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Filosofia

Material Teórico
A Crise da Razão

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. André Luciano

Revisão Técnica:
Prof. Ms. Edson Alencar Silva

Revisão Textual:
Profa. Dra. Selma Aparecida Cesarin
A Crise da Razão

• Crise da Racionalidade
• A Constatação da Irracionalidade
• A Fenomenologia
• A Escola de Frankfurt
• Mannheim: entre o Caos e o Autoritarismo

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· A crença na razão iluminista, herdeira da tradição filosófica grega,
como instrumento de compreensão da realidade e de construção
de uma sociedade justa, capaz de livrar a Humanidade de todas as
mazelas, sofre severas críticas, já ao final do século XIX.
· O que fazer quando a razão não cumpre suas promessas, quando, ao
menor vacilo, “seu sono produz monstros”.
· Assim, veremos quais os fundamentos da crise, bem como as
críticas à razão; os caminhos propostos por diversos pensadores
para a busca do conhecimento, para o progresso da ciência e da
Humanidade, num momento em que a própria razão parece elevar
a irracionalidade humana.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE A Crise da Razão

Introdução
“A razão pode lutar corpo a corpo com os terrores, e derrubá-los.”
(EURÍPEDES)

A crença na capacidade da razão, como


redentora de todos os males, já estava pre-
sente na Filosofia grega. Alguns autores
afirmam ser certo que a Filosofia e a razão
nascem juntas. Tal crença ganha novo fôle-
go com o Renascimento1 e atinge seu ápice
com a Ilustração. Nesse sentido, durante os
séculos XVIII e XIX, assim como parte do sé-
culo XX, ela marca toda uma geração de in-
telectuais que nasceu e teve seu desenvolvi-
mento intelectual sob a égide do Iluminismo,
do Império da Razão. Tal geração acreditava
que a humanidade, pela Razão e Ilustração,
caminharia para a plena realização e concre-
tização do Homem.

A Ilustração ou Esclarecimento caracteriza-se pela


defesa da Ciência e da Razão contra a fé, o dogma
religioso e a superstição.
A Enciclopédia foi uma obra coletiva organizada
por Diderot, composta por 20 volumes, que tinha Figura 1 – Imagem que ilustra a
a pretensão de conter a totalidade dos saberes contracapa da Enciclopédia de Diderot,
existentes. Tratava-se de uma obra aberta ao pro- mostrando a Verdade sendo descoberta pela
gresso indefinido dos conhecimentos humanos. Ciência e pela Razão e iluminando a todos
Fonte: Wikimedia Commons

O movimento iluminista depositava imensa fé na capacidade de a humanidade


utilizar-se da Razão e assim progredir. Para os intelectuais desse tempo, a história
estaria em um contínuo e permanente progresso em que reinaria a Razão.

O mundo todo caminhava para se tornar um local harmônico e pacífico. Marx,


por exemplo, acreditava que a razão era não só um instrumento de apreensão da
realidade, mas, também, de construção de uma sociedade mais justa, capaz de
possibilitar a realização de todo o potencial de perfeição existente nos seres humanos.

1. Cabe lembrar da importância durante este espaço temporal do pensamento cartesiano e o desenvolvimento do cogito
como afirmação do poder da razão para o estabelecimento de verdades, assim como o método cartesiano que acaba
por definir e empoderar o desenvolvimento e a especialização das Ciências.

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Devemos atribuir à Revolução Francesa, que tem origem na efervescência
promovida pela burguesia contra o regime absolutista da nobreza francesa,
alimentada pelo movimento de ideias da Ilustração, o triunfo da confiança na
razão e na capacidade de o conhecimento levar a Humanidade a um patamar
mais alto de progresso, regenerando o mundo por meio da conquista da natureza e
promovendo um ideal de felicidade aqui na Terra. Esse ideal tornou-se bandeira e
símbolo do movimento de crítica social, cultural e política que marca o Século das
Luzes, o século XVIII. Tal movimento de ideias, que alcança seu ponto culminante
com a Revolução Francesa, e o novo quadro sociopolítico por ela configurado,
terá um impacto decisivo na configuração do conflito que se estabelece entre o
legado da tradição e as forças da Modernidade, entre os valores tradicionais e os
valores concebidos sob a égide da razão2.
Valores e instituições que antes eram considerados parte da natureza humana,
de um ponto de vista supra-histórico, passam a ser entendidos como frutos da
convivência humana. Com o tempo, nenhum tema seria considerado menos
nobre ou escaparia à ânsia de entendimento: o Estado, as religiões, a família e
a sexualidade, a moral, a divisão do trabalho, os modos de agir, as estruturas das
sociedades e seus modos de transformação, a justiça e a violência, entre outros.
A razão passa a ser vista como a luz que, promovendo a liberdade do indivíduo,
orienta sábios e ignorantes em direção à verdade.

A ideia de liberdade passou, então, a conotar emancipação do indivíduo da


autoridade social e religiosa, conquista de direitos, e autonomia frente às instituições.
A burguesia europeia ilustrada acreditava que a ação racional traria ordem ao
mundo, sendo a desordem um mero resultado da ignorância. Educados, o seres
humanos seriam bons e iguais. A ideia de que o progresso era uma lei inevitável
que governava as sociedades consolida-se e vem a manifestar toda a sua força na
Filosofia do século XIX.

Crise da Racionalidade
As primeiras críticas à razão ou à visão iluminista da razão ocorrem ao final do
século XIX e se voltam contra seu caráter universalista e abstrato. A Modernidade,
capitaneada pela razão, propunha valores, modos de pensar e de agir, concepções
de mundo etc., como valores universais, ou seja, válidos e aplicáveis a todas as
sociedades humanas em qualquer situação.

Nessas formulações, abstrai-se qualquer referência a um contexto histórico,


político e social de significado a tais conceitos. Frente à famosa afirmação “Todos os
homens são iguais”, caberiam as seguintes perguntas, entre tantas outras possíveis:
quais homens? Iguais em quê?

2. É importante lembrar que que uma das consequências da Revolução Francesa foi o inicio de uma grande e drástica
mudança na sociedade europeia, pois é o mesmo período que marca os primeiros passos para a Revolução Industrial,
o início do mundo das fábricas, indústrias e das divisões de classes na prática.

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UNIDADE A Crise da Razão

“A subjetividade é a verdade”. Com essa frase, Kierkegaard afirma que o que existe
realmente não é o conceito de indivíduo, e sim, o Indivíduo concreto, vivendo aqui e
agora, decidindo sua própria existência.

A racionalização começa a devorar a Razão. E os homens deixam de ser


concebidos como indivíduos livres ou sujeitos. Passam a obedecer à aparente
racionalidade do Estado, da Burocracia e do Mercado. O ideário iluminista cometeu
a loucura de pensar que a Razão não somente é necessária, mas suficiente.

A ruptura do Racionalismo começa no século anterior, com David Hume (adepto


do Ceticismo) e Immanuel Kant (adepto do Criticismo). Esses questionamentos
com relação à essa crença na racionalidade, somados à influência do movimento
romântico na consideração do humano como totalidade (razão, sentimentos e
desejos) e não parte (razão), provocam reformulação na ideia que se faz do homem
e, por consequência, nos pensadores citados a seguir, sendo que alguns filósofos
do século XIX têm influência marcante na crítica à modernidade: Schopenhauer,
Kierkegaard e Nietszche.

Segundo Schopenhauer (1788 - 1860),


o mundo é gerado a partir da representa-
ção que fazemos dele. Captamos o mun-
do e ele é entendido por meio de formas
puras de representação (espaço, tempo e
causalidade). Conhecer os fenômenos pela
razão, não nos faz encontrar o sentido
das coisas, para isso precisamos fazer uso
do sentimento.

Ao atribuir o conhecimento do mundo a


partir da subjetividade, Schopenhauer co-
loca o corpo do homem como instrumen-
to de conhecimento estando submetido à
causalidade como todos os outros corpos.
Entretanto, o corpo humano é instrumen-
to de conhecimento, o que nos permite in-
Figura 2 – O mundo é fenômeno,
vestigar as causas de nossas ações. (ARA-
é o que aparece para nós
NHA & MARTINS, 2013, p. 154) Fonte: Wikimedia Commons
Explor

https://goo.gl/0nKF9C

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Sören Kierkeggard (1813-1885)
é considerado precursor do Existen-
cialismo, foi crítico severo da filoso-
fia racionalista. Na filosofia iluminista,
universalista, o individual e particular
explicam-se pelo geral. Desse modo,
para Kierkegaard, na filosofia moder-
na, “desde Descartes até Hegel, o ser
humano não é visto como ser existen-
te, mas como abstração, reduzido ao
conhecimento objetivo. Na verdade,
porém, a existência subjetiva é irre-
dutível ao pensamento racional, e por
isso mesmo possui valor filosófico fun-
Figura 3 – Kierkeggard damental.” (ARANHA & MARTINS,
Fonte: Wikimedia Commons 2013, p. 154).

Em Kierkegaard, há um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua


especificidade e do seu caráter insuperável de sua realidade. Não devemos buscar
o sentido do indivíduo numa harmonia racional que anula as singularidades, mas,
sim, na afirmação radical da própria individualidade. A individualidade não deve,
portanto, ser entendida primordialmente como um conceito lógico, mas como a
solidão característica do homem que se coloca como finito perante o infinito. A
individualidade define a existência.

A crítica de Nietzsche (1844-1900)


não é à razão, ou à Ciência como saber,
naquilo que ela se mostrava criativa,
mas como conhecimento do que é
verdadeiro, universal, com leis e causas
válidas para toda a Humanidade e,
portanto, como princípio de igualação
pela busca do que é comum e regular
a todos. “Para ele, o conhecimento
não passa de uma interpretação, de
uma atribuição de sentidos, sem jamais
ser uma explicação da realidade”
(ARANHA & MARTINS, 2013, p. 155).
Todo conhecimento é atribuição de Figura 4 – Para Nietzsche, não se trata mais
sentido e, dessa forma, específico a um de procurar o conhecimento da verdade, mas,
determinado momento, ou aos valores sim, de interpretar um fenômeno
que são promovidos ou ocultados. Fonte: Wikimedia Commons

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UNIDADE A Crise da Razão

O pensamento de Nietzsche se orienta no sentido de recuperar as forças


inconscientes, vitais e instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Os efeitos
dos sentimentos e valores modernos, são a massificação e a repetição. Em um
trecho do prólogo de Assim falou Zaratustra, vemos a visão nietzschiana do
homem das modernas sociedades de massa, nas quais a capacidade do ser humano
para agir espontaneamente é substituída pelo simples comportamento, em sua
monótona previsibilidade repetitiva e normatizada:
“Nenhum pastor e um rebanho! Cada um quer o mesmo, cada um é o
mesmo, e quem sente diferente vai por sua própria vontade para o asilo
de loucos. ‘Antes o mundo todo estava errado’, dizem os mais sutis, e
piscam ... Temos pequenos prazeres para o dia e pequenos prazeres para
noite: mas respeitamos a saúde. ‘Nós descobrimos a felicidade’, dizem os
últimos homens, e piscam” (NIETZSCHE, 2004, p.8).

A Constatação da Irracionalidade
Já no século XX, o pensamento dito “pós-moderno” sofreu a influência
da filosofia nietzschiana, com seu perspectivismo, e também dos filósofos citados
anteriormente, que procuraram desvendar as ilusões do conhecimento daquela
razão toda poderosa da modernidade.

Com a Primeira Guerra Mundial, vem à tona, para grande parcela dos
intelectuais formados na tradição iluminista, o outro lado da moeda: os resultados
“não desejados do progresso da Ciência e da Razão”. O mundo mostra-se, na
verdade, um caos. Nunca antes tamanha brutalidade do homem contra o homem
havia sido vista. A questão que a Filosofia e diversos filósofos se colocavam era:
como poderia haver tamanha violência no reino da Razão?

Figura 5 – Guernica foi produzida por Pablo Picasso, em 1937, representa a violência em virtude de um
bombardeio aéreo feito pelos alemães durante a Guerra Civil Espanhola à localidade de Guernica, no país Basco,
no dia 26 de abril de 1937. Reproduz a atrocidade das vidas estilhaçadas e dos corpos revirados do avesso
Fonte: Wikimedia Commons

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O mundo não tem mais sentido e mostra-se completamente diferente do que era,
nada mais tem o seu lugar definido. Se no passado não havia por que questionar
o mundo, pois ele era “sensato”, naquele instante não há o que ser questionado
porque nada é certo.

Para Lyotard (1924 - 1998), o pós-moderno representa a incerteza sobre aqueles


que procuraram explicar a realidade de modo absoluto e universal. A constatação
de que a Razão, o Progresso e a Ciência não trariam a emancipação humana
não é nova, no entanto, encontramos essa relação ambígua com a Razão e suas
possíveis consequências devastadoras anteriormente, por exemplo, na obra do
espanhol Goya (1746-1828), pintor que celebra e eleva a razão engendrada pelo
Iluminismo, mas que presencia a violência da guerra e das barbáries promovidas
em nome da razão, com a invasão francesa.

A razão não é capaz de refrear na Humanidade seu lado obscuro:


“O homem é assediado pelas trevas (...) A razão é atacada pela loucura
congênita dos homens e pela própria condição humana (...) A razão pode
ser objeto de uma aspiração voluntária, mas Goya nos mostra que os
horrores de que somos feitos são tanto mais perenes quanto são, para
nós, irresistíveis” (COLI, 1996, p. 310).

A Razão Ilustrada não gerou sociedades justas, livres e fraternas como se


imaginava. Nem todas as suas promessas foram cumpridas. Sua racionalidade
tecnocientífica não transformou os homens em seres mais humanos. Se a Razão
não pode mais nos fornecer um “porto seguro” capaz de nos proteger-nos
contra as adversidades das ideologias, dos dogmatismos e das manifestações da
irracionalidade (fundamentalismos, racismos, integrismos, etc.), somos obrigados a
viver num mundo sem horizonte fixo e sem fundamento.

O que matou e mata milhões é a convicção de possuir a verdade e a vontade de


impô-la aos outros. O homem ocidental matou em nome de Deus, em nome de
princípios nazistas, stalinistas e até científicos (racismo). O sono da razão produz
monstros; quando dorme a razão não há mais luz.

A razão ilustrada não transformou os homens em seres mais humanos.

A verdade deve estar em vigília constante:


“Isso pressupõe um esforço áspero de vigília, enquanto a noite, o
obscuro, o monstruoso existem por direito natural, prévios de qualquer
racionalidade. Ao invés do triunfo do pensamento verdadeiro da razão,
da claridade que invade para sempre o universo, o que se descobre é uma
predominância invencível das trevas” (COLI, 1996, p. 310).

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UNIDADE A Crise da Razão

Por outro lado, diversos pensadores impõem-se uma missão: estabelecer,


novamente, com o auxílio da Razão, um novo sentido para o mundo, uma nova
noção de civilização, de valores. Estão apavorados frente ao caos irracional, fruto
da Modernidade, e frente à possibilidade de conflitos ainda mais devastadores.

A Fenomenologia
A corrente filosófica que chamamos Fenomenologia surge ao final do século
XIX e seu principal representante é Edmund Husserl (1859-1958).

A palavra “fenômeno” em grego significa “o que aparece”: tudo que aparece


aos sentidos e à consciência. A Fenomenologia pode ser definida, portanto, como
reflexão sobre um fenômeno ou aquilo que se mostra. Em uma definição mais
adequada: uma reflexão sobre aquilo que se mostra, para sua consciência. Para a
Fenomenologia, as coisas mostram-se ao ser humano, que busca dar significado
e sentido ao fenômeno. “Contra os empiristas (como Locke), a Fenomenologia
afirma que não há objeto em si, já que um objeto é sempre para um sujeito que lhe
dá significado” (ARANHA & MARTINS, 2013, p. 157).

Husserl estabelece polêmica com ou-


tra corrente filosófica influente ao final do
século XIX, o Positivismo. Para os positi-
vistas, os fatos são coisas que existem ex-
teriores aos seres humanos e que devem
ser apreendidas do mesmo modo por to-
dos. Os positivistas, herdeiros da tradição
cientificista do Iluminismo, acreditam no
conhecimento objetivo e universal, aces-
sível a todos do mesmo modo.

Enquanto o Positivismo queria garan-


tir a possibilidade de um conhecimento
científico cada vez mais neutro, despoja-
do de subjetividade e distante do homem,
a Fenomenologia propõe a retomada da
“humanização” da Ciência, com nova re-
Figura 6 – Para Husserl, todo objeto é um dado da
lação entre sujeito-objeto e homem-mun-
consciência, que lhe atribui sentido e significado
do, considerados inseparáveis. Fonte: Wikimedia Commons

Para Husserl, os fatos existem, mas não são importantes em si; o ser humano
não se interessa por eles, mas pelos sentidos que são dosatribuídos a eles. Como
relação, por exemplo, a pergunta que várias Ciências se fazem: o que é a verdade?
Husserl diz que a verdade, do ponto de vista humano, reside no sentido e não
no fato. Cada pesquisador, ao se debruçar sobre a verdade, estará preocupado
e, desse modo, atento somente àquilo que lhe faz sentido, tudo mais é deixado

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de lado. Cada um descreverá alguns aspectos da verdade, não a Verdade em si.
Não é possível, assim, o conhecimento absoluto e universal proposto pela razão
iluminista, apenas conhecimentos referidos a um determinado sujeito:
“A fenomenologia critica a filosofia tradicional por desenvolver uma
metafísica vazia e abstrata, voltada para a explicação. Ao contrário, a
fenomenologia tem o próprio ser humano como ponto de partida de
reflexão. Ao buscar o que é dado na experiência, descreve ‘o que se
passa’ efetivamente do ponto de vista daquele que vive uma determinada
situação concreta” (ARANHA & MARTINS, 2013, p. 157).

A Escola de Frankfurt
O Instituto de Pesquisa Social foi fundado em 1924, em Frankfurt, na Alemanha.
Entre seus mais renomados componentes estão pensadores como Marx Horkheimer,
Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm e Junger
Habermas, esste último pertencendo à segunda geração da Escola. Em Frankfurt,
tais autores desenvolveram a chamada Teoria Crítica, que unia conhecimento e
transformação histórica; em oposição à chamada Teoria Tradicional, que opunha
teoria e prática. Estavam, portanto, interessados na integração entre Filosofia e
análise social, em explorar as possibilidades de transformar a ordem social por
meio da práxis (prática, ação concreta).

Figura 7 – Membros do núcleo fundador do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt


Fonte: Wikimedia Commons

Leitores de Marx, Nietzsche e Freud, entre outros, para os teóricos frankfur-


tianos, a razão não deve ser tomada como um ideal transcendente, que existe
fora da História. A verdade não é imutável ou absoluta, o que não significa
negar qualquer valor a ela sucumbindo ao Relativismo total.
Cada momento histórico tem sua própria verdade, porém não há uma
verdade que possa persistir através dos tempos universalmente, como queriam os
iluministas. A verdade não está fora de uma sociedade dada, já que é definida por
suas particularidades:
“Concluem que a razão, exaltada tradicionalmente por ser ‘iluminada’,
também traz sombras em seu bojo, quando se torna instrumento de
dominação.” (ARANHA & MARTINS, 2013, p. 158).

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UNIDADE A Crise da Razão

Em seu livro Dialética do esclarecimento, Horkheimer e Adorno identificam


as causas que levaram os seres humanos a seguir o caminho da barbárie e ao
fracasso do projeto de autonomia da Razão. Demonstram como a Razão, ao
invés de promover as luzes, a emancipação, o esclarecimento e o progresso da
Humanidade, converte-se em uma ‘razão instrumental’, que promove a imagem
ilusória que o ser humano tem de si como senhor da natureza. “Esse tipo de
racionalidade, em última análise, tem visado à dominação da natureza para fins
lucrativos, colocando a Ciência e a Técnica a serviço do capital.” (ARANHA &
MARTINS, 2013, p. 158).

A razão serviu como meio pelo qual se produziram os princípios teóricos


necessários para serem criadas as condições técnicas necessárias à instrumentalização
da natureza.
“O ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade
encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma
sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria
dominação, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena (sic)”
(HORKHEIMER & ADORNO, 2004, p. 9).

Mannheim: entre o Caos e o Autoritarismo


É interessante, neste momento, retomarmos o
exemplo de Karl Mannheim (1893-1947), pensador
que, de certo modo, expõe, ao longo de sua obra, a
crença na razão e a consequente desilusão quanto às
suas realizações e possibilidades.

Em suas primeiras obras, ainda na década de


1920, Mannheim acredita na Democracia promovida
pela Razão. Para ele, cada um dos vários grupos
sociais presentes em uma sociedade possui uma
ideologia própria, que expõe parte da verdade, da
totalidade e oculta outra. Cada grupo, de acordo
com seus interesses, posição social, econômica, Figura 8 – Mannheim afirmava
religiosa etc., vê a realidade de um modo particular. que todo conhecimento está
O grande propósito do intelectual é promover o arraigado em seu contexto social
debate político racional entre esses diversos grupos, Fonte: Wikimedia Commons
em que cada um exporia a sua parte da verdade. Desse modo, por meio de uma
síntese entre as diversas ideologias, seria possível encontrar o melhor caminho a ser
seguido, em que cada grupo, agindo racionalmente, por meio do debate político,
abriria mão de parte de seus anseios para o melhor desenvolvimento do todo.

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Com os acontecimentos que marcavam a história da Alemanha, na década de
1930, Mannheim vê-se obrigado a abdicar de seu sonho inicial de uma República
na qual o debate político racional entre os diversos grupos prevaleceria. O mundo
mostra-se cada vez mais irracional, o obscurantismo toma conta da sociedade alemã,
na qual Mannheim vivia. Para o autor, a ideologia, nesse momento, é extremamente
irracional, não há a possibilidade de diálogo entre as forças contrárias.
[...] podemos, às vezes, duvidar do que está certo ou errado, e isto pode
ser aceito como coisa natural. Mas quando prevalece uma ansiedade
de massas, porque a comoção ideológica geral elimina toda base sadia
para a ação comum, e quando a gente não sabe onde está, nem o que
deve pensar a respeito dos problemas mais elementares da vida, então
se pode falar, com razão, de uma desintegração espiritual da sociedade
(MANNHEIM, 1972, p. 23).

Nesse quadro, Mannheim vê a necessidade de direcionar a tendência


democratizadora para tentar evitar um de seus prováveis resultados:
“As ditaduras só podem surgir nas democracias: tornam-se possíveis
devido à maior fluidez introduzida pela democracia na vida política. A
ditadura não é a antítese da democracia: é um dos modos possíveis
encontrados por uma sociedade democrática para tentar resolver seus
problemas” (MANNHEIM, 1974, p. 141-2).

A Democracia, ao ampliar os grupos que participam da arena política, pode criar


entraves ao processo decisório, “o curto circuito do processo político pode entrar,
então, numa fase ditatorial” (MANNHEIM, 1974, p. 142). Com o sufrágio universal
e a consequente possibilidade de acesso de diversos grupos na participação política,
a elite política, já amplamente familiarizada com a realidade política e ciente do que
realmente poderia ser feito, portanto, sem entrar em esquemas utópicos e sem se
perder em devaneios, perde sua homogeneidade.

Com efeito, com a Democracia plena:


“Grupos ainda não familiarizados com a realidade política assumem de
repente certas funções políticas. Isso leva a uma discrepância característica:
camadas e grupos cujo pensamento político se orienta para a realidade
têm que cooperar ou lutar com pessoas que estão vivendo sua primeira
experiência política – pessoas cujo pensamento ainda se encontra num
estágio utópico” (MANNHEIM, 1974, p. 142).

Isso se mostra como um mercado livre, em que cada grupo coloca sua opinião
e, assim, o indivíduo confunde-se pelas pressões das unidades rivais sem conseguir
discernir sobre qual caminho é mais positivo. Sendo assim, um dos grandes
problemas da Democracia, para o autor, está em repartir o poder comum, e
também no fato de que o voto, da massa “irracional”, pode ser manipulado por
partidos ou grupos de pressão.

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UNIDADE A Crise da Razão

A tão esperada democracia da Razão mostrou-se falsa, o irracionalismo e o


conservantismo desvirtuaram o ideal de democracia política. O que surge é uma
democracia do impulso, “como agora se pode ver claramente, a democracia não
é necessariamente um veículo de tendências racionalizadoras na sociedade – pelo
contrário, ela bem pode funcionar como órgão da expressão desinibida de impulsos
emocionais momentâneos” (MANNHEIM, 1974, p. 143).

Mannheim vê-se frente a um grande paradoxo. Por um lado, a sociedade


democrática é positiva, pois viabiliza a plena autonomia do indivíduo. Contudo,
esse processo tem sua face negativa, pois a sociedade democrática ao mesmo
tempo induz a massificação desse indivíduo. Ao mesmo tempo em que amplia a
liberdade, “a democracia também desenvolve poderosos mecanismos sociais para
induzir o indivíduo a renunciar a sua autonomia” (MANNHEIM, 1974, p. 143).

Para o indivíduo, se, de um lado, a democracia alimenta a liberdade, estimulando


a autonomia, de outro, também pode induzir o desenvolvimento de mecanismos
sociais de renúncia da autonomia, no anonimato que o indivíduo consegue na massa.

Como consequência, a Democracia costuma ser destruída, não pelos seus


inimigos, mas por fatores de autoneutralização que ocorrem dentro de sistemas
democráticos: a coesão social seria prejudicada se todos buscassem influenciar as
decisões públicas, o que faz com que toda sociedade democrática desenvolva recursos
neutralizadores dessas tendências, que são potencialmente antidemocráticos.
“Quanto mais a técnica nos liberta da força arbitrária da natureza, mais
nos enredamos na rede de relações sociais que nós próprios criamos”
(MANNHEIM, 1974, p. 193).

Como vemos, Mannheim é um caso exemplar da crise da razão. O terror


que a possibilidade do caos lhe desperta faz com que sua crença na Democracia
plena acabe. Ao fim da vida, já não acredita na possibilidade de existência da
Democracia em grandes comunidades, na qual o grosso da população foi ou,
invariavelmente, será massificada pelas técnicas sociais devido à desagregação
dos valores. Nesse momento, Mannheim não vê com bons olhos a participação
de todos os grupos sociais no processo político, pois a interferência das massas
“irracionais” simplesmente levaria ao fim da Democracia. Sendo assim, assume
uma clara posição elitista quanto ao processo político e decisório. A decisão política
deve estar nas mãos de um pequeno grupo que atuaria “racionalmente” frente à
realidade, para resolver, da melhor maneira possível, os problemas que surgissem.

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
Kierkegaard
Para conhecer um pouco mais sobre o pensamento do filósofo, acesse o site:
https://goo.gl/3REhY
Nietzsche
Para conhecer um pouco mais sobre o pensamento do filósofo, acesse o site:
https://goo.gl/mnmZK5
Fenomenologia
Para conhecer um pouco mais sobre esse pensamento filosófico, acesse o site:
https://goo.gl/h1e0sE
Fenomenologia e existencialismo: articulando nexos, costurando sentidos
https://goo.gl/kNT6ld
Escola de Frankfurt
Para conhecer um pouco mais sobre essa escola filosófica, acesse o site:
https://goo.gl/chdVGs
Mannheim
Para conhecer um pouco mais sobre o pensamento desse autor, acesse o site:
https://goo.gl/DTkni5

Vídeos
Especial Nietzsche - Viviane Mosé - Café Filosófico
https://youtu.be/wszgKT2zS-c
FRIEDRICH NIETZSCHE I “Além do Bem e do Mal” (Human, All Too Human) I Documentário
https://youtu.be/vLcvjBys5hk
Aula 31 - Filosofia e Sociologia - Escola de Frankfurt - A Dialética do Esclarecimento - Parte I
https://youtu.be/yJIF3QldGKk

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UNIDADE A Crise da Razão

Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando:
introdução à filosofia. 5ª Ed. São Paulo: Moderna, 2013.

BELLO, Ângela Ales. Introdução à fenomenologia. Bauru: Edusc, 2006.

BENJAMIN, Walter; HABERMAS, Junger; HORKHEIMER, Max; ADORNO,


Theodor W. Benjamin, Habermas, Horkheimer e Adorno. São Paulo: Nova
Cultural, 1983. Coleção Os Pensadores.

COLI, Jorge. “O sono da razão produz monstros”. In: NOVAES, Adauto. A


crise da razão. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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