Você está na página 1de 4

CONTRA A DIFAMAÇÃO

Salmo 120

1 Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me ouviu.


2 Senhor, livra-me dos lábios mentirosos e da língua enganadora.
3 Que te será dado, ou que te será acrescentado, língua enganadora?
4 Flechas agudas do valente, com brasas vivas de zimbro!
5 Ai de mim, que peregrino em Meseque, e habito entre as tendas de Quedar!
6 Há muito que eu habito com aqueles que odeiam a paz.
7 Eu sou pela paz; mas quando falo, eles são pela guerra.

INTRODUÇÃO

O salmo 120 inicia uma coletânea de salmos chamados de “Salmos de Romagem” ou


“Salmos dos Degraus”. Segundo alguns estudiosos, não existe ainda consenso sobre o porquê
desta nomenclatura. Contudo, uma das explicações mais plausíveis inclui a ideia de que
“Romagem” se refere à peregrinação que o judeu fazia, pelo menos uma vez por ano, à
Jerusalém para celebrar as festas do calendário sagrado. Assim, essa coleção de quatorze
salmos (do 120 ao 134) seria declamada pelos peregrinos durante suas viagens em louvor a
Deus.
Nas composições, encontra-se diversos tipos de situações e sentimentos próprios dos
israelitas como: medo, angústia, dor, alegria, saúde, doença, perseguição, amor, paz e
guerra. Logo, a obra tem muito a falar ao povo de Deus em todas as épocas, uma vez que
trata de situações vividas que se assemelham e se aplicam a tantas outras na existência dos
indivíduos.
Os “Salmos de Romagem” foram escritos por Davi, Salomão e outros autores
desconhecidos. Especificamente a autoria do Salmo 120 não é conhecida. Alguns sugerem
que foi obra do rei Davi, como foi o caso de João Calvino1 e traça até um plano de fundo
nesta perspectiva afirmando que na ocasião Davi estava fugindo do rei Saul e peregrinava de
um lugar para outro. A queixa, então, seria porque os informantes de Saul prestavam uma
falsa acusação a Davi, difamando sua honra e prestando depoimentos falsos, atribuindo a
Davi crimes dos quais ele não praticara. Outros comentaristas apenas consideram a autoria
desconhecida e fazem sua análise nesta perspectiva mais genérica.
Seja qual for o caso, o fato é que o salmo tem uma lição muito importante a nos ensinar
e, independentemente de quem seja o autor, a inspiração veio do Senhor e essa situação
ficou cristalizada para ensino do povo de Deus.

I- CLAMOR NA ANGÚSTIA

“Na minha angústia” são as primeiras palavras do salmista que já desnuda a situação
de sua alma. Ele estava angustiado, como se estivesse sufocado, preso. As circunstâncias
não lhes eram favoráveis. Sua alma estava necessitando de livramento, de ajuda. Neste
momento é fácil agir de modo equivocado, praticando ações erradas ou tomando decisões
desastrosas. Por outro lado, alguns não fazem nada e paralisam diante da dor. Ficam inertes
e sucumbem nas adversidades. O pior, muitos não se lembram de Deus e nestas ocasiões
cruciais estão afastados do Senhor. Que pena, mas o salmista informa o que se deve fazer

1CALVINO, João. Salmos Volume 4: Série Comentários Bíblicos. São José dos Campos – SP: Editora Fiel,
2009.
na angústia: “clamar ao Senhor”2. Clamar não é uma simples oração, mas indica falar algo
em voz alta, gritar, bradar. Ou seja, há uma intensidade nessa oração, pois a circunstância
o exige. Entretanto, clamar não apenas representa uma expressão intensa externa, ele pode
ser compreendido “não com gesto externo e violento ou elevação da voz, e sim com emoção
interior forte”3.
Outro fato interessante no texto é que o clamor é dirigido ao Senhor, o Deus da aliança,
do pacto. De certa forma, o salmista se utilizou de uma boa teologia quando selecionou este
nome específico para Deus. No Antigo Testamento, o Senhor era cultuado e celebrado por
meio de diversos nomes como: El, Elohim, El-Shaddai, entre outros. Contudo, quando o
salmista escolhe este nome, ele está propondo um relacionamento com o Senhor da aliança,
evocando, assim, todo o contexto do Deus do pacto, bem como suas promessas, desejos e
mandamentos.
O resultado é que o Senhor ouviu ao salmista. Sua oração foi atendida e o servo de
Deus encontrou conforto para sua alma. É importante observar que a oração foi atendida,
mas o salmo não mostra que a situação tenha sido solucionada instantaneamente. O fato é
um indício de que a resposta trouxe conforto e compreensão ao coração, mas não livrou
imediatamente da aflição. Assim, o fato do Senhor ouvir a oração não implica uma solução
fácil, mágica e instantânea.

II- DESEJO POR LIVRAMENTO

Mas, qual foi a oração do salmista? Pelo que ele orava? “Senhor, livra-me dos lábios
mentirosos e da língua enganadora”. O salmista orava por livramento da difamação, pois
lábios mentirosos e línguas enganadoras estavam difamando sua honra.
Se admitirmos que tal experiência ocorreu com Davi, é marcante o fato de que uma
situação tão corriqueira, um pecado aparentemente tão pequeno e banal, como a fofoca,
trouxe tanto mal a um homem experimentado. Um guerreiro que se esvai na batalha contra
a difamação da mesma forma que se consume numa batalha heroica. A comparação é
imediata, a difamação pode ser tão cruel quanto uma guerra!
A mentira, como sugerido anteriormente, poderia se referir aos soldados de Saul que
prestavam falsos testemunhos acerca de Davi para acusá-lo e incriminá-lo injustamente. A
língua enganosa pode se referir a pessoas que sempre bajulam, que não são honestas. Assim,
poderia haver até mesmo entre os amigos de Davi, pessoas que o bajulavam, que estavam
sempre lisonjeando, sempre adulando em busca de vantagens. Ou seja, por todos os lados o
rei estava em apertos.
Por outro lado, o salmo pode se generalizado a uma situação em que o salmista pode
estar sofrendo de uma difamação, quando seu nome é “jogado na lama” por desafetos devido
a quaisquer circunstâncias.
O fato é que o salmista ora por livramento dessa enroscada.

III- A RECOMPENSA DOS ÍMPIOS

Talvez inconformado e perplexo sobre o quê poderia levar uma pessoa a agir dessa
maneira sem o menor fundamento, o salmista como que inquerindo diretamente os próprios
acusadores desfere o questionamento: “Que te será dado, ou que te será acrescentado, língua
enganadora?”. Ou, de uma forma mais popular, “o que você vai ganhar fazendo isso?”
O questionamento visa mostrar a inutilidade de se agir dessa forma. Quer mostra que
não há paga alguma para uma obra dessa natureza. Não há recompensa, não há honra, nem
mérito. Por que, então, as pessoas insistem em agir assim? O que ganham com isso?

2Em vez de se queixar de sua situação, compartilhou-a com o Senhor. WIERSBE, Warren W. Comentário
Bíblico Expositivo: Novo Testamento. volume III. Santo André – SP: Geográfica Editora, 2006. p. 315.

3 Idem. p. 320.
Mas, o salmista igualmente responde sobre o “salário” desse mal feito. Baseado na
justiça de Deus ele pode mostrar que as consequências desse ato é um revés em forma de
“flechas do valente e brasas vivas de zimbro4!”.
Não é uma praga ou maldição que o salmista está fazendo, mas alertando aos
malfeitores sobre a justiça de Deus. Note que o salmista não diz que é ele quem atirará as
flechas, atacará aos linguarudos. Mas, assim como “o que o homem plantar, isso também
ceifará” é uma lei válida, da mesma forma, a boca que dispara difamações como flechas
ardentes receberá de volta flechas ardentes e brasas intensas5.
De certa forma, o Senhor não livra imediatamente o seu servo, mas o faz firme para
suportar a provação até o momento em que os maus serão julgados e pagarão por seus erros.

IV- O SOFRIMENTO DO JUSTO

O fato do salmista ainda reclamar de seus problemas reforça o argumento anterior, de


que a aflição não foi resolvida imediatamente, mas a compreensão do Senhor pode ter
alcançado o salmista encorajando-o a prosseguir adiante das adversidades.
Mesmo tendo consciência de que o Senhor ouviu sua oração, ele lança o lamento sobre
sua dor quando exclama: “ai de mim”. Na verdade, não há pecado em o homem expor sua
dor diante do Senhor. Seu clamor aqui revela exatamente que, apesar da compreensão, a
situação era sofrível e angustiante.
Ele vivia como estrangeiro em sua própria terra. Como peregrino desolado. Afirmou
que os que estavam ao seu redor eram um povo “desconhecido”, hostil e não sua própria
nação. O sentimento vivido pelo salmista era semelhante ao de uma pessoa exilada, que
viveria longe de sua pátria indefinidamente.
Tais passagens se assemelham a muitas nas Escrituras que não prometem para o
justo uma vida fácil, mas que em meio às aflições confirma o cuidado e livramento do Senhor.
Jesus Cristo disse: “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”.
(João 16.33).

V- A RESILIÊNCIA DO JUSTO

Apesar de toda oposição e calúnia sofrida por longo tempo pelo salmista, o mesmo não
se corrompeu em seu caráter, mas deu uma mostra de resiliência cristã formidável. Ao invés
de retribuir mal com o mal, difamação com difamação, o salmista afirmou que era uma
pessoa da paz. Que seu coração não optava obstinadamente por guerras sem fim, pelo
confronto, pela briga. “Eu sou pela paz”.
Sua mensagem deixa transparecer que além da passividade, ele agia com iniciativa
para estabelecer a reconciliação. “Quando falo”, indica que o salmista dava oportunidades
de diálogo, de aproximação. Mas, em vão era sua tentativa, pois os seus inimigos
obstinadamente queriam a guerra, o confronto. Era um povo duro e de difícil
relacionamento6.
Esse é o desfecho do salmo. O servo do Senhor ainda sofrendo a angústia daqueles
que ao seu redor o espremiam com calúnias e difamações sem conta, mas sabendo que o
Senhor, a seu tempo o livraria, trazendo a recompensa devida aos atos dos malfeitores. No
final, a mensagem é de paciência e esperança no Senhor em meio às tribulações.

APLICAÇÕES

4 O zimbro (Retama roetam) é um arbusto ou árvore espinhosa muito popular no Oriente Próximo, usada para
fazer fogo porque garante um fogo demorado. CHAPMAM, M. L. et. al. Comentário Bíblico Beacon. volume 3.
Rio de Janeiro RJ: CPAD, 2005. p. 298.
5 É bem possível que o poeta tenha considerado as flechas e as brasas como representando as línguas e as

mentiras, que estavam sendo dirigidas contra ele, voltando-se assim, em vingança, contra aqueles que o haviam
difamado. Idem.
6 O salmista era um pacificador e tentou incentivar os vizinhos israelitas ímpios a também ser pacíficos, mas

estavam determinados a manter uma atitude bélica. (WIERSBE, 2006, p. 316).


O salmo evoca sentimentos e situações muito próximas daquelas vividas por todos nós.
Quem já não sofreu uma difamação? Ou quem já não difamou alguém? Acredito que uma ou
outra coisa, em maior ou menor grau, todos nós já vivenciamos. Portanto, o salmo tem muito
a nos instruir.
1- A primeira observação surge logo da introdução. Muitos cristãos nunca nem mesmo
ouviram falar de “Salmos de Romagem” ou “Salmo dos Degraus”. Claro que o termo
é um pouco técnico, contudo, nos constrange a conhecer melhor as Escrituras.
Seus detalhes, sua composição, seu contexto, seu alcance. Importante saber da
estrutura dos Salmos e que dentro do saltério temos composições de diversas
características. E se nos preocupássemos em encontrar salmos messiânicos, por
exemplo, que apontassem para Jesus Cristo, seria possível? Assim, fica o conselho
de nós buscarmos conhecer melhor a Palavra de Deus.
2- Aprendemos que na angústia devemos clamar ao Senhor. No momento da
dificuldade, não sejamos orgulhosos ou incrédulas, mas crentes e busquemos ao
Senhor. Claro que existem momentos extremamente importantes para buscar ao
Senhor e adorá-lo, contudo, nos dias de aflição tal clamor não é desacreditado.
Conheço caso de alguns que por incredulidade podem passar o que for e jamais se
prostram aos pés do Senhor. Outros, que são cristãos, ficam intimidados e
constrangidos, pois levam uma vida desregrada e improdutiva, e, portanto, na ora
da aflição, ficam com vergonha de buscar a Deus, pois só o fazem em tais
circunstâncias. Claro que buscar a Deus apenas por barganha é um erro, contudo
esse sentimento que envergonha o homem e o faz se distanciar de Deus deve ser
combatido sabendo que o Senhor é um Deus de amor e que terá misericórdia da
“nossa aproximação” sincera. O pecado fez Adão e Eva fugirem do Senhor, contudo,
assim como o filho pródigo, devemos nos render ao Senhor e retornar aos braços
do Pai em reconciliação, se for o caso, e em busca de livramento.
3- O justo pode sofrer. Não é demais reafirmar essa sentença. Apesar das teologias
triunfalistas que gracejam em nosso meio, querendo tornar os cristãos uma espécie
de super-heróis imunes a todos os eventos terreais, temos a clara visão bíblica de
que “no mundo tereis aflições”. E como passar pelas aflições? O salmista indicou
algumas opções. A mais destacada nos orienta a buscar ao Senhor e caminhar
perseverantemente nos caminhos do mestre mantendo “as mãos limpas e o coração
puro”, o mais Ele fará.
4- A justiça não será omissa aos filhos de Deus. O Senhor promete justiça e afirma
que a paga para tais línguas será “flechas do valente e brasas vivas de zimbro!”.
Isso nos faz lembrar que “tudo o que o homem semear, isso também ceifará”
(Gálatas 6.7). O justo deve aguardar firme nas promessas do Senhor e confiar que
o supremo juiz certamente fará justiça na terra dos viventes.
5- Por fim, devemos tomar cuidado, pois normalmente ao ler o texto nos identificamos
com o salmista sofredor. Contudo, precisamos ter um olhar crítico e introspectiva
em busca de identificar, talvez, a possibilidade de sermos como ímpio! Ou seja, será
que não estamos na condição de acusador, de opressor, de difamador? Será que é
sempre o outro que está errado? Será o que mal só existe externamente a mim? Um
ato nobre é o de reconhecimento, e se precisarmos disso devemos fazê-lo e suplicar
o perdão do Senhor, caso contrário nossa sorte pode ser a mesma dos malfeitores
e nosso destino tão terrível quanto o dos incrédulos.

Você também pode gostar