealogia, não era procurar uma origem anterior à
história, origem a-histórica, em que os valores fossem valores em si e anteriores a
todas as vivências humanas. Ou seja, não consistiu na busca de uma origem
relacionada a um momento primordial em que os valores morais possuíram um início
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abrupto e imediato, mas consistiu em uma análise da emergência das valorações


morais ao longo da história, que esteve relacionada com algo que não procurou o
momento tão exato de tal aparição dos valores, porque, se fosse assim, seria algo
próximo de uma origem primeira e primordial. Então, podemos conceber o fato de
que todas essas características e situações mencionadas pertencem ao método
genealógico de Nietzsche.
No entanto, precisamos nos indagar sobre os motivos que fizeram com que
essa busca dos valores não estivesse visando a uma origem primeira e a-histórica
para eles. Além disso, para entendermos a genealogia presente em Genealogia da
moral, devemos pensar que a investigação genealógica esteve intimamente
relacionada com o valor dos valores (valor no sentido de algo útil ou prejudicial para
a vida e suas condições), porque o filósofo disse, na mesma parte do livro em que
foi relatado o que ele mencionou acima, que “tomava-se o valor desses valores
como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento” (NIETZSCHE,
1998, p. 12). Nietzsche relatou, por exemplo, que sempre consideraram o valor
“bom” como acima de qualquer valor “mau”, mas isso talvez não seja tão
simplificável se verificarmos a emergência histórica de tais valores, segundo sua
interpretação genealógica. Sobre a recusa da genealogia nietzschiana em procurar
tal origem a-histórica, Foucault confirma o que dissemos, quando diz sobre a
pesquisa, da origem, que Nietzsche recusou no seu método genealógico da moral, e
o filósofo francês já nos fornece uma dica sobre o porquê de tal recusa por parte de
Nietzsche:

[...] a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência


exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade
cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo
o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar
reencontrar "o que era imediatamente", o "aquilo mesmo" de uma imagem
exatamente adequada a si. (FOUCAULT, 1982, p. 13).

A compreensão de tal método é fundamental para entendermos a relação que


Nietzsche fez com os valores “bom e mau” e “bom e ruim”, como já dissemos. E,
além de termos abordado o método genealógico anteriormente e, também, algo que
será realizado nas próximas páginas, precisamos lembrar que foi importante
mencionar o “valor dos valores”, porque esse valor consiste em algo fundamental
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tanto para a genealogia nietzschiana como para o item final de nosso trabalho, que
está relacionado com a miséria da vida.

2.1 Genealogia e vontade de poder

Para compreendermos a origem das valorações “bom e mau” e “bom e ruim”,


é fundamental observarmos o conceito de vontade de poder, que está presente,
principalmente, nas obras Além do bem e do mal e Genealogia da moral, como
imanente ao método genealógico de Nietzsche, segundo Araldi (2008). Porque o
conceito de vontade de poder está presente, segundo Paschoal (2009), tanto na
moral que estipula a valoração “bom e mau” como na que se apropria do “bom e
ruim”, que são valorações presentes nas morais dessas duas obras. No entanto, a
explicitação pormenorizada dessas valorações relativas a essas duas morais (assim
como as próprias duas morais) não será explicitada agora.
A vontade de poder é um conceito central na filosofia de Nietzsche, porque,
de acordo com ele, “o mundo visto de dentro, o mundo definido e designado
conforme o seu „caráter inteligível‟- seria justamente „vontade de poder‟, e nada
mais” (NIETZSCHE, 2005, p. 40). Está claro que tudo se refere à vontade de poder
para Nietzsche, e, segundo Paschoal (2014), Nietzsche observou o homem como
uma multiplicidade de vontades de poder. Em Genealogia da moral, Nietzsche disse
sobre ela:

[...] Mas com isto se desconhece a essência da vida, a sua vontade de


poder; com isto não se percebe a primazia fundamental das forças
espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas,
interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a
“adaptação”. (NIETZSCHE, 1998, p. 67).

Sobre a presença de tal conceito de vontade na obra nietzschiana, podemos


dizer que foi incluído no procedimento genealógico da moral tardiamente. Porque
Nietzsche disse que os primeiros impulsos para demonstrar os seus estudos morais
apareceram no livro Humano, demasiado humano e, além disso, oriundos do estudo
que ele fez sobre uma obra de Paul Rée, de nome A origem das impressões morais.
Aquele livro do filósofo continha algumas ideias de Paul Rée; no entanto, para citar
um exemplo referente às diferenças entre Humano, demasiado humano e
Genealogia da moral, o próprio Nietzsche (1998, p. 10) relata que os estudos
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daquele livro ainda estavam incompletos, quando diz “[...] de maneira canhestra,
como seria o último a negar, ainda sem liberdade, sem linguagem própria para
essas coisas próprias, e com recaídas”. Portanto, podemos dizer que os estudos de
Genealogia da moral consistem em estudos mais completos, e isso, também, é mais
provável por ser um estudo tardio e por incluir o seu conceito de Vontade, que
estaria relacionado com o que ele disse sobre “linguagem própria”. De fato, Araldi
disse que foi na “[...] Genealogia da moral que os estudos históricos da moral
assumem importância decisiva no procedimento genealógico (ARALDI, 2008, p.
34)”. Essa importância decisiva está relacionada com o conceito de vontade de
poder:

A abordagem histórica da moral é formulada pela primeira vez em Humano,


demasiado humano I, no capítulo “Contribuição à história dos sentimentos
morais”. Nietzsche não fornece propriamente um novo método de análise da
moral, pois partilha de muitos conceitos e argumentos da obra, na época
recém-publicada, de Paul Rée. A origem dos sentimentos morais (1877).
Nessa obra, Paul Rée discute os conceitos de prazer e desprazer, de vício e
virtude, de utilidade geral, em Hume, em Schopenhauer e no utilitarismo
moral inglês. À semelhança de Hume, Schopenhauer, e da interpretação
recente de Rée, também Nietzsche deriva os sentimentos morais dos
sentimentos de prazer e desprazer. Na época tardia, contudo, ele se
distancia dessa abordagem, ao desenvolver a doutrina da vontade de
poder, como novo critério descritivo e valorativo. (ARALDI, 2008, p. 35,
grifos do autor).

De acordo com o que observamos até aqui, podemos dizer que a vontade de
poder é recente na obra nietzschiana e fundamental para o método genealógico,
método que não estava relacionado com esse conceito de vontade em outras obras,
como dito.
Segundo Paschoal (2014, p. 54-56), o conceito de vontade está relacionado
com o fato vinculado ao movimento permanente do mundo, que consiste em um vir-
a-ser “num jogo permanente e aberto de forças que se desenrola sem conhecimento
prévio de vencedores e vencidos”. As forças incluídas no conceito de vontade de
poder não dizem respeito a “unidades fixas”, mas são “forças em ação” de
“existência provisória”. É por causa disso e do fato de estar presente, em tal
conceito, a realidade de que “tudo se encontra em movimento” (PASCHOAL, 2014,
p. 54) que não se pode atribuir uma origem primeira para a investigação genealógica
de Nietzsche sobre a moral. Jean Lefranc (2005) nos confirma essa impossibilidade,
porque a vontade de poder faz parte do método genealógico de Nietzsche e, como
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vimos, a genealogia não trabalha com causas primeiras. Isso se torna evidente
quando observamos que o próprio Nietzsche disse, sobre a vontade de poder, que
“este mundo é um monstro de força sem começo nem fim [...]” (NIETZSCHE, 2011,
p. 136), e, além disso, Nietzsche (1998) nos informou que a origem de algo não
condiz com a sua utilidade atual. Portanto, por causa de todas essas circunstâncias,
segundo Paschoal (2000), é extremamente complicado utilizarmos o nosso intelecto
presente para atribuirmos uma causalidade primeira, necessária e a-histórica,
oriunda da percepção histórica, para situações que estavam em constante vir-a-ser
e que não fazem parte de nossa realidade presente, que também está em constante
vir-a-ser. Porque o nosso intelecto tende a estabilizar falsamente tal vir-a-ser,
atribuindo causalidades imaginárias e, com isso, seria uma investigação idêntica à
investigação cristalizante dos metafísicos e de outros teóricos da moral. É por causa
disso que a vontade de poder é uma formulação que almejou ser uma contraposição
aos metafísicos, segundo Paschoal (2009), e uma formulação que assumiu a sua
condição de ser mais uma perspectiva dentre as várias existentes.
Salientamos, como vimos, o fato de a vontade de poder estar relacionada
com a questão do devir mas, no entanto, para Paschoal , ela não possui nenhuma
substância e também não é uma substância no sentido de “tornar-se” e, por isso,
precisa ser entendida como “quantidades de ação, proporções de querer, forças em
ação” e um “quantum” que possui relação com “outros quanta” (PASCHOAL, 2014,
p. 56). Ou seja, são forças entendidas somente quando estão relacionadas com
outras forças, significando que não possuem o caráter solitário e não podem ser
entendidas como simples desdobramentos de algo que existia (o tornar-se de algo
anterior relativo ao vir-a-ser). Porque Nietzsche, também, segundo Paschoal (2009),
foi um crítico dos atomistas e, além disso, o próprio caráter dos escritos de
Nietzsche, de acordo com Paschoal, não demonstrava a conotação atomista e
substancialista, porque: “[...] o termo quantum, que encontramos naquelas
anotações, não corresponde a um tipo de matéria ou partícula mínima, como um
átomo ou uma mônada que permaneceria após desagregar-se” (PASCHOAL, 2014,
p. 56).
Depois das informações observadas até aqui, podemos acrescentar outras
informações importantes sobre a vontade de poder. Jean Lefranc, quando interpreta
a filosofia de Nietzsche, nos fornece um conteúdo importantíssimo sobre ela:
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De um lado, a vontade de poder é vontade de diferença, de acréscimo de


poder; de outro lado, ela é vontade de diferenciação segundo formas
diversas e novas. Ela pretende estar além do que ela é, ser outra do que ela
é. Sua multiplicidade essencial implica desde a origem uma capacidade
indefinida de metamorfose. (LEFRANC, 2005, p. 151).

Após a informação de Lefranc mencionada anteriormente, podemos


acrescentar que, para Nietzsche (1998), como veremos posteriormente, o
ressentimento da moral “escrava” cresce cada vez mais, porque tal ressentimento,
relacionado com a vontade de poder nessa moral (já que tudo está relacionado com
a vontade de poder), “pretende estar além” (LEFRANC, 2005, p. 151); portanto,
pretende estar além porque quer mais de si sob novas formas. Além disso, segundo
Nietzsche (1998), a vontade de poder é um conceito que nos remete à ideia de que
o desenvolvimento de algo não acontece de forma lógica, sem subjugamentos e,
também, não está se desenvolvendo para uma meta e de maneira rápida; então,
isso explica, também, o fato de que, para o filósofo, essa moral nociva, a “escrava”,
tenha vencido, já que os acontecimentos não seguem uma teleologia pré-ordenada
na qual já está programado que os melhores, mais aptos e corretos vencerão. Mas,
como dito, veremos sobre essa moral, mais a fundo, posteriormente.
De acordo com tudo o que foi explanado até agora, observamos que a
vontade de poder, para Nietzsche, se refere a todas as instâncias da realidade e,
portanto, também se refere à moral que Nietzsche estabelece sua crítica
genealógica. Mas como podemos pensar em uma relação mais precisa e mais clara
da vontade de poder com a moral e com o nosso tema mais central? Ora, essa
resposta se esclarece quando observamos que Nietzsche (2005), em Além do bem
e do mal, disse que só existem as interpretações morais relacionadas aos
fenômenos morais; com isso, de acordo com Paschoal (2009), toda moral se
estabelece por interpretações que estão excluídas da moral em si, mas que são
interpretações fundamentais para dar forma para a moral. Então, essa forma da
moral é estabelecida, de acordo com Paschoal (2009), por uma vontade de poder
que coloca nela as suas formas e impõe aos demais essas formas. Portanto, existe
uma vontade de poder que quer imprimir, através da moral, as suas necessidades e
ideais a ponto de transformar a moral em algo propício para a elevação de um tipo
de homem específico, em prejuízo dos demais, segundo Paschoal. Além disso,
Paschoal nos lembra que toda vontade de poder está relacionada com polos
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opostos que entram em conflito, que são polos presentes em todo tipo de conflito;
portanto, quando Nietzsche pensa na moral como conflito, ele estabelece uma
divisão entre “moral dos senhores” e “moral dos escravos” relacionada a tal
polarização. São essas morais as responsáveis pelas valorações “bom e mau” e
“bom e ruim”, como veremos posteriormente.
Depois de todas as informações observadas, podemos dizer que Nietzsche,
com seu método genealógico, fez uma crítica a toda a moral, porque pensou que ela
estava no caminho errado do acréscimo de poder da vontade de poder, segundo
Paschoal (2014). Para Nietzsche, a moral ocidental vigente mereceu críticas,
também, pelo fato de que, com ela, o homem talvez não fosse capaz de alcançar a
sua “suprema potência e esplendor” (PASCHOAL, 2014, p. 62). E esse esplendor
difícil de alcançar estaria de acordo com o movimento da vida, que observaremos na
parte final de nosso estudo. Portanto, segundo esse comentador, como Nietzsche
observou a moral atual como o produto de uma vontade de poder negativa, o
filósofo, com os seus textos, pretendeu criar valores diferenciados. Porque a moral
que venceu, a “escrava” (como veremos), também criou os seus valores, já que a
vontade de poder de tal moral se utilizou de suas forças “agressivas, expansivas,
criadoras de novas formas, interpretações e direções” (NIETZSCHE, 1998, p. 67).
Então, os valores diferenciados que Nietzsche almejou criar, segundo Paschoal,
estão se opondo aos valores vigentes da moral “escrava” e estão de acordo com a
vontade de poder autêntica.

2.2 Vontade de poder: interpretação e crítica à metafísica

Observaremos, agora, o aspecto da vontade de poder acoplada ao método


genealógico como crítica à metafísica e como necessidade de apresentar uma nova
abordagem, porque, segundo Kahlmeyer-Mertens (2007), o método de Nietzsche
também foi uma forte crítica aos metafísicos e estipulou a necessidade de uma nova
observação dos valores.
Segundo Paschoal (2000), Nietzsche possuía a intenção de evidenciar uma
nova interpretação com a sua genealogia presente em Genealogia da moral, oposta
à interpretação dos filósofos, para demonstrar que os fatos interpretados pelos
filósofos poderiam receber interpretações adequadas que fossem invertidas e
opostas às suas interpretações. Paschoal (2000) disse que Nietzsche deixava claro,
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quando engendrava seu novo modo de interpretar, que os próprios filósofos tinham
interpretações e não conceitos imutáveis sobre a realidade e sobre os valores
morais; porque um mesmo fenômeno, quando analisado pelos filósofos, poderia
receber interpretações em outras perspectivas, e isso demonstrou que, quando se
trata de um fenômeno ou dos valores morais, não existe somente “a interpretação”,
travestida em conceito imutável, como os filósofos gostariam. Mas por que Nietzsche
observou nessa abordagem cristalizante, dos filósofos, algo ruim e, além disso, qual
a relação da metafísica com essa cristalização?
A contraposição aos filósofos, oriunda da necessidade de se utilizar de uma
nova interpretação, aconteceu pelo fato de nunca se perguntarem pelo valor dos
valores e porque são esses próprios valores os responsáveis por essa cristalização
de conceitos mencionada anteriormente, quando os valores fazem com que os
pensadores “tomam-nos como pressupostos intocáveis e os utilizam para
estabelecer suas fórmulas sobre a moral, a ciência, a política etc.” (PASCHOAL,
2000, p. 4). Além disso, podemos pensar que a contraposição aos filósofos está
relacionada com o fato de que “a investigação crítica do surgimento e
desenvolvimento da moral [feita por Nietzsche], que ocorre a partir dos escritos de
1876, está intimamente ligada à crítica da metafísica”. (ARALDI, 2008, p. 36). Se
fizermos a inferência entre o que esses dois comentadores disseram agora,
podemos dizer que os valores são utilizados, por parte dos filósofos, para explicar a
política, a ciência e a moral, e esses valores estão intimamente relacionados com as
necessidades e modos de interpretação da metafísica, se lembrarmos que também
a metafísica está demasiadamente vinculada com uma necessidade de adquirir
conceitos imutáveis e fixos para explicar a realidade com todas as suas instâncias
complexas. Portanto, esse confronto com os filósofos possui relação com a
cristalização ilusória que acontece tanto com os valores quanto com a metafísica,
que se acha no direito de explicar todas as instâncias e âmbitos da realidade, como
a ciência, a política e a moral, por exemplo. É por causa da contraposição às
cristalizações dos valores e da metafísica que a genealogia se opõe à necessidade
de buscar uma origem para os valores relacionada com “sua identidade
cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é
externo, acidental, sucessivo.” (FOUCAULT, 1982, p. 13). Porque, como dito, esse
engessamento, relacionado com os valores/metafísica, foi ilusório na concepção de
Nietzsche. Mas observaremos, depois, outras informações para explicar melhor
16

sobre o porquê de ter sido uma ilusão tão prejudicial.


Devemos, no entanto, informar outros quesitos sobre o fato de estarmos
enfocando a metafísica e não só os valores morais. Ora, sobre isso, lembramos que,
de acordo com Kahlmeyer-Mertens (2007, pp.1-2), a crítica à metafísica, para
Nietzsche, é ainda mais originária do que a crítica referente à moral, e ela é o âmago
da filosofia e genealogia nietzschianas, o centro que faz derivar as críticas para a
moral. Porque é evidente, segundo Kahlmeyer-Mertens (2007), que a crítica à
metafísica é principal quando observamos que Nietzsche foi, principalmente, filósofo,
e muitas críticas sobre a moral, que estão presentes na sua filosofia, possuem
aspectos bem próximos dos aspectos sociológicos e antropológicos, o que não
consiste na tarefa mais central das tarefas atribuídas aos trabalhos relacionados ao
ofício de filósofo. No entanto, de acordo com Paschoal (2014), é também evidente
que Nietzsche não transitou somente pelo âmbito da crítica endereçada à metafísica
e que a crítica referente à moral se estende, realmente, a âmbitos da antropologia e
sociologia, quando se trata de certas questões. Sobre o fato de a metafísica ser
mais central na crítica nietzschiana, como Roberto S. Kahlmeyer-Mertens (2007) diz,
talvez seja o mais adequado a ser atribuído a Nietzsche, já que é muito mais fácil
inferir a cristalização dos valores morais, e outras cristalizações, quando pensamos,
primeiramente, nas conseqüências de raciocínio vinculadas à metafísica.
Apesar de Nietzsche ter considerado a cristalização dos valores e da
metafísica como enganosa para explicar as instâncias complexas da realidade (
lembrando que Nietzsche contrapõe a sua genealogia a essa ilusão), precisamos
entender outros motivos que fazem com que essa cristalização dos valores,
relacionados com a metafísica e a moral, seja prejudicial e ilusória. Portanto,
estamos retomando a ilusão da metafísica que citamos em outro parágrafo e, com
isso, podemos dizer que a genealogia e o seu novo modo de interpretar, segundo
Paschoal (2000), se manifestou contra as tentativas errôneas de cristalização dos
valores e reificação de todas as coisas por parte dos filósofos, pelo fato de ser
contrária à ilusão cristalizante por negar a complexidade da realidade, como já
dissemos; mas, também, a crítica estava relacionada com uma necessidade de
apresentar ao homem uma saída para a sua ruína. Portanto, existe o fato de tal
cristalização de conceitos e de valores ser extremamente prejudicial para o homem
e para o futuro deste, segundo Nietzsche (1998), e é isso que veremos a seguir.
Para entendermos melhor o efeito nocivo da cristalização para o futuro do
17

homem, citamos as palavras de Nietzsche (1998, p. 11): “enxerguei o começo do


fim, o ponto morto, o cansaço que olha para trás”. Ele abordou, nessa menção, os
instintos de compaixão, que também tentavam se cristalizar e se tornar valores em
si. E Nietzsche disse que todos esses valores estavam contra a vida (foi importante
mencionar “vida”, porque esse “contra a vida” será importante para o final de nosso
trabalho).
Para esclarecermos melhor o que ele disse, é importante informarmos que
Giacoia Junior (1989, p. 99) nos lembrou que o filósofo se utilizou da própria vida
como critério para as suas críticas sobre a moral e a metafísica, e essa vontade de
verdade incondicionada dos filósofos, marcada por uma necessidade grande de
cristalização e valorização da verdade, está contra a vida mesma; porque, se a vida
é caracterizada por ocultamentos, falsidades, delírios “então a crença no valor
incondicional e exclusivo da verdade [...] não encontra justificativa num cálculo
utilitário, cujo resultado determinasse a absoluta e exclusiva necessidade e utilidade
da verdade para a vida”. Para Giacoia Júnior (1989), a vida é um critério em
Nietzsche porque ela é o único critério que não pode ser embasado por outro, pelo
fato de tudo se originar com a vida. No entanto, Giacoia Júnior nos lembra que
Nietzsche não se chocou com a verdade em si mesma, mas com a superestimação
e crença incondicional no valor da verdade como algo que acometeu o homem
desde a cultura socrática, e tal crença era subjacente às cristalizações em si
mesmas. Portanto, é por causa da crença incondicional na verdade e os efeitos de
tal cristalização para as condições da vida e para o futuro do homem (efeitos da
crença incondicional na verdade e crença em tal cristalização, mas, também, a
própria cristalização em si, se observarmos de acordo com a perspectiva da
metafísica e dos valores) que, com a genealogia, Nietzsche procura, também, “criar
valores”, de acordo com Paschoal (2000, p. 5). São os valores de sua época,
herdados por movimentos históricos complexos, que podem comprometer o futuro
do homem e, por isso, Nietzsche precisa demolir tal “prisão” para criar novos valores
com os seus escritos e demonstrar que, segundo Paschoal, a “criança de Heráclito”
é possível – porque Heráclito foi o grande e primeiro filósofo a demonstrar o fato de
que tudo está em movimento. No entanto, essa criação de valores, segundo
Paschoal, precisa ser embasada e não recair em um relativismo inútil. Para
retomarmos, agora, apenas a característica da cristalização em si mesma e
deixarmos de lado a informação vinculada com o prejuízo para o futuro do homem
18

que citamos anteriormente, podemos dizer que já fornecemos algumas informações


que podem indicar o equívoco de tal engessamento, mas, para esclarecermos e
aprofundarmos isso melhor, lembramos que Foucault nos forneceu outras pistas
importantes contra a cristalização criticada por Nietzsche, quando disse sobre o tipo
de interpretação e investigação engendrado pela genealogia nietzschiana:

[...] como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido
invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a genealogia, um
indispensável demorar−se: marcar a singularidade dos acontecimentos,
longe de toda finalidade monótona; espreitá−los lá onde menos se os
esperava e naquilo que é tido como não possuindo história − os
sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não
para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as
diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o
ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram (Platão em
Siracusa não se transformou em Maomé). (FOUCAULT, 1982, p. 12).

Relacionado ao que o filósofo francês disse anteriormente, podemos dizer


que, além do fato de que os acontecimentos conheceram “invasões, lutas, rapinas,
disfarces [...]” (FOUCAULT, 1982, p. 12), observamos, também pelas informações
de Foucault, que não se pode atribuir ao movimento da produção de valores uma
interpretação causal que é fria, que não observa os instintos e que não analisa a
singularidade de certos acontecimentos históricos, como as etimologias e raízes de
palavras nas diversas línguas, por exemplo, que foi o que Nietzsche fez quando
investigou os valores “bom e mau” e “bom e ruim” e os afetos vinculados com tais
valores, como veremos. Portanto, tal esclarecimento consiste em mais uma crítica
aos metafísicos. E, além disso, a genealogia de Nietzsche negou o método de vários
historiadores da moral; porque tais historiadores, além de tomarem os valores -
como os valores “bom” e “mau”- como dados, pensavam que a história foi
perpassada por uma essência imutável que atravessava os tempos. Sobre essa
essência imutável que atravessa a história, isso se verifica, principalmente, com
Hegel. (PASCHOAL, 2000, p. 4). Ou seja, os historiadores (da moral ou não)
pensavam a história, como já dito, de uma forma parecida com a dos metafísicos e
com os valores que não colocaram em questão. Além disso, como enunciado por
Foucault (1982), não é fácil o conhecimento sobre as origens e, por causa disso, o
“demorar-se” é necessário. Tal demorar-se está muito relacionado com a análise
minuciosa de documentos e de movimentos históricos complexos (como, por
exemplo, a análise da etimologia das palavras “bom e ruim” e “bom e mau”) ou está
19

relacionado com a melhor forma de se engendrar hipóteses históricas mais certeiras


“que são as únicas que podem caminhar até lá, onde a falta de documentos sobre a
„origem‟ torna o olhar impossível.” (PASCHOAL, 2000, p. 3). Ou seja, a
impossibilidade de se trabalhar com causalidades necessárias, através do intelecto,
para uma origem primeira e a-histórica para os valores e para a moral, pede por uma
observação que só funciona por hipóteses.
Para enfatizarmos a relação das análises históricas relativas aos documentos
mencionados anteriormente e, também, os genealogistas da moral que informamos,
podemos dizer que Nietzsche disse que a sua genealogia é “cinza”, e as outras
genealogias estão na prevalência do “azul”, significando que a sua genealogia lida
com “a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente havido”
(NIETZSCHE, 1998, p. 13). Ou seja, analisa o que aconteceu, de fato, na história. A
referência ao azul, por Nietzsche, consistiu em uma menção feita, principalmente,
aos psicólogos ingleses, quando esses atribuíram uma causalidade
demasiadamente previsível para o juízo de valor “bom”, causalidade isenta de
embates complexos de forças na história. Esses genealogistas foram, para
Nietzsche, os que “[...] até agora devemos as únicas tentativas de reconstituir a
gênese da moral” (NIETZSCHE, 1998, p. 17). Portanto, esses genealogistas foram
os principais historiadores da moral (historiadores que mencionamos no parágrafo
anterior) a receberem críticas de Nietzsche. O fato de terem sido os únicos, até
agora, a estipularem uma gênese para a moral, fez com que Nietzsche os criticasse,
porque não existiam outros, segundo sua percepção. O filósofo, além disso, criticou
esses psicólogos por possuírem um raciocínio muito próximo do referente aos
metafísicos e, além disso, Nietzsche não duvidava que “a natureza mesma das suas
questões o levaria a métodos mais corretos para alcançar as respostas”
(NIETZSCHE, 1998, p. 13). Ou seja, para Nietzsche, eles possuíam bons
questionamentos para serem apropriados pelo filósofo, mas, evidentemente, não
possuíam boas soluções.
Tais psicólogos incluíam Paul Rée e os utilitaristas. Os utilitaristas estão
incluídos porque a utilidade está presente na crítica que Nietzsche vincula aos
genealogistas, pelo fato de que, além de Nietzsche dizer que o útil consiste em algo
típico a eles, ele também cita Herbert Spencer na primeira dissertação de
Genealogia da moral, que foi inglês e utilitarista. Além disso, a obra de Paul Rée que
Nietzsche tem em mente está relacionada com o fato de que “Paul Rée discute os
20

conceitos de prazer e desprazer, de vício e virtude, de utilidade geral, em Hume, em


Schopenhauer e no utilitarismo moral inglês.” (ARALDI, 2008, p. 35).
Portanto, é evidente que o pensador fez críticas aos utilitaristas. Para
abordarmos a crítica que Nietzsche fez a eles, esta consistiu em que esses
genealogistas disseram que a causa da origem do juízo “bom” se referiu ao fato de
que era útil para quem recebia as ações não egoístas considerarem tais atitudes
como boas e, por causa disso, o tempo e o hábito se encarregaram de que tais
atitudes fossem sentidas como boas em si, por serem costumeiramente pensadas
como boas. O problema dessa interpretação está em que tais genealogistas se
utilizaram de um raciocínio teleológico muito próximo dos metafísicos, porque
“deslocando a utilidade atual de uma ação para a origem da mesma, estão
pensando sua finalidade atual como uma causa já estabelecida desde a origem.”
(PASCHOAL, 2000, p. 7). Mas veremos novamente essa crítica quando analisarmos
o juízo e conceito de “bom”.
Para relatarmos mais uma vez a noção de vontade de poder e, com isso, a
crítica de tal conceito nietzsciano aos metafísicos, outro quesito importante consiste
no fato de que a genealogia nietzschiana “tem sua emergência diante da
necessidade de se recolocar em movimento o que tende a se estagnar, a se
converter em „água parada‟” (PASCHOAL, 2000, p. 4). Ou seja, Nietzsche se utilizou
de seus conhecimentos filológicos, na genealogia, para colocar em movimento o que
estava oculto nos documentos e palavras de época, segundo Paschoal (2010). O
que significa que, no nosso caso específico, Nietzsche procurou os conceitos e
valores relacionados com as palavras “bom” e “mau” nas diversas línguas - veremos
isso posteriormente - para demonstrar o movimento que ocasionou a elaboração de
tais valores quando foram fixados pela escrita. São movimentos sempre complexos,
que não remetem a unidades fáceis de se identificar. Portanto, Nietzsche coloca em
“movimento” as etimologias e conceitos das palavras, que possuem a preferência
por se manterem estáticas, e tal estático está muito presente na concepção dos
genealogistas da moral e metafísicos de todos os tempos. De acordo com Paschoal
, ele partiu do texto, da etimologia e do fixo da palavra para criar uma interpretação
que lidou com forças complexas em movimento e que, também, estão relacionadas
com a criação de tais palavras na história. Além disso, a própria forma como
Nietzsche apresentou os seus textos aparenta demonstrar que estes estão
subordinados a uma espécie de “movimento”. Tudo isso se refere a uma clara
21

objeção contra as cristalizações ilusórias.


Está claro, então, que tudo o que possui referência à genealogia em
Genealogia da moral consiste em uma forte objeção aos metafísicos e à
cristalização ilusória dos valores. Portanto, com o que foi apresentado até aqui,
podemos conceber essas forças que se misturam, as lutas, os movimentos
complexos que enunciamos anteriormente, quando aparecem para a formação dos
valores, como fundamentais para o entendimento da genealogia, também, como
vontade de poder. Além disso, esse conceito está relacionado com a criação de
valores. Observaremos melhor a seguir, a partir do que refletimos, a relação de “bom
e mau” e “bom e ruim”, porque esses valores não dizem respeito a qualquer noção
de “bom”, “mau” e “ruim”, porque são valores concebidos, por Nietzsche, de uma
forma diferente da referente aos filósofos de todos os tempos, segundo Paschoal
(2000). Porque uma das situações que marcam essa diferença, com relação aos
filósofos, diz respeito à sua genealogia, que mencionamos até aqui.
22

3 “BOM E MAU” E “BOM E RUIM” NA PRIMEIRA DISSERTAÇÃO DE


GENEALOGIA DA MORAL: UMA POLÊMICA

Para começarmos abordando um pouco a importância de nosso tema (“bom e


mau” e “bom e ruim”) vinculado à moral e aos valores, Kahlmeyer-Mertens (2007)
nos informa que consiste em algo relacionado aos “ [...] conceitos que norteiam a
tradição moral. São eles os pré-conceitos de „bem e mal‟, „bom e ruim‟” (MERTENS,
2007, p. 3). Portanto, Nietzsche tinha tal norteamento em mente, e a importância do
tema também se torna evidente quando observamos que Araldi nos lembra sobre a
necessidade de Nietzsche de “primeiro oferecer argumentos consistentes acerca do
enraizamento histórico da tipologia da moral, da distinção entre nobre e escravo, e
do critério normativo que a ela conduz” (ARALDI, 2008, p. 38). Portanto, se
Nietzsche elenca isso em primeiro lugar, significa que é muito importante, porque
esse enraizamento histórico, referido no trecho, diz respeito a “bom e mau” e “bom e
ruim”, que são valorações relativas à forma nobre e escrava de valorar (como
veremos) e que, também, são fundamentais, no pensamento de Nietzsche, para o
início da crítica referente à moral. Sobre a tipologia mencionada no trecho de Araldi,
também abordaremos, posteriormente, o que está vinculado com essa noção. Então,
depois de tais breves esclarecimentos sobre a importância do tema, traçaremos o
percurso principal de Nietzsche, na primeira dissertação de Genealogia da moral,
para a investigação de tais valorações.

3.1 O juízo e conceito de “bom”: algo iniciado com os nobres

Depois de abordarmos a importância do tema, mencionada acima, e o método


genealógico no início de nosso trabalho, que foi o método explanado para
concebermos como mais completa e clara a crítica feita por Nietzsche aos valores
“bom e mau” e “bom e ruim”, começaremos abordando o nosso tema pelo juízo e
conceito de “bom”. Nietzsche iniciou sua investigação sobre o tema abordando o
conceito de “bom” do que ele denominou de psicólogos ingleses (como vimos, tais
psicólogos eram os utilitaristas), porque, para o filósofo, eles foram os responsáveis
pelas “únicas tentativas de reconstituir a gênese da moral” (NIETZSCHE, 1998, p.
17).
Antes de relatar a teoria vinculada ao conceito “bom” de tais genealogistas, o
23

filósofo começou abordando a possibilidade da existência de um “rancor subterrâneo


ao cristianismo (e a Platão)” relacionado com eles, dentre outros sentimentos ou
instintos, como um possível “instinto de apequenamento do homem” (NIETZSCHE,
1998, p. 17). Tal “rancor subterrâneo” esteve vinculado ao fato de que eles
pensaram “como é velho costume entre os filósofos, de maneira essencialmente a-
histórica” (NIETZSCHE, 1998, p. 18). Ou seja, para Nietzsche, o procedimento
desses genealogistas ingleses não se diferiu do procedimento dos mais antigos
filósofos, que começou com Platão, embora pensassem que possuíssem algo novo.
É por causa disso que Nietzsche citou o “rancor subterrâneo” desses psicólogos
ingleses.
Depois de abordar esse possível sentimento desses genealogistas, Nietzsche
(1998, p. 18) disse que eles erraram ao caracterizarem o juízo e conceito “bom”
como possuindo um início referente àqueles indivíduos que valorizaram as ações
não egoístas por serem úteis. Sobre o “úteis”, aqui, diz respeito ao sentido de
benéfico e vantajoso. Além disso, o filósofo nos lembrou que, para esses
genealogistas, apesar do juízo “bom” ter começado por causa da utilidade de tal
juízo, essa origem foi esquecida com o passar do tempo porque a “origem do louvor,
e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas
como boas, foram também sentidas como boas – como se em si fossem algo bom”.
Portanto, na concepção de tais genealogistas, “bom” estava relacionado com as
ideias de não egoísmo, com as ideias relativas à utilidade esquecida e, também, ao
hábito. Sobre isso, Nietzsche nos informou que a teoria desses genealogistas, além
de ser a-histórica, “sofre de um contra-senso psicológico”, porque o filósofo disse:

A utilidade da ação não egoísta seria a causa da sua aprovação, e essa


causa teria sido esquecida – como é possível tal esquecimento? A utilidade
dessas ações teria deixado de existir? Ao contrário: essa utilidade foi
experiência cotidiana em todas as épocas, portanto algo continuamente
enfatizado; logo, em vez de desaparecer da consciência, em vez de tornar-
se olvidável, deveria firmar-se na consciência com nitidez sempre maior.
(NIETZSCHE, 1998, p. 20).

Como acabamos de observar, de acordo com o filósofo, é absurda a teoria


que diz que a utilidade foi esquecida, porque o útil foi experiência de todas as
épocas. Daí, Nietzsche disse que mais razoável, embora também fosse inadequada,
era a teoria de Herbert Spencer, que disse que “bom” era “ essencialmente igual a
útil [...] de modo que nos conceitos „bom‟ e „ruim‟ a humanidade teria sumariado e
24

sancionado justamente as suas experiências inesquecidas e inesquecíveis acerca


do útil-conveniente [...]”. Portanto, Nietzsche comentou que, segundo esta teoria,
“bom” seria o que sempre foi pensado como útil para a humanidade. Ou seja, útil no
sentido de algo proveitoso e benéfico, e o proveitoso e benéfico seria igual a “bom”.
Mas Nietzsche, como dito, também não defendeu essa tese.
Depois de observarmos, anteriormente, a menção a esses genealogistas
criticados por Nietzsche, Eizirik e Trevisan comentam o que foi exposto, pelo filósofo
alemão, sobre Herbert Spencer e os outros lembrados, quando os dois
comentadores nos informam o fato de que esses genealogistas pensaram o “bom”
como algo sempre vinculado ao útil, como se essa relação existisse desde sempre.
Eizirik e Trevisan fazem com que fique mais clara a afirmação de Nietzsche sobre
esses genealogistas e sobre o fato de pensarem o conceito e juízo de “bom” como
algo a priori e isento dos embates complexos de força que mencionamos na parte
referente à genealogia e a vontade de poder, no início de nosso estudo:

[...] as duas concepções utilizam para sua argumentação as palavras


esquecimento e utilidade. No primeiro caso, a utilidade faz esquecer que ela
– a utilidade – está na raiz da constituição do „bom‟, e, no segundo caso, a
utilidade torna inesquecível – sanciona – aquilo que sempre demonstrou ser
útil conveniente. Ora, liga-se o útil ao bom como se essa ligação fosse
verdadeira em si, algo natural, e acrescenta-se aí um esquecimento dessa
ligação, quando a mesma seria reiteradamente repetida, – como é possível
tal esquecimento? Ambas as teorias buscam explicações para o surgimento
dos valores tomando alguns valores a priori, pois útil e bom estiveram
sempre ligados, necessariamente?. (EIZIRIK; TREVISAN, 2006, p. 363).

Depois de apresentarmos essa crítica de Nietzsche ao conceito e juízo de


“bom” dos utilitaristas mencionados, podemos dizer que, diferente da maneira como
eles pensaram, Nietzsche pensou “bom” como não possuindo relação com a
utilidade e o não egoísmo, porque, para ele, foram os “bons” e os “nobres,
poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si
e a seus atos como bons” (NIETZSCHE, 1998, p. 19). Os “nobres” que o filósofo
citou nesse trecho, de acordo com Almeida Vieira (2015), não foram pensados como
superiores em termos de matéria e recursos financeiros para o pensador alemão.
Portanto, para Nietzsche, foram os que se consideraram superiores que criaram
“bom” quando julgaram os seus próprios atos como sendo de primeira ordem,
excelentes, em oposição aos atos que consideraram baixos, vulgares e plebeus e o
filósofo destaca isso, de acordo com Almeida Vieira, não pensando em termos de
25

recursos financeiros e capacidades econômicas dos nobres (como mencionamos).


Além disso, Paschoal (2009) nos informa que esses “nobres”, referidos por
Nietzsche, não dizem respeito à integralidade da nobreza que conhecemos
historicamente, porque se trata de outro “nobre” e de algo relacionado com a
valoração (relativa à moral) “nobre”. Ou seja, não existe relação com o integral
relativo a uma figura histórica vinculada com o nobre histórico, porque se trata de
uma tipologia (mas retomaremos posteriormente a característica da tipologia e
também abordaremos, posteriormente, mais aspectos sobre as características dessa
valoração “nobre”). Além disso, sobre essa “nobreza”, Nietzsche (1998, p. 22) deixa
claro, quando comenta, que está interessado em um “traço típico de caráter”
relacionado a ela, o que retira de questão qualquer menção à economia e ao nobre
histórico somente vinculado com a política.
Após um breve esclarecimento sobre quem são esses “nobres”, precisamos
retomar o pensamento sobre a utilidade mencionada e o fato de esses “nobres”
considerarem seus atos como “bons”, a ponto de criar o “bom”. Daí, podemos
mencionar que Nietzsche (1998, p. 19) disse que foi de um “pathos da distância [...]
que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores:
que lhes importava a utilidade!”. Tal ponto de vista da utilidade era, então,
inconveniente, porque esses poderosos não se importavam com as friezas
calculistas relacionadas com a utilidade. Portanto, criaram “bom” sem pensarem
nisso. Sobre essa criação, segundo Nietzsche, existia, na concepção desses nobres,
um “ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores de
hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que
toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe”. Ou seja, uma
prudência calculadora e medrosa, oriunda da necessidade da utilidade, não era algo
que estava na mente desses nobres.
A não necessidade da utilidade se torna mais clara quando esclarecemos o
vínculo com o pathos da distância mencionado, porque Paschoal nos informa que tal
pathos está relacionado com suas ações, e essas ações do nobre “se encerram
nele, que sabe que não precisa do „abono‟ de um terceiro para elas.” (PASCHOAL,
2009, p. 100). Portanto, a utilidade, que não importa ao nobre, mencionada por
Nietzsche, além de não combinar com o aspecto enérgico e não calculista deles, é
irrelevante pelo fato de funcionar a um terceiro, e o pathos da distância faz, então,
com que suas ações sirvam a si mesmos e excluam terceiros. Para Nietzsche
26

(2005), em Além do bem e do mal, esse pathos também está relacionado com a
auto confiança desses nobres, que sabem que se encontram em posições elevadas
e, portanto, criam valores e não se importam com as instâncias e circunstâncias que
estão fora deles para justificar as suas ações. Percebe-se, então, que a criação de
“bom” não possui relação com a utilidade vinculada com os utilitaristas e psicólogos
ingleses mencionados.
Precisamos, porém, questionar sobre como Nietzsche concluiu que foram
esses “nobres” e poderosos que criaram o juízo e conceito “bom”. Para isso,
lembramos que Nietzsche verificou a etimologia da palavra “bom” de acordo com as
várias línguas. O filósofo constatou que diversas línguas da humanidade possuíam
algo em comum relacionado com a transformação conceitual de “bom”, porque
“„nobre‟, „aristocrático‟, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual
necessariamente se desenvolveu „bom‟” (NIETZSCHE, 1998, p. 21). Além disso,
Nietzsche lembrou que tal desenvolvimento de “bom” acontece paralelamente a
outro desenvolvimento que transforma “„plebeu‟, „comum‟, „baixo‟ transmutar-se [...]
em „ruim‟” (NIETZSCHE, 1998, p. 21). Kahlmeyer-Mertens (2007, p. 3) nos lembra
que “bom” esteve relacionado aos nobres e espiritualmente bem nascidos “[...]
mesmo nas manifestações mais antigas da Humanidade, em suas civilizações mais
primitivas [...]”. Portanto, consiste em algo presente desde tempos imemoriáveis.
Sobre isso, Nietzsche (1998, p. 22) disse, também, que os nobres se utilizaram de
“bom” para o fato de se considerarem como superiores no poder, porque
designaram a si mesmos como “„os poderosos‟, „os senhores‟ [...] ou segundo o
signo mais visível desta superioridade, por exemplo, „os ricos‟, „os possuídores‟ (este
o sentido de arya , e de termos [...] em iraniano [...]”.
Além disso, Paschoal (2009, p. 99) nos lembra que “bom”, segundo
Nietzsche, também se referia às ações dos nobres, que “também são designadas,
por corresponderem, como uma extensão deles mesmos, como boas”. Mas o filósofo
relatou que o que mais interessou a ele, como já relatamos, foi o fato de tais nobres
designarem “bom” para “um traço típico de caráter” (NIETZSCHE, 1998, p. 22). E
Nietzsche disse que esse traço de caráter esteve relacionado com a palavra “veraz”
ou “verdadeiro”, que funcionou para a diferenciação dos nobres perante o homem
comum e vulgar, que consideravam como mentiroso. Com relação a essa
diferenciação para o homem mentiroso, para Nietzsche, os primeiros a se
designarem como verazes foram os nobres gregos.
27

Nietzsche, portanto, não consegue pensar “bom” como algo vinculado à


utilidade e, também, como algo relacionado ao não egoísmo, porque evidenciamos
anteriormente o que estava relacionado com o início do conceito e juízo “bom” para
Nietzsche. Ou seja, “bom” possuiu origem com os poderosos que estavam no poder,
que se sentiram no direito de estipular “bom” para eles, para sua superioridade e
para o seu traço de caráter, segundo Paschoal (2009), de acordo com o que
observamos até aqui. Quanto ao “não egoísmo” citado, vinculado ao “bom”,
(considerado, também, como “bondade”) Nietzsche foi enfático e aparentemente
irônico sobre o assunto depois de verificar as raízes e etimologias de algumas
palavras antigas:

Acredito poder interpretar o latim bonus como “o guerreiro”, desde que


esteja certo ao derivar bônus de um mais antigo duonus (compare-se belum
= duelum = duen-lun, no qual me parece conservado o duonus. Bonus,
portanto, como homem da disputa, da dissensão (duo), como o guerreiro:
percebe-se o que na Roma antiga constituía a “bondade” de um homem.
(NIETZSCHE, 1998, p. 23).

Depois dessa referência aparentemente irônica ao “não egoísmo” por


Nietzsche, retomaremos, então, o relato sobre os “nobres” e o conceito de “bom”.
Com referência a isso, podemos dizer que Nietzsche disse que, quando esses
aristocratas sofreram o declínio, a palavra “bom” serviu para designar a nova
aristocracia, que foi a aristocracia espiritual. Daí, Nietzsche (1998, p. 22) disse que a
palavra se transformou em “doce e madura”. Porque, realmente, para Nietzsche
(1998), o sentido de “bom” e a valoração estipulada por essa nova nobreza
operaram uma diferença profunda na forma como os nobres mencionados
anteriormente operaram. Essa diferença culminará na “moral da compaixão”, que
consiste em uma moral relacionada com a ideia de “não egoísmo”, que
mencionamos no parágrafo anterior. Essa moral se refere também, como nos lembra
Paschoal (2009), aos cristãos.
Outra ponderação consiste no fato de que a primeira aristocracia (a poderosa)
cunhou “bom” como algo primeiro, de acordo com a análise etimológica,
nietzschiana, das várias línguas, e, quando cunhou “ruim”, isso aconteceu, segundo
Nietzsche (1998), oriundo de um momento que aconteceu depois da cunhagem de
“bom”. Ou seja, “ruim” era proveniente de uma circunstância posterior à auto
veneração desses nobres: “somente num segundo momento, e a partir deste
28

conceito inicial, é que ele vai distinguir, por contraposição a este seu estado, o que é
por ele desprezado: o „homem comum mentiroso‟”(PASCHOAL, 2009, p. 101). É
importante demarcamos essa ordem em que aparecem as palavras “bom” e “ruim”
na valoração nobre, porque ela é importante para o entendimento do que é a moral
nobre e, também, porque essa demarcação será importante quando retomarmos
essa característica.
Depois dessa informação relacionada ao fato de que o “bom” aparece
primeiro do que o “ruim”, podemos dizer que Nietzsche (1998) considerou essa
forma de valorar como própria da moral nobre; ou seja, a moral que opõe “bom” a
“ruim”, com o “bom” aparecendo primeiro. Quando essa nobreza aristocrática se
arruínou, segundo Nietzsche, a palavra “bom” foi utilizada de outra maneira na nova
aristocracia, a espiritual, que se apropriou de “bom” e “ruim” de forma a estipular
uma inversão quando a primeira nobreza aristocrática sofreu sua ruína. Essa
segunda moral consistiu no que Nietzsche denominou de moral escrava.
Mas como foi essa inversão e por que Nietzsche pensou nessa segunda
moral como inferior? Ora, veremos posteriormente o que Nietzsche concebeu para
pensar essa moral como escrava e, portanto, como uma moral inferior.

3.2 Moral dos senhores e moral dos escravos

Apesar de termos mencionado brevemente que a moral nobre não se refere a


circunstâncias relativas a questões econômicas dos nobres, a ponto de tais quesitos
adentrarem em discussões políticas, devemos apresentar mais algumas
características do que Nietzsche denominou de “moral dos senhores” e “moral dos
escravos” para o nosso estudo. É possível que já esteja, em parte, claro o que diz
respeito a tais morais, porque, como vimos, de acordo com o fato de os nobres
terem chamado de “ruim” o homem mentiroso, podemos dizer que “nobre” (ou
“senhor”) e “escravo” se referem a nomeclaturas relacionadas com as valorações
morais, de acordo com Nietzsche, em Genealogia da moral. Além disso, já citamos
várias vezes a palavra “valor” e “valores” para que isso fosse já suspeitado, mas
observaremos outras considerações, a seguir, para demarcar um pouco mais esse
assunto.
As duas morais estão relacionadas, para o filósofo, em Além do bem e do
mal, com duas formas diferentes de engendrar valores, formas de estipular
29

interpretações morais que sempre existiram na história da humanidade. Além disso,


essa divisão entre “moral dos senhores” e “moral dos escravos” é importante quando
pensamos no conceito de vontade de poder (que já mencionamos), de acordo com
Paschoal (2009).
No entanto, por que a vontade de poder é importante na divisão relacionada
com a “moral dos senhores” e a “moral dos escravos”? Ora, se lembrarmos que faz
parte da ideia de vontade de poder, segundo Paschoal, a existência de polos que se
opõem em todos os conflitos de forças existentes na realidade e, se o conflito é
imanente à definição de vontade de poder, é fundamental, para Nietzsche, quando
faz referência à moral como conflito, pensar nos pólos “moral dos senhores” e “moral
dos escravos”. Além dessa importância, podemos dizer que a vontade de poder
também está em questão quando um desses polos se torna vencedor a ponto de
estipular uma moral (ou uma metafísica), porque cristaliza um modo de agir moral
que reflete as necessidades fisiológicas e o querer mais poder de tal polo, em
detrimento do outro, para Paschoal. Ou seja, essa cristalização de modos de agir de
um polo, em detrimento do outro, consiste nas cristalizações que dão forma à moral,
para Paschoal.
Sobre isso, podemos dizer, então, que a “moral escrava” e a “moral nobre”
são formas de interpretações morais que não são morais, porque essas duas
instâncias são responsáveis pela culminação de uma criação moral, mas elas não
são morais em si, segundo Paschoal. Porque, para Nietzsche (2005), não existem
fatos morais, mas somente interpretações e avaliações que culminam na
cristalização de uma determinada moral, que funciona como prescrição para o agir
de cada um. Além dessa informação relacionada com a vontade de poder e com o
fato de serem interpretações morais, Nietzsche disse que essas duas morais não se
referiam a tipos puros, porque, de acordo com o filósofo:

Há uma moral dos senhores e uma moral dos escravos; acrescento de


imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem
também tentativas de mediação entre as duas morais, e com ainda maior
freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes
inclusive dura coexistência – até mesmo num homem, no interior de uma só
alma. (NIETZSCHE, 2005, p.155).
30

A moral dos senhores e moral dos escravos consistem, portanto, em duas


morais básicas que Nietzsche encontrou após o estudo de várias morais, e
consistem em tipos que sempre retornam ao longo dos tempos.

3.3 Os tipos psicológicos e as duas morais

Nietzsche (1998) disse que a “moral nobre” (ou “moral dos senhores”) é
melhor do que a “moral escrava” (esclareceremos melhor o motivo posteriormente).
Foi por isso que, quando apresentou exemplos históricos relacionados com o nobre,
como a besta loura, foi duramente criticado, porque não se atentaram ao fato de que
Nietzsche se valeu de uma tipologia. Sobre isso, Segundo Paschoal (2014, p. 132),
um tipo, para Nietzsche, consiste na “caracterização de um perfil psicológico que [...]
ganha contornos de uma máscara ou de uma caricatura. Não se trata simplesmente
da representação de um personagem histórico ou social”. Mas por que Paschoal
pensa de tal maneira?
Ora, Paschoal comenta que um tipo está vinculado com uma criação de
artista (segundo o modo de Nietzsche conceber) desenvolvida a partir de um
personagem histórico e, também, algo que cria uma uniformidade passageira
quando estabiliza certos fenômenos. Essa uniformidade passageira é conveniente
quando lembramos que Nietzsche foi um opositor de cristalizações que se
pretenderam absolutas, como vimos. Portanto, para Paschoal, trata-se de uma
simbologia que não defende ou critica todos os aspectos da realidade do
personagem histórico que se utiliza como exemplo, já que é uma criação de artista.
Porque, quando Nietzsche se utiliza de Napoleão na primeira dissertação de
Genealogia da moral, por exemplo, segundo Paschoal (2009), ele defende certas
características bem específicas de tal figura, mas também aumenta aspectos para
se contrapor ao que ele estava criticando. Por isso, é importante mencionar que
Nietzsche não defendeu todos os atributos da figura histórica de nome Napoleão,
pois Paschoal deixa claro que o filósofo não considerava essa figura como um
exemplo a ser seguido quando se referia ao seu caráter. Portanto, está relacionado
com aspectos extremamente específicos e circunscritos dos personagens históricos
que são criticados ou elogiados e que, também, consistem em aspectos
aumentados, relacionados com o fato de funcionar como uma criação passageira
para criticar o que precisa ser criticado. Foi por isso que, quando Nietzsche se
31

referia, também, à “mulher” ou à “besta loura”, consistiu em algo que necessitava de


uma análise cuidadosa e não leviana:

A imagem da besta loura, da Genealogia, foi identificada a de um guerreiro


brutal e implacável, especificamente a um soldado germânico do Terceiro
Reich. Contudo, na Genealogia, Nietzsche estabelece uma tipologia
conforme a qual há diversas composições de forças entre os diversos
indivíduos (muitas vezes no seio do próprio indivíduo há estados
divergentes, conforme a dinâmica vital, ora forte, ora fraco). Não é o
guerreiro o modelo exclusivo de forte; a luta, a expansão de forças não se
vincula taxativamente ao fato de pegar em armas ou de impor a força física
num confronto direto. A força, a tendência ao domínio, se exprime nos mais
diversos planos, nas mais diversas atividades; a tendência à apropriação, à
dominação é essencial ao fenômeno vital. (BARRENECHEA, 2008, p. 161).

Informamos, portanto, sobre a utilização dos tipos psicológicos pelo fato de


que consistiu em um dos modos de se fazer filosofia, por parte Nietzsche, e algo que
esteve relacionado tanto com a moral dos senhores quanto com a moral dos
escravos, segundo Paschoal (2014), pelo fato de que essas morais também se
serviram dos tipos cunhados por Nietzsche. Porque, quando Nietzsche se refere à
“besta loura”, “escravo” e “nobre”, não se trata de qualquer referência.

3.4 Explicações sobre a formação da moral escrava: sua inversão de “bom e


ruim” e as conseqüências para os valores do homem ao longo da história

Observamos anteriormente o que caracterizou a forma de valoração nobre


quando se tratou de estipular a contraposição entre “bom” e “ruim”, e também
analisamos a própria origem de “bom” nas várias línguas; no entanto, quando se
tratou da moral escrava, o modo de operar com esses valores não foi semelhante ao
do nobre. Observaremos, então, que a moral escrava estipula uma inversão, como
já informamos. Mas precisamos verificar em que consiste essa inversão e quais
foram as conseqüências e atributos vinculados a ela, para o homem.
Para iniciarmos o assunto relativo à inversão de “bom e ruim” vinculado à
aristocracia sacerdotal, podemos relatar que esses nobres, como nos lembra Muniz
Guimarães (2014), provinham de uma classe dominante como a aristocracia
guerreira, mas apresentaram uma forma de valorar que era oposta à aristocracia
guerreira. Para indicarmos rastros e sinais referentes a essa forma de valorar
sacerdotal, lembramos que Nietzsche (1998, p. 23) disse, por exemplo, que esses
32

sacerdotes foram os primeiros que se utilizaram das palavras “puro” e “impuro” para
realizar uma divisão estamental. Essa divisão nos forneceu informações importantes
sobre o porquê do desenvolvimento de “bom” e “ruim” ter sido diferente nessa
aristocracia e não mais algo que funcionou como uma divisão estamental
posteriormente, divisão estamental esta (“bom” e “ruim”) que estava presente na
aristocracia guerreira, como nos lembra Kahlmeyer-Mertens (2007).
Essa informação nietzsciana sobre o “puro” e “impuro” foi importante porque o
“puro”, segundo Nietzsche (1998, p. 24), se referia aos próprios sacerdotes quando
se representavam como o “ [...]homem que se lava, que se proíbe certos alimentos
que causam doenças de pele, que não dorme com as mulheres sujas do povo
baixo”. Ou seja, tal “puro” revelava “[...] algo malsão nessas aristocracias sacerdotais
e nos hábitos que nelas vigoram, hábitos hostis à ação” (NIETZSCHE, 1998, p. 24).
Daí, Nietzsche relatou que essa incapacidade para a ação provocou inúmeras
seqüelas para a humanidade, como a criação de uma metafísica, jejuns e diversos
ascetismos, incluindo o ascetismo sexual. Foi, então, por causa dessa incapacidade
relativa à ação, da qual os adjetivos “puro” e “impuro” nos fornecem pistas, que a
contraposição entre “bom e ruim” não mais foi estamental, como mencionamos.
Sobre essa grande dificuldade relativa aos atos, dos sacerdotes, Nietzsche
disse que esse entrave, referente a eles, fez com que tudo existente se tornasse
mais perigoso, como, por exemplo, “altivez, vingança, perspicácia, dissolução, amor,
sede de domínio, virtude, doença” (NIETZSCHE, 1998, p. 24-25). Ainda sobre essa
incapacidade indicada pelo “puro” e “impuro”, Nietzsche apresentou outras
conseqüências de tal dificuldade, um pouco adiante, quando disse que “já se
percebe com que facilidade o modo de valoração sacerdotal pode derivar daquele
cavalheiro-aristocrático e depois desenvolver-se em seu oposto; [...] isso ocorre
quando a casta dos sacerdotes e dos guerreiros se confrontam [...]”. Ou seja, foi a
incapacidade para a ação e a impotência dos sacerdotes, para o filósofo, que
fizeram com que houvesse uma inversão de valores, um desenvolvimento oposto ao
desenvolvimento de “bom” e “ruim” dos aristocratas guerreiros, cujos principais
representantes foram os gregos. Essa impotência é, então, geradora de ódio, e ela é
a responsável pela inversão de valores quando os sacerdotes e guerreiros se
confrontam. Sobre esses sacerdotes inversores, para Nietzsche, os judeus foram
significativos representantes. Então, para apresentarmos um exemplo significativo
sobre essa inversão, lembramos que o filósofo a explicitou bem:
33

Assim convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de


vingança sacerdotal. Foram os judeus que, com apavorante coerência,
ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre =
poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os
dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão,
a saber, “os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres,
impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes
são os únicos beatos, os únicos abençoados [...] – mas vocês, nobres e
poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os
lascivos, os insaciáveis, serão também eternamente os desventurados,
malditos e danados!...”. (NIETZSCHE, 1998, p. 26).

Como observamos, Nietzsche disse, então, que os escravos inverteram a


valoração nobre, ou seja, chamaram de “maus” os “bons” da moral nobre e
chamaram de “bons” eles próprios, que eram os “ruins” da moral aristocrática
guerreira. Como dissemos brevemente anteriormente, Kahlmeyer-Mertens (2007)
nos lembrou que a transformação do “bom” e do “ruim” referente ao valor nobre,
quando transformado por derivação para a valoração escrava pelos próprios
escravos, referiu-se a algo que mostrou a passagem da mera condição estamental,
ligada a conceitos, que só marcavam uma diferença, para a condição de valoração
por parte dos escravos, de acordo com Nietzsche.

3.4.1 O ressentimento da moral escrava e o prejuízo para o homem

Outra consideração importante consiste no fato de que a inversão de “bom e


ruim” para “bom e mau”, dos “escravos”, é diferente do modo como o “nobre” pensa
os primeiros valores; porque, para Nietzsche, diferente da “moral nobre”, que
primeiro estabelece para si o “bom” e somente por uma observação posterior
estabelece o “ruim”, a “moral escrava” começa com o “mau”, porque, segundo
Nietzsche (1998, p. 29): “[...] toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si
mesma, já de início a moral escrava diz Não a um „fora‟, um „outro‟, um „não-eu‟ e
este Não é seu ato criador”. E Nietzsche diz que “este necessário dirigir-se para fora
[...] é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer,
um mundo oposto e exterior, para poder agir [...]”. Portanto, o ressentimento está
vinculado com a inversão do olhar citada. Além disso, o que Nietzsche chama de
ressentimento, segundo Paschoal (2014), consiste na incapacidade e impotência
para a ação que já mencionamos, mas que, quando se transforma na moral escrava,
34

a moral do ressentimento, essa impotência se torna de alguma forma ativa e


expande muito o seu campo de atuação a ponto de pertencer à moral dominante de
sua época. Algo que estava muito presente na “moral da compaixão” do tempo de
Nietzsche (NIETZSCHE, 1998, p. 12). Portanto, segundo Paschoal, o ressentimento
possui relação com a força do fraco, porque é fraco e impotente, mas se tornou forte
a ponto de dominar o ocidente. O ressentido, segundo Paschoal (2014) e
Kahlmeyer-Mertens (2007), possui a fraqueza de negar os fatos como são e, além
disso, não consegue viver o presente, adquirindo uma forma de interpretação e
valoração derivadas da valoração ideal, porque consiste em uma interpretação
demasiadamente artificial e não relacionada com a vontade de poder que se
relaciona com a vida. No entanto, para Paschoal (2014), a palavra “ressentimento”,
em Nietzsche, não se refere a uma unidade conceitual, porque Nietzsche utilizou a
palavra para significar várias atribuições, dependendo do contexto. Posteriormente
citaremos novamente o ressentimento relacionado com a miséria da vida vinculada
com a primeira dissertação de Genealogia da moral, porque esta atribuição do
ressentimento, relacionado com a miséria da vida, adentra no contexto que
estudaremos.
Para concebermos mais aspectos dessa inversão ressentida estipulada pelos
“escravos”, inversão que observamos nos parágrafos anteriores, podemos dizer que
ela, segundo Ferraz (2008), que, como vimos, obteve forte representação com os
judeus, também se utilizou da linguagem como artifício estratégico. Sobre essa
utilização da linguagem, a afirmação de Ferraz é embasada na fala de Nietzsche
(1998, p. 35-36), quando o filósofo se utilizou das palavras “ave de rapina” e
“cordeiro” para representar a “moral nobre” e a “moral escrava”, respectivamente: “as
ovelhas dizem entre si: „essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível
ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha – este não deveria ser bom?‟ ”. Isso
significa, para Ferraz (2008), que, além do fato de as ovelhas partirem do “mau”
(como já dissemos), elas estipulam uma valoração moral atribuída por consenso,
porque a frase é constituída por uma indagação feita das ovelhas para as outras. Ou
seja, a pergunta demonstra a necessidade de as ovelhas precisarem do
reconhecimento das outras (típico de algo referente ao rebanho), segundo Ferraz,
para criarem a valoração “bom e mau”. Então, para essa comentadora, isso significa
que essa valoração está embasada na linguagem, que se utiliza do consenso.
Portanto, está aí uma evidência do uso da linguagem, porque todo consenso é
35

estipulado por uma comunicação referente aos códigos da lingua (linguagem).


No entanto, existe outra instância ou circunstância, além do consenso, que
possui relação com a linguagem que estamos analisando, de acordo com a frase
mencionada acima? Ora, tal frase das ovelhas adquire relação com uma falsidade e
artificialidade relacionadas com a linguagem, que estão presentes quando se
estipula uma comparação entre o que não pode ser comparado (dois animais
diferentes) e, além disso, iguala os dois animais para, depois, criar uma oposição
que não existe. Além disso, para Ferraz (2008), as ovelhas se utilizam da
artificialidade da linguagem, também, quando criam um sujeito livre para dizer que a
ave de rapina pode ser livre para não ser má, já que todo sujeito (criação da
linguagem) é livre. Ou seja, as ovelhas dizem que algo poder ser aquilo que não é e,
portanto, estabelecer algo contrário à sua natureza, segundo Ferraz, porque aves de
rapinas são totalmente diferentes das ovelhas, e a linguagem nivela de forma
equivocada.
Para retomarmos essa falsidade da utilização da linguagem mencionada
anteriormente, Nietzsche (1998) diz que ela, como artifício das ovelhas, que estipula
um sujeito livre, cria uma relação de causalidade que não existe e, também, falsas
inferências. Porque, segundo ele, não existe possibilidade da força não se
manifestar como força e da ação não ser ação: consiste na natureza e na força
típica da ave de rapina a tendência a querer devorar as ovelhas, para Ferraz (2008);
ou seja, isso só poderia ser falsamente mudado com a utilização da linguagem. E,
quando utilizam a artificialidade da linguagem, as ovelhas, de acordo com Ferraz,
dizem que o “bom” consiste em algo oposto à constituição da ave, porque “quem for
o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto” (NIETZSCHE, 1998, p. 36)
resultará em “bom”. O que significa que a ave de rapina não pode ser o que ela é,
porque precisa negar a sua natureza, e isso estipulado pela ovelha é algo criado,
artificial e que, também, está relacionado com uma falsa dicotomia. Falsa dicotomia
que, para Ferraz (2008), justifica a impotência dos fracos e transforma a impotência,
a não ação, em virtude. Tal dicotomia demonstra, também, a necessidade de sua
não utilização, porque, segundo essa comentadora, se as morais que se pretendem
“nobres” utilizarem de dualidades que se opõem, elas não serão “nobres”, já que a
dicotomia está presente necessariamente na “moral escrava”, que cria “mau”, para a
ave, oriundo de um nivelamento falso. Então, para Ferraz, esse modo de julgar da
ovelha, que se utiliza de uma falsa oposição pelo auxílio da linguagem, é algo
36

próprio a todos nós ocidentais, porque, como Nietzsche (1998) disse, tal valoração
foi vitoriosa na humanidade. Consiste, para a comentadora mencionada, em uma
valoração nada inocente, porque se utiliza das sutilezas e artificialidades da
linguagem para vencer; é por isso que, também, a valoração nobre pertence aos
ingênuos.

3.4.2 Aprofundamentos da inversão judaica e suas conseqüências históricas

Como observamos, os judeus foram bons representantes dessa inversão


ressentida de “bom e ruim” para “bom e mau”. Sobre isso, para Nietzsche (1998, p.
26), como também já mencionamos, essa inversão ressentida dos judeus foi
vitoriosa na humanidade e, depois de dois mil anos, consistiu em algo que resultou
no fato de que hoje “perdemos de vista”, justamente pelo fato de ter durado tanto
tempo e ter sido vitoriosa. Sobre essa vitória, para o filósofo, toda a modernidade
está acometida com ela e valora de forma derivada da forma relacionada com tais
sacerdotes judeus. Consiste em uma valoração que, inclusive, acomete o que se
considera como o “livre pensador” (NIETZSCHE, 1998, p. 28) e os revolucionários
da revolução francesa, porque o filósofo disse que “a Judéia conquistou com a
Revolução Francesa mais uma vitória sobre o ideal clássico” (NIETZSCHE, 1998, p.
44). E esse ideal clássico citado diz respeito aos romanos e nobres gregos, segundo
Nietzsche, que foram os melhores representantes do “bom e ruim”.
Nietzsche disse, como vimos no parágrafo anterior, que a inversão judaica
acometeu todos do ocidente e, inclusive, os ideais relacionados com as revolução
francesa. Sobre esse apoderamento judaico, o filósofo mencionou Judéia (como
relatamos no último parágrafo) porque disse que esses sacerdotes se apoderaram
também do cristianismo, porque informou que o ódio judaico se apropriou de Jesus
como “sua coroa” (NIETZSCHE, 1998, p. 27), porque o amor cristão, para o filósofo,
não passou de uma sutileza estratégica desses sacerdotes para aprimorar o ódio, a
vingança e dar profundidade para o que “era mau” (NIETZSCHE, 1998, p. 27). Para
o filósofo, existiu a possibilidade dos judeus terem colocado Jesus na cruz como o
resultado de uma “grande política da vingança” (NIETZSCHE, 1998, p. 27). Ou seja,
os judeus, possivelmente, observaram em Jesus a incorporação de uma sedução
irresistível para levar a cabo uma espécie de transformação sutil no ódio.
Sobre o amor cristão mencionado no parágrafo anterior, para Nietzsche, ele,
37

então, não passou de um revestimento do ódio judeu, ódio que foi transformado em
sutil e delicado. No entanto, sobre esse apoderamento do cristianismo relacionado
com a inversão de valores, não podemos conceber tal “estratégia” dos judeus como
atos intencionais de enganação, porque Reginster (2016, p. 48), citando Nietzsche,
nos lembra que a reavaliação dos “escravos”, para alcançar os seus objetivos,
necessita que “[...] os [...] fracos [...] devem internalizar os novos valores que
criaram: precisam passar por um processo de auto engano - eles próprios têm de
acreditar na legitimidade dos valores”. Ou seja, sobre o confronto entre “fracos” e
“fortes” mencionado anteriormente, podemos dizer que os “fracos” precisam
acreditar, realmente, que seus inimigos são os “maus” e eles próprios são os “bons”.
Além disso, de acordo com Reginster (2016, p. 59), a impotência dos sacerdotes
necessita de uma reavaliação ocasionada por uma “reação à frustração, sendo esta
compreendida como um dano do sentimento de poder”. Portanto, para Reginster
(2016, p. 65), “é a vontade de poder – e não o desejo de prejudicar os outros – que
induz o fraco a desvalorizar seus próprios valores.” Ou seja, é a vontade de poder,
imanente a todas as coisas, que faz com que o querer poder, para Reginster (2016),
inverta os valores e se transforme em algo que favoreça o querer poder dos
impotentes, de forma invertida, o que significa que não se trata de querer prejudicar
os outros. E, além disso, sobre o confronto entre “nobres” e “escravos” também já
mencionado, outra observação importante está relacionada com o que Register
(2016, p. 65) disse de “inverter os próprios valores”; ou seja, os sacerdotes quiseram
atuar como os nobres guerreiros, mas não conseguiram, e isso proporcionou uma
reavaliação.

3.4.3 A impossibilidade do retorno da aristocracia guerreira

Paschoal (2009, p. 136), citando Nietzsche, disse que, apesar do pensador


preferir a valoração dos nobres aristocratas, o filósofo tinha em mente a não
possibilidade de um retorno dessa aristocracia guerreira e também não desejava
isso: “o que não seria uma imoralidade (a não ser na avaliação moral da
modernidade), mas, ao menos, um retrocesso, uma opção por caminhar como um
caranguejo”.
O que concluímos com isso? Ora, podemos concluir, de acordo com essa
visão, que um filósofo que conceitua as coisas e a realidade como embasadas em
38

seu conceito de vontade de poder não poderia pensar em um retorno idêntico do


passado e, a isso, ele talvez se refira ao “caranguejo”, já que é o animal mais
próximo de um “andar para trás”. Além disso, Paschoal faz outro comentário que
talvez nos possibilite uma dica sobre o porquê de não existir tal possibilidade de
retorno em Nietzsche, quando esse comentador se refere aos seus escritos,
conceitos e argumentos: “[...] eles também surgem em certos contextos, cumprem
certos papéis e desaparecem sem reinvidicar a pretensão de unidades conceituais
[...]”. (PASCHOAL, 2014, p. 56). Ou seja, os escritos estão relacionados com a
vontade de poder e com contextos bem delimitados e, como a vontade de poder
está relacionada com o movimento, o filósofo não faz apologia à necessidade de
estimular certas unidades conceituais, já que consistem em aspectos que almejam
uma fixidez inabalável. Por isso, ele não quer uma unidade conceitual inabalável
relacionada com os “nobres” guerreiros. No entanto, Paschoal diz que Nietzsche
tinha em mente a necessidade da permanência da forma dessa aristocracia
guerreira valorar, mas que estaria revestida de uma característica de
“espiritualização” (PASCHOAL, 2009, p. 147). Para Paschoal, tal característica de
valorar estaria revestida de uma nova forma porque Nietzsche fez a seguinte
citação, no parágrafo 16 da primeira dissertação de Genealogia da moral:

Os dois valores contrapostos, “bom e ruim”, “bom e mau”, travaram na terra


uma luta terrível, milenar; e embora o segundo valor há muito predomine,
ainda agora não faltam lugares em que a luta não foi decidida. Inclusive se
poderia dizer que desde então ela foi levada incessantemente para o alto,
com isto se aprofundando e se espiritualizando sempre mais, de modo que
hoje não há talvez sinal mais decisivo de uma “natureza elevada”, de uma
natureza espiritual, do que estar dividia neste sentido e ser um verdadeiro
campo de batalha para esses dois opostos. (NIETZSCHE, 1998, p. 43).

Conforme observamos no trecho de Nietzsche, a luta entre “bom e mau” e


“bom e ruim” foi levada para o alto, espiritualizada. Sobre isso, de acordo com
Paschoal, o retorno de um tipo mais elevado, como foram os aristocratas guerreiros,
está relacionado com essa “[...] espiritualização de [...] conflito que se desdobra na
história das formas de valoração do homem” (PASCHOAL, 2009, p. 147). Ou seja, o
retorno da forma nobre de valorar se encontraria, para Nietzsche (1998), somente
em uma esfera espiritual oriunda dessa marca deixada pela vitória “escrava” na
moral, quando Nietzsche disse que tal luta “foi levada incessantemente para o alto”
(NIETZSCHE, 1998, p. 43).
39

Além disso, sobre essa marca deixada pelos “escravos” citada anteriormente,
outra consideração importante consiste no fato de que, para Paschoal (2009),
Nietzsche não gostava da vontade de poder relacionada com a valoração escrava
que possibilitou essa espiritualização, mas, no entanto, aparentemente entrando em
contradição, esse comentador nos lembra que Nietzsche (1998, p. 25) falou, sobre
os “escravos”, que “somente no âmbito dessa forma essencialmente perigosa de
existência [...] é que o homem se tornou um animal interessante, apenas então [...] a
alma ganhou profundidade [...] tornou-se má”. Ou seja, segundo Paschoal (2009),
Nietzsche via uma certa criatividade em tal “moral escrava”, e tal característica
espiritual criativa também ocasionaria um novo “nobre”. Tal “nobre”, para esse
comentador, apresentaria como característica a valoração “bom e ruim”, mas
também possuiria características referentes ao lado espiritual referido.

3.5 A miséria e decadência da vida relacionadas com a valoração “bom e mau”

Como dissemos no início de nosso estudo, de acordo com Nietzsche, sua


investigação genealógica esteve relacionada com o valor dos valores, que possuiu
vinculação com os valores “bom e mau”. Por que, então, precisamos ressaltar sobre
o que é o valor dos valores para descobrir sua relação com a miséria da vida?
Ora, esse valor, para o filósofo, estava relacionado com “promoção, utilidade,
influência fecunda para o homem” (NIETZSCHE, 1998, p. 12)”. Nietzsche também
apresenta os seguintes questionamentos: “obstruíram ou promoveram até agora o
crescimento do homem? São indício de miséria [...] degeneração da
vida?”(NIETZSCHE, 1998, p. 9).
Ou seja, evidencia-se, então, que o valor, em Nietzsche (1998), possui
relação com a vida e seu movimento, que funcionou como instância responsável a
condenar ou defender os valores. Porque, como nos informou Giacoia Júnior (1989),
a vida é, para Nietzsche, a única instância que pode condenar ou aprovar os
valores, já que é o melhor critério; ou seja, é impossível observar um critério que
esteja além do fenômeno considerado como vida, já que ela é mais originária do que
os outros parâmetros para se embasar algo.
No entanto, é necessário indagarmos sobre o que Nietzsche considerou como
vida para concluírmos se os valores estão ou não contrários a ela. Ora, vida, para
Nietzsche, como lembrado por Kahlmeyer-Mertens (2007), consiste no conceito de
40

vontade de poder com o conceito de eterno retorno. Portanto, também foi importante
termos apresentado um esclarecimento anterior, na primeira parte deste trabalho,
sobre o conceito de vontade de poder, para esclarecermos esse conceito
quandovinculado com a noção de vida em Nietzsche.
Então, retomando a concepção de valor, ele está, para Kahlmeyer-Mertens,
relacionado com o que foi relatado:

O valor em Nietzsche está em ligação direta com o binômio que marca o


próprio modo do acontecimento arcaico-originário da existência: vontade de
poder/eterno retorno. Com este, Nietzsche (1994) procura descrever o
caráter de devir sempre atual, a sua constante re-inserção no modo de ser
da realidade. (KAHLMEYER-MERTENS, 2007, p. 5).

Depois de observarmos essa informação sobre o valor, podemos dizer que


Kahlmeyer-Mertens (2007, p. 6) comenta sobre a vontade também citada no trecho:
“vontade em Nietzsche é o que configura a abertura de vida e sua configuração no
instante, no tempo.” Ou seja, ele está se referindo ao conceito de vontade de poder,
porque era a esse conceito que se referia no início do parágrafo vinculado a essas
informações. Portanto, como mencionamos, no início do estudo, que a vontade de
poder se refere à totalidade da realidade para Nietzsche, podemos dizer que a
informação desse comentador não é incoerente.
Após as informações citadas até aqui, é conveniente dizermos que esse
comentador nos fornece mais detalhes sobre a vida na filosofia de Nietzsche

Assim, vida eternamente retorna como impulso para as realizações de suas


possibilidades. Vida, segundo Nietzsche, é o movimento sempiterno de
diferenciação da vontade, tendo este sempiterno o caráter do eterno
retorno, que determina o instante em sua circularidade. Vontade de
poder/eterno retorno diz respeito a toda e qualquer dimensão do
acontecimento de realidade, narrando, enquanto existência, a assunção
fundamental da vida em sua cadência, instauração, vigência e propriedade.
Considerando a dinâmica descrita, podemos constatar que existência e
suas possibilidades configuram-se no instante. Entretanto, ali só é capaz de
se concretizar uma possibilidade por vez (uma a cada instante).
(KAHLMEYER-MERTENS, 2007, p. 6).

Então, observamos que vida está na relação com a vontade de poder/eterno


retorno e ela possui relação com o movimento eterno dessa vontade e com o fato de
que ela sempre retorna de novas formas a cada instante de vida. Sobre isso, para
Nietzsche, segundo Kahlmeyer-Mertens, o valor está relacionado com o conflito que
se dá nesses instantes, onde só é possível uma realização por vez, como dito
41

anteriormente no trecho citado. É a esse conflito, no instante, que Nietzsche se


utiliza da palavra “valor” e, “ao contrário do que se poderia pensar, não é uma
entidade utilizada para ajuizamento moral”. (KAHLMEYER-MERTENS, 2007, p. 6).
No entanto, precisamos nos indagar sobre qual a relação disso com os valores que
estamos estudando. Ora, para uma tal resposta, é fundamental pensarmos que,
segundo Kahlmeyer-Mertens, só é possível uma realização a cada instante, e
existem duas formas de apreensão dos valores no instante: a disposição afirmativa
e a reativa. A disposição afirmativa se faz em concordância com o movimento no
instante, mas não a reativa, porque a segunda não se conforma com tal movimento
e faz com “que irrompa uma perspectiva derivada, que se arroga no direito de
requerer um modo de realização da existência diverso do que se dá nessa
instauração”. (KAHLMEYER-MERTENS, 2007, p. 7).
Daí, para Kahlmeyer-Mertens, a moral nobre se relaciona com a moral que
está em concordância com o sentido de valor em Nietzsche, porque está em
“sintonia com uma perspectiva que se constrói a partir do aquiescimento do modo de
ser sempiterno da gênese de realidade, celebrando a vida enquanto experiência de
criação”. Portanto, o “nobre” é espontâneo e aproveita melhor os instantes da
realidade, e, sobre isso, Paschoal (2014) nos informa que o “nobre” não hesitaria em
realizar todas as suas oportunidades existenciais de uma só vez, aproveitando tudo
o que pode fazer. Sobre o melhor aproveitamento do “nobre”, em relação aos
valores, fica evidente quando Nietzsche menciona certos aspectos desse modo de
valoração:

Ele age e cresce espontaneamente, busca o seu oposto apenas para dizer
Sim a si mesmo com maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o „
baixo‟, „comum‟, „ruim‟, é apenas uma imagem de contraste, pálida e
posterior, em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado
de vida e paixão, „nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes!‟.
Quando o modo de valoração nobre se equivoca e peca contra a realidade,
isso ocorre com relação à esfera que não lhe é familiar, que ele inclusive se
recusa bruscamente a conhecer [...]. (NIETZSCHE, 1998, p. 29).

Como observamos no trecho, o “bom” do “nobre” está repleto de vida,


indicando, mais uma vez, que ele vive os instantes melhor e com paixão. Com
referência ao “pecar contra a realidade” mencionado no trecho anterior, Nietzsche
(1998, p. 29) informa posteriormente, sobre isso, que observa esse fato como a
capacidade do “nobre” de desprezar e diz que, embora o desprezo possa falsear a
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imagem do inimigo, “em todo caso estará muito longe do falseamento com que o
ódio entranhado, a vingança do impotente atacará [...] o seu adversário”. O que
significa que o “nobre” sabe dizer sim até mesmo para o falseamento, porque, para
Nietzsche, vive o falseamento sem o ódio, que seria a melhor forma de vivê-lo e
algo relacionado com a vida. E, sobre o combate do “nobre”, “[...] não suporta
inimigo que não aquele no qual nada existe a desprezar, e muito a venerar!”.
(NIETZSCHE, 1998, p. 31). Ou seja, ele sabe aproveitar a vida até mesmo nos
momentos difíceis relacionados com os combates e lutas. Mas essa luta não era
dirigida contra os “escravos”, já que, segundo Paschoal (2014), eram dignos de
desprezo e não adentravam na lógica citada no trecho acima. No entanto, sobre
esse desprezo, Nietzsche disse que a aristocracia grega foi muito feliz quando
desprezou e nomeou a esfera que não lhe era familiar de “ruim”, apesar de não ser
inimiga de tal esfera.
Depois de observarmos essa maneira “nobre” de agir, podemos dizer que
diferente é a forma como os “escravos” lidam com a vida e com os valores, porque,
para Kahlmeyer-Mertens (2007, p. 7), a disposição reativa possui relação com uma
valoração “que, ao se instaurar, nega a si mesma enquanto perspectiva e se arroga
o direito de determinar (para além de toda e qualquer instância de realização) o
modo de ser da totalidade dos entes”. Mais adiante, Kahlmeyer-Mertens (2007, p. 7)
diz: “esta é a compreensão da verdade, como uma instância que surge em função
da separação radical frente ao mundo fenomênico [...]”. Ou seja, para esse
comentador, a valoração dos “escravos” consiste em algo que nega o instante em
seu movimento circular e estipula uma interpretação derivada que se julga no direito
de estipular a totalidade dos entes da realidade da vida e cristalizá-los. Os
“escravos” são inconformados com a realidade. Portanto, para Kahlmeyer-Mertens,
Nietzsche está fazendo, também, uma grande crítica à metafísica, de acordo com
sua noção de vida. Daí, tal comentador diz que essa perspectiva quer se auto-
assegurar da realidade e, com isso, nega os fenômenos e a vida, porque estipula
representações sobre a realidade antes dos acontecimentos aparecerem. É por isso
que, para Kahlmeyer-Mertens (2007, p. 9), a moral escrava é mesmo escrava,
porque quer “assegurar-se daquilo que é tangível, tornando „pensável todo ente‟,
submetendo toda a realidade a procedimentos de um pensamento esquemático que
pretende jogar luz sobre tudo aquilo que é inusitado”.
Esse mecanismo citado no parágrafo anterior, dos “escravos”, também
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consiste no ressentimento, que também possui relação com a noção de vida em


Nietzsche e que, para Paschoal (2014), é extremamente impotente em termos
individuais, mas que, de alguma forma, se transformou em uma força ativa para
dominar toda a humanidade (um tipo de vontade de poder).
Com relação a isso, para indicarmos mais atributos do ressentido que
corrompe a vida e seus valores e que venceu na humanidade, Nietzsche (1998) diz
que o homem do ressentimento não é honesto consigo mesmo e ama todo
subterfúgio, justamente por causa disso que verificamos; ou seja, ele não suporta a
realidade da vida como ela é. Para Nietzsche, esse tipo de homem não sabe
esquecer, porque, de acordo com Paschoal (2014), a sua impotência faz com que
ele sempre relembre das ofensas relacionadas com o passado e, além disso, sua
interpretação é desproporcional ao instante da vida que a originou, porque tal
interpretação cresce e se interioriza de forma exagerada, em relação ao fenômeno
originário.
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CONCLUSÃO

Após apresentarmos esse estudo com a noção de genealogia em Genealogia


da moral, noção essa que está relacionada ao conceito de vontade de poder,
podemos dizer que os valores “bom” e “mau” não foram dados e que preponderaram
historicamente. Ou seja, os valores não possuíram um início independente das
experiências humanas, relacionadas às forças complexas e às necessidades de
acréscimo de poder imanente à noção de vontade nietzschiana. Portanto, a falta de
uma finalidade para as coisas e a questão de tudo se encontrar em movimento
explicaram que, além dos valores contrariarem as necessidades metafísicas, já que
a metafísica procurou uma origem a-histórica e eterna para os valores, a valoração
“bom e mau” foi vitoriosa na história no sentido de ser mais abundante e existir em
maior quantidade. Considerando que essa forma de estipular valores é problemática,
sua preponderância contraria a ideia segundo a qual a realidade contém uma
finalidade consonante ao pensamento de que os mais saudáveis julgamentos
vencem.
Depois, exemplificamos que os valores “bom” e “mau” não possuíam o
sentido que os genealogistas anteriores a Nietzsche pensaram, e observamos que
Nietzsche verificou a etimologia da palavra “bom” e concluiu que não se referia à
noção de bondade cristã de sua época e ao útil do que denominou de genealogistas
ingleses, já que a etimologia da palavra mostrava que foram os aristocratas
guerreiros das várias culturas que cunharam a palavra “bom” com o sentido de
“nobre”, “verdadeiro”, “guerreiro” e “feliz”.
Então, verificamos que a palavra “bom” foi criada pelo sentimento que esses
guerreiros tinham de si mesmos, e a palavra “ruim” foi cunhada por eles para
denotar uma diferença posterior, porque primeiro importava o sentimento
espontâneo de si mesmos. Daí, analisamos que a outra valoração se tratou de uma
inversão, com preponderância cristã, da palavra “bom” original, e isso demonstrava
uma artificialidade relacionada com a adulteração, pelo fato de “bom e mau” estar
ligado ao ódio da realidade, que estipula “bom” para o impotente, miserável, e “mau”
para o outro “bom”, quando se confrontam. Demonstramos a impotência dessa
inversão, relacionada ao não aproveitamento da realidade imediata da vida.
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