Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Guerreira
A Guerreira
Sumário
O Clã Jaguar........................................................................................2
O Clã Jaguar
Febre
Passado
As nuvens rolavam pelo céu encobrindo algumas estrelas, embora não
fossem uma ameaça de chuva, era possível que não visse ao grande pai
nascer ao Leste pela manhã. A cidade com seus edifícios se estendia no
amplo vale, enegrecida pelo manto negro com pontinhos luminosos dos
fogos que se acendiam nas casas, tal como o corpo de um jaguar.
Suas meninas estavam atrasadas, mas Ixi Kanil sabia que elas não
falhariam com ela, provável que estiveram presas às suas tarefas que
aumentaram consideravelmente desde que os Quatro Supremos
Senhores decidiram em conselho organizar o séquito que apoiariam aos
seus filhos quando a estes chegasse o tempo de governar a poderosa
Tolan.
Mesmo ela encontrara dificuldade para chegar naquele túnel e não por
causa da grande quantidade de parafernálias rituais que tivera que
trazer consigo, mas porque tal assunto suscitou grande comoção entre
os nobres tanto de Tolan, quanto de outras terras. Inquietava lhe
pensar em como deveria estar a cabeça de sua aluna Itzmítli e era bem
possível que Tonamitli estivesse deprimida por noivar com um homem
tão tímido como Mulish Iztac.
A cidade estava muito movimentada, além dos recorrentes peregrinos
que iam e vinham de todas as partes de Anahuác, também os nobres de
cidades aliadas e dominadas, interessados em reafirmar alianças e
acordos, chegavam aos montes acompanhados de seus vassalos e
também de suas filhas e filhos, na esperança de matrimônios
significativos.
Embora não necessitasse de uma época específica para estabelecer tais
alianças, observar quais as casas influentes de Tolan que apoiariam os
próximos jovens Co Governantes era de suma importância para o futuro
de muitas cidades e dos benefícios que poderiam ser obtidos por suas
proles. Saber o que ocorria em Tolan era essencial para a vitalidade da
maioria das cidades de Anahuác.
Mesmo em meio aos problemas que vinham causando as duas cidades
vizinhas de Cucuilco e Tlanlancaleca, as quais muito com base na
rivalidade de séculos que mantinham com Tolan, também tinham
grandes interesses políticos, e muitos acreditavam que eram elas as
mandantes em obstruir as rotas comerciais e organizar ataques e
roubos a mercadores. O que vinha produzindo noites insones e dores de
cabeças para os governantes, além de grandes problemas consequentes
do mal abastecimento da cidade.
O povo estava com fome, os mercadores e nobres estavam sofrendo
perdas irreparáveis, os poderosos guerreiros tolanos assim como os
governantes perdendo a credibilidade. A cidade estava inquieta e todo o
boato da afronta de Ni Cháac e Cuauhtli contra os Nahuales e
guardiões, era outro problema que tentavam esconder dos olhos dos
governantes e aliados estrangeiros.
Estavam trabalhando duro nas propagandas políticas e os humores
entre os sacerdotes criava uma esfera de tensão muito difícil de
manejar. A pressão sobre os Supremos Águia e Serpente era sentida por
todos, até mesmo por ela que teve que trabalhar bem mais que o dobro,
aos sacerdotes do templo cabiam realizar os rituais, convencer o povo
de que tudo estava sob controle e que tudo ficaria bem. Esperava ao
menos que a estação chuvosa não tardasse naquele ano.
E era até irônico que com tantos problemas para serem resolvidos e no
quanto toda a agitação e preocupação que os jovens supremos estavam
gerando, o aumento de trabalho e seu esforço em manter a crença de
que Tolan era um lugar de abundância e a morada dos deuses celestiais
que a preocupavam. Eram as alianças matrimoniais que a aborreciam,
bem como os clérigos que cercariam os herdeiros poderosos o que mais
a angustiava. O destino de Tlapali e Ixi’yah tinha que ser resolvido
naquela noite.
Podia confiar sua própria alma e vida nas mãos daquelas que chamava
de filhas, embora não saíram de seu ventre e não as ter parido ela
mesma consistia numa problemática, pois que não tinha controle sobre
as decisões de seus pais sobre matrimônios que poderiam arrastar suas
melhores discípulas para terras longínquas sem poder levar a cabo seu
plano.
Contudo, tais pensamentos a abandonaram por um instante assim que
as quatro tochas que vinham ao longe anunciaram com seu brilho a
aproximação de suas favoritas e balançando sua própria chama de um
lado para o outro sinalizou a cova que usaria para sua magia naquela
noite.
Não demorou até ver-se rodeada por suas meninas que embora
demonstrassem o cansaço sobre os rostos iluminados pela luz rubra de
seus archotes, ainda a acolhiam com um sorriso e disposição que sabia
retirar da impecabilidade de seus espíritos. Dera tudo o que tinha para
elas e embora a mais velha das quatro tivesse apenas 17 anos, eram
feiticeiras excepcionais e sua única esperança.
As liderou túnel adentro. Fora feito há muito tempo quando os homens
escavaram o lugar para retirar tezontle, basalto abundantemente usado
nas construções da cidade e atualmente o túnel continha uma câmara
ampla no subsolo que muitos usavam para fins rituais.
Enquanto caminhava um pouco curvada sobre o túnel arredondado
com suas paredes avermelhadas pela luminosidade das tochas sobre a
terracota massiva e pesada, num zigue-zague cansativo e que as
obrigava a parar para retirar pedras que obstruíam a passagem, foi com
alívio que recebeu o acolhimento da ampla câmara subterrânea.
— Alguém as viu ao deixarem a cidade? – Perguntou a mestra.
— Sou filha de Tlapaloctli, Senhora. É impossível deixar Tolan sem ser
vista. – Disse Taplali, divertida.
— É óbvio que aqueles feiticeiros velhos estão bem cientes que estou
aqui, se há algo que aqueles velhotes têm nesse mundo são aliados,
mas não queria que fôssemos seguidas e nem termos o desprazer de
sermos interrompidas essa madrugada. – Disse Ixi Kanil, que sorriu
com o canto da boca ao notar que suas meninas se juntavam ao centro
da câmara, empilhando as lenhas que trouxeram para acender a
fogueira.
— Ninguém nos seguiu. – Afirmou Tonamitli, retirando algumas
cabaças da larga bolsa de pano que trouxera consigo.
— Chegou uma grande comitiva vinda do Leste agora a pouco, não acho
que alguém vai se importar se sumimos ou não. Estão ocupados demais
com os nobres estrangeiros. – Disse Tlapali, jogando-se ao chão e
acrescentou: — Estou exausta.
Ixi Kanil abaixou-se cobrindo a cabeça assim que os morcegos
incomodados com a claridade e a fumaça voaram cegamente pela
câmara, seguindo pelo túnel escuro a fim de se livrarem do desconforto.
Organizou suas cabaças e pequenas bolsas de pano e observou Itzmítli
por um momento.
A moça estava ajoelhada diante de uma plataforma baixa, onde
oferendas foram deixadas em cerâmicas finamente pintadas diante de
uma pilha de crânios humanos que se misturavam a ossos de aves e
cestos de vime onde por certo haveria de encontrar ossos de serpentes
forrados por palhas e toda a sorte de ervas secas, sementes e grãos.
— O que há com o altar? – Perguntou a mentora, curiosa.
— Nada. – Respondeu a moça. — Só estou preocupada demais com Ni
Cháac. Queria falar com meu tio antes de vir para cá, mas sequer
sabem onde ele está. E temo que com tantos homens ilustres chegando
de todas as partes o tempo todo, não consiga falar com ele.
— Ela quer que nos unamos para buscar pela alma de Ni Cháac.
Acredita que alguém possa a ter roubado. – Afirmou Ixi’yah.
— Ni Cháac é um feiticeiro excelente, é muito improvável que alguém
teria tanto poder para roubar a alma dele. – Afirmou Ixi Kanil.
— Há muitos feiticeiros melhores do que ele, Ni ainda é jovem e eu sou
7 anos mais jovem do que ele. Como uma feiticeira como eu poderia
resgatar sua alma?
— Isso não é assunto para você.
— Sim é, Ixi Kanil. É um assunto para nós todas. – Disse Tonamitli e
em seguida contou a mestra o que Mulísh lhes pedira.
— Isso não tem o menor cabimento. – Disse a mais velha. — Iztac
Coatle ama seu filho mais do que tudo nesse mundo, nunca roubaria
sua alma ou o amaldiçoaria dessa forma. E mesmo se isso fosse
verdade, nenhuma de vocês teriam poder suficiente para lidar com
esses homens, são naguais poderosos e experientes. Não posso permitir
que se unam para esse propósito.
— Então o que sugere? Que eu invada o palácio da serpente e rapte Ni
Cháac até que melhore? – Perguntou Itzmítli, exasperada.
— Você não deve ser tão egoísta quanto seu amado e colocar suas irmãs
em risco por causa de sua paixonite. A magia não é brincadeira e se
ouvirem o que tenho para dizer compreenderão por que não deixarei
que se unam para algo como isso.
“O que temos que ter em mente é que não podemos permitir que Tlapali
e Ixi’yah se casem com nobres estrangeiros. Infelizmente não posso
ajudá-las no que concerne a alianças, gostaria muito de poder opinar
em tais assuntos e controlar o destino de vocês, e embora sejam seus
pais que determinarão o futuro de vocês, podemos tentar ao menos que
seus casamentos as obriguem a permanecer em Tolan.
Disse Ixi Kanil que ao se sentar tomou uma bolsa de couro repleta de
cogumelos, recitou uma prece sobre eles e após levar alguns à boca,
deu a bolsa para Ixi’yah que retirou alguns e comeu, repassando para
as outras.
— Sabe que eu as tenho como minhas filhas, que desde que foram
entregues aos meus cuidados, tudo fiz para que se tornassem
sacerdotisas excepcionais, para que pudessem hoje exercer o sacerdócio
tal como destinado pelos sacerdotes e calendário. Vocês são excelentes
feiticeiras e por isso estão aqui. Dentre todas, eu as escolhi a dedo.
Entretanto, há algo que precisam entender.
Entregou a cabaça de pulque para Ixi’yah que o consagrou e em seguida
encheu os cálices de cerâmica que deixara ao lado de Ixi Kanil e foi
entregando para cada uma delas. Tão logo agarraram aos copos,
entoaram um canto longo em uníssono e assim que terminaram deu-se
início a primeira rodada de pulque.
— Toda a hierarquia sacerdotal é baseada na concepção da criação do
homem. Embora conheçam bem como se deu todo o processo de
criação, há algo que reservamos apenas para os altos sacerdotes. Algo
que é do conhecimento dos Quatro Poderes e de alguns poucos
sacerdotes que fazem parte do conselho de nossos governantes.
“Todas vocês são nobres e estão acostumadas com a linguagem
chamada Suyua Tan, uma forma de transmitir mensagens ocultas por
meio de jogos de palavras. Com a história acontece a mesma coisa.
Estamos acostumadas com dois conceitos, os dos homens feitos de
lodo, madeira e milho, como a história dos cinco sóis. E ambos dizem
sobre a mesma coisa. Entretanto, acostumamo-nos a ouvir que os
primeiros homens criados foram destruídos, outros transformados em
animais, contudo essa não é bem a verdade.”
— E qual é a verdade? – Perguntou Tonamitli, interessada.
— Se observarem bem verão que esses primeiros homens existem e
estão ao nosso redor. Falamos sobre o homem que foi criado com lodo,
eram moles, fracos e se desmanchavam, falavam, mas não tinham
entendimento. Acredito que todas vocês já encontraram com pessoas
assim num momento ou outro, embora sejam mais raros.
“Então, os deuses criaram os homens de madeira e esses, minhas
crianças, estão por todas as partes. É dito que quando os deuses
criaram os homens de madeira, se multiplicaram, tiveram filhos, mas
não tinham alma, nem entendimento, não se lembravam de seu criador,
caminhavam sem rumo e se rastejavam. Não se lembravam do sagrado
e por isso caíram em desgraça.”
“Esses homens de madeira são a maioria dos seres humanos, ocupados
e obcecados com o sexo, a segurança e alimentação, sequer se lembram
do propósito de seus espíritos, participam de rituais e esperam que
sejam abençoados por nossos Co Governantes, os grandes sacerdotes,
mas não há um espaço em suas vidas ou em suas mentes para a
verdadeira prática espiritual.”
“Houve então a criação do homem feito pelo que nossos irmãos chamam
de Tzité, o oráculo com todos os materiais sagrados, embora esses
homens tivessem consciência, alma e entendimento, ignoravam ao
criador. O mito nos conta que ao que foram destruídos, todos os
espíritos dos animais, das plantas, das pedras e de tudo o que existe,
estavam furiosos com eles.”
“Tinham consciência dos espíritos de todas as coisas e no entanto não
os respeitaram, abusaram deles e estiveram ainda mais furiosos porque
ao servir tais homens, esses não se preocuparam em questionar e nem
a conhecer a si mesmo profundamente como deveriam ter feito. São os
feiticeiros preguiçosos, podemos dizer assim.”
— Itzmítli. – Apontou Tonamitli, risonha.
— E por fim criaram os homens de milho, num primeiro momento eles
foram criados de forma tão nobre que podiam ver e conhecer todas as
coisas e sendo assim muito semelhantes aos deuses criadores, esses
decidiram por fim diminuir o campo de percepção de tais homens.
Esses homens são tais como deuses e sabem os grandes senhores que
eles podem expandir sua consciência, assim podem ver muito além do
que seus olhos humanos alcançam e conhecer os mistérios.
— Nossos governantes. – Afirmou Ixi’yah, convicta.
— Sim, esses homens são os nossos governantes. Naguais excepcionais,
capazes de se transformar em animais, ver para além do futuro ou do
passado, conhecer os segredos, conversar com os Nahuales.
— São os homens que vieram do Leste. – Disse Tonamitli.
— Do Leste? – Perguntou Tlapali e acrescentou desconcertada: — Já
estou começando a atravessar a fresta entre mundos e não estou
conseguindo acompanhar o raciocínio.
— Bem, falam sobre os homens que viveram no Oriente para além do
mar, alguns deles não alimentaram aos seus deuses e lá viviam olhando
para o céu, confusos e saudosos, e não sabiam o que tinham vindo
fazer num lugar tão distante. Mas, aqueles que carregaram e
alimentaram aos seus deuses não estavam submetidos a tal confusão
mental, conheciam seus propósitos e os motivos pelos quais estavam
ali.
“Entre esses também falam sobre os povos das montanhas, existem
gerações deles no mundo, dizem que eles não têm casas, que caminham
em volta das montanhas pequenas e grandes, como loucos, mas nada
tinham de loucos, apenas os homens desprezaram aqueles que vivem
nas montanhas.”
“E aqueles que carregaram seus deuses com eles, esses foram os que
vieram para Anahuác, eles disseram onde viram o nascer do sol. Todos
falavam a mesma língua. Eles não invocaram madeira ou pedra, e se
lembraram da palavra do Criador, o Coração do Céu, o Coração da
Terra. Ao mesmo tempo em que contemplavam o nascer do sol,
contemplavam a estrela da manhã precursora do sol que ilumina
abóbada e a terra, e guia os passos dos homens.”
“Esses são nossos governantes, os homens-deuses que se uniram em
Tolan, mas conta a história que quando chegaram aqui, só havia noite e
muitos deles deixaram de se entender, pois que aqui começaram cada
qual a falar a língua de seu próprio deus e assim as tribos começaram a
se formar e a falar diferentes idiomas.”
— Muito bem colocado, Tonamitli. Muitos desses homens se
espalharam por Anahuác e sob os auspícios de seus deuses que
alimentaram com o sangue precioso, fundaram as cidades e dominaram
os povos. – Acrescentou Ixi Kanil.
— Tenho dois livros como esses, que contam a história do início da
linhagem tanto de meu pai quanto o de minha mãe. Nele se falam sobre
a importância da linhagem e estão registrados os nomes de todos os
meus ancestrais. Bem que meu pai gostaria que mantivéssemos apenas
o seu livro, mas deve se contentar com o segundo lugar, já que a
linhagem de minha mãe é muito mais nobre e importante do que a dele.
– Disse Itzmítli.
— É realmente nesse ponto que queria chegar para que possam
entender o que estou por pedir a vocês. Estamos acostumados com a
linhagem transferida a nós por nossos pais. Mas, existe uma linhagem
que não é desse mundo. – Disse Ixi Kanil, observando os rostos que a
fitavam, confusos.
— Lembram que falei do conhecimento oculto, que embora tudo seja
revelado nas histórias de nossos deuses, como muitos homens são de
madeira e com pouco entendimento, essas coisas passam por eles sem
que se apercebam da sabedoria contida. Lembram-se da história de
Hunahpu e Ixbalanquê?
Itzmítli e Ixi’yah balançaram a cabeça afirmativamente, enquanto
Tonamitli meneou a cabeça como se estivesse se esforçando para se
lembrar da história, a medida em que Tlapali se esforçava, assim como
a amiga, mas não para se lembrar da história, e sim para conseguir se
concentrar nas palavras.
Ixi Kanil a conhecia bem e sabia que das quatro ela era a que viajava
entre mundos com mais facilidade, era uma sonhadora excepcional e
podia ver e ouvir o mundo dos espíritos a todo o tempo. E o que era
uma vantagem, também era uma grande desvantagem já que não
conseguia controlar bem os aliados com os quais lidava, como as
plantas e animais de poder.
— Após morrer e sua cabeça ser entregue para uma árvore que se
tornou conhecida por cabaceira, a mãe dos gêmeos divinos, curiosa
sobre a árvore engravidou de seus filhos assim que conversou com a
cabeça do pai das crianças, que derramou de sua saliva em suas mãos
a engravidando. O importante está exatamente no que ele diz para ela.
— E o que é que ele diz para ela? – Perguntou Tonamitli, interessada.
— Ele diz algo como: “na minha saliva e na minha baba, dei-te a minha
descendência. Agora minha cabeça não tem mais nada, nada mais é do
que um crânio sem sua carne. Essa é a cabeça dos grandes príncipes, a
carne é a única coisa que lhes dá uma bela aparência. E quando os
homens morrem, eles ficam chocados com seus ossos”.
“Esta também é a natureza das crianças, que são como saliva e gosma,
sejam eles filhos de um Senhor, de um homem sábio ou de um orador.
Sua condição não é perdida quando eles partem, mas é herdada; A
imagem do Senhor, do sábio ou do orador não se extingue nem
desaparece, mas fica a cargo de suas filhas e dos filhos que geram. Eu
fiz o mesmo com você.”
— Pode nos explicar isso? – Perguntou Tonamitli.
— Em primeiro lugar quando ele transfere sua descendência para seus
filhos, o que o faz pela saliva, ele já está morto e está consciente de seu
estado. Tanto que ele explica que os homens se assustam com seus
ossos, ou seja, com a matéria da qual é feita seus espíritos, com sua
verdadeira natureza. Lembram-se que em uma das histórias que
ouvimos sobre Quetzalcoatl...
— Ele vai buscar os ossos dos homens no Mictlán e depois de passar
por muitas provas, retorna ao nosso mundo com eles, transformam os
ossos quebrados em pó e mistura com o sangue que retira de seu pênis
em seu ritual de auto sacrifício, assim dando forma e vida aos homens.
Então, baseando-me no que está nos dizendo esses homens criados por
Quetzalcoatl são seus próprios filhos espirituais, certo? – Disse Ixi’yah.
— Isso mesmo, Ixi’yah. O que é dito é que não somos esse corpo, com
essa forma e carne, e é por isso que Hún Hunahpu diz que quando os
homens morrem ficam chocados com seus ossos, ou seja, com a sua
essência, seu ser verdadeiro. E que essa condição da morte é também a
condição das crianças, ao nascerem. Elas são ossos como um símbolo
da imortalidade do seu ser, que no processo de vir a nascer através de
seus pais nesse mundo ganham carne.
“No caso da nossa história ele passa para os gêmeos Hunahpu e
Ixbalanquê e ele dá a essas crianças a herança de sua própria linhagem
divina e espiritual. Seu conhecimento é transmitido para os gêmeos que
de posse de uma sabedoria herdada tanto de sua mãe, quanto de seu
pai espiritual, têm as habilidades e conhecimentos necessários para
vencer os senhores de Xibalbá.”
“Vocês desconhecem os ensinamentos que são reservados aos filhos dos
Quatro Poderes, dos grandes senhores. Estamos falando de nossos
governantes, os Supremos Jaguar, Serpente, Águia e Lobo, que
possuem um poder indescritível e inconcebível para a maioria dos
homens.”
“Nossos governantes são tão poderosos que são capazes de fornecer os
deuses para serem patronos de um reino, dão aos governantes os
ensinamentos e as insígnias reais e por isso que Tolan é conhecida
como a terra onde os homens se tornam deuses, e também por sua
capacidade de colocar os homens em tronos, por mais ineptos que
possam parecer num primeiro momento, ao menos aos olhos dos
homens de madeira.”
“Assim Ni Cháac ao seu tempo se tornará o sucessor de seu pai e não
apenas porque é seu primogênito, mas porque seu pai lhe transferirá
sua herança espiritual. E desse modo Ni Cháac será tanto seu filho de
sangue quanto seu filho espiritual.”
— O que explica porque há reis que são estupendos e com feitos
incríveis e acabam por ter sucessores que jamais conseguem alcançar a
glória de seus pais. – Disse Tonamitli, pensativa. — É possível que essa
herança divina não seja transferida para um filho por algum motivo,
talvez como quando seu pai morre numa batalha antes de realizar tal
feito.
— Mas, aonde você quer chegar com isso? – Perguntou Itzmítli,
impaciente.
— Eu quero que vocês obtenham essa herança.
— Eles nunca nos dariam esse conhecimento. Se assim fosse, todos os
sacerdotes os teriam e sabemos que existe uma hierarquia. E em nosso
caso isso seria ainda mais improvável, mesmo eu e Tonamitli que temos
descendência direta das casas sagradas, sequer sabíamos da existência
de tal herança espiritual. – Disse Itzmítli.
— Em seu caso Itzmítli, como independente de quem for seu futuro
marido, Ni Cháac ou Cuauhtli, um dos quatro poderes de Tolan,
pertencerá a ele e para seu próprio bem e de sua prole, ele lhe
transferirá tal conhecimento ou parte dele. Do mesmo modo que os
gêmeos não apenas têm características e habilidades de seu pai, mas
também de sua mãe Ixiquic. A astúcia deles não foi herança do pai, mas
da mãe.
“E isso é claro quando seu pai, um senhor de Xibalbá, pede para os
mensageiros a sacrificarem por causa de sua gravidez e ela os engana,
fazendo acreditar que o fruto da árvore é seu coração e ainda libera os
mensageiros que se tornam seus aliados. É fácil perceber que Vucub-
Hunahpu e Hún Hunahpu não tem a astúcia e o logro como talentos,
eles são os enganados e não os enganadores, quem usa de astúcia são
os senhores do Xibalbá. Hunahpu e Ixbalanquê são astutos por herança
espiritual de sua mãe.”
“As mulheres são tão boas feiticeiras que chegam a assustar e não é por
bobagem que ouvimos as histórias de velhas com a vagina dentada
capazes de castrar ao homem, e nessas histórias eles se esforçam muito
para destruí-la. O que quer dizer que uma feiticeira muito habilidosa é
capaz de roubar o poder de um homem e o liquidar. Alguns afirmam
que isso se dá pela mulher ser de natureza mais violenta e que não
perdem seu poder como o homem.”
— De que forma o homem perde poder? – Perguntou Itzmítli, curiosa.
— Acreditam que os homens vão perdendo o desejo sexual quando vão
ficando mais velhos, por causa do sêmen que liberam a cada relação, e
as mulheres não perdem seu desejo sexual, porque elas não liberam do
líquido precioso ou muito pouco.
“O homem enfraquece um pouco a cada relação sexual, porque seu
sêmen está cheio de seu poder pessoal, o poder da criação e
fecundação, não é à toa que os sacerdotes estão sempre jejuando e se
afastando de suas mulheres, e alguns até se mantem castos por toda a
vida, o fazem para armazenar seu poder. As mulheres além de não se
esgotarem, são também portais.”
— Como assim somos um portal? – Perguntou Tonamitli, interessada.
— Nossos ventres são portais. É por eles que devem passar todo homem
e mulher quando deixam o mundo de sua natureza espiritual para
realizar suas obras nesse mundo e através do ventre da Mãe Terra que
retornam para o lugar de onde vieram.
“Temos sorte afinal, porque somos filhas de Tolan e nossos sacerdotes
reconhecem o poder da mulher, sabem que somos excelentes para
estruturar o poder de um homem, tal como a base da pirâmide e seus
quatro cantos e é por isso que eles transferem seus conhecimentos para
suas esposas, ou ao menos uma parte dele quando são cautelosos. Mas,
isso não impede que venhamos a ser consideradas como “vaginas
dentadas”, é um risco ao qual estão bem conscientes.”
“Assim como vocês sabem bem que o mundo dos feiticeiros é muito
perigoso, há pessoas dispostas a comer suas carnes e beber de seus
sangues para tomar para si seu poder, assim como há feiticeiros e seres
que se especializam em roubar suas almas e seus tonais. Esse é um
perigo real e não me estenderei a respeito disso porque já estão
cansadas de minhas advertências.”
— Temos por desvantagem nossa força física, assim um homem forte e
poderoso é capaz de nos agarrar com facilidade. Por isso sejam
impecáveis e inacessíveis, ou se escondam atrás de um homem muito
poderoso e o use como escudo. – Disse Tonamitli, imitando a voz de Ixi
Kanil, que riu com a audácia da moça em lhe remedar com tanta
maestria.
— E voltando a Ixiquic, ela é uma senhora do Xibalbá e sua casa é o
Oeste. E nós estamos habituadas com as representações das corujas no
Oeste aqui em nossa cidade porque elas são os mensageiros que ao
ajudar a mãe dos gêmeos, tornaram-se seus aliados quando ela deixou
a casa de seu pai. E a astúcia é a base da mulher, é tola se tentar medir
forças com um homem, mas o derrota com facilidade se usar sua mente
e seus talentos.
— Como sabe disso tudo? – Perguntou Tonamitli, interessada.
— Porque minha história não é tão diferente da qual Itzmítli está
vivendo. Eu e Iztac Coatle nos apaixonamos quando éramos jovens.
— Você se relacionou com o nosso senhor Supremo Serpente, pai de Ni
Cháac? – Perguntou Ixi’yah, incrédula.
— Sim, mas não era do desejo de seu pai que nos casássemos,
entretanto como estava apaixonado ele me ensinou muitas coisas,
transferiu-me um pouco de si e de seu poder. Embora ainda não fosse
um nagual maduro e não tinha na época o poder e conhecimento que
fez dele um Co Governante de Tolan, usou de seu conhecimento para
apaziguar meu coração.
Fez uma pausa proposital e assinalando para que Ixi’yah servisse o
pulque pela segunda vez, iniciou o canto tão rápido quanto uma flecha,
de modo a não dar tempo para perguntas. Ainda era doloroso pensar
em como se sentiu enganada pelo soberano quando esse ao prometer
que a transformaria em sua segunda esposa se esqueceu dela tão logo
seu primogênito nasceu.
— Como acha que conseguiríamos algo como uma herança espiritual
dessas? – Perguntou Ixi’yah, curiosa.
— Como eu disse, não tenho o poder de determinar com quem vão se
casar, mas se eu conseguir colocá-las na ordem dos naguais, é possível
que ocupando o séquito de sacerdotes dignitários, além de
acompanharem em igualdade os senhores, poderão ser parte do
conselho dos Quatro Poderes.
— Isso é impossível. – Resmungou Tonamitli, incrédula.
— Posso colocá-las na ordem. Mas, se conseguirão ou não se manter
nela e alcançar altos cargos dependerá de vocês e por isso que eu as
escolhi, porque estou certa de que conseguirão, especialmente se
continuarem a usar a técnica que lhes ensino desde pequenas, que fez
de vocês irmãs.
— Os quatro ventos. – Afirmou Itzmítli. — Organizou-nos de modo a
cobrirmos uma casa, cada uma de nós uma direção, tal como os Quatro
Poderes de Tolan, mas ao invés de nos ligar aos poderosos jaguar,
serpente, águia e lobo, nos ligou ao vento.
— Infelizmente as levei até onde minhas mãos puderam alcançar. Na
Ordem dos Naguais poderão avançar muito mais em poder e
conhecimento e usando o que lhes ensinei acredito ser possível que
vocês não só obtenham uma herança espiritual de algum modo, mas
que se transformem em seus animais como os grandes senhores. Se
existe algo em que acredito com todo meu coração é que vocês quatro
são capazes de conseguir isso.
— Mas, se alguma de nós se casar e for para outra terra isso seria
impossível.
Ixi Kanil concordou com Ixi’yah num balançar de cabeça.
— E como nos colocaria na Ordem? – Perguntou Tonamitli.
A velha feiticeira tomou um embrulho em suas mãos e ao abrir mostrou
para elas uma peça de couro onde havia uma iconografia ao qual a
primeira vista nenhuma das moças conseguiu interpretar por seu
caráter peculiar, como se os ícones estivessem falando de uma história
que somente sua mestra pudesse conhecer.
Nesse couro estava enrolado um cachimbo de madeira nobre, com um
pequeno colibri esculpido sobre o fornilho e toda a haste do cachimbo
estava talhada na forma de duas serpentes que se entrelaçavam de
modo tão harmonioso e perfeito que parecia haver cinesia. Havia uma
pequena bolsa que suspeitaram se tratar do tabaco para o cachimbo e
uma flauta de osso.
— Isso colocará vocês na Ordem. É tal qual uma insígnia real e acredito
que fazer parte da ordem fará com que seus pais pensem duas vezes em
lhes casar com alguém que não esteja em Tolan.
— E por que isso os impediria? – Perguntou Ixi’yah, animada com a
ideia de não deixar sua cidade.
— Porque só podem fazer parte dessa ordem aqueles que receberem a
permissão de um dos Quatro Poderes e retirar uma pessoa dessa ordem
é quase sinônimo de se colocar contra a vontade de seu senhor.
“Mas, entrar nela também não é sinônimo de permanência e além de ter
de provarem que merecem estar lá, terão que serem mais do que boas,
devem ser excelentes e por isso que é tão importante que consigam
receber uma herança espiritual e serem capazes de feitos excepcionais.”
“Não devem jamais esquecer que vivemos num mundo de homens, e
que infelizmente é preferível um homem mediano a uma mulher
insigne. E acreditem, minhas corujinhas, eles serão bem mais rígidos
com vocês do que com qualquer outro, o menor deslize e serão
expulsas. Por isso que ser impecáveis não será suficiente, deverão ser
extraordinárias.”
Itzmítli riu de puro nervosismo e perguntou:
— O que há em seu coração que a faz acreditar que seremos capazes de
tal proeza?
— Eu não tive a mesma oportunidade em encontrar em meu caminho
mulheres fortes com as quais pudesse criar um círculo de poder, mas
consegui isso com vocês quatro. Vocês são excelentes e estão em pé de
igualdade com muitos senhores fundadores de cidades e reinos
magníficos. Eu dei meu espírito a vocês, ensinei-lhes ofícios que seus
pais jamais sequer se incomodariam em pensar de lhes ensinar.
— E como acha que conseguiríamos adentrar a ordem com toda essa
história de casamento baforando em nossas nucas? – Perguntou
Tonamitli, ajeitando a cabeça de Tlapali em seu colo ao que a moça se
jogou sobre ela, aparentemente sonolenta.
— Porque sei que os convocados se reunirão amanhã, assim que a
estrela mais brilhante anunciar o nascer do sol, na câmara da Pirâmide
do Sol. – Respondeu Ixi Kanil.
— E como faremos parte disso se não fomos convocadas? – Perguntou
Ixi’yah, fazendo as outras duas sustentarem um olhar indagador, como
se tivesse feito a pergunta que ambas também intentavam fazer.
— Levarão essa insígnia com vocês e esperarão até que todos entrem
pelo túnel Leste da pirâmide. Quando todos já estiverem entrado, não
haverá ninguém para barrá-las na entrada do túnel, entretanto as
barrarão na entrada da câmara. Uma de vocês deverá ser ousada o
suficiente, ao ponto de invadir o lugar, cair de joelhos diante do
Supremo Serpente e entregar a ele a insígnia.
— E o que diremos a ele? – Perguntou Tonamitli, ao notar que seria algo
divertido, se conseguissem ao menos se retirarem do local com as
cabeças sobre seus pescoços.
— Guardem bem essas palavras, porque ele não as ouvirá se não as
disserem exatamente como vou proferir agora.
Ixi Kanil pigarreou e proclamou, dramática e solene:
— Há poder nessas palavras e não serei digno de meu cargo e poder se
ignorá-las e não cumprir com minha promessa. Bem sabe que tem
apenas um pedido, um pedido que jamais deverei recusar, porque
fizemos um pacto e aqui está a insígnia e a prova. Mas, seja cautelosa,
pois somente lhe concederei um pedido ao me devolver aquilo que nos
enlaça. E então, acrescentarão dizendo: e esse é meu desejo, meu único
e verdadeiro pedido, que minhas quatro filhas sejam membros da
Ordem dos Naguais.
— Por que não o obrigou a casar com você já que ele te deu a
oportunidade de um pedido que jamais poderia recusar? – Perguntou
Ixi’yah, curiosa.
— Porque por um longo tempo esperei que fosse cumprir com sua
palavra e que me tornaria sua segunda esposa. Fui servir ao templo
mantendo meu voto de castidade esperando que um dia ele viesse me
buscar. O tempo não serve apenas para passar e dar cabelos brancos
aos mais afortunados, mas também para maturar aquilo que nosso
coração jovem e quente não percebe como o pode fazer a sabedoria e
paciência de um coração velho e frio.
“Foi um grande golpe de sorte não engravidar dele, embora lamento não
ter tido meus próprios filhos e sempre há um gosto adocicado quando o
amor é dado livremente. Forçá-lo a se casar comigo só me tornaria mais
miserável. Não pensem que não considerei usar dessa insígnia, pensava
nisso o tempo todo.”
“E por pensar tanto nisso é que observei que não havia espaço na vida
dele para mim. Ni Cháac o seguia por toda parte como ainda faz hoje,
não porque era uma criança apegada ao pai, mas porque era uma
criança que tinha um pai orgulhoso e feliz apegado nela. Quando estava
no mesmo lugar que eles, seus lábios não se iluminavam quando olhava
para mim, mas sim para sua mulher prenhe coberta das mais preciosas
pedras.”
“Sequer depositava seus olhos sobre mim quando falava com ele. Seu
amor se apagara e eu já não mais importava, para ele era tal como um
cacto espinhento e ordinário nos arredores de nossa majestosa cidade.
Quando meu coração se encheu com o desejo de vingança, machucado
pelo descaso, imaginei como seria forçá-lo a olhar para a minha cara
perambulando em sua casa feliz e vi que me machucaria bem mais do
que qualquer contratempo e desconforto que lhes causaria.”
“Assim guardei a insígnia e dediquei minha vida ao templo e tal fora
meu desenvolvimento e devoção, que fui designada a ensinar e cuidar
de nobres como vocês. E foi então que tive a visão dos quatro ventos
pela primeira vez e soube naquele exato momento que a insígnia como
objeto de poder, me serviria ao invés de me destruir quando tivesse a
sabedoria necessária para usá-la.”
— E o que deseja alcançar com isso? – Perguntou Itzmítli, desconfiada.
— O que todo pai deseja de seu filho, que terminem aquilo que
começou, que produzam templos e cidades para além daquilo que
pudessem imaginar em construir, para que seus nomes não sejam
esquecidos. – Afirmou Tonamitli, convicta.
“Não vê que o sacerdócio e a magia foi tudo o que restou para nossa
mestra? Sejamos honestas, quem de nós não se viu contrariada quando
passadas para trás, por sermos quem somos? Ou quando tivemos que
engolir palavras e conselhos sábios por que nossas vozes não podiam
soar em meio a uma discussão?”
— E certo é de que não posso falar por todas vocês. – Acrescentou
Ixi’yah. — Mas não posso fingir que acho agradável ter de me casar com
uma pessoa que não conheço, que corro o risco de me casar com um
homem velho e feio no lugar de um jovem atraente, que com uma
simples ordem devo deixar minha terra, meus amigos e tudo o que amo,
para servir a um homem numa terra estranha que talvez toda uma vida
não seja suficiente para me fazer sentir em casa novamente.”
“Nossa mestra devia estar entre os conselheiros dos Quatro Poderes e
isso não tem nada de ver com seu romance, mas porque ela é uma
mulher poderosa, sábia e extraordinária, que se safou de passar toda
uma vida amargurada purificando ao templo e as pessoas. Eu já fico
feliz com essa ideia maluca só com o fato de tirar de meu pai a
possibilidade de me mandar para fora de Tolan.”
— Quem é que não quer ficar na maior cidade de Anahuác, não há
cidade nesse mundo igual a nossa. Amo cada cacto dessa terra. –
Balbuciou Tlapali.
— Acho que esse é um bom momento para a nossa terceira rodada de
pulque. – Disse Tonamitli, animada.
Sem sequer esperar por uma ordem explícita de sua mestra, Ixi’yah
tornou a encher o copo e o canto das mulheres reverberou contra as
paredes da câmara.
— Eu não posso forçá-las. – Disse Ixi Kanil, após beber sua porção. —
Assim como aceitarei se alguma de vocês decidir por não fazer parte
disso, do mesmo modo que assegurarei que as outras entrem, ainda
que o círculo de poder não esteja completo, mesmo sabendo que a
possibilidade da falha será maior se não estiverem unidas.
— Eu confio minha alma a vocês e acreditem, se há uma coisa que
escuto desde que nasci é que devo servir a comunidade e pensar no
bem-estar dela. Meu amor me faz recusar pensar que Ni merece passar
por tudo isso porque os deuses estão zangados com ele. Assim como
meu amor por vocês me fazem pensar que não tenho escolha senão
invadir a pirâmide do sol para ordenar que o Supremo Serpente cumpra
com sua promessa.
“Contudo, também entendo a revolta de Ni. É muito duro ter que servir
ao bem-estar comum quando se vê tão pequena diante de um obstáculo
e não pode pedir por ajuda porque se trata de um desejo egoísta.
Matarei a mim mesma e aquele que amo, ao esperar o amanhecer na
pirâmide do sol, no lugar de me montar guarda na casa de meu tio,
esperando o momento em que ele a deixar para pedir sua ajuda.”
“E ainda me sinto mais horrível se me negar a acompanhá-las, porque
por Ni Cháac ou Cuauhtli, sou a única entre vocês que não tem a
menor necessidade de entrar na Ordem dos Naguais, porque meu
casamento por si só já me dá um dos maiores cargos de Tolan.”
— Está querendo dizer que não vai com a gente? – Perguntou Tonamitli,
chateada.
— Quero dizer que meu coração é anulado de qualquer maneira e que
ninguém me explica o que fazer com a dor que é gerado à medida que se
parte ao meio. Realmente, seria um erro colocá-las em risco. Agora que
sabemos da tal herança espiritual, enfrentar esses senhores ou o que
for que esteja prejudicando Ni, está fora de nossas capacidades. Ao
menos me digam o que fazer para parar essa dor.
— É assim que as coisas são, Itzmítli. Nossos desejos não contam, só
são importantes para nós mesmas.
— Todos nós temos de lidar com tais dores, os desejos vêm, mas somem
tão depressa quanto aparecem. – Disse Ixi’yah.
— Devo assistir ao homem que amo definhar por que é egoísta de
minha parte desejar que viva e corra selvagem e livre por esse mundo?
O quanto é egoísta o desejo de nossa preceptora? Não devia ela pensar
no bem-estar dos pais de vocês que só escolherão seus maridos para
beneficiar a família num todo? Sei que minhas palavras são ásperas,
mas quero que alguém me explique o que faz de um ato correto e outro
errado?
— Eu acho que vocês falam demais. – Disse Tlapali, depreciativa. —
Nascemos exatamente onde deveríamos nascer nessa vida, em outra
quem sabe nasçam como campesinas ou em lugares desconhecidos
para além do mar. Estão onde devem estar e possuem as ferramentas
que devem possuir para ofício que lhes encomendara suas próprias
almas.
“Ainda que não tenha entendido sequer um terço de toda essa história,
minha alma caprichosa se alegra com a dignidade a qual minha mestra
me trata, não posso desconsiderar o que Tonamitli disse, nenhuma de
nós tem qualquer poder de escolha. Podemos escolher comer ou não
tortilhas, mas as coisas importantes não decidimos.”
“Mas, também há algo que nenhuma de nós considerou até esse
momento e o que Itzmitli disse me pensar a respeito. É óbvio que se
contasse sobre esse plano para meu pai, ele nunca me permitiria
invadir a pirâmide do sol e solicitar a força a minha entrada na Ordem.
Talvez seja melhor usar a insígnia e pedir ao Supremo que interceda por
nossa estadia em Tolan.”
— Isso é se agarrar à mediocridade. A entrada na Ordem não significa
retirar o direito de seus pais em escolherem seus maridos, não é só
sobre ficar em Tolan. É sobre se tornar uma dignitária de Tolan. E
Itzmítli tem razão quando diz que esse desejo não é diferente do dela
que deseja que Ni Cháac fique bem ao menos para estar em pé de
igualdade com seu rival.
— É o que quero dizer. Aprendi a ler quando era criança e não foram
poucas as vezes que meu mentor jogou uma porção enorme de registros
de eventos calendáricos, bem como livros repletos da sabedoria dos
homens do passado. Existe até mesmo o comércio de livros que vêm do
Sul, das terras dos maias. Nós compramos esses livros e meu mentor
me fazia ler a todos.
“Ixi Kanil nos pede para buscarmos por uma herança espiritual, que ela
acredita que obteremos o conhecimento e habilidade de conseguir
através de nossa entrada na Ordem. E acredito que talvez esteja aqui
sem saber o que fazer, porque tenho passado toda a vida fazendo aquilo
que meus preceptores me disseram ser o certo a fazer.”
“Nossos governantes têm a palavra final porque conseguem ver muito
além do que conseguimos com nossas percepções limitadas. E se tal
herança espiritual me permitir ser capaz de enxergar e entender aquilo
que me parece confuso, me esforçarei para obtê-la”
“Como uma mulher comum e limitada, não tenho a capacidade de ver
além de minhas ações, mas é impossível não ver na história muitos
registros onde ações ruins trouxeram as melhores consequências e que
boas intenções foram estopim de grandes desgraças. Se existe um “ver
dos feiticeiros” que dá ao homem a capacidade de decidir e agir com
sabedoria, sem se apegar ao medo das consequências de suas escolhas,
então isso eu quero para mim.”
“No entanto, não vou fingir e nem mentir, não estarei por inteiro com
vocês até que consiga ajudar aquele que amo. Não passarei a noite aqui
realizando rituais e obtendo conhecimento através de nossa preceptora,
e nem me importo que poderosos feiticeiros e Nahuales me destruam,
preciso encontrar um meio de estar com ele, de protegê-lo, e o farei com
ou sem a ajuda de vocês.”
Após assinalar ser o momento da quarta rodada de pulque, Ixi Kanil
observou Itzmítli e não pôde deixar de observar a grande influência que
seu tio, o Supremo Jaguar, teve sobre ela. Embora não pudesse afirmar,
sua intuição a fazia acreditar que o tio transferiu um pouco de seu
poder para aquela pequena.
E se transmitido a ela parte de seu poder, isso explicaria o interesse do
Supremo Águia em casar seu sucessor com ela, ao invés de uma
decisão sábia em ceder e retirar seu pedido de casamento dando a
livremente para Ni Cháac. A águia era o próprio sol, uma ave poderosa
capaz de ver a longas distâncias, com movimentos precisos e certeiros,
as ações daquela casa jamais eram vazias de propósito.
Era fácil considerar que tivesse tanta sabedoria com tão pouca idade,
porque assim como os filhos dos supremos senhores, esteve toda a
infância estudando com os homens mais sábios de Tolan, das quatro
era a que sempre estava atrasada para as aulas que tinha com ela e não
por diversão, mas porque tinha muitas tarefas e obrigações.
Seu pai nunca teria dado tamanha atenção para ela, como não fez com
seus filhos mais velhos, e sua mãe adoecera logo após seu parto o que
retirou dela muito de seu vigor felino. Era possível que Itzmítli não se
tratasse somente de um conforto emocional, talvez Citlali Yoahualli
tivesse obtido alguma visão ou presságio, ou saber de alguma profecia
que a envolvia e por isso tivesse a preparado com tal zelo.
Quem haveria de saber o que viam os Quatro Poderes? Eram naguais
excepcionais, treinados e preparados para serem governantes e
feiticeiros desde o nascimento, homens de conhecimento que mesmo o
mais habilidoso sacerdote e xamã jamais conseguiriam alcançar. Eram
os homens-deuses de Tolan.
Enquanto as outras três continuavam deliberando sobre a Ordem dos
Naguais, ela alinhava pequenos e requintados frascos de cerâmica, a
qualidade assim como as pinturas denunciavam a procedência da casa,
caros demais para um nobre mediano. Separava cuidadosa ramos de
ervas que muitas vezes aproximava do fogo para observar melhor a
folhagem.
Cheirou cada frasco, depositou unguentos e pastas em partes diferentes
do próprio corpo examinando-os com esmero, degustou os líquidos,
passando até mesmo alguns dos unguentos e pastas na ponta da
língua. Reorganizou os frascos, muitos foram parar ao seu lado
enquanto três deles ficaram diante de si e repetiu o processo de prová-
los.
— Ele está sendo envenenado? – Perguntou Tonamitli, que, curiosa,
observava a moça.
— Acredito que não, mas não estou muito certa desses três remédios,
não os reconheço. E considerando que não tenho uma instrução
apurada desse ofício, é possível que nunca descubra.
— Tlapali talvez reconheça. – Sugeriu Tonamitli.
— Posso tentar. – Disse a moça rolando para o lado e sem conseguir se
erguer, Tonamitli avançou sobre ela e a suspendeu, fazendo-a se sentar.
Provou o primeiro deles, levando para a ponta da língua, depois fixou o
olhar sobre o frasco e ali permaneceu, concentrada, sabiam que estava
tentando ver o espírito por trás do medicamento. O que determinava um
bom tratamento médico era a habilidade do curandeiro de se comunicar
com os espíritos de cada planta, produto e objeto usados na confecção
do remédio.
Entretanto, a combinação de vários elementos acessava um aliado
específico, um espírito com nome e habilidades para tratar de
determinadas doenças. Ser considerado um bom curandeiro ou
boticário consistia na habilidade de tais especialistas em controlar o
espírito aliado.
— Não, eu não posso ajudar, não consigo ver os aliados desses
remédios. – Falou, relaxada e devolveu os frascos para Itzmítli. — Eles
não se mostram e não me deixam acessá-los.
— Os espíritos das montanhas haverão de me dizer o que fazer.
Itzmítli tomou sua bolsa e uma das tochas e disse:
— Me esperem na pirâmide do sol, estarei lá.
— Mas...
— Deixe que vá. – Disse Ixi Kanil interrompendo Tonamitli.
— Não acho certo não a ajudarmos. – Confessou Ixi’yah, cabisbaixa.
— Ainda não acredito que Iztac Coatle faria qualquer mal ao próprio
filho. Se fosse sua intenção em prejudicá-lo não o teria apoiado como
fez. Não tem a menor lógica, ele o teria repreendido e retirado seu
pedido, mas ao contrário presentou o pai da moça e reforçou o pedido
de casamento do filho.
— E se ele quisesse nos fazer acreditar nisso? Se ele tiver propósitos
ocultos ao qual não temos conhecimento? E se for verdade que não
queria casar seus filhos com nenhuma das outras casas? – Perguntou
Tonamitli, desconfiada.
— Você é a prova de que ele nunca teve esse interesse e que tudo não
passou de boatos.
As três jovens se entreolharam.
Os Quatro Ventos
Ruídos Noturnos
O Grande Momento
O Rugido do Jaguar
Rastros
Embora ficar acompanhando seu avô no tribunal não fosse uma tarefa
que desgostasse, Tonamitli se via inquieta com o cão de guarda que seu
pai colocara em seu encalço sobre o pretexto de se tratar de um novo
preceptor.
Tentava prestar atenção aos relatos das duas mulheres a sua frente,
uma acusava a outra de ser amante do marido e alegava que amante
estava roubando os alimentos de sua casa para dar aos seus filhos
bastardos. E ainda que estivesse disposta a resolver o caso, seus
próprios assuntos a inquietavam.
Contudo uma comoção fez as duas mulheres que discutiam uma com a
outra calarem-se. Tlapali se lançou entre as mulheres e se pendurando
em seu pescoço, aos prantos, exclamou:
— Não deixem que me leve!
Reconheceu de pronto os irmãos e o pai da moça que entraram no lugar
gritando pelo nome da amiga e a procurando entre as pessoas que
aglomeradas e em pé esperavam para serem atendidas.
— O que aconteceu? – Perguntou Tonamitli, assustada.
— Estão me levando para uma cidadezinha perto de Danipaguache para
me casar com um nobre guerreiro de lá. – Sacudiu a cabeça, aflita e
acrescentou: — Eu não quero deixar Tolan, não deixe que me levem.
Abraçou a amiga, acariciando seu cabelo, enquanto observava seus
irmãos vindo ao seu encontro.
— Eu vou te buscar, Tlapali. Eu prometo que vou te trazer de volta.
Sentiu a ardência das unhas que se cravaram em sua pele, assim que
os irmãos, nervosos, a agarraram e arrastaram para fora do lugar, com
o pai com um cinto de fibra a chicotear as costas da amiga
desesperada, proclamando impropérios.
Ficou ali em pé, triste e impotente, observando as pessoas que seguiram
a algazarra até a porta do local e ao ver que o espetáculo terminara,
voltavam, discutindo uma com as outras por causa de seus lugares na
fila de atendimento.
— É melhor não se envolver com isso, minha neta. Não há nada que
possa fazer.
— Preciso contar para Ixi’yah e Itzmítli, também são amigas dela,
precisam saber que Tlapali está deixando a cidade.
— Desde que Mictiz vá com você, não vejo nenhum problema. Estou
velho demais para ouvir seu pai brigar comigo porque te deixo fazer o
que quer. E não se demore.
— Não pode nos deixar aqui sem resolver o nosso caso! – Exclamou
uma das mulheres, belicosa.
— Fique aqui ao lado do sábio ancião que ele resolverá seu caso.
O velho balançou a cabeça, exasperado e acenou para que as mulheres
se aproximassem dele. Alegres por falarem com o velho sábio,
abandonaram Tonamitli de pronto.
Nem precisou informar seu preceptor que se colocou a segui-la de
imediato assim que deixou o tribunal. Cinco dias havia se passado
desde o incidente na câmara e embora estivesse com saudade de
Itzmítli, o lugar onde Ixi’yah trabalhava como tecelã ficava no meio do
caminho e decidiu encontrá-la primeiro.
Encontrou a amiga no Bairro dos Tecelões, concentrada enquanto uma
estrangeira ensinava uma técnica para fazer um tecido fino e
translúcido, parecia nervosa e pouco habilidosa, mas parou de súbito
assim que se apercebeu da amiga.
— Está com uma cara horrível. Soube que você e Itzmítli estão de
castigo. O que aconteceu?
Tonamitli a puxou e cerrou o cenho assim que seu cão de guarda se
aproximou de forma a assinalar que devia manter distância. Mictiz
embora muito atento, não se importava em dar alguma privacidade
quando o pai ou o avô permitiam que saísse.
— Tlapali está indo embora. – Respondeu com voz embargada.
— Para onde? – Ixi’yah não conseguiu disfarçar a consternação.
— Uma cidade próxima de Danipaguache, foi o que disse. O pai vai
casá-la com um guerreiro nobre de lá.
— Que ganho ele teria com tal casamento?
— Como vou saber, Ixi’yah? Eles agarraram-na e levaram para longe de
mim, e estava tão desesperada e triste que não conseguiu me dizer
muito.
— Não podemos deixar que ela vá embora.
— O que podemos fazer? Sequer sabemos para onde levaram Ixi Kanil, o
círculo de poder acabou, minha amiga, e acabou no exato momento em
que colocamos nossos pés naquela pirâmide. Sequer tenho a liberdade
de conversar com as pessoas para ao menos descobrir onde nossa
preceptora está. E se meu pai me vir perto dela, vai me castigar de
verdade.
— Eu tenho que ver Tlapali, nem que seja pela última vez. – Anunciou
Ixi’yah, que a abandonou ao correr para fora do bairro.
— Não vai atrás dela? – Perguntou Mictiz, debochado.
— Para quê? Estou certa de que dará com a cara na porta.
Caminhando rumo a saída e ao palácio de Xalla, acrescentou:
— Ao menos enviou o mensageiro para avisar meu noivo que quero vê-
lo?
— Sim, seu pai não declinou ao seu pedido em ver o noivo. Ele acha que
é importante que vocês se visitem.
Tal afirmação roubou um sorriso vencedor do rosto antes taciturno. Não
tivera passado por sua mente frequentar e visitar a casa do noivo até
aquele momento, seu desprezo por Mulísh a cegara quanto a
oportunidade de descobrir o paradeiro de Ixi Kanil, e se alguém sabia
onde a mestra estava, certamente era seu sogro.
Seu caminhar tornou-se até mais leve e tranquilo depois daquela ideia
surpreendente. Deveria ser zelosa,
Mas assim o que gera o conflito que fará Ni Cháac buscar pelo deus por
si mesmo?
Assim como Itzmítli, talvez por força da juventude, ele acredita que suas
buscas devem ir além do que lhe é passado pelos sábios, que deve por si
mesmo comungar com o deus em retiros solitários. Ni Cháac é
ambicioso num certo sentido e quer ele mesmo se tornar um deus ou
uno com ele.