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DE VOLTA ÀS ORIGENS – POR UMA ARQUITETURA SEMPRE

CONTEMPORÂNEA (2004)
José dos Santos Cabral Filho

Publicado em:

Topos Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 01, n. 02, p. 87-90, 2004.

Resumo

Este artigo busca responder à questão ‘o que é projetar hoje?’ através da apresentação de um panorama
das mudanças em curso na arquitetura contemporânea que estão resultando da conjunção entre novas
abordagens na teoria da arquitetura e as novas tecnologias computacionais de mapeamento,
manipulação e divulgação da informação. São apontados quatro deslocamentos nos processos que
definem a prática arquitetônica: (i) na prática criativa do arquiteto (do desenho de objetos ao desenho
de processos); (ii) nos processos de representação do projeto(do desenho projetivo ao modelamento
experimetável); (iii) na arquitetura enquanto objeto construído (da arquitetura como resistência à
arquitetura como plasticidade); e (vi) na identidade do habitante (de usuário a sujeito arquitetônico).
Tais deslocamentos assinalam a possibilidade da Arquitetura recuperar o seu caráter primordial
enquanto ‘instrumento ético’ que dá suporte à experiência humana através da junção entre níveis
pragmáticos e simbólicos de uma maneira mais efetiva que qualquer outro instrumento de nossa
cultura tecnológica.

Abstract

This article aims to answer the question; what does it mean to design nowadays? It is presented a
panoramic analysis of the changes that are presently modifying the architectural scenario and are due
to the convergence of new architectural theories and new digital technologies of information and
communication. These changes are grouped under four aspects or ‘displacements:’ (i) regarding
architectural representation (from projective design to experimental models); (ii) regarding architects
creative process (from designing objects to designing processes); (iii) regarding the architectural object
(from architecture as resistance to architecture as plasticity); and (iv) regarding dwellers identity (from
being a user to an architectural subject). Such displacements are signaling the chance of Architecture
to recover its primordial role as an ‘ethical instrument’ which enable human experience by bringing
together pragmatic and symbolic aspects in such an effective way unknown to any other instrument of
our technological culture.

Projeto e incerteza – o que é projetar hoje?

Parece haver indícios suficientes para acreditarmos que estamos presenciando uma mudança de monta
maior nos vários aspectos conformadores da Arquitetura contemporânea, desde sua invenção e
produção até o seu uso e significação. Grosso modo, podemos dizer que estamos assistindo uma série
de redefinições radicais dos aspectos e processos que definem (i) a prática criativa do arquiteto, (ii) os
processos de representação do projeto, (iii) a arquitetura enquanto objeto construído e (vi) a
identidade do habitante. Tais mudanças são fruto da conjunção entre novas abordagens na teoria da
arquitetura e as novas tecnologias computacionais, e é consenso entre os estudiosos do tema que elas
se equiparam apenas àquelas ocorrida na Renascença com o aparecimento da perspectiva científica e o
consequente surgimento do arquiteto moderno e seu ‘modus operandis’. Além do novo arsenal teórico
disponibilizado para os arquitetos, a presente situação apresenta-se realmente nova especificamente
pelo fato de que o computador enquanto tecnologia de mapeamamento, manipulação e transmissão da
informação não encontra similar na história da humanidade já que apresenta uma total singularidade
devido à sua indeterminação funcional.

Representação arquitetônica – do projetivo ao experimentável

No que concerne a representação do projeto, a popularização da representação computadorizada


coincide com a disseminação de uma crítica generalizada à representação arquitetônica, efetuada por
vários téoricos contemporâneos. Diversos estudos vão desvelar o verdadeiro papel da representação na
determinação do processo criativo e na conformação final dos objetos arquitetônicos, implicações estas
que transcendem ao papel meramente instrumental normalmente associados à representação.

Curiosamente o surgimento dos programas de CAD significou, a princípio, apenas o coroamento da


estratégia de representação renascentista, no sentido de uma otimização de suas possibilidades de
abstração e cientificização. Porém no bojo da otimização das técnicas renascentistas, a representação
digital também colaborou para o esgotamento destas mesmas técnicas, esgotamento anunciado já
pelos trabalhos teóricos. Não obstante, o fim da idéia de que a representação arquitetônica se limitava
ao desenho projetivo permitiu que o os arquitetos vislumbrassem novos usos para o computador além
da representação gráfica.

Assim assistimos a um deslocamento da representação arquitetônica que passou do desenho projetivo


à adoção dos modelos parametrizados. Além da maquete eletrônica que buscava a mera visualização
do ambiente tal qual as representações aquareladas dos arquitetos dos séculos passados, os arquitetos
começaram a trabalhar com a idéia de um modelo eletrônico, operacional e passível de ser submetido a
testes. Descobre-se que num computador não se desenha, mas constroem-se modelos onde podem ser
estabelecidos e testados, com uma desconhecida precisão, a performance do espaço, abrangendo desde
as variações térmicas e luminotécnicas até fatores mais difíceis de serem simulados como por exemplo
o fluxo de pessoas e o comportamento de multidões. Porém o que o uso de modelos parametrizados
trouxe de mais significativo para a Arquitetura foi a possibilidade da experimentação de uma certa
indeterminação entre o projeto e a obra. O potencial desta indeterminação, usada ainda apenas por
poucos arquitetos de vanguarda, vem aliviar a historicamente problemática relação de causa e efeito
entre o projeto e o objeto.

Projetar – do desenho de objetos à programação de processos

Estas mudanças no caráter da representação arquitetônica vão abrir possibilidades de alterações


também radicais no processo criativo do arquiteto. Juntamente ao uso de modelos parametrizados
assistimos ao desenvolvimento de processos automáticos de geração de formas. Processos
matemáticos de análise de padrões e o uso de procedimentos computacionais iterativos e retro-
alimentados viabilizam trabalhos tais como os de arquitetura evolutiva, sintaxe espacial, gramática da
forma, etc.

Além dos aspectos dinâmicos implícitos na parametrização dos modelos, algumas possibilidades
temporais passam a ser exploradas pelos arquitetos, baseados tanto numa visualização dinâmica da
informação através do uso de mídias digitais de base temporal, quanto no uso de algorítimos
evolutivos. Tais algorítimos, que se inspiram em processos naturais de crescimento e evolução, são
usados como estratégia de criação formal aberta à indeterminação. Estes recursos de inclusão do
tempo na representação, que se tornaram cada vez mais acessíveis com a diminuição dos custos e o
aumento exponencial da potência computacional, tem aberto caminho para os arquitetos enfatizarem
cada vez mais o seu papel como determinadores de processos. Desenhar o processo de geração do
objeto passa a ser mais importante que desenhar a geometria do objeto em si.

Objeto Arquitetônico – da resistência à plasticidade

A ênfase no desenho de processos, as possibilidades de representações multimidiais e de base


temporal, juntamente com a disseminação, entre os arquitetos, de conceitos filosóficos, científicos e
psicanáliticos que abordam a indeterminação, tudo isto vai ter uma incidência marcante sobre o
objeto arquitetônico e sua espacialidade. A proeminência que era dada ao objeto arquitetônico
enquanto instrumento de fixação de significados e funções permanentes, vai ceder lugar a uma
valorização da experiência arquitetônica que normalmente se imbui de valores processuais, abertos e
indeterminados.

A proliferação dos espaços ‘metafóricos’ no universo digital, tais como as realidades virtuais e o
ciberespaço também vão desempenhar um papel importante nesta redefinição do objeto arquitetônico.
Tais espaços digitais, que a princípio pareciam ameaçar a existência do próprio espaço arquitetônico,
vão ter um efeito contrário e permitir aos arquitetos a redescoberta de aspectos singulares do lugar
arquitetônico. A ‘inconsutibilidade’ e a ‘inefabilidade’ da experiência arquitetônica , por exemplo,
permanecem irredutíveis a uma reprodução nos espaços digitais.

De qualquer forma, estes aspectos mais sútis e essenciais da experiência arquitetônica vão também
sofrer alterações devido à ubiquidade das tecnologias de comunicação. O conceito tradicional de
habitar, que se fundava na idéia de co-espacialidade passa agora a ter que lidar com a questão da co-
temporalidade. Há uma reconfiguração do que entendemos como presença, já que a convivência das
pessoas passa a se fazer não apenas pelo encontro no mesmo espaço mas também e principalmente
pelo encontro no ‘mesmo tempo’ demandado pelas comunicações em tempo real.

Estas mudanças no caráter da habitabilidade do lugar arquitetônico (que deixa de ser apenas
espacializado e passa a ser também temporalizado), associadas às possibilidades de transformação das
superfícies do objeto arquitetônico em superfícies de apresentação dinâmica de informação, mudam de
forma radical os conceitos de fechamento e abertura, solidez e permanência, conceitos estes sempre
associados ao objeto arquitetônico. (É interessante notar que este processo de desprezo pela
volumetria e massa do muro arquitetônico pode ser já vislumbrado nas estratégias bizantinas de tratar
a superfície com imagens e acabamentos que negam a profundidade.)

Assim, no âmbito do lugar arquitetônico assisitimos a um deslocamento da idéia de arquitetura como


resistência e permanência à idéia de arquitetura como plasticidade e comunicação. Com a valorização
das possibilidades plásticas o objeto arquitetônico passa a se moldar de modo não traumático às mais
variadas injunções externas, quer sejam elas de natureza estética ou programática. A Arquitetura vem
se caracterizar então a como uma espécie de ‘interface': configura-se como algo que podemos chamar
de um ‘vazio relacional’, um vazio que dá suporte às relações humanas em toda a sua extensão
pragmática e simbólica. Em outras palavras, a Arquitetura recupera a sua operacionalidade enquanto
um verdadeiro instrumento ético.

O habitante: de usuário da arquitetura a sujeito arquitetônico

Estes três deslocamentos, na criação, na representação e na configuração do objeto arquitetônico vão,


por fim, convergir na caracterização do habitante do lugar arquitetônico. Estas mudanças ocasionadas
pela popularização das tecnologias digitais de comunicação e informação vão fazer com que o habitante
se depare com um processo de crescente desterritorialização e descorporificação da experiência, numa
magnitude que não havia sido ainda experienciado ao longo da história humana. Por outro lado esta
desespacialização dos eventos vem facilitar, no cotidiano do habitante, a absorção de vários conceitos
ligados ao indeterminismo que haviam sido já disseminados pela ciência, pela filosofia e pela
psicanálise e que só marginalmente haviam sido incorporados à experiência arquitetônica. No bojo
destas transformações da praxis arquitetural as injunções do desejo vem permitir a superação da idéia
de identidade atrelada a uma identidade arquitetônica.

O habitar deixa de estar ligado ao ‘indivíduo’ e passa a ser vinculado ao ‘sujeito’, a este habitante que se
faz e desfaz no habitar e que podemos chamar de ‘sujeito arquitetônico’. No momento em que o
arquitetos começam a levar em consideração este habitante que constantemente se re-inventa, o
habitar passa a se dar em função do desejo e não em função da pré-determinação arquitetônica’.
Assistimos, então, arquitetos trabalhando uma nova relação entre o uso e a pré-determinação
projetual. Tal relação pode ser caracterizada como ‘transfuncional’, por ser aquém e além da função
em sua forma estrita, por não conter a função de maneira determinada mas sim potencializada. Aqui
efetivamente há o deslocamento da idéia de usuário para a idéia de sujeito arquitetônico, onde o
habitante deixa de ser fruto da função e passa a ser um sujeito que se faz em consonância com o lugar
arquitetônico.

Projetar hoje – de volta às origens

Assim, respondendo à questão inicial – o que é projetar hoje? – podemos certamente afirmar que
estamos assistindo a um deslocamento copernicano na idéia de projeto e que um novo ferramental
crítico e teórico tem nos permitido, enquanto profissionais, desviar o foco de nossa atenção do objeto
em si para o âmbito mais amplo das relações entre o usuário e o objeto. Assim, ganha proeminência o
vínculo relacional entre o habitante e seu lugar. E talvez púdessemos dizer que o trabalho do
profissional não vai apenas se favorecer da compreensão das relações entre habitante e lugar, mas
deve operar mesmo sobre estas relações, ou seja, é necessário assumir que o que se planeja e projeta
não é exatamente o objeto, mas o conjunto das relações entre habitantes e estes objetos.

Para finalizar podemos dizer que com o deslocamento das representações gráficas para o domínio das
representações computadorizadas, cada vez mais baseadas em procedimentos abstratos e mídias
digitais, assistimos a um distanciamento entre nós e o mundo, objeto da representação. Em outras
palavras, de uma forma geral, as representações digitais diminuiram nossa cumplicidade com o mundo
que habitamos. No entanto, a exploração em profundidade do potencial e das características
específicas das novas ferramentas e mídias nos permite uma prática que estimula a percepção e
viabiliza uma representação mais abrangente. Isto talvez nos abra possibilidades de uma ação mais
vasta e pertinente sobre a totalidade do mundo justamente por viabilizar a criação de um ambiente
construído que dê suporte à experiência humana de forma expandida, operando a junção entre níveis
pragmáticos e simbólicos de uma maneira mais efetiva que qualquer outro instrumento de nossa
cultura tecnológica.

Como citar esse artigo:

CABRAL FILHO, J. S. . De Volta às Origens- Por uma Arquitetura sempre contemporânea. Topos
Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v.01, n.02, p.87-90, 2004.

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