Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
AS PRÁTICAS DE OCUPAÇÃO
DE TERRAS EM TERESINA
A INTERSEÇÃO ENTRE A ILEGALIDADE E A LEGITIMIDADE
s análises acerca da realidade mente, as chances de os pobres viverem direito formal, instrumento regulador das
do Piauí, como de resto sobre de aluguel, forçando-os a se transferir para relações entre os agentes sociais envolvi
o Brasil, mostram a presença outras áreas, instalando-se em formas pre dos na posse da terra urbana: população,
marcante dos pobres na con cárias de moradia. Estado e proprietários fundiários.
figuração dos grandes centros urbanos1. Esse movimento foi se concretizando Como resultado de lutas, mobilizações
Teresina exibe esses sinais, com mais evi em estratégias diversas de inserção, fosse e conflitos, os pobres trazem à cena “no
dência, desde a década de 70 quando essa pela ocupação individual ou coletiva de vas legalidades” e constroem experiênci
capital registrou os maiores índices de cres vazios urbanos, fosse pela compra da pos as concretas de apropriação da terra para
cimento populacional, alcançando uma se do terreno ocupado ou do barraco. Es uso social. Embora não estivessem ampa
taxa média geométrica anual de 5,53%2. tas modalidades constituíam, efetivamen radas em normas prescritas na forma da
Esse aumento foi provocado, sobretudo, te, as condições plausíveis para os pobres lei, essas práticas moviam-se noutra dire
pelos grandes fluxos migratórios campo- migrantes se integrarem à vida urbana. Na ção, a da conquista da cidadania inscrita
cidade. O lugar de forte presença da po ausência delas, a saída era a improvisação no espaço público e alicerçada em
breza era a periferia dessa cidade, maior em casa de parentes ou amigos até o parâmetros e critérios de reconhecimento
centro aglutinador desse contingente de tra surgimento de uma nova favela, para onde e reciprocidades (Lefort, 1991).
balhadores rurais que acorriam para a ca se projetavam todas as expectativas de Pretendo, neste texto, expressar uma
pital em busca de um projeto de melhorar aquisição de uma moradia de forma defi breve análise acerca da dinâmica que en
de vida. nitiva. volve as práticas sociais urdidas nas lutas
Contudo, se até final dessa década o Desse modo, sob distintas formas, os de ocupação de temas por famílias pobres
lugar dos migrantes e dos pobres era a pe pobres vão traçando suas trajetórias espa em Teresina, como se operam mediações
riferia ou os pequenos aglomerados em ciais, e, à margem da lei, procuram “cons e clivagens que se inclinam para “novas
leitos de ruas e/ou terrenos vazios, de fins truir sua própria cidade”, como enfatiza legalidades”, assentadas no reconhecimen
dos anos 80 em diante a sua presença en Panizzi (1989), no âmbito da “ilegalida to, conquistado, do direito de acesso à ter
contra-se em toda a malha urbana. de”. Esse modo de expressão das contra ra, não pelos modos conferidos no direito
Esse novo cenário demonstrava que o dições e conflitos urbanos se materializa formal, mas adquiridos no espaço público.
lugar dos pobres extrapolava os limites das va no avanço das ocupações coletivas de
zonas periféricas, espaço para onde par terras que, aos poucos, foram ganhando A emergência das ocupações
cela significativa foi destinada nas déca legitimidade no espaço público e adqui coletivas de terras
das de 70 e 80, através de uma “política de rindo am plitude e força com a
desfavelamento” que removeu e transfe- institucionalização do “movimento dos A deterioração das condições de mo
riu populações pobres das regiões centrais sem-teto”. Essas mobilizações e práticas radia e a qualidade de vida da população
para os conjuntos habitacionais implanta vão encenar confrontos, sofrimentos, per de Teresina para os pobres, nos anos 80,
dos, justamente, para cumprirem essa fi das, e longas e dolorosas jornadas de ne tornou impraticável manter o pagamento
nalidade3. gociação. do aluguel bem como a compra de um pe
A transformação da cidade verificava- Na realidade, essas práticas que ganha queno lote de terra. A realidade parecia
se tanto pelos sinais de urbanização quan ram a cena pública a partir da metade dos indicar, portanto, que não restava outra
to pelo aumento progressivo de favelas e anos 80 representavam alternativas de so alternativa, senão a ocupação de vastas áre
vilas tecidas na teia urbana dessa cidade, lução e de defesa do direito à habitação, as ociosas que conformam uma outra di
reafirmando a pobreza como fator de sua ao tempo em que infringiam as normas ju mensão da cidade, aquela dominada pelos
constituição. O aumento do desemprego rídicas em diferentes esferas - civil, penal, proprietários fundiários que vivem da es
nos anos 80 e, conseqüentemente, a queda administrativa, etc., pondo em discussão peculação.
do poder aquisitivo reduziram, drastica- princípios e regras que fundam a base do Porém, áreas públicas pertencentes à
Travessia/Janeiro - Abril / 01 -3 9
insustentabilidade de sua situação, em ou tido na “política de reassentamento”, o blico, com instituições de assistência e or
tro patamar, que leva os pobres a recorre número de famílias que estão instaladas em ganizações não-governamentais, uma vez
rem às ocupações, a darem destino social áreas consideradas de “risco e irregulares” que, nas favelas não regularizadas, a pre
a áreas livres e ociosas. Conscientes ou é enorme ainda, revelando a falta de uma sença desses órgãos é reduzida. Em algu
não, ao moverem-se pela necessidade, ins política mais eficaz no eixo - uso e posse mas situações não existem, nem mesmo,
tauram uma nova ordem ou a “desordem”, da terra/questão habitacional. estruturas organizativas locais para acio
forjada no campo do direito - o direito à narem as demandas.
moradia como plausibilidade de uma vida O morador da favela ou vila, na sua
Trajetória das famílias maioria, migrante, ao tomar a cidade gran
“digna”. Não significa, todavia, que esse
processo percorrerá um planejamento, um migrantes pobres em Teresina de como destino, não vislumbra mais, no
estratagem a, critérios inteligíveis de seu horizonte, a possibilidade de morar em
racionalidade. Ao se procurar configurar a pobreza em um bairro, mesmo nos tradicionalmente
As experiências têm mostrado que as Teresina, nota-se que ela é sempre referi destinados aos setores de renda baixa. A
favelas e vilas são constituídas, em sua da ao universo constituído pelas vilas e vida nessas áreas encareceu sobremanei
maioria, a partir da conjunção de vários favelas, caracterizado por essas designa ra, as terras e as casas se valorizaram de
fatores objetivos e subjetivos. Dentre es ções atribuídas pela sociedade. E nesse tal forma, que viver de aluguel é sinônimo
tes, ganham prevalência a necessidade de espaço que as famílias pobres encontram de pesadelo, e comprar um terreno ou uma
um lugar para morar e a existência de ter seu ancoradouro, embora itinerante, e cons casa tornou-se um sonho inatingível, mes
ras ociosas. Outros elementos concorrem tróem suas subjetividades. Até encontrar mo em se tratando de financiamentos po
para a definição do local de origem, desta a estabilidade esperada, com a regulariza pulares da COHAB-PI e da Caixa Econô
cando-se o fato de ser área pública ou de ção da área ocupada ou com a compra de mica Federal.
domínio público, isso porque se percebe uma casa, participam de um certo ciclo de A trajetória mais freqüente do migrante
que as chances de conquista da terra são partidas e retornos, que caracterizam o se inicia, quase sempre, em casa de um
mais factíveis quando se trata de proprie movimento contínuo de deslocamento das parente ou de um amigo numa favela ou
dade dessa natureza. Via de regra, situam- famílias, tanto internamente, no mesmo vila até o momento de se desfazer dos par
se, em sua maioria, em terrenos munici território, quanto externamente, entre as cos bens (casa, pequenos animais, resquí
pais. diversas outras áreas. cios de safra), que deixou no meio rural
Em 1993, a ocupação de áreas da Pre Alugar um barraco é o último recurso ou em cidades menores e poder adquirir
feitura correspondia a um percentual de até adquirir seu próprio espaço para mo um barraco e trazer a família.* Dependen
55,10%. Em 1996, elevou-se para 65,09%, rar, embora esta não seja uma prática co do das condições na primeira favela e de
ocupando áreas de topografia acidentada, mum no universo das favelas. A essas se outros fatores aleatórios, sua trajetória de
muitas apresentando riscos à integridade recorre, justamente, para eliminar o ônus itinerante poderá ser encurtada. O constan
física (no caso das áreas propensas à ero do aluguel, esse mecanismo que corrói, te deslocamento à procura de um espaço
são). Esse índice se elevou em virtude dos vorazmente, as mínimas condições de so para fixar-se é o cenário possível do
assentamentos institucionais da Prefeitu brevivência na cidade. Conforme indica o migrante até se estabelecer num lugar de
ra. Compreendendo, claramente, o papel último Censo das Vilas e Favelas em finitivo, em geral adquirido via processos
do Estado na realização do bem público, Teresina (Teresina, Secretaria Municipal de ocupação e de legalização definitiva.
os ocupantes das vilas e favelas, sobretu do Trabalho e de Assistência Social, 1996), Para o migrante recém-chegado, o des
do daquelas que surgiram fruto de uma há uma predominância de habitações per tino será sempre um lugar distante dos nú
organização, apóiam-se nessa premissa e tencentes a seus próprios moradores. cleos centrais, cujos moradores apegam-
apostam numa solução menos traumática Para os que não têm moradia definiti se ao seu título de posse como única fonte
quanto à posse da terra. Sabem que em ter va, o objetivo inicial é o de obter uma casa de segurança. Instala-se em zonas de ex
reno de particulares é mais difícil, porque numa favela próxima ao centro, mas o ob pansão, onde se produz uma verdadeira
o poder público “fecha os olhos” e, em ter jetivo final é o de adquirir um lugar defi cidade, seja pelos movimentos coletivos de
reno público, o Estado é responsável pelo nitivo para morar, que no seu horizonte é ocupação de áreas vazias (sobretudo nas
destino daquelas famílias. Insere-se, nesse uma casa de vila, “legalizada”. A regulari Zonas Leste, Sul e Sudeste), seja pelos
contexto, também, o componente de aná zação da posse não só lhes assegura esta- grandes aglom erados habitacionais
lise conjuntural que pode viabilizar um bilidade em ocional, sentim ento de construídos pela Prefeitura para abrigo de
maior ganho político. pertencimento e de territorialidade como famílias retiradas de áreas consideradas de
A despeito de a administração munici lhes permite o acesso a serviços públicos, “risco e irregulares”. Essas remoções,
pal (gestão 1993/1996) ter priorizado a uma vez que as áreas, legalmente consti como já frisamos, fizeram parte de uma
periferia, favelas e vilas para ações de tuídas, dispõem de maior poder de pres política do Governo Municipal (1993-
infra-estrutura e saneamento, devido à ve são sobre a ação estatal. Ela engendra le 1996), de reassentamento de famílias e de
locidade de seu crescimento, o quadro ge gitimidade e possibilidade de se fazer re reordenamento urbano.
ral é ainda dramático. Embora tenha inves conhecer na interlocução com o poder pú A trajetória de parcela significativa dos