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A TERRA E A MUDANÇA

ensaio sobre os conflitos das Obras


contra as Secas no semiárido

Leonel Olimpio
A terra e a mudança:
ensaio sobre os conflitos das obras contra as Secas no semiárido
RAIZIMAGINÁRIA edições, 2023

A TERRA E A MUDANÇA
ensaio sobre os conflitos das Obras raizimaginaria.org
contra as Secas no semiárido

A RAIZIMAGINÁRIA defende que a potência do pensamento, da


imaginação, o acesso à leitura e o processo criativo deve ser de
todes, sem restrições a qualquer pessoa. Portanto, que usem,
expandam e reproduzam as palavras aqui ditas com ou sem
autorização, citando a fonte sempre que possível.

ISBN: 978-65-997596-2-8
Autor: Leonel Olimpio
Projeto gráfico e diagramação: Leonel Olimpio
A TERRA E A MUDANÇA A TERRA E A MUDANÇA
ensaio sobre os conflitos das Obras ensaio sobre os conflitos das Obras
contra as Secas no semiárido contra as Secas no semiárido

Leonel Olimpio Leonel Olimpio

RAIZ IMAGINÁRIA
O mundo é cheio de sons.
SUMÁRIO Nós é que não os ouvimos como
música.

Ryuichi Sakamoto

INTRODUÇÃO..................................................................4
1. UMA TERRA..................................................................8
2. A TÉCNICA E O DESIGN CONTRA AS SECAS..............32
3. ENTRE O SEMIÁRIDO E O DESERTO............................48
4. AS RUÍNAS DO SEMIÁRIDO........................................62
REFERÊNCIAS.................................................................72
LISTA DE IMAGENS.........................................................76
no Brasil, mas sim um problema. O discurso sobre ele pas-
INTRODUÇÃO sar a ser “como resolvê-lo?”, servindo para diversos tipos
A história do semiárido no Brasil é vasta e a sua do- de implementação de políticas públicas na região. Em su-
cumentação se iniciou há mais de séculos. Contudo, um ma: o presente ensaio tem o intuito de apresentar uma in-
dos seus momentos de conceituação se dá especificamente vestigação através de imagens, planos, projetos e discursos
na segunda metade do século XIX, onde se inicia diversos das chamadas “Obras contra as Secas” em uma tentativa de
projetos para transformar o seu espaço. Tais projetos quase leitura e investigação da cultura visual em que se formou e
sempre vinham com o nome de serem “contra as Secas”. A produziu espacialmente no semiárido brasileiro. Tenta-se
partir daí o semiárido se torna um tema ligado intrinseca- compreender uma forma de categorização de um espaço e
mente à estiagem e escassez de água. Porém, esse processo entender os aspectos e camadas que se desdobraram da
não foi algo simples e não deixou de ser permeado por vá- concepção de uma imagem, uma técnica, um design e uma
rias tensões. política para o semiárido.
O nosso intuito não é de investigar o “semiárido em A pesquisa de arquivos foi feita na biblioteca do
si”, mas os projetos e imagens em relação de conflito com DNOCS – Departamento Nacional de Obras contra as Se-
as chamadas “Obras contra as secas”, e compreender como cas, no setor de Obras Raras da BECE – Biblioteca Estadual
que tal processo moldou e construiu uma cultura visual, do Ceará e na Hemeroteca Digital Brasileira, onde contém
um modo de espacialização e foi de fato um projeto dese- acervo de periódicos e publicações seriadas feita pela Fun-
nhado para sustentar uma ideia que até hoje vive seus des- dação da Biblioteca Nacional. Outra questão importante
dobramentos, a de que o semiárido não poderia existir para assinalar é que apesar de compreendermos esse texto
como ele é, e que portanto, ele deveria ser devidamente como um ensaio, optamos por colocar ao final as referên-
transformado. Pretendemos, assim, investigar os efetivos cias consultadas para essa escrita, também notas de rodapé
desdobramentos conceituais, políticos e práticos dessa re- e citações durante o texto para auxiliar na visão das refe-
lação. rências, podendo auxiliar e facilitar pessoas interessadas
Desde o momento em que tentaram lê-lo enquanto no assunto.
uma natureza inóspita, incapaz de existir por si, e que pre- Nesse sentido, o presente ensaio tem, na sua base,
cisaria, portanto, ser solucionado, o semiárido não seria uma função de se perguntar pelas condições em que tais
apenas um tipo de clima, que teria uma região delimitada discursos se apresentaram de modo conflituoso e buscar
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compreender tais relações através da construção de um fio- NOTA SOBRE AS FOTOGRAFIAS
condutor específico a partir da compreensão de como se
produziu tal cultura visual e espacial do semiárido. Isso fez A principal questão digna de nota é a citação da autoria das
com que a imaginação sobre esse espaço criasse uma forma fotografias que utilizamos. Não encontramos nenhuma re-
própria que tende a uma certa homogeneização, mas que ferência sequer às pessoas que as fizeram. A maioria delas
não achamos que de modo algum deva se resumir apenas a eram fotos separadas em uma caixa da biblioteca do
uma única forma. Assim, foi importante compreender que DNOCS onde nos foi permitido o acesso e digitalizamos
a criação dessa forma não foi, de nenhuma maneira, algo por conta própria. Perguntamos às bibliotecárias sobre
simples. Enxergamos que poderíamos demonstrar minima- fontes e referências, mas apesar do esforço não achamos
mente que o espaço do semiárido não é tão opaco quanto nenhuma documentação precisa. Outras imagens eram en-
ousaram demonstrá-lo. Às vezes não precisamos enxergar contradas em livros-fotografias mas, por incrível que pare-
as coisas mesmas na sua essência mas sim compreender os ça, eram livros sem qualquer referência de crédito às
seus desvios. pessoas envolvidas, apenas alguns tinham o ano de sua
De que maneira foi possível criar uma imagem para produção e a localidade. Tentamos buscar a sua autoria no
um clima e para uma terra? Essa pergunta invariavelmente próprio DNOCS e também cruzando referências nossas
percorre a compreensão se nessa terra aconteciam coisas, mas não conseguimos achar nenhum nome. De qualquer
se era um vazio ou apenas algo desconhecido, se ela conse- forma fica aqui registrado que todas as fotos aqui apresen-
guia pulsar vida ou morte. Toda fala parecia carregar sem- tadas, exceto duas de autoria minha, estão disponíveis nes-
pre certa hesitação, sem saber se estava vivo ou morto, ses locais que informamos. As plantas e projetos eram mais
pareciam falar como se tudo ali estivesse suspenso, mas fáceis pois nesses eram sempre descrito onde, quando e
talvez suspenso não no ar, mas embaixo da terra. Uma ter- quais cidades estavam ligados, como os projetos de açuda-
ra ignota. Ignota, desconhecida do olhar do outro, do olhar gem e por onde as estradas de ferro passavam.
de si, não teria nem a possibilidade de enxergar a si mesma.
O semiárido só se enxergava quando lhe davam um espe-
lho. Uma pena, porque nem sempre o espelho reflete aquilo
que está à sua frente.

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UMA TERRA da obra do Açude do Cedro, com fotos datadas ainda do sé-
culo XIX feitas pela Comissão de Açudes como um presen-
Em 1877, sob ordem de Dom Pedro II, uma comissão te ao Presidente da República da época, Rodrigues Alves. É
de estudos parte com destino ao estado do Ceará. O objeti- possível enxergar tal livro não apenas enquanto um arqui-
vo? Estudar a possibilidade de criação de uma barragem vo da produção do açude mas das condições em que tal
em um rio para auxiliar na ocorrência de estiagens na regi- obra foi concebida, das alterações que causaram e, não me-
ão. Assim se iniciava os primeiros passos para a construção nos importante, da sua grandeza de impacto material e
do primeiro açude do Brasil, o chamado “Açude Cedro”, imaterial em todo o imaginário do semiárido. Segundo a
que apesar de existir uma cidade com mesmo nome, locali- própria linguagem do DNOCS – Departamento Nacional de
zava-se em Quixadá, município do sertão central cearense, Obras contra as Secas, essa obra “mudou a paisagem do
a aproximadamente 170km de Fortaleza, capital do estado. sertão cearense”. Tal mudança não pode ser concebida
Tal obra é tida como símbolo de orgulho e realização da apenas como um mero detalhe da formação e construção
engenharia e arquitetura de grandes obras brasileiras. E do semiárido no século XX até hoje. É sobre as condições
quase como todos os símbolos magnânimos de constru- em que tais obras foram pensadas e os seus imanentes con-
ções não deixam de existir conflitos intrínsecos à sua cria- flitos que pretendemos falar aqui.
ção, ainda mais de uma obra de tão difícil realização. Não à Logo em um dos primeiros registros desse livro po-
toa a sua complexidade, o primeiro projeto do açude é de demos notar uma frase colocada logo abaixo do ano da fo-
1882 feito pelo engenheiro britânico Jules Jean Revy – no tografia, que diz: “Não sei o que o viajante mais admira, se a
Brasil Império - e é concluída em 1906 - na Primeira Repú- obra da natureza ou se a do homem”. Essa frase pode ser li-
blica – sob direção do engenheiro Piquet Carneiro. Apesar da como uma síntese dos debates que passaram e foram
da consideração dos feitos dessa obra nos chama a atenção construídos ao redor do tema das obras contras as secas no
os modos da sua criação, da sua realização e seus impactos. semiárido, isto é, o debate da “natureza” da terra e as con-
Obras contra as Secas é o nome da política e do mo- sequentes alterações “culturais” que deveriam ser desen-
do de lidar com o fenômeno dado pelo Estado brasileiro. volvidas no seu espaço. Sendo possível perceber como que
Há diversos registros das discussões de como tal política chaves-conceituais foram utilizadas pelos técnicos, enge-
foi criada e efetivada. Um dos tantos exemplos que pode- nheiros, políticos e defensores das construções para sus-
mos notar é em um livro de fotografias produzido em 1903 tentar a ideia de alteração significativa da paisagem do
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"Não sei o que o viajante mais admira, se a obra da na- "Sangrou durante três dias sobre a parede, em uma ex-
tureza ou se a do homem". tensão de 330 metros".
Fotografia da Barragem central do Açude Cedro em Fotografia da Barragem central do Açude Cedro em
Quixadá-CE, 1884. Quixadá-CE, 1884.

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semiárido. Mas se vamos falar especificamente do semiári- ministração desse acontecimento leva à nomeada seca eco-
do, cabe nos perguntarmos como ele é definido ortodoxa- nômica, que com desdobramentos da falta de água ocasio-
mente. na uma enorme dificuldade para a distribuição de bens,
O semiárido é um tipo de clima caracterizado prin- fornecimento de água e consequentemente altera toda a vi-
cipalmente pela sua baixa precipitação e pela sua associa- da das pessoas envoltas ao acontecimento. No Brasil tal
ção direta com elevadas temperaturas e baixa umidade do acontecimento tem um território específico, conhecido
ar. Há diversos tipos de semiárido, os dois mais conhecidos também por Polígono das Secas: o semiárido. A sua ima-
são os climas semiáridos quentes e frios1. Quando falamos gem discursiva maior é, assim, a região que cominou-se
especificamente do território do Ceará, onde a obra foi fei- chamar nos últimos cem anos de Nordeste.
ta, falamos do semiárido quente. Porém, como se associou, A seca que traz a mudança de chave sobre o seu
no decorrer do tempo, uma certa imagem, uma paisagem e acontecimento é a de 1877-18792. A partir de uma argu-
a visão de um clima a uma terra? Mais explicitamente a mentação criada pelas elites da região e unidas à imprensa
partir do século XIX se delineia uma história mais singular mobilizou-se uma opinião pública no país todo de que a
do semiárido no Brasil, onde a literatura e documentação seca era a camada determinante da própria “natureza” do
começam a aumentar a partir dos relatos sobre as secas. semiárido, tornando-o assim o espaço da falta, da escassez,
Nesses relatos mais conhecidos sobre a região chega a ser da miséria, do martírio, da violência. É a partir desse perío-
citado que o fenômeno da seca já teria ocorrido diversas do que se começa com maior intensidade a associação di-
vezes desde o século XVI (1583-1585). Contudo, como se ca- reta do semiárido como esse espaço do inóspito e sua
racteriza o fenômeno da seca? relação intrínseca à seca. Se localizarmos mais ainda tal
Várias regiões do mundo sofrem pela chamada “se- problema, por exemplo, ao estado do Ceará onde se deu a
ca”, evento caracterizado pela falta, seja atmosférica (falta criação do primeiro Açude, a seca se torna um problema de
de água pelas chuvas), seja hidrológica (falta de água nos debate vigente quando vemos que, sob critérios estabeleci-
rios e reservatórios), seja agrícola (falta de água no solo dos hoje, 95% do seu território está classificado dentro do
sendo insuficiente para o cultivo das plantas). Uma má ad- clima semiárido. Dos 184 municípios do estado, 175 fazem
1) Os semiáridos frios são notavelmente mais conhecidos em países co-
mo Chile, Austrália e Estados Unidos da América. Já o semiárido quente 2) Albuquerque JR., D. M. Falas de Astúcia e de Angústia: A Seca no
é muito característico em países como Brasil, México, Marrocos e Na- Imaginário Nordestino (1877-1922). Dissertação de Mestrado em
míbia. História. Campinas, Unicamp, 1988.

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parte da delimitação do semiárido pela SUDENE3. Oficial- ele. Era o lugar que seria preciso lutar contra aquilo que ele
mente dez estados tem alguma parte do seu território den- é, um espaço que seria preciso alterá-lo. Semiárido: um ou-
tro do limite do semiárido, contabilizando 1262 municípios tro mundo terrano.
segundo a delimitação de 2017. São os estados: Maranhão, ****
Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Inicia-se mais uma reunião do Instituto Polytechni-
Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais. Essa formação se co no Rio de Janeiro, na época a capital federal do Brasil.
deu a partir do momento em que se intentou delimitar a re- Dessa vez uma sessão extraordinária. O assunto? A seca de
gião Norte do país especificamente afetada pelo fenômeno 1877. O Instituto Polytechnico Brasileiro era uma das insti-
da seca, visto que na época não existia ainda Nordeste. tuições em que esses debates aconteciam a nível nacional.
Contudo, estabelecer fronteiras é um ato que passa por di- Na Ata de Sessão Extraordinário do Instituto no dia 18 de
ferentes camadas, tal ato não deixou de passar por diversas Outubro de 1878 podemos ler relatos de pessoas importan-
tensões e choques, sejam eles culturais ou naturais; mate- tíssimas nesse debate, como André Rebouças e Guilherme
riais ou imateriais. Schüch, mais conhecido como Barão de Capanema, o se-
Assim, no final do século XIX o semiárido no Brasil guinte relato é seu, que constou na ata através de uma carta
se torna um espaço de conflito. Em uma tentativa de isolar enviada por ele porque não pôde comparecer à reunião.
a parte setentrional do país que passava pela escassez de Tenho, porém, desde já a declarar que
a questão é ociosa, pois condições cli-
água se criam várias perguntas para as “causas e origens matológicas, que subsistião na época
das sêccas”4, tentando compreender, especificar mas tam- terciaria, atravessando todos os perio-
dos geologicos até hoje não é a debil
bém criar “soluções” ao espaço. O problema ganhava ali a mão do homem que agora as poderá
sua gênese. “O que é de fato esse espaço? É possível alterá- alterar” [...] cada geração no Ceará pas-
sa por duas sêccas, é uma calamidade
lo? Como é possível viver nele?” É assim que notamos a periódica. (Instituto Polytechnico Bra-
criação da terra do semiárido, colocando a sua noção de sileiro, 1877, pág.67)
clima ligado à um espaço da terra. É aqui onde o semiárido Barão de Capanema era um dos mais conhecidos
começa a adquirir o seu espaço concreto mas também ima- engenheiros que tinham um discurso tido como “naturalis-
ginário após sucessivos discursos e conceituações sobre ta”, isto é, problematizava e apontava empecilhos para o
3) Sudene. Nova delimitação semiárido. Recife, 2018.
próprio espaço do semiárido, no caso o cearense. Podemos
4) Instituto Polytechnico Brasileiro, Ata de 18 de Out., 1877, pág. 72. notar tal discurso em documentos como o seu texto A sec-
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ca do norte5, publicado pela Sociedade Nacional de Agri- mais, é hostil demais, não tem engenharia que "concerte".
cultura em 1901, impresso pela Imprensa Nacional em Enquanto outros, como André Rebouças, era dos argumen-
1901. O texto tinha sido publicado originalmente como um tos contrários, colava o problema do outro lado do polo na-
artigo no Jornal do Commercio mas foi liberado para publi- tureza-cultura. A seca não seria um problema natural mas
cação avulsa “por deliberação” – termo utilizado no docu- sim social.
mento - da Sociedade de Agricultura, destacando mais É dessa perspectiva similar que surge o chamado
uma vez que a presença e apoio de órgãos em instância na- Projecto Gabaglia, feito por Eugênio de Barros Raja Gaba-
cional faziam com que o assunto ganhasse mais e mais glia, uma das pessoas mais incisivas em sustentar a ideia de
aderência como um problema “nacional”, no caso, um pro- que a seca era um fenômeno que podia ser contornado
blema tipicamente republicano, dado pela vontade que se através de obras, tornando-se conhecido por seu estudo
tinha de criar um ideário nacional aos problemas dos terri- publicado em 1861. “Para Gabaglia não havia falta de água,
tórios. o que ocorria era uma má gestão dos recursos hídricos. Li-
Nesses discursos podemos notar como paira em ca- berando os rios dos represamentos e limpando-se os seus
da palavra o conflito de descrição desse espaço, muitas ve- leitos e margens se teria uma fluidez de águas que revigo-
zes até sendo utilizada alusões poéticas, em uma tentativa raria a vegetação disponível aos rebanhos de gado”8. Nessa
de figurar e tornar possível a construção de uma imagem mesma sessão do Instituto, Manuel Buarque de Macedo ci-
de salvação daquela paisagem, na busca de “um grito ale- ta o Projecto Gabaglia e argumenta a favor da ideia de que
luial”6, para usar as palavras de José Américo de Almeida7. as construções podem ajudar na situação. “Os que conhe-
Parece ser possível ler nas palavras de Capanema um com- cem os sertões do norte sabem que a medida pela qual
pleto fatalismo, um sentimento de que “não há nada a fazer mais pugna o sertanejo é a construcção de um açude na sua
aí”. Marcando um dos pontos mais fortes que podemos no- localidade”. Continuando na Ata ainda com um comentá-
tar em alguns discursos da época: a terra ali é defasada de- rio de afirmações fortes sobre as possíveis soluções:
5) Capanema, B. A secca do norte. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, E com effeito, embora se diga que a po-
1901. sição do sólo é no Ceará muito inclina-
6) Almeida, J. A de. As secas do nordeste, 1981 [1953] da, desde as serras circulantes até o
7) Voz e personagem importante, tendo sido ministro do Ministério da oceano, o que faz escoar rapidamente
Viação e Obras Públicas, órgão que também participou de planos e
projetos das obras contra as secas. Conhecido pela publicação do seu 8) Sousa, J. W. de F. Política e Seca no Ceará: um projeto de
romance A bagaceira de 1928. desenvolvimento para o Norte (1869-1905), 2009, pág.160.

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as aguas pluviaes, sabe-se que no nacionalista e modernista destaca ainda que após eliminar
sub-sólo continúa uma corrente
d’agua que se encontra cavando-se a para sempre as secas do território, seria possível produzir
poucos metros, o que quer dizer que uma “cultura tropical” e “assim concorreriamos permanen-
o Ceará pede apenas que lhe ras-
guem as entranhas da terra para fa- temente com valiosissimo contigente para a riqueza nacio-
zer jorrar agua abundante. Penso nal”11. Seria preciso transformar o semiárido em tropical,
assim que a chamada questão do me-
lhoramento das condições climatolo- mudar a natureza, moldar e configurar todo um clima em
gicas da provincia do Ceará é da mais outra terra. Semiárido: é preciso outra terra para si.
facil solução do que se presume.
(Instituto Polytechnico Brasileiro, As camadas das imagens vão se construindo ao re-
1877, pág.74) dor da tensão de que a terra do semiárido passava por um
problema da sua natureza ou por um problema da sua cul-
Semiárido: rasguem as entranhas da sua terra. Seria
tura, das pessoas e da maneira com que se administrava o
preciso, no fundo, ser contra a própria terra. Em linhas ge-
seu espaço. A noção espacial do semiárido vai tomando
rais, de solução fácil, é assim que é declarada uma guerra à
forma a partir desses choques imagéticos mas também
terra. Semiárido: sem vento, sem sopro, muito sol e com
concretos demais. Como nos diz Rondinelly Gomes Medei-
uma natureza que grita contra qualquer cultura e por isso
ros “no semiárido, o projeto colonial […] baseia-se na pre-
seria preciso ir com mais afinco ainda. É fácil: rasguem a
tensão política de ocupação do espaço para determinar
terra.
materialmente e de forma unidirecional a constituição da
Há uma tensão que passa como fio condutor dos
paisagem. Dada a frequência de sua aparição nas narrativas
discursos de pautar a terra como algo doente e que seria
do sertão, de fato é de paisagem que a colonização quer tra-
preciso curá-la do seu próprio mal. Os discursos passavam
tar”11. Assim, talvez o livro que mais ganhou o imaginário
também pelo modo de que tal remédio curaria inclusive a
do Brasil sobre o semiárido não carrega diretamente o seu
moralidade das pessoas do semiárido, como escrito pelo
nome, mas o nome do seu duplo, o nome que o leva a tan-
cearense Thomaz Pompeu Sobrinho, que se conquistado o
tos outros lugares imagináveis - ou até inimagináveis -, es-
êxito de extinguir a seca “o nível moral e intellectual se ele-
se é o seu outro nome: o sertão.
varia rapidamente e, pari passu com os Estados mais ade- 9) Pompeu Sobrinho, T. O problema das seccas no Ceará. 2ed.
antados da União, acompanharíamos o concerto da Fortaleza-CE, 1920, pág.43.
civilisação moderna”9. Imerso em um grande sentimento 10) Idem.
11) Medeiros, R. G. Mundo Quase-Árido In: Revista Ilha, 2019, pág.24.

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Outro engenheiro que muitos o conhecem como es- Podendo ser lido no dicionário da Real Academia Espanho-
critor é uma dessas figuras maiores, construtor de uma la como “1. Local povoado de árvores e matas. 2. Abundân-
imagem do semiárido: Euclides da Cunha, engenheiro for- cia desordenada de algo, confusão, confusão intrincada”.
mado no Rio de Janeiro. Apesar de não narrar diretamente Sertão seria - talvez possamos pensar assim - uma
o semiárido cearense, esse não deixa de ser citado12 e com- junção do deserto com um tipo de floresta, afastado do li-
parado na sua escrita, o que torna ainda mais notório como toral, uma paisagem do interior dos países. Tanto que tal
o seu discurso é um dos mais impactantes criadores ima- palavra era usada além do Nordeste no Brasil, ou seja, antes
géticos sobre a região em todo o país. Em seu conhecido Os no Brasil, sem contar as cidades litorâneas, tudo era sertão
sertões, Euclides desenha um semiárido permeado pela sua (para falarmos nos termos de Guimarães Rosa). Mas é as-
complexidade da terra. Aliás, o livro, que é dividido em três sim, então, que a denominação nos chega nos últimos cem
capítulos, tem – não nos parece à toa – logo em seu pri- anos, se tornando a região do interior dos estados do Nor-
meiro capítulo o seguinte título: A terra. deste ligadas à caatinga e consequentemente à seca.
Em quase sessenta páginas Euclides faz um relato “Ceará” também é palavra de difícil definição eti-
com detalhes técnicos típicos do vocabulário da engenha- mológica. Para alguns, vem da palavra tupi Siri-Ará (si-
ria da época sobre a terra do chamado "sertão". Mas aliás, o ri=andar para trás + Ará=branco). Capistrano de Abreu
que é sertão? A nomeação de sertão se torna ainda mais defendia que era da junção de palavras indígenas dzú+erá,
complexa quando adentramos o seu território no Ceará, que seria água+verde, e quando faladas juntas seriam pro-
outro nome também de etimologia turva. Sertão, para al- nunciadas de modo semelhante a “Ceará”. Mas ainda há a
guns linguistas, seria uma derivação de – por mais direto hipótese do escritor Antônio Bezerra que “Ceará” seria ori-
ou irônico que possa parecer – desertão (um aumentativo ginada do deserto africano Saara, por causa das dunas
de deserto), que seria escrito como desertãnu. Para outros, brancas das praias cearenses. Talvez não poderíamos ter
viria de sertânu que significaria no antigo latim, “bosque”. uma relação mais conflituosa e ao mesmo tempo intrínseca
O que também toca mais outros imaginários do termo do que essa. Sertão cearense: a mistura da duna com as
quando lembramos que “bosque” na língua espanhola, águas verdes, a mistura do andar dos animais com as cores
também influenciada diretamente pelo latim, é floresta. da terra. Sertão cearense: a meia volta do caminhar pela
12) Euclides chega a citar ainda especificamente a cidade de Quixadá, terra, a incapacidade de conseguir caminhar para frente, a
sertão central do semiárido cearense. CUNHA, E. 2019 [1902], pág.69. mistura da terra com o pé. Quem sabe fossem delas que os
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engenheiros do Instituto Politécnico achavam estar falan-
do sobre.
Semiárido então era a terra que não podia existir
sobre suas próprias condições. Uma discrepância imensa
ao imaginário de nação republicano criado em volta das
transformações de um novo país que se vislumbrava, aque-
le espaço não fazia parte do que o ideário nacional enxer-
gava como um Brasil. O que tinha o semiárido para oferecer
a um novo tipo de país que se desenhava? Era preciso
transformá-lo intensamente, moldá-lo, configurá-lo. Não
era precisamente o antagonismo da “cultura tropical” mas
também vivia sempre como um “quase”13 daquilo que ele
mesmo poderia ser e do que queriam que ele fosse. Nem
terra nulius nem terra completa, uma terra ignota que era
uma quase-terra. Semiárido como semi-deserto, semi-
mundo. É quase uma civilização, mas também quase bar-
bárie, quase natureza mas também quase uma cultura. Co-
mo seria possível viver sempre sendo o incompleto, sempre
o que falta?
Toda essa concepção da terra do semiárido só foi
possível porque em algum momento foi ensinado uma ma-
neira de se ler um espaço, de enxergá-lo, moldá-lo e trans-
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formá-lo. Resumindo: criou-se uma técnica.

13) Medeiros, R. G. Mundo Quase-Árido In: Ilha, 2019,

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de ações ligadas ao semiárido e é o órgão que atualmente
A TÉCNICA E O DESIGN CONTRA A faz a delimitação da região.
SECA Além das discussões em diversos meios, é com a
Criar um modo de ler algo e transformá-lo não é ta- fundação dessas instituições que tal movimento ganha
refa fácil, ainda mais se essa coisa estiver em movimento. mais ainda sua concretude. Criou-se uma técnica e um de-
Milton Santos, grande geógrafo brasileiro, dizia que "os lu- sign, um modo de ler as terras do semiárido. No texto de
gares, já vimos, redefinem as técnicas"14. Como então uma Marcus Queiroz, Arquitetura, cidade e território das secas:
técnica redefine um lugar e um espaço tão complexo e di- ações do IFOCS no semiárido do Brasil (1919-1945), pode-
verso quanto o semiárido? Para entrarmos nessa pergunta mos compreender que:
seria possível, por exemplo, apontarmos e tentarmos com- A instituição de Estado OCS foi res-
ponsável por um projeto de moderni-
preender como era pensado e compreendido o semiárido zação para as zonas semiáridas do país
antes das Obras contras as Secas, contudo, talvez isso fique que colocou o espaço como protago-
nista de suas concepções, como ente
para um outro momento por vir. Talvez o mais importante capaz de alterar a economia e a socie-
agora seja seguir um dos outros caminhos possíveis os des- dade da região, notadamente na pri-
meira metade do século XX. Tanto que
dobramentos dessa pergunta. o nome da repartição se definiu por
Esse modo de enxergar o semiárido têm a sua gêne- um recorte geográfico, as terras secas,
e pelas possibilidades de reformá-lo, as
se e também a sua maneira de se expressar. Através das obras contra o “ambiente natural. Mais
instituições OCS tal imaginário encontra sua materialida- que isso, lançamos a suspeita de que a
empreitada se deu por um planeja-
de. Inicia-se em 1909 com a criação da IOCS - Inspetoria de mento de visão integrada, que procu-
Obras contra as Secas, tornando-se IFOCS – Inspetoria Fe- rou articular grandes infraestruturas
territoriais, cidades, assentamentos
deral de Obras contra as Secas em 1919 e tomando seu últi- populacionais e promoção de modos
mo nome DNOCS – Departamento Nacional de Obras de vida e moradia” (Queiroz, M. V.
2020, pág.23)
contra as Secas em 1945. Importante marco é também a cri-
ação da SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento Tal técnica passava diretamente por uma grande re-
do Nordeste em 1959, onde também se encontram políticas definição da paisagem, fazendo com que técnica e estética
14) Santos, M. A natureza do espaço. São Paulo: Editora da
fossem pautadas a partir daquela necessidade de transfor-
Universidade de São Paulo, [1996] 2020, pág. 59. mar a própria terra do semiárido. Assim, através de uma

32 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 33


nova estética para o espaço, criando um modo de ver e per- construções no semiárido, não apenas apresentando uma
ceber o semiárido que a sua região foi mirada, transforma- ideia de como o debate se alongava à área de arquitetura
da e deformada. Há um “esforço de determinação material mas seus registros tornam explícito que tais passavam por
da paisagem”15 do semiárido, através de “técnicas de colo- um projeto e um planejamento que tinha, em sua concep-
nização (extração, escrituração, desmatamento/desindia- ção, um intuito de repaginação, ou melhor, re-paisagização
namento, escravização, título de propriedade, remoção de do espaço e da imagem do semiárido. Estando presentes
comunidades, soberania nacional, geoengenharia, subor- em discussões, por exemplo, de uma revista com o subtítu-
dinação científica)”. Essas alterações iam em direção à ten- lo Revista illustrada de assumptos technicos e artisticos, as
tativa de torná-lo um espaço para o moderno enquanto tonalidades do problema acabam se tornando várias. Pelas
nação mas também a uma compreensão de imagem para o referências da própria revista Architectura no Brasil pode-
futuro. Seguia à risca a vontade de determinação e unifor- mos notar também como o assunto circulava em diversas
mização dos espaços para que fosse possível imprimir a to- esferas, tendo publicações, por exemplo, na Revista do Ins-
nalidade de um urbanismo e de uma arquitetura específica tituto Archeologico e Geographico pernambucano. Mirou-
para o seu mundo. As alterações da terra, um re-design dos se em uma estética para o semiárido.
seus modos passavam também pela necessidade de “cultu- Acredito que o nome “design” aqui tem um papel
ralizar” aquele espaço. Não à toa as expressões “estética da que é falado pelos detalhes, e, como já sabemos, os deta-
fome” e “estética da seca” - termos bastante utilizados nes- lhes importam. Não nos parece puro capricho quando pen-
ses discursos nas tentativas de se nomear e construir alcu- samos design aqui como um pensamento em ação a partir
nhas para o Sertão – caem como uma luva para uma do conflito entre as percepções materiais e imateriais de
técnica de salvação da terra. Assim se seguia que essas téc- objetos, e justamente a partir desse conflito o designer, ou
nicas acabaram constituindo toda uma materialidade para seja, quem projeta, pensa e desenha a partir dessa tensão se
o semiárido. tornando um “conspirador malicioso que se dedica a en-
Essas discussões apareciam, por exemplo, em tex- gendrar armadilhas”16, assim “uma ‘máquina’ é portanto
tos na revista Architectura no Brasil sobre os projetos de um dispositivo de enganação, como por exemplo a alavan-

15) Medeiros, R. G. Mundo Quase-Árido, Ilha. Florianópolis-SC, 2019, 16) Flusser, V. Sobre a palavra design em O Mundo codificado. São
pág.26. Paulo: Ubu, 2017, pág.180.

34 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 35


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A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA


ca, que engana a gravidade, e a ‘mecânica’, por sua vez, é do que precisamos querer simplificá-lo inclusive nas possí-
uma estratégia que disfarça os corpos pesados”17. O design veis respostas ou perguntas que o rodeiam.
para o semiárido foi justamente aquele que plantou diver- Semiárido, o espaço da insurgência, a sobrevivência
sas armadilhas conceituais e materiais para a sua produ- pelo avesso, a contra-abundância, o espaço da tecnologia
ção. Na tentativa de impedir que a terra do semiárido das interrupções, do tempo de intermitência e do design
existisse a seu modo foi preciso transformar a própria ma- emaranhado. Aliás, estaremos aqui cometendo um grande
neira de ser daquele espaço, foi feita uma “manobra”18 para erro ou um completo equívoco utilizando o termo e nome
que se pudesse criar não apenas o discurso de que era ne- design21 para falar do semiárido? Um termo completamen-
cessário “obras contra as secas” mas também se criou um te anglicizado para uma terra do passado, do selvagem, da
próprio aparato técnico que teve, desde a sua concepção, brutalidade e da memória? Não seria esse um termo muito
um intuito de “enganar a natureza por meio da técnica, inapropriado para falar de algo tão de outro tempo? Semi-
substituir o natural pelo artificial”19. Como se pensassem árido: terra contra a mudança? A terra que não consegue
“se a natureza ali é tão torturada, é tão inóspita de si e para conviver consigo mesma, que não consegue criar nada
si, como fazemos para enganar ela mesma de que ela é além da sua própria cova?
aquilo?”. Essa determinada armadilha conceitual não é de Portanto, não seria de todo mal perguntar qual de-
simples compreensão para a nossa questão, pois como sign é possível para transformar a armadilha – conceitual e
classificar e alterar as coisas em um espaço – o semiárido – material – das obras contras as Secas? Se as obras são con-
em que “no sertão a Cultura é a Natureza, evidentemente tras secas, a favor de uma civilização, custaria perguntar
oposta à Civilização”20? Como se a sua natureza deglutisse que civilização tais obras almejam? Seria preciso tornar es-
a própria forma de expressão das pessoas. Pensamos que trangeiro aquele que propõe o próprio inóspito da terra? E
seja possível, através de uma compreensão dos designs do como poderia o semiárido ter se tornado contra o seu povo,
semiárido, que essas perguntas ganhem uma camada mai- expressão de uma complexidade racial em sua nomeação
or da sua complexidade. Não é porque falamos do semiári- 21) Sabemos da complexidade do uso do termo design em diversas
esferas, não apenas na de projeto, e ainda mais em como para alguns
17) Idem. design mesmo no Brasil só existiria a partir de 1960, porém, também
18) Ibid, pág.181. compreendemos e concordamos que a relação das palavras com as
19) Ibid, pág.181. coisas não é tão simples assim. Para mais ver: Cardoso, R. O design
20) Bartelt, 2003, p. 587 apud Medeiros, R. G. Mundo Quase-Árido In: brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-1960. São
Ilha, pág. 28. Paulo: Cosac Naify, 2005.

38 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 39


própria? Semiárido: transpira, transgride, desobriga, des- clatura governamental de “socorros públicos”, o seu proje-
terra a si mesmo e os outros. tar – bem diferente dos tons de Rebouças, que tinha esse ar
de “salvação”, quase um heroísmo tenaz – com Saturnino
**** esse discurso “perdia força e ficava em segundo plano nas
A produção de mapas nesse momento foi de suma suas considerações republicanas”23.
importância para uma leitura do semiárido. André Rebou- Apesar das diferenças, os discursos desse período
ças22, personagem importante no momento de transição do são permeados por essa luta da técnica contra a natureza.
Império para a República, foi um dos que produziu mapas Há uma visão explícita de que seria preciso obras colossais
para o que na época se chamava “região flagellada”, uma para de fato ser "contra a seca", mesmo quando não defen-
outra forma de nomear o semiárido. O mapa tinha um ob- diam diretamente apenas açudes grandes, defendiam
jetivo de uma leitura prévia para a continuação de estradas enormes sistemas de irrigação como Thomaz Pompeu So-
de ferro para a região. Com destaque para regiões com uma brinho o faz em seu famoso texto O problema das seccas24.
topologia que se destacava, Rebouças projetou ligações que Como seria possível - pensavam os engenheiros, os políti-
iam desde a fronteira do Piauí com o Maranhão até o inte- cos e todas as pessoas envolvidas na transformação do se-
rior da Bahia. O projeto de Rebouças parecia ter um tom miárido e do sertão – fazer com que essa terra mude? Fazer
mais emergencial, como se vê no próprio título do mapa, com que a história chegue a esse lugar?
mas indicava como o caráter da representação já era papel Podemos notar tal conceituação do espaço cearense
determinante na análise e leitura do território do semiári- nos relatórios e mapas de Saturnino de Brito, quando o
do. mesmo esteve a serviço da Estrada de Ferro de Baturité co-
Já no mapa de Saturnino de Brito, elaborado com mo engenheiro. Tal obra é também um grande marco para a
outros intuitos, para o prolongamento da Estrada de Ferro modernização do espaço sendo importante compreender
de Baturité, podemos enxergar uma visão um pouco distin- que além das famosas açudagens também existiam outras
ta. Ao contrário do emergencialismo e da própria nomen- obras que passavam na determinação técnica do espaço do
23) Reis, A. I. R. P. C.; Irffi, A. S. C. Tempo e espaço na produção de um
22) André Rebouças chega a publicar um estudo que chega a fazer território moderno: a “pátria cearense” na cartografia de Francisco
comparativos sobre as “seccas do norte” com as secas na Índia. Saturnino Rodrigues de Brito (1892). Rev. hist. (São Paulo), n.179, a11318,
Rebouças, A. As secas nas províncias do Norte. Rio de Janeiro: 2020, pág.7.
Tipografia G. Leuzinger e Filhos, 1877. 24) Sobrinho, T. P. O problema das seccas. Fortaleza-CE: , pág.4.

40 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 41


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semiárido. É necessário “compreendê-los como produtos impostas pela natureza, acreditando que, dessa forma, es-
ou instrumentos de um projeto modernizador para o Brasil. taria levando o progresso, criando as bases para o desen-
Um projeto modernizador e republicano, ainda que tivesse volvimento do capitalismo e realizando reformas
tons imperiais”25. Tal projeto de modernização do espaço sociais”26. E era de extrema importância que essas altera-
cearense é bem descrito no trabalho de Ana Isabel Ribeiro ções chegassem a esses locais “distantes da civilização”,
Parente Cortez Reis e Ana Sara Cortez Irffi: pois “reformar o Ceará era reformar o próprio Brasil: a pá-
Assim, importa compreender a obra de tria somente poderia ser moderna se os seus mais distantes
Saturnino de Brito, em relação à Estra- rincões também o fossem”27.
da de Ferro de Baturité e ao Ceará, co-
mo proposta eivada de interesses Se para a criação da capital colonial-modernista de
políticos que conformavam, em menor Brasília28 o primeiro ato foi o risco de uma cruz na sua ter-
ou maior medida, a preocupação de
mapear o território cearense a fim de ra, parece-nos que o primeiro ato de fundação do semiári-
justificar ou propor intervenções na- do, enquanto um espaço reinventado pelo Estado
quele espaço que gerassem algum efei-
to sobre os aspectos políticos e Brasileiro, foi primeiro de tudo “arrancar as entranhas” da
econômicos do então estado do Ceará. sua terra, mudá-la e moldá-la até que se tornasse outra
Nessa notória preocupação moderni-
zadora (nova expressão para civiliza- coisa. O semiárido nasce do seu próprio desterro. A criação
ção, no fim do século XIX), encabeçada e reprodução desses discursos de alteração e transforma-
por engenheiros e intelectuais do go-
verno republicano, como Saturnino de ção fizeram inclusive com que fosse difícil fazer compreen-
Brito, o Ceará e seus habitantes foram der até mesmo em uma esfera de debate público que a
“medidos” e classificados por ele muito
aquém do Brasil moderno. (Reis, A. I. R. Caatinga, o bioma característico do semiárido no Brasil, é
P. C.; Irffi, A. S. C., 2020, pág.4) um dos maiores índices de desmatamento do país. A Caa-
O objetivo dessas instituições eram, portanto, “es-
26) Queiroz, M. V. Arquitetura, cidade e território das secas, 2020,
quadrinhar o semiárido. esquadrinhar o semiárido e fazer pág.38
as intervenções necessárias para subverter as condições 27) Reis, A. I. R. P. C.; Irffi, A. S. C. Tempo e espaço na produção de um
território moderno: a “pátria cearense” na cartografia de Francisco
Saturnino Rodrigues de Brito (1892). Rev. hist. (São Paulo), n.179, a11318,
25) Reis, A. I. R. P. C.; Irffi, A. S. C. Tempo e espaço na produção de um 2020, pág.14.
território moderno: a “pátria cearense” na cartografia de Francisco 28) Tavares, P. La natureza política de la selva: políticas de
Saturnino Rodrigues de Brito (1892). Rev. hist. (São Paulo), n.179, a11318, desplaziamento forzado de pueblos indígenas durante el régimen
2020, pág.4. militar em Brasil. Clepsidra, vol.5, n.9, pág. 86-103, 2018.

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tinga já teve 45,92% do seu território desmatado e “80% de
seus ecossistemas naturais sofreram algum tipo de altera-
ção devido à ação humana”29. Como fazer compreender
que há desmatamento em algo que já acham que está (se-
mi)morto?

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29) Maciel, C.; Pontes, E. T. Seca e convivência com o semiárido:


adaptação ao meio e patrimonialização da Caatinga no nordeste
brasileiro. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2015, pág.29

46 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA


em classificações geográficas e topográficas etc. A aproxi-
ENTRE O SEMIÁRIDO E O DESERTO mação desses dois espaços funciona não apenas como uma
Tornando-se quase que um duplo do semiárido, o figura de linguagem mas sim como um modo de se falar so-
deserto é uma das figuras mais associadas à sua imagem. bre as figuras, as imagens e a imaginação do semiárido.
Quando não utilizado para descrever o próprio mundo do Dois espaços fortemente marcados pela sua primeira visão,
semiárido, o deserto aparece como uma imagem tensiona- despertam nos sentidos palavras fortes, marcantes e que
da de um futuro ou até mesmo de um passado do semiári- fazem quase que nascer uma vontade de representação
do, funcionando assim como uma espécie do que ele era, é, fidedigna de quem eles são. Importante, contudo, sempre
ou poderia ser, estando ali a sua imagem sempre à espreita. lembrar que “a ideia de representação é teatral”30, isto é,
O deserto funcionou como a figura do quase do que já é um serve a quem a cria e ao seu público, é uma imagem que se
“quase” (o semiárido), esteve ali como o seu limite, uma almeja construir para outrem. As vidas dos desertos e dos
fronteira próxima de se insurgir e fazer com que tudo se semiáridos foram transformadas, assim, em um teatro do
tornasse aquilo que os outros apontam que poderia surgir mundo desterrado, daquilo que se deve temer, daquilo que
“do outro lado do espelho”. é turvo não só para olhar, mas também para sentir.
Em relação direta com a manipulação
As ilusões, contudo, não deixam de construir coi-
icônica dos elementos mais rústicos sas. Se entre esses dois espaços foi possível construir um
das paisagens sertanejas e da pobreza teatro das ilusões só também foi realizável porque suas
regional, as elites políticas, culturais e
científicas no Nordeste contribuíram próprias estruturas foram formatadas para caber o que
para construir, ao longo do século XX, queriam fazer com eles. Da terra da Caatinga ao mundo
mitos e deformações acerca do semi-
árido, sustentando crenças sobre sua despido de si, o inóspito sobreviveu como figura pontual de
esterilidade, inadequação para o povo- um mundo que descama o seu próprio ar de respiro. Trans-
amento e irrelevância biológica. A
ideia de deserto, dessa maneira, era formar o semiárido e o deserto foi preciso porque assim
continuamente evocada. (Maciel, C.; poderiam mostrar que até mesmo no desconhecido e no
Pontes, E. T. 2015, pág.23.)
vazio seria possível exercer um controle. Entre o semiárido
As associações entre o semiárido e o deserto apare-
e o deserto vive o incontrolável desforme, a mudança do
cem de diversas maneiras, em textos literários, documen-
tos desde a época do Império mas também da República, 30) Said, E. Orientalismo, São Paulo, 1990, pág. 70.

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intempestivo. Entre o semiárido e o deserto vivem mais ilu- nas contra alguém ou algo, mas a luta para que ele possa
sões do que conseguimos enxergar. não fazer dos outros (espaços, sujeitos, pessoas) um deser-
to de si? Dito de outro modo: se foi criada toda uma políti-
**** ca, uma arquitetura, um aparato e uma imaginação contra a
seca - e consequentemente contra o que eles colocaram co-
Há diversas passagens em Os sertões em que Eucli- mo a natureza da terra do semiárido -, contra o que o semi-
des escreve e cita o “deserto”, seja em analogia, menção de árido luta?
passagem ou descrição dele. Quando chega a dizer que o A natureza do semiárido lutaria contra uma dor
homem seria um “agente geológico notável” e que este te- “surda” mas que insiste em gritar à face, explica o autor que
ria assumido em sua História o “papel de um terrível faze- “É que a morfologia da Terra viola as leis gerais dos climas.
dor de desertos”31, Euclides constrói uma linha de relação Todas as vezes que o facies geográfico não as combate de
do sertão com o deserto. Fazendo dessa linha um ponto de todo, a natureza reage. Em luta surda, cujos fogem ao pró-
onde a imaginação sobre a região caminhará durante o sé- prio raio dos ciclos históricos”33. Semiárido: “barbaramente
culo XX, que apesar do autor narrar com várias nuances e estéreis; maravilhosamente exuberantes” porque “na pleni-
certa complexidade, a imagem do deserto está ali pronta tude das secas são positivamente o deserto”34.
para vir a acontecer a qualquer momento, porque indepen- Sabendo da complexidade do próprio semiárido, ou
dentemente do que se fale, “o que há a combater e a debe- melhor, do sertão, Euclides nota que em seus períodos
lar nos sertões do Norte – é o deserto”32. chuvosos a paisagem se transforma, figura de outra forma,
Se os projetos e discursos sobre o semiárido pare- “Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-
cem tê-lo realçado mais ainda como um deserto, uma terra se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação
que não parece vazia mas que tem uma relação turva com o anterior. Os vales secos fazem-se rios”35. Paisagem que mu-
tempo, uma terra sem mudança, a terra em que até quando da a si mesma, transfigura o próprio mundo e ressurge de
acontece algo parece que nada aconteceu. Como podería- outra forma. “E o sertão é um paraíso… Ressurge ao mesmo
mos pensar que a insurgência do semiárido seja não ape- tempo a fauna resistente das caatingas”36, e com o encontro
33) Ibid, pág.62.
34) Ibid, pág.60.
31) Cunha, E. Os sertões. São Paulo, 2019 [1902], pág.62. 35) Ibid, pág.60.
32) Ibid, pág.69. 36) Ibid, pág.58.

52 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 53


img.22 img.23

A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA


das águas com a terra do semiárido: derna e colonial, como “os territórios do deserto foram es-
Cai a temperatura. Com o desaparecer colhidos porque as administrações coloniais ou imperiais
das soalheiras anula-se a secura anor- os consideravam ‘vazios’ ou ‘sem vida’38”.
mal dos ares. Novos tons na paisagem:
a transparência do espaço salienta as Sob a desculpa do “vazio” os desertos também fo-
linhas mais ligeiras, em todas as vari- ram alvo das obras colonialistas, como bem nos mostra Sa-
antes da forma e da cor. Dilatam-se os
horizontes. O firmamento, sem o azul mia Henni e Brahim El Guabli. A investida colonial de
carregado dos desertos, alteia-se, mais utilizá-los para intoxicá-los e transformá-los em campos
profundo, ante o expandir revivescen-
te da terra. E o sertão é um vale fértil. É experimentais de programas nucleares, a estigmatização da
um pomar vastíssimo, sem dono. (CU- terra, despida de uma produção típica para o sistema e que
NHA, 2019 [1902], pág.60)
por isso poderiam também “arrancar as [suas] entranhas”
Tão difícil de descrevê-lo com exatidão, surge da foi utilizada como desculpa para a institucionalização de
sua imagem não a sua semelhança mas a sua própria trans- uma política colonial para a sua transformação. A região do
formação, um mundo que só se pode enxergar anterior- deserto do Saara na Argélia foi utilizada para “detonar de-
mente com outras lentes, ou melhor, para aqueles que não zessete bombas nucleares francesas e além de testarem ou-
tentam arrancá-lo da sua própria terra. Lutam contra o se- tras tecnologias e armas nucleares”39. De desdobramentos
miárido para poder fixá-lo imageticamente. Passado o perí- incalculáveis para a vida do deserto e das pessoas que ali
odo de chuvas, “voltam os dias torturantes; a atmosfera viviam, “sob a falsa bandeira do ‘vazio’, e a inanidade de
asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e que ‘não há nada no deserto’, aqueles que viviam nos de-
nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência sertos ocupados têm sido forçosamente deslocados, deno-
das chuvas – o espasmo assombrador da seca. A natureza madizado [denomadized] e, em alguns casos, exterminados
compraz-se em um jogo de antíteses”37. – seja imediatamente ou gradualmente”40.
Entre as idas e vindas das percepções de ambos es- Assim como o desterro causado no semiárido, atra-
paços podemos perceber como a criação conceitual de co- vés de técnicas de extração e geoengenharia, o deserto
mo esses espaços deveriam ser pensados passa por suas
38) Henni, S. Against the regime of “Emptiness” In: Deserts are not
imagens de fundo mas também a de seu rosto. Assim, não empty, 2022.
só o semiárido foi alvo dessa empreitada tipicamente mo- 39) Henni, S. Terra nucleus: radiating desert lives In. The Funambulist
– Deserts n.44, 2022, pág.61.
37) Ibid, pág.60 40) Ibid, pág.65.

56 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 57


também sofreu operações “através da procura para extra-
ção e transporte de recursos naturais, como olho, gás e lí-
tio, assim como a via de construção das companhias da
cidade, infraestruturas e armas químicas, climáticas, aero-
espaciais, enérgicas e centros de pesquisa de armas atômi-
cas"41.
Notamos então como ambos espaços foram dina-
mitados para que pudessem alterá-lo e configurá-lo. Todas
essas técnicas de transformação e extração da terra foram
utilizadas para causar a mutação desses territórios. Ambos
homogeneizados e universalizados para que pudessem
fixar à sua imagem uma representação. Assim, particular-
mente o semiárido ou os seus duplos (sertão, nordeste etc.)
foram tidos como lugar do passado, da guerra, uma vida
sem lei, sem propriedade, sem o controle da água, do tem-
po, do espaço, como diria Euclides da Cunha: “sem dono”.
Contudo, há mais coisas entre o semiárido e o deserto do
que pode imaginar a vã arquitetura.

41) Henni, S. Against the regime of “Emptiness” In: Deserts are not img.24
empty, 2022,pág.13 img.25
img.26
58 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 57
segue vivendo como se tentassem enclausurá-lo por todas
AS RUÍNAS DO SEMIÁRIDO suas expressões. A sua imagem claustrofóbica, o Nordeste,
A política das Obras contra as Secas, como política carrega em si as linhas demarcatórias que ele deveria viver,
de Estado, se mostrou ser um grande aparato material e habitar o presente mas apenas sob o signo do passado, ou
imaterial. Às vezes criticada com o nome de “indústria da melhor, da figura do “quase”, do incompleto, de uma me-
seca”, ela já existe há mais de cem anos e continua a cons- mória que parece que está conosco mas um segundo de-
truir e desdobrar-se no imaginário da região que ela age. pois já desaparece: ela quase se tornou memória.
Com a capacidade de moldar toda a memória de um povo, Mas se as ruínas são o destino ou a vilania do que o
como podemos ver que os açudes e outras grandes obras se tempo nos causa, ter medo da relação entre a terra e a mu-
tornaram até cartão postal do semiárido, figura tão mar- dança parece ser até algo crível, ou melhor, parece ser
cante de uma construção de memória. As Obras contra as aquilo que paira por baixo, por cima, por dentro ou por fora
Secas conseguiram mudar e configurar toda a imaginação dos discursos sobre o semiárido e os seus duplos. E se as
que habita onde quer que elas toquem. ruínas parecem ser uma daquelas imagens que toda cons-
Se um dia as Obras contra as Secas tornarem-se ru- trução um dia deverá encontrar como ela encontrará uma
ínas seria então a ruína do próprio semiárido ou a sua pró- terra sem a mudança? Se a ruína é caracteristicamente a
pria insurreição? Visto que, como tantos dos engenheiros e destruição ou irrupção do tempo sobre determinado objeto
técnicos falavam, a sua natureza parece viver sob um cons- (uma construção, por exemplo), como enxergarmos a ruína
tante estado de luta contra culturas e parece corroer até a si além do concreto imposto ao semiárido? Como podería-
mesma. Sob a égide do tempo, toda obra e construção entra mos pensar o que é a ruína em um espaço que já é concebi-
em contato com ele. Enquanto o tempo nas cidades parece do desde o começo como uma ruína em si? O semiárido
corroer prédios e outras construções, como habita o tempo não seria, segundo a técnica que o re-inventou, um espaço
em uma terra que a mudança parece agir diferente? As ruí- puramente vazio, mas um espaço que a condenação de si
nas do semiárido são, pela ótica da modernidade que a habita. Como já falamos anteriormente, vivendo sempre à
narra, a sua própria terra. beira de tudo, no quase das coisas, na fronteira de mundos.
Feito de uma “natureza-morta”42 o semiárido per- Euclides da Cunha narra que a seca desertifica não
só o clima do ambiente mas as próprias "vivendas", "deser-
42) Cunha, E. Os sertões. São Paulo, 2019 [1902], pág.53. tas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu"; e as-
62 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 63
img.27

img.28
sim tornadas "em ruínas, outras; agravando todas, no as- Na pretensão de controlar o tempo através de uma
pecto paupérrimo, o traço melancólico das paisagens…"43. arquitetura acabaram fazendo o tempo se perder na sua
A seca criando a sua própria ruína, não apenas uma arqui- própria medida, secas que aconteciam raramente na Ama-
tetura desertificada mas também a vida dos que habitavam zônia “fenômenos que deveriam ocorrer uma vez por sécu-
aquelas construções. O tempo, a aspereza, o "mundo qua- lo estão se repetindo a cada quatro anos ou cinco anos”45.
se-árido", isto é, o mundo prestes a se desfazer e refazer-se Jogado ao desejo dos que queriam resolver algo que não era
em terra, em areia, em vestígio de um tempo que não deixa um problema, o seu espaço se tornou símbolo do conflito.
de gritar para todos que ali passam: aqui não é como ali. “E o sertão de todo se impropriou à vida”46. Conflito das
E se hoje somos, de certa forma, avisados nos jor- ideias, dos espaços, do tempo mas também da matéria que
nais de uma catástrofe em processo, ainda vendo outras re- insiste em existir de outra forma. Semiárido: um continu-
giões passando também por secas - estas tão associadas à um de interrupções, de incompreensões, do desconhecido.
“estética” do semiárido, fincadas à sua imagem e seme-
lhança -, como poderíamos esquecer a sensação da terra
árida sobre nós? Não a do seu desespero, sua desesperança
forjada através do concreto, mas a aridez que possibilita
respirar também. Tentou-se tanto transformar o semiárido
em outra coisa que a sua imagem inventada se espalha pelo
mundo. Seria uma ingenuidade perguntar que se há mais
de um século tentam impor uma técnica e uma luta contra
as secas como e por que estas se espalham para o mundo
além das terras semiáridas? São as secas do semiárido que
estão se espalhando ou estamos virando todos um “Mundo
Quase-Árido”44?

45) Javier Tomasella apud Marques Filho, L. Capitalismo e colapso


43) Ibid, pág.26. ambiental, São Paulo, 2018, pág.172.
44) Medeiros, R. G. Mundo Quase-Árido. Ilha, Florianópolis, 2019. 46) Cunha, E. Os sertões. São Paulo, 2019 [1902], pág.53.

66 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 67


citizenship aer state violence. New York: Fordham University
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74 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 75


LISTA DE IMAGENS: 20-Acervo do DNOCS.
21-Acervo do DNOCS.
1-Açude do Cedro, Quixadá-CE. Acervo de Obras raras da 22-Acervo do DNOCS.
BECE. 23-Acervo do DNOCS.
2-Açude do Cedro, Quixadá-CE. Acervo de Obras raras da 24-Acervo do DNOCS.
BECE. 25-Acervo do DNOCS.
3-Acervo do DNOCS. 26-Acervo do DNOCS – Barragem de Jucazinho-PE,
4-Acervo do DNOCS. fotografia de 1999.
5-Fotografia do autor. 27-Cartão postal disponíveis no Acervo do DNOCS.
6-Acervo do DNOCS. 28-Cartão postal disponíveis no Acervo do DNOCS.
7-Acervo do DNOCS. 29-Acervo do DNOCS.
8-Mapa da delimitação do semiárido pela SUDENE, 30-Acervo do DNOCS.
disponível no site da Instituição.
9-Acervo do DNOCS.
10-Acervo do DNOCS.
11-Acervo do DNOCS.
12-Acervo do DNOCS
13-Acervo do DNOCS
14-Fotografia do autor.
15-Acervo da Hemeroteca digital brasileira.
16-Acervo da Hemeroteca digital brasileira.
17-Mapa produzido por André Rebouças com original no
acervo da BECE. Utilizada versão digitalizada do Arquivo
Nacional do Brasil.
18-Mapa de Saturnino de Brito disponível no artigo de Ana
Isabel Ribeiro Parente Cortez Reis e Ana Sara Cortez Irffi.
19-Acervo do DNOCS.

76 A TERRA E A MUDANÇA RAIZ IMAGINÁRIA 77


O semiárido, clima típico de 13% do território brasileiro,
tem sido um espaço de disputa há mais de um século. In-
trinsecamente ligado às secas na sua região, o semiárido
foi conceituado principalmente a partir das chamadas
"Obras contra as Secas" pelo Estado Brasileiro, fazendo
com que a partir do momento que assim nomearam uma
política também nomearam um modo de lidar com esse es-
paço, criando-se todo um aparato para transformá-lo.
Através de projetos, construções e discursos sobre essa re-
gião foi formada e transformada uma cultural visual do se-
miárido, constantemente questionando as suas naturezas e
suas culturas, fazendo com que adquirisse diversos nomes
como "polígono das secas", "sertão" ou até mesmo a sua
clausura discursiva maior: Nordeste. Tensionando a ideia
de que o semiárido é um espaço que não seria possível ha-
bitá-lo como ele foi concebido “naturalmente” Leonel Olim-
pio esboça minimamente - através de uma investigação de
imagens, projetos, mapas e textos disponíveis em bibliote-
cas e acervos públicos - uma história desse projeto concre-
to-imaginário e pergunta pelo processo material e imaterial
dos desdobramentos da modernização e da colonização
no semiárido no Brasil.

RAIZ IMAGINÁRIA

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