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Ariela Mazuim Pfeifer

Hospital Santa Cruz | Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul


https://orcid.org/0000-0003-2226-9943
E-mail: arielampfeifer@gmail.com

Caroline Plates da Silva


Hospital Santa Cruz | Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul
https://orcid.org/0000-0002-8128-1865
E-mail: carolineplates@gmail.com

Thais Fabiana Coletto


Universidade de Santa Cruz do Sul | Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul
https://orcid.org/0000-0002-3657-7288
E-mail: thaisc@unisc.br

Mariluza Sott Bender


Psicóloga. Mestre em Profissão, Especialista, Mestre em
Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul.
Preceptora do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde
do Hospital Santa Cruz | Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul
https://orcid.org/0000-0001-7086-6860
E-mail: mariluzabender@unisc.br
Eixo temático: Saúde mental

RESUMO

INTRODUÇÃO: A partir da reforma psiquiátrica brasileira, instituíram-se novas formas de


cuidado em saúde mental. OBJETIVO: O presente trabalho tem como objetivo discutir e
problematizar os retrocessos nas políticas que mantém os Centro de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas (CAPS-AD) e os impactos destes na assistência aos pacientes.
METODOLOGIA: Elencou-se como abordagem metodológica a revisão narrativa de
literatura. Utilizando-se os indexadores: Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas,
Psicologia e Retrocesso, no período de 2016 a 2022, no Google Scholar. Foram selecionados
13 estudos, que foram incluídos nesta revisão. RESULTADOS: Os resultados confirmam o
sucateamento dos serviços especializados em saúde mental, principalmente dos CAPS-AD, e
as controvérsias entre as políticas que deveriam garantir o direito ao atendimento integral aos
seus usuários. CONCLUSÃO: Identificou-se a revalorização do modelo biomédico a partir
da inclusão dos hospitais dia, hospitais psiquiátricos e das comunidades terapêuticas na Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS) e a desvalorização do atendimento multi e interprofissional.

PALAVRAS-CHAVE: Assistência à Saúde; Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas;


Retrocessos; Usuários de Álcool e Drogas.
ABSTRACT

INTRODUCTION: From the Brazilian psychiatric reform, new ways of mental health care
were instituted. OBJECTIVE: This paper aims to discuss and problematize the setbacks in
the policies that maintain the Psychosocial Care Center for Alcohol and Drugs (CAPS-AD)
and their impacts on patient care. METHODOLOGY: The narrative literature review was
chosen as a methodological approach. Using the indexes: Psychosocial Care Center for
Alcohol and Drugs, Psychology and Retrogression, from 2016 to 2022, in Google Scholar, 13
studies were selected and included in this review. RESULTS: The results confirm the
scrapping of specialized mental health services, mainly CAPS-AD, and the controversies in
the policies that should guarantee the right to have appropriate care assistance for its users.
CONCLUSION: The revaluation of the biomedical model was identified from the inclusion
of day hospitals, psychiatric hospitals and therapeutic communities in the Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) and the devaluation of multi and interprofessional care.

KEYWORDS: Health Care; Psychosocial Care Center for Alcohol and Drugs; Setbacks;
Alcohol and Drug Users.

1 INTRODUÇÃO

Após o fim da ditadura militar no Brasil, iniciou-se o processo de redemocratização do


país. Em outubro de 1988 foi promulgada a Constituição Brasileira, considerada o maior
marco democrático do país, com a finalidade de instituir e assegurar os “direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”
de todos os brasileiros (BRASIL, 2016, p. 10).
As discussões quanto aos modelos assistencialistas em saúde já vinham ocorrendo antes
da promulgação da Constituição, ganhando força através do movimento da Reforma
Psiquiátrica e a partir da I Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987. Neste ano
também foi implementado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade de
São Paulo, que viria a ser um exemplo a ser seguido em todo território nacional (BRASIL,
2005, p. 07). Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela promulgação da Lei 8.080
em 1990, que tem por objetivo dispor “sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde” (BRASIL, 1990, s. p.), bem como organizar a efetivação destas ações,
deu-se início a um movimento que incitou reflexões acerca das ações necessárias para um
cuidado integrado, abarcando tanto a saúde física quanto a saúde mental.
Paulatinamente, os direitos das pessoas com agravos à saúde mental foram sendo
garantidos, assim como seus espaços numa sociedade de direito. A partir do processo de
desinstitucionalização, que tirava o paciente de dentro dos hospitais psiquiátricos para
reinseri-los às vistas da sociedade, foram necessárias ações que assegurassem o seu lugar.
Nesse sentido, a Lei nº 10.216 de 2001 garante a proteção dos direitos das pessoas com
transtornos mentais e também redireciona o modelo assistencial em saúde mental, prevendo
que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos
extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” (BRASIL, 2001, s. p.).
Em 2002, a Portaria nº 336 estabeleceu a consolidação e a expansão dos Centros de
Atenção Psicossocial, dividindo-os entre diferentes modalidades: CAPS I (atende a qualquer
faixa etária e todos os transtornos mentais, em cidades ou regiões com no mínimo 15 mil
habitantes); CAPS II (atende a qualquer faixa etária e todos os transtornos mentais, em
municípios com mais de 70 mil habitantes); CAPS III (atende indivíduos com transtornos
mentais graves e persistentes, ofertando serviço 24 horas por dia, sete dias por semana, em
municípios acima de 200 mil habitantes); CAPS AD (implantado em municípios com 70 a
200 mil habitantes, atende a qualquer faixa etária de indivíduos com necessidades
relacionadas ao uso de drogas); CAPS AD III (atende a qualquer faixa etária de indivíduos
com necessidades de cuidados clínicos contínuos, ofertando serviço 24 horas por dia, sete dias
por semana, em municípios acima de 200 mil habitantes); CAPS AD IV (com as mesmas
especificações do CAPS III, está implementado em regiões com mais de 500 mil habitantes);
CAPSi (com foco no atendimento de criança e adolescentes que fazem uso de drogas ou que
possuem transtornos mentais graves e persistentes, ocorre em municípios com mais de 200
mil habitantes) (BRASIL, 2002).
Nessa perspectiva, os CAPS consolidaram-se, expandindo-se pelo país, chegando a 2.836
centros espalhados por 1.910 municípios (BRASIL, 2022). Por pelo menos 15 anos, a política
foi protegida e ampliada pelos governantes que estavam no poder. A partir de 2016, com a
entrada do presidente Michel Temer ao poder, iniciou-se o sucateamento destes serviços
essenciais, colocando o processo de reforma psiquiátrica em risco (DELGADO, 2019). Além
disso, o serviço que mais sofreu alterações desde 2016, foi o Centro de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas, que se atenta a pacientes com transtornos decorrentes do uso e dependência
de substâncias psicoativas. Desta forma, o presente estudo se propõe a discutir e
problematizar os retrocessos nas políticas que mantém os Centro de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas e os impactos destes na assistência..

2 MÉTODOS

Trata-se de um estudo caracterizado como revisão narrativa, tendo como ponto


fundamental "descrever e discutir o desenvolvimento ou o ‘estado da arte’ de um determinado
assunto, sob o ponto de vista teórico ou contextual" (ROTHER, 2007, p. 01). Para isso,
utilizaram-se livros e artigos sobre o tema proposto, realizando uma interpretação e análise do
assunto. Este tipo de pesquisa permite "ao leitor adquirir e atualizar o conhecimento sobre
uma temática específica em curto espaço de tempo" (ROTHER, 2007, p. 01). Sendo assim, a
presente revisão narrativa teve como objetivo: 1. Analisar as mudanças nas políticas de
atenção à saúde mental das pessoas acometidas pelo uso abusivo de álcool e drogas; 2.
Discutir se o contínuo sucateamento destas políticas traz consequências para os usuários
destes serviços, assim como desmonta a Rede de Atenção Psicossocial.
A busca na literatura foi realizada na plataforma Google Scholar, onde foram
pesquisados os seguintes indexadores: Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas,
Psicologia e Retrocesso, no período de 2016 a 2022. Foram selecionados 13 trabalhos que se
enquadraram nos marcadores citados.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Realidade brasileira do cuidado aos usuários de álcool e drogas

O tratamento para adição ocorre a partir de diversos recursos. Neste estudo explana-se
acerca dos mais conhecidos quando se trata de dependência química: a redução de danos e o
tratamento grupal. Este primeiro teve seu início nos anos 20, na Europa, mais especificamente
no Reino Unido, começando como estratégia médica para a redução dos sintomas de
abstinência, prescrevendo cocaína e/ou heroína para os pacientes (ROQUE; GUIMARÃES,
2019).
Roque e Guimarães (2019, p. 8) também discorrem que, a partir dos anos 80, com a
epidemia do vírus HIV entre usuários de drogas injetáveis, surgiu a “necessidade de ações
preventivas efetivas com resultados que não dependessem da adesão destes pacientes aos
tratamentos que objetivam unicamente a abstinência”. Assim, ações como a redução de danos
e o fornecimento de seringas para os usuários tornaram-se importantes para a diminuição dos
casos desta infecção e consolidaram-se no âmbito das políticas voltadas ao tratamento de
pessoas usuárias de álcool e drogas, visto que a adesão ao tratamento baseado unicamente na
abstinência não oferecia os resultados esperados.
Mais recentemente, ocorreu a implementação dos Centros de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas, cujo atendimento é construído a partir de um projeto terapêutico singular
(PTS), realizado em conjunto com o paciente, focando nas atividades de ordem grupal e
reinserção social. Carniel et al. (2020, p. 577), no artigo “Percepção de profissionais de
Psicologia sobre a assistência oferecida aos usuários de CAPS”, relata que os grupos se
tornam um grande aliado no processo terapêutico, visto que o vínculo grupal “se estrutura no
seio das dinâmicas interpessoais, sendo passível de manejo e aprimoramento por meio do
aprender com a experiência”.
A pesquisa supracitada considerou a percepção dos psicólogos trabalhadores do CAPS
sobre o serviço. Identificou-se que os mesmos reconhecem a importância da participação
familiar no tratamento do dependente químico, mesmo que o caminho seja sinuoso e envolva
recaídas, caracterização que retrata o tratamento da dependência, que não é linear (CARNIEL
et al., 2020). Pela perspectiva destes profissionais, o paciente dependente químico é de difícil
adesão ao tratamento, sendo essencial que ele se sinta pertencente ao local que está
frequentando, o que torna as intervenções em grupo mais valiosas e efetivas durante o
tratamento, pois proporcionam a exploração e o trabalho com os sentimentos, promovendo
também processos criativos que auxiliam no enfrentamento de problemas e favorecem o
relaxamento (PICASSO; SILVA; ARANTES, 2020).
Por outro lado, entende-se que as redes entre pacientes criadas a partir da troca de
experiência “servem como fonte potencial de recursos, apoio emocional e informações, sendo
caracterizadas por fomentar interações frequentes, apoio significativo e afeto positivo”
(CARNIEL et al., 2020, p. 577). Este cuidado é congruente com a política de saúde mental
brasileira, que prioriza o cuidado realizado preferencialmente no território, visto que durante
as internações hospitalares, tais grupos e projetos individuais não são o foco do tratamento,
sendo um cuidado centrado na lógica biomédica, onde o paciente é internado para receber um
tratamento, não sendo ativo no seu processo de reabilitação.
Nessa perspectiva, Favero et al. (2019, p. 91) descreve a experiência dos usuários de um
CAPS, enfatizando a importância dos espaços coletivos para o “tratamento, fortalecimento
das relações, do protagonismo e autonomia e contribuição na apropriação sobre o projeto
terapêutico singular”. À luz dessas considerações, fica evidente que tanto os usuários quanto
os profissionais do serviço veem o tratamento dentro do território e longe dos hospitais
psiquiátricos como a estratégia mais válida para a reabilitação dos dependentes químicos.

Retrocesso nos modelos de atenção ao paciente usuário de álcool e drogas

Inúmeros autores (PRUDENCIO; SENNA, 2018; CRUZ; GONÇALVES; DELGADO,


2020, SOUZA et al., 2021; SOUSA; JORGE, 2019; ONOCKO-CAMPOS, 2019;
PRUDENCIO; SIENNA, 2018) apontam para preocupações recentes no que diz respeito às
políticas sociais do Brasil, devido ao desmonte progressivo no que tange aos programas de
proteção social, em especial aqueles que se referem à saúde mental. A partir dos anos 2000 a
atenção ao usuário de álcool e outras drogas ganha espaço nas agendas de saúde mental e
programas para enfrentamento ao uso abusivo das substâncias psicoativas. Porém, ao
contrário do ideal, não seguem uma linha crescente de incentivos e programas destinados a tal
público, mas esbarram em resistências e obstáculos constantes que acabaram contendo seu
progressivo desenvolvimento (PRUDENCIO; SENNA, 2018).
No ano de 2011 foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), através da portaria
nº 3.088 do Ministério da Saúde. Esta rede vai ao encontro das políticas a favor da reforma
psiquiátrica brasileira, onde o conceito de cuidado ao usuário é realizado no território de
forma comunitária, tirando de cena a atenção hospitalocêntrica e manicomial. Prevê o cuidado
integral ao usuário de álcool e outras drogas na articulação entre os serviços da rede para
garantir a integralidade do cuidado e garantir ações humanizadas que respeitem a
singularidade de cada sujeito em suas necessidades (PRUDENCIO; SENNA, 2018).
Ademais, cerca de 15 documentos normativos foram editados no período entre dezembro
de 2016 a maio de 2019, sendo eles decretos, portarias, resoluções e editais. Entre eles consta
a nova Política Nacional de Saúde Mental, que se caracteriza pela retomada do incentivo aos
hospitais para ampliação do financiamento de leitos psiquiátricos, bem como, uma nova
política sobre álcool e outras drogas, em que evidenciam-se práticas na contramão das
resoluções anteriores, prevendo ênfase nos financiamentos das comunidades terapêuticas e
adotando medidas de abstinência e proibicionistas (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO,
2020).
Entende-se também que a resolução nº 32 (BRASIL, 2017) está em desencontro com a
lei nº 10.216 (BRASIL, 2001) que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais, já que em seu artigo 4, fica claro que “a internação, em qualquer de
suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem
insuficientes”, sendo que em seu primeiro inciso refere que “o tratamento visará, como
finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio” (BRASIL, 2001, s. p.).
Levando em conta que a lei nº 10.216 não foi revogada, entende-se que há um conflito entre a
Lei nº 10.216 e a Resolução nº 32, visto que uma protege o direito do usuário com transtorno
mental ser atendido em seu território e a outra preconiza o atendimento com foco no modelo
asilar.
Souza et al. (2021, p. 08) colocam como primeiro retrocesso a Resolução nº 1 do
Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD), em que a mesma “promove o
desmonte da política de redução de danos no tratamento de usuários de álcool e outras drogas,
instituindo como método a abstinência total”. A partir disso, o Decreto nº 4345/2002 é
revogado, ou seja, o tratamento deixa de ser baseado na redução de danos, para novamente
centrar-se na figura biomédica, hospitalar e de abstinência total, tirando do usuário sua
capacidade de decidir sobre seu tratamento (SOUZA et al., 2021).
Talvez o maior retrocesso na política citada pelos autores (SOUZA et al., 2021; SOUSA;
JORGE, 2019; SANTOS et al., 2020) seja a Resolução nº 32 de 14 de dezembro de 2017, pois
nela os hospitais psiquiátricos voltam a ser inseridos na Rede de Atenção Psicossocial. Para os
autores, incluir os hospitais psiquiátricos estimula os donos desses locais a manter “esses
serviços abertos ao aumentar o incentivo do financiamento a esse segmento” (SOUSA;
JORGE, 2019, p. 02).
Onocko-Campos (2019) refere que a Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017 foi
instituída de maneira rasteira para consolidar retrocessos nas políticas de saúde vigentes. Esta
portaria estabelece o hospital dia como serviço integrante da Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS), indo em desencontro ao entendimento de cuidado em atenção à saúde mental
realizado nas práticas psicossociais e voltando-se, mais uma vez, ao biomédico.
Ainda, Prudêncio e Sienna (2018) ratificam essa afirmativa, já que entendem tal medida
como um retrocesso, uma vez que não levam em consideração os esforços feitos até então
para manter a atenção integrada ao usuário com base territorial, que teria como finalidade
corroborar para o desenvolvimento dos Centros de Atenção Psicossociais Álcool e outras
Drogas (CAPS AD). Ademais, a portaria em questão abre brechas para a reinserção de
ambulatórios hierarquizados e desfragmentados, pois prevê um nível secundário de atenção
baseado em equipes especializadas de saúde mental. Coloca-se assim, novamente, a ideia do
cuidado biomédico em evidência, contrariando o conceito de cuidado territorial que trabalha
através da vinculação, acolhimento e responsabilização dos usuários, em conjunto com as
equipes dos serviços de atenção básica e serviços especializados em Saúde Mental
(PRUDENCIO; SENNA, 2018; ONOCKO-CAMPOS, 2019).
Sousa e Jorge (2019, p. 06) trazem a tona a experiência dos trabalhadores de hospitais
psiquiátricos que narram que algumas unidades de tratamento estariam próximas ao
fechamento, já que os serviços para substituir estes locais estavam sendo criados e
funcionando em sua efetividade, sendo que os autores afirmam “com veemência, que todos os
hospitais psiquiátricos iriam fechar suas portas em um curto prazo” se não fossem os
retrocessos na política.
A importância da participação familiar ganha destaque quando compreende-se que há
uma melhor interlocução entre os usuários, sua família e os profissionais no momento em que
o cuidado é ofertado no território desses sujeitos, visto que estão em um ambiente que lhe é
conhecido, com profissionais que oferecem acolhimento de forma humanizada, sendo possível
trabalhar a vinculação à medida que forem delineando um plano terapêutico em conjunto com
todos os agentes envolvidos. Em contrapartida, quando o cuidado é realizado no hospital, a
partir da lógica hospitalocêntrica, notamos uma fragmentação desse cuidado, pois há lacunas
na comunicação do usuário com a equipe, bem como, entre os serviços em si.
Além disso, trabalhadores que atuam com esse público estão em constante tensão. Por
isso, é importante que haja programas de capacitação e qualificação destes profissionais para
tornar suas práticas e estratégias mais efetivas, evitando processos de burocratização
desnecessários, possibilitando aproximar os usuários e familiares dos profissionais e dos
serviços (ONOCKO-CAMPOS, 2019).

Quem são os prejudicados com o sucateamento da saúde mental brasileira

O Conselho Federal de Psicologia lançou em 2013 o documento “Referências Técnicas


para a Atuação de Psicólogas/os em Políticas Públicas e Álcool e Outras Drogas” onde em
contato com os profissionais que atuam neste âmbito, discutem a prática da Psicologia neste
campo. Neste documento, os organizadores ratificam a importância da redução de danos no
atual cenário de práticas da Rede de Atenção Psicossocial, sendo ela “afirma a autonomia, o
diálogo e os direitos das pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas, sem recorrer a
julgamentos morais ou práticas criminalizadoras e punitivas” (CFP, 2013, p. 40).
Outro dispositivo que já era discutido criticamente pelo Conselho Federal de Psicologia
(2013) são as Comunidades Terapêuticas, por entenderem que muitas possuem caráter
religioso e trabalham sem ser regulamentadas por lei. Estes locais, assim como as instituições
hospitalares, tornaram-se os principais meios de tratamento dos usuários de drogas e álcool
atualmente, visto o sucateamento dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas,
porém lembra-se que esta prática é incompatível com o Código de Ética do Profissional de
Psicologia, assim como “com os princípios das políticas públicas e o caráter republicano e
laico do Estado brasileiro” (CFP, 2013, p. 34).
Entende-se então que a partir do desmonte da atenção psicossocial para estes usuários,
muitos profissionais não entendem mais o seu papel dentro destas instituições, visto que
foram formados para defender o caráter da autonomia do paciente no seu tratamento, e não
para apoiar as práticas hospitalocêntricas, como é a realidade. É importante pensar também a
quem interessa defender o proibicionismo ao invés da redução de danos. Souza et al. (2021, p.
16) refere que o proibicionismo começa no “contexto da escravidão, como medida
exclusivamente racista por meio da criminalização dos hábitos culturais associados aos povos
negros”.
Os autores (SOUZA et al., 2021, p. 18) discutem que o proibicionismo “visa reduzir
oferta e demanda por meio de repressão e criminalização tanto de uso quanto de comércio e
produção”, sendo que os mais prejudicados por esta política são “os sujeitos que fazem parte
da classe pobre da sociedade, ou seja, jovens pretos e moradores periféricos em situação de
pobreza” (p. 51). Entende-se que além dessa política ir contra tudo que foi estruturado
anteriormente a posse do ex-presidente Michel Temer em 2016, ela ainda se considera como
uma política racista, que tende a prejudicar a parcela da população que já é prejudicada
socialmente pelo preconceito racial, assim como reforça a ideia de que apenas pretos e
periféricos usam drogas e/ou as traficam.
Santos et al. (2020, p. 51) reitera que a partir de 2015, houve uma mudança política e
ideológica no Brasil, onde ocorre um “aprofundamento da lógica neoliberal intensifica-se o
aumento de desemprego, a redução de salários e direitos da classe trabalhadora em detrimento
do fortalecimento do modelo burguês e capitalista”. A partir de uma análise do materialismo
histórico dialético, os autores concluem que o Estado capitalista não tem interesse em tratar os
usuários de drogas e álcool, sendo que ele o Estado acaba por culpabilizar “o usuário de
drogas por suas condições psicossociais, refletindo na construção de estigmas sociais,
violência e o aumento de mortes de negros, favelados e pobres, seja no contexto de controntos
policiais ou não” (SANTOS et al., p. 52).
Considera-se então que o Estado capitalista não tem interesse em tratar os sujeitos que
estão à margem da sociedade, sendo que são estes que necessitam dos atendimentos em
Centros de Atenção Psicossocial, pois não tem condições de custear o tratamento em rede
privada. Sendo assim, além de proteger a lógica hospitalocêntrica, acabamos por criar mais
preconceito em volta do usuário de drogas e álcool, já que os usuários da “classe média
recebem tratamento em clínicas de alto nível assistencial, enquanto os pobres são condenados
a cumprir medidas socioeducativas” (ANDRADE, 2011 apud SANTOS et al., 2020, p. 52).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da revisão narrativa é possível analisar os impactos dos desmontes dos


programas relacionados à saúde mental nos últimos anos, no tratamento das pessoas que
fazem uso de álcool e outras drogas. Estes desmontes estão relacionados à inclusão dos
Hospitais dia e hospitais psiquiátricos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), retomando o
enfoque biomédico do tratamento, em detrimento da atenção psicossocial e integral. Nessa
perspectiva, ganham destaque as medidas proibicionistas e de abstinência que são impostas
aos usuários e muitas vezes os afastam dos serviços.
Com o sucateamento dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, os serviços
não conseguem dar conta das demandas e realizar um trabalho efetivo, restando as
Comunidades Terapêuticas como alternativa de tratamento. Contudo, o caráter religioso,
geralmente implicado nas mesmas, também possui um viés impositivo, em que o usuário
necessita adequar-se àquela crença.
Contudo, reitera-se a relevância do trabalho realizado pelos Centros de Atenção
Psicossocial Álcool e Drogas, principalmente no que tange à redução de danos e a realização
de grupos terapêuticos, que permitem a construção de redes, a troca de experiências e
informações, e a identificação enquanto pertencente ao grupo, que pode produzir bem estar e
empatia.

REFERÊNCIAS

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https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/caps/raps/arquivos/da
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