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A Guerreira

Sumário
O Clã Jaguar........................................................................................2

O Clã Jaguar

Gostava como as penas negras da plumagem exuberante dos toucados


de seu pai e seus dois irmãos mais velhos farfalhavam contra o cerúleo
desnuviado e tais como bastões de poder apontavam para um grupo de
abutres que voavam circularmente sem se afetarem pelo sol sufocante
daquela tarde.
Pudesse o vento soprar sobre o vestido leve e translúcido que deixava o
corpo esbelto e jovem a mostra, ao menos aquelas reuniões de família
serviam para deixar Itzmítli orgulhosa de sua aparência e sensualidade,
embora não fosse do agrado de seus pais e parentes uma nobre como
ela pensar em casamento com tal romantismo, exibir-se para Ni Cháac
era compensador.
Ixochiyo, sua irmã, dois anos mais velha, acenava alegremente para as
pessoas que transitavam atarefadas pela Calçada dos Mortos, gostaria
muito de que pudessem ser amigas, sua mãe Miztli desejava tanto que
elas pudessem tratar melhor uma à outra que era uma grande pena não
satisfazer o desejo daquela que ela mais amava no mundo, mas Ixochiyo
tornava quase impossível qualquer chance de aproximação.
Deixou-se apegar pelo templo recém-construído ao lado Oeste da
Calçada dos Mortos, contrastando com o terroso e árido caminho,
erguia-se exuberante sob um talude tabuleiro de três patamares. A
forma piramidal exibia os tons azulados e motivos geométricos que
lembravam o sinuar das serpentes no estilo retilíneo tão comum em sua
cidade.
Embora estivesse forrada com relevos de motivos marinhos e as
conchas abundassem entre as serpentes, a pequena pirâmide
escalonada brilhava sob o toque dourado a refletir nas gotas modeladas
em mica ambarina e cravejadas nas quatro fachadas, oferecendo uma
cinesia e cintilância hipnótica, como a chuva cristalina a cair numa
tarde em que não fora capaz de cobrir o sol.
Eram gotas douradas que simbolizavam a abundância da cidade que
era a casa do Senhor das Tormentas, o poderoso deus Tláloc. Dois
enormes jaguares ladeavam a entrada principal do templo, com
profundos olhos de obsidiana verde e todo o corpo imenso banhado por
uma massa regada da cintilância da pirita, com obsidianas negras a
cravejar o corpo dos animais.
Estava certa de que seu tio esteve por detrás daquela construção,
argumentava que embora o poder militar de Tolan fosse importante, era
uma tática de um bom governante fazer as pessoas se prostarem
fascinadas pela beleza e prosperidade de uma terra, dobrarem-se ao seu
poder por puro amor e admiração.
“Tal como você que se rende ao esplendor vermelho do pôr-do-sol, a
acenar seu adeus com pinceladas rubras sobre os cactos abundantes e
o verde amarelado de nossos montes, ele te faz ajoelhar sem empunhar
uma espada, faz amá-lo sem lhe dizer sequer uma palavra, te faz
desejar e contemplar, pois não há beleza no mundo que se compara.”
Sim, o poderoso jaguar havia de lhe dizer tais palavras como já fez
milhares de vezes.
Entretanto, as banalidades que sua irmã Ixochiyo falava para a esposa
de seu irmão mais velho, Sak Nictê, ou mesmo a exuberância do novo
edifício, não foram mais capazes de roubarem sua atenção assim que
seu pai e irmãos pararam logo a frente delas a pedido de um sacerdote.
A pouca distância que mantinha deles fora o suficiente para não ouvir a
conversa desde o início, mas ainda assim ouviu o sacerdote dizer:
— Meu senhor, Amini, sei que essa reunião é importante, mas ele está
se sentindo muito ultrajado, poderia recepcioná-lo?
— Tonehuiztli, represente-me ante nossa família e leve suas irmãs para
a Grã Casa, sua mãe está esperando por elas. Avise ao seu tio Citlali
que chegarei em breve.
— O que aconteceu? – Itzmítli perguntou ao irmão mais velho, enquanto
observava seu pai afastar deles rumo ao Sul da Calçada dos Mortos na
companhia do sacerdote.
— Os Senhores de Danipaguache chegaram e estão se sentindo
ultrajados por não serem recebidos por nenhum dos Quatro Poderes, ao
informar que estão numa reunião muito importante, solicitaram ao
menos a presença de nosso pai. – Respondeu Tototli, seu outro irmão e
segundo filho de seu pai.
— Espero ao menos que meu pai venha também, seu atraso tem me
deixado muito preocupada. – Disse Sak Nictê, ao tomar o braço de seu
irmão mais velho.
— Não se aflija, minha querida. É um caminho muito longo o que seu
pai tem que percorrer e conquanto se mantenham nas Rotas
Comerciais, nada acontecerá aos seus parentes. – Disse Tonehuiztli,
apaziguando a esposa, carinhoso.
— Como se ainda vivêssemos sob os auspícios da glória de nossos avós
que mantiveram o controle e segurança de nossas rotas com excelência.
Já há muito não é seguro transitar por elas. – Falou Itzmítli,
despretensiosa.
Tototli segurou o riso ao observar o mais velho lançar um olhar
fulminante sobre a caçula e disse:
— Itzmítli tem razão, mas os grandes senhores de Tolan enviaram uma
comitiva de guerreiros para escoltar seus familiares, então estou certo
de que chegarão bem, mas não sem atraso.
— Desculpe, Sak Nictê. – Disse Itzmítli, ao se aproximar dela e tomar a
mão delicada. — Devia ter sido mais cuidadosa, é verdade, você ainda
está muito triste pelo seu filho e sei que pensar em perder mais algum
ente querido deve lhe assustar muito. Não quis te entristecer, minha
irmã. Mas, devemos estar sempre atentas ao que está acontecendo em
nossa cidade, nas cidades dominadas e aliadas, bem como em nossos
inimigos.
— Ela não precisa ouvir isso! – Exclamou Ixochiyo, belicosa. — Dizer
essas coisas para ela não ajudará em nada.
— Ela será mãe dos filhos de nosso irmão, sucessores da dinastia de
nossa mãe e deve ser tão forte e sábia como qualquer uma de nós. Ela é
nossa irmã agora e deve ser tratada com a mesma dignidade e
igualdade.
— Tais ensinamentos cabe a nossa mãe transmitir a ela, não a uma
presunçosa como você.
— Ela não fez por mal, Ixochiyo. – Disse Tototli num tom apaziguador.
— É melhor não se meter nisso se quiser manter sua paz de espírito
pelo resto do dia. – Disse o mais velho, segurando o riso.
— Vocês estão sempre defendendo Itzmítli, Huiztli, só porque ela gosta
de estar enfiada nos assuntos de vocês! – Os irmãos tinham por
costume chamar o mais velho de Huiztli. — Se não é o papai para
corrigi-la talvez já tivesse me matado por causa da inveja que sente por
mim.
— Inveja de você? – Itzmítli riu, afrontosa. — Você que não gosta de
mim sem sequer ter outro motivo que não a inveja que sente pela
quantidade de pretendentes que tenho e me trata mal como se eu fosse
culpada pela aparência que tenho e ela ser agradável para os homens.
Pelo menos meus irmãos são bondosos o suficiente para perceber que
sou uma pessoa de coração bom. Quisera eu que você e papai
pudessem gostar de mim.
— Por favor, não briguem, muito menos por minha causa. – Disse Sak
Nictê, com sua voz doce e delicada. — Hoje não é um dia propício para
ficarem mais nervosas do que já devem estar com toda a conversa que
está para ocorrer em relação a matrimônios e alianças. Eu não estou
chateada com Itzmítli.
As palavras insultuosas jorraram pela boca da mais velha, mas Tototli a
tomou pelo braço e caminharam em passos apressados ganhando
distância dos outros. Abraçou ao moço elegante e vistoso, exibindo o
peito glabro e musculoso onde pendiam pesados colares de obsidiana.
Era sem dúvida seu irmão mais querido.
Não se demoraram até que atravessaram o estreito portão onde guardas
cuidava para restringir o acesso. Seguiram pelo corredor que se formara
entre o muro que cercava e a parede rubra, ricamente pintada com
motivos geométricos que se entrelaçavam tal como uma rede, onde nos
hexágonos que formavam entre a trama estava a flor de quatro pétalas
com o círculo no centro, o símbolo da cidade.
Subiram uma pequena escada dando no pórtico sustentado por grossas
colunas quadradas com relevos de corujas talhados nos quatro lados e
seguiram adiante para o pátio maior e quadrangular onde os edifícios se
erguiam ao redor.
Havia uma plataforma ampla de base quadrangular com quatro
patamares onde no centro do pináculo havia uma pequena capela que
tal como uma casinha, abrigava a estátua da deusa da terra ligada a
direção Norte que lhes era muito sagrada, onde ao redor pequenos
fogueiros e incensários de cerâmica davam vida as frutas e flores
frescas que foram ofertadas.
Embora uma boa parte dos presentes fossem seus parentes, também
estavam presentes os familiares dos outros Supremos além de seu tio e
sua casa jaguar. O aroma da carne que assava misturava-se ao cheiro
forte dos incensos e do tabaco que muitos ali apreciavam na companhia
de uma boa cuia de pulque.
Acenou para os conhecidos, simpática e sorridente e procurando por
sua mãe seguiu para o edifício Oeste do pátio que construído sobre uma
plataforma se elevava cerca de um metro, obrigando-a a subir uma
curta escada. Não querendo naquele momento se alongar em conversas,
acenava e sorria sempre que encontrava pessoas entre os cômodos do
lugar.
Encontrou sua mãe em um dos quartos, abatida e ofegante, sentada
sobre uma esteira com as costas apoiadas nas macias almofadas que
colocara entre ela e a parede. Angustiava-se ao ver a mãe doente
daquela forma, era triste que uma mulher tão forte e guerreira como ela
tivesse que passar por tal sofrimento. E Miztli bem sabia o quanto a
filha sofria sempre que a via e com mãos ternas acariciou o rosto
delicado e belo, dizendo:
— Demoraram muito.
— Minha irmã ficou toda a manhã indecisa sobre o que vestir e acabou
nos atrasando a todos. Acho que se papai não concordar com os Quatro
Poderes sobre o futuro marido dela hoje ela vai se matar.
A mãe riu e perguntou:
— Ainda está preocupada com o que acontecerá aqui hoje?
— Estou um pouco, mas se eu conseguir falar com o Tio Citlali antes
deles se reunirem, eu posso ter alguma chance. Eu sei que já estou na
idade de me casar, mãe e sei o quanto isso é importante para nós, para
nossa linhagem. Sei que não devia me indispor com meu pai e meus
senhores, mas há duas coisas que amo demais e me casar com algum
nobre de terras distantes mataria minha alma.
— Eu conheço meus filhos, assim como também já tive um coração
jovem e quente como o seu. Tenho pedido muito em minhas preces
durante meus jejuns e sacrifícios para que você case com ele, filha,
porque não é uma união impossível, mas não cabe a mim decidir, nem
eu, nem seu pai e nem seu tio podemos pedir por esse casamento se o
pai dele não o fizer.
“E embora saiba que hoje discutiremos tanto sobre as casas que
apoiarão seu primo e os outros jovens senhores, também será objeto de
discussão as alianças e matrimônios daqueles que já estão em idade de
se casar. É uma mulher muito bonita como sua vó foi, e infelizmente há
muitos pretendentes que são interessantes para Tolan e caberá a você
seguir o seu dever.”
— E onde está meu tio?
— Ele está junto com os outros Co Governantes e seus primogênitos
realizando um ritual secreto na câmara do edifício Leste. Não deve
interrompê-los.
— Sei que não. – Suspirou a moça, frustrada. — Seria bom que
conseguisse conversar com ele antes do papai chegar.
A mãe riu da ousadia de Itzmítli. Era inteligente e sabia ser a favorita de
seu tio Citlali Yoahualli, que ao perder sua filha de mesma idade de
Itzmítli, quando esta completou dois anos, se apegou a sobrinha
fazendo-a tomar o lugar vazio que deixara a sua pequenina e a mimava
e tratava como se fosse sua própria filha.
O que com o tempo gerou grandes conflitos entre ela e o pai, que
sempre se via pressionado a ceder aos caprichos de Itzmítli quando
contrariada com suas decisões rogava ao tio que o fizesse mudar de
ideia. Sendo o irmão de Miztli, o Supremo Poder Jaguar de Tolan, o
marido como seu súdito, tinha que acatar suas ordens, ainda que isso
se tratasse da vida de sua própria filha.
O que rendeu muitos castigos para a moça atrevida que sempre muito
obstinada e caprichosa ponderava sobre o quanto valia ou não um
castigo a cada vez que se via impedida de fazer o que bem entendesse.
O que se tornou uma clara competição assim que concluiu que sua
irmã mais velha era a favorita de seu pai e sentir-se preterida a
encorajou ainda mais.
— Deve procurar por sua preceptora, ela esteve procurando por você e
perdi as contas de quantas vezes esteve aqui para perguntar se você já
tinha chegado. – A mulher gemeu ao se mover e tocando gentilmente o
braço da mãe, Itzmítli perguntou:
— Está com dor? Quer que eu busque algum remédio para te reanimar?
— Tomatzi já esteve aqui comigo e já me medicou. Ficarei bem assim
que sua medicina fizer efeito. Não se preocupe comigo, minha pequena,
ficarei bem. Vá procurar, Ixi Kanil, ela deve ter algo importante para te
dizer.
Apertou os olhos para protegê-los a intensa luminosidade natural do
pátio que rapidamente se acostumaram com o ambiente sombrio onde
estava a mãe e deslizou seu olhar sobre os rostos alegres e animados
daqueles que se aglomeravam ao redor do altar.
Sorriu assim que viu Tonamitli e correu em sua direção, desculpando-
se com aqueles que se interpuseram em seu caminho a fim de
conversar com ela, prometendo que falariam com eles em breve. A moça
era filha de Cuetlachitli, o Supremo Lobo, com quem estudava junto sob
a mentoria de Ixi Kanil, a Grã Sacerdotisa.
— Está linda! – Exclamou Itzmítli ao agarrar as mãos da amiga.
E estava mesmo, usava uma saia leve, aberta nas laterais e rica em
bordados, os seios desnudos exibiam o frescor e a beleza da juventude,
cobertos apenas por uma trama de pedras verdes que se unia ao colar
de muitas voltas que se agarrava ao pescoço tal como uma coleira de
jade e desciam em cascatas até se unirem harmoniosamente com a
trama que suspendia ondulante sobre o abdômen, deixando assim as
costas praticamente nua.
— Você também está. – A moça disse, risonha.
— Onde está Ixi Kanil?
— Acho que deve estar na cozinha, queria preparar alguma coisa para
beber, acho que está mais nervosa do que nós duas.
— Conseguiu falar com seu pai?
Tonamitli riu de puro nervosismo e disse:
— Acha mesmo que meu pai pararia para me ouvir? Assim que comecei
a falar com ele, disse que não tinha tempo para essas coisas e que eu
devia ficar feliz com qualquer decisão que ele tomasse porque tudo o
que faz é para o bem de Tolan.
— Os senhores de Danipaguache acabaram de chegar. – Informou,
pesarosa.
— E agora? O que eu faço? – Perguntou Tonamitli, desesperada.
— Tem mesmo certeza de que seu pai vai aceitar o pedido do príncipe
de Danipaguache? É tão raro eles enviarem suas filhas assim para
longe. É mais fácil que concordem em me casar com o príncipe Vucub-
Arpu de Kaminaljuyú ou o soberbo príncipe Nuvem Tempestuosa de
Tahín, do que enviar a filha direta de um supremo para longe.
— Não acho que te casarão com esses príncipes. Seu tio te ama mais do
que o próprio primogênito dele, não acho que ele concordaria em te
enviar para outra cidade. E sua irmã já está velha, é provável que a
despachem hoje mesmo.
— Que os deuses te ouçam. – Disse Itzmítli, risonha. — Mas não tenho
muitos pretendentes tolanos.
— Claro que tem. Desde que cheguei aqui não faço outra coisa a não
ser conversar com as meninas tentando obter informações. Itzmítli, nós
não podemos deixar Tolan. Se uma de nós formos para longe todo o
nosso esforço de anos vai por água abaixo. Não importa o quanto você
gosta de Ni Cháac, se o que me disseram for verdade, Cuauhtli é um
forte candidato para você e é melhor casar-se com ele, do que com
qualquer outro que te leve para longe.
— Não está falando sério! – Exclamou Itzmítli, incrédula. — Não, você só
pode estar brincando comigo, Tonamitli.
— Não acredito que nunca notou que o primogênito Águia tem
suspirado sempre que passa por ele. Se interessou por você desde que a
esposa morreu no parto. Deve estar com seus 25 anos, não é tão velho e
é bem bonito.
— Se o Supremo Águia fizer um pedido desse antes do pai de Ni Cháac,
nunca poderei ficar com ele. – Itzmítli saiu em passos apressados, com
a amiga confusa em seu encalço, perguntando:
— Aonde você vai?
— Eu preciso beber ou vou enlouquecer.
— Mas, seu pai não falou que não quer que você fique bebendo? –
Perguntou a amiga, ao que a alcançou.
— Se fosse fazer tudo o que meu pai deseja para mim, estaria numa
cova, porque além de não querer que eu beba pulque, também não
queria que estivesse viva. Que case Ixochiyo com Cuauhtli! – Parou,
abrupta, fazendo Tonamitli trombar nela e perguntou:
— Quem te disse isso?
— Não acho uma boa ideia te dizer quem foi, já está enlouquecida só
por saber da possibilidade.
Agarrou a moça pelos ombros e a chocalhando, insistiu:
— Vamos, fala logo!
— Acho que você devia treinar menos com os guerreiros. – Resmungou
a moça, tentando se livrar das mãos firmes que apertavam seus
ombros.
— Tonamitli...
Parou de falar assim que ouviu a voz da preceptora:
— Ainda bem que chegou, preciso conversar com vocês duas.
Ixi Kanil, com seu longo cabelo preso numa trança longa, exibia-se
numa saia curta feita com várias tiras prateadas de pele de cascavel
presas num cinto de couro onde havia o crânio de um veado e pequenas
bolsinhas de couros onde carregava suas ervas, com os seios cobertos
apenas pelo colar pesado de obsidianas com tantas voltas que mal se
podia vê-los. Seu diadema combinava pedras com penas negras que
caíam feito cascatas sobre suas têmporas.
A sacerdotisa tomou as mãos das duas moças e as levou para o edifício
Norte. Seguiram pelo corredor até atravessarem uma câmara ampla que
pouco conseguia se ver por causa da densa nuvem de fumaça dos
incensos espalhados por todas as partes, onde sacerdotisas purificavam
com perfume e canto as prostitutas sagradas que acompanhariam aos
homens na festa que se seguiria após o conselho, costumavam referir-se
a elas como “as alegradoras”.
E assim que adentraram numa pequena câmara, Ixi Kanil cerrou a
porta com a cortina de sementes brancas e brilhantes, tais como
pérolas e empurrou as duas moças para o fundo do recinto, prendendo-
as num canto apertado entre a parede e o altar. Itzmítli se livrou
rapidamente dela ao observar os jarros da mais bela cerâmica tolana e
os cheirou.
Ao reconhecer o pulque, pediu desculpas para a estátua da deusa e
tomando uma cuia qualquer entre as milhares que foram deixadas
sobre o altar, se serviu com a bebida. Tonamitli riu, assim que
exasperada, Ixi Kanil exclamou:
— Eu não acredito que está se servindo com a oferenda!
— Ela está enlouquecida. – Afirmou a amiga.
— Mas, é claro que está! – A sacerdotisa tomou a cuia da mão de
Itzmítli.
— Ela enlouqueceu depois que soube da possibilidade de se casar com
Cuauhtli. – Tonamitli segurava o riso, enquanto a amiga empacada,
lutava contra a sacerdotisa que a estapeava à medida que tentava
tomar mais uma dose.
— O que foi que disse? – Perguntou Ixi Kanil, que demorou para
processar a informação.
— Disseram-me que Cuauhtli quer se casar com ela.
— Quem te disse isso? – Perguntou Ixi Kanil, que abandonou
prontamente Itzmítli e se voltou para a outra.
— Ela não quer dizer. – Disse a moça se servindo uma vez mais.
— A irmã dele me disse isso. Eu não acreditei nisso tanto quanto vocês
não querem acreditar agora e Tuya me disse que ele e o Suprema Águia
pedirão a permissão de casá-los ao pai dela durante o conselho.
— Seja o que for que tenha para falar com a gente, terá que esperar,
vou pegar pulque porque esse aqui está passado. – Afirmou Itzmítli,
saindo a passos largos.
Era bem possível que sua preceptora tivesse algo importante para dizer
e não gostava de tratá-la daquela maneira, mas a possibilidade de um
pedido de Cuauhtli era desesperador. Embora Ni Cháac lhe prometera
que faria tudo para se casar com ela, os boatos sobre uma indisposição
do Clã da Serpente em casar seus filhos com outros clãs corriam soltos
e chegaram aos seus ouvidos como de qualquer outro.
Devido a uma campanha de guerra não via Ni Cháac há dias, mas de
acordo com as informações de sua mãe e assim como pôde ver com
seus próprios olhos, a família Serpente estava presente. Cuauhtli não
era um pretendente ruim, embora não pudesse se dedicar inteiramente
ao exército devido ao seu cargo como escriba, era treinada e convivia
com eles.
Nunca conversaram muito, era um homem casado até dois anos solares
atrás e quando seu filho e sua mulher morreram no parto, ficou muito
afetado e pouco comparecia nas reuniões. Mesmo no exército, onde o
via com maior frequência, raramente se aproximava dela, como
qualquer outro homem.
Seus irmãos eram famosos pelos ciúmes que tinham de suas irmãs e
seu pai como um dignitário e general era uma figura a qual os
guerreiros respeitavam e não era do interesse de nenhum deles se
indispor nem com ele e muito menos com o Supremo Jaguar.
Só Ni Cháac era ousado o suficiente e nunca pretendeu esconder o
quanto a desejava. E pensar naquela ousadia em forma de homem, alto
para os padrões de seu povo, com seu cabelo tão negro e brilhante
quanto a obsidiana, de olhos intensos e intimidadores, seu coração se
apertou. Como o desejava.
— Eu não posso acreditar em meus olhos! Itzmítli, que mulher linda
que você se tornou!
Sua tia Anaytli a envolveu em seus braços, emanando um aroma
adocicado e agradável de orquídea, fazendo seu luxuoso colar de
conchas se enroscar em seu colar modesto de obsidiana e agarrando
suas mãos, esboçando um sorriso gentil, acrescentou:
— Não é à toa que sua mãe disse que Ixochiyo quase não tem
pretendentes porque a maioria se interessa por você. Era uma criança
magricela a última vez que te vi. – Virou-se para o marido, o senhor
Mixcohuatle, irmão do pai de Ni Cháac e disse:
— Veja, meu querido. Veja como cresceu minha sobrinha Itzmítli.
O homem a envolveu num abraço e pousando as mãos sobre os ombros
delicados, disse:
— Se parece muito com sua avó. Não me admira que seu tio seja tão
apegado em você, ele gostava muito da mãe. Achei que nos visitaria na
Serra das Navalhas quando seu pai foi para lá.
— Meu pai não gosta muito que eu viaje. – Ela falou, apertando os
dedos das mãos, impaciente.
— Parece que o ritual dos Quatro Poderes terminou. Venha, querido,
quero cumprimentar meu irmão. – Deu um beijo na mão de Itzmítli e
acrescentou: — Vou gostar de conversar com você mais tarde, minha
querida.
Ela consentiu com a cabeça, observando para a porta do prédio mais
alto do lugar que ficava ao Leste do pátio e embora pudesse ver seu tio e
seu primo, não viu os outros senhores. Observou a tia que se agarrou
ao Supremo Jaguar, retirando dela qualquer chance de conversar a sós
com ele.
Embora o que é que haveria de dizer para ele depois daquela
informação? Segurou o braço do sacerdote que com a ajuda de alguns
criados servia pulque e pediu por uma cabaça da bebida. Não se sentia
inclinada a retornar para se encontrar com Ixi Kanil, mas não poderia
deixá-la esperando e seria bom poder se livrar de sua família no
momento em que sentia que a terra se abria sob seus pés.
Foi ao encontro de sua preceptora e se sentou no canto da câmara ao
lado de Tonamitli, batendo nas costas de sua mão, assim que a amiga,
brincalhona, tentou roubar o copo dela.
— Não teremos muito tempo para conversar como gostaria e nem sei o
que farei. Tenho esperança de que vocês duas não se casarão com
nenhum nobre estrangeiro, não é tradicional que casem as soberanas
de Tolan com governantes estrangeiros, embora haja algumas exceções.
“Nunca pensei que conseguiria formar um círculo de poder dos Quatro
Ventos, e infelizmente Tlapali e Ixi’yah podem não ter a mesma sorte
que vocês e seus pais as casarem com nobres estrangeiros para
beneficiar as casas nobres. Para evitar isso, tenho em mente em pedir a
entrada de vocês na Ordem dos Naguais.”
— Não é difícil solicitar uma entrada para mim e Tonamitli, mas para
Tlapali e Ixi’yah é impossível.
— Eu acho que posso conseguir e se o fizer, qualquer casamento com
estrangeiros estará fora de cogitação. Infelizmente sou apenas uma
sacerdotisa e não tenho como interferir nesses tipos de decisões.
— E o que podemos fazer quanto a isso? – Perguntou Itzmítli.
— Os nobres estão chegando, vindo de todas as partes desde que Tolan
anunciou o ritual de iniciação dos Quatro Poderes subsequentes, como
aconselhou o oráculo, assim como vão convocar os sacerdotes que serão
seu séquito, dando desse modo início ao treinamento e desafio da
Ordem dos Naguais.
“Muitos desses governantes só estão aqui porque querem saber quais as
casas nobres que serão influentes sob o próximo ciclo e também para
participar do ritual do fogo novo que acontecerá em breve. Já estão
preparando o festejo para que os nobres possam fazer acordos
comerciais e também para exibirem seus filhos em idade de casar, e
assim como vocês, minhas outras duas meninas dançarão nessa festa.”
“Com tudo isso vou precisar muito que vocês se esforcem para me
encontrar amanhã a noite na câmara, pois preciso conversar com vocês
quatro. Com tantos governantes, sei que será uma tarefa muito difícil,
mas preciso muito saber o que determinarão hoje aqui com vocês e
também fazer-lhes uma oferta.”
— Que oferta? – Perguntou Tonamitli, curiosa.
— Explicarei tudo amanhã a noite. Posso contar com a presença de
vocês?
— Sacerdotisas, desculpe-me interromper, mas seus pais estão
convocando Itzmitli e Tonamitli para participar do conselho.
As duas se levantaram, mas antes de sair Tonamitli se voltou para Ixi
Kanil e disse:
— Não faço ideia do que meu pai me solicitará nos próximos dias com
tantos governantes e nobres, mas estarei lá.
— Itzmítli, e você? – Perguntou a preceptora, ansiosa.
— Estarei lá. – Respondeu e seguiu com a amiga para o edifício Leste.
Todo o edifício era uma câmara ampla com a entrada oculta por um
corredor que levava para os dois lados, dando assim acesso ao lugar,
que tão logo todos os membros da família adentraram, a porta foi
fechada.
As paredes Leste e Oeste eram vermelhas e contavam com afrescos que
assinalavam os pontos cardeais, onde no Leste havia uma imagem
imensa do quetzal e ao Oeste da coruja. As duas paredes, Norte e Sul,
respectivamente simulavam o céu noturno com uma cobertura de
pirita, que cintilavam sobre as chamas dos oito fogueiros acesos sobre
uma estátua.
Os fogueiros eram representações do deus velho do fogo, em sua
habitual posição curvada, sustentando o fogueiro côncavo em suas
costas, com as mãos sobre as pernas cruzadas, a face enrugada e a
boca desdentada, com a flor de quatro pétalas no centro de seu
diadema.
O lugar era sombrio com a fumaça dos incensários de cerâmica com a
face do deus Tláloc a fumegar e sentados sobre uma plataforma logo
adiante do altar na parede Leste que ainda mantinha o frescor e o
cheiro forte de sangue do ritual que fizeram há pouco, estavam
sentados os Quatro Poderes, com seus primogênitos sentados em
esteiras de palha aos seus pés, cada filho abaixo e diante do pai.
O velho Tutamek, o único Supremo anterior vivo do clã dos lobos,
sentava-se logo atrás dos Quatro Poderes, não usava nenhum toucado,
apenas um cocar com penas de Quetzal e todas as insígnias que
conquistara em sua época.
Um homem envelhecer daquela forma era algo muito raro e por isso o
Supremo Tutamek era considerado sagrado, tal como os outros dois
sacerdotes anciãos que o acompanhavam, cada um de um lado, sobre a
plataforma ainda mais elevada do que onde estavam os grandes
senhores de Tolan.
Sentaram-se todos num círculo que se abriu de cada lado dos jovens
senhores e sacerdotes que entoavam cantos, acompanhados de tambor
e flautas, melodia às vezes encobertas com o soar do shofar de concha
que eles entoavam invocando os seres sagrados para participarem,
enquanto outros sacerdotes dispunham em bandejas uma porção de
charutos e cachimbos, bem como pequenos potes que continham
tabaco.
Somente os mais velhos se serviram do tabaco, os mais jovens em
respeito sequer tocaram nas bandejas deixadas diante deles, onde
outros sacerdotes também depositaram copo e pequenos jarros de
pulque. Só poderiam apreciar o tabaco ou a bebida assim que os mais
velhos lhes dessem permissão.
Os cachimbos e charutos ardiam, enquanto o Sumo Sacerdote Pixoy
fazia uma longa prece de invocação dos antepassados das Quatro Casas
Sagradas, os fundadores de cada uma das quatro linhagens e clãs que
governavam Tolan.
Enquanto alguns mantinham seus olhos fechados e outros moviam
seus lábios em suas preces, Itzmítli observava o rosto abatido, mas
ainda assim apessoado de Ni Cháac, que retribuiu seu olhar com um
sorriso discreto.
— Os sagrados ancestrais estão presentes e todos os oráculos
consultados. Iztac Coatle e seu filho Ni Cháac retornaram vitoriosos, os
céus nos apontaram o caminho a seguir. Cada um conhece a medida de
seu tempo e as senhoras de Tolan são chamadas para cumprir com
seus deveres e exercer seu poder para a glória e poder de Tolan
Teotihuacan.
“Hoje esse conselho se reúne para declarar o início do processo
iniciatório dos jovens senhores e sucessores dinásticos dos Quatro
Tronos. Saúdem e desejem o bem para o Jovem Senhor Águia Cuauhtli
Tlileua, Jovem Senhor Lobo Itzmin Nitla, Jovem Senhor Serpente Ni
Cháac Sáas e o Jovem Senhor Jaguar Citlalo Yluicatli.”
Todos os presentes fizeram uma reverência com a cabeça, numa leve
inclinação do tórax e o Sumo Sacerdote continuou:
— Alguns filhas e filhos estão em tempo de casar e como seguimos a
tradição, as quatro casas foram reunidas em conselhos para determinar
as alianças de Tolan, assim como para assegurar o casamento de
nossos jovens senhores. É dever das jovens senhoras de Tolan
assegurar a linhagem de suas casas e de assegurar os interesses de
nossa terra mesmo que isso lhes custe a vida.
“Dos homens deverão obter matrimônio Ni Cháac Sáas e Mulísh Iztac
da sagrada casa serpente. Tototli família jaguar. Itzamná Iztac da
sagrada casa do jaguar e serpente. Kulim da sagrada casa do lobo. E
Cuauhtli Tlileua da sagrada casa da Águia.”
“Das mulheres deverão obter matrimônio Tsotsim da sagrada serpente.
Ixochiyo e Itzmitli do sagrado jaguar. Tonamitli Nitla, Yaná Nitla e
Kanistê do sagrado lobo. Kuyche Yteminaya e Kalta da sagrada casa da
águia. Está aberto o conselho.”
— É necessário dizer que por nossa necessidade em exportar alimentos
e outros insumos importantes, concluímos que quatro de nossas filhas
devam se casar e assegurar nossos interesses em Toluca,
Danipaguache, Tahín e Kaminaljuyú. Itzamná continuará na Serra das
Navalhas e deve casar-se com uma nobre de lá, para controlar nossa
mina de obsidiana junto com Amiatry Iztac, que já se encontra casado e
vivendo no lugar. E por fim temos a intenção de enviar Kulim para
Cholula. – Disse Citlali, o jaguar.
Ao ouvir aquilo Itzmítli suspirou angustiada, era óbvio que não
mandariam suas próprias filhas, preferindo as sobrinhas para cidades
distantes.
— Devo acrescentar que é de meu interesse casar meu segundo filho
Oxiliuhtli Yohualli com Kuyche Iteminaya.
Cerimonioso, o Supremo Jaguar se levantou e entregou uma pele de
jaguar assim como um colar com uma presa do mesmo animal para o
Supremo Águia Xicotli Yteminaya, como mandava a tradição de
presentear o pai da filha, que se levantou e agradecendo ao agrado,
disse, solene:
— É meu desejo conceder minha permissão para casar seu filho
Oxiliuhtli com minha Kuyche.
Aproveitando a ocasião, Cuauhtli se levantou foi para o lado do altar,
retornando com uma pele de veado que entregou para Amini, pai de
Itzmítli, dizendo:
— Meu senhor da casa do jaguar, peço sua permissão para casar com
sua filha Itzmítli.
Pensou que fosse desmaiar, mas o calor da mão de Tonamitli que se
sentara ao seu lado pareceu lhe dar ânimo ao menos para se lembrar de
respirar. Seus olhos caíram sobre seu tio, angustiada, e baixou a
cabeça assim que viu seu pai se levantando para pegar a pele.
Nesse ínterim Ni Cháac levantou-se, abrupto e fazendo todos
congelarem como se o tempo tivesse parado, exclamou:
— Eu sou contra a esse pedido! E não posso acreditar que meu irmão
de espírito Cuauhtli ousa despedaçar meu coração, mesmo sabendo que
essa era minha intenção.
O Supremo Serpente claramente não esperava por aquilo, encarava o
filho boquiaberto com o fogo da ira a crepitar em seus olhos.
— Não cabe ao filho pedir permissão para se casar e por isso reitero que
é meu desejo, como Supremo Senhor do Clã da Águia, casar meu
primogênito Cuauhtli com Itzmítli.
Houve uma comoção e os cochichos logo tomou proporções enormes e o
vozerio se interrompeu, repentino, assim que o Supremo Serpente se
levantou e disse:
— Também é de meu interesse casar meu primogênito Ni Cháac Sáas
com Itzmítli da casa Yohualli Jaguar.
Era óbvio que nem mesmo Ni Cháac esperava por aquilo, assim
assegurava o semblante de descrença e espanto com o qual fitou ao pai,
que acrescentou:
— Assim solicito uma pausa nesse conselho de modo que possa
presentear o senhor Amini da casa Yohualli a altura.
Tonamitli afundou o rosto no ombro de Itzmítli a fim de abafar o riso
que não conseguia segurar. O vozerio tomou conta do lugar e o pulque
foi imediatamente servido assim que o Supremo Serpente deixou a
câmara na companhia do filho.
— Eles sempre servem o pulque para os mais jovens nos melhores
momentos! – Disse Tototli, divertido, em direção a sua irmã.
— Não, isso não está acontecendo. – Ela murmurou, aflita. — Um
conflito assim entre os Quatro Poderes não é um bom presságio.
— Casamentos, eu odeio casamentos! – Exclamou o velho Tutamek,
nervoso. — Alguém me sirva pulque e cachimbo, porque estou velho
demais para ter paciência para isso.
— Isso não é certo! – Exclamou Matzin, a mãe de Cuauhtli. — Como é
que os Co Governantes poderão conduzir uma cidade se não podem
sequer ceder aos seus próprios caprichos.
— Nunca foi segredo para ninguém que meu filho estava interessado em
se casar com a sobrinha do grande jaguar. – Protestou Ameyalli, mãe de
Ni Cháak.
— Assim que não é segredo para ninguém que a sua casa não queria se
casar com nenhuma das nossas! – Falou a mãe águia, belicosa.
Algumas vozes se uniram a discussão concordando. Itzmítli observou ao
pai que fez uma reverência para os dois águias que ainda permaneciam
diante dele e caminhou em passos apressados de encontro ao seu tio,
que balançava a cabeça, desolado. Imediatamente lançou um olhar
feroz para a mãe.
Miztli entendendo o que a filha desejava, tal como uma advogada
aproximou lentamente do marido e do irmão e os três se afastaram da
discussão acalorada, escondendo-se num dos cantos da câmara.
Tonamitli, boa amiga que era, serviu várias doses de pulque para
Itzmítli que pensou que aquela pausa tinha a medida da eternidade e
quando pareceu que todos se acalmaram, o vozerio se ergueu
novamente, assim que Iztac Coatle, chegou na companhia de Ni Cháac,
trazendo com eles alguns cativos de guerra.
Sem grandes cerimônias, o pai serpente se colocou diante do pai da
moça e propondo solenemente um acordo para casá-la com seu
primogênito entregou os três cativos como presentes. O que gerou uma
balbúrdia ainda maior.
A pedido do velho Tutamek, os sacerdotes soaram as conchas e todos se
sentaram em perfeito silêncio, enquanto observavam, curiosos, ao velho
que na companhia dos outros dois ficou em pé no meio do círculo.
Muito irritado, ordenou:
— Amini, pegue os presentes de ambos os pretendentes.
Desconcertado, Amini se colocou a disposição dos dois Supremos,
Serpente e Águia, e agradecendo a gentileza, tomou a pele de veado e
ordenou aos três cativos que o acompanhasse. Deixou o lugar,
provavelmente para tirar os homens feridos e torturados do ambiente
familiar.
— É sempre a mesma coisa. Quando se inventa essa peripécia de juntar
todo mundo para casar sempre termina em confusão. Mas, esses olhos
velhos que os vérmes hão de comer nunca, em toda vida,
testemunharam um momento tão decadente como esse antes.
“Poderiam ao menos esperar que eu morresse para não ver o dia em que
os Supremos dessa casa se colocassem num conflito tão caprichoso e
medíocre. Guerreei, ordenei governos estrangeiros, fui preceptor de
príncipes e um juiz justo, nunca houve sequer um momento de minha
vida que dei aos meus desejos pessoais o poder de destruir a unidade.”
“Nunca pensei que nossos princípios espirituais seriam feridos por
aqueles a quem foi dado o poder de protegê-los. Talvez os anos nos
afrouxaram e por isso testemunhamos o momento em que devo repetir
o que vocês deviam saber desde o ventre de suas mães.”
“Sem a unidade Tolan perecerá. Devemos cada qual ter a liberdade
individual e, não obstante, devemos ser uma grande unidade. A vida de
cada um de nós depende da obediência aos princípios espirituais. Se o
clã não sobreviver, não sobreviverá o indivíduo e por isso o bem-estar
comum vem em primeiro lugar. E essa prerrogativa é o que nos move a
manter nosso estado teocrático e cooperativo.”
“Em Tolan existe apenas uma autoridade, suprema e divina, a união
dos nossos deuses, o grande espírito, nossos líderes são servidores e
trabalham para realizar a vontade do Sagrado, não governam, por isso
não há pedras e nem túmulos para governantes, pois não há
governantes, só servidores.”
“E com base em princípios tão simples ao ponto de se tornar fácil o
trabalho e propósito de cada um de vocês, não permito ao pai da moça
Amini e nem ao seu tio Supremo Jaguar solucionar esse conflito
descabido.”
Pigarreou e declarou, solene:
— Ni Cháac Sáas, jovem serpente, e Cuauhtli Yteminaya, jovem águia.
Os dois deverão escolher três jogadores e estabelecer o ritual sagrado do
jogo de pelota para que os deuses e seres divinos decidam qual dos dois
tomará por esposa Itzmítli da casa do Sagrado Jaguar como sua esposa.
Assim como ambos deverão purificar-se e realizar sacrifícios em prol de
apaziguar nossos ancestrais. E deverão fazer isso juntos, até que se
olhem e se tenham por irmãos, em total confiança e devoção.
“Terão 13 dias para realizar o ritual do jogo de pelota, assim como
deverão presentear a casa sagrada do jaguar com presentes e serviços a
fim de apaziguar os corações dos pais e mães dessa menina, que por
seus caprichos, ver-se-ão atados e suspensos de suas decisões pela
espera e obstáculos que os obrigam enfrentar durante esse período.”
Ele bateu seu bastão contra o chão quatro vezes e disse:
— Continuem com esse conselho.
— Seria imprudente de minha parte causar qualquer desconforto após a
advertência de nosso sábio sagrado, entretanto sinto-me triste por ver
que acreditaram em boatos e que olham para minha casa com desdém.
E como prova de que jamais anunciei que meus filhos não se casariam
com as outras Casas Sagradas de Tolan, entrego esse presente ao
Supremo Lobo e peço sua permissão para casar meu segundo filho
Mulísh Iztac com Tonamitli Nitla.
— Eu dou essa permissão à sua casa, meu amigo. – Disse Itzmin,
sorridente.
— Mulísh? – Perguntou Tonamitli, incrédula.
— Que o pulque nos console. – Cochichou Itzmítli em seu ouvido.
Continuaram com as permissões em meio as discussões e faces
espantadas. Tototle, seu irmão acabou por se arranjar com a irmã de
Tonamitli, Yaná, a qual deveria esperar por mais um ano solar para, por
fim, consumar o matrimônio.
— Gostaria de assegurar aos pais que com base no que acabamos de
discutir, deveremos avisar aos governantes aliados que se casarão
Kanistê com o governante de Toluca, homem mais velho, porém muito
honrado e valoroso. Tostisim com o príncipe de Danipaguache, Ixochiyo
com o príncipe de Kaminaljuyú e Kalta com o príncipe de Tahín.
Anunciou o Supremo Jaguar após a longa discussão calorosa sobre os
benefícios e tributos que seriam prestados desses senhores as casas e
se certificarem com cada qual seria mais benéfico manter a aliança
matrimonial.
Entre as quatro somente Kalta mantinha um semblante de
contentamento, Itzmítli não saberia dizer se ela já conhecia o tal
príncipe, mas julgou que mesmo ela se sentiria alegre se fosse morar
tão próximo ao mar e numa terra tão bonita como Tahín.
Os liberaram depois de outra longa discussão, mas somente os jovens
tensos e cansados e os outros que se sentiam inquietos com a tensão
gerada deixaram o lugar. Os outros pareciam contentes e continuaram
no lugar conversando sobre os preparativos para os festejos dos
casamentos.
Tonamitli repetia o nome de Mulísh sem parar, aturdida. Sequer
questionou quando fora arrastada por Itzmítli que procurava tanto por
mais pulque, quanto fugir de sua irmã que com olhos faiscantes a
procurava para despejar toda a sua raiva e frustração.
Se não fosse por sua situação que a consternava tanto quanto,
permitiria que ela lhe golpeasse com palavras ácidas, pois sabia não ser
fácil ter de se mudar para um lugar tão distante, onde seus pés jamais
pisaram, longe de tudo e de todos que conhecia. E ainda que estivesse
nas mãos dos deuses a decisão de seu destino, sabia que não deixaria
Tolan, nem seus amigos e tampouco sua família.
— Beba. – Ela disse, assim que empurrou a amiga para fora do pátio e
da visão das pessoas que se aglomeravam, curiosas em saber o que
acontecera.
— Mulísh Iztac? – Ela perguntou pela milésima vez.
— Vamos, não é tão ruim. Ele é um homem gentil e ninguém te enviou
para longe.
— Que ao menos fosse seu irmão. De onde seu pai tirou a ideia de casá-
lo com minha irmã?
— Se eu soubesse o que se passa na cabeça de meu pai minha vida
seria bem mais branda e teria te contado.
— Me espere aqui, estou tão nervosa que preciso vomitar. – Disse
Tonamitli, a deixando.
Ficou ali parada encostada na parede do edifício encarando o muro liso,
seus pensamentos fluíam tal como um vento tempestuoso a levantar
uma nuvem negra e cegante de poeira. Estava tão ansiosa que sequer
conseguia seguir uma linha de raciocínio, embora pensasse, não sabia
no que pensava.
Seus pés se umedeceram com o pulque que se derramou, assim que,
feito um louco, Ni Cháac a apertou contra a parede e pressionou os
lábios cálidos e ávidos contra sua boca. Tentou escapar de sua
investida, com medo de serem vistos, mas as mãos firmes seguraram
seu rosto.
Amoleceu sob o feitiço do hálito morno que soprava incessante sobre
seu semblante, assim que as línguas travaram uma batalha débil,
sentindo o toque duro do vime que emoldurava o toucado suntuoso
competindo com a sedosidade do cabelo liso que escorria sobre as
costas nua e tatuada.
— Eu não vou perder, não importa o que tenha que fazer, nem que
envie os mensageiros de Xibalbá para me trazer os melhores jogadores
de pelota, nem que tenha que te raptar e fugir com você para longe,
será minha esposa.
— Não fale besteiras. Não espezinhe os espíritos, não foi bom o que fez,
embora saiba que meu coração se alegrou muito com a possibilidade de
tê-lo como meu irmão e amante, mas sei que minha alegria também
espezinha os deuses e nossos ancestrais. – E dessa vez, ela invadiu a
cavidade quente e úmida, redesenhando o rosto apessoado e febril com
as pontas dos dedos.
Abriu as palmas sobre o peito musculoso e o empurrou para longe dela,
e ao que gemeu com o semblante afligido pela dor, ela perguntou:
— Está machucado?
Ele moveu a capa e mostrou o machucado em seu abdômen, dizendo:
— Está me causando dor e febre, mas ficarei bem.
A pele se abria em pequenas fendas perto do baço denotando que fora
golpeado por um macuahuitle, um tipo de espada de madeira em forma
de clava, onde obsidianas eram fixadas em ranhuras nas laterais. Havia
outros cortes superficiais espalhados por todo o corpo e o toque sutil
das mãos delicadas, incitou-o a apertá-la contra si uma vez mais.
— Não é bom que fique me beijando, é bem possível que venha nos
procurar tão logo derem por nossa falta.
— Senti sua falta. – Proferiu, ignorando-a. — E não me importo que nos
vejam.
— Não pode agir dessa maneira, Ni. Tolan deve ser sua prioridade, não
eu.
— Ele me prometeu que não pediria para se casar com você tão logo
protestei ao que me contou que o faria. E ainda assim tomou a frente,
sequer esperou que o pai dele fizesse a honra.
— Mas, não era do interesse de seu pai te casar comigo.
— Não, não era. Queria me casar com uma princesa estrangeira.
— O que você faz aqui? – Perguntou Tonamitli, fazendo-os saltar de
susto e se separarem prontamente. — Está louco? Já não basta ter
deixado todo mundo com os nervos a flor da pele?
Ni Cháac suspirou, agastado.
— Ela tem razão, meu sol. É melhor para todo mundo que não nos
vejam juntos por enquanto. – O polegar escorregou sobre os lábios
macios. — E é bom que repouse, está febril.
Beijou a boca daquela a quem daria o mundo e com um menear de
cabeça fez uma vênia polida para Tonamitli e se retirou.

Febre

O estômago revirava-se causando um enjoo angustiante, a visão turva


tentava se focar nas mulheres que em pé diante de uma mesa de
madeira ao lado de sua cama, pilavam ervas que enchiam o quarto com
o aroma que o nauseava.
Tal como um pássaro sobre o ninho, a mãe arqueou-se ao sentar na
cama ao seu lado, fazendo todos os seus pelos eriçarem sob o toque frio
da mão pequena em sua testa.
— Ainda está ardendo em febre.
Tentou segurar o braço que se ergueu levando consigo a manta de
algodão que o cobria, fazendo tremer, e com o outro repuxou o tecido
numa luta débil para afugentar tanto a mãe quanto o frio. Gemeu e
moveu-se ao toque firme que pressionava a ferida em seu tórax e
ergueu a cabeça em prol de examiná-la.
Estava purulenta e horrível, o inchaço de um tom avermelhado e
grotesco ao redor da ferida fazia-o crer que aquilo mais se assemelhava
a um vulcão em erupção do que um ferimento de guerra. E ainda que a
ardência o fez apertar os dentes, a pasta cremosa e aromática aliviou a
dor e o desconforto.
— O sacerdote acredita que esse ferimento vai te matar porque retirou
dos deuses os cativos que seriam dados por sacrifício para dar a uma
mulher ordinária.
— Ela é uma filha da casa do jaguar, não é uma mulher ordinária.
— Ainda é uma mulher, meu filho, não uma deusa. Os deuses sabem o
quanto tenho rezado enquanto o vejo gemendo e falando coisas sem
sentido sobre o poder da febre e dos nefastos senhores de Mictlán. Não
há quem queira buscar pela parte de sua alma que foi roubada.
Ni Cháac moveu os lábios para responder a mãe aflita, mas calou-se
assim que ouviu a ordem de seu pai que irrompera no ambiente na
companhia de seu irmão Mulísh.
— Saiam todos!
Havia súplica no olhar da mãe, mas Iztac Coatle a ignorou.
— Estou contente que o xamã me assegurou que você perdeu parte de
sua alma e que ninguém poderá resgatá-la. Que haja de definhar e
assim ofertar seu trono e sua esteira ao seu irmão Mulísh quando as
portas do Mictlán se abrirem para você.
“Deu-me as costas no momento em que me desobedeceu por capricho,
fui um bom pai, disse-lhe que o único motivo pelo qual não permitiria
esse casamento era porque não queria mais nenhum jaguar em nossa
casa. Em toda minha vida, Ni Cháac, eu dei o meu melhor para você e
essa foi a minha perdição, porque não fiz de você um homem forte e
digno, mas um mimado egoísta.”
“Tua afronta não é malvista apenas por mim, mas por todos os deuses e
guardiões de nossa terra e não mais importa seu mérito nessa última
batalha porque seus cativos foram entregues não para a honra dos
deuses, mas para uma mulher. E por isso não será condecorado,
porque não o fez para o bem comum, mas para seu próprio proveito.”
“Eu te dei os melhores guerreiros e os homens mais capacitados para te
servirem e só não tomo sua insígnia de governante porque essa foram
os deuses que lhe ofertaram. Teus guerreiros agora são de seu irmão e
também seus servidores. Se quiser um novo exército recrute seus
homens por ti mesmo e servidores serão aqueles que só te servirão por
desejar o poder e seus benefícios e não por te amar.”
“E que os ventos de Mictlán soprem sobre ti para que não tenha forças
para suportar a purificação e o sacrifício, e assim morra para dar ao seu
irmão a insígnia que ainda lhe pertence e que só a mão da morte há de
retirar de ti.”
— Não o amaldiçoe dessa forma, meu marido. – Implorou a mãe,
chorosa.
— Itzmítli é sua ruína, Ni Cháac, e se arrependerá amargamente por
suas escolhas.
Não ousou falar e o olhar taciturno seguiu ao pai que deixou o lugar
com sua mãe em seu encalço chorando e implorando que
reconsiderasse. Os olhos escorregaram pela parede insípida e
repousaram sobre o irmão que se sentou sobre o baú de madeira.
— Me amaldiçoará também? – Perguntou, indiferente.
— Eu nunca faria isso. Meu coração não carrega a fúria de nosso pai.
Está pesado, mas por preocupação. Não vou te abandonar.
— Não tenha pena de mim. – Disse ao se esticar novamente sobre a
cama, fatigado. — Não é sábio de sua parte me ajudar e nem me
defender. Não estou com medo de ficar sozinho e nem de morrer. Talvez
seja meu destino escolher meus próprios homens ou morrer por não
suportar o sacrifício.
— E valeu a pena? Itzmítli vale tudo isso?
— Se eu sobreviver a esse ferimento, ao sacrifício e vencer o jogo de
pelota, não acreditaria você também que este é o preço que os deuses
estão pedindo pela companhia dela?
— Ela faria o mesmo por você? – Desafiou Mulísh.
— Eu acredito nela. Acredito no que sinto por ela. Acredito em meus
sonhos e nas mensagens dos Nahuales e de nossos ancestrais. Se eu
sobreviver, construirei o templo mais poderoso e belo para Quetzalcoatl.
— Sem seus guerreiros, servidores e prestígio?
— Por que haveria de me preocupar com homens quando terei o apoio
de um deus?
Mulísh riu e disse:
— Ou você é um louco ou um sábio.
— Meu preceptor diria que a loucura é a matéria-prima do sábio.
— Não tem mais um preceptor. – A voz do irmão mais novo era
embargada. — Ele foi oferecido em sacrifício assim que nosso pai disse
que fracassou em te educar e que não era digno de seu cargo de
sacerdote e mentor.
O silêncio que se seguiu era tão pesado e arrastado quanto o suspiro
longo e doloroso de Ni Cháac. Era penoso lidar com o sofrimento que
sua ação estava impondo sobre aqueles a quem mais amava, sua mãe,
seu preceptor, o próprio Mulísh.
E quando a dor é tão intensa no peito de um homem, os pensamentos
são esmagadores e taciturnos, e temia mais aquele pessimismo do que
as provas que se colocaram em seu caminho. Julgar-se culpado e
fracassado haveria de enfraquecê-lo bem mais do que a maldição
lançada por seu próprio pai.
— Com quem haveria de me aconselhar? É possível que os sacerdotes
me neguem palavras de sabedoria. E parecer fraco e desesperado não
seria nem de longe a postura de um regente dos Quatro Poderes.
— Eu estou longe de ser um sábio, Ni Cháac, sequer sei como
responder sua pergunta. Talvez sua amada tenha palavras sábias para
te dar, é uma escriba e sacerdotisa, os sacerdotes e guerreiros
costumam falar bem dela e de sua casa.
— Ela ficaria muito preocupada, não quero dividir esse peso com ela.
— Ela é da casa do jaguar e é de conhecimento de todos que o tio não
consegue dizer “não” a ela.
— Nosso pai me mataria ele mesmo se recorresse à proteção da Sagrada
Casa Jaguar.
— Será sua casa também se se casar com ela.
— Ou a casa de Cuauhtli se ele vencer no jogo de pelota. Não é sensato
de todo modo. – Acomodou-se e encolheu sobre a cama, pressionado
pela dor e a indisposição febril e acrescentou: — É melhor que eu
durma, quem sabe algum guardião venha me aconselhar em meus
sonhos.
Mulísh angustiado deixou o palácio e tal qual um desorientado parou
no meio da Calçada dos Mortos, sob o forte sol e com o vento quente e
impiedoso a arrastar a poeira e produzir coceira nos olhos. A estação
seca logo haveria de findar e como um animal que no momento da
morte é possuído por uma força descomunal, o auge do poder dela dava
cegueira aos homens e escassez aos pratos.
Observou aos guardas que gesticulavam e apontavam as armas que
emitiam um brilho negro e ameaçador da obsidiana afiada, sobre um
grupo de peregrinos que sem ter onde ficar, sentaram-se na alameda e
criavam pequenos bonecos de terra, modelando-os com suas
ferramentas gastas e impróprias, feitas de ossos humanos.
Era uma cena comum, muitos peregrinos vinham de cidades tão
distantes que nem seus olhos e nem sua imaginação captaram a
existência, movidos pela fé, caminhavam por dias ou meses, sem
qualquer ajuda senão a esperança de que em Tolan seus desejos de
cura, prosperidade e proteção seriam atendidos.
Porém, o centro da cidade com suas duas enormes pirâmides e edifícios
suntuosos, cercados pelos complexos residenciais e os bairros mais
abastados, embora um ponto quase turístico, não era um lugar onde as
pessoas poderiam mendigar e os guardas, bem treinados, controlavam a
entrada e saída dos passantes.
Observou ao homem, tal como seu irmão, apaixonado e doente, sem
qualquer proteção, ou ajuda, ou um caminho plano e pavimentado para
facilitar seus passos. Tentando modelar ao próprio futuro com barro e
osso, a fim de em algum momento por sorte ou compaixão, alguém
tomar seu boneco horroroso e lhe dar em troca um pedaço de pão.
Ni Cháac era orgulhoso demais para aceitar sua ajuda, se é que poderia
ajudá-lo. De que adiantava passar diante do homem a produzir seu
boneco de barro, compadecer-se de sua fome e não ter nada para
oferecer, sequer um grão de milho.
Mas, ele tinha. Por certo não tinha comida, mas tinha discos compactos
de pedra verde que eram usadas como moedas de troca, assim como
outras de cerâmica que valiam menos, mas que poderiam saciar a fome.
O problema era que o homem faminto com sua família não saberia
como usá-las e desconhecia o sistema de troca entre os bairros de
Tolan.
Avançou sobre o infeliz que tentava se esquivar dos pontapés dos
guardas e assim que afastou as sentinelas, deixou seus olhos caírem
sobre a menininha que chorava assustada no colo da mãe, assim como
para o irmãozinho que se agarrava a roupa surrada dela. Retirou seu
punhal de obsidiana do cinto e entregou ao homem, dizendo:
— Não é permitido que mendigue aqui e nem que venda qualquer
mercadoria senão nos dias em que funciona o mercado. Mas, se for
para a periferia, é possível que troquem facilmente alimento e abrigo por
esse punhal.
— Muito obrigado, senhor. – Disse o homem, ajoelhando-se diante dele
e beijando-lhe a mão e não tardou até se ver rodeado por toda a família
o agradecendo.
— Ao invés de me agradecer, dê-me em troca um conselho.
— Como haveria um miserável como eu aconselhar um nobre sacerdote
como o senhor? – Perguntou o homem, incrédulo.
— Se seu irmão estivesse muito doente e fraco e se soubesse que
houvesse só uma pessoa que o amasse tanto ao ponto de fazer qualquer
coisa por ele, mesmo que ele tivesse implorado para não pedir qualquer
favor a essa pessoa. O senhor pediria?
— Essa pessoa é uma mulher? – Perguntou o homem, encabulado.
— Sim, é uma mulher.
— É mãe dele?
— Não.
— Se essa mulher ama tanto seu irmão quanto você afirma, eu pediria
sim a ajuda dela se fosse meu irmão. O amor do homem é capaz de lhe
dar a força e a coragem para avançar em e estabelecer residência em
terras estranhas, caçar em noites escuras, arriscar a própria vida. Mas,
o amor de uma mulher dá a ela a força para defender sua casa e seu
ninho, correr com crianças e velhos nas costas, ter noite insones para
se dedicar aqueles que ama e se importa.
“Nada é capaz de demover uma mulher quando ela se prontifica a
proteger. Se não tiver um abrigo, ela erguerá um, se não tiver comida
colherá e semeará, se não tiver fogo, andará o quanto for necessário até
encontrar uma casa que lhe dê algum, tirará da própria boca para dar o
que comer aqueles que ama, aos seus filhos. Eu não teria a menor
dúvida em pedir para essa mulher cuidar do irmão doente.” –
Respondeu a mulher, convicta.
— Obrigado, senhora.
Não fazia ideia qual era a rotina de Itzmítli, sabia que ela ficava com os
profetas e intérpretes do céu, bem como com os astrônomos,
matemáticos e os escribas, especialmente pela manhã, poderia procurar
por ela na casa do jaguar, mas isso seria muito insensato, chegaria aos
ouvidos de seu pai e sua situação se tornaria tão ou mais miserável do
que de seu irmão.
Sua noiva, entretanto, poderia ajudá-lo. E foi tomado pela timidez a
medida em que caminhava para a região sudoeste da cidade em direção
a casa do lobo, convencendo-se mentalmente de que eram oficialmente
noivos e ninguém se oporia que conversassem ou que passeassem
juntos pela cidade.
Sentiu vontade de correr tão logo anunciou às sentinelas que
guardavam a entrada do palácio que era seu desejo falar com sua noiva
Tonamitli. Os dedos das mãos se apertavam uns contra os outros e os
pés inquietos tamborilavam levantando a poeira.
Ela não era uma mulher alta, mas assim que atravessou o portão se
tornou imensa, abanava-se com uma folha de bananeira jogando para
ele um aroma floral embriagante. Era tão ou mais bonita do que as
pedras preciosas que a enfeitavam, sequer necessitava delas.
— O que você faz aqui? – Perguntou, aborrecida.
— Não era minha intenção te incomodar, minha noiva, mas não há
mais ninguém além de você para me ajudar.
— E por que é que precisaria de minha ajuda?
— É que...
Titubeou.
— É que... enfim, meu irmão...
— Fala logo, homem. O que tem seu irmão?
— Eu preciso que me leve até Itzmítli.
— Se é para levar recados de seu irmão para ela melhor mudar de ideia.
— Por quê? – Perguntou, inseguro.
— Como assim por quê? Não é possível que não saiba das
consequências dos atos impensados de Ni Cháac.
— Meu irmão morrerá se eu não o ajudar.
Curiosa, colocou a mão no ombro dele e o empurrou de modo a afastá-
lo dos guardas curiosos, que ela bem sabia que fingiam desinteresse,
mas que bem estava com as orelhas alertas.
— Como assim morrer? – Ela perguntou quase sussurrando.
— Eu não tenho muito tempo, noiva. Precisa me levar até ela. Te conto
no meio do caminho.
— A essa hora não a encontraremos em casa, isso é certo, acredito que
podemos encontrá-la no Bairro dos Comerciantes, ela tem amizade com
os maias que vivem lá.
Era uma caminhada longa, mas seguir pela margem do rio longe da
aglomeração dos peregrinos, somente com os habitantes locais sobre as
margens, ocupados demais para notá-los, dava a Mulísh certa sensação
de segurança e segredo.
Tonamitli agarrada aos detalhes da história de seu irmão, lhe enfastiava
com a quantidade enorme de perguntas que fazia, questionava a mesma
coisa uma e outra vez, como um juiz a fim de fazer justiça procura por
falhas ou sinais de mentira. E sentiu grande alívio quando chegaram no
Bairro dos Comerciantes, pois que a atenção da noiva se voltou aos
seus conhecidos do lugar, a fim de localizar a amiga.
Com desenvoltura e sem nenhum constrangimento, a moça abordou as
pessoas da casa onde indicaram que Itzmítli possivelmente estaria e
sem qualquer pudor invadiu o lugar atrás do servidor que pedira que
esperassem do lado de fora.
Itzmítli estava sentada numa almofada, curvada sobre uma mesa de
pedra, onde inscrevia alguma coisa no idioma maia numa lápide com a
ajuda de um cinzel com a ponta de jade, enquanto o homem atento ao
seu trabalho, guiava sua mão para controlar a pressão exercida.
— Seu pai sabe que passa a tarde com esse homem escrevendo
símbolos esquisitos em pedra? – Perguntou Mulísh, curvando-se para
olhar melhor o trabalho que ela fazia.
— Hún Naab é um dos meus preceptores. – Ela respondeu, enfática. —
É um grande mestre e sacerdote, trate-o com respeito.
O mestre maia comentou alguma coisa com a moça, que nenhum dos
dois compreenderam e ficaram por um momento falando naquele
idioma. O homem sacudiu a cabeça, consentindo com algo e ela se
levantou, empurrando-os para fora e perguntou:
— O que é que fazem aqui?
— Se meu irmão souber que vim te procurar ele me matará e se meu
pai sonhar que estive aqui terei o mesmo fim. Não pode dizer a
ninguém, nem de sua própria casa o que vou te dizer.
— O que aconteceu com Ni? – Perguntou, preocupada e toda a altivez se
desvaneceu no semblante aflito.
— O xamã disse que ele perdeu a alma e que o ferimento dele o levará a
morte. Ontem deixou a festa antes mesmo que começasse porque ficou
muito febril e indisposto e agora mal consegue se levantar da cama por
causa da febre. Todos estão falando que ele está sendo punido pelos
deuses e pelos ancestrais e que não vai suportar o ritual de purificação,
está fraco demais.
“Ele está certo de que vai conseguir se sacrificar e fazer tudo o que tem
que fazer. E eu não tive coragem de dizer-lhe que meu pai selecionou os
sacerdotes para assegurar que ele fracasse. Doente e sem qualquer
apoio, meu irmão não terá forças para escolher seus jogadores e meu
pai não tem a menor intenção de que ele vença esse jogo.”
“Ni Cháac está arrasado, meu pai retirou dele o exército e seus
servidores mais devotos e leais, assim como seu preceptor foi
sacrificado hoje de manhã por ter falhado em educá-lo. Meu irmão não
nos diz coisa alguma, e tendo meu pai como uma grande ameaça por
causa de seu furor, temo que ele e Cuauhtli não se entendam.”
“Não, eu não quero pensar sobre isso, desfaria toda a fé que tenho nos
Quatro Poderes, devem viver em harmonia e total confiança, mas e se
Cuauhtli quiser se vingar de meu irmão ou puni-lo de alguma forma
como vem fazendo meu pai? Afinal, meu irmão convocou o caos e temos
todos de pacificar os deuses para que não sintamos o peso de sua
indolência.”
“Meu pai não comentaria nada do que se passa em nossa casa, nunca
falaria que ele amaldiçoou meu irmão hoje e desejou sua morte, que foi
o que realmente me deixou apavorado, apareceu com algumas ideias
malucas sobre meu irmão morrer para que eu fique em seu lugar e não
quero ser Co Governante de Tolan, eu admiro meu irmão e desejo servi-
lo, não tenho personalidade e nem sou sábio para ter uma posição
dessa.”
— Ele ama muito o irmão. – Afirmou Tonamitli, convicta. — Não acho
que esteja mentindo e nem que esteja te colocando em alguma cilada,
Itz.
— Eu sou um ótimo guerreiro e caçador, mas não sou um bom
feiticeiro. E eu não faço ideia de como poderia ajudar ao meu irmão,
mas ele está sozinho, Itzmítli. Não quero acreditar que meu pai roubou
parte da alma dele, nem que colocará sacerdotes para prejudicar meu
irmão ou forçá-lo demais, mas não acho que estava brincando ou
soltando palavras vazias ao vento quando disse sobre isso. Sua ferida
está muito infeccionada e nem sei se ele conseguirá ficar acordado para
passar pelo ritual de purificação.
“E se for mesmo verdade? E se os deuses quiserem destruí-lo pela
afronta dele? Você conhece os calendários, é uma sacerdotisa e escriba,
deve ser sábia e encontrar um modo de ajudar meu irmão, ou ao menos
evitar que morra.”
A moça depositou o olhar sobre as pessoas que perambulavam pelo
lugar, algumas trabalhando, enquanto outras deixavam oferendas no
altar central do pátio.
— Não vai falar nada? – Perguntou Mulísh, afoito.
— Ela é assim mesmo. Demora até digerir a informação, mas tenha
paciência que uma hora ela fala.
— Quem é o curandeiro e xamã que está cuidando dele? Seria muito
mais fácil se eu conseguisse vê-lo, mas além de saber que talvez seus
pais não me recebam, seu pai é um homem muito sábio e desconfiaria
de minha visita, não sou de frequentar a sua casa.
— Tepati é o xamã.
— Tepati da casa da serpente?
— E você conhece outro? – Perguntou Tonamitli, impaciente.
— Claro que conheço.
— Você é curandeira? – Perguntou o moço, aflito.
— Eu nasci no dia da obsidiana, não me dedico ao curandeirismo, mas
tive de aprender. O curandeiro é tal qual a obsidiana. Ele sabe como
curar, mas também sabe como adoecer e matar. Nem todos são bons
xamãs, alguns tem um bom conhecimento de ervas, dos venenos e das
sangrias, mas não tem a capacidade de buscar uma alma que foi
perdida ou que se fragmentou. Temo que sem estar perto de seu irmão e
sem a ajuda daqueles que o amam, seria muito difícil convencer a alma
dele a retornar.
— Talvez se nós quatro nos juntarmos você consiga trazer a alma dele
de volta sem que esteja perto dele. – Afirmou Tonamitli, otimista.
— Preciso mais do que simplesmente curar seu espírito. Preciso
protegê-lo. – Aflita caminhou de um lado para o outro e exclamou,
repentina: —Ó céus, como meu peito se aperta de angústia!
Após um momento, absorta e inquieta, voltou-se para Mulísh e disse:
— Volte para a sua casa e pegue uma amostra dos remédios que estão
dando ao seu irmão e entregue a Tonamitli, não terá muito tempo
porque nos encontraremos assim que anoitecer. Preciso saber o que
esse curandeiro está dando para ele.
— E quanto aos guerreiros e servidores dele, o que fará?
— Nada. Se essa é a punição de seu pai, por certo não o quis punir. Ni
Cháac pode ter todos os defeitos desse mundo, mas é um excelente
guerreiro e líder, tem carisma e sabe como incitar a coragem e a flama
no coração dos homens. Ele nunca precisou e nem precisará de seu pai
para ter os melhores guerreiros de Tolan sob seu comando. Para isso ele
só precisa estar forte e são. Seu irmão é um homem sábio apesar de sua
juventude, Mulísh, não o subestime.
— Mas, ele está fraco e doente, Itzmítli.
— Além de não ser uma boa curandeira por não exercer esse ofício com
a dedicação necessária, também não posso me aproximar dele. Mas,
estou certa de que posso ser uma feiticeira impecável com a ajuda de
minhas irmãs e já sei como vou protegê-lo. Meu tio me ajudará.
— Não pode dizer nada ao seu tio! – Exclamou, alarmado.
— Não direi nada sobre o que me disse, fique tranquilo. Sei como lidar
com meu tio e me lembro bem das palavras do velho sábio. Sua casa
como a de Cuauhtli deve servir minha casa. E por isso posso convencer
meu tio de exigir que fiquem no templo e não em suas casas, sob os
cuidados de sacerdotes da confiança de meu tio. Assim posso proteger
seu irmão por 13 dias no caso desse curandeiro estiver a pedido de seu
pai mantendo-o fraco e doente.
— Como assim mantendo-o fraco e doente? – Perguntou Mulísh,
confuso.
— Se seu pai não quer que nos casemos, embora pareça loucura tal
desejo quando ele mesmo poderia ter colocado um fim em toda essa
história repreendendo ao seu irmão ao invés de forçá-lo a competir com
Cuauhtli, como o fez. O que é muito estranho por sinal...
— Não, amiga, não comece a deliberar sobre os motivos do Supremo
Serpente. – Interveio Tonamitli. — Termine a parte do curandeiro
primeiro.
— Gente, mas não tem nenhum segredo nisso, um bom conhecimento
de ervas e cura e qualquer homem é capaz de manter uma pessoa
doente sem matá-la. Um remédio é também um veneno, o segredo está
na dose ou no que é ministrado.
— E tem certeza de que pode manter meu irmão afastado desses
curandeiros?
— Tenho. Já até sei o que dizer para meu tio.
— E o que dirá?
— Não te convém saber, Mulísh. Mas, apresse-se, logo o sol se deitará e
Tonamitli precisará me trazer as amostras dos remédios de seu irmão.
Pegue tudo, pomadas, unguentos, chás, folhas, plantas, tudo o que
estiver na mesa de cura dele, traga-me uma pequena porção de cada
coisa.

Passado
As nuvens rolavam pelo céu encobrindo algumas estrelas, embora não
fossem uma ameaça de chuva, era possível que não visse ao grande pai
nascer ao Leste pela manhã. A cidade com seus edifícios se estendia no
amplo vale, enegrecida pelo manto negro com pontinhos luminosos dos
fogos que se acendiam nas casas, tal como o corpo de um jaguar.
Suas meninas estavam atrasadas, mas Ixi Kanil sabia que elas não
falhariam com ela, provável que estiveram presas às suas tarefas que
aumentaram consideravelmente desde que os Quatro Supremos
Senhores decidiram em conselho organizar o séquito que apoiariam aos
seus filhos quando a estes chegasse o tempo de governar a poderosa
Tolan.
Mesmo ela encontrara dificuldade para chegar naquele túnel e não por
causa da grande quantidade de parafernálias rituais que tivera que
trazer consigo, mas porque tal assunto suscitou grande comoção entre
os nobres tanto de Tolan, quanto de outras terras. Inquietava lhe
pensar em como deveria estar a cabeça de sua aluna Itzmítli e era bem
possível que Tonamitli estivesse deprimida por noivar com um homem
tão tímido como Mulish Iztac.
A cidade estava muito movimentada, além dos recorrentes peregrinos
que iam e vinham de todas as partes de Anahuác, também os nobres de
cidades aliadas e dominadas, interessados em reafirmar alianças e
acordos, chegavam aos montes acompanhados de seus vassalos e
também de suas filhas e filhos, na esperança de matrimônios
significativos.
Embora não necessitasse de uma época específica para estabelecer tais
alianças, observar quais as casas influentes de Tolan que apoiariam os
próximos jovens Co Governantes era de suma importância para o futuro
de muitas cidades e dos benefícios que poderiam ser obtidos por suas
proles. Saber o que ocorria em Tolan era essencial para a vitalidade da
maioria das cidades de Anahuác.
Mesmo em meio aos problemas que vinham causando as duas cidades
vizinhas de Cucuilco e Tlanlancaleca, as quais muito com base na
rivalidade de séculos que mantinham com Tolan, também tinham
grandes interesses políticos, e muitos acreditavam que eram elas as
mandantes em obstruir as rotas comerciais e organizar ataques e
roubos a mercadores. O que vinha produzindo noites insones e dores de
cabeças para os governantes, além de grandes problemas consequentes
do mal abastecimento da cidade.
O povo estava com fome, os mercadores e nobres estavam sofrendo
perdas irreparáveis, os poderosos guerreiros tolanos assim como os
governantes perdendo a credibilidade. A cidade estava inquieta e todo o
boato da afronta de Ni Cháac e Cuauhtli contra os Nahuales e
guardiões, era outro problema que tentavam esconder dos olhos dos
governantes e aliados estrangeiros.
Estavam trabalhando duro nas propagandas políticas e os humores
entre os sacerdotes criava uma esfera de tensão muito difícil de
manejar. A pressão sobre os Supremos Águia e Serpente era sentida por
todos, até mesmo por ela que teve que trabalhar bem mais que o dobro,
aos sacerdotes do templo cabiam realizar os rituais, convencer o povo
de que tudo estava sob controle e que tudo ficaria bem. Esperava ao
menos que a estação chuvosa não tardasse naquele ano.
E era até irônico que com tantos problemas para serem resolvidos e no
quanto toda a agitação e preocupação que os jovens supremos estavam
gerando, o aumento de trabalho e seu esforço em manter a crença de
que Tolan era um lugar de abundância e a morada dos deuses celestiais
que a preocupavam. Eram as alianças matrimoniais que a aborreciam,
bem como os clérigos que cercariam os herdeiros poderosos o que mais
a angustiava. O destino de Tlapali e Ixi’yah tinha que ser resolvido
naquela noite.
Podia confiar sua própria alma e vida nas mãos daquelas que chamava
de filhas, embora não saíram de seu ventre e não as ter parido ela
mesma consistia numa problemática, pois que não tinha controle sobre
as decisões de seus pais sobre matrimônios que poderiam arrastar suas
melhores discípulas para terras longínquas sem poder levar a cabo seu
plano.
Contudo, tais pensamentos a abandonaram por um instante assim que
as quatro tochas que vinham ao longe anunciaram com seu brilho a
aproximação de suas favoritas e balançando sua própria chama de um
lado para o outro sinalizou a cova que usaria para sua magia naquela
noite.
Não demorou até ver-se rodeada por suas meninas que embora
demonstrassem o cansaço sobre os rostos iluminados pela luz rubra de
seus archotes, ainda a acolhiam com um sorriso e disposição que sabia
retirar da impecabilidade de seus espíritos. Dera tudo o que tinha para
elas e embora a mais velha das quatro tivesse apenas 17 anos, eram
feiticeiras excepcionais e sua única esperança.
As liderou túnel adentro. Fora feito há muito tempo quando os homens
escavaram o lugar para retirar tezontle, basalto abundantemente usado
nas construções da cidade e atualmente o túnel continha uma câmara
ampla no subsolo que muitos usavam para fins rituais.
Enquanto caminhava um pouco curvada sobre o túnel arredondado
com suas paredes avermelhadas pela luminosidade das tochas sobre a
terracota massiva e pesada, num zigue-zague cansativo e que as
obrigava a parar para retirar pedras que obstruíam a passagem, foi com
alívio que recebeu o acolhimento da ampla câmara subterrânea.
— Alguém as viu ao deixarem a cidade? – Perguntou a mestra.
— Sou filha de Tlapaloctli, Senhora. É impossível deixar Tolan sem ser
vista. – Disse Taplali, divertida.
— É óbvio que aqueles feiticeiros velhos estão bem cientes que estou
aqui, se há algo que aqueles velhotes têm nesse mundo são aliados,
mas não queria que fôssemos seguidas e nem termos o desprazer de
sermos interrompidas essa madrugada. – Disse Ixi Kanil, que sorriu
com o canto da boca ao notar que suas meninas se juntavam ao centro
da câmara, empilhando as lenhas que trouxeram para acender a
fogueira.
— Ninguém nos seguiu. – Afirmou Tonamitli, retirando algumas
cabaças da larga bolsa de pano que trouxera consigo.
— Chegou uma grande comitiva vinda do Leste agora a pouco, não acho
que alguém vai se importar se sumimos ou não. Estão ocupados demais
com os nobres estrangeiros. – Disse Tlapali, jogando-se ao chão e
acrescentou: — Estou exausta.
Ixi Kanil abaixou-se cobrindo a cabeça assim que os morcegos
incomodados com a claridade e a fumaça voaram cegamente pela
câmara, seguindo pelo túnel escuro a fim de se livrarem do desconforto.
Organizou suas cabaças e pequenas bolsas de pano e observou Itzmítli
por um momento.
A moça estava ajoelhada diante de uma plataforma baixa, onde
oferendas foram deixadas em cerâmicas finamente pintadas diante de
uma pilha de crânios humanos que se misturavam a ossos de aves e
cestos de vime onde por certo haveria de encontrar ossos de serpentes
forrados por palhas e toda a sorte de ervas secas, sementes e grãos.
— O que há com o altar? – Perguntou a mentora, curiosa.
— Nada. – Respondeu a moça. — Só estou preocupada demais com Ni
Cháac. Queria falar com meu tio antes de vir para cá, mas sequer
sabem onde ele está. E temo que com tantos homens ilustres chegando
de todas as partes o tempo todo, não consiga falar com ele.
— Ela quer que nos unamos para buscar pela alma de Ni Cháac.
Acredita que alguém possa a ter roubado. – Afirmou Ixi’yah.
— Ni Cháac é um feiticeiro excelente, é muito improvável que alguém
teria tanto poder para roubar a alma dele. – Afirmou Ixi Kanil.
— Há muitos feiticeiros melhores do que ele, Ni ainda é jovem e eu sou
7 anos mais jovem do que ele. Como uma feiticeira como eu poderia
resgatar sua alma?
— Isso não é assunto para você.
— Sim é, Ixi Kanil. É um assunto para nós todas. – Disse Tonamitli e
em seguida contou a mestra o que Mulísh lhes pedira.
— Isso não tem o menor cabimento. – Disse a mais velha. — Iztac
Coatle ama seu filho mais do que tudo nesse mundo, nunca roubaria
sua alma ou o amaldiçoaria dessa forma. E mesmo se isso fosse
verdade, nenhuma de vocês teriam poder suficiente para lidar com
esses homens, são naguais poderosos e experientes. Não posso permitir
que se unam para esse propósito.
— Então o que sugere? Que eu invada o palácio da serpente e rapte Ni
Cháac até que melhore? – Perguntou Itzmítli, exasperada.
— Você não deve ser tão egoísta quanto seu amado e colocar suas irmãs
em risco por causa de sua paixonite. A magia não é brincadeira e se
ouvirem o que tenho para dizer compreenderão por que não deixarei
que se unam para algo como isso.
“O que temos que ter em mente é que não podemos permitir que Tlapali
e Ixi’yah se casem com nobres estrangeiros. Infelizmente não posso
ajudá-las no que concerne a alianças, gostaria muito de poder opinar
em tais assuntos e controlar o destino de vocês, e embora sejam seus
pais que determinarão o futuro de vocês, podemos tentar ao menos que
seus casamentos as obriguem a permanecer em Tolan.
Disse Ixi Kanil que ao se sentar tomou uma bolsa de couro repleta de
cogumelos, recitou uma prece sobre eles e após levar alguns à boca,
deu a bolsa para Ixi’yah que retirou alguns e comeu, repassando para
as outras.
— Sabe que eu as tenho como minhas filhas, que desde que foram
entregues aos meus cuidados, tudo fiz para que se tornassem
sacerdotisas excepcionais, para que pudessem hoje exercer o sacerdócio
tal como destinado pelos sacerdotes e calendário. Vocês são excelentes
feiticeiras e por isso estão aqui. Dentre todas, eu as escolhi a dedo.
Entretanto, há algo que precisam entender.
Entregou a cabaça de pulque para Ixi’yah que o consagrou e em seguida
encheu os cálices de cerâmica que deixara ao lado de Ixi Kanil e foi
entregando para cada uma delas. Tão logo agarraram aos copos,
entoaram um canto longo em uníssono e assim que terminaram deu-se
início a primeira rodada de pulque.
— Toda a hierarquia sacerdotal é baseada na concepção da criação do
homem. Embora conheçam bem como se deu todo o processo de
criação, há algo que reservamos apenas para os altos sacerdotes. Algo
que é do conhecimento dos Quatro Poderes e de alguns poucos
sacerdotes que fazem parte do conselho de nossos governantes.
“Todas vocês são nobres e estão acostumadas com a linguagem
chamada Suyua Tan, uma forma de transmitir mensagens ocultas por
meio de jogos de palavras. Com a história acontece a mesma coisa.
Estamos acostumadas com dois conceitos, os dos homens feitos de
lodo, madeira e milho, como a história dos cinco sóis. E ambos dizem
sobre a mesma coisa. Entretanto, acostumamo-nos a ouvir que os
primeiros homens criados foram destruídos, outros transformados em
animais, contudo essa não é bem a verdade.”
— E qual é a verdade? – Perguntou Tonamitli, interessada.
— Se observarem bem verão que esses primeiros homens existem e
estão ao nosso redor. Falamos sobre o homem que foi criado com lodo,
eram moles, fracos e se desmanchavam, falavam, mas não tinham
entendimento. Acredito que todas vocês já encontraram com pessoas
assim num momento ou outro, embora sejam mais raros.
“Então, os deuses criaram os homens de madeira e esses, minhas
crianças, estão por todas as partes. É dito que quando os deuses
criaram os homens de madeira, se multiplicaram, tiveram filhos, mas
não tinham alma, nem entendimento, não se lembravam de seu criador,
caminhavam sem rumo e se rastejavam. Não se lembravam do sagrado
e por isso caíram em desgraça.”
“Esses homens de madeira são a maioria dos seres humanos, ocupados
e obcecados com o sexo, a segurança e alimentação, sequer se lembram
do propósito de seus espíritos, participam de rituais e esperam que
sejam abençoados por nossos Co Governantes, os grandes sacerdotes,
mas não há um espaço em suas vidas ou em suas mentes para a
verdadeira prática espiritual.”
“Houve então a criação do homem feito pelo que nossos irmãos chamam
de Tzité, o oráculo com todos os materiais sagrados, embora esses
homens tivessem consciência, alma e entendimento, ignoravam ao
criador. O mito nos conta que ao que foram destruídos, todos os
espíritos dos animais, das plantas, das pedras e de tudo o que existe,
estavam furiosos com eles.”
“Tinham consciência dos espíritos de todas as coisas e no entanto não
os respeitaram, abusaram deles e estiveram ainda mais furiosos porque
ao servir tais homens, esses não se preocuparam em questionar e nem
a conhecer a si mesmo profundamente como deveriam ter feito. São os
feiticeiros preguiçosos, podemos dizer assim.”
— Itzmítli. – Apontou Tonamitli, risonha.
— E por fim criaram os homens de milho, num primeiro momento eles
foram criados de forma tão nobre que podiam ver e conhecer todas as
coisas e sendo assim muito semelhantes aos deuses criadores, esses
decidiram por fim diminuir o campo de percepção de tais homens.
Esses homens são tais como deuses e sabem os grandes senhores que
eles podem expandir sua consciência, assim podem ver muito além do
que seus olhos humanos alcançam e conhecer os mistérios.
— Nossos governantes. – Afirmou Ixi’yah, convicta.
— Sim, esses homens são os nossos governantes. Naguais excepcionais,
capazes de se transformar em animais, ver para além do futuro ou do
passado, conhecer os segredos, conversar com os Nahuales.
— São os homens que vieram do Leste. – Disse Tonamitli.
— Do Leste? – Perguntou Tlapali e acrescentou desconcertada: — Já
estou começando a atravessar a fresta entre mundos e não estou
conseguindo acompanhar o raciocínio.
— Bem, falam sobre os homens que viveram no Oriente para além do
mar, alguns deles não alimentaram aos seus deuses e lá viviam olhando
para o céu, confusos e saudosos, e não sabiam o que tinham vindo
fazer num lugar tão distante. Mas, aqueles que carregaram e
alimentaram aos seus deuses não estavam submetidos a tal confusão
mental, conheciam seus propósitos e os motivos pelos quais estavam
ali.
“Entre esses também falam sobre os povos das montanhas, existem
gerações deles no mundo, dizem que eles não têm casas, que caminham
em volta das montanhas pequenas e grandes, como loucos, mas nada
tinham de loucos, apenas os homens desprezaram aqueles que vivem
nas montanhas.”
“E aqueles que carregaram seus deuses com eles, esses foram os que
vieram para Anahuác, eles disseram onde viram o nascer do sol. Todos
falavam a mesma língua. Eles não invocaram madeira ou pedra, e se
lembraram da palavra do Criador, o Coração do Céu, o Coração da
Terra. Ao mesmo tempo em que contemplavam o nascer do sol,
contemplavam a estrela da manhã precursora do sol que ilumina
abóbada e a terra, e guia os passos dos homens.”
“Esses são nossos governantes, os homens-deuses que se uniram em
Tolan, mas conta a história que quando chegaram aqui, só havia noite e
muitos deles deixaram de se entender, pois que aqui começaram cada
qual a falar a língua de seu próprio deus e assim as tribos começaram a
se formar e a falar diferentes idiomas.”
— Muito bem colocado, Tonamitli. Muitos desses homens se
espalharam por Anahuác e sob os auspícios de seus deuses que
alimentaram com o sangue precioso, fundaram as cidades e dominaram
os povos. – Acrescentou Ixi Kanil.
— Tenho dois livros como esses, que contam a história do início da
linhagem tanto de meu pai quanto o de minha mãe. Nele se falam sobre
a importância da linhagem e estão registrados os nomes de todos os
meus ancestrais. Bem que meu pai gostaria que mantivéssemos apenas
o seu livro, mas deve se contentar com o segundo lugar, já que a
linhagem de minha mãe é muito mais nobre e importante do que a dele.
– Disse Itzmítli.
— É realmente nesse ponto que queria chegar para que possam
entender o que estou por pedir a vocês. Estamos acostumados com a
linhagem transferida a nós por nossos pais. Mas, existe uma linhagem
que não é desse mundo. – Disse Ixi Kanil, observando os rostos que a
fitavam, confusos.
— Lembram que falei do conhecimento oculto, que embora tudo seja
revelado nas histórias de nossos deuses, como muitos homens são de
madeira e com pouco entendimento, essas coisas passam por eles sem
que se apercebam da sabedoria contida. Lembram-se da história de
Hunahpu e Ixbalanquê?
Itzmítli e Ixi’yah balançaram a cabeça afirmativamente, enquanto
Tonamitli meneou a cabeça como se estivesse se esforçando para se
lembrar da história, a medida em que Tlapali se esforçava, assim como
a amiga, mas não para se lembrar da história, e sim para conseguir se
concentrar nas palavras.
Ixi Kanil a conhecia bem e sabia que das quatro ela era a que viajava
entre mundos com mais facilidade, era uma sonhadora excepcional e
podia ver e ouvir o mundo dos espíritos a todo o tempo. E o que era
uma vantagem, também era uma grande desvantagem já que não
conseguia controlar bem os aliados com os quais lidava, como as
plantas e animais de poder.
— Após morrer e sua cabeça ser entregue para uma árvore que se
tornou conhecida por cabaceira, a mãe dos gêmeos divinos, curiosa
sobre a árvore engravidou de seus filhos assim que conversou com a
cabeça do pai das crianças, que derramou de sua saliva em suas mãos
a engravidando. O importante está exatamente no que ele diz para ela.
— E o que é que ele diz para ela? – Perguntou Tonamitli, interessada.
— Ele diz algo como: “na minha saliva e na minha baba, dei-te a minha
descendência. Agora minha cabeça não tem mais nada, nada mais é do
que um crânio sem sua carne. Essa é a cabeça dos grandes príncipes, a
carne é a única coisa que lhes dá uma bela aparência. E quando os
homens morrem, eles ficam chocados com seus ossos”.
“Esta também é a natureza das crianças, que são como saliva e gosma,
sejam eles filhos de um Senhor, de um homem sábio ou de um orador.
Sua condição não é perdida quando eles partem, mas é herdada; A
imagem do Senhor, do sábio ou do orador não se extingue nem
desaparece, mas fica a cargo de suas filhas e dos filhos que geram. Eu
fiz o mesmo com você.”
— Pode nos explicar isso? – Perguntou Tonamitli.
— Em primeiro lugar quando ele transfere sua descendência para seus
filhos, o que o faz pela saliva, ele já está morto e está consciente de seu
estado. Tanto que ele explica que os homens se assustam com seus
ossos, ou seja, com a matéria da qual é feita seus espíritos, com sua
verdadeira natureza. Lembram-se que em uma das histórias que
ouvimos sobre Quetzalcoatl...
— Ele vai buscar os ossos dos homens no Mictlán e depois de passar
por muitas provas, retorna ao nosso mundo com eles, transformam os
ossos quebrados em pó e mistura com o sangue que retira de seu pênis
em seu ritual de auto sacrifício, assim dando forma e vida aos homens.
Então, baseando-me no que está nos dizendo esses homens criados por
Quetzalcoatl são seus próprios filhos espirituais, certo? – Disse Ixi’yah.
— Isso mesmo, Ixi’yah. O que é dito é que não somos esse corpo, com
essa forma e carne, e é por isso que Hún Hunahpu diz que quando os
homens morrem ficam chocados com seus ossos, ou seja, com a sua
essência, seu ser verdadeiro. E que essa condição da morte é também a
condição das crianças, ao nascerem. Elas são ossos como um símbolo
da imortalidade do seu ser, que no processo de vir a nascer através de
seus pais nesse mundo ganham carne.
“No caso da nossa história ele passa para os gêmeos Hunahpu e
Ixbalanquê e ele dá a essas crianças a herança de sua própria linhagem
divina e espiritual. Seu conhecimento é transmitido para os gêmeos que
de posse de uma sabedoria herdada tanto de sua mãe, quanto de seu
pai espiritual, têm as habilidades e conhecimentos necessários para
vencer os senhores de Xibalbá.”
“Vocês desconhecem os ensinamentos que são reservados aos filhos dos
Quatro Poderes, dos grandes senhores. Estamos falando de nossos
governantes, os Supremos Jaguar, Serpente, Águia e Lobo, que
possuem um poder indescritível e inconcebível para a maioria dos
homens.”
“Nossos governantes são tão poderosos que são capazes de fornecer os
deuses para serem patronos de um reino, dão aos governantes os
ensinamentos e as insígnias reais e por isso que Tolan é conhecida
como a terra onde os homens se tornam deuses, e também por sua
capacidade de colocar os homens em tronos, por mais ineptos que
possam parecer num primeiro momento, ao menos aos olhos dos
homens de madeira.”
“Assim Ni Cháac ao seu tempo se tornará o sucessor de seu pai e não
apenas porque é seu primogênito, mas porque seu pai lhe transferirá
sua herança espiritual. E desse modo Ni Cháac será tanto seu filho de
sangue quanto seu filho espiritual.”
— O que explica porque há reis que são estupendos e com feitos
incríveis e acabam por ter sucessores que jamais conseguem alcançar a
glória de seus pais. – Disse Tonamitli, pensativa. — É possível que essa
herança divina não seja transferida para um filho por algum motivo,
talvez como quando seu pai morre numa batalha antes de realizar tal
feito.
— Mas, aonde você quer chegar com isso? – Perguntou Itzmítli,
impaciente.
— Eu quero que vocês obtenham essa herança.
— Eles nunca nos dariam esse conhecimento. Se assim fosse, todos os
sacerdotes os teriam e sabemos que existe uma hierarquia. E em nosso
caso isso seria ainda mais improvável, mesmo eu e Tonamitli que temos
descendência direta das casas sagradas, sequer sabíamos da existência
de tal herança espiritual. – Disse Itzmítli.
— Em seu caso Itzmítli, como independente de quem for seu futuro
marido, Ni Cháac ou Cuauhtli, um dos quatro poderes de Tolan,
pertencerá a ele e para seu próprio bem e de sua prole, ele lhe
transferirá tal conhecimento ou parte dele. Do mesmo modo que os
gêmeos não apenas têm características e habilidades de seu pai, mas
também de sua mãe Ixiquic. A astúcia deles não foi herança do pai, mas
da mãe.
“E isso é claro quando seu pai, um senhor de Xibalbá, pede para os
mensageiros a sacrificarem por causa de sua gravidez e ela os engana,
fazendo acreditar que o fruto da árvore é seu coração e ainda libera os
mensageiros que se tornam seus aliados. É fácil perceber que Vucub-
Hunahpu e Hún Hunahpu não tem a astúcia e o logro como talentos,
eles são os enganados e não os enganadores, quem usa de astúcia são
os senhores do Xibalbá. Hunahpu e Ixbalanquê são astutos por herança
espiritual de sua mãe.”
“As mulheres são tão boas feiticeiras que chegam a assustar e não é por
bobagem que ouvimos as histórias de velhas com a vagina dentada
capazes de castrar ao homem, e nessas histórias eles se esforçam muito
para destruí-la. O que quer dizer que uma feiticeira muito habilidosa é
capaz de roubar o poder de um homem e o liquidar. Alguns afirmam
que isso se dá pela mulher ser de natureza mais violenta e que não
perdem seu poder como o homem.”
— De que forma o homem perde poder? – Perguntou Itzmítli, curiosa.
— Acreditam que os homens vão perdendo o desejo sexual quando vão
ficando mais velhos, por causa do sêmen que liberam a cada relação, e
as mulheres não perdem seu desejo sexual, porque elas não liberam do
líquido precioso ou muito pouco.
“O homem enfraquece um pouco a cada relação sexual, porque seu
sêmen está cheio de seu poder pessoal, o poder da criação e
fecundação, não é à toa que os sacerdotes estão sempre jejuando e se
afastando de suas mulheres, e alguns até se mantem castos por toda a
vida, o fazem para armazenar seu poder. As mulheres além de não se
esgotarem, são também portais.”
— Como assim somos um portal? – Perguntou Tonamitli, interessada.
— Nossos ventres são portais. É por eles que devem passar todo homem
e mulher quando deixam o mundo de sua natureza espiritual para
realizar suas obras nesse mundo e através do ventre da Mãe Terra que
retornam para o lugar de onde vieram.
“Temos sorte afinal, porque somos filhas de Tolan e nossos sacerdotes
reconhecem o poder da mulher, sabem que somos excelentes para
estruturar o poder de um homem, tal como a base da pirâmide e seus
quatro cantos e é por isso que eles transferem seus conhecimentos para
suas esposas, ou ao menos uma parte dele quando são cautelosos. Mas,
isso não impede que venhamos a ser consideradas como “vaginas
dentadas”, é um risco ao qual estão bem conscientes.”
“Assim como vocês sabem bem que o mundo dos feiticeiros é muito
perigoso, há pessoas dispostas a comer suas carnes e beber de seus
sangues para tomar para si seu poder, assim como há feiticeiros e seres
que se especializam em roubar suas almas e seus tonais. Esse é um
perigo real e não me estenderei a respeito disso porque já estão
cansadas de minhas advertências.”
— Temos por desvantagem nossa força física, assim um homem forte e
poderoso é capaz de nos agarrar com facilidade. Por isso sejam
impecáveis e inacessíveis, ou se escondam atrás de um homem muito
poderoso e o use como escudo. – Disse Tonamitli, imitando a voz de Ixi
Kanil, que riu com a audácia da moça em lhe remedar com tanta
maestria.
— E voltando a Ixiquic, ela é uma senhora do Xibalbá e sua casa é o
Oeste. E nós estamos habituadas com as representações das corujas no
Oeste aqui em nossa cidade porque elas são os mensageiros que ao
ajudar a mãe dos gêmeos, tornaram-se seus aliados quando ela deixou
a casa de seu pai. E a astúcia é a base da mulher, é tola se tentar medir
forças com um homem, mas o derrota com facilidade se usar sua mente
e seus talentos.
— Como sabe disso tudo? – Perguntou Tonamitli, interessada.
— Porque minha história não é tão diferente da qual Itzmítli está
vivendo. Eu e Iztac Coatle nos apaixonamos quando éramos jovens.
— Você se relacionou com o nosso senhor Supremo Serpente, pai de Ni
Cháac? – Perguntou Ixi’yah, incrédula.
— Sim, mas não era do desejo de seu pai que nos casássemos,
entretanto como estava apaixonado ele me ensinou muitas coisas,
transferiu-me um pouco de si e de seu poder. Embora ainda não fosse
um nagual maduro e não tinha na época o poder e conhecimento que
fez dele um Co Governante de Tolan, usou de seu conhecimento para
apaziguar meu coração.
Fez uma pausa proposital e assinalando para que Ixi’yah servisse o
pulque pela segunda vez, iniciou o canto tão rápido quanto uma flecha,
de modo a não dar tempo para perguntas. Ainda era doloroso pensar
em como se sentiu enganada pelo soberano quando esse ao prometer
que a transformaria em sua segunda esposa se esqueceu dela tão logo
seu primogênito nasceu.
— Como acha que conseguiríamos algo como uma herança espiritual
dessas? – Perguntou Ixi’yah, curiosa.
— Como eu disse, não tenho o poder de determinar com quem vão se
casar, mas se eu conseguir colocá-las na ordem dos naguais, é possível
que ocupando o séquito de sacerdotes dignitários, além de
acompanharem em igualdade os senhores, poderão ser parte do
conselho dos Quatro Poderes.
— Isso é impossível. – Resmungou Tonamitli, incrédula.
— Posso colocá-las na ordem. Mas, se conseguirão ou não se manter
nela e alcançar altos cargos dependerá de vocês e por isso que eu as
escolhi, porque estou certa de que conseguirão, especialmente se
continuarem a usar a técnica que lhes ensino desde pequenas, que fez
de vocês irmãs.
— Os quatro ventos. – Afirmou Itzmítli. — Organizou-nos de modo a
cobrirmos uma casa, cada uma de nós uma direção, tal como os Quatro
Poderes de Tolan, mas ao invés de nos ligar aos poderosos jaguar,
serpente, águia e lobo, nos ligou ao vento.
— Infelizmente as levei até onde minhas mãos puderam alcançar. Na
Ordem dos Naguais poderão avançar muito mais em poder e
conhecimento e usando o que lhes ensinei acredito ser possível que
vocês não só obtenham uma herança espiritual de algum modo, mas
que se transformem em seus animais como os grandes senhores. Se
existe algo em que acredito com todo meu coração é que vocês quatro
são capazes de conseguir isso.
— Mas, se alguma de nós se casar e for para outra terra isso seria
impossível.
Ixi Kanil concordou com Ixi’yah num balançar de cabeça.
— E como nos colocaria na Ordem? – Perguntou Tonamitli.
A velha feiticeira tomou um embrulho em suas mãos e ao abrir mostrou
para elas uma peça de couro onde havia uma iconografia ao qual a
primeira vista nenhuma das moças conseguiu interpretar por seu
caráter peculiar, como se os ícones estivessem falando de uma história
que somente sua mestra pudesse conhecer.
Nesse couro estava enrolado um cachimbo de madeira nobre, com um
pequeno colibri esculpido sobre o fornilho e toda a haste do cachimbo
estava talhada na forma de duas serpentes que se entrelaçavam de
modo tão harmonioso e perfeito que parecia haver cinesia. Havia uma
pequena bolsa que suspeitaram se tratar do tabaco para o cachimbo e
uma flauta de osso.
— Isso colocará vocês na Ordem. É tal qual uma insígnia real e acredito
que fazer parte da ordem fará com que seus pais pensem duas vezes em
lhes casar com alguém que não esteja em Tolan.
— E por que isso os impediria? – Perguntou Ixi’yah, animada com a
ideia de não deixar sua cidade.
— Porque só podem fazer parte dessa ordem aqueles que receberem a
permissão de um dos Quatro Poderes e retirar uma pessoa dessa ordem
é quase sinônimo de se colocar contra a vontade de seu senhor.
“Mas, entrar nela também não é sinônimo de permanência e além de ter
de provarem que merecem estar lá, terão que serem mais do que boas,
devem ser excelentes e por isso que é tão importante que consigam
receber uma herança espiritual e serem capazes de feitos excepcionais.”
“Não devem jamais esquecer que vivemos num mundo de homens, e
que infelizmente é preferível um homem mediano a uma mulher
insigne. E acreditem, minhas corujinhas, eles serão bem mais rígidos
com vocês do que com qualquer outro, o menor deslize e serão
expulsas. Por isso que ser impecáveis não será suficiente, deverão ser
extraordinárias.”
Itzmítli riu de puro nervosismo e perguntou:
— O que há em seu coração que a faz acreditar que seremos capazes de
tal proeza?
— Eu não tive a mesma oportunidade em encontrar em meu caminho
mulheres fortes com as quais pudesse criar um círculo de poder, mas
consegui isso com vocês quatro. Vocês são excelentes e estão em pé de
igualdade com muitos senhores fundadores de cidades e reinos
magníficos. Eu dei meu espírito a vocês, ensinei-lhes ofícios que seus
pais jamais sequer se incomodariam em pensar de lhes ensinar.
— E como acha que conseguiríamos adentrar a ordem com toda essa
história de casamento baforando em nossas nucas? – Perguntou
Tonamitli, ajeitando a cabeça de Tlapali em seu colo ao que a moça se
jogou sobre ela, aparentemente sonolenta.
— Porque sei que os convocados se reunirão amanhã, assim que a
estrela mais brilhante anunciar o nascer do sol, na câmara da Pirâmide
do Sol. – Respondeu Ixi Kanil.
— E como faremos parte disso se não fomos convocadas? – Perguntou
Ixi’yah, fazendo as outras duas sustentarem um olhar indagador, como
se tivesse feito a pergunta que ambas também intentavam fazer.
— Levarão essa insígnia com vocês e esperarão até que todos entrem
pelo túnel Leste da pirâmide. Quando todos já estiverem entrado, não
haverá ninguém para barrá-las na entrada do túnel, entretanto as
barrarão na entrada da câmara. Uma de vocês deverá ser ousada o
suficiente, ao ponto de invadir o lugar, cair de joelhos diante do
Supremo Serpente e entregar a ele a insígnia.
— E o que diremos a ele? – Perguntou Tonamitli, ao notar que seria algo
divertido, se conseguissem ao menos se retirarem do local com as
cabeças sobre seus pescoços.
— Guardem bem essas palavras, porque ele não as ouvirá se não as
disserem exatamente como vou proferir agora.
Ixi Kanil pigarreou e proclamou, dramática e solene:
— Há poder nessas palavras e não serei digno de meu cargo e poder se
ignorá-las e não cumprir com minha promessa. Bem sabe que tem
apenas um pedido, um pedido que jamais deverei recusar, porque
fizemos um pacto e aqui está a insígnia e a prova. Mas, seja cautelosa,
pois somente lhe concederei um pedido ao me devolver aquilo que nos
enlaça. E então, acrescentarão dizendo: e esse é meu desejo, meu único
e verdadeiro pedido, que minhas quatro filhas sejam membros da
Ordem dos Naguais.
— Por que não o obrigou a casar com você já que ele te deu a
oportunidade de um pedido que jamais poderia recusar? – Perguntou
Ixi’yah, curiosa.
— Porque por um longo tempo esperei que fosse cumprir com sua
palavra e que me tornaria sua segunda esposa. Fui servir ao templo
mantendo meu voto de castidade esperando que um dia ele viesse me
buscar. O tempo não serve apenas para passar e dar cabelos brancos
aos mais afortunados, mas também para maturar aquilo que nosso
coração jovem e quente não percebe como o pode fazer a sabedoria e
paciência de um coração velho e frio.
“Foi um grande golpe de sorte não engravidar dele, embora lamento não
ter tido meus próprios filhos e sempre há um gosto adocicado quando o
amor é dado livremente. Forçá-lo a se casar comigo só me tornaria mais
miserável. Não pensem que não considerei usar dessa insígnia, pensava
nisso o tempo todo.”
“E por pensar tanto nisso é que observei que não havia espaço na vida
dele para mim. Ni Cháac o seguia por toda parte como ainda faz hoje,
não porque era uma criança apegada ao pai, mas porque era uma
criança que tinha um pai orgulhoso e feliz apegado nela. Quando estava
no mesmo lugar que eles, seus lábios não se iluminavam quando olhava
para mim, mas sim para sua mulher prenhe coberta das mais preciosas
pedras.”
“Sequer depositava seus olhos sobre mim quando falava com ele. Seu
amor se apagara e eu já não mais importava, para ele era tal como um
cacto espinhento e ordinário nos arredores de nossa majestosa cidade.
Quando meu coração se encheu com o desejo de vingança, machucado
pelo descaso, imaginei como seria forçá-lo a olhar para a minha cara
perambulando em sua casa feliz e vi que me machucaria bem mais do
que qualquer contratempo e desconforto que lhes causaria.”
“Assim guardei a insígnia e dediquei minha vida ao templo e tal fora
meu desenvolvimento e devoção, que fui designada a ensinar e cuidar
de nobres como vocês. E foi então que tive a visão dos quatro ventos
pela primeira vez e soube naquele exato momento que a insígnia como
objeto de poder, me serviria ao invés de me destruir quando tivesse a
sabedoria necessária para usá-la.”
— E o que deseja alcançar com isso? – Perguntou Itzmítli, desconfiada.
— O que todo pai deseja de seu filho, que terminem aquilo que
começou, que produzam templos e cidades para além daquilo que
pudessem imaginar em construir, para que seus nomes não sejam
esquecidos. – Afirmou Tonamitli, convicta.
“Não vê que o sacerdócio e a magia foi tudo o que restou para nossa
mestra? Sejamos honestas, quem de nós não se viu contrariada quando
passadas para trás, por sermos quem somos? Ou quando tivemos que
engolir palavras e conselhos sábios por que nossas vozes não podiam
soar em meio a uma discussão?”
— E certo é de que não posso falar por todas vocês. – Acrescentou
Ixi’yah. — Mas não posso fingir que acho agradável ter de me casar com
uma pessoa que não conheço, que corro o risco de me casar com um
homem velho e feio no lugar de um jovem atraente, que com uma
simples ordem devo deixar minha terra, meus amigos e tudo o que amo,
para servir a um homem numa terra estranha que talvez toda uma vida
não seja suficiente para me fazer sentir em casa novamente.”
“Nossa mestra devia estar entre os conselheiros dos Quatro Poderes e
isso não tem nada de ver com seu romance, mas porque ela é uma
mulher poderosa, sábia e extraordinária, que se safou de passar toda
uma vida amargurada purificando ao templo e as pessoas. Eu já fico
feliz com essa ideia maluca só com o fato de tirar de meu pai a
possibilidade de me mandar para fora de Tolan.”
— Quem é que não quer ficar na maior cidade de Anahuác, não há
cidade nesse mundo igual a nossa. Amo cada cacto dessa terra. –
Balbuciou Tlapali.
— Acho que esse é um bom momento para a nossa terceira rodada de
pulque. – Disse Tonamitli, animada.
Sem sequer esperar por uma ordem explícita de sua mestra, Ixi’yah
tornou a encher o copo e o canto das mulheres reverberou contra as
paredes da câmara.
— Eu não posso forçá-las. – Disse Ixi Kanil, após beber sua porção. —
Assim como aceitarei se alguma de vocês decidir por não fazer parte
disso, do mesmo modo que assegurarei que as outras entrem, ainda
que o círculo de poder não esteja completo, mesmo sabendo que a
possibilidade da falha será maior se não estiverem unidas.
— Eu confio minha alma a vocês e acreditem, se há uma coisa que
escuto desde que nasci é que devo servir a comunidade e pensar no
bem-estar dela. Meu amor me faz recusar pensar que Ni merece passar
por tudo isso porque os deuses estão zangados com ele. Assim como
meu amor por vocês me fazem pensar que não tenho escolha senão
invadir a pirâmide do sol para ordenar que o Supremo Serpente cumpra
com sua promessa.
“Contudo, também entendo a revolta de Ni. É muito duro ter que servir
ao bem-estar comum quando se vê tão pequena diante de um obstáculo
e não pode pedir por ajuda porque se trata de um desejo egoísta.
Matarei a mim mesma e aquele que amo, ao esperar o amanhecer na
pirâmide do sol, no lugar de me montar guarda na casa de meu tio,
esperando o momento em que ele a deixar para pedir sua ajuda.”
“E ainda me sinto mais horrível se me negar a acompanhá-las, porque
por Ni Cháac ou Cuauhtli, sou a única entre vocês que não tem a
menor necessidade de entrar na Ordem dos Naguais, porque meu
casamento por si só já me dá um dos maiores cargos de Tolan.”
— Está querendo dizer que não vai com a gente? – Perguntou Tonamitli,
chateada.
— Quero dizer que meu coração é anulado de qualquer maneira e que
ninguém me explica o que fazer com a dor que é gerado à medida que se
parte ao meio. Realmente, seria um erro colocá-las em risco. Agora que
sabemos da tal herança espiritual, enfrentar esses senhores ou o que
for que esteja prejudicando Ni, está fora de nossas capacidades. Ao
menos me digam o que fazer para parar essa dor.
— É assim que as coisas são, Itzmítli. Nossos desejos não contam, só
são importantes para nós mesmas.
— Todos nós temos de lidar com tais dores, os desejos vêm, mas somem
tão depressa quanto aparecem. – Disse Ixi’yah.
— Devo assistir ao homem que amo definhar por que é egoísta de
minha parte desejar que viva e corra selvagem e livre por esse mundo?
O quanto é egoísta o desejo de nossa preceptora? Não devia ela pensar
no bem-estar dos pais de vocês que só escolherão seus maridos para
beneficiar a família num todo? Sei que minhas palavras são ásperas,
mas quero que alguém me explique o que faz de um ato correto e outro
errado?
— Eu acho que vocês falam demais. – Disse Tlapali, depreciativa. —
Nascemos exatamente onde deveríamos nascer nessa vida, em outra
quem sabe nasçam como campesinas ou em lugares desconhecidos
para além do mar. Estão onde devem estar e possuem as ferramentas
que devem possuir para ofício que lhes encomendara suas próprias
almas.
“Ainda que não tenha entendido sequer um terço de toda essa história,
minha alma caprichosa se alegra com a dignidade a qual minha mestra
me trata, não posso desconsiderar o que Tonamitli disse, nenhuma de
nós tem qualquer poder de escolha. Podemos escolher comer ou não
tortilhas, mas as coisas importantes não decidimos.”
“Mas, também há algo que nenhuma de nós considerou até esse
momento e o que Itzmitli disse me pensar a respeito. É óbvio que se
contasse sobre esse plano para meu pai, ele nunca me permitiria
invadir a pirâmide do sol e solicitar a força a minha entrada na Ordem.
Talvez seja melhor usar a insígnia e pedir ao Supremo que interceda por
nossa estadia em Tolan.”
— Isso é se agarrar à mediocridade. A entrada na Ordem não significa
retirar o direito de seus pais em escolherem seus maridos, não é só
sobre ficar em Tolan. É sobre se tornar uma dignitária de Tolan. E
Itzmítli tem razão quando diz que esse desejo não é diferente do dela
que deseja que Ni Cháac fique bem ao menos para estar em pé de
igualdade com seu rival.
— É o que quero dizer. Aprendi a ler quando era criança e não foram
poucas as vezes que meu mentor jogou uma porção enorme de registros
de eventos calendáricos, bem como livros repletos da sabedoria dos
homens do passado. Existe até mesmo o comércio de livros que vêm do
Sul, das terras dos maias. Nós compramos esses livros e meu mentor
me fazia ler a todos.
“Ixi Kanil nos pede para buscarmos por uma herança espiritual, que ela
acredita que obteremos o conhecimento e habilidade de conseguir
através de nossa entrada na Ordem. E acredito que talvez esteja aqui
sem saber o que fazer, porque tenho passado toda a vida fazendo aquilo
que meus preceptores me disseram ser o certo a fazer.”
“Nossos governantes têm a palavra final porque conseguem ver muito
além do que conseguimos com nossas percepções limitadas. E se tal
herança espiritual me permitir ser capaz de enxergar e entender aquilo
que me parece confuso, me esforçarei para obtê-la”
“Como uma mulher comum e limitada, não tenho a capacidade de ver
além de minhas ações, mas é impossível não ver na história muitos
registros onde ações ruins trouxeram as melhores consequências e que
boas intenções foram estopim de grandes desgraças. Se existe um “ver
dos feiticeiros” que dá ao homem a capacidade de decidir e agir com
sabedoria, sem se apegar ao medo das consequências de suas escolhas,
então isso eu quero para mim.”
“No entanto, não vou fingir e nem mentir, não estarei por inteiro com
vocês até que consiga ajudar aquele que amo. Não passarei a noite aqui
realizando rituais e obtendo conhecimento através de nossa preceptora,
e nem me importo que poderosos feiticeiros e Nahuales me destruam,
preciso encontrar um meio de estar com ele, de protegê-lo, e o farei com
ou sem a ajuda de vocês.”
Após assinalar ser o momento da quarta rodada de pulque, Ixi Kanil
observou Itzmítli e não pôde deixar de observar a grande influência que
seu tio, o Supremo Jaguar, teve sobre ela. Embora não pudesse afirmar,
sua intuição a fazia acreditar que o tio transferiu um pouco de seu
poder para aquela pequena.
E se transmitido a ela parte de seu poder, isso explicaria o interesse do
Supremo Águia em casar seu sucessor com ela, ao invés de uma
decisão sábia em ceder e retirar seu pedido de casamento dando a
livremente para Ni Cháac. A águia era o próprio sol, uma ave poderosa
capaz de ver a longas distâncias, com movimentos precisos e certeiros,
as ações daquela casa jamais eram vazias de propósito.
Era fácil considerar que tivesse tanta sabedoria com tão pouca idade,
porque assim como os filhos dos supremos senhores, esteve toda a
infância estudando com os homens mais sábios de Tolan, das quatro
era a que sempre estava atrasada para as aulas que tinha com ela e não
por diversão, mas porque tinha muitas tarefas e obrigações.
Seu pai nunca teria dado tamanha atenção para ela, como não fez com
seus filhos mais velhos, e sua mãe adoecera logo após seu parto o que
retirou dela muito de seu vigor felino. Era possível que Itzmítli não se
tratasse somente de um conforto emocional, talvez Citlali Yoahualli
tivesse obtido alguma visão ou presságio, ou saber de alguma profecia
que a envolvia e por isso tivesse a preparado com tal zelo.
Quem haveria de saber o que viam os Quatro Poderes? Eram naguais
excepcionais, treinados e preparados para serem governantes e
feiticeiros desde o nascimento, homens de conhecimento que mesmo o
mais habilidoso sacerdote e xamã jamais conseguiriam alcançar. Eram
os homens-deuses de Tolan.
Enquanto as outras três continuavam deliberando sobre a Ordem dos
Naguais, ela alinhava pequenos e requintados frascos de cerâmica, a
qualidade assim como as pinturas denunciavam a procedência da casa,
caros demais para um nobre mediano. Separava cuidadosa ramos de
ervas que muitas vezes aproximava do fogo para observar melhor a
folhagem.
Cheirou cada frasco, depositou unguentos e pastas em partes diferentes
do próprio corpo examinando-os com esmero, degustou os líquidos,
passando até mesmo alguns dos unguentos e pastas na ponta da
língua. Reorganizou os frascos, muitos foram parar ao seu lado
enquanto três deles ficaram diante de si e repetiu o processo de prová-
los.
— Ele está sendo envenenado? – Perguntou Tonamitli, que, curiosa,
observava a moça.
— Acredito que não, mas não estou muito certa desses três remédios,
não os reconheço. E considerando que não tenho uma instrução
apurada desse ofício, é possível que nunca descubra.
— Tlapali talvez reconheça. – Sugeriu Tonamitli.
— Posso tentar. – Disse a moça rolando para o lado e sem conseguir se
erguer, Tonamitli avançou sobre ela e a suspendeu, fazendo-a se sentar.
Provou o primeiro deles, levando para a ponta da língua, depois fixou o
olhar sobre o frasco e ali permaneceu, concentrada, sabiam que estava
tentando ver o espírito por trás do medicamento. O que determinava um
bom tratamento médico era a habilidade do curandeiro de se comunicar
com os espíritos de cada planta, produto e objeto usados na confecção
do remédio.
Entretanto, a combinação de vários elementos acessava um aliado
específico, um espírito com nome e habilidades para tratar de
determinadas doenças. Ser considerado um bom curandeiro ou
boticário consistia na habilidade de tais especialistas em controlar o
espírito aliado.
— Não, eu não posso ajudar, não consigo ver os aliados desses
remédios. – Falou, relaxada e devolveu os frascos para Itzmítli. — Eles
não se mostram e não me deixam acessá-los.
— Os espíritos das montanhas haverão de me dizer o que fazer.
Itzmítli tomou sua bolsa e uma das tochas e disse:
— Me esperem na pirâmide do sol, estarei lá.
— Mas...
— Deixe que vá. – Disse Ixi Kanil interrompendo Tonamitli.
— Não acho certo não a ajudarmos. – Confessou Ixi’yah, cabisbaixa.

— Ainda não acredito que Iztac Coatle faria qualquer mal ao próprio
filho. Se fosse sua intenção em prejudicá-lo não o teria apoiado como
fez. Não tem a menor lógica, ele o teria repreendido e retirado seu
pedido, mas ao contrário presentou o pai da moça e reforçou o pedido
de casamento do filho.
— E se ele quisesse nos fazer acreditar nisso? Se ele tiver propósitos
ocultos ao qual não temos conhecimento? E se for verdade que não
queria casar seus filhos com nenhuma das outras casas? – Perguntou
Tonamitli, desconfiada.
— Você é a prova de que ele nunca teve esse interesse e que tudo não
passou de boatos.
As três jovens se entreolharam.

Os Quatro Ventos

Embora a trilha concedesse uma subida relativamente fácil, estava


sobre um trecho íngreme em que precisava se apoiar em pedras e se
agarrar aos arbustos. Precisando de suas mãos arremessou a tocha
para cima, com o fogo a cintilar no ar deixando um rastro luminoso que
não se apagou, o pulque e os cogumelos começavam abrir a sua visão
do mundo dos espíritos.
Melhor seria se tivesse escolhido a montanha ao invés daquela colina,
mas por certo que estaria cheia de astrônomos e os sacerdotes que se
dedicavam a Tláloc. Não que não corresse o risco de encontrar
sacerdotes ali também, a colina era chamada de Montanha da Serpente
por haver nela um totem relacionado ao grande deus Kaan, o deus
serpente e também era conhecida pela quantidade de cascavéis e outras
cobras que abundavam naquele lugar de poder.
Embora na época de seca os encontros com as serpentes eram menos
frequentes, não eram impossíveis ali, o que exigia ainda mais de sua
atenção. Por isso enquanto se agarrava aos arbustos e enfiava suas
mãos nas fendas das pedras procurava comungar com os espíritos
daquele local, solicitando fervorosamente sua permissão para subir o
monte.
Quando aqueles espíritos não concediam suas permissões ou por algum
motivo não gostavam da pessoa que invadia o território deles, não era
raro que tivesse um fim trágico, definhado pelos venenos das guardiãs
do lugar, ou mesmo em quedas fatais.
No cume da colina o vento era frio e cortante e se aproximou do fogo
que deixaram aceso diante de uma pedra alta que corroída pelo tempo
não mais mostrava sequer os traços do deus ao qual representava,
estava rodeada por toda a sorte de oferendas e as mais frescas
assinalava que alguém deixara o local há pouco.
Caminhou pelas beiradas observando as encostas para se certificar de
que estava mesmo sozinha e embora a noite não lhe desse certeza de
coisa alguma, o silêncio a fez acreditar em sua solidão, o sopro frio
trazia apenas o barulho típico dos animais noturnos.
Ajoelhou-se diante da estátua com o fogo atrás de si e fez uma prece
pedindo a permissão dos guardiões e espíritos que habitavam o lugar.
Enfiou a mão em sua bolsa, jogando em seguida um manto fino sobre
os ombros e pegou seu apito de barro.
O apito tinha o rosto que apresentava lábios proeminentes e o corpo
retorcido, demonstrando um movimento helicoidal próprio das
divindades do vento. No toucado cônico, uma pressão progressiva seria
emitida dos lábios que faria o instrumento vibrar com a respiração até
provocar sons diferentes. Acreditavam que aqueles sons eram a voz de
Ehecátl, o deus do vento, audível para os seres humanos.
— Ó Ometeótl, pai e mãe dos deuses, dualidade geradora que sustenta
todo o universo. Yohualli Ehecátl, Vento Noturno, o princípio supremo
daquilo que é invisível e impalpável, vento de Quetzalcoatl, sopro de
Tezcatlipoca, tornam-me invisível como a noite, como o próprio vento.
Mictlampa é minha direção, o Sagrado Norte, o Vento Norte é o meu
vento. Que nesta noite eu não seja o sopro de destruição, nem a
pestilência, nem a doença e tampouco a morte.
“Que meu seja o sopro sábio de Ometeotl, a invisibilidade de Yohualli
Ehecátl, que eu seja o vento a soprar para longe aqueles que se dobram
sobre meu amado Ni Cháac Sáas e o ferem. O vento silencioso e
invisível que tudo vê e que tudo sabe. Que eu recupere e carregue
comigo a parte de sua alma que se afastou dele, que meu amor fortaleça
seu espírito, seu corpo e ilumine sua mente. Cante, cante, ó vento,
através de meus lábios. Fale através de meu alento. Haja através de
mim.”
Levou o apito à boca e o soprou. Carregada pelo êxtase logo encheu o ar
de melodia a qual criou cadência ao apoiar-se no som das batidas de
seu coração e nos estalos das madeiras que ardiam no fogo atrás dela.
As imensas e soberanas patas douradas impulsionava o animal
corpulento encosta acima, de corpo estrelado, dourado e pintado. O
jaguar seguia em silêncio com seus olhos brilhantes sob os auspícios de
sua magnífica agilidade felina.
A poderosa cascavel deixando um rasto sinuoso sobre o solo seco e
arenoso, esgueirando-se entre arbustos, pedras e cactos, produzindo o
som aquático de seu chocalho, o prenúncio da morte, o sinal de seu
supremo poder.
O jaguar esgueirava-se colina acima sob o manto noturno, a
peçonhenta rastejava-se na terracota sob os auspícios do dia. Era noite
e era dia, o crepúsculo e a aurora. O Norte e o Sul. O Leste e o Oeste. As
quatro direções. Os quatro ventos.
O mundo dos espíritos descortinava diante dela e ansiosa de agarrar ao
amado, soprava com mais vigor e intensidade o apito, deveria deixar seu
corpo o espírito e viajar para além do mundo conhecido.
— Onde você está, Ni Cháac? Não vá para onde eu não possa te buscar,
meu amor. – Falou em voz alta e tornou a soprar seu apito.
— Sou xamã, mulher-espírito, sou o Vento e o Norte é minha casa. Sou
feiticeira e carrego comigo todas as mulheres que me antecederam,
minhas mães e minhas avós. Sou o corte da obsidiana, o vento que
arrasta os homens, as casas e os barcos. Sou o sol branco que arde no
deserto, sou o jaguar do submundo, o espelho fumegante. Ouçam-me,
espíritos, ouçam-me guardiões dessa terra, pois que sou o sopro de
Mictlán.
“O pedernal branco é minha pedra, o milho branco o meu alimento, a
flor branca do Olouhluqui é a minha flor e as borboletas são os espíritos
que me rodeiam. Escute-me, alma de Ni Cháac, volte para ele, volte
porque eu te amo, porque não posso viver sem você. Volte a habitar seu
corpo, volte e o faça completo de novo. Porque eu te amo, não posso
viver sem você.”
“Ó alma de Ni Cháac Sáas, se está cativa, mostre-me quem a aprisiona,
grite meu nome, me guie até você, que vou te buscar e te livrar de seu
algoz. Mas, se nada a impede de voltar, não tenha medo, volte, volte,
porque eu te amo.”
Soprou seu apito por um momento e depois agarrou sua larga bolsa de
pano e afastou-se da estátua. De frente para o Leste estendeu um
pequeno pedaço de couro, colocando sobre ele algumas frutas, uma
cabaça de pulque e outra de mel, doce ao qual despejou sobre as
tortilhas que acomodou sobre o couro.
De posse de seu incensário, retirou algumas brasas da fogueira,
desprendeu sua pequena bolsa de copal de seu cinto e fumegou a
oferenda com a fumaça aromática, dizendo:
— Aqui está seu alimento, alma de meu amado. Venha comer e beber,
fortaleça-se, volte para o corpo de Ni Cháac Sáas. Volte, porque eu te
amo. Que meus deuses e guardiões guiem seu espírito, meu amor, que
meu nagual te carregue nos braços e te devolva o vigor.
Sequer soube de onde aquela força veio, mas fora arremessada a quase
um metro do lugar onde estava acocorada depositando a sua oferenda e
convocando a alma de Ni Cháac. Diante de seus olhos apenas a
cintilância das estrelas que pintavam o firmamento.
Contudo ouviu o estalar de galhos e o farfalhar das pequenas plantas
que insistiam em nascer entre as fendas do solo pedregoso da colina.
Sentou-se com as mãos apoiadas atrás de si, tentando ver o que se
movia ao seu redor na escuridão.
O assombro repentino que lhe tomara denotava que era um agressor,
feiticeiro ou espírito disposto a impedi-la de continuar e trazer a alma
de seu amado de volta. Poderoso o bastante para empurrar seu corpo
físico, astuto o suficiente para não permitir ser reconhecido, forte
demais para suas próprias forças. Quem era aquele ser? Bruxo ou
Nahual? Humano ou um ser inorgânico?
— Sou o vento...
Foi atacada novamente e a dor aguda que sentiu no meio de seu corpo a
fez calar e observar. Poderoso demais para ela. E se guardava a alma de
Ni Cháac, deveria encontrar um meio de vencê-lo, mas como vencer um
Nahual ou feiticeiro sem conhecer seu verdadeiro nome?
— Ó merda! O que está acontecendo aqui?
Reconheceu a voz familiar, era Tlapali, mas não ousava se mover e
olhar para trás.
— Eu vou cair! Esse lugar está cheio de maus espíritos, eles vão me
matar. – O vento trazia a voz de Ixi’yah, mas parecia mais distante do
que Tlapali.
— Segure minha mão! – Exclamou Tlapali, aflita. — Venha logo, Itzmítli
está aqui e há um círculo de proteção em volta dela.
Poderia haver, mas não estava resolvendo muito já que, fosse o que
fosse aquele ser, a estava subjugando com maestria.
— Eu te vejo, Itzmítli Yohualli, Fecha de Obsidiana é seu nome. Te vejo
e vou te matar. – A coisa sussurrou em seu ouvido, como se a voz etérea
viesse de todas as direções.
Assustadas, as três moças empoleiraram sobre ela, olhando ao redor.
— Não deixe que ele veja vocês, não façam nada. Ele sabe meu nome.
— Ele quem? – Perguntou Tonamitli, inquieta.
— A coisa que está me atacando.
— Não viemos aqui para ver você levar uma surra de um espírito. Se
nos unirmos teremos uma chance de afastá-lo. – Disse Ixi’yah e
acrescentou, urgente. — Vamos, cada uma em sua casa.
Itzmítli tentou dissuadi-las, mas tão rápidas e obstinadas quanto o
vento, Tonamitli e Tlapali empurraram-na, fazendo tomar o ponto Norte
do cume. Seu olhar angustiado se depositou no rosto de Tonamitli que
de frente a ela tomou para si a direção Sul.
— Eu sou o Leste, o berço do sol, a brisa da manhã, a renovação da
vida. Sou o sangue precioso e o vermelho é a minha cor. Tlauztlampa é
a minha morada, Tlallocayoli é meu nome. – Ergueu seu canto Ixi’yah.
— Eu sou o Norte, o lugar onde o sol dorme, o vento duro e cortante de
obsidiana. Sou o sopro do espírito e o branco é a minha cor. Mictlampa
é a minha morada, Mictlán Ehecátl é meu nome. – Vociferou Itzmítli.
— Eu sou o Oeste, o lugar onde o sol se deita, a região das mulheres
guerreiras, o vento frio que congela os ossos dos homens. Sou o
crepúsculo e o negro é a minha cor. Zihutlampa é a minha morada,
Zihuatecayotl é meu nome. – Ainda que num tom alto a voz de Tlapali
soou soprada.
— Eu sou o Sul, a morada dos 400 deuses aprisionadas nas estrelas, o
lugar dos espinhos luminosos. O lugar onde o sol no meio do céu desce
para tocar as oferendas dos homens. O furacão poderoso que agita o
mar e destrói tudo o que toca. Sou o meio-dia e o amarelo é a minha
cor. Huiztlampa é a minha morada e Huiztlampa Ehecátl é meu nome.
Os apitos de vento soaram em uníssono e com passos lentos se
aproximaram do centro. Os cogumelos que ingeriram na câmara
subterrânea, tal qual o mais supremo dos aliados, as permitiam ver o
brilhou que se formava ao redor de cada uma dela, um redemoinho de
pura luz que envolvia Ixi’yah de uma cintilância vermelha e calma,
Itzmítli de um redemoinho poderoso, ameaçador e branco.
Tlapali se enegreceu a tal ponto que não tinha mais uma forma, era um
borrão negro e cintilante que se sinuava como uma serpente que se
esgueira num rio. E Tonamitli reluzia num amarelo profundo intenso e
helicoidal, que atirava flechas, tais como relâmpagos dourados para
todas as direções.
E quando próximas o suficiente uma da outra, deram-se as mãos e a
luminosidade que as envolvia tal como uma cascata escorreram para
dentro do círculo formado, fazendo emergir um ser índigo pelo qual uma
cintilância branca percorria seu corpo como veios de água, ou
minúsculos túneis de vento.
Arrebatada pelo êxtase, Tlapali só não se estatelou porque com mãos
fortes Itzmítli e Tonamitli amorteceram sua queda, fazendo-a deitar
suavemente sobre o cume. O ventou soprou e rodopiou acima dela,
fazendo o cabelo chicotear os rostos enlevados. As outras três se
sentaram e ergueram um canto melodioso, mas sem significado, a
vibração de suas vozes era a própria prece.
Harmonizaram-se, não porque tivessem uma preparação prévia, mas
porque suas melodias e tons se sincronizaram por pura intuição.
Sabiam que Tlapali viajava entre mundos e o som de suas vozes tanto a
fortalecia quanto lhe serviria de guia.
Após um tempo, Itzmítli observou ao Sudeste que apesar da
transparência, tal como uma gelatina incolor, um corpo se formava.
Parecia fazer algum esforço, pois lentamente via dentro do perímetro
transparente e gelatinoso suaves ondulações como rastros deixados por
uma fumaça branca e translúcida.
Não tardou muito até aquele ser translúcido tomar as feições de Ni
Cháac. Sua alma ouvira ao seu chamado e sem titubear, levantou-se de
um salto e quando defronte da imagem dele, levou seu apito à boca e
aspirou. De pouco em pouco, a cada inspiração dela, a figura fluía para
dentro do apito, adentrando no corpo da moça.
Viu-se trêmula assim que ouviu os gritos de dor de Tlapali, hesitou por
um instante a fim de decidir-se se retornaria para o círculo ou se
finalizaria o processo de trazer para dentro de si a alma do amado, a
qual intentava soprar para dentro dele tão logo o encontrasse.
Queria afastar aqueles pensamentos, mas ela mesma se viu nas mãos
do ser que guardava a alma de Ni Cháac e não podia mentir para si
mesma, era bem provável que Tlapali fora pega por tal ser. Viajando no
mundo dos espíritos somente um feiticeiro de grande habilidade
conseguiria passar desapercebido e nenhuma delas tinha treinamento e
poder pessoal suficiente para tal façanha.
Havia urgência na voz de Tonamitli quando clamou por ela. Não faltava
muito e sabia que se parasse o processo de aspirar a alma de seu
amado, ela a perderia. Angustiada e oprimida pela culpa, sob os gritos
dolorosos da amiga, procurou acelerar o processo. Talvez nunca mais
tivesse a mesma chance e viu-se inclinada, com muito sofrimento, a
sacrificar o bem-estar de Tlapali por Ni Cháac.
As vozes de Tonamitli e Ixi’yah combinavam-se em reclamações e
convocações urgentes. E assim que aspirou pela última vez, concluindo
seu trabalho e sentindo desorientada com o ser estranho que sentia
estar dentro de si, fazendo saltar em sua mente imagens e memórias
desconhecidas e confusas, os gritos de Tlapali também cessaram.
Deixou-se esticar ao solo assim que fraca e trêmula não conseguiu
mover-se. O cenário modificou-se no caos que se formou dentro de sua
mente e bem diante de seus olhos. Um animal quimérico estava em
cima dela, folegando um hálito fétido, na corpulência enegrecida e
viscosa, assemelhando-se ao sangue coagulado. Os olhos terríveis
grandes e redondos, deixava passar um estranho raio luminoso tal
como uma cortina a deslizar sempre para o mesmo lado, sobre os
glóbulos negros e brilhantes.
Abriu a enorme boca e as mandíbulas nojentas apertaram-se
dolorosamente em seu ombro. Estava confusa demais para saber o que
fazer e se livrar daquilo, e sentindo a aspereza do solo sobre a pele
suave de seu rosto, esforçou-se para olhar suas amigas no centro do
cume.
A luminosidade ambarina que a envolvia a fez crer que era Tonamitli,
que se arqueou sobre ela, forçando-a se levantar, como se não visse o
ser monstruoso que ainda tentava lhe devorar. Apercebendo-se que algo
incompreensível e invisível deixava a amiga prostrada e empacada,
retirou uma faca de dois gumes de obsidiana de seu cinto e desferiu
golpes no ar diante da amiga.
Recitava algum encantamento que Itzmítli não conseguia distinguir em
meio a um estranho e caótico vozerio que as cenas, o absurdo de seu
momento e as estranhas memórias produziam. E embora o poder de
sua amiga não fora o suficiente para fazê-lo desaparecer por completo,
viu-se livre do animal coagulado e fantástico que se afugentou, ficando
a alguns poucos metros dela.
As panturrilhas e calcanhares arderam assim que a amiga a arrastou
para o centro do cume com dificuldade e sentiu o corpo morno de
Tlapali bem ao seu lado, quando Tonamitli a abandonou. Minúsculas
pedrinhas voaram e machucaram seu rosto, assim que as duas
feiticeiras começaram a realizar um canto e uma dança de proteção.
Os passos eram cadenciados e embora não pudesse acompanhar o
canto com nitidez como se estivesse sendo lentamente carregada pelo
sono, naquele estado hipnagógico cheio de imagens e sons desconexos.
Conhecia a dança que era ensinada de geração em geração, simples,
popular, mas muito efetiva.
E após um breve período, foi carregada pela inconsciência.

Ruídos Noturnos

O ambiente era aterrador, podia identificar as montanhas e colinas que


cercavam Tolan, mas captava a sua atenção as falésias ocre salpicadas
por uma vegetação rasteira e amarelada. E, incessante, o vento soprava
do Norte levantando a poeira que rodopiava entre os cactos. Tudo era
iluminado tal como se fosse dia e o sol no zênite não permitia aos
objetos criar qualquer sombra.
E no entanto ao mirar o céu, nele não havia qualquer sol, nem o anil,
nem pinceladas brancas de nuvem. A noite lhe cobria com o seu manto
cintilante e sequer havia lua que ofuscasse o brilho de todas aquelas
estrelas.
O mesmo vento que fazia as folhas e pequenos galhos darem
cambalhotas sobre o terreno árido, foi o mesmo que fez com que Ni
Cháac ouvisse o rugido ameaçador e ininterrupto de um jaguar que
sentia estar muito distante.
Sua intuição o fez olhar para uma colina em específico a Noroeste e
como se manipulado pelas mãos do divino, o espaço entre ele e a colina
distante encolheu de súbito e a voz doce que tanto amava, vinda do
cume, clamava:
— Onde você está, Ni Cháac? Não vá para onde eu não possa te buscar,
meu amor. Volte, porque eu te amo.
Aturdido, observou o imenso felino que se esgueirava na encosta e
disse:
— Itzmítli, eu estou aqui, minha luz.
Assustou-se ao ver o rosto do irmão que cresceu diante dele risonho e
levou as mãos para esfregar os olhos quando este falou:
— Sinto ter que te acordar num momento tão particular.
— Eu estava falando dormindo?
Mulísh sacudiu a cabeça afirmativamente, divertido e disse:
— Está atrasado. Precisa comparecer ao templo.
Entre gemidos e grande indisposição abandonou a cama macia, um
luxo relegado apenas aos grandes nobres e se colocou a caminho do
templo tão logo entornou a bebida amarga que aliviava um pouco a dor.
Nunca fora tão penoso caminhar pela sua amada cidade sob a luz tênue
dos fogueiros que ainda queimavam no exterior dos edifícios e templos
que ladeavam a estrada que fazia jus ao nome, logo que sentia ele
mesmo estar morto ou muito próximo de morrer. Um cadáver a se
arrastar na Estrada dos Mortos.
Intentava seguir sozinho para o complexo de templos que ficava ao Sul
da grande pirâmide, mas Mulísh fizera questão de o acompanhar e
como prometera, seguia alguns passos atrás e em taciturno silêncio.
Sua fraqueza era visível e quando alcançou o complexo com a entrada
guardada por sentinelas e sacerdotes que restringiam o acesso
desautorizado, ficou evidente no suor que escorria de suas têmporas e a
respiração ofegante que fizera grande esforço para completar o pequeno
trecho.
Mulísh não tinha permissão para entrar e se contentou a acenar ao lado
de fora, quando um sacerdote com o rosto coberto por uma máscara
assustadora e totêmica, o guiou para além do pátio principal, deixando-
o numa casa de banho.
Despiu-se como os sacerdotes, todos mascarados, lhe ordenaram e
erguendo a perna com certo sofrimento, atravessou a pequena
barragem que separava o canal de drenagem do restante do lugar. Ficar
ali em pé era extenuante, mas o frio que sentia o incomodava mais.
Com a cabeça baixa, observou os pés de Cuauhtli que se ajeitaram
entre as pedras esparsadas e brancas que os separava alguns
centímetros acima do canal de drenagem. Diante dele a parede insípida,
com marcas de mãos num tom ocre, de muitos que por ali passaram
pelo banho ritual.
Logo o lugar se encheu de fumaça e cantos dos sacerdotes que
conduziriam o banho, seguidas de invocações dos deuses e deusas da
água e da purificação, deixando-o numa postura passiva, onde tudo o
que teria de fazer era rezar e solicitar aos deuses que o perdoasse dos
erros cometidos.
Sentiu congelar-se até os ossos quando os sacerdotes impiedosos
derramaram a água fria sobre eles, os dentes rangeram e seu corpo se
envolveu em vários espasmos.
— Será muito difícil para você. Sua ferida está com uma aparência
horrível. Por que não solicita um banco? Eles não haveriam de te negar.
Sua cabeça se manteve declinada sobre o peito sem mover um
centímetro, seu peito se apertava com uma angústia inexplicável
sempre que o belo rosto de Itzmítli emergia à sua mente.
Seu sonho nada havia revelado, mas aquele sentimento cobria-o com
uma certeza enlouquecedora, sentia que ela estava em perigo. Ela o
procurava, clamava por ele. Se tivera feito algum ritual ou tivesse
despertado em seus sonhos para procurar por ele no mundo dos
espíritos, estava sim correndo um risco real.
Seu nagual estava vagando sozinho pela montanha e correndo muito
perigo, e nenhum feiticeiro se inclinava a resgatá-lo. Questionava se ela
poderia senti-lo como ele a sentia. E sofria ao pensar que a fraca ligação
espiritual que conseguiu manter com ela, seria cortada se Cuauhtli
fosse o escolhido dos deuses.
— Seu silêncio é esmagador. Por que me ignora? Feri tanto seu coração
ao ponto de não ser digno de sua atenção?
— Mesmo que me esforçasse muito, seria incapaz de te ignorar, meu
irmão.
— Então entende o que fiz?
— Ainda que aplicasse o mesmo esforço, também não te compreenderia.
Ambos se calaram mediante a dor dos pequenos cortes que os
sacerdotes começaram a fazer em seus corpos. Viraram ao mesmo
tempo para fitar os mascarados que proferiam encantamentos assim
que as navalhas negras e afiadas faziam emergir o líquido vermelho,
viscoso e sagrado. A dor foi lancinante assim que o sacerdote abriu sua
ferida com a navalha de obsidiana.
— É bom que drene, meu senhor. – Anunciou, como se precisasse
explicar-se.
Tornaram a encarar a parede e o novo jato de água foi um pouco mais
agradável, a sentia quente, mas a febre decerto mascarava a real
temperatura e a julgar a vermelhidão que observou em Cuauhtli, era
possível que estivesse muito quente.
— É uma pena que nenhuma celebração será feita por sua campanha
tão bem-sucedida. Não deve ter sido uma empreitada fácil acabar com
aqueles mercenários e resgatar os víveres que roubaram dos
mercadores.
— Reconhecimento e condecoração são assim tão importantes para
você?
— Não é para você? – Perguntou Cuauhtli, surpreso.
— Estou satisfeito por zelar e prover para nosso povo. Foi com esse
propósito que os deuses me concederam um nagual poderoso, assim é
meu dever proteger aqueles que estão abaixo de mim na sagrada
montanha. Respeitando os princípios divinos e cumprindo o meu dever
de pai, sacerdote e provedor, o sol aceita brilhar e a chuva fecunda a
terra, o milho cresce nas milpas e o forte protege o fraco.
— Faltou entregar aos deuses a sua justa parte. Não os alimentar
provoca o caos e a desordem no mundo, se eles perecerem, nós também
perecemos.
— Não sou o único que precisa redimir-se.
— Sei que não. Mas, bem sabem os deuses que não o fiz por mal.
— Não há motivo para comemorações. Não acredito que esses ataques e
roubos cessarão. – Admitiu Ni Cháac, convicto.
— Estou tendo êxito em manter as rotas seguras ao Norte e contendo as
invasões. Poderíamos desenvolver juntos uma boa estratégia, mas
acredito que demorará até que se encarregue das rotas comerciais do
Sul, angariar guerreiros ou voluntários para ergueu seu exército
novamente levará tempo.
— Talvez beneficie meu irmão com suas sábias palavras, jovem Águia.
— Estou à disposição da Casa da Serpente.
— Acredito que sim. Contudo, talvez seja mais sábio de nossa parte se
dispor à Casa Jaguar, é a ela que devemos reparações.
— Tenho muito a oferecer.
A água jorrou morna sobre seu corpo uma vez mais e foram guiados
para o temazcal, onde dentro de uma tenda hermeticamente fechada, os
sacerdotes derramavam água sobre pedras ardentes, recreando a
experiência do útero divino, quente e úmido.
Além de ser usado para tratar doentes, era um ritual de purificação e
renascimento. As ervas misturadas a água utilizada, com o seu aroma e
essência no vapor que enchia a câmara, conduziriam os dois regentes
ao estímulo de suas faculdades mentais, bem como para abrirem se ao
mundo dos espíritos e seguir os conselhos dos seus próprios como dos
guardiões de Tolan.
Foram banhados com a água fria ao saírem, mas não lhes foram
oferecido qualquer alimento, pois que ambos estavam prontos para
darem início as práticas ascetas e o jejum era de grande importância.
Caminharam sob a liderança de alguns sacerdotes até o pátio principal
onde se separaram, Ni Cháac foi conduzido para o edifício ao Leste e
Cuauhtli para o Oeste.
Somente um sacerdote mascarado o acompanhou e cerrou a porta
assim que atravessaram, guiou o jovem serpente pelos estreitos
corredores e o conduziu para uma câmara ritual.
Ajoelhou-se diante de uma estátua de basalto de um metro e meio do
deus da chuva Tláloc, nos dois cantos da mesma parede havia a
estatuas de dois jaguares onde estilizaram os animais com a cabeça a
avançar sobre as patas dianteira como se estivesse saindo de um
buraco.
O sacerdote balançava o turíbulo perfumando a câmara com o incenso
de copal e após seu longo canto e circunvalação, sentou sobre os
calcanhares diante de Ni Cháac, entregou um pouco de vinho de
toloache, assim como o cachimbo aceso.
— Por mais que buscamos o bem-estar coletivo e fazemos tudo para
cuidar daqueles que são mais fracos do que nós, numa entrega
dedicada e abnegada, derramando-se em poder para o bem de todos.
Um nagual, mesmo uma serpente poderosa e inconquistável, não deve
sentir ou ver-se sozinha no momento de provação.
De olhos fechados e sustentando um sorriso discreto ao reconhecer a
voz amiga e familiar por detrás da grossa e grotesca máscara, disse:
— Qualquer santo deve saber que muitos daqueles sobre os quais
derrama sua luz e labuta para seu bem, são os primeiros a condená-lo e
devorar sua carne. E mesmo um deus, de visão ampla e sentidos justos,
quando em corpo humano, está suscetível as forças que controlam o
destino dos homens e assim torna-se passível de erro.
— Mesmo com toda a discrição do Supremo Jaguar Yohualli, outros
também viram o que você viu, meu amigo, ou no mínimo suspeitam.
— Não é ambição ou desejo de sucesso o que me move, há muito
acalento o desejo de me casar com ela.
— Seu pai jamais te desejaria mal, mas está sob tanta pressão quanto
você. Muitos estão descontentes com a decisão de mover as plantações
para longe do centro, acham que construir novos bairros e monumentos
suntuosos é uma estupidez. Há nobres descontentes de serem
afastados para a periferia da cidade e Toluatli está se sentindo lesado
com a importação de víveres.
— O que está tentando me dizer?
— Que homens são e sempre serão homens. E você, mais do que seu
pai, é uma pedra na sandália dos muitos que estão interessados em
sabotar a ideia de erigir uma cidade imponente e vistosa. Alegam que
Danipaguache, os arquitetos e construtores estão sendo mais
beneficiados do que os próprios tolanos com tal projeto.
“Ainda não posso apontar nomes, tenho algumas suspeitas, mas não
posso condenar sem ter certeza. O não abastecimento de Tolan trará
escassez aos pratos. E um povo descontente e faminto jamais
concordará com novos templos, edifícios, bairros e monumentos porque
não hão de se alimentar de tezontle e cal.”
“Controlar a entrada e saída de peregrinos em nossa cidade é uma
tarefa impossível e suspeito que se realmente Cucuilco e Tlalencaleca
estão por trás dos roubos e obstrução das rotas comerciais ao Sul,
estão muito bem-informados desde o coração de nossa terra.”
— E quem te enviou aqui?
— Seu pai. Como disse, ele está sob muita pressão, sabe que está sendo
difamado e que não pode confiar naqueles que o rodeiam, demonstrar
que está contra o próprio filho é importante para sua própria
segurança, Ni Cháac. Apesar de sua pouca idade, suas façanhas são
dignas de um nagual e guerreiro muito poderoso, e você atemoriza-os
mais do que eu próprio pai. Desestabilizá-lo e destitui-lo de seus
poderes te torna menos ameaçador.
— Cuauhtli tem algo a ver com isso?
— Não posso afirmar. Ao que pude observar entre as conversas de
nobres tolanos e mesmo estrangeiros, o sacerdote Amyutri tem sido um
conselheiro ao qual Cuauhtli está dando mais atenção do que ao seu
próprio pai. E nada tenho contra esse sacerdote, ao menos até o
momento, que o colocaria entre aqueles que querem tirar você e seu pai
do caminho.
“Ainda tenho muito por descobrir e meu acesso as casas sagradas é
bem limitado, assim como não tenho permissão de me manter em Xalla,
sempre que vou para o palácio, minha estadia é muito breve e agindo
como mensageiro na maioria de minhas visitas, tenho pouquíssimos
recursos para estabelecer amizade com aqueles que trabalham lá.”
— Muito pouco poderei fazer agora que ficarei em recolhimento.
— Esse não é em absoluto o momento para agir, deve se empenhar em
manter-se vivo. É possível que muitos afrouxem agora que a notícia que
seu pai retirou de seu comando guerreiros e servidores se espalhou por
Tolan, mas sem conhecer nosso inimigo, não podemos medir o tamanho
de sua malícia. E não posso controlar tudo o que será oferecido para
você durante seu recolhimento, por isso seja cauteloso ao ingerir
bebidas e alimentos.
— Meu pai só está fingindo quando diz ser contra meu casamento?
— Não, ele realmente não deseja esse casamento.
Ni Cháac suspirou, vencido.
— Estou a serviço de seu pai, mas ainda sou seu amigo e o que puder
fazer eu farei. Não fosse por você não teria o cargo que tenho hoje e vou
te servir até que um de nós morra.
— Conseguiria conversar com Nuvem Tempestuosa de Tahín? Os
jogadores de Tahín são os melhores.
— Posso fazê-lo na confraternização. O que devo oferecer em troca?
— Diga que eu e minha casa o serviremos bem, dê-lhe um presente caro
e deixe que fale o que deseja.
— Assim eu farei, meu amigo. – Ia se levantando, mas Ni Cháac
segurou seu braço, dizendo:
— Não posso afirmar, mas minha intuição não apazigua meu espírito.
Peço que busque informações sobre Itzmítli, acho que está em perigo.
— Meu acesso a sagrada casa jaguar é um dos mais restritos, mas farei
o que me pede. Aproveite sua meditação e deixe seu coração em paz,
recuperar-se é sua maior prioridade agora se quiser lutar contra a
injustiça.
— Obrigado, Turim.

O Grande Momento

A Pirâmide do Sol erguia-se imponente e vistosa, coberta de vermelho


parecia nascida e mesclada a montanha atrás dela na qual se alinhava.
Exausta Ixi’yah cochilava com a cabeça pendida sobre o peito, ainda
oferecendo seu próprio corpo para sustentar Itzmítli e Tlapali que
pareciam adoecidas.
Num céu onde as nuvens rolavam apressadas tal como cinzentas bolas
de algodão num esforço débil de encobrir as pequenas estrelas que já se
apagavam, a estrela mais brilhante reluzia ao Leste anunciando o sol
vindouro.
Seu brilho fascinante cintilava tal como os pontos luminosos e
amarelados das tochas dos sacerdotes que subiam a escadaria da
pirâmide para realizar o ritual no templo de um vermelho ainda mais
intenso em sua cúspide.
Sem distinguir bem os corpos dos sacerdotes que mais pareciam
borrões preto e disformes daquela distância, as chamas das tochas
eram um espetáculo por elas mesmas. Como se pontos luminosos
escorressem tal como gotas douradas na imensa fachada piramidal.
Tal dança das luzes afugentava o sentimento inquietante que residia no
peito de Tonamitli. Por mais belo que fosse o horizonte que se
desenhava a meia-luz da manhã, com as colinas a circundarem a
cidade tal qual um muro protetor, ou as ondulações cinzentas das
nuvens no céu, ou a estrela mais portentosa a exibir seu brilho sem
interrupções, pareciam lhe oferecer uma paz falsa.
Estava certa de que a noite fora um grande fracasso e a indisposição e o
abatimento que viu nos semblantes de Itzmítli e Tlapali que literalmente
foram arrastadas até aquele ponto, dava-lhe a certeza de que seus
espíritos foram feridos e que adoeceriam como consequência.
Em contraste com a lucidez de Tlapali, Itzmítli pronunciara frases
desconexas e sem sentido durante todo o percurso, e ainda que
rebuscasse em sua memória tais diálogos para dar algum significado,
nada do que fora dito parecia ter qualquer sentido. E a ideia de sua
amiga ter enlouquecido a fazia estremecer.
Como haveria de explicar para suas famílias e curandeiros o que
fizeram naquela noite? E como poderia passar o resto de seus dias
observando a amiga enlouquecida sem saber como ajudá-la?
Retirou o embrulho de sua bolsa e despejou as insígnias que agiriam
como uma chave para abrir as portas da Ordem para elas e por mais
que confiasse cegamente em sua preceptora, uma voz insistente no
fundo de sua mente tentava convencê-la a desistir daquilo.
Embora não esperasse que Tlapali exercesse um papel decisivo naquela
ação, a agudeza mental de Itzmítli faria falta caso as coisas não saíssem
como planejado. Ixi’yah de descendência maia e conhecedora dos ofícios
sacerdotais de astronomia e calendário, poderia até certo ponto fazer as
vezes da amiga, mas era muito gentil e delicada, e por certo se calaria
quando Itzmítli, mais agressiva, avançaria na discussão com bons
argumentos.
Sentia-se sozinha diante da congregação a qual não fora convidada e
com o correr lento e tedioso do tempo via-se acovardando mediante a
ousadia da ação proposta por Ixi Kanil. Deixou o olhar cair sobre as três
amigas amontoadas uma sobre as outras, tais quais trouxas de pano,
ressentia-se ao medo e ansiedade que a fazia prostrar.
Não demorou até que viu uma aglomeração na entrada para a gruta
subterrânea da pirâmide, os convocados, sacerdotes e governantes
finalmente chegaram. Agitada e temorosa, avançou sobre as amigas e
as despertou.
— Estou bem, estou bem, só estou confusa. – Balbuciou Itzmítli,
fazendo crescer nela uma ponta de esperança e coragem, e perguntou,
incentivando o raciocínio da amiga:
— Por que está confusa?
— Até a pouco não conseguia distinguir com lucidez o que eram meus
pensamentos, do que eram as memórias de Ni Cháac. Nem se fazia
claro nosso mundo da outra dimensão que me engolia. E embora tudo
isso esteja aqui e não posso ainda distinguir tudo com facilidade, estou
mais consciente de quem eu sou.
— Você agarrou a alma dele no mundo dos espíritos? – Perguntou
Ixi’yah, animada.
A moça abatida consentiu com a cabeça.
— A prendeu dentro de seu apito?
— Não, aspirei para dentro de mim.
— Não, não é possível! Não temos nem técnica e nem poder para isso! É
o mesmo que tomar o poder dele para si! Nem você e nem nenhuma
outra entre nós conseguiria fazer isso! – Afirmou Ixi’yah, incrédula.
— Talvez Ni Cháac por confiar em Itzmítli tenha permitido. E estar
inundada com o poder mágico dele explica bem a loucura a qual está
submetida. Sem poder pessoal ou controle, é possível que o poder dele a
esteja ferindo e drenando, tal qual um aliado a qual não somos capazes
de controlar. Não é diferente.
“O que me preocupa é que ele é o sucessor da serpente e treinado para
ser um feiticeiro e nagual poderoso, temo que se não a levarmos para
soprar de volta a alma dele, é possível que adoeça muito ou mesmo
morra. Eu desistiria facilmente da Ordem dos Naguais para levá-la até
ele.”
— Ele não estaria aí? – Perguntou Ixi’yah, sagaz.
— Não posso me aproximar dele assim e soprar sua alma em sua boca
na frente de todos. – Alegou Itzmítli e acrescentou: — E até que saiba
quem ou o que o aprisionava é insensato me expor de tal modo, ainda
que saiba que o ser ou o feiticeiro sabe que estou com ele, assim como
sabe meu nome e aquela sombra que vem se arrastando atrás de mim
desde a colina é com certeza um aliado de tal ser ou nagual.
Tonamitli a observou, intrigada. Até aquele momento julgou ser as
maluquices que Itzmítli falava uma tentativa de descrever a experiência
que teve naquela noite. Embora Ixi Kanil alegasse que ao se unirem e
agirem de mãos dadas seriam todas capazes de ver a mesma coisa, na
prática aquilo não acontecia.
Tlapali era a única entre elas que fora capaz de ver tudo o que
acontecera tanto no plano do espírito, quanto no plano mundano, ela
mesma anunciara durante o percurso custoso e cansativo da colina até
a pirâmide de que tanto ela quanto Itzmítli estavam muito machucadas
e fracas, e que o Senhor dos Duros Golpes, como ela mesma nomeou o
ser que as abordara e atacara, conhecia seus verdadeiros nomes.
Saber o nome de seu adversário era de grande importância. Assim era
de conhecimento comum que o verdadeiro nome de alguém nunca devia
ser mencionado. Tal nome não podia ser conhecido por todos porque
podia gerar malefícios e até mesmo provocar a morte. De posse desse
nome um feiticeiro habilidoso teria facilidade em derrotar o seu
opositor.
Consciente de que se aproximariam da imponente e imensa pirâmide
com lentidão, Tonamitli as incentivou a caminhar. Logo aos primeiros
passos Itzmítli mostrou-se ofegante e Tlapali, febril, choramingava
alegando estar toda dolorida.
— Estou sem coragem. – Confessou Tonamitli, tão logo pararam a
poucos metros da entrada do túnel. — É até ridículo admitir isso, acho
que eu era a mais empolgada entre vocês quando Ixi Kanil nos pediu
para fazer isso, mas agora que estou aqui não acho que isso acabará
bem.
— Estou chafurdando no caos de minha mente e sequer consigo
distinguir meus próprios sentimentos e pensamentos. Mas, vamos
seguir já que estamos aqui e nos responsabilizar por nossa escolha e
suas consequências.
— Por favor, Tonamitli, temos de fazer isso, não quero me casar com um
nobre estrangeiro e deixar Tolan. – Implorou Tlapali, convicta. — Se o
Senhor dos Duros Golpes me matar que eu ao menos tenha o prazer de
morrer no lugar onde nasci.
Contrariada Tonamitli concordou com a cabeça e se sentou, imóvel,
tentando encontrar algum mínimo de coragem no silêncio que as
envolveu. Itzmítli às vezes movia os lábios sem proferir qualquer som,
como se estivesse tendo uma longa conversa consigo mesma.
Entretanto, naquele momento os olhos de um castanho ocre quase
avermelhado caíram sobre sua face com tanta lucidez que a acalmou.
— Devíamos pensar no que faremos caso isso não termine bem. – Ela
disse, com o tom cortante de sua sagacidade. — Não que desconfie de
nossa mestra, mas admito que com tudo o que estou passando, tenho
sérias restrições em relação ao Supremo Serpente.
Esmagou a amiga em seu abraço assim que ouviu aquelas palavras e
exclamou, alegre:
— Está voltando ao normal!
— Quê? – Perguntou Itzmítli, confusa.
— Até a pouco você não estava falando coisa com coisa.
— Então é bom que pensem logo por que acho que todos já entraram. –
Proferiu Ixi’yah que ao se levantar tomou as mãos de Tlapali para
ajudá-la. — Temos de ir. – Acrescentou.
Tonamitli se levantou e após dar alguns poucos passos em direção a
gruta subterrânea sentiu seu estômago revirar. Parou, repentina e
exclamou:
— Acho que vou vomitar!
Seu nervosismo a arrastou poucos passos de distância de suas amigas
e encurvando-se sentiu os olhos marejarem com a contração estomacal,
mas não conseguiu repelir coisa alguma, senão um pouco de água, pois
estava de estômago vazio.
Viu-se obrigada a liderar o grupo e como afirmara Ixi Kanil, não houve
nenhum contratempo, não havia guardas ou homens de prontidão para
guardar a entrada do túnel.
Já a ponto de adentrar a câmara, assinalado pelas vozes que se
erguiam num canto monótono e repetitivo, deixou a mão suada e fria se
arrastar sobre o estuco do muro que separava a câmara do túnel. Fez
um sinal para que as outras as esperassem e com cautela aventurou a
bisbilhotar o que acontecia.
Nenhum dos presentes vestiam qualquer adorno e com horror percebeu
que alguns de seus parentes faziam parte do grupo, era certo que não
sabia com exatidão tudo o que faziam ou deixavam de fazer, mas seu
primo Chitalli era seu amigo e não era possível que não lhe contasse
que participaria de algo como aquilo.
Outros rostos conhecidos se revelaram, os irmãos de Itzmítli eram
bonitos demais para passarem desapercebidos, alguns outros rostos se
destacavam e estava certa de que sequer eram membros da elite tolana,
e ainda que muitos eram nobres, nenhum deles usava qualquer adorno
ou insígnia que os identificassem.
Todos eles, homens e mulheres se cobriam com uma capa branca e
insípida, nenhum se enfeitava, os cabelos estavam soltos e nenhum
cocar, toucado ou diadema os ornamentavam.
No centro do círculo que formavam estava um completo estranho em pé,
adorado como um deus, coberto por pedras preciosas verdes,
depositava com ternura sobre os presentes estranhos olhos verdes.
Nunca vira ou ouvira falar de alguém entre todos os povos que pudesse
ter os olhos daquela cor, exceto os olhos claros do deus Quetzalcoatl.
Uma serpente verde repousava sobre seus ombros, calma e inofensiva e
para a sua completa incredulidade os Quatro Poderes acompanhados de
seus filhos, exceto Ni Cháac e Cuauhtli que pareciam não estar
presentes, se ajoelhavam em torno do misterioso homem.
Escondeu-se atrás do muro, agarrando-se a ele, trêmula e enjoada. Não
fazia ideia do que realmente era aquela Ordem dos Naguais e tampouco
compreendia o estranho culto que ocorria embaixo da maior pirâmide
de Anahuác bem ali diante de seus olhos, mas o coração disparado e o
pavor insistiam para que corresse para bem longe dali.
Perspicaz, Itzmítli notou seu espanto e sentiu o calor de seu corpo
assim que encostando-se a parede rente a ela, lançou a cabeça para
dentro da câmara. Ela ficou observando por um tempo, enquanto as
outras se amontoaram sobre ela perguntando sobre o que estava vendo
e o motivo da demora. O olhar agudo da amiga caiu sobre seu rosto
feito uma bola de fogo.
— O que acabamos de testemunhar não permitirá que tenhamos paz de
espírito tão cedo.
Sim, Itzmítli tinha razão, estava tremendo de medo, mas podia
enumerar cada pergunta que surgia em sua mente e duas delas lhe
trouxeram uma profunda inquietação: “Quem era aquele homem
portentoso?” e “O que realmente era a Ordem dos Naguais?”.
Se conhecia bem o suficiente para saber que tais perguntas eram o
estopim de noites insones e já a afetavam com tanta intensidade que
nem sua preocupação com sua primeira relação sexual com Mulísh na
noite da consumação da união deles a aterrorizava mais. Era bem
possível que transasse com ele pensando na cena que acabara de
testemunhar.
Mas, tudo haveria de ter um limite, e o terror que tomara combinado
com a voz de sua intuição que a alertara mesmo antes de suas amigas
despertarem anunciavam solenes e urgentes que aquele tinha de ser o
limite de sua curiosidade.
— Não, não devemos nos expor e nem pedir nossa entrada nisso, seja
isso o que for. – Cochichou Tonamitli, entre elas.
— Tem certeza? – Perguntou Itzmítli também sussurrando. — Nunca
ouvi nada sobre um tipo de culto como esse, nem li nada parecido em
lugar nenhum.
— Do que estão falando? – Perguntou Ixi’yah se esgueirando, curiosa, a
fim de espreitar a câmara.
— Não, não! – Seu tom era enfático, embora sussurrasse. — Não
devemos fazer o que Ixi Kanil nos pediu, temos de sair daqui.
Para seu completo terror, repetina quanto uma rajada de vento, Tlapalli
tomou o embrulho de suas mãos e com passos firmes e pesados, num
tom alto e claro, proclamou pouco antes de invadir a câmara:
— Eu me recuso a deixar Tolan.
As três entreolharam-se, aflitas e paralisadas. O vozerio se ergueu e
logo se acalmou assim que a voz de Tlapali anunciou as palavras
exatamente como Ixi Kanil as orientara. Os sons dos passos
anteciparam o que sabiam esperar e as mãos caíram pesadas sobre
seus ombros e sem conseguir reagir foi arrastada para dentro da
câmara junto das outras.
Não soube de onde encontrou forças para erguer o olhar sob os fortes
espasmos e as palpitações intensas e aceleradas de seu coração, seu
semblante queimava e a respiração ofegante fazia crer que o ar lhe
faltava. Procurou pelo homem misterioso, mas não estava mais entre
eles.
Diante dela estavam os Quatro Poderes, Iztac Coatle inclinava-se e
despejava uma quantidade enorme de perguntas em Itzmítli. A amiga
balançava a cabeça e balbuciava algumas respostas confusas e
desconexas. Era bem possível que sua confusão mental tivesse
intensificado com o nervosismo gerado pela situação.
— O senhor deu sua palavra, é divino o dever de cumprir com ela. –
Nunca imaginou que Tlapalli pudesse ser tão valente.
— Responda, minha filha, quem as orientou para que cometessem tal
injúria? – A voz do Supremo Jaguar era terna assim como o toque suave
de suas mãos sobre os ombros da sobrinha pálida e ajoelhada.
— Eu sei quem foi o mandante. – Afirmou Iztac Coatle e acrescentou. —
Esses objetos não têm significado e nem poder algum, mas os
reconheço e sei quem é o dono. Não as castiguem, essas crianças não
têm culpa alguma. Tonamitli já é uma filha de minha casa e Itzmítli
pode vir a ser minha filha também, foram coagidas.
— Não, não. Ninguém nos obrigou a nada, estamos aqui por nossa livre
vontade.
Tonamitli viu-se num misto entre admirar a ousadia de Tlapalli e o
desejo em matá-la. Embora não compreendesse a situação e nem a
gravidade de seus atos, não conseguia naquela altura desconsiderar a
possibilidade de Ixi Kanil as ter usado para algum propósito pessoal e
nefasto.
Considerando o que afirmara sobre ser uma mulher rejeitada e
abandonada, embora os anos tivessem corrido, quem poderia lhe
assegurar naquele momento de que aquilo não se tratava de alguma
vingança?
— Sim, elas são jovens e por mais besteiras que já fizeram
impulsionadas pela imaturidade, são meninas educadas e respeitosas. –
A voz de seu pai era inconfundível.
— O que sabem sobre o que está acontecendo aqui, filha? – Perguntou o
Supremo Jaguar em seu tom tranquilo e habitual.
— Tudo o que sei é que se trata de uma Ordem de Naguais que obterão
por participação altos cargos no governo de Tolan. – Respondeu Ixi’yah,
lúcida o bastante para perceber que estavam enrascadas.
— Sigam-me.
O tom do Supremo Águia era gentil, assim como seus movimentos e sua
espera até que se reerguessem sobre as pernas bambas. Ele as liderou
para fora da pirâmide e acenando para alguns guardas que faziam
ronda ali perto, ordenou-lhes para que levasse cada uma delas para a
própria casa.
Assim ela e Itzmítli seguiram para extremos opostos, enquanto Tlapalli
e Ixi’yah desapareceram da Calçada dos Mortos nas ruas paralelas que
as guiaram até os bairros onde moravam. Observou os rostos impávidos
e indiferentes dos dois guardas que a escoltavam e repassou a conversa
de Ixi Kanil.
Nada do que dissera para as quatro quando lhes pediu para fazer, o que
Tlapalli foi a única realmente capaz de fazer, parecia suspeito e
intrigante. A única incongruência que notara naquela noite, foi que
após insistir que não devessem ajudar Itzmítli e munida de uma grande
parafernália ritual, que a fez pensar que passariam toda a noite na
câmara subterrânea realizando alguma feitiçaria, ela não pareceu em
nada contrariada quando as três concluíram que não deixariam Itzmítli
sozinha.
Ela não se esforçou sequer a dar um sermão para convencê-las de que o
melhor era ficar com ela na câmara, deu de ombros e as deixou partir
sem qualquer contratempo. Muitos poderiam ter sido seus motivos e é
possível que pouco ou nada tinha de ver com o que acabara de
acontecer. A única certeza de que possuía naquele momento era de que
a tal Ordem dos Naguais era bem mais do que ela revelou.
Entretanto, não se sentia apaziguada com aquilo e queria saber se Ixi
Kanil sabia o que a Ordem era tanto quanto com o que encontrariam
naquela manhã ou se ao obter a informação sobre sua existência teria
sido informada equivocadamente sobre o que aquilo era. E essa
explicação Tonamitli se sentia no direito de ouvir.

O Rugido do Jaguar

O novo palácio era suntuoso, mesmo a ansiedade que lhe acometera


mediante a convocação de seu tio Citlali Yoahualli, não a impedia de
observar a beleza do lugar. Os guerreiros circulavam sobre a passarela
de ronda rente aos muros altos que rodeavam todo o complexo
protegendo-o e impedindo a entrada de pessoas não autorizadas.
Estava bem ao centro da praça principal próxima ao templo que se
erguia em seu centro onde algumas sacerdotisas cuidavam de sua
higiene num ir e vir quase hipnótico, estava curiosa em saber como era
por dentro, os Quatro Poderes o usavam para seus rituais e muitos
poucos tinham acesso ao lugar.
O dourado do sol refletia nas fachadas dos quatro edifícios que
rodeavam o templo sobre a superfície brilhante e ambarina da preciosa
mica que adornavam os relevos e as pinturas de cada um desses
edifícios, mas seguindo o caminho do deleite da beleza estonteante e
majestosa de Xalla, inquietou-se ao ver Sika’an, príncipe de
Danipaguache.
Pomposo e altivo brilhava tanto quanto o próprio sol com os colares que
harmoniosamente misturavam as desejosas pedras verdes de obsidiana
com o dourado ambarino da mica, seu toucado erguia-se abundante
enfeitado com as belas e luxuosas penas de quetzais e seu saiote
parecia uma extensão da cota feita das mais belas conchas da Costa
Oeste, um sinal de sua riqueza e poder.
— Não me admira que os próximos Co Governantes de Tolan
prostaram-se sob os seus encantos. – Ele falou assim que se aproximou
dela. — É tão bela quanto a mais preciosa das pedras.
Sim, ele também possuía uma beleza indiscutível e sua altivez
adornava-lhe com uma formosura irresistível.
— Agradeço seus cumprimentos, príncipe Sika’an.
— Sacerdotisa Itzmítli, seu tio está a sua espera. Lamento ter que
interrompê-los, mas o Supremo Jaguar tem pressa. – Disse o oficial que
deixando o edifício Leste, a abordou, repentino.
— Espero poder conversarmos noutra ocasião. – Falou o príncipe, gentil
e se afastou, reluzente.
Lançou um último olhar assim que cruzou as duas grandes estátuas de
jaguar que ladeavam a curta escadaria até o pórtico tais como
sentinelas e adentrou ao lugar policromático, rico em afrescos e que
emanava um perfume adocicado.
Seu tio esperava por ela curvado sobre a mesa coberta por papéis feito
das fibras do agave, assim como alguns rolos de couro de veado que
eram amplamente usados para a escrita e registros. Seu primo Citlalo
Yluicatli, sentado sobre a esteira no canto da sala, apreciava o
cachimbo enquanto sobre um tabuleiro aplicava-se a matemática.
— Queria falar comigo, meu tio.
— Sente-se.
A pequena brasa que lançara para dentro do fornilho de seu cachimbo
avivou-se em pequenos estalidos lançando rapidamente uma nuvem
que acentuou ainda mais o aroma adocicado do tabaco. Desviou o olhar
para o primo que ergueu a cabeça para fitá-la por um instante e tornou
a se concentrar em seus cálculos.
— Sempre incentivei sua curiosidade e defendia suas perambulações
pelos bairros de Tolan, mesmo contrariando seus pais, porque sempre
soube que seria tão grande quanto sua avó o foi em seu tempo. Não se
educa alguém a fim de torná-lo líder, porque a liderança é uma virtude
inata.
“Basta observar um grupo de crianças brincando e logo o líder se faz
notar, mesmo sem saber que o faz, a criança lidera as outras, dando a
cada uma sua função em suas brincadeiras e as outras o seguem sem
questionar. Talvez porque confiam que a criança líder sempre tem as
melhores ideias tornando assim a brincadeira mais divertida.”
“Entretanto, às vezes, tal como nas matilhas, duas crianças competem e
brigam até que uma vença, assim forçando o perdedor a obedecer-lhe
como as outras crianças. Quando isso acontece, às vezes o grupo apoia
o vencedor, mas se esse, embora mais forte, não tenha as melhores
ideias do que o perdedor, logo as crianças se revoltam e pedem para que
o vencido lidere o jogo.”
“Esse comportamento, minha filha, não muda com o passar dos anos. E
mesmo aqueles que se dispõem a obedecer têm motivações próprias,
ideias as quais gostariam que seu líder anexasse a brincadeira. E às
vezes são realmente boas ideias que um líder sábio sabe que ao
implantar, maior será o deleite em seu jogo.”
“Embora esteja de mãos atadas, sem poder apontar para a sua nova
casa, é de conhecimento geral de que independe de quem vença o jogo
de pelota, seu posto não muda em nada e seus serão os ouvidos de um
homem poderoso.”
“Fiz de você uma pessoa sábia porque sempre soube que ocuparia,
como todas as suas irmãs, assentos nas casas dos poderosos e me
dediquei a você como o fiz para meus próprios filhos e sucessores. Mas,
ainda que reconheça sua inteligência sua pouca idade a impede de
discernir com precisão aqueles que te servem por amor, daqueles que
esperam receber algum benefício em sua companhia.”
“Meu coração se parte com essa decisão, pois que sei o quanto é
benéfico para seu discernimento conhecer como a nossa cidade
funciona, os ricos e os pobres e perceber como diferem suas rotinas e
modo de vida no cotidiano. Um grande líder deve servir e proteger ao
seu povo, e conhecê-los é essencial.”
“E até que esteja sob os cuidados de seu marido e de sua casa, é meu
dever cuidar de você e te fazer lembrar que mesmo sob os auspícios da
serpente ou da águia, jamais deve se esquecer de sua própria casa e
nem descuidar de seus interesses.”
“Para tanto eu mesmo escolhi seu novo preceptor, não deverá mais se
aproximar da sacerdotisa Ixi Kanil, E deverá ficar sob minha guarda,
por isso a partir de hoje trabalhará aqui em Xalla, deverá entender todo
o processo que envolve os lapidários e a manufatura de cal. Não mais
dormirá na casa de seus pais, mas sim na minha.”
— Meu tio...
Sem a permitir falar, continuou:
— Sei que se dedica muito a escrita e que tem frequentado o Bairro dos
Comerciantes para obter conhecimento de seu instrutor maia, não
tenho por intenção interromper tal aprendizado e por isso seu mentor já
foi recrutado para te dar aulas aqui em meu palácio.
— O que vai acontecer com minha preceptora? Vão sacrificá-la?
— Não, ela continuará dedicando-se ao templo, mas não tem mais
permissão de se envolver com suas discípulas e nem de frequentar as
casas nobres. Não importa o quanto são benéficos os resultados de
nossa ideologia e o quanto é de grande importância servirmos aos
deuses e aqueles que precisam de nossos cuidados e proteção.
“Sempre haverá pessoas que colocam seus próprios desejos e intenções
acima do bem comum e é imperdoável que sua preceptora tenha se
aproveitado da inocência de vocês para realizar seus propósitos egoístas
e nefastos. Ela deve se purificar de seus atos e se entregar a uma vida
devota e humilde.”
— Sei que está furioso comigo, meu tio. E sinto muito por te causar
tantos aborrecimentos. Espero que ainda acredite no grande amor que
sinto por você e na pureza de minha devoção. Sequer me percebo digna
de lhe dirigir a palavra e muito menos em te pedir por algo.
— Não estou furioso com você, Itzmítli, não tem culpa de coisa alguma.
O que haveria de me pedir?
— Tive um sonho que deixou meu coração muito pesado. Nele segui
uma coruja sob uma noite nebulosa, caminhei por longos prados e a
coruja que me guiava sentou-se num galho de uma árvore imensa.
Quando ergui meu olhar para a copa, havia milhares de corujas
empoleiradas, fitando-me com seus olhos grandes, mas não grunhiam,
não fazia sequer um ruído.
“Ouvi então um sacerdote que cantava escondido por uma pedra alta
que estava logo atrás de mim, seguindo a vibração de seu canto o
encontrei, tal como um louco dançava em círculo ao redor de dois
cadáveres, um era de uma águia e o outro de uma serpente. Havia
malícia em seu canto e maldade em seus olhos.”
“Eu não posso sequer acreditar que alguém pudesse ferir aos meus
pretendentes, mas não pude deixar de sentir que tanto Ni Cháac,
quanto Cuauhtli talvez devessem se purificar e manter-se em templos
aos quais o senhor, meu tio, pudesse assegurar a segurança e a pureza
de suas práticas e rituais.”
— O que me pede é muito ousado.
— Desde que as casas da serpente e da águia deve servir a nossa e não
estou te pedindo para que interfira na vontade dos deuses, só queria
que se assegurasse da pureza de suas ações.
— Sabe de alguma coisa que eu não sei, Itzmítli? – Perguntou o
supremo, desconfiado.
— O que haveria eu de saber, meu tio? Sequer posso saber de tudo o
que acontece em minha própria casa, como haveria de saber o que se
passa na casa de meus pretendentes?
— Conversa com muita gente. – Assinalou o primo, atento à conversa.
— Não é justo se referir a mim como mentirosa, sabe que embora tenha
muitos defeitos, a mentira nunca foi um deles. – Defendeu-se,
exasperada.
— Não podemos negar seu interesse em Ni Cháac. – Afirmou o tio.
— Nunca foi segredo que se eu pudesse escolher eu mesma por meu
futuro marido, não pensaria duas vezes em escolhê-lo. Assim como sabe
que não tenho qualquer meio de interferir nas decisões e nem estou
pedindo por tal coisa. Era você e meu pai, meu tio, quem deveriam
aceitar ou não qualquer um dos pedidos, mas os deuses clamaram por
serem deles essa decisão e eu sinto que como meu protetor, deve se
assegurar que a vontade dos deuses prevaleça.
— Desculpe-me interrompê-lo, meu supremo senhor, mas Dekubai
acabou de chegar. Devo conduzi-lo até sua presença? – Perguntou
Tenana, o conselheiro de seu tio.
— Chegou em boa hora. Peça-o para entrar.
Em instantes o homem adentrou a sala, sentando-se sobre seus
calcanhares ao lado dela, proclamando cumprimentos e elogios ao
soberano. Não se lembrava de tê-lo visto antes, devia ter trinta anos ou
um pouco mais, os cabelos compridos escorriam pelas costas numa
grossa trança.
Uma faixa vermelha e bordada circundava a cabeça e sua nobreza era
reconhecida por seus adornos, embora não usasse muitos. Contudo em
sua capa de algodão num estilo francamente Tolano, atada por um
broche de obsidiana com a flor de quatro pétalas, símbolo de sua terra
por excelência, no barrado que descia ao longo de seu peito havia
pequenas insígnias que o denunciava como sua classe sacerdotal e
guerreira.
— Lamento por meu atraso. – Seu sotaque acentuado anunciou que era
de Danipaguache.
— Essa é minha sobrinha Itzmítli que deixo sob seu cuidado e proteção.
Não deverá se apartar dela sequer por um momento, como já
conversamos anteriormente. Gostaria de poder acompanhá-los, mas
devo partir agora. Tenho assuntos para tratar com alguns de nossos
hóspedes.
Os dois consentiram com a cabeça e ela seguiu o homem.
Deixou o edifício e parou assim que ouviu o grito estridente de uma ave
de rapina que passou sobre eles num rasante. Curvou-se com a dor
lancinante e repentina que sentiu no meio de seu corpo.
Dekubai que seguia a passos largos parou de súbito e voltou-se para a
moça que gemia apertando os braços contra o estômago. Os olhos ocres
se depositaram sobre seu rosto, vazios e vítreos e não conseguiu
avançar em tempo de apanhar a sobrinha do Supremo Jaguar em sua
queda.
Convulsionando a moça começou a vomitar, curiosos criaram um
círculo ao redor dele que ágil a fez deitar-se de lado. Ela se debatia
violentamente e segurou a cabeça de Itzmítli para que não se
machucasse.
— O que é isso? Veneno? – Perguntou Sika’an que conversando com
outros ainda permanecia no pátio.
— Como eu haveria de saber? – Perguntou o novo preceptor, aflito. —
Chamem o Supremo Jaguar.
Não tardou até que o soberano ordenando para que as pessoas se
afastassem se curvou sobre a sobrinha. A saliva escorria do canto da
boca, mas o corpo se acalmara tão logo ele repousou a mão sobre a
cabeça dela.
Apertou o cenho e olhou ao redor com os olhos semicerrados, aplicando
sua técnica de magia conhecida como “ver dos feiticeiros”, a fim de
reconhecer possíveis espíritos ou naguais que pudessem estar
relacionados com o episódio.
— Vamos levá-la para Chikchan.
Ordenou e não demorou até que seus assistentes surgissem munidos
de uma padiola onde colocaram a moça e a cobriram com um tecido
evitando olhares curiosos. Cogitaram em segredo o motivo pelo qual não
ordenara que fosse levada para os curandeiros que ficavam em Xalla,
mas incapazes de encarar o poderoso, seguiram para fora do palácio,
encaminhando-a para o bairro ordenado.
Inofensiva, a serpente acariciava suas pernas ao deslizar preguiçosa
sobre ela, seu tio, seu curandeiro pessoal Chikchan e o novo preceptor,
sentados um ao lado do outro na esteira, apreciando charuto a
observavam em silêncio.
Suspensas nas vigas maciças que suportavam o belo teto de madeira,
três serpentes competiam o espaço com milhares de ramadas de milho,
plantas e ervas. Na panela de barro borbulhava um líquido verdoso com
um aroma frescal, mas a mistura de várias ervas a impedia de
distinguir sua possível serventia.
Afastou a serpente com delicadeza que se rastejou em direção a luz e ao
calor que invadia o ambiente arejado pela porta escancarada. Chikchan
apertando o charuto entre os dentes a examinou uma vez mais,
puxando as pálpebras inferiores e depois fazendo-a abrir a boca.
— Não, não foi envenenada, estou certo.
Ajeitou-se atrás sobre a pequena esteira atrás de uma pequena e baixa
mesa e abrindo um saco de couro atado ao seu cinto, espalhou sobre
ele grãos de feijão e milho, assim como pequenas pedras preciosas e se
empenhou num canto, invocando aos espíritos.
Separava metodicamente os grãos de três em três, formando pequenos
triângulos e deslizando os dedos sobre a disposição aleatória na qual
deixara as pedras junto dos outros grãos, disse:
— A tristeza pode fazer definhar mesmo o mais forte entre os homens. O
sentimento de culpa pode persuadir até o mais sensato a tomar riscos
aos quais está certo de que o conduzirá nas trilhas da destruição. Só
um louco ou um suicida avançaria desarmado contra um exército
poderoso.
Chikchan apreciou seu charuto por um momento em silêncio e disse:
— Se ela tiver essa crise novamente, leve-a para a Pirâmide do Sol, o
suntuoso templo de Tláloc e solicite ao deus que a purifique.
— Os deuses a condenam? – Perguntou o tio, interessado.
— Não, eles haverão de protegê-la se sofrer esse ataque de novo.
— Podemos então retornar à Xalla? – Perguntou o preceptor.
— Eu estou bem. – Disse Itzmítli, fazendo o tio depositar um olhar
preocupado sobre ela.
— Banhe-se bastante de sol, menina, nosso Pai haverá de fortalecer seu
espírito. Poderão partir depois que ela beber de minha medicina.

Rastros

Embora ficar acompanhando seu avô no tribunal não fosse uma tarefa
que desgostasse, Tonamitli se via inquieta com o cão de guarda que seu
pai colocara em seu encalço sobre o pretexto de se tratar de um novo
preceptor.
Tentava prestar atenção aos relatos das duas mulheres a sua frente,
uma acusava a outra de ser amante do marido e alegava que amante
estava roubando os alimentos de sua casa para dar aos seus filhos
bastardos. E ainda que estivesse disposta a resolver o caso, seus
próprios assuntos a inquietavam.
Contudo uma comoção fez as duas mulheres que discutiam uma com a
outra calarem-se. Tlapali se lançou entre as mulheres e se pendurando
em seu pescoço, aos prantos, exclamou:
— Não deixem que me leve!
Reconheceu de pronto os irmãos e o pai da moça que entraram no lugar
gritando pelo nome da amiga e a procurando entre as pessoas que
aglomeradas e em pé esperavam para serem atendidas.
— O que aconteceu? – Perguntou Tonamitli, assustada.
— Estão me levando para uma cidadezinha perto de Danipaguache para
me casar com um nobre guerreiro de lá. – Sacudiu a cabeça, aflita e
acrescentou: — Eu não quero deixar Tolan, não deixe que me levem.
Abraçou a amiga, acariciando seu cabelo, enquanto observava seus
irmãos vindo ao seu encontro.
— Eu vou te buscar, Tlapali. Eu prometo que vou te trazer de volta.
Sentiu a ardência das unhas que se cravaram em sua pele, assim que
os irmãos, nervosos, a agarraram e arrastaram para fora do lugar, com
o pai com um cinto de fibra a chicotear as costas da amiga
desesperada, proclamando impropérios.
Ficou ali em pé, triste e impotente, observando as pessoas que seguiram
a algazarra até a porta do local e ao ver que o espetáculo terminara,
voltavam, discutindo uma com as outras por causa de seus lugares na
fila de atendimento.
— É melhor não se envolver com isso, minha neta. Não há nada que
possa fazer.
— Preciso contar para Ixi’yah e Itzmítli, também são amigas dela,
precisam saber que Tlapali está deixando a cidade.
— Desde que Mictiz vá com você, não vejo nenhum problema. Estou
velho demais para ouvir seu pai brigar comigo porque te deixo fazer o
que quer. E não se demore.
— Não pode nos deixar aqui sem resolver o nosso caso! – Exclamou
uma das mulheres, belicosa.
— Fique aqui ao lado do sábio ancião que ele resolverá seu caso.
O velho balançou a cabeça, exasperado e acenou para que as mulheres
se aproximassem dele. Alegres por falarem com o velho sábio,
abandonaram Tonamitli de pronto.
Nem precisou informar seu preceptor que se colocou a segui-la de
imediato assim que deixou o tribunal. Cinco dias havia se passado
desde o incidente na câmara e embora estivesse com saudade de
Itzmítli, o lugar onde Ixi’yah trabalhava como tecelã ficava no meio do
caminho e decidiu encontrá-la primeiro.
Encontrou a amiga no Bairro dos Tecelões, concentrada enquanto uma
estrangeira ensinava uma técnica para fazer um tecido fino e
translúcido, parecia nervosa e pouco habilidosa, mas parou de súbito
assim que se apercebeu da amiga.
— Está com uma cara horrível. Soube que você e Itzmítli estão de
castigo. O que aconteceu?
Tonamitli a puxou e cerrou o cenho assim que seu cão de guarda se
aproximou de forma a assinalar que devia manter distância. Mictiz
embora muito atento, não se importava em dar alguma privacidade
quando o pai ou o avô permitiam que saísse.
— Tlapali está indo embora. – Respondeu com voz embargada.
— Para onde? – Ixi’yah não conseguiu disfarçar a consternação.
— Uma cidade próxima de Danipaguache, foi o que disse. O pai vai
casá-la com um guerreiro nobre de lá.
— Que ganho ele teria com tal casamento?
— Como vou saber, Ixi’yah? Eles agarraram-na e levaram para longe de
mim, e estava tão desesperada e triste que não conseguiu me dizer
muito.
— Não podemos deixar que ela vá embora.
— O que podemos fazer? Sequer sabemos para onde levaram Ixi Kanil, o
círculo de poder acabou, minha amiga, e acabou no exato momento em
que colocamos nossos pés naquela pirâmide. Sequer tenho a liberdade
de conversar com as pessoas para ao menos descobrir onde nossa
preceptora está. E se meu pai me vir perto dela, vai me castigar de
verdade.
— Eu tenho que ver Tlapali, nem que seja pela última vez. – Anunciou
Ixi’yah, que a abandonou ao correr para fora do bairro.
— Não vai atrás dela? – Perguntou Mictiz, debochado.
— Para quê? Estou certa de que dará com a cara na porta.
Caminhando rumo a saída e ao palácio de Xalla, acrescentou:
— Ao menos enviou o mensageiro para avisar meu noivo que quero vê-
lo?
— Sim, seu pai não declinou ao seu pedido em ver o noivo. Ele acha que
é importante que vocês se visitem.
Tal afirmação roubou um sorriso vencedor do rosto antes taciturno. Não
tivera passado por sua mente frequentar e visitar a casa do noivo até
aquele momento, seu desprezo por Mulísh a cegara quanto a
oportunidade de descobrir o paradeiro de Ixi Kanil, e se alguém sabia
onde a mestra estava, certamente era seu sogro.
Seu caminhar tornou-se até mais leve e tranquilo depois daquela ideia
surpreendente. Deveria ser zelosa,

Quem é o vilão e inimigo de Ni Cháac e Itzmítli?

Qual a profecia que o Supremo Jaguar e o clã da águia tem


conhecimento sobre Itzmítli?

Ni Cháac: vai vencer Culcuico e Tlalantaneca e conseguir controlar as


rotas comerciais do sul. Será ele quem construirá a pirâmide de
Quetzalcoatl e inspirado pelas ideias do pai ele procurará por encontrar
um laço com o deus.

Itzmítli num primeiro momento tenderá a se ocupar com as obsessões


de seu tio com a construção de monumentos, terá um contato muito
forte com Tula e Danipaguache e tomará para si a tarefa de resgatar
Tlapali. Contudo, como sua experiência como feiticeira será muito
frustrante, assim que souber que não fora a alma de Ni Cháac que ela
aspirou e sim o próprio inimigo, como também será perseguida por ele,
reexaminará o que Ixi Kanil dissera sobre conseguir a linhagem
espiritual.

No começo a busca espiritual tanto de Ni Cháac quanto de Itzmítli


ocorrerá separadamente, embora ele passará algumas coisas para ela
do que já conhece e foi ensinado assim que se casarem, não se sentirá
motivada a buscar a mesma coisa que ele. Por outro lado sua vida
pública e os apelos tanto de sua casa, quanto da casa do marido fará
com que busque esse conhecimento com estrangeiros.

Tonamítli obcecada em saber quem era o homem-deus que vira na


pirâmide e como funciona a ordem dos naguais, se encarregará de
desvendar tais mistérios. Como tem uma personalidade muito mais
forte que Mulísh, ele acabará por se tornar seu maior aliado, porque se
apaixonará por ela loucamente.

Ixi'yah se apegará ainda mais em Itzmítli, entretanto seu marido pode


ser um homem ciumento a qual elas devem encontrar um meio de se
livrar.

Cuauhtli terá inveja de Ni Cháac,

1 - Desafio, manter as 4 unidas. Tlapali vai embora para uma cidade


próxima a Danipaguache e sem ainda conseguir exercer o poder por
completo, Itzmítli fica de mãos atadas.
2 - Por que o Soberano Serpente não quer o jaguar em sua casa?
O pai é que semeia no filho a ideia de um único governante em Tolan. O
culto e engrandecimento de um governo oculto regido pelo homem que
encarna Quetzalcoatl ainda não está fixo dentro da Ordem dos Naguais,
esse homem num primeiro momento não é relegado ao governo, mas
um tipo de homem santo que encarna a Serpente Emplumada e o
grande mago que ensina os Quatro Poderes. Ele não se envolve com
assuntos políticos e militares, apenas com assuntos espirituais.
Embora isso não fique muito explícito, a ligação do Governante Jaguar
com o culto de Tláloc dá a ele um poder especial, como a última palavra
e acaba agindo de forma a saber tudo o que acontece nas outras casas.
O pai de Ni Cháac embora não deseje um conflito aberto com os outros
clãs, busca por mais autonomia e aqui posso deixar aparente a força
brutal do exército da serpente, o controle sobre o calendário, a
astronomia, o comércio de obsidiana e a extração de pedras preciosas.
Com a obsessão de expandir Teotihuacan e criar monumentos incríveis,
o Jaguar começa a se infiltrar na extração das pedras, embora relegue a
obsidiana a serpente. Assim o Supremo Serpente também se mostrará
indisposto quanto a influência massiva dos senhores de Danipaguache
e até uma diminuição do poder dos outros Poderes em benefício desses
senhores, por isso insistiu em casar a filha Tostisim com o príncipe de
Danipaguache Kisa'an.

Mas assim o que gera o conflito que fará Ni Cháac buscar pelo deus por
si mesmo?
Assim como Itzmítli, talvez por força da juventude, ele acredita que suas
buscas devem ir além do que lhe é passado pelos sábios, que deve por si
mesmo comungar com o deus em retiros solitários. Ni Cháac é
ambicioso num certo sentido e quer ele mesmo se tornar um deus ou
uno com ele.

3 - Por que Cuauhtli quis casar com Itzmítli?


Em primeiro lugar a águia é declaradamente fiel ao Jaguar e tanto
apoiam como são eles que mantém todo o controle do Norte. Eles têm
um poder militar muito eficiente, especialmente porque metade dele são
os guerreiros jaguares, que Yohualli cedeu a fim de se enclausurar na
sua obsessão de arte e expansão de Tolan, assim como é ele que toma
as maiores decisões de um modo geral, se preocupar com investidas
militares de defesa e conquista lhe é penoso, com isso dá uma
autonomia muito grande a Águia.

4 - Qual a profecia que envolve Itzmítli?

É a ligação dela com Mutul. É através dela que a conquista da poderosa


cidade maya ocorre, o problema é que a história se passa 100 ou um
pouco mais, antes da conquista de Teotihuacan em Mutul. Posso
elaborar alguma coisa nesse sentido porque a ideia inicial é que ela e Ni
Cháac se ligam espiritual num laço que durará pela eternidade. Ele é
Canek e Chan Sak Sáas e por causa dessa ligação espiritual os espíritos
dos dois se unem como se fossem um, então não importa em que tempo
nasçam, eles sempre se apaixonam perdidamente um pelo outro. Ele é
Ixibalanquê, embora histórica e mitologicamente isso não seja possível
porque ele está sempre ligado a serpente, enquanto dizem que
Ixibalanquê ligado a noite e até mesmo pelo seu nome é o jaguar.

Também tive a ideia ao ler Ramsés e perceber que há muito no Egito


que é semelhante entre os Mayas, que é possível que eles sejam de
alguma forma encarnação dos próprios egípcios, isso não pode ficar
claro como o dia, mas posso colocar visões de pirâmides no deserto,
como coloco visões do canyon sagrado dos Hopi. Não que isso é parte da
história, mas aqui posso pensar que eles já são almas gêmeas ou

Se a informação for verdadeira, Coelho 18 de Copan observa um evento


e diz que ele viu o mesmo evento bilhões de anos atrás e bilhões de
anos no futuro. Assim como diz que viu 4600 anos atrás. O interessante
é que quando fiz um pequeno calculo de tempo entre o momento em
que 18 Coelho estava vivo, 4600 anos atrás coincide com os egípcios
pouco antes do início das dinastias faraônicas, o interessante disso é
que o Egito nessa época vivia exatamente como os maias na época de
18 Coelho.
Ni Cháac promete construir um templo para Quetzalcoatl
Itzmítli procura ou não o xamã que fala que Ni Cháac não tem cura?
Tonamitli pede permissão para o Supremo Serpente a fim de frequentar
sua casa antes de seu casamento e lá inicia a sua investigação.
Ni Cháac é levado para Itzmítli para que ela sopre a sua alma e lhe
informa que aquela não é a alma dele e que ela foi lograda.
O Supremo Jaguar mostra o mapa de Teotihuacan para a sobrinha
informando que a construção da cidade fora planejada pelos ancestrais
e nesse momento enfia todas as suas ideias sobre a expansão e a
construções de grandes monumentos.

Obter a herança espiritual.

Após assinalar ser o momento da quarta rodada de pulque, Ixi Kanil


observou Itzmítli e não pôde deixar de observar a grande influência que
seu tio, o Supremo Jaguar, teve sobre ela. Embora não pudesse afirmar,
sua intuição a fazia acreditar que o tio transferiu um pouco de seu
poder para aquela pequena.
E se transmitido a ela parte de seu poder, isso explicaria o interesse do
Supremo Águia em casar seu sucessor com ela, ao invés de uma
decisão sábia em ceder e retirar seu pedido de casamento dando a
livremente para Ni Cháac. A águia era o próprio sol, uma ave poderosa
capaz de ver a longas distâncias, com movimentos precisos e certeiros,
as ações daquela casa jamais eram vazias de propósito.
Era fácil considerar que tivesse tanta sabedoria com tão pouca idade,
porque assim como os filhos dos supremos senhores, esteve toda a
infância estudando com os homens mais sábios de Tolan, das quatro
era a que sempre estava atrasada para as aulas que tinha com ela e não
por diversão, mas porque tinha muitas tarefas e obrigações.
Seu pai nunca teria dado tamanha atenção para ela, como não fez com
seus filhos mais velhos, e sua mãe adoecera logo após seu parto o que
retirou dela muito de seu vigor felino. Era possível que Itzmítli não se
tratasse somente de um conforto emocional, talvez Citlali Yoahualli
tivesse obtido alguma visão ou presságio, ou saber de alguma profecia
que a envolvia e por isso tivesse a preparado com tal zelo.
Quem haveria de saber o que viam os Quatro Poderes? Eram naguais
excepcionais, treinados e preparados para serem governantes e
feiticeiros desde o nascimento, homens de conhecimento que mesmo o
mais habilidoso sacerdote e xamã jamais conseguiriam alcançar. Eram
os homens-deuses de Tolan.

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