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1

INTRODUÇÃO

Um dos grandes legados da Reforma religiosa sem dúvida foi à restauração da

oração como instrumento de comunhão e devoção diante de Deus.

Durante toda a idade média a Igreja Cristã tratou a oração como um adendo

místico da fé. Exercida tão somente como pena para a expiação do pecado ou em rituais

continuados e ininteligíveis de culto a Deus. A oração passou a ser meramente o recitar

de frases feitas, belas, porém sem vida e fervor.

A presente monografia tem por objetivo dissertar sobre o pensamento teológico

de Calvino acerca da oração, desmistificando a idéia ampla de que Calvino foi um

teólogo “frio”, sem fervor, desvinculado das práticas cristãs estabelecidas por Deus para

que com Ele tivéssemos comunhão.

Para tanto delimitei, considerando exigüidade deste breve tratado, a análise do

pensamento do reformador ao capítulo XX da sua obra magna As Institutas da Religião

Cristã.

Este capítulo do livro, o maior da suma teológica de João Calvino, estabelece a

visão do Reformador quanto à oração, que por ele é descrita como o principal exercício

da fé cristã.

Sendo então, elemento imprescindível à fé, Calvino trata do tema com

desenvoltura e profundidade estabelecendo os limites e parâmetros para exercitarmos de

maneira conveniente a oração.

A dissertação que apresento está dividida em três partes complementares.

Inicialmente demonstro através dos escritos do reformador a necessidade de uma

vida de oração tendo Jesus como mediador da nossa relação íntima com o Pai. Na
2

segunda parte desta monografia exponho a regras descritas pelo reformador para uma

correta vida oração. E, finalmente, concluo com pensamento teológico de Calvino

acerca da oração enquanto elemento de expressão da coletividade cristã.

Por abordar um assunto da Teologia Pastoral a presente monografia não tem a

pretensão de se tornar um tratado sistemático-teológico. Por vezes o estilo de linguagem

adotado tornou excessivamente prático o conteúdo da monografia. Que seja ela então

um estímulo a este exercício da fé através da visão ampla e apaixonada de Calvino

sobre a Oração.
3

1 – VIDA CRISTÃ E ORAÇÃO

1.1 – Necessidade da Oração

Ao iniciar a sua abordagem sobre oração no vigésimo capitulo do livro

Terceiro de sua obra magna, “As Institutas da religião cristã”, o Reformador João

Calvino destaca a terrível condição humana, sua insuficiência de recursos para prover

sua salvação e a consequente impossibilidade de atingir a presença de Deus.

Tal condição contrasta com a riqueza infinita do Pai celestial.

Estabelece-se então um dilema; como alcançar as riquezas divinas ante a nossa

pobre condição humana?

Tendo em vista tal dilema, Calvino identifica a Oração como um instrumento

para atingirmos a presença de Deus e estabelecermos com Ele uma íntima comunhão.

O Título do capítulo vigésimo das Institutas da Religião Cristã, “Oração, o

principal exercício da Fé”, revela neste, que é o maior capítulo desta obra do

reformador, sua visão sobre esse instrumento de aproximação com o Pai.

Ele afirma:

“Ela é uma espécie de comunicação entre Deus e os Homens, mediante a


qual entram em santuário celestial, recordam suas promessas e tem a certeza
de que crerão na virtude de sua Palavra e Verdade, e não em mentiras e
falsidades”1

Antecipando a afirmação de alguns de que diante da soberania e onisciência de

Deus não há necessidade de orar, o reformador reafirma a necessidade desse exercício

de Fé em nossa vida apresentando seis razões principais para orar, entre as quais possa

destacar que a “oração inflama nosso coração em um contínuo desejo de buscar, amar e

honrar sempre ao Senhor”.2

1
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX.1
2
- CALVINO, JOÃO. BREVE INSTRUCCION. 3ª ED. BARCELONA: FELIRE, 1990. P. 50
4

Dessa maneira podemos esperar o cumprimento das promessas de Deus para nós

através da oração. À medida que construímos progressivamente nossa relação pessoal

com Deus através do recurso da oração contemplamos o mover de sua graça em nós e o

estabelecimento real das promessas do Salvador sobre os seus eleitos. “Certamente”,

afirma Calvino, “não sem motivo assegura nosso Pai Celestial que toda a segurança de

nossa salvação consiste em invocar seu nome”.3

W. Gary Crampton em sua introdução a teologia de Calvino afirma:

“A promessa dada aos santos nas Escrituras Sagradas vêm através do


“combustível da oração”...de acordo com Calvino, não orar e não ler a bíblia no
cristianismo é uma contradição em seus termos.”4

Sendo assim, através dela, adquirimos: sustento necessário em todas as ocasiões,

nos tornando alvos da providência divina; virtude, santidade e poder para a obra do

Reino, sustento ante as nossas fraquezas; e graça e favor para os nossos pecados

inserindo-nos na infinita bondade de Deus.

“Se de ânimo disposto para com esta obediência, nos deixamos ser regidos
pelas leis da divina providência, aprenderemos facilmente a perseverar em
oração e, a pacientemente esperar no Senhor”.5

Desta feita não devemos deixar de lado o impulso a buscar a Deus através da

oração. Para Calvino, ainda que o Pai pareça ser demorado em nos responder, devemos

estimular a perseverança em nosso íntimo, e não desistirmos da oração, ainda que isto

redunde em longo tempo de espera.

3
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX..2
4
- CRAMPTON,W. Gary. What Calvins says- an introduction to the theology John Calvin. 1 ed.
Jefferson: Trinity Foudation. p. 80
5
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 51.
5

1.2 – Jesus como mediador

Ao considerar a pobreza da condição humana diante da majestade do Pai o

reformador assevera que não há ninguém em condições de se apresentar diante de Deus.

Contudo, não obstante a nossa condição, pela mediação de Cristo nossas petições ao Pai

podem ser apresentadas.

Em sua análise da Teologia de João Calvino, Wilhelm Nielsel afirma:

“O ofício sacerdotal de Cristo que torna possível nossa oração diante Deus é
suficiente para interseção. E não simplesmente que Ele apenas uma vez, por
seu sacrifício, intercedeu entre Deus e a humanidade pecadora; é certo que
Sua intercessão para o Pai em nosso favor continua dia após dia”.6

João Calvino ensina que tal mediação é baseada no ofício sacerdotal de Cristo e

que nossa intercessão está fundamentada exclusivamente na segura intercessão do

Senhor. Exclui-se assim a mediação de cristãos que já morreram ou de cristãos ainda

vivos em nossas orações.

Considerando o contexto de supertição medieval pré-renascentista, onde era tarefa

impossível para o laicado atingir a presença de Deus, senão mediante indulgências e

sacrifícios extremos, o pensamento teológico do reformador era um alento de esperança.

“Aqui se conclui, sem dúvida alguma, que todos aqueles que invocam a
Deus em outro nome que não em Jesus Cristo, quebram o mandamento de
Deus, não levam em consideração a sua vontade, e não têm promessa
alguma de alcançar o que lhe pedirem. Porque, como disse Paulo, “todas as
promessas de Deus, tantas têm n´Ele o sim, e o Amém” (2 Co 1v20); quer
dizer que em Cristo são firmes, certas e perfeitas.”7

Refutando a intercessão dos santos na oração dos cristãos Calvino assevera que

tal intercessão desonra o Pai e o Filho levando consigo numerosos erros e supertições,

entre os quais a idéia de que os santos falecidos se tornam anjos intercessores.

6
- NIELSEL, WILHELM. The Theology of Calvin. Philadelphia: The Westmister Press. 1956. pp. 154
7
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX.13
6

O reformador assegura que o ministério de amor e a santidade de vida dos santos

na terra não importam em comunicação com os vivos e nem tão pouco em intercessão

por eles em outro mundo.

Considerando que, por necessitarmos alçar sempre nossas mentes ao Senhor,

nossas orações devem ser intermitentes. Entretanto, o Reformador compreende que a

nossa fraqueza nos leva a admitir algumas horas especiais para buscarmos a Deus em

oração.8

Em três ocasiões diárias devemos orar ao Pai; pela manhã, ao levantarmos para

o nosso labor diário, antes das refeições, pela bênção da providência divina em nossa

família, e ao repousarmos, confessando as nossas faltas e refletindo sobre o dia que

passou.

Calvino, porém, entende que tal observância de horas não deve ser supersticiosa

e nem tão pouco nos deixe desobrigado de exercitarmos a oração nas demais horas.

Para que este exercício de fé seja realizado de maneira correta Calvino

estabelece quatro regras práticas que passo a descrever.

2 - REGRAS DA ORAÇÃO
8
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 50.
7

2.1 – Entendimento e Oração

Na primeira das regras para uma correta oração o Reformador acentua que

devemos estar concentrados de mente e coração. Isto, com efeito, gera em nós desejo de

usufruirmos deste exercício de fé com entendimento, a fim de que nossas orações não se

tornem mera verborragia mística e reflexiva, algo semelhante a mantras ou transes

religiosos.

Calvino condena também a distração e a fuga de pensamento no instante em

que, com temor no coração, nos dispomos em oração na presença de Deus. Por

reverência temos de nos concentrar na majestade de Deus enquanto a Ele lançamos

nossas petições.

“Acorra-se aqui, porém, quão indigno seja, quando Deus nos admite a uma
conversa íntima, abusar de sua grande humanidade, misturando cousas
sagradas com profanas, exatamente como se estivéssemos a tratar com um
homem comum, por entre o orar, posto Ele de parte, para cá ou lá
transvolamos”9

Tal temor, reverência e entendimento em nossas orações permite nos

achegarmos a Deus com petições que estejam em acordo com as ordenanças descritas

nas Escrituras. Ousar importunar a Deus com desvarios e, de maneira inoportuna lançar

ante seu trono petições que não estejam previamente acordada com a sua Palavra

esvazia a oração.

9
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 5.
8

“Da mesma forma que importa para com Deus direcionar com acuidade da
mente, também de necessidade é ao mesmo rumo siga o afeto do coração.
Uma e outro, porém, muito abaixo se quedam; mais verdadeiramente,
esgotam-se de fadiga e perdem forças, ou são levados à direção contrária.
Por isso, para que a esta fraqueza socorra Deus, em nossas preces por
ensinador dá o Espírito Santo, que dita o que é reto e o nosso sentimento nos
modere.”10

Vemos, pois, que João Calvino, reconhecendo nossa fraqueza em formular

petições convenientes ao Pai, afirma que nossa segurança, para exercitar com

entendimento e racionalidade nossas orações, está na pessoa do Espírito Santo.

2.2 – Dependência de Deus

A segunda regra descrita por João Calvino para a correta prática da oração

destaca a dependência de Deus e o nosso sincero senso de insuficiência para alcançar

por meio de nossas próprias forças as petições requeridas.

Este senso de insuficiência parte da noção que devemos ter em nossos corações

de que somos pecadores e estamos a suplicar para um Deus Santo que Se põe a nos

auxiliar em nossas fraquezas. Ante a este contraste, humilde nos colocamos como

dependentes do Pai celestial, impossibilitados por si só, de alcançar a bênção almejada.

Tal posição do Reformador contrasta com a Teologia de Oração proposta pelo

movimento intitulado de “Confissão Positivista” ligado a teologia contemporânea

denominada de “Teologia da Prosperidade”.

A postura teológica adotada por este movimento parte da primícia de que Deus,

no Éden, comissionou o Homem para administrar toda criação, sendo que, após a

queda, tal procuração de poder foi conquistada por Satanás que passou a ter autoridade

para executar o mal contra a humanidade.

10
- Ibidem
9

Tal ameaça é desfeita a partir de uma confissão positiva acerca da bênção que

almejamos. Declarações negativas passam a atrair malefícios, por outro lado confissões

positivas “liberam” a bênção.

Sendo assim, a prática da oração não é um estimulo a dependência de Deus em

Sua soberania. Um dos ícones desta teologia ensina:

“Tudo o que recebemos do nosso Pai celestial, tanto no reino natural como
no espiritual, está baseado em nossos desejos. Temos realmente que desejar
uma vida cristã vitoriosa, ou ela nunca será nossa”11

Em contraste com a colocação acima Calvino entende que a resposta para nossas

Orações não está fundamentada em nossos desejos, em nossa vontade, em nosso

merecimento ou em nossa autoridade. Tal resposta reside em nossa humilde postura

diante de Deus ao suplicarmos fiados na dependência e na misericórdia do Pai. “Quem

quer que, portanto, a orar se predispõe, a si se desagrade em suas cousas más e, revista-

se da pessoa e sentimento de um mendigo”.12

2.3 – Humildade: sem confiança em sua própria justiça

A terceira regra exposta pelo Reformador é muito semelhante à segunda, onde

Calvino reafirma a importância de orar com humildade ao reconhecermos nossa

condição de miserabilidade frente à grandeza do Pai.

Desta feita nos portamos com férvida súplica de perdão e sincera confissão de

nossas faltas. Percebe-se na teologia de João Calvino que o sentimento de penitência é

indispensável em nossas orações:

11
- CERULLO, Morris. Sete passos para a vitória pessoal. Rio de Janeiro: ADHONEP. 1995. pp. 08
12
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 7
10

“Afinal, o começo, e mesmo a preparação, do correto orar é o pedido de


perdão associado com humilde e sincera confissão de culpa. Pois, nem é de
se esperar que de Deus qualquer coisa se obtenha alguém, por mais santo
que seja, até que Lhe haja graciosamente reconciliado, nem pode acontecer
que Deus seja propício a outros, senão àqueles a quem perdoa”.13

Mesmo admitindo que em algumas ocasiões os santos 14 tenham suscitado em

suas orações a idéia de mérito e justiça própria (Sl 86.2, II Rs 20.3), o reformador

assevera que “com estas asserções não estão a estatuir à oração valor do mérito das

obras, pelo contrário, quer, dessarte, firmar a confiança daqueles que estão devidamente

cônscios de integridade e inocência não fingidas, quais importa sejam fiéis todos”.15

Logo, não devemos nos precipitar em arrebatar do coração piedade diante de um

Deus onisciente. Devemos deixar a parte algum valor de mérito em nós e

fundamentarmos a nossa petição exclusivamente na clemência de Deus.

2.4 – Fé: a firme segurança de sermos ouvidos

A última das regras para uma correta oração adverte-nos da necessidade de

juntarmos ás nossas petições um elemento imprescindível, a fé. Tal fé, assevera o

Reformador, deve levar-nos a crer que nossas preces serão respondidas pelo Pai.

Citando textos dos salmos e dos evangelhos, João Calvino estimula os leitores

do capítulo XX das Intitutas da Religião Cristã a manter viva a esperança de que

alcançaremos resposta para nossa petição mesmo em meio as adversidades.

“A verdadeira oração pressupõe a esperança de que Deus nos ouve; essa


quarta regra completa, pois, a primeira. O reconhecimento de nossa
indignidade e a certeza de que somos atendidos poderiam parecer, à primeira
vista, contrários entre si. Mas Calvino lembra que, assim como a confiança e
a penitência coexistem na experiência da fé, igualmente devem estar juntas
em nossas orações”.16

13
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 11
14
- João Calvino usa o termo santo para definir os personagens do N.T e do AT.
15
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 12
16
- STROHL, Henry. O pensamento da reforma. São Paulo: Aste. 1963. pp. 57
11

A bondade de Deus nos desperta para termos a fé como princípio em nossas

orações. Mesmo acossados pela angústia e inquietação dos males do presente e,

condoídos pela expectativa da impossibilidade de realização do que ansiamos, nosso

foco em oração deve ser a presença de um Deus misericordioso que nos socorre

oportunamente, dando-nos escape e livramento. Sendo assim, a certeza de que estamos

sob o cuidado deste Deus nos estimula a orarmos a Ele com viva fé e esperança de

sermos respondidos.

Parker em sua introdução a Teologia de Calvino diz:

A conseqüência natural da procura por Deus e suas bênçãos está situado


após nossas preocupações e necessidades. Se entendermos isso, teremos
descanso e tranqüilidade em nossas consciências.”17

Esta fé fundamenta-se então na promessa imarcescível e segura dada por Deus

de que poderíamos a Ele lançar nossas petições com a firme confiança de sermos

ouvidos. Atual é a teologia do reformador, estimula-nos ainda hoje a oração com a

esperança que nossas petições serão cumpridas não por merecimento, mas tão

simplesmente por já serem promessas dadas por Deus aos seus amados18.

Quão alentador então é o conceito de que Deus tem promessas de bênçãos aos

seus filhos e que tais promessas deste Pai bondoso se cumprem, pois o Seu desejo para

nós é de paz e prosperidade, mesmo em meio ao sofrimento e a perseguição.

Desta feita o Reformador entende que tal oração imbuída de fé só pode ser

alcançada por aqueles que conheceram este Deus bondoso e misericordioso que é

apresentado ao Homem através do kérigma:

17
- PARKER, T.H.L. Calvin: An introduction to his thougth. Louisville: Westminster press, 1995. pp.
108
18
-- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 13
12

“Ora da fé, passo por passo, deduzido o começo do orar, contende


abertamente que Deus pode ser sinceramente invocado por outros que não
aqueles a quem, pela pregação do Evangelho, se Lhe haja feito conhecida a
clemência e bondade, na verdade, haja sido exposta de forma bem íntima”19.

Nossa pregação não só conduz o Homem à remissão em Cristo e a vida eterna.

Permite que nós, pecadores, pela fé, sejamos aptos para discernir sobre a bondade de

Deus e a partir desta bondade sermos alvos das suas promessas pelo exercício espiritual

da oração.

19
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX 12
13

3 – ORAÇÃO E COMUNIDADE DE FÉ

3.1 – Pai Nosso

No encerramento do capítulo XX das Institutas da Religião Cristã o Reformador

faz uma minuciosa análise sobre a Oração do Senhor ou Pai nosso. A tese defendida

por Calvino é que esta oração ensinada por Jesus é uma expressão da misericórdia

divina em prover-nos modelar forma de oração.

“Faz-se de mister, agora, aprender não só mais segura noção de orar, mas
também a própria forma, isto é, aquela que o Pai Celestial nos ensinou
através de Seu filho dileto, onde se Lhe pode perceber a imensa bondade e
benevolência”.20

Esta segura noção sobre a oração, enquanto exercício de Fé, tem um profundo

significado ao invocarmos ao Senhor como “Pai nosso”. Não apenas devemos, com tal

reverência assim nos dirigirmos a Deus, mas também Ele quer ser por nós assim

chamados, com “esta doçura tão grande de nome detraindo-se a toda difidência, uma

vez que nenhum afeto de amor se possa maior achar em outra parte que no Pai”.21

Esta possibilidade de tratamento para com Deus, inseri-nos na presença de um

Senhor misericordioso, que não obstante as nossas vilezas, interpõe-se entre nós como

Pai amoroso. Somente em Cristo tal tratamento, a Deus dispensado, pode ser por nós

usufruído. Calvino assegura que tal segurança reside no fato de termos sido adotados

como filhos através da obra redentora de Jesus.

Esta certeza que fomos adotados como filhos e a expressão plural “Pai Nosso”

inseri-nos também em uma comunidade fraternal composta por todos aqueles que como

nós foram alvos deste processo redentivo de adoção.

20
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 34
21
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX.. 36
14

“Ora, como aquele que ama verdadeiramente e de coração a algum pai de


família, com amor e benevolência abraça-lhe ao mesmo tempo a toda a casa,
a esta medida, com zelo e afeto com que estejamos para com este Pai
celestial se impõe mostrar a Sua gente, Sua família, enfim Sua herança, que
honrou tão grandemente que a haja chamado à plenitude de Seu Filho
Unigênito”.22

Acrescenta-se a esta expressão inicial da oração a frase “que estás nos céus”,

que não indica a localização ou limitação de Deus, mas realça-lhe a majestade e

soberania.

Após esta análise pormenorizada do prólogo do Pai Nosso, Calvino estabelece

sua visão teológica sobre as seis petições contidas neste modelo de Oração. É notada a

semelhança entre as explicações de Calvino e Lutero, ainda que o reformador genebrino

não subdivida a oração em sete petições como fez o reformador alemão.

Em suas observações sobre o conteúdo desta prece Calvino realça a visão de um

Deus amoroso e misericordioso que sustenta o Homem apesar de suas fraquezas e

limitações. A Ele devemos nos achegar com humildade e reverência reconhecendo sua

majestade.

1.3 – Culto público e Oração

João Calvino em sua sistematização teológica realça a importância da oração

pública, exercício esse que deve ser estimulado na Igreja em especial “quando se vê

oprimida por alguma particular necessidade”.23

Porém são necessárias algumas considerações para que o princípio bíblico de

ordem e decência nas atividades religiosas públicas possa ser respeitado.

22
- CALVINO, JOÃO. ISTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX. 38
23
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX..29
15

A primeira das considerações do reformador refere-se ao uso constante de

redundâncias. A repetição de orações com o intuito de purificação de pecados é um

contra-senso bíblico que de forma veemente é questionado por Calvino.

“Eis aqui a repetição de palavras que atualmente reina no papado, uns


passam o tempo repetindo em vão uma mesma oração, recitando avemaria
atrás de avemaria, ou um pai nosso atrás de outro; outros folheiam dia e
noite seus livros de coro e seus breviários, vendem suas extensas orações ao
povo. Posto que este palavreado não serve mais que para burlar-se de Deus,
como se fosse uma criança de peito, não é de se estranhar que Jesus Cristo
feche a porta para que não tenham lugar em sua Igreja, onde não se deve
ouvir coisa não está sendo feita com seriedade e parta do íntimo do
coração”.24

A segunda consideração é quanto à visão de que há uma proeminência na oração

pública em detrimento da privada. Há, para alguns, uma áurea maior de santidade

envolvendo o primeiro tipo de oração, aquilo é anunciado como “oração forte” no

contexto religioso atual, onde você é alvo da intercessão de um ministro (pastor,

missionário, bispo ou apóstolo) que “ungido” pelo Espírito com poder especial

intercede por você de maneira decisiva.

Para o reformador não há a possibilidade de uma oração pública no culto sem

que estejamos em vida íntima de oração com o Pai, “o que não faz caso de orar sozinho,

por mais que freqüente as congregações públicas, saberá que suas orações são vãs e

frívolas”.25

A terceira consideração de Calvino é quanto ao entendimento do que se diz em

nossas orações. Tal comunicação com Deus deve ser feita de maneira inteligível para

nós. A oração pública não deve ser feita apenas por meio de palavras pré formuladas em

formas litúrgicas previamente elaboradas e sim de forma consciente expressando com

propriedade e razão nossa petição ante ao Senhor.

24
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX..30
25
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX.. 31
16

“Por aqui se vê também claramente que as orações públicas não devem ser
feitas em grego entre os latinos, nem em latim entre os franceses, espanhóis
e ingleses, como é costume há muito tempo, senão que devem ser feitas na
língua do país onde se reúne a assembléia e que todos possam entendê-la,
posto que são feitas para a edificação de toda a Igreja, a qual nenhum fruto
recebem quando ouvem o som de palavras que não entendem.”26

O fato de realçar o lado racional e inteligível da oração pública não exclui em

Calvino a ênfase emocional dada a esse exercício da fé. Em sua quarta consideração

sobre a oração pública o reformador exalta o fervor que deve estar presente em nossas

petições:

“Concluímos, pois, que é impossível, seja na oração pública ou individual,


que a palavra sem o coração não desagrade em muito a Deus. E ademais,
que o coração deve estimular-se com o fervor do que pensa ir muito mais
além do que a língua pode pronunciar”.27

O outro grande reformador, Lutero, também destaca a importância do fervor em

nossas orações:

“Ora, diz-se orar em Espírito ou espiritualmente em oposição à oração


corporal; e diz-se orar em verdade por oposição à oração fingida. A oração
fingida e corporal consiste em murmurar e mover exteriormente os lábios,
sem qualquer intenção; é, de fato, fingida perante os outros e produzida
apenas com a boca e não sinceramente. Mas a oração sincera é desejar,
suspirar e pedir interiormente do fundo do coração. A primeira produz
hipócritas e espíritos cheios de falsa segurança. A segunda gera santos e os
filhos de Deus cheios de temor.”28

O fervor típico de nós latino americanos, seja no canto, nas orações ou em

nossas pregações foi categorizado como atípico diante da Teologia Calvinista. Fomos

levados a pensar que deveríamos abandonar toda e qualquer manifestação emocional

em nossa relação com Deus, pois isso é ser presbiteriano. Porém, quando lemos os

textos de João Calvino desmistificamos a idéia de um teólogo “frio” e de uma vivência

com Deus sem ardor em oração.

26
- CALVINO, JOÃO. INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ. VOL III.XX.33
27
- Ibidem
28
- LUTERO, Martim. A explicação do Pai Nosso. Lisboa: Edições 70. 1 ed. 1996. p. 14
17

CONCLUSÃO

Recentemente a conceituada revista semanal “Veja” em sua edição 1.834 trás

uma matéria de capa acerca dos benefícios da fé. De maneira surpreendente a

reportagem enumera o bem estar psicoterápico da oração sobre o corpo humano. Tal

constatação, que para nós não é novidade, foi confirmada através de diferentes estudos

científicos.

Na presente monografia procuro resgatar o valor da oração através da proposta

teológica de João Calvino. De maneira pormenorizada pudemos constatar a importância

e a necessidade do tema para o Reformador e como, de maneira sucinta, o mesmo tratou

o assunto.

Notamos a lucidez do teólogo ao dissertar sobre os parâmetros para uma correta

utilização deste exercício de fé e como tais regras, quando bem observadas,

proporcionam um enriquecimento de nossa vida cristã.

A oração como expressão de fé da coletividade cristã deve ser estimulada e

vivenciada em um contexto de comunhão e amor fraternal. Como reformados devemos

estabelece-la como marca indissolúvel de nossa fé. Ser Calvinista, então, é vivenciar de

maneira ímpar a oração e seus benefícios.

Ademais, reconheço que diante da amplitude do assunto é necessário um tratado

mais aprofundado sobre a Teologia da Oração em João Calvino. Tal tratado deve

analisar não somente As Institutas da Religião Cristã em seu vigésimo capítulo no

volume três. Versar de maneira mais profunda acerca do pensamento teológico do

reformador quanto á oração requer destrinchar os demais escritos de João Calvino, suas

cartas, seus comentários, seu catecismo e suas belíssimas orações, legado para

posteriores gerações.
18

BIBLIOGRAFIA

CALVINO, João. Breve Instruccion. 3ª ed. Barcelona: FELIRE, 1990. 64p

CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. São Paulo: CEP. 1989. 247p

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CRAMPTON, W. Gary. What Calvins says- an introduction to the theology John


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STROHL, Henry. O pensamento da reforma. São Paulo: Aste. 1963. 251 p.

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