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RESENHA DE “BUGIO MOQUEADO”1 (MONTEIRO LOBATO)

Marina Sena2

“Bugio Moqueado” faz parte do livro Negrinha, uma coletânea de contos de Monteiro
Lobato escritos para o público adulto, publicado pela primeira vez em 1920. Sem perder os traços
regionalistas característicos do autor, a narrativa pode ser lida como um exemplo autêntico do que
chamamos de literatura do medo no Brasil.
A ambientação da narrativa no interior do país não é diferente da maioria das histórias
escritas por Lobato, sejam elas voltadas para o público adulto ou infantil. O ambiente rural é o
espaço mais explorado pela literatura do medo brasileira no século XIX e no início do XX. A
existência de um ambiente ermo, afastado da civilização, (como a fazenda do Coronel Teotônio), e
a presença de um “monstro humano”, não sobrenatural, mas comparado a um animal considerado
“mau” ou “perverso” na cultura interiorana (como o urutu, neste conto), são características do que
talvez pudéssemos chamar de “gótico tropical”3.
A narrativa é toda composta por um vocabulário de palavras e expressões regionais. Um
aspecto interessante a ser considerado é o fato de haver um “monstro humano” (como foi dito
anteriormente) e uma situação natural que, por ser misteriosa, tende a ser explicada de modo
sobrenatural. Tal explicação é completamente causada pela visão do narrador-personagem, que
sente medo dos elementos que – embora naturais – são obscuros.
Devemos lembrar que estamos falando de uma época em que o Brasil ainda era um país
predominantemente rural. O medo associado aos locais ermos, o vocabulário regionalista, a
tendência à explicação sobrenatural, a figura do coronel temido caracterizam tanto o período em
que se passa o conto quanto à literatura regionalista, que explora esses elementos.
Essa é a ambientação da narrativa principal. Porém, antes de entramos de fato na história
do bugio moqueado, o narrador está envolvido em um jogo de pelota. O início do texto não
apresenta, pois, a trama principal. Ele é uma espécie de narrativa paralela e serve como cenário
que torna mais legítima a oralidade do conto.

Se o leitor desconhece o jogo da pelota em cancha pública – Frontão da Boa-Vista,


por exemplo, nada pescará desta gíria, que é na qual se entendem todos os
aficionados que jogam em pules ou “torcem”. (LOBATO, 2009, p. 45)

1
LOBATO, Monteiro. Bugio Moqueado. In:___. Negrinha. São Paulo: Globo, 2009 (pp. 44-50)
2
Graduanda do Curso de Letras da UERJ, bolsista voluntária de Iniciação Científica e membro do Grupo de Pesquisa
“O Medo como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).
3
O uso do ambiente ermo como espaço privilegiado para a ocorrência de eventos relacionados ao medo aparece em
outras narrativas com as quais trabalhamos em nossa pesquisa, como por exemplo, “Dança dos ossos” (Bernardo
Guimarães), “Acauã” (Inglês de Souza) e “Assombramento” (Afonso Arinos), entre outros.
O sentido de estranhamento é intencional, principalmente pelo uso do vocabulário típico
do jogo, que um leitor comum não entenderia. É um modo de distrair o leitor, fazendo com que a
narrativa principal surja quase que “por acaso”, interrompendo a primeira, quando o narrador,
desinteressado do jogo, começa a escutar a conversa entre dois homens próximos a ele.
O que impulsiona a narrativa é sempre a curiosidade dos personagens envolvidos, direta ou
indiretamente. O ponto de partida da segunda narrativa, a que causará horror, é a curiosidade do
primeiro narrador, que escuta com interesse a conversa alheia. A partir daí, o primeiro narrador se
transforma em simples ouvinte, enquanto o outro assume as rédeas da história.

Eu jogava, e portanto, falava e pensava assim. Mas como vi meu jogo perdido,
desinteressei-me do que se passava na cancha e pus-me a ouvir a conversa de dois
sujeitos velhuscos, sentados à minha esquerda.
“... coisa que você nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade pura. Fui
testemunha, vi! Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo prato...”
“Horrendo prato?” Aproximei-me dos velhos um pouco mais e pus-me de
ouvidos, alerta. (IBID., p. 46)

Nesse trecho existe uma espécie de prelúdio. Expressões como “mártir branca que nem
morta” e “horrendo prato”, se não chegam a ser uma sinopse, funcionam como um “aperitivo” do
que está por vir. As marcas de veracidade – “fui testemunha”, “vi” – e o suspense criado despertam
a curiosidade do primeiro narrador e, é claro, de nós, leitores. É importante notar que a narrativa
que se inicia aqui tem uma estrutura independente das outras partes do conto. Ela tem uma
apresentação, um desenvolvimento e um desfecho próprios.

A ambientação da segunda narrativa começa com a descrição geral do ambiente, um lugar


ermo, no interior do Mato Grosso. Logo depois surge a figura do Coronel Teotônio, que causa
temor só pela sua aparência:

E, palavra d’honra! não me recordo de ter esbarrado nunca tipo mais


impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entiotada
de rugas, ar de carrasco... Pensei comigo: Dez mortes no mínimo. (IBID., p. 46)

Assim como acontece com o personagem Mr. Hyde, em O médico e o monstro, de


Stevenson, não se sabe exatamente o que há de errado com a aparência do Coronel Teotônio, mas,
de alguma forma, sua personalidade se exterioriza em seu aspecto físico. É também nesse trecho
em que ocorre a primeira comparação do monstro com uma cobra.

Apesar do temor que o Coronel inspira no segundo narrador, ele supera o medo e vai até a
fazenda, movido pelo desejo de fazer negócio. Lá chegando, é convidado para jantar, e nesse ponto
se inicia uma curva narrativa4 em que o suspense exerce papel fundamental. Os elementos do
enredo e as descrições vão promovendo um crescimento gradual da tensão, até o clímax, que é a
tortura infligida pelo monstro.

O segundo elemento essencial da apresentação é a casa. Ela é descrita como sombria e


desagradável, comparada a uma alcova e com um cheiro repulsivo. O narrador equipara a casa ao
dono, como se, de alguma forma, fosse uma espécie de extensão do próprio dono e de seu estado
de espírito. O ambiente contribui, de modo decisivo, para o medo que o Coronel causa ao
narrador.

Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal
arejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a
cara e os modos do proprietário. Traste que se não parece com o dono é roubado,
diz muito bem o povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e
abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do
nariz — cheiro assim de carne mofada... (...)
A secura e a má cara do facínora não davam azo à mínima expansão de
familiaridade; e, ou fosse real ou efeito do ambiente, pareceu-me ele inda mais
torvo em casa do que fora em pleno sol. (IBID., p. 47)

Nesse ponto, são dois os elementos capazes de produzir medo na história: o monstro e seu
ambiente natural. O próximo elemento a ser adicionado é a vítima, apresentada com a aparência
de “morta-viva”. Magra, os olhos sem expressão, pálida, como que doente. O narrador, ao vê-la,
sente medo. A vítima representa, ainda que de modo indireto, o poder do monstro. Embora as
causas da debilidade de seu estado físico e mental sejam desconhecidas, o leitor é capaz de
relacioná-las ao algo que o Coronel lhe fez – ou faz. Os três elementos conjugados – ambiente,
monstro e vítima – completam, assim, a atmosfera de medo da narrativa.

Confesso que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabólico do urutu, aquela morta-


viva morre-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes
num calafrio de pavor. Em campo aberto não sou medroso – ao sol, em luta
franca, onde vale a faca ou o 32. Mas escureceu? Entrou em cena o mistério? Ah!
– bambeio de pernas e tremo que nem geléia! Foi assim naquele dia... (IBID., p.
47)

Nesse ponto, a ambientação do conto está completa. Com o progressivo aumento da

4
Chamamos de curva narrativa a estrutura de uma história, o que a sustenta no lugar. É o todo: início, meio e fim.
Começa em um ponto que sobe suavemente até o clímax, e depois decai até um desenlace. A curva narrativa se inicia
com a apresentação(início), em que vemos alguns dos elementos que participarão da história e como ela
começará(ponto de partida), depois a confrontação ou clímax(meio) em que o personagem principal enfrenta seu
conflito e termina com a resolução ou desenlace (fim). A curva narrativa pode ser quebrada ou interrompida, fazendo
com que uma história termine sem uma resolução, ou comece a ser contada pelo fim, por exemplo. Porém, interrompida
ou não, a curva é a base de qualquer narrativa.
tensão, o narrador nota que algo está terrivelmente errado, apesar de não conseguir identificar o
quê. Pressente “um horror de tragédia, dessas horrorosas tragédias familiares” (IBID. p. 48),
quando o Coronel obriga a vítima a comer o “petisco preto” (IBID., p. 48).

Note-se que o narrador, incapaz de entender claramente o que está acontecendo, acredita
estar diante de um evento sobrenatural. Ao sentir medo do que lhe é desconhecido, sente-se
impossibilitado de agir, o que fica ainda mais evidente, quando se inicia o ápice da narrativa: a
tortura da vítima.

Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e


repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou
para mim as pupilas vítreas e ficou assim uns instantes, como à espera dum
milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de
socorro que jamais a aflição humana calou...
O milagre não veio – infame que fui! –(...) (IBID. p. 48)

Suplicante, a mártir olha para o narrador personagem e pede ajuda, mas ele nada pode
fazer. Seu medo do desconhecido e do que pensa ser sobrenatural é usado, por ele, como
justificativa legítima para a sua própria covardia. É notável, nesse trecho, o sofrimento da mártir, e
a sua reação fisiológica ao horror e à repugnância de comer o misterioso prato.

Depois do ápice temos a decadência da curva narrativa. O desespero da vítima diminui aos
poucos, até atingir quase um estado de repouso letárgico. Assim, a tensão não desaparece, mas se
afrouxa. É o momento em que se pode ver o prazer sádico do monstro:

Os tiques nervosos diminuíram de frequência, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de


novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta
do seu marasmo sonambúlico.
Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro
venenosamente... (IBID., p. 48)

Depois do episódio principal, o narrador personagem vê uma porta entreaberta com uma
carne preta pendurada. Novamente, temos a curiosidade impulsionando a narrativa. Notamos o
sadismo e o sarcasmo do Coronel, bem como certo prazer e ironia ao falar da carne estranha.

— É curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço... (...)


— (...) Aqui a patroa pela-se por um naco de bugio moqueado, e ali dentro há um
para abastecer este pratinho... Já comeu bugio moqueado, moço?
— Nunca! Seria o mesmo que comer gente...
— Pois não sabe o que perde!... filosofou ele, como um diabo, a piscar os olhinhos
de cobra. (IBID., p. 49)

Nesse ponto acontece uma interrupção: o primeiro narrador voltar a prestar atenção no
jogo de pelota, e a narrativa principal é atravessada pela primeira. Porém, pela terceira vez, é a
curiosidade que impulsiona a narrativa, fazendo com que ele continue a ouvir a história, que
continua após um avanço temporal: “passaram-se anos”. Inicia-se, então, um epílogo, que está
diretamente relacionado à história principal. Este tipo de trecho explicativo é comum nos contos
de horror da literatura brasileira, como fosse sempre necessário desfazer as ambiguidades e
explicar, de modo mais ou menos realista, o que ficou obscuro.

O ponto de partida do epílogo é quando o segundo narrador pede a um empregado que lhe
indique um segundo ajudante:

— Não teria você, por acaso, algum irmão de sua força?


— Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não existe mais...
— De que morreu?
— De morte matada. Foi morto a rabo de tatu... e comido. (IBID., p. 50)

A partir daí, vão sendo revelados detalhes da narrativa principal que até então eram
desconhecidos do primeiro narrador e do leitor, elementos que aumentam a tensão, até chegar à
revelação final.

— “Comido?” repeti com assombro.


— “É verdade. Comido por uma mulher”.
A estória complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifração. (IBID., p. 50)

O reconhecimento se dá rapidamente. O segundo narrador nota que a mulher de quem fala


Zé Esteves é a ”morta-viva” da casa de Coronel Teotônio: o leitor e o primeiro narrador descobrem
do que se tratava o “petisco preto” e o que realmente se passava naquela casa.

— Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram


aquela carne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho para a
patroa comer... (IBID., p. 50)

Depois dessa revelação final, o epílogo é interrompido, pois só tem a função de esclarecer
os pontos obscuros da narrativa principal. Voltamos ao primeiro episódio, o jogo de pelota, que o
narrador volta a assistir: “Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha,
não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13...” (IBID., p. 50)

Por seu poder de causar medo e repugnância, a narrativa principal, já concluída, anula a
primeira, que não tem mais razão de continuar.

Assim, o conto de Lobato, dispondo de elementos, ao mesmo tempo, obscuros e realistas,


mergulha o leitor no ambiente rural, um mundo onde o que é estranho ou misterioso é sempre
explicado de forma sobrenatural. Contudo, a explicação do epílogo faz o leitor sentir o medo, a
repugnância e o estranhamento ante a crueldade que um monstro sádico, racional e humano,
demasiado humano, pode causar.

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