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HUMILDADE

Falando o venerável padre João de Al-


meida com outro religioso que o não
conhecia de rosto (i), murmurou das
suas cousas, avaliando algumas acções por
imprudentes e loucas, e a seu autor por
ignorante e desacertado.
O servo de Deus, ouvindo isto, se lhe lan-
çou aos pés, dizendo, com vivas expres-
sões de seu espírito:
— Ninguém me conheceu melhor que
V. Paternidade. Deus lhe pague haver-me
tratado com tão sincera verdade.
Esta acção pouco tempo leva ao escre-
ver-se, e menos ao ler-se; mas para se exer-
citar na ocasião repentina, com o espírito
pronto e sincero, requere largo exercício
de virtudes e de haver passado os outros

(1) Hoje dizemos de vida.


250 ANTOLOGIA

bancos da vida espiritual com aproveita-


mento.
Não é, por certo, esta a humildade que o
P. e Afonso Rodrigues chama de gravato, que
é dizer um males de si próprio, para que os
ouvintes acudam por êle ou, ao menos,
achem já feito o que eles queriam fazer, se
os não atalhassem.
Alexandre Magno (segundo refere Plu-
tarco) mandava que os seus soldados, ao
entrar em batalha, levassem a barba feita,
porque não sucedesse que, ficando prisio-
neiros, o inimigo lha mandasse rapar, cousa
então usada e mui injuriosa.
Assim os hipócritas, por império do seu
amor próprio, que é o seu Alexandre, a
quem obedecem e para quem militam, quando
temem que outrem lhes faça a barba por
vitupério, eles primeiro a fazem a si mesmos
por gentileza; mas esta gentileza só aparece
nos olhos dos homens inexpertos ou sin-
gelos, que nos dos discretos quanto mais
se barbearem por sua mão, mais barbados
ficam.
Em seco e por mão alheia é que a dor é
viva e a prova verdadeira.
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Queixou-se ao meu patriarca S. Filipe


Néri uma sua devota, de uma
dor insofrível
de costas que padecia havia muito tempo.
O santo, que jâ outras vezes a tinha curado
de outras enfermidades, mostrando que se
agastava, disse:
— á Há tal desaforo ? Não havemos de ter
que fazer aqui, mais que lidar com os teus
achaques ?
E juntamente levantou a mão e lhe sa-
cudiu uma pancada sobre as costas, com
que de repente sarou a mulher.
Em muitas cousas se pareceram as mãos
deste glorioso patriarca com as de Deus,
de sorte que, assim como o Senhor disse
de Sião que a tinha debuxada ou escrita
nas suas mãos, assim respectivamente po-
demos dizer que Filipe tinha nas suas
mãos escrita ou debuxada uma semelhança
de Deus, ou que com as mãos de Deus se
pareciam as de Filipe.

Descendo ao nosso caso: bem era que


também a mão de Filipe, descarregando ou
ferindo, desse saúde; pois assim disse e
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experimentou Job que fazia a mão de Deus:


Percutit, et manus ejus sanabunú. Muito
fácil andava este varão de Deus em fazer
milagres, pois os fazia de pancada, e o re-
médio pronto se seguia à pancada da si-

gnificação da necessidade. Gomo tinha na


mão o poder de Deus, ali tinha já também
o milagre.
A Santa Catarina de Sena disse Cristo,
Senhor nosso, que as mãos foram dadas ao
homem para serviço do seu próximo. Bem
se logrou nas mãos do santo este intento,
pois em bem do próximo ató serventia ti-
nham de desterrar dores às pancadas, tiran-
do-as do modo que outros as causam.
Cassiodoro chamou às mãos faladoras:
loquacíssimas manus, e dos dedos disseque
serviam de línguas: linguosos dígitos, em
razão da propriedade e energia com que sa-
bem explicar com acções o que sentimos
dentro do coração.
Verdadeiramonte não encontrei nas His-
tórias mais faladoras mãos que as do nosso
santo, pois cada acção sua pregoa o escla-
recido de suas virtudes e o profundo da
sua humildade, pretendendo encobri-las; edá
em que entender e falar a todos os seus
historiadores e panegiristas. Não posso eu
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em lugar de
ter lugar entre estes; e, assim,
falar mais destas mãos como panegirista,
me despedirei beijando-ascomo filho. Po-
derá ser que com este toque, ainda que só
espiritual, obre em mim a maravilha de o
ser na imitarão, como o sou no nome.

Recolhendo-se a dormir o padre Leão Hen-


riques, viu lançado sobre a cama um fero
rafeiro. Logo conheceu ser o demónio; e,sem
o temer nem assustar- se, disse:
— Deixa-te estar na cama, que melhor a
mereces que eu, porque tu pecaste uma vez
e eu muitas.
da bar-
E, dizendo isto, se deitou debaixo
ra. O
demónio, revirando-lhe a ponta da es-
pada da humildade para o ferir com ela
mesma, disse:
— jOh, que humilde és, Leão!
Rebateu-a, dizendo:
— Mais soberbo sou que tu.
Então desapareceu o demónio.

Semelhante caso a este do padre Leão Hen-


riques foi o de S. Francisco de Borja, que,
254 ANTOLOGIA

orando uma vez, e aniquilando-se com suma


confusão diante de todas as criaturas, ouviu
esta voz sensível do demónio:
— Confunde-te também diante de mim.
O santo respondeu, mui de-pressa:
— Sim, farei; porque tu, por um só peca-
do de soberba, estás no Inferno; e eu, que
tantos tenho cometido contra o Senhor, ainda
não ardo nele.
*

Levando S. Francisco de Borja debaixo


da capa uma panela de carne para um pobre
enfermo, encontrou-se com D. Carlos, duque
de Gândia, seu filho, que vinha com grande co-
mitiva de criados; e o santo, por triunfar do
mundo, descobriu a panela e a pôs à cabeça.
D. Carlos apeou-se; e ajoelhando, disse:
— Dê-me V. Excelência essa olha (1), que
eu a levarei.
Respondeu, alegre:
— Eu faço o meu ofício; fazei vós o vos-
so: ide-vos com esses cavalheiros que vos
aguardam.

(1) Caldo.
:

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Dizendo-se em presença deste mesmo san-


to como havia expelido de um
corpo o de-
mónio, corou muito, de envergonhado, e disse
— Ainda que assim fosse, éjque muito que
o demónio me fizesse uma vez a vontade, ha-
vendo-lha eu feito tantas?!

(Nova Floresta, Humildade)

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