Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Caro aluno, este texto se encontra agora em sua primeira versão, por isto é esperado que
ele apresente alguns problemas. Gostaria de contar com a sua ajuda para solucioná-los.
Um guia para a dúvida:
Bruno Pettersen
O sábio proporciona sua crença à evidência.
David Hume
Índice
Prefácio - Introdução
1. Há percepção correta?
2. Há apenas o sonho?
3. Há acaso?
4. Há algo?
5. Há tempo?
6. Há significado correto?
7. Há verdade?
9. Há prova científica?
12. Há liberdade?
14. Há Deus?
17. Há beleza?
Esse livro é uma tentativa de tomar temas bastante complexos presentes na história
da filosofia e verificar as perguntas que motivaram à sua pesquisa. Ao longo de minha
vida acadêmica, pude escrever alguns textos mais volumosos e técnicos. São textos que
me orgulho de tê-los escrito, mas ao mesmo tempo são livros voltados apenas para o
público acadêmico. Com este livro pretendo fazer o caminho inverso: levar o debate
filosófico para qualquer um que se interesse por pensar.
Para cumprir esse objetivo, decidi abordar vinte perguntas que ao longo da história
da filosofia já contabilizaram inúmeras respostas, algumas tão diferentes que parecia que
a pergunta era outra. Quero encarar as dúvidas por elas mesmas e verificar o que elas nos
fornecem. Não me interessa neste momento a resposta, quero que você vivencie a dúvida
e então se tiver interesse vá buscar as respostas.
Ao contrário do que se costuma pensar, nossa época não é uma de incertezas, mas
sim de certezas. Alguns tem uma fé desmedida nos poderes da ciência, outros na
intervenção de um deus e para muitos há a confiança na maldade humana. Difícil é
encontrar alguém que celebra a dúvida.
A dúvida não é nada confortável. Ela não é liberadora. Ao contrário, ela sufoca.
Qualquer um que se viu diante de um mistério trivial sabe muito bem que a mente só
descansa com a solução. Justamente por esse motivo, nossa época não sabe lidar bem com
as dúvidas permanentes e busca um tapa buracos qualquer. Um importante cético antigo,
chamado Sexto Empírico, frequentemente caracterizava os indivíduos que tentam
desesperadamente abraçar uma certeza, como aquele que após o seu navio naufragar
procura um ponto qualquer para não se afogar e acaba indo ao fundo do mar segurando
um pedaço inseguro de um metal mais denso que a água.
Curioso é como em minha geração uma frase se tornou comum e cada vez mais
repetida com sabor de chavão: “A ignorância é uma benção”. Quem viu o primeiro filme
da trilogia Matrix deve-se lembrar da cena onde o sujeito que vai entregar os seus colegas
e está em um restaurante saboreando um suculento bife, que ele sabe ser apenas uma
ilusão, nos afirma que prefere a ilusão de um bife do que a realidade de comer apenas
aveia enriquecida com vitaminas. Essa cena sempre ecoa para mim como o símbolo da
vontade de ser ignorante uma vez que já se bebericou da água da sabedoria. Contudo,
falar hoje que “A ignorância é uma benção” e repetir essa frase até causar náusea, se
tornou um procedimento cansativo e preguiçoso. Do modo como eu vejo ela é um chavão
porque representa para muitas pessoas o desejo de se desligar das dores provocadas pela
dúvida. Mas o chavão é falso. A ignorância é uma maldição.
Maldição porque aquele que é ignorante terá duas prisões: a cognitiva e a política,
isso quer dizer, em suma, que o ignorante deixará com que os outros decidam para. Nesse
caso, ao se escolher algo por não compreender, é dado ao outro o direito de pensar por
nós, o que por si só é bastante triste. A ignorância é um bem apreciado por nossa
sociedade, talvez o mais apreciado dentre todos os bens, porque, que meio mais eficaz de
dominação existe que a ignorância?
É curioso como alguém decide que já se sabe o que buscava. Tenho aqui de fazer
uma ode, um hino à dúvida. Não há caminho que não possa ser questionado. Não há
resposta que não admite um contraditório, não há teoria que não possa ser reavaliada.
Historicamente é facílimo de se observar como as teorias caíram depois de terem
alcançado os mais delicados e altos degraus do saber. Se a história não é suficiente para
você, confie na engenhosidade humana para criar alternativas. Talvez seja uma
propriedade do pensamento humano levantar objeções. Veja como enquanto você lia os
parágrafos acima, e mesmo quando lê essas palavras, você tem a sensação de que deve
existir um contraexemplo para refutar a minha argumentação. Eu confio na vontade
humana para superar as afirmações. Isso provavelmente deve estar escrito em minha
estrutura racional, e é provável que o pensar tenha a ver com a capacidade de se objetar.
Se isso estiver certo, somente a dúvida pode ser o sabor a acompanhar qualquer reflexão.
Não há opção. Se a ignorância é reconhecida não há como fugir dela sem negar a
sua dignidade intelectual. No entanto é uma espécie de dor. Uma dor feita de auto
consciência da dúvida: não se é apenas ignorante, sabe-se como tal. A dúvida é o único
modo de se evitar a segurança absoluta que qualquer um decide ter. A dúvida deve ser
abraçada como um movimento para sair da tolice, mas não como o repouso. Não há
descanso depois de se ter aberto a portinhola por onde a dúvida entrou. Resta apenas saber
se cada um decidirá se abrir à dúvida.
As dúvidas que examinarei a partir de agora são algumas das mais famosas
propostas ao longo dos séculos. Algumas são comuns até no discurso diário, outras estão
restritas às manifestações filosóficas, científicas, políticas e artísticas. Escolhi aqui as
dúvidas que melhor podem nos colocar em movimento. Não se trata apenas de se ler essas
dúvidas, mas sim de senti-las. Lembro-me da primeira vez que li e senti uma destas. Era
a dúvida levantada por David Hume, um filósofo escocês do século XVIII, acerca da
causalidade. Eu estava no meu primeiro ano de faculdade. Lia algumas das obras
propostas pelos professores, mas não tinha ideia do que estava dito lá. Ao ler Hume, notei
a força de seu argumento. Entendi quão poderosa era a sua dúvida. Deve-se sentir as
dúvidas de uma forma tão irresistível que não há escolha a não ser dedicar a vida para
lidar com elas. Proponho à você aqui realizar esse exercício. Leia, mas também sinta
efetivamente o que a dúvida implica.
1. Há percepção correta?
A natureza da percepção
Para o problema ser bem entendido é preciso ter claro que certamente a percepção
não é uma faculdade simples. Ele envolve muitos elementos como as capacidades físicas,
a educação e as expectativas. As capacidades físicas próprias da percepção, como as
dimensões dos olhos, a estrutura das terminações nervosas e tantas outras. Podemos falar
que em uma mesma espécie há similaridade, mas entre espécies, há ainda mais
discordância quanto a percepção. Certamente não há similaridade total entre os membros
da espécie humana, quanto mais entre animais com órgãos diferentes. Como Enesidemo
nos diria: se a águia pode ver mais longe, será que ela não vê melhor como o mundo é?
Se você tivesse que decidir: é a águia ou o ser humano que vê melhor?
Sentir e perceber
Os períodos mais férteis para a dúvida cética são aqueles onde a comparação entre
crenças é por qualquer razão fortalecida. No período moderno, a divulgação de
informações foi possibilitada pela impressa, o que permitiu a publicação massiva de
livros, e, portanto, a troca de informações. Tudo isso acabou por gerar um contexto onde
a comparação de crenças abriu o espaço para a dúvida, o que certamente foi uma das
épocas mais fecundas para o ceticismo. É o mesmo com a nossa atual troca de
informações. O ceticismo é novamente uma força motora da reflexão porque as trocas de
informação estão nos permitindo suspender todos os julgamos.
Quando a comparação é feita entre humanos a situação é mais cotidiana, mas não
menos difícil. Este e o caso óbvio de que eu posso saber relativamente o que você está
percebendo, justamente porque nos comunicamos, mas não há qualquer maneira de
averiguar se indivíduos diferentes estão percebendo o mesmo. Ainda que em um futuro
próximo conseguíssemos colocar aparelhos para medir se os indivíduos têm os mesmos
receptores, sabemos que a percepção é muito mais complexa e precisaria de pelo menos
contar com um estudo sobre como os indivíduos foram educados a perceber alguma coisa.
A percepção não é assim tão simples. Não há como sabermos se é a sua opinião ou a do
seu amigo sobre o vinho que deve estar correta. A solução normal envolve dizer algo
como: “no caso de dúvida, eu tenho razão”. No entanto, felizmente ou não, não há razão
para tal informação.
Uma resposta
Para muitos pensadores é frequente responder à essa pergunta dizendo que o que
importa é que nos comuniquemos. Eu inclusive penso que essa é uma boa resposta prática.
Mas pelo que argumentei essa resposta apenas explica como nós vivemos, mas está longe
de responder à pergunta que propus, a saber: se há percepção correta?
Infelizmente como estamos, pelo menos por enquanto, reservados apenas à nossa
percepção, educação e expectativas, sinto dizer: não há nenhuma maneira de se saber a
correção das percepções.
2. Há apenas o sonho?
A popularidade do problema
Um dos recursos mais pífios de qualquer história atual ocorre quando após a
jornada empreendida e tudo dá errado, o protagonista subitamente acorda e diz: “Foi tudo
um sonho”. Essa estratégia é hoje execrada porque foi usada em excesso. Mas no seu
âmago, não é uma ideia ruim. Por que não?
A ideia do sonho é opor realidades. Essa estrutura narrativa não envolve apenas o
sonho, entram aqui também formas variadas de doenças mentais que alteram a percepção,
a utilização de drogas que alteram a consciência e mais recentemente, programas de
computador que simulam a realidade. Ótimos filmes foram gerados com essas premissas.
Péssimos também. Mas a premissa é boa.
Assim, se eu posso errar, será que eu posso errar massivamente, ou seja, sobre
todas as coisas que eu creio agora? Bem, isso parece improvável. Um erro total
provavelmente faria com que eu morresse. Penso que água mata a sede, mas e se ela não
mata e ao contrário aumenta a sede? Se isso acontecesse, ou seja, se eu errasse sobre tudo
eu provavelmente não estaria mais vivo. Mas se estou, então não há erro total. Pelo menos
inicialmente.
Eu gostaria de sonhar toda a noite, mas infelizmente não me lembro bem dos meus
sonhos todos, apenas alguns deles, e em alguns, tudo me parecia absolutamente
verdadeiro. Não havia dúvida enquanto eu sonhava. Um sonho bastante comum é aquele
em que voamos. Durante o meu voo sobre minha cidade, não questionei se eu poderia
voar. Era simplesmente normal enquanto o sonho ocorria. Duas possibilidades aqui
podem problematizar o sonho.
A segunda objeção é dizer que eu sei que tudo o que estava sonhando era
obviamente falso! Dragões metálicos caçadores de ovelhas voadoras não é real. Sei disso
muito bem. Mas veja bem, você sabe disso quando acordou. Durante o sonho não é sabido
de nada disso. Tudo parece real. O problema do sonho não é que sei que não estou
sonhando quando acordo, mas sim que enquanto estou sonhando tudo é normal, e você
já sentiu, como eu senti, que durante uma vez pelo menos, o sonho era persuasivo. O fato
é que em algum sonho já fomos persuadido da realidade enquanto ele ocorria. E daí?
Como isso prova que eu posso estar sonhando agora? Simples.
O argumento de Descartes é poderoso não porque ele mostrou que eu sonho, mas
sim que durante o sonho somos persuadidos de que ele é real e agora também estamos
persuadidos de que estamos acordados. Faça o exercício aqui. Não tente encontrar
desculpas para o seu conforto. Caro leitor, pense seriamente que você pode estar
simplesmente sendo persuadido da crença errada. E se é possível que você foi persuadido
uma vez, é possível, em essência que você esteja agora enganado sobre o que está
percebendo.
Portanto: o erro total é possível. Pode ser que todas as minhas crenças sejam
apenas parte de uma persuasão errônea que mantive durante uma vida que não passa de
uma coleção de crenças sem nenhum sentido aparente além do que nós gostaríamos que
tivesse. O erro do sonho é uma possibilidade real.
Mas alguém pode objetar, como última torre de defesa: “mas durante o sonho é
tudo muito exagerado, estranho, sem continuidade, sem temporalidade e especialmente
sem coerência”. Lembre-se: enquanto você sonhava não sabia disso, era tudo normal,
ainda que exagerado. Neste exato momento, pode ser tudo normal para você, mas quando
você despertar, verá o quão exagerado esse momento agora é. Isto é, se você despertar.
O cinema, a literatura e tantas outras formas de arte são apaixonadas pelo
argumento do sonho porque ele é bom. Mas ele é apenas uma das versões possível. Outra
igualmente dura (talvez até mais) é o argumento da “loucura”.
Loucura
Suponha por um momento que sua cognição está funcionando bem. Que tudo que
você está pensando tem sentido. Que suas ações são adequadas e compreendidas por todos
ao seu redor. Como saber se isso está acontecendo? Como saber que suas impressões são
reais e não apenas uma forma de sua mente ordenar o mundo? Doenças mentais podem
alterar de modo severo a percepção do mundo. O caso mais famoso, talvez, seja o caso
da esquizofrenia aguda, onde o agente acredita e vê uma realidade que está presente
apenas em sua mente. Nesse caso o esquizofrênico escuta vozes e responde essas vozes.
Não se trata de “imaginar” que se está tendo essas imagens. Nessa situação, o sujeito
percebe essas manifestações. Para ele não há qualquer diferença entre essas percepções e
as outras. Elas impelem tanto a sua ação como qualquer outra percepção, e em muitos
casos, com uma força maior do que uma voz “real”. A linha divisória entre a percepção
do real e a ilusão não é tão larga quanto gostaríamos que fosse. Para alguém que
eventualmente sofre de um tipo de condição deste tipo não há como saber quais
percepções são reais.
Uma resposta radical é se abrir à ideia de que todo o mundo é apenas uma criação
de sua vontade. Este argumento, conhecido como Solipsimo, é profundamente radical.
Ele envolve supor que o mundo não existe tal como nós o percebemos, ao contrário, é a
nossa percepção que constrói a realidade. Assim, quando você vê alguma coisa, é apenas
a sua vontade construindo a realidade. Radical, mas por que não?
Uma pergunta simples seria: se é a minha vontade que constrói o real, porque eu
não construo da melhor maneira para mim? No final é o mesmo caso da loucura: quando
não há critério externo para decidir o que é melhor ou pior, a mente apenas estrutura o
mundo, mas não há um corretor, um critério que decida. A vontade fica aprisionada nela
mesma. Aqui diríamos diferente do famoso verso do poeta John Donne que diz: “nenhum
homem é uma ilha”. No solipsimo, o homem é uma ilha, e ele apenas se conhece, todo o
resto é possivelmente, senão certamente, apenas uma ilusão.
Realidade e aparência
Para Platão, a “realidade” só poderia ser conhecida por meio dar razão e nunca da
experiência. Tudo que você está vendo não é a realidade última. Não é irreal também. É
apenas uma aparência, uma quase verdade. Apenas a sua racionalidade poderia revelar a
realidade efetiva. A tarefa do pesquisador é descobrir tal realidade. Isso não é só filosofia,
é física, matemática, biologia. O físico precisa descobrir por meio de sua razão que
existem forças, que não vemos, mas estão aí. O matemático quer ver com a sua razão os
padrões numéricos. A biologia quer apresentar uma organização ao mundo, uma
organização que não é visível, mas imputada. Tudo isso é muito bonito, mas: e se
estivermos sonhando?
Nesse contexto, não resta dúvida: se houver qualquer possibilidade, ainda que
mínima de que você esteja sonhando, ou em estado de loucura, não há qualquer forma de
evitar que tudo o que resta é apenas você e a sua dúvida, ou nesse caso, a minha mesma.
Como saber que você não está sonhando? Se você não for capaz de responder a esta
pergunta, o que resta é suspender o juízo com relação à diferença entre a aparência e a
realidade, entre saber se você está ou não sonhando.
3. Há acaso?
Seria possível, ainda que absolutamente improvável, que o vento organizasse as
folhas caídas de uma árvore em uma frase, digamos, “Olá, eu sou uma árvore e quero
falar com você”? Seria tal evento absolutamente impossível? De um ponto de vista prático
não é razoável supor que tal pudesse acontecer, afinal, eu não me lembro de qualquer
evento remotamente semelhante a esse. Mas evidentemente, não sou tolo, e sei que não é
porque não vi algo sim, que não possa ocorrer. Em último caso, tal fato pode estar
ocorrendo um floresta desabitada.
O que torna esse fato possível, ainda que improvável, é que algumas vezes
fenômenos naturais e ações humanas, que num primeiro momento pareciam irregulares,
geram um padrão reconhecível por humanos. Uma nuvem que se parece com um cavalo,
ou um grupo de pessoas andando, que do alto, aparecem em sincronia. Nada disso é raro.
Ao contrário, é bastante frequente. O grande problema com o exemplo que comecei esse
capítulo, é que ele parece ordenado demais para ser aleatório, para ser ao acaso.
Felizmente a solução é simples.
Fenômenos ao acaso podem gerar padrões reais e visíveis e que pareceriam
totalmente ordenados para alguém que visse só o último momento. Um exemplo possível
é o próprio planeta Terra. Se supormos aqui que a física e a astronomia estão corretas, o
número de eventos altamente improváveis que acabaram por gestar a Terra são
absolutamente insanos. Pense em todas as probabilidades das rochas que temos aqui,
terem sido estas, exatamente estas e nesta configuração. Que a água presente na Terra
tem vindo exatamente destes e daqueles asteroides. Observe que eu ainda estou falando
apenas da questão da estrutura física de nosso planeta. Não me esqueço clara dos
múltiplos eventos que conduziram a vida na Terra a ser como é agora. Para um indivíduo
que observe apenas o momento presente da Terra, ele certamente acreditará que tudo o
que aconteceu até agora não é ao acaso, afinal, a vida, o universo e tudo o mais são
complexos demais para serem ao acaso. Será?
Uma frase escrita de modo aleatório pelo vento nas folhas de uma árvore não é,
nem de perto, tão complexa quanto o fenômeno aleatório da vida. Assim, pergunto
novamente: é possível que o vento ordene as folhas de modo a escrever uma frase?
Todos esses exemplos estão submetidos a um problema de ordem mais
fundamental: há acaso? Literalmente, “acaso” significa “sem causa”, ou seja, um
fenômeno que existe de modo absolutamente independente de qualquer outro fenômeno.
Usada com toda a força a palavra “acaso” é forte demais. Nos exemplos que dei acima,
não há “acaso”, afinal, a causa da frase composta pelas folhas foi o vento, retrocedendo,
a causa do vento é a modificações de temperatura e pressão na atmosfera, e assim por
diante. Ainda que a imagem de um cavalo sendo formada em uma nuvem seja curiosa,
ela tem muitas causas.
Normalmente, a palavra acaso é usada de uma maneira muito mais simples.
Alguém que diz que o fenômeno é ao acaso quer apenas dizer que não entende bem a
causalidade que conduziu até a realização do fenômeno. Assim, eu digo que a forma da
nuvem é mero acaso porque eu não entendo bem quais são as suas causas.
Este tipo de argumento parece apontar para duas ideias, que quero descartar. A
primeira ideal problemática pode ser resumida assim: “tudo tem uma causa”. Sem uma
argumentação essa afirmação é descabida. Não há nada que a comprove que tudo tem
uma causa. Não é porque tudo o que vimos tem uma causa, que todas as coisas existentes
no universo tem uma causa. O próprio universo pode ter surgido do nada, isto é, sem uma
causa. Então dizer que “tudo tem uma causa” é um pouco demais.
Como disse, quero descartar duas ideias, a segunda pode ser resumida na
expressão comum: “tudo tem sua hora”, isso indicando que todas as coisas são
organizadas para um fim. Essa ideia é frequentemente expressada a partir da imagem de
uma evolução criadora, que estruturou todo o universo. Não quero aqui afirmar ou
descartar a existência de um Deus que poderia ser a causa de tudo. O ponto é que quero
tratar da pergunta sobre o acaso ou de uma causalidade da natureza apenas de um modo
apenas físico. Digo isso porque normalmente trazemos a discussão do acaso para uma
força sobrenatural que geraria o acaso ou a ordem. Mas para mim isso não é o meu tema
aqui. Basta perguntarmos se a natureza é ou não regida pelo acaso.
Tendo tirado essas duas pressuposições, podemos agora voltar a examinar o
problema: há acaso ou tudo é ordenado, causado? A chave para entender essa questão é a
ideia de causa. Vamos a ela.
Causalidade
Hume diria que o conhecimento da natureza parece depender da causa, mas como
eu posso conhecer a causa de algum evento? Como eu sei que a causa da dor é o
ferimento? O mais óbvio seria responder: pela experiência! Mas será? Vamos repassar os
momentos de um evento macabro:
Assim a experiência de ver dois eventos juntos não me permite conhecer a ordem
por detrás da natureza, ou seja, a sua causalidade. Hume então nos guia e pergunta: se não
é a experiência, seria o raciocínio o mecanismo responsável por descobrir a causa? Aqui
a resposta é simples: não. Um indivíduo que nunca viu uma fruta e decide experimentá-
la não tem como saber, apenas por meio do raciocínio se a fruta é ou não saborosa.
Para Hume, o nosso conhecimento da natureza vem de nossas expectativas,
algumas conscientes, outras nem tanto. Supomos que há uma ordem na natureza por meio
da causalidade, mas não temos qualquer prova de que há tal causalidade, exceto, pela
repetição. Mas se há ou não ordem causal, não sabemos racionalmente. O problema passa
a ser a essência da natureza. Será que a natureza é mantida por sequências de causa e
efeito e portanto tem uma espécie de ordem?
Contingência e necessidade
A ideia de necessidade afirma que há uma ordem em toda a natureza, ainda que
essa ordem não seja visível. E é essa ordem que faz com que todos os dias tudo ocorra da
mesma maneira. Mas eu pergunto: será que a gravidade poderia acabar amanhã, acabando
com a ordem que temos observado até hoje? A resposta, quase sempre é um óbvio não.
Mas porque a resposta é óbvia? Bem, o ponto aqui é que quem acredita que a gravidade
não pode acabar acredita em uma natureza necessária, onde haveria uma ordem do
universo. E essa ordem não poderia se findar. Teorias que descrevem a gravidade podem
ir e vir, mas a ordem necessária é parte da natureza e o nosso dever é entendê-la.
Mas nem tudo são flores na natureza. Há outra possibilidade: pode ser que não
exista uma ordem, e tudo ao contrário seja ao acaso, ou em termos mais clássicos:
contingente. Veja, nosso período no Universo é absolutamente curto. Admitamos, como
parece ser verdadeiro, que o Universo tem 13,8 bilhões de anos. Os números para um
possível fim para o Universo são enormes. Eles vão de algumas dezenas de milhares de
anos até um número com quarenta zeros. Assim pode ser que 13,8 bilhões seja
ridiculamente pouco. Suponhamos que quando o Universo ficar mais velho as leis da
física se alterem e a gravidade acabe. Apesar desta ser uma hipótese pouco provável, ela
é possível. E se é possível não há garantia de que o que vemos hoje é necessário, sendo
na verdade apenas contingente.
Dois exemplos
Quero examinar dois exemplos. Um primeiro mais próximo do nosso dia a dia, e
outro proveniente da ciência. Vamos lá.
A maioria das coisas acontece sem um plano prévio, sem uma preordenação.
Conheço muitas pessoas que diriam que só poderia ter ocorrido daquela maneira, estava
tudo escrito nas estrelas! Isso é lindo, mas não há como saber isso. Algumas coisas são
apenas acaso mesmo.
Possibilidades
Para outros, a natureza é contingente, dizendo que o pouco que vimos do universo
até agora não garante que este seja ordenado. Além disso, certos fenômenos físicos
parecem mais ao acaso do que certos.
George Berkeley
Comecemos com as coisas aparentemente mais simples. Uma maça, um cachorro,
dois livros e um telefone. Provavelmente você já deve ter visto um exemplar de cada um
destes elementos. Mas o que me interessa aqui é: como você sabe que eles existem? Uma
resposta possível seria dizer algo como “eu sei que existe uma maçã porque eu já percebi
uma maçã!”.
Essa resposta é na verdade bastante boa e tem inclusive grande utilidade prática.
No entanto, ela está longe de ser suficiente. Um importante filósofo do século XVII,
George Berkeley, problematizou o conhecimento a partir da percepção se perguntando se
podemos dizer que alguma coisa existe apenas porque pode ser percebida, ou nos termos
dele: se “ser é ser percebido”. Vejamos.
Suponhamos que antes de começar a ler esse livro você foi até a geladeira de sua
casa pegar uma maçã. Você se lembra de que haviam duas maçãs lá e você pegou uma.
Agora, depois de ter comido uma das maçãs eu te pergunto: sem você voltar à geladeira,
como saber que há ainda outra maçã lá? Lembrar-se não é suficiente porque a memória
nos prega peças. Por outro lado, o que garante que a outra maçã simplesmente não
desapareceu? Dizer que maçãs não desaparecem normalmente não é bom o bastante,
simplesmente porque você não viu todas as maças do universo. É preciso uma prova
incontestável de que a maçã ainda esteja lá. Se eu não posso percebê-la como conhecer
sua existência? Esse argumento, usado por Berkeley tem também uma versão clássica em
proverbio que pergunta: se uma árvore cai em uma floresta e não há ninguém lá para ouvir
como saber se ela fez barulho?
A resposta a este tipo de questão não é trivial. Se não estamos lá para ver e ouvir
não há qualquer maneira de saber se ela fez ou não barulho. Uma opção viável seria dizer
que uma maçã não desaparece ou que um objeto que cai sempre faz barulho. Mas para
essa resposta ser adequada seria preciso um argumento que prove que a maçã não
desapareceu ou que sempre faz som, sem que eu tenha qualquer evidência física.
Precisaríamos de um argumento metafísico que diz que a natureza é sempre necessária e
como vimos acima esse argumento não é tão fácil de ser mantido. No final das contas o
argumento de Berkeley quer perguntar a natureza da existência, ou seja, se algo existe
sem que alguém o perceba.
Mas e um objeto que estou vendo agora será que ele existe? Um objeto que
provavelmente deve estar ao seu lado agora, ou na sua frente, é uma tela de computador,
telefone ou outro aparelho qualquer. Como você sabe que ele é real? Dentro da
possibilidade levantada por Berkeley parece simples dizer que o meu computador existe.
Mas qual é a prova? Simplesmente o fato de eu estar vendo? Obviamente isso é
problemático. Como já verifiquei, posso estar sofrendo uma ilusão, sonhando ou sendo
enganado. Não há qualquer garantia que o que você vê é real.
Deve haver algo, certo? Mesmo que se houver, não é possível saber. Digo,
“mesmo se houver” porque ainda que eu possa dizer com alguma tranquilidade que deve
existir algo, não há qualquer argumento capaz de demonstrar essa proposição. Descartes
tentou nos provar que algo existia pela sua famosa frase “Se penso, logo existo”, assim
se eu sou capaz de reconhecer meu próprio pensamento é porque eu preciso existir para
reconhecer a mim mesmo. Mas essa frase é uma exclamação, não uma demonstração. Ela
atesta um suposto momento de eureca, onde não se sabe exatamente o que é o pensar ou
a existência. Mesmo que Descartes esteja correto, não há a mínima ideia do que significa
“eu existo”. Observe a frase de Descartes: ela não diz que existo como um humano. Quem
sabe, eu poderia existir como um macaco, um carro, um planeta ou uma xícara, todos
pensantes. Afinal eu poderia existir de muitas maneiras.
Uma possibilidade mais radical, filha de especulações recentes da física, indica
que talvez tudo o que chamamos de existência não passa de um holograma e que o próprio
Universo é uma simulação holográfica. Não tenho qualquer ideia se é assim mesmo, mas,
se é possível pensarmos, é possível também que seja possível. Ainda que seja improvável,
não é impossível, portanto não posso descartar como irracional. E se é possível que a
maçã tenha desaparecido, como saber que ela não desapareceu mesmo? Não há uma
maneira precisa de se determinar a existência de coisas como maçãs e livros.
O existir e a realidade humana
Se a determinação da existência de maçãs e computadores é difícil, o que dizer de
“violência”, “amizade”, “mentira”, “verdade”, “número 1” e “gravidade”? Vamos
primeiro organizar os temas. A realidade da verdade fica para o capítulo sete. Violência
e amizade parecem depender da ação humana, já que não existiriam sem humanos. Por
outro lado, alguém poderia dizer que a existência de números e da gravidade não depende
de humanos. Vamos começar então com aquelas coisas que aparentemente dependem dos
humanos e verifiquemos se coisas como a violência e a amizade existem mesmo.
Se falarmos na existência de algo que seria a “amizade” não podemos falar de uma
existência conhecida por meio da percepção, afinal a amizade não existe tal como uma
coisa fisicamente percebível: posso ver duas pessoas, mas não a amizade entre elas. E
então, como saber que existe tal coisa como a amizade? O problema aqui envolve a
verificação ou a referência da realidade de coisas que não são materiais.
Posso dizer de um modo mais solto que a amizade existe sim, e que ela é uma
relação entre pessoas. Nesse caso a minha atribuição de realidade não é a uma “coisa”,
mas sim a uma relação que existe apenas enquanto os indivíduos assim o quiserem. O
traço de realidade é aqui bastante tênue e envolve os significados que nós queremos
atribuir ao mundo. Ao admitirmos que a amizade, amor, violência, inveja, política, justiça
e tantas outras ideias existem temos de supor ao mesmo tempo que uma criação humana,
como um mito de criação é também real. Alguém que supõe que a amizade existe, acredita
assim não porque percebeu fisicamente algo como a amizade, ao contrário, é uma
realidade baseada em um sentimento dado a partir de uma complexa rede de significados
inculcados culturalmente. Da mesma maneira, alguém que acredita que o Universo foi
criado por um panteão de bons deuses o faz também a partir de um sentimento igualmente
assentado em uma rede de significados. Para aceitarmos qualquer uma dessas ideias
precisaríamos ao mesmo tempo aceitar que significados construídos por uma civilização
específica, num tempo específico e numa localidade específica tem o estatuto de real. Há
amizade? Claro que não há como dizer.
Ser e conceituar
Se não fosse o bastante levantar a dificuldade de atribuição de existência para
coisas tão diversas quanto “maçãs” e “amizade” quero agora pensar com você a existência
de conceitos absolutamente abstratos e que possivelmente deveriam ser o sustentáculo da
realidade, vamos tomar dois exemplos: o número “1” existe? E, a “gravidade” existe?
A tarefa de determinar a existência dos números foi assumida por muitos dos
grandes pensadores indo de Platão à Bertrand Russell. A busca por uma resposta inclusive
gerou uma das frases mais famosas da história da matemática, dita por Galileu “O livro
da natureza está escrito em caracteres matemáticos”. De início, não há qualquer dúvida:
a quantidade “1” parece existir. Mas não é simples atribuir existência aos objetos físicos,
como vimos acima. Indo além da mera quantidade física, podemos pensar no próprio
número. Inicialmente ele é apenas uma convenção bem estabelecida que poderia ser
diferente sem qualquer perda conceitual. Minha questão precisa ir além. Quero saber se
o próprio numeral existe e se existe, existe como?
Certamente a ideia de um número não pode ser percebida. Só poderia ser
conhecida pelo intelecto. Números naturais, como o 1, parecem ter uma realidade mais
evidente, afinal já vi uma casa, mas se nos afastarmos um pouco deste tipo de números,
fica um tanto mais difícil de saber os números existem. Pense por exemplo no número -
16485,17. Há algum objeto que pode ser identificado com ele? Certamente nada que eu
conheço. Assim, dizer que esse número existe seria forçar a barra para dizer que coisas
que não tem referência física, de tipo algum, existem. Se dissermos que algo existe apenas
porque serve a um propósito em um sistema lógico, teríamos eventualmente de aceitar a
existência de fantasmas que pudessem fazer sentido em sistema lógico de crenças.
Precisamos de alguma maneira de dizer que um numeral, seja 1 ou -235,17 possa
existir. Uma possibilidade forte seria dizer que tais números e as equações que surgem
deles podem ser identificados com a natureza. Esse argumento é provavelmente o mais
forte em matemática, mas ele é prejudicial para a matemática. Vejamos. Se um
matemático alega que sua disciplina é verdadeira em virtude da existência dela na
natureza, ele terá de retirar uma série de teorias matemáticas que não fazem sentido
necessariamente na natureza, como por exemplo o conjunto de números imaginários, tais
como a raiz de -1. Teríamos de retirar também todo apelo à uma geometria de n
dimensões. Tudo isso deveria ser retirado, porque ainda que possa desempenhar uma
importante parte em um cálculo, certamente não faz parte da natureza, em qualquer
sentido físico concebível atualmente. A matemática deve ser pensada de outra maneira:
ela seria um sistema de regas que tem o objetivo de reconhecer padrões naturais e não
naturais. Ela mesma não deveria ter a função de ser real. Reais poderiam ser os padrões
encontrados pela matemática, transformados em números e equações para serem
entendidos por nós. Mas os próprios números não existiriam em si mesmo, mas seriam
regras criadas por nós e funcionam por causa que estabelecemos que elas funcionam.
Realidade mesma não pode ser atribuída à matemática.
Quando se fala em “gravidade” a pergunta tem de ser: a partir de qual física? Tal
não é nada trivial, sendo ao contrário, necessário para a física fazer a distinção frequente
dos usos de gravidade. Alguém poderia dizer que a teoria mais atual é a mais precisa,
coerente com os fatos, adequada ao todo da natureza é a melhor teoria. Mas qualquer um
com apreço pela história da ciência sabe que é temerário fazer uma afirmação que saia
de: “hoje esta teoria é a mais adequada para resolver nossos problemas” para “tal teoria é
sempre verdadeira”.
Tudo isso sem contar o fato de que a gravidade pode não ser uma força originária,
mas uma derivação. Imagine: é possível, como já aconteceu com tantas outras ideias na
física, que em um futuro próximo se descubra que a gravidade não existe em si, mas é
uma manifestação de outra força mais básica x. Se isto for adequado, não estou sentado
porque há gravidade (e porque eu quero) mas especialmente por causa da força x.
Novamente, não teria sido a primeira vez que algo assim aconteceu na ciência. Mas e a
força x, ela existiria?
Não é tão simples. Há uma suposição cética que quero dar uma nova forma para
ela, a saber, a ideia de que nosso tempo de vida na Terra não é suficiente para estabelecer
coisa alguma. Não há nada que impeça que a gravidade não seja mais do que uma força
temporária, que ainda que exista agora, ela na não é nada mais do que um pequeno
movimento do Universo. Com a nossa mente frágil julgamos que a regularidade
encontrada por nós é real e não apenas um acidente temporário. Dado o nosso pouco
tempo de Universo, não há qualquer motivo final que nos permita uma afirmação
categórica sobre a natureza do real.
Ser
Em nenhum momento afirmei que nada existe. Nem que tudo existe. Ao contrário,
sobre a existência o máximo que me resta é não afirmar nada.
A dúvida com relação à existência não tem o objetivo de mostrar que as coisas
não existem, mas sim apontar para dois pontos: a) que é possível que a nossa fala sobre a
existência não é boa o bastante e b) que o que aceitamos ingenuamente acerca da
existência esteja errado. Mas, e se for o caso, será que há algo?
5. Há tempo?
Reconstrução
A reflexão mais empolgante sobre o tempo como colocação humana foi nos dada
por Santo Agostinho. Ele influenciou praticamente todos os filósofos depois dele e
certamente é a minha maior influência neste problema. Vou nessa seção reconstruir o
argumento dele de modo a torná-lo uma dúvida cética. Mas não posso começar a falar do
tempo sem pensar e inclusive trazer à tona alguns dos exemplos dele. Segundo Agostinho,
dizer o que o tempo é, é uma atividade ingrata, e ele diz isso numa frase incrível:
Há outro problema no passado: ele não faz muito sentido se não estiver de acordo
com as nossas limitadas capacidades. Explico-me. Pense no último almoço seu. Lembre-
se do que você comeu e se outras pessoas o acompanhavam. Isso é possível porque a
diferença entre um dia e outro é temporalmente simples de ser construída, uma vez que
já vivi alguns anos. Pense agora naquilo que você era a cinco anos. Esse exercício será
um pouco mais difícil, embora é possível, uma vez que cinco anos é uma quantidade de
tempo que conhecemos. Agora façamos algo mais radical. Tente sentir a diferença entre
12000 e 13000 anos. Quando chegamos em tanto tempo, tão distante de nossa realidade,
a temporalidade começa a se esfumaçar. Não faz qualquer diferença se é 12 ou 13 mil
anos. O passado só faz algum sentido real e não apenas se apresentar como dados brutos
se podemos ordená-lo de acordo com a nossa experiência.
Antes de irmos ao presente, vamos ao futuro. Analogamente, o passado se
assemelha ao futuro, uma vez que esse último também não existe. O que acontecerá daqui
a cinco minutos é incerto, ainda que relativamente previsível. Essencialmente o futuro
não existe. Ainda como ocorre com o passado, nós não conseguimos entender o futuro
muito distante e fora de nossa realidade. Se eu pedir a você para planejar os próximos
cinco minutos é simples. Se eu pedi-lo para planejar os próximos 50 anos, você pode
tentar mais será um exercício meramente ficcional.
Nos resta apenas o presente. Se passado e futuro não existem, o presente será
definido como aquilo que ocorre agora. O agora só será agora enquanto for dito agora, e
no segundo onde paro de falar não o é mais, e agora é outro. Tente. Pronuncie em voz
alta: agora! Quando você terminar o que você falou não é mais presente. O presente é um
fiapo, um quase nada que se esvaí assim que ele é.
Como alguém pode dizer que o tempo existe? A grande manobra realizada por
Agostinho e outros como Kant, é que o tempo é uma construção não do mundo, mas do
humano. É como ocorre com o filme Amnésia. O tempo físico não importa. Tudo o que
temos é a nossa subjetividade construtora do tempo. Nós criamos uma narrativa temporal
que irá se estender e ficar cada vez mais e mais peculiar quanto mais vivermos e
costurarmos todos os pontos dessa narrativa.
Isso não é uma metáfora. Um exemplo pode nos ajudar. Em um teste psicológico
foi reunido um grupo de pessoas para que elas debatesse o seu passado. Antes da
realização do teste, os psicólogos conseguiram reunir com os familiares dos sujeitos a
serem testados algumas fotos da infância deles. Essas fotos foram modificadas
digitalmente de modo que os sujeitos a serem testados foram colocados em situações onde
eles não estiveram. As fotos modificadas foram apresentadas e muitos dos sujeitos
olharam para as fotos e disseram que se lembravam daquele momento, ou que tinham
uma vaga lembrança. Eles estavam mentindo? Não exatamente. O que eles fizeram foi
construir uma espécie de narrativa da história deles, usando a parte na foto que era real
como uma referência para estruturar o que era ficcional ao redor. O tempo e a presença
deles não importavam no final. O que importa é a sua narração da sua vida.
Você certamente passou por uma situação semelhante, onde em uma reunião
familiar, alguém contou uma história de sua infância, e no princípio você não se lembra,
mas aos poucos, você começa a se “lembrar” e subitamente disse: lembrei-me!
Provavelmente o que ocorreu é sua construção de uma narrativa. Da mesma maneira ainda
como você se lembra do seu passado de uma maneira que apenas você se lembra. Na
verdade tudo o que existe é própria organização narrativa, sendo feita no fiapo do
presente. O tempo, como imaginamos não existe. Mas se o tempo não existe, como nos
lembramos e esperamos, será tudo uma ilusão?
O tempo físico
Na teoria mais aceita atualmente o tempo não tem uma realidade independente e
não faz sentido falar em um tempo absoluto. Se não há tal coisa como um tempo absoluto,
porque ainda queremos falar em tempo como uma passagem contínua entre passado,
presente e futuro? Se Einstein for levado à sério na descrição do tempo, a implicação
necessária é que teríamos que alterar a visão comum sobre o tempo, especialmente a
percepção humana dele. O máximo que poderia ser dito é que o tempo humano é uma das
infinitas configurações possíveis que algo como a temporalidade se mostra. Mas não há
nada como um fluxo necessário para a passagem do tempo. No fundo não haveria o tempo
humano como uma configuração especial ou imutável.
A temporalidade
A primeira imagem diz que não há tempo. Devo dizer que apesar de estranha, essa
ideia não seria tão implausível. Pode ser que o que chamamos de tempo não exista, sendo
ele uma ilusão para outra dimensão da realidade. Isso é perfeitamente possível, por duas
razões que já examinei. A primeira é ilusão da temporalidade humana, a segunda é a
relatividade do tempo. Nesse argumento, o que estou chamando de tempo não seria real,
seria alguma dimensão natural diferente, e que para resolver o problema, ficamos com o
melhor disponível – o tempo humano.
A segunda imagem diz que não talvez não há como entender o que é o tempo.
Essa imagem também é tentadora. Não é que o tempo não exista, mas que simplesmente
não somos capazes de entendê-lo de modo mais profundo. Pode ser que a nossa razão é
por demais limitada ou qualquer outra limitação que nos impeça de ver o mundo tal como
ele nos aparece.
De todo o modo, posso dizer que o tempo não é nada evidente. Nada claro. Talvez
isso: o tempo pode não ser nada.
6. Há significado correto?
Mantendo ainda o assunto da cama. Se eu digo “vou te levar para a cama”, o que
você pensa? Não responda ainda. Essa frase tem tantos sentidos que alguns de nós pensa
evidente em algum significado erótico, o que é por sinal é um bom significado. Mas essa
mesma frase pode ser dita por um pai que quer colocar seu filho pequeno para dormir. O
curioso é que uma frase igual gera dois sentidos muito diferentes. Evidentemente, como
todos sabemos, a diferença entre estabelecer um ou outro significado é o contexto. Tudo
bem, é bastante trivial dizer que o contexto altera o significado. O que não é trivial é a
implicação disto. Se todo o significado de palavras ou frase é dado no contexto, uma
palavra não pode significar alguma coisa de modo unívoco. Ao contrário, não existe um
significado para as palavras fora de contexto, e assim a linguagem não me diz como as
coisas são, mas apenas como nós julgamos o mundo.
O argumento aqui é curioso: se não existe um significado fixo, a linguagem não
me diz nada sobre o mundo, ela me diz como nós nos relacionamos com o mundo. A
palavra “árvore” não diz nada sobre o objeto árvore, ela diz apenas o que nós humanos
queremos que ela diga, que pode se referir a um objeto na natureza, como “a árvore de
maçã”, a uma sequência qualquer como “a árvore genealógica” ou a uma gíria qualquer
que seja inventada. Veja: a palavra “árvore” não significa nada. “Árvore” significa o que
nós queremos.
Seria assim uma ilusão achar que o discurso humano fala alguma coisa sobre o
mundo. Não fala. Na mesma esteira argumentativa, o discurso científico seria apenas um
conjunto de significados construídos para funcionar juntos. E funciona porque foi
construído para isso. Não porque a linguagem é capaz de traduzir alguma coisa sobre o
mundo. No final das contas não há significado absoluto para as nossas frases sobre o
mundo.
Essa afirmação pode soar dura para alguns. Muitos diriam: se a linguagem não
pode dizer nada sobre o mundo, não podemos também saber nada sobre o mundo. No
início do século XX alguns filósofos pensaram o seguinte: será que não há uma maneira
de tornarmos o significado fixo e dizer qual é o significado absoluto disto ou daquilo?
Apesar da matemática ser a disciplina mais precisa que temos, ela não escapa de
algumas dúvidas. Sabemos o que significa o número 1 ou 2. Não há problema aí. Mas há
uma pergunta difícil de ser respondida: quantos números nós temos entre 1 e 2? Há um
número infinito de diminutas frações entre os dois números. Conclusão: entre 1 e 2 temos
infinitos números. Como então ir de 1 até 2 se entre ele há infinitos espaços, como
percorrê-los? Claro que hoje temos algumas soluções, mas o problema que me interessa
aqui é: como definir um número? Não pode ser uma quantidade de coisas físicas, afinal
ainda que funcione para 1 ou 2, já não funciona para -1. Na verdade, o que parece
necessário na matemática, em verdade é apenas uma necessidade resolvida por
convenção.
1) O princípio da identidade, que diz que algo tem que ser igual a ele mesmo, ou que
você é igual a você. Formalmente temos algo como a=a.
2) O princípio da não contradição, que diz que algo não pode ser diferente dele
mesmo, ou se você é você e eu sou eu, eu tenho que ser diferente de você,
formalmente: se a=a e b=b, a tem ser diferente de b.
3) O princípio do terceiro excluído afirma que uma proposição só pode ser
verdadeira ou falsa. Ou eu me chamo Bruno Pettersen ou não. Não posso ao
mesmo tempo me chamar Bruno Pettersen e não me chamar.
Você deve ter visto como esses princípios são simples e óbvios. Aqui está a chave para a
linguagem formal começar a estabelecer os significados absolutamente fixos. O truque é
começar de algo óbvio e derivar tudo daí. A matemática sairia da lógica e as duas
forneceriam a base para todas as linguagem que necessitam de significados precisos.
Mas não funcionou assim. A Lógica não conseguiu segurar esses princípios, por
mais óbvios que eles pareçam. Vou dar um exemplo de como um destes princípios pode
ter mais de um significado: o princípio do terceiro excluído. Esse princípio afirmou que
uma proposição só pode ser verdadeira ou falsa, mas não as duas coisas ao mesmo tempo.
Tal ideia inclusive tem uma aplicação prática, que é a computação. A lógica da
computação, que usamos em grande medida hoje é baseada no princípio do terceiro
excluído, por isso ela é construída em 0 e 1 – sem um terceiro valor. Esse princípio é tão
bom que tudo o que você usa de eletrônico hoje em dia está baseado nesse princípio
lógico.
Mas como toda boa história, esta tem um pequeno detour. Hoje é claro que a coisa
não é simples assim. Algumas áreas da ciência, especialmente na mecânica quântica, tem
sido necessário de uma lógica com “mais valores”. Nela além de 0 e 1 poderíamos ter
outros valores, e de modo mais interessante, em alguns casos tem sido necessário dizer
que algo pode ter o estado 0 e 1 ao mesmo tempo, tal é chamado de “superposição de
estados”. É como se eu me chamasse Bruno Pettersen e não me chamasse Bruno Pettersen
ao mesmo tempo. Tudo isso pode parecer estranho, mas é um fato bem descrito pela
física. Computadores tem sido pensados a partir desta nova lógica, mas tudo ainda é muito
novo.
Nem mesmo a Lógica é capaz de nos fornecer um princípio tão indubitável quanto
queríamos. Nada parecer ser. Se nem a Lógica, nem a Matemática podem estabelecer uma
univocidade conceitual, o que falar da nossa fala do diária? Não é possível esperar
nenhum significado que não seja pelo menos um pouco vago, mesmo na lógica e
matemática.
Significados Contextuais
Então pergunto-lhe: essa frase é verdadeira ou falsa? Primeiro, na teoria da verdade como
correspondência, precisamos saber se essa frase corresponde ao mundo, que nesse caso é
a frase. Bem, se ela for verdadeira então ela é falsa, e se é falsa não pode ser verdadeira.
Por outro lado, se ela for falsa então ela é verdadeira, visto que é falsa que ela é falsa. Se
isso não é um nó conceitual, não sei o que é. De toda maneira, o que esse paradoxo indica
é que essencialmente não podemos aceitar a ideia de que uma crença verdadeira é aquela
que corresponde ao mundo.
Mas há outra solução? Outras possibilidades para dizer o que é a verdade tem
surgido ao longo da história. Uma que me parece bastante adequada é a chamada teoria
“correntista” da verdade. Quero começar tomando um exemplo político. Imagine que
agora nos aproximamos do momento de uma grande eleição para um cargo majoritário.
Nesse momento é nossa tarefa examinar qual dos candidatos é o mais adequado, e assim,
como fazê-lo? É necessário inicialmente obter as suas declarações sobre o seu plano de
governo. Assumindo esse plano, podemos ir aos seus antigos mandatos ou atividades e
verificar se ele executava o que prometia e se o fazia bem. É recomendado também
verificar se o próprio plano de governo apresentado pode ser realizado, por exemplo, se
a promessa de fazer mais investimentos vem acompanhada com um modelo de
gerenciamento dos impostos. Necessário ainda é verificar se todas as afirmações feitas
estão de acordo com aqueles que estão ao redor do candidato, desde o seu partido até seus
correligionários. Em todo esse processo de investigação da posição do candidato, estamos
buscando avaliar se suas declarações são verdadeiras ou falsas por meio da coerência
entre elas.
Esse é um critério excelente porque permite avaliar uma crença/afirmação em um
todo e não como partes isoladas. Isso não torna a avaliação mais simples, pelo contrário
torna-a muito mais complexa e permeada por variáveis. No entanto, esta forma torna a
investigação mais dedicada e precisa. Inclusive essa possibilidade de encarar a verdade
permite resolver um incômodo que relatei acima. Como mostrei, povos antigos julgavam
que suas crenças eram verdadeiras e que por isso se adequavam ao mundo. Eles não
estavam errados. De fato o seu conjunto de crenças/afirmações era perfeitamente coerente
com o restante de suas crenças. O que aconteceu é que dado o nosso sistema de crenças,
as antigas crenças de um dado povo não são mais coerentes.
Precisamos então avaliar a verdade a partir de um dado sistema coerente. Um
sistema mais amplo e mais coerente é sempre aquele mais capaz de nos dizer o que o
mundo é. Tal será uma busca por toda a vida, não minha ou sua, mas da espécie. Como
eu gostaria que essa teoria simplesmente resolvesse todos os nosso problemas! Mas não
resolve, criando desconfortos ainda piores do que a teoria da verdade como
correspondência.
A maior dificuldade da teoria da coerência é o fato de que alguém poderia criar
um sistema de crenças que é perfeitamente coerente com todos os fatos, mas ainda ser
uma bobagem total. Um caso que sempre me chama a atenção são os crédulos das
chamadas “teorias da conspiração”. Essas são teorias que buscam explicar fatos do mundo
a partir de densas redes de poder que tem o objetivo de dominação mundial ou de busca
de poder. Um exemplo são as teorias do porquê da existência de uma pirâmide com um
olho no topo na nota de um dólar. Muitas são as possibilidades exóticas, desde os
chamados “Iluminati” até grupos religiosos fanáticos. De todo o modo, o que importa, é
que os crédulos nas teorias da conspiração conseguem tornar a sua crença absolutamente
coerente com todos os fatos do mundo, inclusive gerando ligações entre fatos que as
pessoas “comuns” não veem. Até mesmo a minha tentativa de mostrar que essas teorias
são bobagens, pode ser vista como uma tentativa coerente e conspiratória para derrotar as
teorias da conspiração. Assim, leitor, será que o meu objetivo é fazer tais teorias caírem
por terra? O curioso é que tais teorias são coerentes, com frequência até demasiada. Pelo
menos coerentes no sistema de crenças dos teóricos da conspiração.
Não me parece sadio dizer que uma teoria coerente é uma teoria verdadeira. Ao
contrário, a coerência pode ser um requerimento para a verdade, mas está longe de ser
inequívoco.
O encanto pela verdade não deve ser menosprezado. Mas além de tudo é um
encanto. É um engano, uma suposição de que existe algo tal como a verdade. Não há
nada. Nos termos que comecei esse capítulo: não há nada lá fora, especialmente não há
verdade lá fora. Tudo que existe é o mundo, e só. Como eu entendo o mundo é que é o
assunto da verdade.
Alguém poderia objetar que estou relativizando a verdade aos humanos, suas
peculiaridades e épocas. Mas esse é um fato. O que poderia nos acalmar seria uma teoria
da verdade forte. Mas daquelas que examinamos, sinceramente, posso dizer que nenhuma
delas tem hoje condição de dizer o que é a verdade, mesmo se existe tal coisa. Ficamos
assim então: eu não digo que não há verdade, se você não disser que ela existe. E assim
está bom para mim.
8. Há conhecimento justificado falso?
É possível achar que estou correto, ter razões para isso e ainda estar errado?
Quantas crenças já foram mantidas com todas as energias, com razões para isso e que
acabaram sendo falsas. Com alguma distância é fácil dizer que nos enganamos, mas
estando inserido no contexto adequado é praticamente impossível não acreditar com
razão em conteúdos falsos. Quero dar dois exemplos para começar, um histórico e um
fictício.
No século XIV a Europa foi assolada pela chamada “Peste Negra” que hoje
sabemos ser causada por uma bactéria presente nas pulgas que habitam ratos e outros
animais roedores. Naquele momento uma quantidade inacreditável de pessoas morreu.
Os números são sempre incertos, mas algo com 30 milhões de pessoas parece ter morrido
naquela ocasião. Muitos relatos dão conta de que fora a ignorância e a superstição
religiosa a responsável por aumentar os números de casos. Mas esse olhar é injusto.
Apesar desses fatores terem sido importantes, em último caso, as informações presentes
naquele momento indicavam que as medidas tomadas eram as corretas. Vejamos.
Suponhamos que bruxas e seres diabólicos de todos os tipos existem. Não importa
o que você julga hoje. Naquele momento era um fato incontestável que seres desse tipo
existiam. Se eles existem, pode ser suposto que o seu objetivo é promover o mal, tal como
a doença. Os gatos representavam naquele momento a maldade inerente aos seres
demoníacos. Todo esse cenário implica que os gatos e as bruxas deveriam ser eliminados.
Essa seria a solução para a doença. Por mais simples que essa decisão seja, ela foi tomada
com base em informações confiáveis para qualquer um naquele período. Tal como hoje
podemos confiar nos procedimentos da investigação empírica, naquele momento se
confiavam nestes princípios. Um homem medieval que acreditava ter que assassinar
bruxas e seus gatos, era alguém que pensava ter as razões adequadas para fazê-lo. Não se
trata de crendices estúpidas, mas sim de alguém de posse de razões adequadas para o
contexto daquele momento.
O observador ideal
Se existisse um observador ideal isso não implicaria que ele teria ciência de todos
os fatos. A mera capacidade de obter informações, não é o mesmo que alguém que saiba
interpretar todos os dados daquela situação. A intepretação dos fatos é um processo onde
se pensa na relevância de cada um dos aspectos presentes, o que é muito mais demorado
do que o colher das informações. Precisaríamos de um ser com duas capacidades: a) que
ele fosse um observador ideal e b) que ele fosse um “examinador ideal”. Acho pouco
provável que isso possa acontecer, pelo menos por enquanto.
Há outra dificuldade grave: a mera suposição de um observador ideal pode ser
danosa. Suponhamos um problema social e político de profundo impacto: que a pena de
morte deve ser implementada. Esse problema não é simples, justamente porque ele é
multifacetado. Podemos com ele nos perguntar: um estado tem o direito de tirar a vida de
um humano? Em que constituí o direito do estado sobre a vida de indivíduos? Todas essas
questões são boas e admitem respostas muito variadas, dependendo de para quem você
perguntar. Minha implicância pessoal com a pena de morte surge do problema do
“observador ideal”.
Critério Elevados
O problema aqui parece ser, no final das contas, que estamos com critérios muito
elevados para a determinação do conhecimento. É quase como se eu estivesse dizendo:
só é conhecimento justificado quando todas as informações e avaliações concernentes
estivessem reunidas. Essa ideia é muito perigosa e já assolou a um número incontáveis de
pensadores, nas mais diversas áreas.
Mas por que há essa atração por padrões altos demais? Na verdade, essa atração é
parte de nossa tradição grego-cristã. Não aceitamos nada menos do que a verdade absoluta
sobre todas as coisas, a partir de evidências absolutamente seguras. É forte demais. Isso
não é um problema apenas com questões de conhecimento. Na ética é o mesmo. Quando
vamos ler um filósofo como Imannuel Kant, uma das questões mais difíceis é: “devemos
mentir?” A resposta de Kant é um sonoro “não”. Se perguntássemos para ele se a mentira
pode ser utilizada para a preservação de vidas, ainda sim a resposta seria não. Não cabe
aqui entrar no próprio argumento dele, o que já o aviso, é muito bom. Mas o problema é:
será que não é muito exigente supor seres humanos que nunca mintam?
Um padrão elevado pode por outro lado representar uma meta. Algo que seria bom
alcançarmos, mas sem uma exigência final de realização. Desse modo me parece melhor,
justamente porque desobriga o agente a realizar. Diria: não se deveria mentir, mas é
sempre possível que o façamos. Mas se for assim, para que ter metas altas e não realiza-
las? O ideal seria criar metas possíveis e realizá-las da melhor maneira possível. Eu
adoraria que o Brasil usasse apenas energia atômica, contudo isso está longe de ser
efetivado. Portanto, uma meta melhor, não seria dizer que ao Brasil deveria usar em 10
anos 20% de energia atômica? Tal meta seria mais produtiva do que querer que em 10
anos 100% da energia seja atômica?
O problema é que temos padrões altos demais para a justificação de qualquer tese,
seja mais ou menos teórica, moral ou epistêmica, metafísica ou pragmática. Buscamos
padrões elevados para justificar o nosso conhecimento, quando na realidade não existe
nada justificado que seja elevado o suficiente para levarmos a ferro e fogo.
Pensando um novo modelo de justificação
Uma das estratégias possíveis é dizer que é possível julgar bem sem possuir todas
as informações. Para tal, deve-se assumir um único critério: nenhum julgamento,
pragmático ou teórico será final. Mas de fato é possível julgar bem assim? Suponha que
eu estou julgando o mesmo criminoso x do exemplo acima. Imagine que eu tenho
novamente disponível as mesmas informações, incluindo, provas e testemunhos. A minha
conclusão pode ser novamente que o sujeito x é quem cometeu o crime. Faço isso porque
tenho uma ideia do que seria estar certo sobre algo, a saber, sei algo quando:
Então condeno o sujeito x à prisão. Mas a pena deve ser proporcional à própria definição
de conhecimento, o que é coerente nesse caso dar uma pena tal que, se novas evidências
surgirem, eu devo ser capaz de rever minha decisão. Portanto: nada de qualquer decisão
irreversível.
Em termos lógicos posso pensar que um sistema coerente de crenças tem sua
coerência mantida quando as suas partes se suportam mutualmente. Uma entrada de uma
nova suposição implica em nova verificação de se ela é coerente. Se não for, o sistema
deixa de ter coerência total. O que implica em recusar uma decisão total.
Claro que isso significa que em termos práticos e lógicos, que você pode estar
certo sobre algo, mantendo evidências adequadas sobre um fato qualquer, e mesmo assim
estar totalmente errado. Não há contradição entre em um momento julgar estar certo e em
outro julgar que tinha pensado erroneamente, a contradição existe apenas quando ao se
encontrar uma falsa crença não é feito nada.
Se todo esse argumento estiver correto, como eu de fato penso, é possível que tudo
o que sei agora, e que inclusive posso jurar que tenho certeza absoluta, pode ser
completamente falso. Inclusive essa frase. Sem esquecer do pensamento que você acabou
de ter sobre o que acabou de ler. É possível ter conhecimento justificado falso. Me resta
apenas admitir a precariedade e temporalidade do saber, e assim ser mais aberto à
possibilidade de erro.
9. Há prova científica?
O título desse capítulo diz respeito ao tema que me dedico ao lado da filosofia:
ciência. As mais diversas ciências representam uma das atividades mais especiais da
humanidade. Não estou falando das coisas produzidas, tais como computadores, telefones
e técnicas médicas. Tudo isso é incrível, mas é produção técnica e não propriamente
ciência. Quando estou falando de ciência, falo das reflexões sobre a natureza que tem o
objetivo de entender melhor o Universo. Nada mais.
Precisamos assim, desde o início fazer uma diferença filosófica entre ciência e
técnica. A ciência é a realização de uma reflexão fundamental sobre a natureza. Ela se
pergunta os porquês e os como da natureza, questões tais como: “a vida começou como?”,
“a Terra é composta por quais elementos?”, “por que certos átomos formam moléculas
com outros?”, “por que o céu é azul?”. Em outra perspectiva todas estas perguntas podem
ser extremamente úteis. Mas se estou falando de ciência, o propósito primeiro deve ser o
de nos mostrar a beleza e complexidade da natureza.
Ao falar de ciência e técnica não estou falando em nenhum sentido que essas duas
atividades não são interdependentes. Quero com esse argumento indicar um ponto: não
podemos usar os desenvolvimentos tecnológicos para provar que a ciência está certa. Não
é porque os prédios estão de pé, que a teoria newtoniana está correta. Quando as vacinas
funcionam não temos uma prova de que as teorias microbiológicas funcionam. Acontece
que teorias científicas mudam de tempos em tempos, e esta mudança não destrói prédios.
A mudança da teoria científica indica que entendemos mais da realidade, mas não que
devem ser jogadas fora todas as traquitanas inventadas.
Dizer que a ciência funciona porque a técnica funciona é o argumento que eu mais
escuto quando dou aulas de filosofia da ciência. Sempre alguém me diz que a ciência é
perfeita porque computadores funcionam. Eu entendo o apelo desse argumento. Mais do
que isso, ele foi cuidadosamente construído para funcionar, mas não por cientistas, mas
sim pela propaganda. Uma das propagandas que mais incentiva a suposição de que ciência
e tecnologia é igual são as propagandas de pasta dental. Invariavelmente elas são assim:
um caso de atores/modelos famosos aparecem em cena com dentes não naturalmente
brancos, tão brancos que devem ofuscar. Mas estão lá os atores para dar a autoridade
social necessária. Mas se você não foi convencido pelos dentes alienígenas da mocinha
ou mocinho, um dentista com um avental imaculadamente branco aparece dizendo que
ele e seus colegas aprovam e recomendam o uso daquela pasta. Imagine. Se você sabe
um pouco de estatística pode imaginar que se em duas propagandas de diferentes pastas
de dente dizem ao mesmo tempo que 95% dos dentistas recomendam somente essa e não
outra pasta de dente, temos um problema. Deixando de lado as perversões da matemática,
o fato é que a palavra do dentista funciona como a autoridade do cientista, que vestido de
branco não poderia mentir. Eu não posso negar. Foi a ciência que me disse. Se você não
foi convencido, deve ter sido pelos modelos/atores. Se não foi por nenhum deles não sei
como escovará os dentes.
Cientificismo
Os pontos dela são ótimos. A ideia de que a ciência é a resposta para tudo é uma
ingenuidade total. A ciência serve para propósitos específicos de compreensão da
natureza. A ciência não é, nem precisa ser, o ápice da civilização. Eu inclusive acredito
que supor que se a ciência precisa de denegrir outras atividades, ela não encontrou seu
foco real. Cientistas que denunciam que tal ou tal área não é tão válida simplesmente não
entenderam a beleza da diversidade de opiniões.
Nas conversas mais comuns sobre o tema escutamos leigos e não leigos dizendo
frases como “é cientificamente provado” para indicar que não há mais qualquer debate a
ser travado. Todas as vezes que alguém me diz algo assim, eu digo: você sabe como
funciona um experimento científico? Se sabe, você sabe a limitação dele? Veja: em um
laboratório um experimento é feito de acordo com uma teoria preconcebida, que pode ou
não estar correta. Esse experimento tem um número enorme de partes e subpartes. Ele
depende de aparelhos construídos que são extremamente delicados e variados em
natureza. O experimento depende frequentemente do estabelecimento de condições de
realização da pesquisa, tanto financeira quanto da formação do cientista que quase nunca
são ideais. Depois há o próprio objeto de teste. Ele é normalmente cortado e analisado
parte a parte. Tantas partes que é necessário construir tabelas e mais tabelas de
verificação. Uma vez que tudo tenha sido analisado e reanalisado, é necessário publicar
um trabalho que será produzido ao longo de alguns anos. Depois é esperado que os pares
tentem avaliar o que foi feito e se for possível repetir os cálculos e experimentos. Anos
depois alguém pode encontrar uma falha que não estava presente na época e que implica
que o experimento precisa ser refeito a partir de novas ideias. Assim tudo recomeça. Não
há nada como um carimbo de “cientificamente provado” na mesa do cientista que carimba
o artigo enviado para a revista de publicação. Se você entendeu todos os passos, e são
muitos, está pronto para abandonar a ideia do “cientificamente provado” e seus similares.
História e Ciência
É um dogma supor que a ciência tem princípios mais ou menos adequados do que
qualquer outra área. É um dogma supor que o discurso científico tem qualquer prioridade
sobre outros tipos de discursos. A maioria dos cientistas sabe muito bem da complexidade
da ciência e especialmente a dificuldade de se obter respostas finais. Se é que uma
resposta final pode ser algo que a ciência tem condição de revelar. Me parece, que o dia
que a ciência nos apresentar uma “resposta final” sobre qualquer tema será o dia em que
a ciência deixará de ser ciência e passará para uma atividade de culto à verdade, seja isso
o que for.
Uma ótima frase do filósofo David Hume diz que devemos “proporcionar o
conhecimento à evidência”, que significa que conhecer algo implica em ter crenças que
são suportadas por boas razões. Quando os Geocentristas mantinham suas teses, eles não
eram tolos. Ao contrário, tinham evidências e proporcionavam a crença deles à evidência.
Foi o mesmo com os Heliocentristas que diziam ser o Sol o centro do Universo.
Só alguém que julga que a história do conhecimento parou pode acreditar que uma
teoria absolutamente nova não surgirá. Qualquer um que pense com mais cuidado sabe
que o método de pesquisa, as perguntas e os objetivos podem ser completamente alterados
em um futuro brevíssimo. Assim, por que supor que a ciência poderá revelar a imagem
certa? Não é melhor apenas verificar se a teoria é construída a partir das evidências que
temos? Aquele que acredita que a ciência é tentativa final de resolver os problemas está
simplesmente mergulhado no mito cientificista.
Método e Pseudociência
Mas se ciência é historicamente dada, como saber realmente o que é uma tese
científica e não apenas mais uma loucura? O problema com isso é o chamado “critério de
demarcação”. É o critério “nós e eles”, “ciência e não ciência”. Mas há mesmo uma
fronteira? E se há, qual é o fundamento? E para que serve essa fronteira? Vou começar
pela última.
Outra opção para fazer a separação seria dizer que ciência é aquilo que se faz nas
Universidades. Se você se matriculou em um curso de Física, Biomedicina, Agronomia,
Geografia, etc., você está fazendo ciência, seja lá o que o conjunto de todas esses estudos
signifique. Essa definição é perfeitamente adequada para fins práticos, e eu acredito que
a maioria das pessoas defina ciência pelo aspecto da feitura dela e não por uma rígida
definição. Nesse sentido, para mim pelo menos, é mais útil falar que a ciência é aquilo
que uma comunidade de pesquisadores se interessa em um dado tempo. Essa definição é
tão fluída que qualquer tentativa de incluir outras pesquisas pode ser feita aqui, quem sabe
talvez até o cinema seja ciência em nossa definição.
No final talvez seja a busca por um critério de demarcação que esteja equivocada.
Para mim, as fronteiras da ciência são tênues mesmo e isso não é ruim. É importante que
a ciência possa se emaranhar em disciplinas que não são reconhecidas hoje como ciência.
Essa atitude não é apenas ruim, mas frequentemente é útil. Um cientista que pode trazer
para sua pesquisa outras tradições pode eventualmente aumentar o escopo de sua
pesquisa. Quero dar um exemplo prático. A tradição em que o Ocidente está é a cristã.
Um dos aspectos desta tradição é a suposição de que o tempo é “linear”, isto é, tudo teve
um início, tem um presente e terá um futuro. É uma “linha do tempo” reta. Uma das
teorias que é afetada por essa imagem é a teoria do Big Bang. Ela é tão famosa, e inclusive
pop, porque coaduna bem com a metafísica cristã da criação, onde há um momento onde
a criação ocorreu. Em geral a teoria do Big Bang é ótima, mas ela tem problemas
específicos, como por exemplo os eventos que conduziram à criação. Mas será que uma
solução não seria trazer uma maneira não linear de pensar, onde não houve início, mas
tudo sempre foi? Em nossa mente ocidental é muito estranho pensar que algo não teve
início, mas, e se for o caso? Um mergulhar em tradições não lineares pode ser benéfico
para a física.
Por outro lado, acredito que isso é bom para a ciência. É preciso que as pesquisas
sobre a natureza sejam temperadas com o reconhecimento de que ela pode ser estar errada
e ser mais uma das muitas pesquisas. Imagine: se eu não estiver disposto a acatar que
posso estar errado, o que queremos que a ciência são dogmas!
Mas ao mesmo tempo eu sinceramente não acho interessante dizer que a ciência
é débil. Ao contrário. Ela tem nos provido de compreensões precisas sobre a natureza
desde o início. Claro que com problemas, mas a ciência sempre está disposta a investigar
racionalmente seus objetos. Ela é parte de uma tradição profundamente honrada de
investigação que tem o objetivo de entender mais e melhor tudo. A relatividade deve ser
colocada sim, para o próprio interesse da ciência, sem claro gerar uma dúvida tão geral
que impeça a possibilidade de colocar as questões.
A dúvida não pode paralisar a pesquisa, a dúvida deve ser a forma avanço. Mas
certamente se há prova científica, ela é temporária.
10. Há Mentes?
Dizer isso hoje é praticamente contrariar muitos dos críticos de Descartes. Muitos
autores adoram apontar os muitos erros de Descartes na descrição da mente, e não se
engane, estes foram muitos. Mas para mim é absolutamente inegável o fato de que o
tratamento racional dado por Descartes à questão foi o que abriu o cenário para o
desenvolvimento do assunto em um viés filosófico e científico. Mas qual é a tese de
Descartes?
Segundo ele, o ser humano é uma reunião de duas “coisas” (do latim res) ou ainda
duas “substâncias”: a matéria e a mente (a res extensa e a res cogitans). A matéria é a
parte em nós que ocupa o espaço, ou seja, nosso corpo físico. Para Descartes, tudo, das
rochas, às plantas, passando pelos animais e chegando aos animais humanos, tudo, é res
extensa, ou seja, matéria. Mas há alguma coisa (res) no ser humano que o torna capaz não
apenas de ser algo, mas sim de saber que se é algo, e isso é o que Descartes chamava de
res cogitans, que é a “coisa pensante”, que chamarei aqui de “mente”. Para ele a mente é
uma parte em nós que não é física, ela faz parte de outra realidade. O pensamento é o que
torna o ser humano único, não apenas porque pensamos, mas porque somos a soma entre
uma parte material e uma parte mental. Ao desenvolver sua obra, Descartes vai se
preocupar em explicar toda a sua teoria sobre a mente humana, como ela é e o que a torna
especial.
Sim. A tese acima está errada. Parece hoje que tudo o que há é a parte material.
Mas se é assim, como explicar a consciência humana como algo físico? E mais: há alguma
coisa especial na mente ou consciência? Atualmente o problema da mente está em
explicar como o pensamento funciona em uma base meramente física. Assim, supondo
que tudo o que há é a res extensa de Descartes, como a parte física gera o pensamento,
especialmente como a consciência é capaz de se perguntar isso?
Consciência
Em certo sentido, Robocop foi o Frankenstein de minha geração, e isso diz muito
sobre ela. A trama é simples. Em uma cidade onde a violência se tornou a constante, era
preciso tomar decisões drásticas: a criação de um policial que fosse mais rápido, ágil e
forte, e para isso havia um experimento que envolvia a criação de um robô com a mente
humana. Assim, como o Frankenstein todas as partes do novo ser seriam montadas, e
também era preciso de uma mente humana, e essa viria de um policial, Alex Murphy, que
foi uma vítima da violência da cidade e que agora poderia ser um robô policial humano
ou um Robocop. Assim foi feito. Mas algo curioso aconteceu. Se antes conhecíamos o
ser humano que se tornou o Robocop, como uma pessoa alegre, o robô que ele se tornou
é frio e simplesmente executa as ações. Sem dar muitas pistas do fim do filme, basta dizer
que o filme mostra o ser humano tentando voltar a controlar a máquina. Claro, com
bastante sangue e violência.
Esse filme trouxe algumas ideias boa e outras nem tanto. De um lado temos o
problema da natureza da consciência do policial Alex Murphy, o futuro Robocop.
Sabemos desde o início do filme que o que dá consciência não é apenas o cérebro, mas o
cérebro em um corpo. Eu sei que sou Bruno porque estou em um corpo humano. A
capacidade de que eu tenho de reconhecer o meu corpo como sendo o meu corpo, de
entender meus pensamentos como meus, estão todas ligadas. Quando o cérebro de
Murphy vai para o robô, vemos que ele não é ele mesmo mais, ele é outro ser. E ele é
outro porque o corpo dele é outro. Apesar de podermos hoje dizer que o cérebro é o lugar
onde a consciência ocorre, ela não ocorre apenas em virtude do cérebro, mas do corpo
inteiro.
Claro que não sabemos se seria possível colocar todo o corpo em um robô, mas
segundo o que pensamos hoje sobre a consciência e a mente, se isso ocorresse, não haveria
mais algo tal como o antigo ser humano. Você é o que é porque agora está talvez com um
pouco de fome e isso o impele a pensar na próxima refeição. Você também deve estar
sentado ou deitado, e as suas costas são parte de sua forma de lidar com o mundo a sua
volta, mas também, as suas costas estão moldando a maneira de ler esse texto. Não se
esqueça de que seus olhos estão vendo algo de acordo com certa disposição de células e
que elas fazem parte do próprio conteúdo que você está experenciando. Uma experiência
de qualquer coisa, inclusive de mim mesmo, envolve todo o corpo de uma vez só. Se eu
não tivesse o corpo que tenho, isto é, se minha consciência fosse para um robô, eu
simplesmente deixaria de ser Bruno. Você que sonha em ter sua consciência transplantada
para uma máquina, saiba que o “você” se perderá no momento em que sua consciência
for digitalizada. Não tem nada a ver com a alma, mas sim com o fato simples de que seu
corpo é indissociável de sua consciência.
O filme é bom porque começa corajoso ao mostra que Murphy não é mais quem
era. Suas experiências passadas, presentes não são mais do Murphy, mas do novo ser.
Essencialmente sua consciência foi perdida. Ainda que exista a informação, a ideia de in
– formar, de formar dentro de alguém se perdeu. Mas o filme não é corajoso o suficiente
para simplesmente descartar o policial Murphy e reconhecer que uma nova consciência
nasceu.
A questão então passa a ser outra: se a consciência é parte do corpo e não algo
diferente dele, como queria Descartes, o que significa exatamente a ideia de “eu”? O que
é o indivíduo?
Identidade Pessoal
Não há acordo claro sobre este problema, no entanto, uma pista tem a ver com
uma doença: o Alzheimer. Nesta doença, muitos pacientes começam perdendo memória
de curto prazo e aos poucos podem perder as memórias de longo prazo. Todos nós que já
convivemos com alguém que está aos poucos perdendo a memória sabemos o quanto é
doloroso, para nós e para o próprio paciente. Aos poucos não é apenas a memória que se
esvaí, mas em certo sentido a pessoa. Em estágios avançados, muito do antigo “eu” do
paciente não está mais presente. Não é que não haja identidade, mas a ideia de
“identidade” implica que haja alguma semelhança entre o que antes foi e o que agora é, e
é isto que se perde aos poucos com a doença. A memória, que envolve a lembrança do
fato, da minha reação à ele e minhas qualificações dele, dá o formato a quem eu sou. A
memória é uma espécie de processo autorrecursivo. Quando trago uma antiga memória à
tona, ela é atualizada a partir de novas memórias que eu tenho agora, e o que eu me lembro
do passado é ressignificado. Em termos filosóficos, o que o Alzheimer parece fazer é
cortar os laços autorrecursivos da memória, incluindo a lembrança e as qualidades
atribuídas e o eu.
Para falar deste “eu” muitos aspectos são importantes: o corpo, a consciência, a
cultura, a linguagem e meus pensamentos. Mas a construção deste processo depende da
memória como aspecto ordenador. Ninguém tem dúvida de que a sua identidade é
construída com as memórias. É até trivial falar isso. O que não é trivial é a consciência.
Se eu sou uma construção ordenada pela memória não há identidade, ou seja, não
há necessidade de falarmos realmente de “um” Bruno. Como eu argumentei acima, cada
memória gera uma nova rede de significados e ser alguém depende de uma constante
renovação. O problema aqui é que normalmente a ideia de “uma” identidade pessoal
pressupõe que algo é igual, idêntico ao que foi ontem, a rigor, não há nada assim. Tudo
o que sou muda com as novas memórias. E por isso, ainda que eu possa dizer que algo
como o Bruno de ontem é semelhante com o Bruno de hoje, no longo prazo, o Bruno de
hoje não é o mesmo Bruno de vinte anos atrás. Por mais que eu goste de ser quem eu sou,
não há quem eu sou, como sendo uma consciência imutável. O nosso documento de
identidade pressupõe que somos os mesmos. Mas não somos. É confortável para você
crer que há algo como o “Bruno” ou o “você”. Gostamos disto e precisamos disso para
nos reconhecer. No entanto, tudo o que há é a continuidade do fluxo de memórias, onde
cada memória se relaciona com a anterior. No entanto, não há “uma” só identidade. Se
não há uma identidade pessoal, como eu posso me reconhecer? Será que tudo o que eu
poderia falar é em “Bruno(s)” em “eu(s)”? Todos os pronomes pessoais estariam errados.
Toda forma de pensar em minha identidade é uma ilusão?
A conclusão parece ser dupla: a) não há como falar de uma mente sem um corpo
e b) não há uma identidade pessoal para o indivíduo, e assim, se algo é a mente estamos
falando de algo necessariamente físico?
Tal debate é uma confusão de argumento. Dois argumentos são os mais extremos.
De um lado há alguns que dizem que em breve a mente poderá ser descrita toda a partir
de padrões físicos. Estes são os “monistas”, supondo que há apenas uma única coisa ou
substância, a física. De outro há aqueles que afirmam que há mais do que o físico, havendo
a necessidade de uma nova substância que comporia a mente. Estes são os “dualistas”.
Descartes achava que era a “mente” essa outra substância, assim ele era um dualista.
Outros argumentos são menos extremos. Há o dualismo de propriedades, que afirma que
há uma substância só, mas propriedades físicas e mentais. Há o behaviorismo, que afirma
a necessidade estabelecermos as vinculações da mente com os padrões de comportamento
social. Há a teoria do aspecto dual, que envolve a crença de que há algo que não é físico,
mas que não se sabe bem o que é.
A natureza da mente
Mas e se explicarem tudo o que somos usando apenas a ferramenta física? Será
que muda alguma coisa? Outros argumentos são possíveis?
De um lado temos o argumento que afirma que tudo o que há é a natureza física,
onde a minha consciência poderá ser descrita apenas pela descrição natural. Ao mesmo
tempo, temos o argumento que afirma que algo parece ir além, justamente a peculiaridade
da experiência humana. Sabemos muito sobre a da consciência humana, no entanto, sobre
o que ela é de fato, se um processo físico ou mental, se ela pode ou não ser descrita pela
ciência, e especialmente, se a consciência realmente dá uma unidade ao ser humano, a
todos estes temas não há qualquer definição atual, apenas um sem número de questões
abertas.
1. ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 12. ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2007.
2. ANNAS, J & BARNES, J. The Modes of Scepticism – Ancient Texts and Modern
Interpretations. Cambridge University Press, 1985.
3. BAILEY, Alan. Sextus Empiricus and Pyrrhonean scepticism. Oxford: Clarendon
Press; Oxford; New York: Oxford University Press, 2002.
4. BARNES, Jonathan. The toils of scepticism. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990.
5. BLACKBURN, Simon; MARCONDES, Danilo. Dicionário Oxford de filosofia.
Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997. 437p
6. BRAGA, Marco; GUERRA, Andreia.; REIS, José Claudio. Breve história da
ciência
7. BROCHARD, Victor. Les sceptiques grecs. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique
J. Vrin, 1932.
8. CHALMERS, A. F. O que e ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.
9. DANCY, Jonathan. Epistemologia contemporânea. Lisboa: Ed. 70, 1990.
10. DESCARTES, René. Discurso do método. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
11. DESCARTES, René. Meditações sobre filosofia primeira. Campinas, SP: Ed.
UNICAMP, 2004.
12. DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Ed.
UnB, 1988.
13. EINSTEIN, Albert. A teoria da relatividade especial e geral. Rio de Janeiro:
14. FEYERABEND, Paul K. Contra o método. São Paulo: Ed. Unesp, 2007.
15. FOGELIN, Robert J. Pyrrhonian reflections on knowledge and justification.
16. ______. Walking the tightrope of reason: the precarious life of a rational animal.
Oxford [England]; New York: Oxford University Press, 2003.
17. GALENO. On the natural faculties. Trad: A. Brock. Cambridge, Mass.; London:
Harvard Univ., 1916.
18. GAZZINELLI, Gabriela Guimarães; DIÓGENES LAÉRCIO. A vida cética de
Pirro. São Paulo: Loyola, 2009. 203 p. (Leituras filosóficas)
19. GETTIER, Edmund. “Is justified true belief knowledge”. Analysis 23,1963,
p.121-3. Republicado IN: Knowledge: Readings in Contemporary Epistemology.
DRETSKE & BERNECKER (Ed.). Oxford: Oxford University Press. 2001.
20. GLEISER, Marcelo. A dança do universo: dos mitos de criação ao big bang. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
21. GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
22. HUME, David. Investigação acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Nova
Cultural, 1999.
23. ______. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais. São Paulo: Ed. UNESP: Imprensa
Oficial do Estado, 2001
24. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
25. KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções cientificas. 4. ed. São Paulo: 1996.
26. MAYR, Ernst. O que é evolução. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
27. MILLER, Alexander. Filosofia da Linguagem. São Paulo, SP. Ed. Paulus, 2010.
28. moderna. Volumes 1 a 4. .2. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001-6
29. MOORE, G. “Uma defesa do senso comum”. In: Princípios Éticos e outros textos.
Sel. De H. Lacey. Trad. de L. J. Baraúna, P. R. Mariconda. S. Paulo: Abril
Cultural, 1974. Col. Os Pensadores.
30. NAGEL, Thomas. “Como é ser um Morcego?”
IN: http://www.cle.unicamp.br/cadernos/pdf/Paulo%20Abrantes(Traducao).pdf.
Consultado em 17/02/2014.
31.
32. NOVELLO, Mario. O que é Cosmologia? São Paulo: Editora Livraria da Física,
2010.
33. PASCAL, Blaise. Pensees. Paris: GF-Flammarion, c1976
34. PLATÃO. Diálogos: Teeteto. Belem: UFPA, 1988.
35. POPKIN, Richard Henry; POPKIN, Richard Henry. The history of scepticism:
from Savonarola to Bayle. Rev. and expanded ed. Oxford; New York: Oxford
University Press, 2003.
36. PORCHAT, Oswaldo. Rumo ao Ceticismo. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
37. QUINE, W. V. “Dois Dogmas do Empirismo”. Tradução de Marcelo Lima. São
Paulo: Abril Cultural, 1975. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção os
Pensadores)
38. ______. “Epistemologia Naturalizada”. Tradução de Andréa Loparié. São Paulo:
Abril Cultural, 1975. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção os Pensadores)
39. ______. Ontological relativity and other essays. New York ; London: Columbia
Univ., c1969
40. ______. Palavra e objeto. Tradução: Sofia Stein e Desidério Murcho.
Petrópolis, RJ: Editora Vozes,
41. 2010.
42. RAMSEY, F. “Philosophy”. In: AYER, A. J.. Logical positivism. New York:
1959.
43. RUSSELL, B. “Da Denotação”. In: Russell, B. Ensaios Escolhidos. S. Paulo:
Abril Cultural, 1974. Col. Os Pensadores.
44. ______.Os problemas da Filosofia. Cap. 12. Tradução: Jaimir Comte. In:
45. SELLARS, Wilfried. Empirismo e Filosofia da Mente. Tradução: Sofia Stein.
Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008.
46. SEXTUS, Empiricus. Outlines of scepticism. Trad: J. Annas e J. Barnes.
Cambridge [England] ; New York: Cambridge University Press, 2000.
47. ______. Hipotiposes Pirrônicas- livro I. Tradução: Danilo Marcondes, in: O que
nos faz pensar – cadernos do departamento de filosofia da PUC-Rio,12, setembro,
1997.
48. TARSKI, Alfred; MORTARI, Cezar Augusto; DUTRA, Luiz Henrique de
Araujo. A concepção semântica da verdade: textos clássicos de Tarski. São Paulo:
Ed. Unesp, 2007.
49. WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Lisboa: Edições 70, 1998.
50. ______. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975.