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Diego Altieri

Fernando G. Tenório
Organizadores

Gestão
e
Economia
Solidária
Coleção Gestão e
Desenvolvimento
Coleção Gestão e Desenvolvimento

Diego Altieri
Fernando G. Tenório
Organizadores

Gestão
e
Economia
Solidária

Ijuí
2023
2023, Editora Unijuí Rua do Comércio, 3000
Bairro Universitário
Editor 98700-000 – Ijuí – RS – Brasil
Fernando Jaime González
Coordenadora Administrativa (55) 3332-0217
Márcia Regina Conceição de Almeida
Capa editora@unijui.edu.br
Alexandre Sadi Dallepiane
Imagem de capa:
www.freepik.com www.editoraunijui.com.br

Responsabilidade Editorial,
Gráfica e Administrativa fb.com/unijuieditora/
Editora Unijuí da Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) instagram.com/editoraunijui/

Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí

G393
Gestão e economia solidária [recurso eletrônico] / organizadores
Diego Altieri, Fernando G. Tenório – Ijuí : Ed. Unijuí, 2023. 276 p. ; 30 cm.
(Coleção Gestão e desenvolvimento)
Formato digital.
ISBN 978-85-419-0363-9 (digital)
1. Economia solidária. 2. Autogestão. 3. Cooperativas populares. 4.
Empreendimentos sociais. I. Altieri, Diego. II. Tenório, Fernando G. III.
Série.
CDU: 334.1
Bibliotecária Responsável:
Cristina Libert Wiedtkenper
CRB 10/2651
A Coleção
A ColeçãoGestão
Gestão e Desenvolvimento
e Desenvolvimento é umaé iniciativa
uma iniciativa
editorialeditorial do Programa
do Programa de Pós-
de Pós-Graduação
Graduação em Desenvolvimento
em Desenvolvimento (PPGDes)
(PPGDes) da Unijuí da Unijuí
e da Editora e da
Unijuí, Editora
voltada à
Unijuí, voltada
publicação à publicação
de textos de atextos
que abordem quedaabordem
temática gestão e doa temática da gestão
desenvolvimento numae do
visão interdisciplinar
desenvolvimento das Ciências
numa Sociais, contemplando
visão interdisciplinar as Linhas
das Ciências decontemplando
Sociais, Pesquisa do
Programa: Gestão
as Linhas de Empresarial;
Pesquisa Administração
do Programa: GestãoPública e Gestão
Empresarial; Social e Desenvol-
Administração Pública
vimento Local e Gestão do Agronegócio. O objetivo da Coleção é disponibilizar
e Gestão Social e Desenvolvimento Local e Gestão do Agronegócio. O objetivo
aos leitores um conjunto de obras que contribuam para qualificar o debate sobre as
da Coleção é disponibilizar aos leitores um conjunto de obras que contribuam
temáticas destas áreas.
para qualificar o debate sobre as temáticas destas áreas.

CONSELHO EDITORIAL
CONSELHO EDITORIAL
Ph.D. Elisio Contini (Embrapa-Brasília)
Dr. Carlos Ricardo Rosseto (Univali)
Dr. Fernando Guilherme Tenório (Ebape/FGV)
Ph.D. Elisio Contini (Embrapa-Brasília)
Dr. Fernando Luis Gache (Universidade Técnica Nacional de Buenos Aires, Argentina)
Dra.Fernando
Dr. Enise Barth
LuizTeixeira
Abrucio (UFFS – Chapecó)
(EAESP/FGV)
Dr. Ivo
Dr. Fernando
Marcos Guilherme
Theis (Furb)Tenório (Ebape/FGV)
Dr. Fernando
Dra. Luisde
Janete Lara Gache (Universidade
Oliveira (UFMG) Técnica Nacional de Buenos Aires, Argentina)
Dr. Fernando
Ph.D. Luiz Abrucio
Joan Subirats (EAESP/FGV)
(Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha)
Prof.
Dr. Ivo Marcos
Marcelo Theis
Fernando (Furb)
Lopez Parra (Instituto de Altos Estudos Nacionais do Equador)
Dr. Martin Coy (Universidade
Dra. Janete Lara de Oliveira de(UFMG)
Imsbruck, Áustria)
Dr. Maurício Serva (UFSC)
Ph.D. Joan Subirats (Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha)
Dr. Carlos Ricardo Rosseto (Univali)
Dr. Marcelo Fernando Lopez Parra (Instituto de Altos Estudos Nacionais do Equador)
Dr. Roberto Costa Fachin (PUCMG)
Dr. Maurício Serva (UFSC)
Dr. Victor Ramiro Fernández (Universidade Nacional do Litoral – Santa Fé, Argentina)
Dr. Roberto Costa Fachin (PUCMG)
Dr. Victor Ramiro Fernández (Universidade Nacional do Litoral – Santa Fé, Argentina)
COMITÊ EDITORIAL

Dr. David Basso COMITÊ EDITORIAL


Dra. Enise Barth Teixeira
Dr. Jorge Oneide Sausen
Dr.
Dra.Jorge Oneide
Sandra Sausen
Beatriz Fernandes
Dr. Sérgio
Dra. SandraLuís Allebrandt
Beatriz Fernandes
Dr. Sérgio
Dr. David Luís
BassoAllebrandt
Sumário

Prefácio.............................................................................................................................................................. 7
Sérgio Luís Allebrandt

Apresentação.................................................................................................................................................13
Diego Altieri
Fernando G. Tenório

CAPÍTULO 1
Economia Solidária: Uma Definição Possível...........................................................................15
Luís Henrique Abegão

CAPÍTULO 2
Finanças Solidárias................................................................................................................................. 36
Carlos Frederico Bom Kraemer

CAPÍTULO 3
Política Pública de Economia Solidária......................................................................................58
Thais Soares Kronemberger

CAPÍTULO 4
Educação Popular e Economia Solidária..................................................................................85
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

CAPÍTULO 5
Empreendimentos de Economia Solidária: Natureza e Aspectos Legais............101
Diego Altieri

CAPÍTULO 6
Comercialização, Prestação de Serviços e Construção
de Redes na Economia Solidária...................................................................................................119
Júlio Cesar Andrade de Abreu
CAPÍTULO 7
O Movimento da Economia Solidária e Sua Articulação.............................................. 132
Riyuzo Ikeda Júnior
João Eduardo Branco de Melo
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

CAPÍTULO 8
Autogestão: Teoria e Prática............................................................................................................ 149
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento
João Eduardo Branco de Melo
Riyuzo Ikeda Júnior

CAPÍTULO 9
Para a Apreensão de um Conceito de Cooperativa Popular:
Entendendo e Discutindo as Diferenças entre Cooperativas
Tradicionais e Populares...................................................................................................................166
Airton Cardoso Cançado
Naldeir dos Santos Vieira

CAPÍTULO 10
Metodologia de Incubação de Cooperativas Populares:
O Caso da Incubacoop/Ufla.............................................................................................................195
José Roberto Pereira

CAPÍTULO 11
Economia Solidária e Desenvolvimento:
Perspectivas a Partir da Importância da Reciclagem de Resíduos Sólidos......214
Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi
Taciana Angélica Moraes Ribas
Sérgio Luís Allebrandt
Airton Adelar Mueller

CAPÍTULO 12
Economia de Francisco: Um Novo Mundo é Possível.....................................................243
Cláudio da Rocha Santos
Jefferson E. S. Machado
PREFÁCIO

K
arl Polanyi, em “A grande Transformação”, de 1980, afirmava que
“Nenhuma sociedade poderia sobreviver durante qualquer período
de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia
de alguma espécie”, porém, ainda que “[...] a instituição do mercado fosse
bastante comum desde a Idade da Pedra, seu papel era apenas incidental na
vida econômica”, uma vez que “[...] a economia do homem, como regra, está
submersa em suas relações sociais [...]”. Daí sua crítica a Adam Smith, que
afirmava que a divisão do trabalho na sociedade dependia da existência de
mercados, ou da “propensão do homem de barganhar, permutar e trocar uma
coisa pela outra”. Ou seja, nas comunidades anteriores à Revolução Industrial
a economia não se apresentava como uma esfera separada da sociedade, pois
estava submersa nas relações sociais. É no sistema capitalista que a economia
se desvinculou da sociedade, ou melhor, “Em vez de a economia estar
incrustada nas relações sociais, são as relações sociais que estão incrustadas
no sistema econômico”, e desta forma, o destino da sociedade fica submetido
ao mercado autorregulado, que controla e subjuga a sociedade e as relações
sociais (Polanyi, 2000 [1944], p. 62-77).
É nesse sentido que França Filho (2002) afirma que em virtude da
ruptura produzida pela autonomização do mercado em relação aos demais
princípios do comportamento econômico, e da consequente objetificação das
relações sociais e despersonalização das relações econômicas, o fenômeno da
economia solidária pode contribuir para tornar estas relações mais humanas.
Ainda que o conceito de economia solidária tenha sido construído na
Europa ao longo do século 20, na América Latina e no Brasil, em especial, o
tema ganhou relevância a partir dos anos 90, dada a conjuntura econômica
de alto desemprego e precarização das relações de trabalho, fazendo com
que movimentos sociais se envolvessem em ações de caráter associativo para
geração de renda. Gradativamente a temática passou a integrar a agenda
pública, com a formulação e efetivação de políticas específicas, em especial
a partir de 2003.

7
PREFÁCIO
Sérgio Luís Allebrandt

Pode-se afirmar que a temática da economia solidária se constitui em


um campo paradigmático (ou pré-paradigmático) em construção. Os avanços
das agendas de pesquisa e extensão desenvolvidas na Academia, os avanços e
retrocessos na operacionalização de políticas públicas e a trajetória da prática
efetiva das experiências desenvolvidas pela sociedade são fundamentais para
a evolução conceitual.
É nesse sentido que a presente obra, organizada por Diego Altieri e
Fernando G. Tenório, traz contribuição importante. Os capítulos do livro são
fruto de experiências e discussões teóricas desenvolvidas pelo Programa de
Estudos em Gestão Social (Pegs) da Ebape/FGV. Especificamente, em parceria
com a Cáritas Diocesana do Rio de Janeiro e do Laboratório de Transferência
de Tecnologias Sociais, foram realizadas, a partir de 2018, três edições do
Curso de Gestão e Economia Solidária, nas quais foram utilizados textos que
deram origem aos capítulos desta obra.
No capítulo 1, sob o título Economia solidária: uma definição possível,
Luís Henrique Abegão aborda aspectos históricos da trajetória prática e
conceitual da Economia Solidária (ES) a partir da década de 90. Aponta o
“vínculo histórico da economia solidária com a economia popular, no sentido
de que se apresenta, desde sua origem, como uma estratégia de geração de
trabalho e renda para homens e mulheres vivendo às margens do mercado
formal de trabalho”. Ressalta, porém, que, “diferentemente da economia
popular, que reúne principalmente os trabalhadores que buscam alternativas
de ocupação e de geração de renda via empreendedorismo individual, a
Economia Solidária se dá de forma coletiva e autogestionária”. Aborda a
construção de um conceito a partir do Movimento de Economia Solidária e
das Plenárias Nacionais de Economia Solidária, e caracteriza os Empreendi-
mentos Econômicos Solidários com base nos mapeamentos realizados pelo
Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária.
O capítulo 2, de autoria de Carlos Frederico Bom Kraemer, aborda
as Finanças Solidárias, tratando dos mecanismos que integram as finanças
solidárias, como as tecnologias sociais das cooperativas de crédito solidário,
dos fundos rotativos solidários e dos bancos comunitários de desenvol-
vimento, evidenciando que eles são relevantes alternativas de crédito aos
empreendimentos econômicos solidários. Conclui ainda que a “viabilidade
desses empreendimentos tem um potencial de fomento ao desenvolvimento
territorial, amparado na busca pela inclusão social e solidariedade”. Alerta,

8
PREFÁCIO
Sérgio Luís Allebrandt

no entanto, que “as ações que envolvem as finanças solidárias, e consequen-


temente a economia solidária, devem ser vistas também como movimento
político de resistência na busca de uma sociedade mais igualitária”.
Thais Soares Kronemberger, no capítulo 3, discorre sobre a temática da
Política Pública de Economia Solidária. Organiza o capítulo com uma discussão
da economia solidária como política pública a partir de três vertentes: os
relatórios das Plenárias Nacionais do Fórum Brasileiro de Economia Solidária
(FBES); os relatórios e documentos de referência das Conferências Nacionais
de Economia Solidária e o texto do Projeto de Lei nº 137 de 2017 sobre a
política pública nacional de economia solidária. Conclui com um chamamento
para a necessidade de “fortalecimento dos fóruns, conselhos e demais
instâncias de articulação em âmbito subnacional para [...] construir uma rede
em defesa do bem viver, do trabalho cooperado e autogestionário como
direito à cidadania”.
Educação Popular e Economia Solidária é o título do capítulo 4, em
que Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira apresenta a Educação Popular como
práticas educativas emancipatórias, que se constituíram da experiência dos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil brasileira e Economia
Solidária como uma forma de produção baseada na autogestão, no coopera-
tivismo e na solidariedade, que se contrapõem às explorações existentes
nas relações de trabalho, típicas do capitalismo. Afirma que os processos
educativos da Educação Popular se encaixam como a pedra angular para
o fortalecimento da Economia Solidária, pois a “reflexão pedagógica da
Educação Popular sobre as atividades de cooperação e autogestão solidária
gera uma identidade única de transformação social pelo trabalho solidário e
ensino popular”, daí que “a dimensão formativa é [...] essencial ao fortale-
cimento da Economia Solidária e [...] vetor de transformação para uma
sociedade mais sustentável”.
No capítulo 5 o autor Diego Altieri desenvolve e analisa a natureza
e aspectos legais de Empreendimentos de Economia Solidária: natureza
e aspectos legais. Após descrever sucintamente os diversos tipos de
organizações coletivas formais e informais de trabalhadores que se
fundamentam nos princípios da cooperação, transparência, autogestão,
democracia, equidade e solidariedade, aprofunda duas tipologias de EES – a
cooperativa e a associação – abordando e analisando os passos para criação
e funcionamento destes empreendimentos.

9
PREFÁCIO
Sérgio Luís Allebrandt

Júlio Cesar Andrade de Abreu aborda os processos de Comercialização,


prestação de serviços e construção de redes na Economia Solidária. Organiza
o capítulo 6 em duas partes. Na primeira realiza uma análise dos dados do
mapeamento estruturado do Atlas Digital SIES, com informações sobre o
processo de comercialização e prestação de serviços em EES, com o objetivo
de caracterizar o processo de comercialização e serviços no cenário brasileiro,
detalhando suas principais dificuldades. Na segunda parte desenvolve uma
discussão sobre o potencial das redes e cadeias para o processo de comercia-
lização e prestação de serviços em Economia Solidária. A necessidade de se
desenvolver caminhos para superação dos desafios enfrentados para comercia-
lização e prestação de serviços em empreendimentos econômicos solidários
está cada vez mais presente. Os dados que foram analisados e discutidos ao
longo deste capítulo deixam latente a diversidade e a complexidade exigida
para a superação dos desafios impostos. A construção de redes que possam
remontar e integrar as cadeias produtivas dos empreendimentos econômicos
solidários facilitam o enfrentando de um ambiente mercadológico bastante
hostil e desigual.
O capítulo 7 trata do Movimento da Economia Solidária e sua
Articulação. Os autores Riyuzo Ikeda Júnior, João Eduardo Branco de Melo
e Carlos Alberto Sarmento do Nascimento analisam os movimentos de
Economia Solidária no Brasil mostrando como eles se organizam por meio dos
fóruns municipais, regionais e estaduais. Mostram que estes arranjos institu-
cionais articulam-se no Fórum Brasileiro de Economia Solidária, apresentando
a função das plenárias na construção das pautas do movimento e destacando
resultados. Alertam para a importância da resistência desses coletivos de
Economia Solidária e gestão e controle social, diante do desmonte de políticas
públicas promovido pelo governo federal ao longo dos últimos anos.
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento, João Eduardo Branco de
Melo e Riyuzo Ikeda Júnior também abordam a Autogestão: teoria e prática.
Estruturam o capítulo 8 em duas partes distintas e complementares. A
primeira apresenta o conceito de autogestão, descrevendo e analisando
suas atitudes, formas, benefícios sócio-organizacionais, a importância como
estrutura comportamental dialógica e valoração das relações interpessoais e
sociais durante o processo, demonstrando alguns de seus principais benefícios

10
PREFÁCIO
Sérgio Luís Allebrandt

e seus entraves mais comuns. Na segunda parte caracterizam e analisam a


caso do EES Morenas do Divino de Santa Catarina, abordando a relação teoria
e prática.
O capítulo 9, Para a apreensão de um conceito de Cooperativa Popular:
entendendo e discutindo as diferenças entre cooperativas tradicionais e
populares, de autoria de Airton Cardoso Cançado e Naldeir dos Santos Vieira,
contribui na construção conceitual para cooperativa popular. Apresentam
a Economia Solidária como movimento e analisam as correntes teóricas
cooperativistas, a emergência do cooperativismo popular como uma forma
de expressão da Economia Solidária, propondo um esboço conceitual para as
cooperativas populares, delineando características que as tornam diferentes
das cooperativas ditas tradicionais.
José Roberto Pereira aborda no capítulo 10 a Metodologia de Incubação
de Cooperativas Populares: o caso da Incubacoop/Ufla Trata-se do relato de
uma experiência de aproximadamente 15 anos da Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares da Universidade Federal de Lavras (Incubacoop-Ufla)
no processo metodológico de incubação de empreendimentos de Economia
Solidária, envolvendo a formação cidadã de estudantes e de trabalhadores.
O capítulo 11, de autoria de Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi, Taciana
Angélica Moraes Ribas, Sérgio Luís Allebrandt e Airton Adelar Mueller, aborda
a reciclagem de resíduos como alternativa de desenvolvimento sustentável e
fonte de geração de emprego e renda. Analisa aspectos da política nacional de
resíduos sólidos e apresenta um panorama do Brasil no que se refere à coleta
seletiva e às associações de catadores.
Finalmente, o capítulo 12, de autoria de Jefferson E. S. Machado e
Cláudio da Rocha Santos, trata da Economia de Francisco: um novo mundo
é possível. Ao pretender influenciar os rumos do pensamento econômico, a
denominada “Economia de Francisco” procura fortalecer as perspectivas que
se orientam ao desenvolvimento humano, de modo mais igualitário e atenta
a todas as formas de vida no planeta. De acordo com os autores, o Francisco
de Assis e o de Roma inspiram o mundo e todas as pessoas de boa vontade a
se comprometerem cada vez mais a viver e trabalhar pela justiça, pela paz e
pela integridade da Criação, na promoção de uma globalização da esperança,
que nasce dos povos e cresce entre os pobres.

11
PREFÁCIO
Sérgio Luís Allebrandt

Os diferentes aspectos teórico-práticos tratados nos 12 capítulos


deste livro contribuem, sem dúvida, para o debate em torno da temática da
Economia Solidária.
A Economia Solidária (ES) possui uma lógica que não se enquadra na
lógica da economia de mercado autorregulada do sistema capitalista com
todas as suas contradições. Ela pode ser caracterizada como uma economia
plural que prima pela autogestão, autonomia dos empreendimentos e
igualdade de seus participantes. Por isso, é possível enquadrar a ES no debate
em torno da multidimensionalidade dos sistemas sociais do Paradigma
Paraeconômico proposto por Guerreiro Ramos (1989), pois os EES possuem
interfaces com os tipos ideais de isonomias e fenonomias, como enclaves
sociais existentes, juntamente com o enclave do mercado.

REFERÊNCIAS
FRANÇA FILHO, G. Terceiro Setor, Economia Social, Economia Solidária e Economia
Popular: traçando fronteiras conceituais. Bahia Análise & Dados, v. 12, n. 1, p.
9-19, jun. 2002.
GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da
riqueza das nações. São Paulo: Ed. FGV, 1989.
POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro:
Campus, 1980.

Sérgio Luís Allebrandt


Professor titular do Programa de Pós-Graduação
em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (PPGDR/Unijuí)
Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq

12
Apresentação

O
livro que ora apresentamos – Gestão e economia solidária – faz parte
de um conjunto de textos publicados pelo Programa de Estudos em
Gestão Social (Pegs),1 desenvolvido desde os anos 90 do século 20 na
Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação
Getulio Vargas (FGV). A publicação desses livros tem a ver com as atividades
de extensão universitária que o Pegs desenvolve com a Cáritas Arquidiocesana
do Rio de Janeiro por meio do Laboratório de Transferência de Tecnologias
Sociais (LTTS).
As expressões economia solidária, economia social, economia popular,
economia de Francisco, são locuções conceituais que procuram mitigar a
hegemonia de uma forma de economia, a economia de mercado que, substan-
cialmente, exclui a participação daquelas populações não capazes, devido a
sua renda, de consumir os produtos ofertados ou de não possuírem recursos
financeiros suficientes para fazer frente à concorrência no mercado. Isso
exige que a cooperação e a solidariedade sejam os elementos principais da
racionalidade econômica de tal sistema alternativo de geração de trabalho e
distribuição de renda em substituição ao conceito de lucratividade típico da
economia de mercado. Dessa forma, a economia solidária ou aquelas demais
expressões que buscam o mesmo objetivo – democratizar de modo coletivo
as relações de produção – faz parte do conteúdo do presente livro.
Devemos observar, no entanto, que o conteúdo descrito nos diferentes
capítulos não esgota o conhecimento sobre um tema crescentemente objeto
de estudo e de publicações. As referências bibliográficas consultadas em cada

1
Tenório, Fernando Guilherme et al. Elaboração de projetos comunitários: abordagem prática.
São Paulo: Loyola, 1995; Tenório, Fernando Guilherme et al. Administração de projetos
comunitários: abordagem prática. São Paulo: Loyola, 1995; Tenório, Fernando Guilherme et al.
Avaliação de projetos comunitários: abordagem prática. São Paulo: Loyola, 1995. Estes livros
foram reunidos em um só texto: Tenório, Fernando Guilherme (org.). Gestão comunitária: uma
abordagem prática. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. Ainda faz parte desse conjunto de livros
Gestão comunitária com ênfase em sustentabilidade ambiental, organizado por Fernando G.
Tenório e Rogério Valle e publicado pela Editora FGV em 2018.

13
APRESENTAÇÃO
Diego Altieri – Fernando G. Tenório

um dos capítulos atestam esta afirmação. O que significa dizer que o seu
conteúdo deve ser ampliado e/ou criticado para uma melhor compreensão de
uma proposta de organização econômica livre de qualquer coerção e dialógica
no sentido da sua gestão. Desse modo o presente livro pode ser considerado
um texto que divulga considerações, não exaurindo a possibilidade de seu
melhoramento ou continuidade.
Os organizadores gostariam de agradecer aos autores dos capítulos que
serão nomeados ao longo da divisão do livro. Aproveitamos para acrescentar
que o processo de escrita dos capítulos obedeceu a uma maturação que
começou quando do primeiro curso que realizamos com a Cáritas em 2018.
O conteúdo de cada capítulo foi originalmente distribuído sob a forma de
apostila, objetivando, com isso, verificar até que ponto a redação de cada
um deles era compreensível por parte dos participantes. Assim, como foi três
o número de cursos até a publicação deste livro, os respectivos conteúdos
tiveram oportunidade de serem avaliados durante essas três versões do Curso
de Gestão e Economia Solidária.

Diego Altieri
Fernando G. Tenório

14
C apítulo 1

Economia Solidária:
Uma Definição Possível

Luís Henrique Abegão


Professor Associado do Departamento de Administração e Administração Pública
do Instituto de Ciências Humanas e Sociais de Volta Redonda da Universidade Federal
Fluminense. Tutor do Programa de Educação Tutorial junto ao Grupo PET Gestão
Social e Coordenador da Incubadora Tecnológica de Empreendimentos de Economia
Solidária do Médio Paraíba – InTECSOL.
INTRODUÇÃO

A
economia solidária manifesta-se e desenvolve-se na “vida vivida” de
trabalhadoras e trabalhadores que, juntos e de maneira autônoma,
organizam atividades econômicas as mais diversas, a partir de relações
de reciprocidade. Além disso, as motivações para estarem juntos extrapolam,
em muitas situações, a finalidade econômica, sobretudo quanto mais se
aprofunda na vivência desse modo solidário de organização da atividade
econômica. Por esse motivo é tão difícil estabelecer um conceito que seja
capaz de abarcar integralmente a dinâmica da economia solidária.
É preciso alguma familiaridade com o conceito de economia solidária
para identificar suas manifestações em várias situações do cotidiano.
Por exemplo, se você é uma pessoa preocupada com a saúde ou que tem
uma consciência mais ampla de sua responsabilidade como consumidor,
possivelmente já deve ter se interessado em comprar alimentos diretamente
do produtor, em feiras de produtos orgânicos ou agroecológicos. Você também
já deve ter se perguntado para onde vai o material da coleta seletiva que
você separa em sua casa e a quem ele beneficia. E as feiras de artesanato que
acontecem em espaços públicos da cidade, que além serem lugares agradáveis
para passear, têm ótimas sugestões para presentes originais. Há também
os grupos culturais, sejam aqueles que preservam uma expressão cultural
tradicional até os coletivos que reúnem artistas de diversas manifestações
culturais. Você já parou para pensar como essas atividades são organizadas?
É aqui que entra em cena a economia solidária, que se manifesta na
organização coletiva de trabalhadoras e trabalhadores para o desenvolvi-
mento de uma atividade econômica. O que faz da economia solidária outra
forma de economia, porém, é que essa atividade econômica é conduzida
pelas trabalhadoras e trabalhadores de forma autogestionária, isto é, eles
são os proprietários dos meios de produção, tomam decisões coletivamente
e compartilham os resultados entre todos de forma justa. Isso exige, portanto,
uma racionalidade econômica particular, na qual o valor que sustenta
a atividade econômica não se expressa como lucratividade e sim como
cooperação.

16
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

Os produtores agrícolas de unidades familiares que estruturam juntos


um circuito curto agroalimentar,1 ou os artesãos que se organizam para a feira
na praça, ou os catadores de materiais recicláveis que se juntam para constituir
uma cooperativa ou associação, ou ainda os artistas que coletivamente fazem
de suas manifestações culturais formas de resistência, todos estes coletivos
de trabalhadores e trabalhadoras são expressões da economia solidária com
as quais convivemos no nosso dia a dia.
Como antecipamos, entretanto, a economia solidária vai mais além
das atividades econômicas autogestionárias conduzidas coletivamente pelos
trabalhadores e trabalhadoras. Ela é também um jeito de viver, do bem viver,
que implica a solidariedade, o respeito à diversidade, o envolvimento com
a comunidade, o comércio justo, as finanças solidárias, a preocupação pelo
desenvolvimento local, pelo meio ambiente e pela sustentabilidade.

UM BREVE RECORTE HISTÓRICO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL


No mesmo ano (1993) em que o sociólogo Herbert de Souza, o
Betinho, traz à luz o “Mapa da Fome”2 no Brasil e lança a Campanha Nacional
de Combate à Fome e à Miséria (Ação da Cidadania), o conceito economia
de solidariedade aparece pela primeira vez no país no livro organizado por
Moacir Gadotti e Francisco Gutiérrez – Educação Comunitária e Economia
Popular – num artigo do chileno Luis Miguel Razeto intitulado “Economia de
solidariedade e organização popular”. Nas palavras de Razeto (1993 apud
Lechat, 2002), economia da solidariedade expressa
uma formulação teórica de nível científico, elaborada a partir e para dar
conta de conjuntos significativos de experiências econômicas [...], que
compartilham alguns traços constitutivos e essenciais de solidariedade,
mutualismo, cooperação e autogestão comunitária, que definem uma
racionalidade especial, diferente de outras racionalidades econômicas.

1
O Circuito Curto caracteriza-se como uma rede alimentar em que o poder não está nas mãos
dos intermediários e grandes distribuidores e sim nas dos produtores e consumidores, cuja
relação direta entre estes atores garante não só produtos alimentares de qualidade e preço
justo, como também informações que permitem saber onde, por quem e de que forma os
produtos foram produzidos.
2
O documento intitulado O mapa da fome: subsídios à formulação de uma política de
segurança alimentar, foi publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em
1993, como resultado da pesquisa coordenada pela professora Anna Maria Peliano.

17
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

A maneira como o autor nos apresenta o conceito de economia da


solidariedade já evidencia o fato de que essa construção conceitual é uma
tentativa de compreender e classificar um conjunto de iniciativas econômicas
com características comuns, baseadas na cooperação e na autogestão. Vale
dizer que essas experiências econômicas surgem de um contexto de crise,
sobretudo da década de 80 do século 20, conhecida como a “década perdida”,
com índice de desemprego elevado, achatamento da renda do trabalhador,
hiperinflação e aumento da desigualdade social.
Em 1995, a expressão “economia solidária” começa a ser utilizada para
qualificar a prática dos mais variados empreendimentos coletivos e autoges-
tionários de trabalhadores e trabalhadoras que começam a surgir no país,
assim como passa a identificar também um movimento social nascente, que
articula empreendimentos econômicos solidários, organizações de fomento
e assessoria a esses empreendimentos e intelectuais que passaram a estudar
o fenômeno.
Dois fatos relevantes acontecem no Rio de Janeiro em 1995. Um deles é
a criação do que viria a ser o primeiro fórum estadual de economia solidária,
que nasce com o nome de Fórum de Cooperativismo Popular (FCP). Mantendo
o nome de origem, o fórum estadual articula fóruns municipais espalhados
pelo Estado do Rio de Janeiro e sempre desempenhou um papel importante
na construção, em conjunto com a Frente Parlamentar de Economia Solidária
da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), de uma política
pública para o segmento no Estado.
O outro fato histórico é a criação da primeira Incubadora Tecnológica
de Cooperativas Populares (ITCP), que foi articulada pelo Instituto Alberto
Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (Coppe), a partir das discussões em um Comitê da
Cidadania3 que reunia professores, estudantes e técnicos administrativos da
instituição para pensar e propor iniciativas que pudessem contribuir com os
esforços da segunda fase da Ação da Cidadania, que tinha como foco a geração
de trabalho e renda.

3
Os Comitês da Cidadania eram organizados de maneira espontânea pela sociedade civil,
lideranças comunitárias e instituições, a partir do estímulo gerado pela Ação da Cidadania
e o carisma de Betinho, para articulação de ações de combate à fome e à miséria e outros
projetos sociais.

18
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

A economia solidária no Brasil surge como resposta ao difícil contexto


das décadas de 80 e 90, de baixo crescimento da atividade econômica e de
elevada taxa de desemprego, fazendo surgir no âmbito da economia popular
uma série de experiências de organização coletiva e autogestionária de
trabalhadoras e trabalhadores – apoiadas por movimentos sociais, pela igreja
católica, por organizações da sociedade civil e sindicatos de trabalhadores –
como as cooperativas, as associações, as empresas recuperadas4 e grupos
informais, desempenhando atividades de produção, prestação de serviço,
comercialização, consumo e crédito solidário. Posteriormente vieram somar-se
a esses empreendimentos econômicos solidários as feiras ou clubes de troca,
os bancos comunitários, as redes de economia solidária, as ecovilas e outras
experiências que passaram a adotar os princípios da economia solidária.
A institucionalidade do Movimento de Economia Solidária começa a ser
construída no início dos anos 2000, tendo como instância de representação
nacional o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), que articula fóruns
estaduais, regionais e municipais em todo o país. Os fóruns, de modo geral,
reúnem empreendimentos econômicos solidários, entidades de assessoria,
outros movimentos sociais e integrantes da gestão pública com o propósito
de representar e fortalecer o movimento de economia solidária, bem como
reivindicar por políticas públicas direcionadas a esse segmento.
O histórico do FBES tem início em 2001, a partir do 1º Fórum Social
Mundial, quando se cria o Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária,
constituído por importantes entidades de assessoria. Esse GT aprova, na
1ª Plenária Brasileira de Economia Solidária,5 em dezembro de 2002, uma
carta – intitulada Economia Solidária como Estratégia Política de Desenvolvi-
mento – que seria encaminhada ao então eleito presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, solicitando a criação de uma Secretaria Nacional de Economia Solidária

4
Empresa recuperada é o nome que dá a uma empresa capitalista que, em decorrência
de falência ou inviabilidade econômica, foi assumida de forma autogestionária pelos
trabalhadores, mediante um processo de luta e negociação para a manutenção dos postos
de trabalho. Em 1994 surge a Anteag – Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas
de Autogestão e Participação Acionária – com o objetivo de assessorar empresas industriais
de autogestão.
5
As plenárias são organizadas pelo movimento de economia solidária como espaços de
construção tanto do referencial conceitual como da plataforma de lutas da economia solidária
e seguem a lógica das conferências de políticas públicas, partindo das plenárias regionais,
passando pelas estaduais até desembocar na nacional. A última plenária nacional ocorreu
em 2012.

19
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

(Senaes). Na 3ª Plenária Nacional de Economia Solidária, realizada em junho


de 2003, o FBES é instituído e ocorre a aprovação da Carta de Princípios da
Economia Solidária.
A Senaes foi criada no mesmo mês de junho de 2003, no âmbito do
Ministério do Trabalho, e dirigida durante 13 anos pelo professor Paul Singer,
principal referência da economia solidária no Brasil. Na gestão de Paul Singer,
o trabalho da Senaes foi desenvolvido em diálogo constante com o FBES, no
entanto, a partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff, a Senaes vem
sofrendo um desmonte. No governo do presidente Michel Temer foi rebaixada
à subsecretaria, ainda ligada ao Ministério do Trabalho, mas a equipe que
ajudou o professor Paul Singer a montar a Secretaria e todas as ações que
foram realizadas durante sua gestão foram completamente desarticuladas.
No governo Bolsonaro, a Senaes passou a ser apenas um departamento do
Ministério da Cidadania, com atuação inexpressiva.
O grande desafio da Senaes e do Conselho Nacional de Economia
Solidária (CNES), criado em 2006, sempre foi a concretização de uma
política pública de economia solidária, cujo projeto de lei (PL 4.685/2012),
apresentado em novembro de 2012, tramitou na Câmara dos Deputados
até novembro de 2017, quando foi aprovado e encaminhado para o Senado.
Lá tramitou como PLC 137/2017 até sua aprovação em dezembro de 2019.
Atualmente o substitutivo do Senado (PL 6606/2019) encontra-se novamente
em tramitação na Câmara.
É importante ressaltar nesse breve histórico que a institucionali-
dade da economia solidária seja a do próprio movimento, como a estrutura
governamental que passa a organizar políticas públicas e/ou ações nesse
campo, acontece em resposta a algo que vinha se manifestando no cotidiano
de trabalhadoras e trabalhadores desempregados, que passaram a buscar
alternativas de inserção no mundo do trabalho por meio de empreendimentos
coletivos e autogestionários, formais ou informais.

A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A PARTIR


DO MOVIMENTO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
A Carta de Princípios da Economia Solidária, fruto da 3ª Plenária
Nacional de Economia Solidária, além de demarcar um posicionamento
político muito claro, parte da tradução da realidade ao definir os empreen-
20
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

dimentos econômicos solidários como “...práticas fundadas em relações


de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o
ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica, em vez da
acumulação privada de riqueza em geral e de capital em particular” (FBES,
2005). Essa perspectiva é reforçada pela definição de economia solidária a
partir dos pontos de convergência de tais práticas, quais sejam:
1. a valorização social do trabalho humano; 2. a satisfação plena das
necessidades de todos como eixo da criatividade tecnológica e da
atividade econômica; 3. o reconhecimento do lugar fundamental da
mulher e do feminino numa economia fundada na solidariedade; 4. a
busca de uma relação de intercâmbio respeitoso com a natureza e 5. os
valores da cooperação e da solidariedade (FBES, 2005).

Assim sendo, desde a primeira síntese conceitual elaborada pelo


movimento de economia solidária, esta é definida de forma ampla, não
apenas como um conjunto de atividades econômicas que reúnem caracterís-
ticas comuns, mas sim como diretriz para “...um desenvolvimento sustentável,
socialmente justo e voltado para a satisfação racional das necessidades de
cada um e de todos os cidadãos da Terra...” (FBES, 2005), cujo valor central
é o trabalho baseado em relações de reciprocidade. Cabe lembrar que a
solidariedade extrapola o âmbito dos empreendimentos econômicos solidários
em si, ao abarcar também como propósitos a redução da desigualdade social,
o consumo consciente, a preservação ambiental e o respeito à diversidade.
Como forma de dar sustentação a essa perspectiva de desenvolvimento,
a carta aponta algumas condições necessárias ao fortalecimento da economia
solidária, como o estabelecimento de um sistema de finanças solidárias6 capaz
de promover a soberania financeira do território a partir de práticas autoges-
tionárias de financiamento (bancos comunitários, cooperativas de crédito,
fundos solidários, entre outras) e estabelecimento de moedas sociais.7 Outra
condição é o desenvolvimento de cadeias produtivas solidárias, aproximando
consumidores de produtores a partir do exercício do Comércio Justo e

6
Finanças solidárias é a expressão utilizada para denominar “...práticas e operações financeiras
reguladas comunitariamente”, segundo valores como solidariedade e confiança (França Filho;
Rigo; Leal, 2015, p. 11).
7
As moedas sociais são moedas complementares ou paralelas à moeda nacional, que apoiam
as práticas comunitárias de finanças solidárias, beneficiando diretamente o território no qual
circulam.

21
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

Solidário.8 A última condição citada pela carta é a elaboração de uma política


pública de economia solidária que garanta ao mesmo tempo a autonomia dos
empreendimentos econômicos solidários e a responsabilidade do Estado em
relação aos direitos dos trabalhadores por eles reunidos (FBES, 2005).
Depois de um acúmulo de quase uma década de vivências e reflexões, o
documento síntese da 5ª Plenária Nacional de Economia Solidária,9 intitulado
Economia Solidária: bem viver, cooperação e autogestão para um desenvol-
vimento justo e sustentável, reforça aspectos já antecipados pela Carta de
Princípios, de 2003. Ao discutir a orientação política da economia solidária, o
documento destaca alguns temas relevantes para que possamos compreendê-
la, como: autogestão e autonomia; emancipação econômica e política dos
empreendimentos econômicos solidários; território e territorialidade;
cidadania e relação com o Estado; sustentabilidade e diversidades.
No que diz respeito ao tema autogestão e autonomia, a 5ª Plenária
questionou o modo alienante e assalariado das relações de trabalho
capitalistas, contrapondo-o à vivência da autogestão pelos trabalhadores
dos empreendimentos econômicos solidários. O documento-síntese assim
define: “a autogestão é o compartilhamento da gestão do trabalho buscando
a autonomia e a independência sociopolítica e econômica dos indivíduos
que compõem cada coletivo” (FBES, 2012). No âmbito do Movimento de
Economia Solidária, porém, a cultura da autogestão não deve ficar restrita
aos empreendimentos econômicos solidários. As entidades de fomento e
assessoria, os órgãos governamentais e os fóruns que atuam no campo da
economia solidária também devem ser espaços de vivências democráticas e
de promoção da autonomia.
Quanto à emancipação econômica e política dos empreendi-
mentos econômicos solidários, o documento-síntese da 5ª Plenária coloca
a necessidade de consolidação de mercados econômicos solidários que
favoreçam a relação direta entre produtores e consumidores conscientes,

8
O Comércio Justo e Solidário denomina, no Brasil, tanto as práticas de comercialização dos
empreendimentos econômicos solidários baseadas no diálogo, no respeito, na transparência,
no preço justo, como um Sistema Nacional de Comércio, instituído pelo Decreto Presidencial
no 7.358, de 17 de novembro de 2010, visando à promoção destas práticas e uma maior justiça
social.
9
A 5ª Plenária Nacional ocorreu em dezembro de 2012, tendo sido a última plenária realizada
até o presente momento.

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CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

como sendo aqueles que valorizam nas relações de troca não apenas os
produtos, mas também as interações com os produtores, assim como
compartilham valores do bem viver. Para isso, várias estratégias podem
ser adotadas, como as feiras organizadas por produtores, os mercados
comunitários, os canais de comércio justo, os circuitos curtos agroalimentares,
as feiras ou clubes de trocas, entre outras formas de organização coletiva e
autogestionária para comercialização ou trocas. Essas iniciativas devem ser
apoiadas por políticas públicas e financiadas por agências governamentais,
bancos comunitários ou outras formas de finanças solidárias, de modo que
alcancem autonomia e sustentabilidade econômica, evitando a dependência
em relação ao mercado capitalista.
A sustentabilidade desses mercados solidários passa, por um lado,
pela construção e fortalecimento de redes e cadeias produtivas formadas por
empreendimentos econômicos solidários e, por outro, pela maior conscien-
tização do consumidor quanto à sua contribuição para o desenvolvimento
endógeno,10 quando da assunção de práticas de consumo que beneficiam os
pequenos produtores locais, que estimulam a busca da qualidade e do preço
justo e que preservam o meio ambiente. O documento da 5ª Plenária aponta
como uma estratégia de fomento aos mercados solidários a criação de selos ou
etiquetas que identifiquem e apresentem os produtos da economia solidária.
Valorizando a perspectiva do desenvolvimento endógeno, o documento
destaca a relevância da noção de territorialidade, pois considera que a
economia solidária deve “...olhar de perto para as pessoas, onde elas vivem,
como se organizam para sobreviver, como utilizam e cuidam dos recursos
que tem à disposição” (FBES, 2012). A territorialidade, aqui compreendida,
extrapola a noção de território, ao considerar que para a economia solidária a
territorialidade é definida como o espaço geográfico no qual ocorre a vivência
dos seus valores e princípios, em prol de um projeto coletivo comum, capaz
de atribuir uma identidade a esse território.
Nos territórios em que o movimento de economia solidária estrutura-se
via fóruns e onde há redes ou cadeias de empreendimentos econômicos
solidários, certamente essa identidade é mais evidente. Isso, contudo, não

10
O desenvolvimento endógeno pressupõe a “...utilização dos potenciais – econômicos,
humanos, naturais e culturais – internos a uma localidade, incorporando ao instrumental
econômico neoclássico variáveis como participação e gestão local” (Braga, 2002, p. 24).

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CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

ocorre sem que haja um investimento em formação capaz de despertar a


reflexão sobre os valores e princípios, bem como sobre a forma de organização
da economia solidária. A vivência coletiva dessa cultura da economia solidária
permite, ainda, que estratégias de consolidação do próprio movimento e de
reivindicação de direitos sejam articuladas.
Isso tem relação direta com o tema cidadania e relação com o Estado,
conforme apresentado pelo documento da 5ª Plenária. Vale ressaltar a
importância que se dá ao processo de conscientização da sociedade a respeito
da economia solidária, pelo fato de que esta forma de organização econômica,
apesar de resgatar práticas tradicionais, ainda é pouco compreendida pelas
pessoas. Há, no entanto, hoje, uma maior interface para o diálogo entre
a economia solidária e os consumidores conscientes, que compartilham
mutuamente determinados valores e preocupações, o que facilita esse
processo de ampliação de uma conscientização da população.
Outro aspecto destacado pelo documento é quanto à organização do
movimento de economia solidária via fóruns municipais, regionais, estaduais
e o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Os fóruns constituem a instância
política da economia solidária, cuja organização e fortalecimento – inclusive o
estímulo à criação de novos fóruns – permitem uma atuação mais estratégica
do movimento, que se traduz em: i) ações formativas, tanto no âmbito interno
como voltadas para a sociedade; ii) presença em espaços institucionais de
controle social de políticas públicas; iii) reivindicação de políticas públicas
dedicadas à economia solidária e de ampliação de direitos dos trabalhadores
a ela associados. Essa atuação política estruturada amplia a visibilidade da
economia solidária junto ao Estado e à sociedade e o reconhecimento de que
enseja um direito econômico e uma estratégia de inclusão social, segundo
valores como democracia, reciprocidade, autonomia, respeito à diversidade
e preservação da vida em todas as suas dimensões.
Com respeito ao tema sustentabilidade, o movimento de economia
solidária questiona o modelo de desenvolvimento baseado na hegemonia do
capital e na lógica do aumento do consumo associado a um mercado global,
propondo como contraponto a perspectiva do desenvolvimento endógeno,
que respeita o meio ambiente e valoriza a cultura local e a diversidade
de formas de produção e consumo como estratégia para a redução das
desigualdades sociais. Para tanto, deve haver a valorização dos modos locais
de produção e consumo, criando e fortalecendo as redes de empreendi-
24
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

mentos econômicos solidários e o comércio justo e solidário nos territórios,


entendendo que são os trabalhadores os atores principais nesta dinâmica. A
sustentabilidade passa, portanto, pela ampliação de um consumo consciente
a partir de uma aproximação entre produtores e consumidores, conforme
mencionado anteriormente quando da discussão sobre a criação de um
mercado solidário.
A expressão adotada pelo movimento de economia solidária para
indicar essa preocupação com a sustentabilidade em suas dimensões
ambiental, social, cultural e econômica é o “bem viver”. O documento-síntese
da 5ª Plenária chega a propor a utilização do conceito de bem viver em
substituição ao de desenvolvimento sustentável, na medida em que questiona
a forte vinculação da noção de desenvolvimento à ideia de crescimento
econômico. Dessa forma, para o bem viver o retorno econômico não é o valor
central e sim o bem-estar das pessoas e a cooperação entre elas.
O documento da 5ª Plenária, ao tratar das diversidades, resgata
a relação histórica do movimento de economia solidária com outros
movimentos, como o de mulheres, negros, indígenas, agricultura familiar,
agroecologia, catadores de materiais recicláveis e povos e comunidades
tradicionais, e incita o diálogo com outras diversidades, como as pessoas
com deficiência, a comunidade LGBT, a juventude, entre outras. Destaca-se,
porém, a contribuição da economia solidária para com a luta feminista e
racial, “... na medida em que cria condições de desnaturalizar a separação de
público e privado, produtivo e reprodutivo – desconstruindo a divisão sexual
do trabalho; recolocando o olhar para o trabalho do cuidado das pessoas
como uma esfera mantenedora e relacionada ao mundo produtivo” (FBES,
2012).
Dessa forma o documento dá uma ênfase especial ao lugar da mulher
na economia solidária. Ao longo de todo o texto há destaques à posição
especial que deve ser dada à mulher na economia solidária, sobretudo pela
necessidade de colocar a discussão sobre a reprodução da vida humana (e não
a produção de bens e serviços) no centro do debate econômico. Considera-se
que o aspecto diferenciador dos Empreendimentos de Economia Solidária
(EESs), a autogestão, conduz a práticas de igualdade, garantindo espaços
autênticos de decisão e representação política, favorecendo a autonomia das
mulheres.

25
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

Várias das questões abordadas pelo documento final da 5ª Plenária


estão contempladas no arcabouço conceitual adotado e divulgado pela
Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), que, segundo a síntese
apresentada por Silva (2010), mostra a economia solidária como
...uma prática regida pelos valores de autogestão, democracia,
cooperação, solidariedade, respeito à natureza, promoção da dignidade
e valorização do trabalho humano, tendo em vista um projeto de
desenvolvimento sustentável global e coletivo. Também é entendida
como uma estratégia de enfrentamento da exclusão social e da
precarização do trabalho, sustentada em formas coletivas, justas e
solidárias de geração de trabalho e renda (p. 19-20).

É importante destacar nesse conceito amplo adotado pela Senaes o


vínculo histórico da economia solidária com a economia popular, no sentido
de que se apresenta, desde sua origem, como uma estratégia de geração de
trabalho e renda para homens e mulheres vivendo à margem do mercado
formal de trabalho. Diferentemente, todavia, da economia popular, que reúne
principalmente os trabalhadores que buscam alternativas de ocupação e de
geração de renda via empreendedorismo individual, a economia solidária se
dá de forma coletiva e autogestionária.

DIFERENCIANDO OS EMPREENDIMENTOS
ECONÔMICOS SOLIDÁRIOS
O Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária (Sies)
registrou, por meio do segundo mapeamento, realizado entre 2009-2013,
a existência de 19.708 Empreendimentos de Economia Solidária (EESs),
distribuídos em 2.713 municípios brasileiros, presentes em todos os Estados da
Federação. Ao todo, estavam envolvidos nesses EESs 1.423.631 trabalhadores,
sendo 43,6% mulheres e 56,4% homens (Sies, 2013).
Quanto às atividades econômicas desenvolvidas pelos EESs mapeados,
a grande maioria (56,2%) dedicava-se a uma atividade de produção, à qual
também poderia estar associada a comercialização. É interessante notar, no
entanto, que o segundo maior conjunto (20,1%) reúne os EESs que estavam
dedicados ao consumo ou uso coletivo de bens e serviços pelos sócios, como
as tradicionais cooperativas de consumo, presentes sobretudo na área rural. O
terceiro maior grupo de EESs (13,3%) compreende aqueles que se dedicavam
26
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

à comercialização, que, normalmente, são empreendimentos que reúnem


produtores individuais para a comercialização conjunta, como acontece com
os artesãos e agricultores familiares. O quarto conjunto (6,6%) ainda se mostra
expressivo, reunindo os EESs que se dedicavam à prestação de serviços. As
atividades que concentraram um menor número de EESs na época foram
aquelas que tinham as trocas como propósito principal, como os clubes ou
feiras de trocas (2,2%), e também os empreendimentos ligados às finanças
solidárias de forma geral (1,7%) (Sies, 2013).
É importante entender o que caracteriza e, ao mesmo tempo, diferencia
um EES de outras formas de organização da atividade econômica, sobretudo
das empresas capitalistas. Há três condições mínimas que devem estar
reunidas para essa caracterização/diferenciação dos empreendimentos
econômicos solidários.
A primeira delas é, obviamente, o desenvolvimento de uma atividade
econômica, a qual pode ser muito variada, segundo as práticas históricas
dos empreendimentos econômicos solidários. Há aqueles que se dedicam
à produção, a qual pode ser industrial, artesanal ou agrícola, e aqueles
dedicados à prestação de serviços em várias áreas, cujos clientes podem ser
pessoas, comunidades, empresas, órgãos governamentais ou mesmo outros
EESs. Segundo os dados do segundo mapeamento da economia solidária,
vistos anteriormente, um número expressivo de EESs dedica-se também
à organização da comercialização, na maioria das vezes constituídos por
produtores individuais que isoladamente teriam muita dificuldade de acessar
mercados. Há ainda os empreendimentos cuja atividade econômica consiste
em facilitar o acesso de pessoas ou outros EESs ao crédito ou ao consumo. Por
fim, há os que se dedicam às trocas, as quais muitas vezes envolvem moedas
sociais próprias que facilitam a sua parametrização.
A primeira condição, por si só, não caracteriza um EES, apenas define
a natureza do trabalho ali desenvolvido. A segunda diz respeito a como esse
trabalho é realizado, posto que em um Empreendimento Econômico Solidário
a atividade econômica é desenvolvida coletivamente pelos trabalhadores
(observando-se que essa coletividade de caráter suprafamiliar), ou seja, há
uma cooperação produtiva em algum ponto do processo ou em sua totalidade.
Isso quer dizer que pode haver cooperação produtiva desde a aquisição de
insumos, passando pela produção, até a comercialização dos produtos, ou
que, em outras situações, pode haver uma produção individual ou familiar,
27
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

mas cuja comercialização acontece via organização coletiva dos produtores.


Na prestação de serviços é mais comum que o processo seja integralmente
coletivo, mas também pode haver a reunião de trabalhadores que se
organizam coletivamente como empreendimento, mas cuja prestação do
serviço em si ocorre individualmente.
O segundo requisito já denota uma importante diferença dos EESs em
relação às empresas capitalistas, na medida em que a organização coletiva do
trabalho pressupõe uma cooperação direta entre os próprios trabalhadores.
Isso leva à terceira e mais essencial das condições: a autogestão, que implica
não só a horizontalidade das relações e a democracia no processo de tomada
de decisão, quando todos os trabalhadores que integram o empreendi-
mento são convidados a participar, uma vez que são sócios, mas também a
propriedade coletiva dos meios de produção. O capital social do Empreendi-
mento Econômico Solidário é coletivo e os resultados – sobras ou prejuízos
– são compartilhados entre os sócios.
O capital social coletivo, acumulado pelos sócios, justifica a autogestão,
diferenciando radicalmente os empreendimentos econômicos solidários das
empresas capitalistas, mesmo daquelas que adotam processos de gestão mais
horizontais, em que a cooperação produtiva e a participação nas decisões são
estimuladas entre os colaboradores, dado que na economia solidária, além
dessa integração e desse processo mais democrático de tomada de decisão, há
propriedade coletiva dos meios de produção e compartilhamento equânime
de resultados – positivos ou negativos – entre os trabalhadores, a respeito do
qual todos também decidem.
Em resumo, atividade econômica, cooperação produtiva e autogestão
são os requisitos mínimos necessários para a caracterização de um EES,
destacando-se que a presença das duas últimas condições aponta para
um propósito que transcende o objetivo econômico do empreendimento
associado à primeira. Esse propósito extraeconômico é definido como a
dimensão socioambiental do EES, representada internamente, sobretudo,
pela preocupação compartilhada com respeito à qualidade de vida de seus
sócios, no trabalho e fora dele, e externamente pelo modo de relaciona-
mento do EES com seus stakeholders, que leva em consideração princípios
como colaboração, reciprocidade, transparência, preço justo, etc. Importa
salientar que essa diretriz socioambiental extrapola as relações meramente
econômicas, colocando para o EES outras questões, como o intercâmbio
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CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

com os demais Empreendimentos Econômicos Solidários, a construção da


territorialidade na qual está inserido, a participação no movimento político da
economia solidária e em outros movimentos sociais, a preservação do meio
ambiente, entre outros intentos que possam ser assumidos pelo empreendi-
mento.
Em relação a essa dimensão socioambiental assumida pelos EESs,
assim como pelo movimento de economia solidária como um todo, vários
aspectos são amplamente descritos e valorizados pela literatura sobre
economia solidária, como: a preocupação com o meio ambiente, a saúde e a
segurança alimentar; a valorização da cultura local e dos saberes e práticas das
populações tradicionais; a não discriminação de qualquer ordem, sobretudo
nas relações de gênero; a contribuição para o desenvolvimento local a partir
da promoção dos princípios da economia solidária, etc.
A reunião das três características destacadas anteriormente, porém,
exigiria dos EESs práticas diferenciadas ou adicionais àquelas adotas por
empresas capitalistas?
Como os mercados solidários ainda representam espaços restritos
de comercialização e, portanto, a maioria dos EESs ainda disputa mercado
com empresas capitalistas, eles não podem prescindir dos mecanismos de
gestão empresarial que garantam eficiência e eficácia à atividade econômica,
pois perderiam em competitividade. Além disso, deve-se considerar que o
investimento em profissionalização da gestão justifica-se mesmo no contexto
em que seja possível estabelecer um mercado diferenciado, como a proposta
do comércio justo e solidário, uma vez que o consumidor sempre exigirá
qualidade e avaliará alternativas, por mais cooperativo que seja. Conside-
rando-se, ainda, que os consumidores conscientes (aqueles mais bem
informados e interessados) constituem o público preferencial dos EESs, a
eficiência e a eficácia dos processos são condições necessárias para a entrega
de produtos e serviços de qualidade a esses consumidores.
Entre as competências próprias da gestão empresarial – planejamento
estratégico, administração financeira, organização da produção, marketing,
etc. – algumas podem parecer antagônicas ao modus operandi dos EESs, no
entanto essas competências, mesmo que com as devidas adaptações, devem
ser desenvolvidas pelos trabalhadores do empreendimento econômico
solidário, sobretudo por aqueles diretamente envolvidos na gestão.
29
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

Ressalta-se, porém, que a autogestão reduz (mesmo que isso não ocorra na
prática) a separação entre planejamento e execução das atividades nos EESs,
por possibilitar a participação de todos no processo de tomadas de decisão,
fazendo com que a democratização e o compartilhamento das competências
gerenciais sejam desejados.
É certo que o exercício democrático de tomada de decisão proposto
pela autogestão não se dá nas ações cotidianas, pois está reservado às
decisões mais relevantes, sobretudo no estabelecimento dos objetivos do
EES, que não estão restritos aos econômicos, posto que envolvem também os
socioambientais. A definição compartilhada dos objetivos leva, naturalmente,
ao maior comprometimento de cada sócio do empreendimento com relação
às metas estabelecidas, bem como na assunção das responsabilidades que
lhes competem. Para isso, há que se ter um ambiente de confiança, uma vez
que inseguranças, desconfianças ou disputas de poder desestabilizam esse
ambiente, dificultam a autogestão e, por consequência, comprometem os
resultados econômicos e socioambientais.
Algumas questões concentram um grande potencial de desestabili-
zação no âmbito dos EESs, como a remuneração dos trabalhadores e a divisão
dos resultados. Esta última é distinta da proposta de participação nos lucros
praticada por empresas capitalistas, pois os resultados, no caso dos EESs,
podem ser sobras, mas eventualmente envolvem prejuízos, os quais serão,
consequentemente, arcados pelos seus sócios. Sendo assim, a transparência
na gestão financeira é essencial para um clima de confiança no âmbito do
EES. Quanto à remuneração dos trabalhadores, esta deve ser baseada em
critérios justos e equânimes, em se tratando de economia solidária, posto
que aplicados em um contexto de cooperação produtiva e de autogestão.
Esse processo precisa ser transparente e os critérios devem ser estabelecidos
coletivamente, para que a confiança e a cooperação não sejam afetadas.
A racionalidade econômica de cunho capitalista visa à maximização do
autointeresse, e, por estarmos inseridos numa sociedade capitalista, estamos
submetidos a ela. Nesse sentido, os interesses egoístas são obstáculos à
emergência de uma racionalidade econômica de caráter substantivo, em
detrimento da perspectiva instrumental da racionalidade capitalista, e que
leve em consideração critérios justos e equânimes de remuneração e de
30
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

distribuição dos resultados nos Empreendimentos de Economia Solidária. O


individualismo, o egoísmo, portanto, devem dar lugar à reciprocidade nos
EESs.
As questões tratadas anteriormente apresentam-se como desafios
a muitos empreendimentos econômicos solidários. Em parte isso está
relacionado à posição ambígua vivenciada pelo trabalhador da economia
solidária ao compreender-se também como sócio do empreendimento, com
todas as responsabilidades que isso exige – muitos têm essa dificuldade e não
se sentem preparados para assumir posições administrativas, nem mesmo
para compor, por exemplo, o Conselho Fiscal, órgão obrigatório de uma
cooperativa. Incorporar o papel de sócio e assumir as responsabilidades pela
gestão e pelos resultados do empreendimento, mesmo compreendendo que
isso se dá de forma compartilhada com os demais (ou, ao contrário, por não
ter compreendido isso e gerar conflitos com os demais trabalhadores, que se
reconhecem como sócios do empreendimento), não é nada trivial para muitos
trabalhadores da economia solidária, seja pela sensação de incapacidade; pelo
medo de assumir os riscos e as reponsabilidades inerentes ao processo; pela
comodidade de não ter de tomar as decisões; por dificuldades no estabe-
lecimento das relações interpessoais; por se ver essencialmente como
trabalhador, que deve apenas seguir ordens, entre outras questões.
Para a superação dessa ambiguidade – se é que isso é possível de fato
– há que se ter um processo formativo continuado, capaz de ir construindo no
trabalhador da economia solidária as condições para o exercício autêntico da
autogestão, com as responsabilidades e riscos que isso pressupõe, bem como
com as disposições de alma necessárias ao diálogo e ao trabalho cooperativo.
Mesmo que vista como letra de lei, esta necessidade de investimento em
formação está prevista na legislação brasileira sobre cooperativismo, por
exemplo, pela obrigatoriedade da manutenção do Fundo de Assistência
Técnica, Educacional e Social, constituído por, no mínimo, 5% das sobras
líquidas.
Esse investimento em formação deve resultar no empenho de cada
sócio por construir e preservar o capital social do empreendimento econômico
solidário, que não se traduz apenas em recursos financeiros ou patrimônio
material, mas também nos valores compartilhados, na cultura organizacional,
31
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

nas regras de convivência, na relação com fornecedores, parceiros, clientes


e outras organizações, etc. Ou seja, o capital social é também imaterial e
simbólico nos EESs.
A formação, juntamente com a transparência na gestão, é a melhor
forma de evitar que empreendimentos que deveriam ser solidários sejam
conduzidos a partir de uma gestão autocrática exercida por uma liderança, que
pode ser legítima e reconhecida pelo grupo, mas que também pode a ele ser
imposta. A formação aqui mencionada, portanto, deve priorizar valores como:
democracia, diálogo, respeito, transparência, cooperação, solidariedade,
reciprocidade, etc.
Por tudo o que foi referido até aqui, conclui-se que a razão de ser de
um EES e o seu modo de operação dependem da conciliação entre objetivo
econômico e os seus propósitos socioambientais, com o mais essencial
destes sendo a prestação de serviço aos seus sócios, que são os próprios
trabalhadores que executam as atividades produtivas em busca de resultados
econômicos satisfatórios. Assim sendo, uma diretriz que diferencia os EESs das
empresas capitalistas, cuja gestão, de modo geral, é marcada pela perspectiva
estratégica, onde o foco está, em última instância, na lucratividade, é que a
gestão nos EESs assume características de uma gestão social, que se dá de
forma mais horizontal, e que se preocupa com os resultados que possam
beneficiar a todos os envolvidos, não apenas os sócios do empreendimento,
mas sobretudo estes no que diz respeito à sua qualidade de vida, no trabalho
e fora dele.
Essa dinâmica própria dos EESs, estabelecida em razão da reunião
dos três aspectos centrais – atividade econômica, cooperação produtiva e
autogestão – apresenta estreita conexão com o princípio da reciprocidade.
Para Mauss11 (1924 apud Sabourin, 2011), a dádiva é o oposto da troca
mercantil e implica uma tríplice obrigação – dar, receber e retribuir – e tem
a reciprocidade como princípio. Ousando estabelecer uma conexão entre
a tríplice obrigação do movimento da dádiva com a dinâmica dos EESs, é
possível associar o movimento do dar ao compromisso individual de cada
membro do Empreendimento Econômico Solidário para com os objetivos

11
Marcel Mauss (1872-1950), importante antropólogo e sociólogo francês, responsável pela
contribuição mais relevante para a teoria da dádiva, a qual contribui para a compreensão do
fenômeno da solidariedade na atualidade.

32
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

– econômicos e socioambientais – traçados coletivamente. A distribuição


equânime dos resultados, a justa remuneração e o devido reconhecimento
dos esforços empreendidos pelos trabalhadores e trabalhadoras estabelece
uma conexão com o movimento do receber. Já o retribuir – quando a dádiva
extrapola a esfera individual em direção ao coletivo – manifesta-se no cuidado
para com o capital social do empreendimento – incluindo aqui o simbólico e
imaterial – aquele que sustenta a comunidade internamente e lhe permite
interagir com outras esferas comunitárias. Nesse sentido é que consideramos
a reciprocidade como intrínseca à dinâmica própria dos EESs, cuja finalidade
consiste em concretizar objetivos definidos coletivamente a partir do exercício
da autogestão.
Como aborda Sabourin (2011), a contribuição da reciprocidade não
se restringe à dinâmica interna do empreendimento, extrapolando para
a comunidade mais ampla, na medida em que a preocupação com o bem
comum é a ela intrínseca.
As relações mobilizadas em tais estruturas de reciprocidade geram
valores materiais ou instrumentais imateriais (conhecimentos,
informações, saberes), mas produzem também valores afetivos
(amizade, proximidade) e valores éticos como a confiança, a equidade,
a justiça ou a responsabilidade. A distinção das estruturas elementares
de reciprocidade (a partir da noção do Terceiro incluído) gerando
sentimentos de si mesmo ou sentimentos compartilhados que dão lugar
à produção de valores éticos ou espirituais, constitui o principal aporte
inovador da teoria da reciprocidade (p. 34).

A noção do Terceiro incluído, citada por Sabourin (2011), está associada


ao fato de que a vivência da reciprocidade faz com que o Empreendimento
Econômico Solidário passe a considerar, para além dos interesses corporativos,
a preocupação com o bem viver. É nesse sentido que os princípios da
economia solidária estabelecem compromissos dos empreendimentos para
com os outros empreendimentos, a partir do estímulo à constituição de redes;
para com o meio ambiente, ao incluir uma atenção quanto à minimização de
impactos ambientais em seu processo produtivo; para com o seu território,
ao voltar o olhar para comunidades tradicionais e para a cultura local, além
da preocupação com o desenvolvimento local de modo sustentável, entre
outros aspectos.
33
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

A economia solidária propõe, portanto, uma forma de organização


econômica que funciona com base numa racionalidade capaz de reciprocidade,
cujo foco não se restringe aos resultados econômicos, ou, em termos
capitalistas, à lucratividade. Economicamente, expressa um modo de conduzir
a produção, a oferta de serviços, a comercialização, as finanças e o consumo
baseado na democracia e na cooperação, isto é, na autogestão.
Isso reforça a necessidade de entendimento dessa racionalidade que
excede a maximização do autointeresse em direção à reciprocidade, sem a
qual o empreendimento econômico solidário não pode assim ser considerado,
uma vez que a busca pelo bem viver é um propósito coletivo que depende
da disposição de cada integrante do empreendimento em colocar em prática
os princípios da autogestão, que implicam a vivência da cooperação, da
solidariedade, da dialogicidade, da reciprocidade.

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34
CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Luís Henrique Abegão

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TENÓRIO, F. G. (org.). Gestão Social: aspectos técnicos e aplicações. Ijuí: Editora
Unijuí, 2012.

35
C apítulo 2

Finanças Solidárias

Carlos Frederico Bom Kraemer


Professor-adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Volta Redonda-RJ.
Integrante da Incubadora Tecnológica de Empreendimentos de Economia Solidária do
Médio Paraíba (Intecsol) e pesquisador do Laboratório de Estudos em
Trabalho, Organização e Sociedade (Latos) da UFF. Atua como voluntário na Cáritas
Arquidiocesana do Rio de Janeiro pelo Programa de Estudos em Gestão Social (Pegs)
da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação
Getulio Vargas (FGV). carloskraemer@id.uff.br
INTRODUÇÃO

O
Brasil historicamente convive com problemas estruturais na ordem
econômica e social. Nesse sentido, a desigualdade social e a pobreza
são alguns dos martírios do país. Quando se analisa o mercado de
trabalho ou a população economicamente ativa, esses são caracterizados
por um setor econômico em que grande parte da população encontra-se na
economia informal1 e um país combalido por altas taxa de desemprego.2 Sendo
assim, há grandes contingentes de pessoas em vulnerabilidade econômica
e social. Nesse contexto, os empreendimentos solidários podem ser um
dos caminhos ao combate da pobreza, ao fomento de geração de renda e
promoção de desenvolvimento territorial de forma sustentável.
Muitas destas atividades, no entanto, necessitam de crédito seja para
capital de giro ou realizar investimentos para que o negócio possa se efetivar. A
questão é que uma parte considerável dessa população, citada anteriormente,
não consegue obter crédito no sistema financeiro tradicional, além do risco de
acessar financiamentos com elevadas taxas de juros e condições desfavoráveis.
Uma dificuldade das comunidades mais pobres para obter acesso ao crédito
nos mecanismos financeiros tradicionais, mesmo os que apresentam linhas
governamentais especiais aos micro e pequenos negócios, são as garantias para
efetuar o contrato, por conta da baixa rentabilidade e do risco de inadimplência.
No contexto das microfinanças, a experiência de Muhamm Yunus terá
uma influência de disseminação no mundo. Em 1970 o economista iniciou
a prática de microcréditos em Bangladesh, tendo como consequência o
surgimento do Grameen Bank em 1976, instituição de microcrédito voltada

1
No terceiro trimestre de 2018 eram 38,2 milhões de trabalhadores informais, 41,2% de
92,9 milhões de ocupados. Destaque para: 919 (2,4%) mil empregadores sem CNPJ; 2,25
(5,9%) milhões de trabalhadores familiares auxiliares; 4,45 (11,6%) milhões trabalhadores
domésticos sem carteira; 11,63 (30,4%) milhões empregados sem carteira do setor privado e
18,99 (49,7%) milhões que trabalham por conta própria sem CNPJ (IBGE, 2018).
2
A taxa de desemprego (desocupação) no Brasil no quarto trimestre do Brasil era de 10,6%,
totalizando 11,6 milhões de desempregados. O desemprego, de forma simplificada, refere-se
às pessoas com idade para trabalhar (acima de 14 anos) que não estão trabalhando, mas estão
disponíveis e tentam encontrar trabalho (IBGE, 2019).

37
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

para o combate à pobreza rural. Esse instrumento inovador surgiu para


resolver problemas que os governos não solucionavam. A atuação do Grameen
Bank influenciou uma série de iniciativas de microfinanças em diversos países
no mundo, tendo como foco o combate à pobreza em suas localidades (Rigo;
França Filho; Leal, 2015).
Desta forma, emergem as microfinanças e o microcrédito, tentando
suprir esses problemas de acesso ao crédito à população mais pobre. O termo
microfinanças refere-se
[...] à prestação de serviços financeiros adequados e sustentáveis
para população de baixa renda, tradicionalmente excluída do sistema
financeiro tradicional com utilização de produtos, processos e gestão
diferenciados. Nessa linha, entidades ou IMFs (Instituições Microfi-
nanceiras) são entendidas como aquelas pertencentes ao mercado
microfinanceiro, especializadas a prestar esses serviços, constituídas na
forma de Organizações Não-Governamentais (ONGs),3 Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips),4 cooperativas de crédito,
Sociedades de Crédito ao Microempreendedor e à Empresa de Pequeno
Porte (SCMs), fundos públicos, além de bancos comerciais públicos e
privados (por meio de correspondentes no país e de carteiras especia-
lizadas) (Soares; Melo Sobrinho, 2008, p. 23).

O microcrédito está no contexto das microfinanças, mas destinado


exclusivamente às pessoas físicas e jurídicas para um empreendimento de
pequeno porte com o uso de uma metodologia diferenciada das operações de
crédito tradicionais. Seu uso é defendido como um importante instrumento
para o combate à pobreza por conta da possibilidade de geração de renda
e trabalho. Em 2005 é promulgada Lei nº 11.110, consolidando o conceito
de microcrédito ao apresentar o Microcrédito Produtivo Orientado (MPO),
tendo como objetivo a oferta de crédito apenas para os microempreendedores
(Soares; Melo Sobrinho, 2008). Dessa forma, o microcrédito coloca-se como
potencial para a redução da pobreza e o desenvolvimento social e econômico,
no entanto há questionamentos sobre os que mais necessitariam do acesso ao
recurso e como conseguem alcançá-lo (Rigo; França Filho; Leal, 2015).

3
São organizações de direito privado sem fins lucrativos. Geralmente, são formadas por
associações, institutos e outras formas jurídicas da sociedade civil. A ONG está sujeita à Lei
da Usura, não podendo praticar juros superiores a 12% ao ano.
4
São entidades de direito privado, sem fins lucrativos e de interesse público, nos termos da Lei 9.790/99.
Essas entidades não estão sujeitas à Lei da Usura, portanto, podem praticar taxas de mercado.

38
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

Trazendo a discussão das microfinanças e o microcrédito para a


economia solidária há o princípio básico das finanças solidárias, que é o aval
solidário que permite à parte da população ter acesso a crédito que lhes
possibilita, ao longo dos anos, aumentar seu trabalho e renda e superar a
exclusão social e econômica em que estão mergulhados (Singer, 2013). As
finanças solidárias englobam um campo diversificado de modalidades organi-
zacionais e de propósitos, que têm a possibilidade de acesso a crédito como
referência, isto é, democratizar os recursos financeiros (Rigo; França Filho;
Leal, 2015). Paiva (2016) ainda traz que as finanças solidárias dialogam com a
inclusão financeira e a democratização no campo da economia.
Segundo Rigo (2014), as três principais organizações de finanças
solidárias no Brasil são as cooperativas de crédito solidárias, os fundos
rotativos solidários e os bancos comunitários de desenvolvimento. Com isso, o
presente capítulo tem como proposta discutir e apresentar esses mecanismos
e organizações que dão suporte às finanças solidárias, na medida em que tais
instrumentos podem configurar como importantes alternativas de crédito aos
empreendimentos econômicos solidários.
Cabe ressaltar que essas ações em suas distintas experiências tiveram
em seus processos de formação e amadurecimento o envolvimento de
instituições públicas ou privadas. Inclusive, por meio de institucionalização
de regulações e formulação e efetivação de políticas públicas nas esferas
federal, estaduais e municipais. As políticas públicas nas diversas áreas sociais,
no entanto, vêm sofrendo um esvaziamento e desmonte nos últimos anos,
inclusive no que diz respeito à economia solidária.5 Esse processo iniciou a
partir da crise econômica em 2015, mas se acentuou quando houve uma

5
Pegando o exemplo da trajetória da Secretaria de Economia Solidária (Senaes), que foi criada
em 2003 no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A Secretaria foi criada no âmbito
do Ministério do Trabalho e Emprego e tinha como objetivo viabilizar e coordenar atividades
de apoio à economia solidária em todo o território nacional, buscando promover geração de
renda, inclusão social e promoção do desenvolvimento justo e solidário. Foi criada a partir de
ampla mobilização da sociedade civil, tendo como base experiências práticas de autogestão
de trabalhadores e trabalhadoras. A Senaes, no entanto, no governo do presidente Michel
Temer perde prestígio e tem início o processo de esvaziamento. Em 2019, no governo
do presidente Jair Bolsonaro, ocorre a extinção do Ministério do Trabalho. Com isso, a
Senaes teve suas atribuições alocadas no Ministério da Cidadania. Já a economia solidária
fica associada à Secretaria de Inclusão Social e Produtiva Urbana. Essa visão restringiu o
conceito de economia solidária como uma estratégia de desenvolvimento, que responde
aos empreendimentos econômicos solidários urbanos e rurais.

39
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

guinada nas políticas econômicas e sociais no governo do presidente Michel


Temer, quando este assume após a um conturbado processo de impedimento
da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Em 2019, com a eleição do presidente
Jair Bolsonaro, as políticas econômicas de cunho liberal ganham conotações
mais radicais na concepção de Estado mínimo, assim como o arcabouço
institucional de proteção social, formado desde a Constituição Federal de
1988, vem sendo desmontado.
Sendo assim, optou-se neste texto por não fazer uma discussão acerca
das possíveis políticas públicas envolvidas nas experiências apresentadas. Isso
não significa o entendimento da relevância e necessidade da participação do
poder público no desenvolvimento dessas organizações. A opção foi por tratar
essas tecnologias inovadoras a partir de suas descrições e potencialidades
e formas de resistência na defesa por uma sociedade mais justa e inclusiva.
O texto está estruturado, além dessa introdução e das referências
bibliográficas, no item que apresentará o cooperativismo de crédito. O item
seguinte apresentará os Fundos Rotativos Solidários (FRSs). Já na sequência
a discussão ocorrerá a partir dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento
(BCDs) e as moedas sociais. Por fim, serão apresentadas as considerações
finais.

COOPERATIVISMO DE CRÉDITO
O cooperativismo é uma experiência de mais de 170 anos, tendo sua
origem na Europa, cuja referência foi a mobilização de parte da sociedade
para resolver problemas de âmbito local. O cooperativismo nasce na Inglaterra
em Rochdale, na cidade de Manchester, em 1844. Nesta localidade foi criada
a primeira cooperativa no mundo, por 28 operários A partir da cooperativa
“Sociedade dos Probos de Rochdale” (Rochdale Quitabel Pioneers Society
Limited) originam-se os princípios do cooperativismo.
Em 1895 é constituída a Aliança Cooperativa Internacional (ACI), a fim
de representar o cooperativismo no mundo. Nesse sentido, vão se constituindo
princípios em torno do cooperativismo, que vai mudando e se adequando
ao longo do tempo com as transformações nas sociedades ocidentais. Nesse
contexto, a partir de 1995 há modulação dos princípios atuais (Cançado et
al., 2015). Os princípios são: i) associação voluntária e aberta; ii) controle
40
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

democrático dos membros; iii) participação econômica dos membros; iv)


autonomia e independência; v) educação, treinamento e informação; v)
cooperação entre cooperativas; vi) preocupação com a comunidade.6
Sobre o cooperativismo de crédito, este promove aplicação de recurso
privados e assume os riscos em favor da própria comunidade em que se
desenvolve, representando as iniciativas dos próprios cidadãos (Soares; Melo
Sobrinho, 2008).
O cooperativismo de crédito tem origem na Alemanha, dividindo-se
em dois modelos, o Schulze-Delitzsch e Raiffeisen. Esses modelos surgem
na figura de administradores públicos da época, por isso os modelos levam
seus nomes. O modelo Raiffeisen, em 1848, teve sua origem em um contexto
rural a partir da criação de uma associação que tinha como objetivo reunir
recursos dos agricultores em melhores condições produtivas e econômicas
para os produtores menos favorecido e assim fazer com que essa parte dos
produtores não ficassem vulneráveis à agiotagem. A gestão da associação,
que ficou conhecida por “Caixa Rural”, era feita de forma democrática e
localmente, observando-se que os resultados não eram distribuídos aos seus
membros. O modelo Schulze-Delitzsch origina-se a partir de 1850, influenciado
pelo modelo Raiffeisen, mas em um contexto urbano. Surgem, no entanto,
algumas diferenças, como retorno sobre as sobras líquidas aos membros da
associação, atuação não restrita e remuneração aos dirigentes (Meinen et al.,
2004 apud Cançado et al., 2015).
Ainda segundo os autores os modelos alemães influenciaram o coopera-
tivismo de crédito em outros países pelo mundo, tais como a criação do
primeiro Banco Cooperativo, na Itália, em 1865. Em 1900 surge também um
modelo de cooperativa de crédito no Canadá, que tinha como característica
vínculos estabelecidos entre os cooperados (Cançado et al., 2015).
Esses modelos influenciaram a formação de cooperativas de crédito no
Brasil. No país o cooperativismo de crédito tem sua origem em 1902, quando
é criada a Sociedade Cooperativa Caixa de Economia e Empréstimos de Nova
Petrópolis, no Rio Grande do Sul, com foco na área rural, voltada para os
agricultores. A partir de então outras cooperativas foram surgindo as quais
eram reguladas pelo Ministério da Agricultura (Soares; Melo Sobrinho, 2008).

6
Disponível em: https://www.ocb.org.br/aci

41
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

Com a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc),7


em 1945, iniciou-se uma sobreposição no papel de regulação do setor. Em
1958, por meio de portaria do Ministério da Agricultura, ocorre a suspensão
na criação de novas cooperativas, fragilizando o setor. Em dezembro de 1964,
já no regime militar, é criado o Banco Central do Brasil (Bacen). Com isso,
as cooperativas de crédito foram classificadas como instituições financeiras,
segundo a Lei 4.595 do mesmo ano. Observou-se uma estruturação do
Sistema Financeiro Nacional, tendo o Bacen como regulador e fiscalizador. O
período militar, no entanto, foi de regulação, o que restringia e dificultava as
ações das cooperativas (Soares; Melo Sobrinho, 2008). No regime militar os
bancos oficiais foram escolhidos para programas de oferta de crédito agrícola,
restringindo a atuação e operação de cooperativas com esse fim (Cançado et
al., 2015).
Apesar das dificuldades o cooperativismo de crédito se mostrou
resiliente no Rio Grande do Sul e em 1980 o cooperativismo organiza-se e é
criada a Cooperativa Central de Crédito Rural do Rio do Grande do Sul Ltda
(Cocecrer). Com isso, novas cooperativas e centrais surgem e em 1986 é criada
a Confederação Brasileira das Cooperativas de Crédito (Confebrás) (Meinen et
al., 2004 apud Cançado et al., 2015).
Somente na década de 90 com uma nova regulação acontece o
ressurgimento na atuação das cooperativas de crédito (Soares; Melo
Sobrinho, 2008). Com a Resolução nº 1.914 de 1992 ocorreram: a vedação
de cooperativas abertas ao público em geral; ampliação do conceito de
crédito mútuo para pessoas físicas de determinadas profissões ou atividades
comuns, ou vinculadas a determinadas entidades. Em 1995, com nova
resolução, é possibilitada a criação dos Bancos Cooperativos. Essas instituições
tinham atuações restritas às unidades da Federação em que a sede jurídica
estava estabelecida. Em 2000, com o amadurecimento do setor os bancos
cooperativos passam a ter praticamente as mesmas regras dos bancos
comerciais, inclusive na forma de banco múltiplo e de abertura de capital
para outros investidores fora do sistema, mantidas as Centrais de Crédito por
terem maioria no capital votante da instituição. A equidade com as demais
instituições financeiras ocorreu em 2002 (Soares; Melo Sobrinho, 2008).

7
A Sumoc foi a autoridade monetária anterior à criação do Banco Central do Brasil.

42
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

As cooperativas de crédito são compostas por uma associação de


pessoas que se tornam cooperados de forma voluntária da instituição, a
qual tem como objetivo oferecer serviços financeiros aos cooperados. As
cooperativas podem ser organizadas por meio de cooperativas singulares,
centrais e confederações. É facultado se uma cooperativa de crédito, em
critério de associação, deve ser centrada na vinculação de uma entidade de
classe específica. Desta forma, é possível a criação de uma cooperativa aberta
(Soares; Melo Sobrinho, 2008).
As diferenças entre as cooperativas singulares, centrais e confederações
estão previstas no artigo 6º da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971:
As sociedades cooperativas são consideradas: I – singulares, as
constituídas pelo número mínimo de 20 (vinte) pessoas físicas, sendo
excepcionalmente permitida a admissão de pessoas jurídicas que
tenham por objeto as mesmas ou correlatas atividades econômicas das
pessoas físicas ou, ainda, aquelas sem fins lucrativos; II – cooperativas
centrais ou federações de cooperativas, as constituídas de, no mínimo,
3 (três) singulares, podendo, excepcionalmente, admitir associados
individuais; III – confederações de cooperativas, as constituídas, pelo
menos, de 3 (três) federações de cooperativas ou cooperativas centrais,
da mesma ou de diferentes modalidades (Brasil, 1971).

Resumindo, a cooperativa de crédito é uma instituição financeira


formada pela associação de pessoas para prestar serviços financeiros exclusi-
vamente aos seus associados. Os cooperados são ao mesmo tempo donos
e usuários da cooperativa, participando de sua gestão e usufruindo de seus
produtos e serviços. Nas cooperativas de crédito os associados encontram os
principais serviços disponíveis nos bancos, como conta corrente, aplicações
financeiras, cartão de crédito, empréstimos e financiamentos.

COOPERATIVAS DE CRÉDITO SOLIDÁRIO


No contexto das finanças solidárias busca-se uma atuação entre os
atores e organizações locais. As cooperativas de crédito solidário colocam-se
como um arranjo de potencialidade para o financiamento de populações de
baixa renda. Nessas organizações buscam-se princípios voltados para uma
participação e gestão democrática. A atuação dos agrupamentos formados
nesse tipo de organização ocorre no enfrentamento dos problemas, muitas
43
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

vezes pela falta de recursos, que circunscreve um território. Esse tipo de


cooperativa irá atuar para trazer benefícios diretamente aos envolvidos na
sua gestão (Sucupira; Freitas, 2011).
No Brasil as cooperativas de crédito podem atuar para segmentos
distintos, isto é, para o público a que é destinada. Nesse contexto as
cooperativas de crédito podem exercer suas funções a partir de determinados
valores. Nesse sentido, elas adotam os princípios da economia solidária e
agem em um público de baixa renda e uma forma de organização radial. Já as
cooperativas de crédito tradicionais são estruturadas de forma verticalizada,
buscando ganhos de escala (Freitas; Freitas, 2013).
Os benefícios a serem buscados são incrementos da renda, por meio de
recursos que serão acessados para a atividade econômica desenvolvida pelos
cooperados. Esses recursos podem ser provenientes de programas governa-
mentais8 ou de captação própria junto aos cooperados (Sucupira; Freitas,
2011).
Como o cooperativismo apresenta diversos grupos heterogêneos
pode-se observar uma diversidade em formas de atuação, assim como
combinações distintas em termos econômicos e sociais. Nesse sentido, as
cooperativas podem seguir uma linha em que a dimensão econômica tem
preponderância sobre a dimensão social. Dessa forma, as cooperativas de
crédito solidárias originam-se de um modelo que tem influência da atuação
das organizações populares com o objetivo de possibilitar o acesso ao crédito
para as populações excluídas socialmente e economicamente e auxiliar no
desenvolvimento local (Sucupira; Freitas, 2011).
O modelo de cooperativa de crédito solidário é bastante incidente no
meio rural, tendo a agricultura familiar como referência. Dessa forma, alguns
fatores caracterizam uma cooperativa de crédito rural solidário, diferenciando
de uma cooperativa de crédito tradicional, ou seja: i) sua constituição ocorre
endogenamente, isto é, há grande mobilização por parte dos agricultores
familiares e suas organizações representativas, logo a organização política
vem antes da organização econômica; ii) a solidariedade e a cooperação
fazem parte dos princípios estruturantes da organização, não se tornando

8
Por exemplo, na agricultura familiar há o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf), que é um programa de oferta de crédito destinado para os agricultores
familiares com objetivo de financiar o custeio e investimento na produção.

44
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

uma entidade estritamente financeira; iii) a atuação prioriza a aproximação


com os cooperados e flexibilização na concessão de crédito, buscando atender
um maior número de agricultores, especialmente os de menor renda (Freitas;
Freitas, 2013, p. 1.001).
Como as cooperativas de crédito são reguladas pelo Banco Central,
revela-se um ambiente com regras rígidas. O que implica uma conformidade
normativa, exigindo um modelo de governança que atenda às exigências
dos sistema financeiro nacional. Sendo assim, a sustentabilidade de uma
cooperativa de crédito solidário não depende somente da qualidade de
suas relações junto aos seus associados e gestores. A sobrevivência da
organização é condicionada pelo ambiente institucional e pelas estruturas de
governança, que terá relação direta com a capacidade econômica e financeira
da cooperativa (Freitas; Freitas, 2013).

SISTEMA DE FUNDOS ROTATIVOS SOLIDÁRIOS


Historicamente, as camadas populares urbanas e rurais sempre
tiveram dificuldades em acessar crédito, relacionados aos custos financeiros
e dificuldades oriundas das exigências burocráticas e das garantias feitas pelo
sistema de crédito tradicional. Nesse sentido, os movimentos sociais foram
mobilizando experiências e conhecimentos que pudessem viabilizar ações de
crédito para as classes excluídas socialmente, inclusive em termos de políticas
públicas (Santos Filho; Gonçalves, 2011).
A cultura tradicional do crédito, mesmo em determinadas políticas
públicas, baseia-se em avaliações individualizadas e na possibilidade de
geração de renda/lucro de um determinado empreendimento. Neste contexto,
há uma relação de desconfiança entre o emprestador para o tomador de
financiamento. Surgem, no entanto, experiências que têm como escopo oferta
de crédito que possa auxiliar no combate à pobreza e na geração de renda
e trabalho. Essas ações passam a se basear nas relações de proximidade das
comunidades, o associativismo e a cooperação entre os atores das localidades.
A solidariedade emerge como relevante fator (Santos Filho; Gonçalves, 2011).
Nesse contexto, o sistema de Fundos Rotativos Solidários (FRSs) mobiliza
recursos que podem ser monetários ou não. Sua atuação ocorre de forma
compartilhada, gerida por seus apoiadores, executores e beneficiários. Há um
compromisso devolutivo dos recursos acessados por parte dos beneficiários,
45
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

mas ocorre de forma flexível e acordada. Tem como destino principal


atividades produtivas e a estratégia da instituição precisa estar relacionada
com o contexto local, isto é, a necessidade e realidade de cada localidade
é que demandará a forma de efetivar a tecnologia social estabelecida
(Barreto, 2016).Complementando, Santos e Gonçalves (2011) argumentam
que os fundos são formas coletivas de poupança, geridos por organizações
da sociedade civil ou comunitárias. O objetivo dos fundos é apoiar projetos
associativos e comunitários na produção e comercialização de bens e serviços.
É importante ressaltar que um princípio dos FRSs é a gestão compartilhada
dos atores envolvidos, que podem ser desde as instituições de apoio (públicas
ou privadas) até os beneficiários.
Os FRSs podem ter uma característica mista. Desta forma, há a gestão
dos recursos de ações rotativas para as pessoas que são integrantes do fundo.
A outra ação é de fomento, também considerado rotativo, mas que engloba
pessoas e grupos que não fazem parte do fundo.
Os FRSs estão ancorados em princípios comunitários de ações de
reciprocidade presentes nos movimentos associativos. Podem estabelecer
relações de troca de produtos entre si, mutirões para execução de obras, por
exemplo, construção de cisternas nas zonas rurais no combate à seca. Famílias
participantes do fundo recebem recursos para a construção de uma cisterna.
A comunidade escolhe a dinâmica da família contemplada e um mutirão pode
ser estabelecido para ajudar na construção da cisterna. O pagamento pode
ser feito em pequenas parcelas, por meio da venda de parte da produção ou
criação de animais. Depois de um valor pago, inicia-se a construção de outra
cisterna e o processo reinicia, baseado em um ciclo (Santos Filho; Gonçalves,
2011).
Quando nos fundos são utilizados recursos monetários, estes podem
ser destinados a um indivíduo ou família, que pode comprar máquinas,
equipamentos ou insumos. Depois do processo da produção e venda o recurso
monetário é devolvido para o fundo, que será destinado para outro indivíduo
ou família. O fundo não monetário pode ocorrer de diferentes formas. Um
exemplo é o chamado banco de sementes, isto é, grupos de agricultores se
organizam para armazenar sementes de suas colheitas para desenvolver
estoque, plantios posteriores e/ou auxiliar outras famílias. Um outro exemplo
46
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

de FRS é em relação a animais. Uma família recebe animais para criação, que
podem ser caprinos. Depois da cria uma parte é entregue à gestão do fundo
para destinar para outras famílias (Barreto, 2016).
A gestão do FRS tem como premissa uma gestão com a participação
de todos os atores, instituições, associações e beneficiários. Nesse contexto,
quando uma família adere ao fundo ela assina um termo de adesão. Esses
mesmos grupos precisam elaborar um regimento para estabelecer o
funcionamento do fundo. Há também reuniões a serem programadas, assim
como exercício do controle e fiscalização do processo, inclusive contábil.
Um comitê de gestão pode ser criado, inclusive, por meio do regimento que
vai amparar as escolhas das famílias aptas a entrar ou não em um fundo. É
importante até que esses fundos que vão atuar em certas localidades tenha a
valorização das identidades culturais destes espaços (Santos Filho; Gonçalves,
2011). Entidades que podem estar envolvidas são associação de moradores,
sindicatos, cooperativas, redes de produção, grupos religiosos, organizações
sociais, ONGs, instituições públicas, entre outras.
A própria comunidade tem a responsabilidade de gerir o fundo,
resgatando práticas já existentes nas organizações populares. Estão presentes
entidades da sociedade civil e organizações comunitárias, nas quais as ações
são para apoiar projetos de produção e comercialização de bens e serviços.
Os recursos investidos podem ter prazos mais flexíveis para reembolso,
conforme a realidade social e econômica de cada comunidade. O objetivo
é estabelecer condições de crédito, seja monetário ou de mercadoria, mais
baratos, de forma mais solidária e democrática, auxiliando o desenvolvimento
local (Santos Filho; Gonçalves, 2011).
Em um estudo para mapear as experiências dos FRSs foram delineadas
três categorias de classificação das experiências. Sendo assim, segundo
Barreto (2016, p. 101), foram elas: i) entidades de fomento, quando as
instituições incentivam grupos à autogestão ou à formação de iniciativas
de pequenos fundos rotativos. Os incentivos podem ser desde repasse de
recursos financeiros a ações de formação e assessoria; ii) entidades gestoras
que realizam a gestão dos recursos dos fundos rotativos, mas também podem
oferecer formação e assistência técnica; iii) entidades de apoio e fomento, que
realizam a gestão dos fundos rotativos e que acabam estimulando a criação
de outros.
47
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

É importante ressaltar que o contrato que é estabelecido entre o


beneficiário e o FRS pode ocorrer por meio de um termo de compromisso.
O beneficiário depois do tempo estabelecido devolverá voluntariamente o
recurso que foi combinado, monetário ou não, ao grupo de participantes da
ação. Outra questão é que a não devolução do valor devido não implica ações
judiciais. Dependendo dos motivos, pode ocorrer alguma sanção estipulada
pelo grupo participante do fundo ou a busca de renegociação (Barreto, 2016).
É relevante observar que várias entidades participam de ações de
fomento na constituição de FRS. Nesse sentido, o Centro de Assessoria
Multiprofissional, em parceria com a Secretaria Nacional de Economia
Solidária, do Ministério do Trabalho e Renda (Camp, 2017), elaboraram uma
cartilha para auxiliar na criação de um FRS. Dessa forma, é possível elencar
algumas ações desse material. São eles:
A. Decisão: a iniciativa de constituição de um fundo acontece pelo
interesse das pessoas ou grupos de determinada comunidade ou
localidade. Isso passa por um processo de reunião, conversa e
mobilização para análise de potencialidades, apontando limites e
desafios. O coletivo tem que se deparar com questões como “quais
as necessidades”, “objetivos” e propósitos”.
B. Elaboração de oficinas: nessas atividades o objetivo é entender
a motivação e demandas das pessoas envolvidas. Buscar
aproximação entre os grupos. Trabalhar com a ideia do coletivo
e os significados de economia solidária e a autogestão. Abordar
a diferença entre finanças solidárias e as finanças do sistema
tradicional capitalista. Explicar o que é e como funciona um fundo
solidário.
C. Identificando a identidade do grupo: nessas ações busca-se a
construção do histórico do grupo. Elementos que podem estar
presentes, tais como nome do grupo, origem, motivações e
necessidades, assim como formas de mobilização.
D. Construção das regras: processo de elaboração do regimento
interno. É necessário estabelecer as regras de funcionamento
do fundo. Precisa conter a finalidade do fundo, quem serão os
beneficiários e ações que serão apoiadas pela organização. Tratar
da abrangência de atuação, prazo de funcionamento, regras de
adesão e exclusão dos integrantes, regras dos empréstimos. É
necessário constar no documento explicações de como será a
guarda dos recursos, como serão distribuídas as tarefas, que tipo de

48
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

recursos serão mobilizados pelo fundo e as fontes desses recursos.


No fundo pode se constituir uma comissão gestora e estabelecer as
funções de seus integrantes, assim como seus mandatos.
E. Natureza jurídica do fundo: decidir se vai ser uma experiência
informal, vincular o CNPJ de outra instituição ou se vai constituir
uma personalidade jurídica.
F. Instrumentos de controle: de que forma será realizado o exercício
do controle por parte dos integrantes e parceiros do fundo. Como
exemplos: atas de reuniões como formas de divulgação; ficha de
cadastro das pessoas do grupo; termo de adesão com a ciência
e compromisso dos princípios e regras do fundo, e o termo de
compromisso, que é uma espécie de contrato dos beneficiários
que farão os empréstimos contento as informações de seu
funcionamento.
G. Controle de caixa e prestação de contas: elaborar um controle de
caixa para o exercício das prestações de contas ao envolvidos para
que se tenha um processo transparente.
H. Elaboração de um plano de ação: elaborar ações de planejamento
para o funcionamento de fundo. Nessas ações é importante que a
gestão se faça sempre com acompanhamento e avaliação do fundo
(Camp, 2017).

BANCOS COMUNITÁRIOS DE DESENVOLVIMENTO


O uso da expressão Bancos Comunitários de Desenvolvimento (BCDs)
tem sua origem em um projeto iniciado no bairro Conjunto Palmeiras,
em Fortaleza, no Ceará, uma iniciativa dos moradores para um projeto de
desenvolvimento territorial que se iniciou em 1998. O bairro englobava
uma população de cerca de 40 mil habitantes. O BCD criado tem como
denominação Banco Palmas (Cançado et al., 2015).
A consolidação dos bancos comunitários ocorreu a partir de 2003 com
a criação do Instituto Palmas de Desenvolvimento e Economia Solidária,
estabelecendo parcerias com instituições públicas e privadas, junto com o
envolvimento de entidades de apoio e fomento. O Instituto atua na difusão
de tecnologias sociais e metodologias desenvolvidas pelo Banco Palmas (Rigo;
França Filho; Leal, 2015).
49
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

Seguindo processo de fortalecimento para as ações de desenvolvimento


dos BCDs houve a criação da Rede de Bancos Comunitários, a partir dela
possibilitando a troca de experiências e atuações de forma conjunta (Cançado
et al., 2015). Informações, saberes, orientações podem ocorrer com maior
fluidez por meio da rede.
No site do Instituto o BDC é apresentado com seguinte significado:9
Bancos Comunitários são serviços financeiros solidários, em rede, de
natureza associativa e comunitária, voltados para a geração de trabalho
e renda na perspectiva de reorganização das economias locais, tendo
por base os princípios da Economia Solidária. Seu objetivo é promover
o desenvolvimento de territórios de baixa renda, através do fomento à
criação de redes locais de produção e consumo. Baseia-se no apoio às
iniciativas da economia popular e solidária em seus diversos âmbitos,
como: de pequenos empreendimentos produtivos, de prestação de
serviços, de apoio à comercialização e o vasto campo das pequenas
economias populares (Instituto Palmas, 2020).

Pelo site ao verificar o mapa da Rede de Bancos Comunitários pode-se


contabilizar a existência de 119 bancos. O Instituto Palmas apresenta as
seguintes características de um BCD: i) Ação endógena, isto é, o BCD deve ser
desenvolvido pela própria comunidade, sendo esta a gestora; ii) Atua com
duas linhas de crédito, uma em reais e outra em moeda social circulante; iii)
Atua em locais com grande vulnerabilidade social e econômica.
Os BCDs são uma das alternativas para a democratização do acesso aos
recursos financeiros para uma camada da sociedade. O banco pode oferecer
uma série de serviços, tais como: microsseguros, linhas de microcrédito,
moedas sociais, poupanças coletivas, correspondência bancária, entre outros
(Leal; Rigo; Andrade, 2016). O uso desses instrumentos pode estimular
a economia local, pois os recursos são mobilizados dentro da própria
comunidade.
Como já referido, ao longo dos anos foi se constituindo uma série de
bancos comunitários no Brasil. Também começou a se observar um processo
de institucionalização por meio de políticas públicas. Em 2005 o governo
federal do Brasil, por meio da Secretaria Nacional de Economia Solidária
do Ministério do Trabalho e Emprego (Senaes/MTE) lança uma proposta

9
Disponível em: https://www.institutobancopalmas.org/o-que-e-um-banco-comunitario/

50
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

de fomento à criação de Bancos Comunitários. Em 2006 foi criado o Banco


Popular do Brasil (BPB) com iniciativas de fomento e funcionamento dos BCDs.
A parceria com BPB foi por meio de aporte financeiro, que iniciou com subsídio
inicial de R$ 50 mil, chegando a R$ 700 mil em 2009 na carteira de crédito
do Banco Palmas. Depois da experiência do BPB foram observados outros
fundos para o suporte dos Bancos Comunitários. Em 2011 já havia aporte
de R$ 3 milhões, tendo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) como relevante instituição que se inseriu no processo em 2010.
Também ocorreu a participação da Caixa Econômica Federal (CEF) a partir
deste período, ressaltando-se que a CEF é a instituição financeira responsável
pelo pagamento de uma série de programas sociais, inclusive o Bolsa Família
(Cançado et al., 2015).
Para a instalação e sustentabilidade de um BCD faz-se necessária a
constituição de parcerias que podem ocorrer por meio de órgãos públicos,
tais como prefeituras e secretarias, ou instituições privadas como ONGs,
associações de moradores, microempresários, sindicatos, instituições
religiosas, movimentos de classe, movimentos sociais, entre outros (Leal;
Rigo; Andrade, 2016). Essas parcerias dependem do grau de identidade social,
econômica e cultural existente nas localidades.
Quando um BCD se torna um correspondente bancário viabiliza-se
como um posto descentralizado de um banco comercial e oferece alguns dos
serviços ofertados pelos bancos. Com isso, o BCD é remunerado por oferecer
alguns dos serviços dos bancos comerciais. Esse instrumento é importante
para a comunidade, pois muitas vezes uma agência tradicional fica distante
dessas comunidades vulneráveis. Vale ressaltar que para o funcionamento dos
serviços de um BCD há a necessidade de pessoas qualificadas para atuar em
áreas relacionadas à oferta de crédito, além de assessoria para os grupos que
pretendam contrair tais financiamentos (Cançado et al., 2015).
A participação é um elemento importante no BCD, pois possibilita a
disseminação do funcionamento do banco e suas possibilidades em termos
de desenvolvimento local. A participação tem um potencial de estreitar as
relações das organizações envolvidas com a comunidade e estabelecer um
processo de aprendizagem em termos de educação financeira, assim como
estimular os aspectos de cooperação e solidariedade entre os participantes
(Leal et al., 2016).
51
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

O processo de possibilitar à população local acesso ao crédito cria um


potencial de promoção na capacidade de produção, de geração de serviços
e de consumo territorial, ou seja, os recursos mobilizados tendem a ficar
na localidade da atuação do banco comunitário. São financiamentos de
setores produtivos ou de prestação de serviços locais, assim como no próprio
consumo. No contexto, a ação dos BCDs tem potencial na construção de
redes locais de economia solidária, por meio de articulação entre produtores,
prestadores de serviços e consumidores locais (Cançado et al., 2015).
Estudo realizado sobre os BCDs da região Nordeste demonstrou que os
bancos estão situados em territórios que estão em condições de pobreza em
municípios pequenos em termos populacionais (10 a 30 mil habitantes), ou
em bairros periféricos das grandes cidades (Leal; Rigo; Andrade, 2016).
Os BCDs partem de uma premissa em gestão compartilhada e solidária.
Nesse sentido, há a figura do Conselho Gestor, que é órgão de deliberação das
ações por parte do banco. O Conselho pode ser composto por indivíduos do
território (representantes dos segmentos sociais do território), por membros do
BCD, por representantes de órgãos públicos locais e entidades parceiras. Outra
estrutura organizacional que pode se constituir em um BCD é o Comitê de
Análise de Crédito, que tem a função de analisar e decidir sobre os pedidos de
crédito. De maneira geral a composição pode ser feita por agentes de crédito,
representantes das entidades de gestores e representantes de organizações
locais que integram o conselho gestor (Leal; Rigo; Andrade, 2016).
A capacidade de prover recursos pelos BCDs está relacionada com as
fontes dos recursos a serem empregados. Entre as fontes de recursos pode-se
destacar: recursos oriundos de programas de créditos governamental em
todas as esferas da federação; programa de crédito de bancos; doação da
entidade gestora; doações de empresas privadas; fundos governamentais;
captação por meio de eventos locais (Leal; Rigo; Andrade, 2016).
O Instituto Palmas apresenta algumas orientações para a constituição
de um banco comunitário. Pode-se destacar:

i. Para operar Crédito Produtivo, com uma carteira própria, a


entidade gestora do Banco Comunitário deve ter o título de Oscip
de Microcrédito, ou estar conveniada com uma entidade que já
possua esse título (Programa Nacional de Microcrédito Produtivo
Orientado-PNMPO/ LEI Nº 11.110, de 25 de abril de 2005);
52
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

ii. Os Bancos Comunitários que não tenham título de Organização


da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) só devem operar
crédito produtivo com juros no valor máximo de 1% ao mês (Lei da
Usura, de 7 de abril de 1933). Alguns Bancos Comunitários operam
crédito produtivo em parceria com os bancos públicos;
iii. O Banco Comunitário pode atuar, também, como Correspondente
Bancário. Para isso deve procurar uma agência da Caixa Econômica
ou Banco do Brasil;
iv. Todo Banco Comunitário deve ter como entidade gestora uma
organização da sociedade civil, que responde legalmente pelo
Banco Comunitário. Ele é autônomo e se organiza de forma
autogestionária.10

MOEDAS SOCIAIS
Para estimular a produção e o consumo local, os BCDs lançam a moeda
social circulante local. Para seu funcionamento precisa passar antes por um
processo de legitimação, por meio de sensibilização da comunidade local. Há
também uma perspectiva de simbologia por parte da localidade na história e
identidade de cada território. Na lógica do uso da moeda social a economia se
pautaria em um protagonismo do social sobre a lógica mercantil (Rigo, 2014).
Muitos sistemas de moeda social têm seu surgimento por causa dos clubes
de troca,11 que se originaram na Argentina em 1995, tornando-se uma opção
na crise dos anos 2000 naquele país (Rigo; França Filho, 2017).
A moeda social é complementar à moeda fiduciária oficial e em relação
às funções clássicas de uma moeda sua característica se dá como meio de
troca. A adesão ao uso da moeda social tem deve voluntária e tem como
propósito a busca da inclusão social.
O processo de circulação da moeda pode ocorrer da seguinte forma:
i) Os usuários aderem ao sistema conforme buscam empréstimos, por meio
de recebimento de parte do salário ou quando trocam diretamente a partir
de reais no BCD; ii) a moeda é usada nos estabelecimentos cadastrados na

10
Disponível em: https://www.institutobancopalmas.org/como-implantar-um-banco-comunitario/
11
Os clubes de troca são grupos de comunidade que se reúnem para prover troca de produto.
Podem ocorrer por meio de troca direta de produtos, ou seja, escambo. Para facilitar a
intermediação das trocas alguns clubes lançam a moeda social.

53
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

ação na localidade; iii) Os comerciantes que recebem as moedas devolvem


por meio do oferecimento de troco ou na compra de mercadorias em outros
estabelecimentos (Rigo, 2014 p. 45).
Nesse sentido, como a moeda tem o uso restrito ao local determinado,
a movimentação da economia fica no próprio território, no entanto, para a
sustentabilidade da dinâmica, é necessário a participação do uso da moeda
por novos empreendimentos.
Para a instituição de moeda social no território é importante estabelecer
um processo de sensibilização e educação para a aceitação e entendimento de seu
uso. A sensibilização pode ser feita por meio de reuniões, palestras e instrumentos
de uso de comunicação local, como rádio comunitária ou carros de som, material
de comunicação, capacitações (oficinas e cursos) (Leal; Rigo; Andrade, 2016).
A sensibilização também passa pela confiabilidade do uso da moeda,
pegando o exemplo do Banco Palmas, na qual sua moeda também se chama
“Palmas”, estabeleceu mecanismos de segurança. São eles: i) número de
série pelo qual são cadastrados; ii) marca d’água, que dificulta a impressão;
iii) código de barras; iv) marca para leitura ultravioleta (Rigo; França Filho,
2017, p. 177). Os autores ainda salientam que outro mecanismo de segurança
é o sistema de lastro, ou seja, para cada “1,00 (um)” palma que circula no
território precisa ter o correspondente de “1,00 (um)” real nos cofres do
Banco Palmas ou em conta bancária específica. Ressalta-se que esta também
é uma exigência do Banco Central do Brasil.
De qualquer forma, vale salientar que o uso da moeda social tem uma
simbologia de valorização do local, a partir do estímulo de seu consumo
interno. A moeda, no entanto, é mais um mecanismo dentro de um sistema
que busca promover o desenvolvimento de um território. Dessa forma, moeda
social pode apresentar uma carga simbólica e política no contexto de uma
localidade (Rigo; França Filho, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A elaboração deste texto teve o intuito de discorrer sobre alguns
mecanismos que fazem parte das finanças solidárias. As tecnologias sociais das
cooperativas de crédito solidário, dos fundos rotativos solidários e dos Bancos
Comunitários de Desenvolvimento são relevantes alternativas de crédito aos
empreendimentos econômicos solidários.

54
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

A viabilidade desses empreendimentos tem um potencial de fomento


ao desenvolvimento territorial, amparado na busca pela inclusão social e
solidariedade. Os mecanismos das finanças solidárias isoladamente não
conseguem atingir seus propósitos. Assim sendo, essas ações precisam
ser pensadas e mobilizadas dentro de uma engrenagem maior, com o
envolvimento e participação de diversos atores e instituições da ordem pública
e privada.
Deve-se buscar soluções para sustentabilidade dos empreendimentos
fundamentados na economia solidária, pois os desafios são grandes, na
medida em que a sociedade brasileira convive com um sistema econômico
excludente e individualista. Para muitos, falar de gestão democrática,
participativa ou compartilhada é algo incompreensível. Valores como
solidariedade ou protagonismo do social sobrepondo-se ao econômico são
premissas em formas de ações ou políticas que busquem o desenvolvimento
de um território ou país. Sendo assim, as ações que envolvem as finanças
solidárias, e consequentemente a economia solidária, devem ser vistas
também como movimento político de resistência na busca de uma sociedade
mais igualitária.

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56
CAPÍTULO 2 – FINANÇAS SOLIDÁRIAS
Carlos Frederico Bom Kraemer

RIGO, A. S.; FRANÇA FILHO, G. C. O paradoxo das palmas: análise do (des)uso da


moeda social no “bairro da economia solidária”. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v.
15, n. 1, p. 169-193, mar. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cebape/
v15n1/1679-3951-cebape-15-01-00169.pdf
SANTOS FILHO, C.; GONÇALVES, A. F. Fundos rotativos solidários: dilemas na
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Revista Gestão Pública: Práticas e Desafios, Recife, v. 2, n. 4, p. 104-123, jun. 2011.
Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/gestaopublica/
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SINGER, P. Economia solidária. Entrevista concedida a SANTOS, E.; MARIANO, J.;
PASSANESI, P. Revista Gerenciais, São Paulo, v. 2, p. 3-5, set. 2003. Disponível
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SOARES, M. M.; MELO SOBRINHO, A. D. Microfinanças: o papel do Banco
Central do Brasil e a importância do cooperativismo de crédito. Brasília: BCB,
2008. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/htms/public/microcredito/livro_
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SUCUPIRA, G. I. C. S.; FREITAS, A. F. Cooperativismo de crédito solidário: um
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do Prodema, Fortaleza, v. 6, n. 1, p. 23-40, mar. 2011. Disponível em: http://www.
revistarede.ufc.br/rede/article/view/119

Sites pesquisados
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: https://www.ibge.gov.br
Instituto Palmas. Disponível em: https://www.institutobancopalmas.org/

57
C apítu lo 3

Política Pública
de Economia Solidária

Thais Soares Kronemberger


Professora-adjunta do Departamento Multidisciplinar do Instituto de Ciências
Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal Fluminense (UFF) Volta Redonda.
Integrante da Incubadora Tecnológica de Empreendimentos de Economia Solidária
do Médio Paraíba (InTECSOL) e pesquisadora do Laboratório de Estudos em Trabalho,
Organização e Sociedade (Latos) da UFF. Atua como voluntária na Cáritas Arquidioce-
sana do Rio de Janeiro desde 2010 pelo Programa de Estudos em Gestão Social (Pegs)
da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação
Getulio Vargas (FGV). thaissk@id.uff.br
INTRODUÇÃO

P
ode-se afirmar que o tema sobre Política Pública de Economia Solidária
é recente no cenário brasileiro. No âmbito nacional, a criação da
Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), integrante do
então Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), sob a liderança de Paul Singer,1
é considerado um marco para essa área do país, cuja finalidade consistia em
apoiar os trabalhadores sem emprego a se organizarem coletivamente em
cooperativas de produção autênticas e autogeridas (Singer, 2014).
As cooperativas são consideradas a unidade típica da economia
solidária, cujos princípios organizativos são: a posse coletiva dos meios de
produção; a gestão democrática como forma organizativa e de tomada de
decisão; a divisão da receita líquida entre os membros conforme discussão
e negociação em assembleias e, por fim, a destinação do excedente anual
denominado “sobra” por critérios estabelecidos entre os cooperados (Singer,
2000).
Importante salientar que a evidência na última década da economia
solidária no Brasil e em outros países das Américas e da Europa é reflexo
do agravamento da crise econômica e financeira em 2008, que promoveu a
estagnação e quando não a recessão da economia mundial. Como resultado
tem-se o aumento do desemprego e da pobreza, o que pode ser considerado
decorrência das políticas de “austeridade” do sistema financeiro global, cujo
objetivo é o corte da despesa pública somado ao caráter de focalização das
políticas sociais tendo como público beneficiário os mais pobres e necessitados
(Singer, 2014).

1
Possuía Doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e foi professor titular
da mesma instituição. Teórico do mundo de trabalho de inspiração marxista com diversos
livros, artigos publicados sobre economia solidária e temas afins. Crítico ao neoliberalismo,
atuou como defensor das cooperativas de trabalhadores como forma de organização coletiva
e autogestionária para o enfretamento do desemprego e da exclusão social. Contribuiu com a
fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual foi filiado, tendo histórico de militância
junto aos movimentos sindical e social (Nagem; Silva, 2013). Exerceu os cargos de Secretário
Municipal de Planejamento de São Paulo no período 1989-1992 e Secretário Nacional de
Economia Solidária durante os anos 2003 a 2016. Faleceu em 2018 aos 86 anos.

59
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

Cabe recordar que o surgimento da economia solidária no país ocorre


como reação dos movimentos sociais à crise do desemprego em massa que
teve início nos anos 80 e se intensificou a partir de 1990. É desse período a
fundação da Associação Nacional de Trabalhadores de Empresas Autoges-
tionárias e Participação Acionária (Anteag), fruto da articulação de diversas
empresas autogestionárias com o apoio de assessores sindicais a operários.
As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs) também
surgem nesse período como parte da atuação da universidade na organização
da população mais pobre em cooperativas de produção ou de trabalho. A
formação da Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Unisol)
também é desse período, tendo recebido o apoio na sua fundação da
Cáritas, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do sindicato
de metalúrgicos do ABC e das prefeituras municipais, como Porto Alegre,
Blumenau e Santo André (Singer, 2000).
Tal contexto demonstra a relevância que a economia solidária tem
adquirido na reorganização do mercado de trabalho e servido como alternativa
para a geração de renda, sobretudo em um cenário de crise econômica e
enfrentamento da pobreza. Pelo trabalho, a economia solidária estabelece
novas formas de produção, reprodução e distribuição social a partir do acesso
a bens e recursos públicos (Praxedes, 2009).
Como política pública, a economia solidária significa o reconhecimento
à condição de cidadania pela dimensão do trabalho considerado um direito
social pela Constituição Federal de 19882 (Brasil, 1988). Como uma dimensão
da política social significa estar direcionada para a garantia da reprodução
dos indivíduos e das coletividades, ou seja, na promoção do bem-estar e da
proteção social de uma sociedade (Fleury; Ouverney, 2008).
A política pública em economia solidária é considerada uma política
de desenvolvimento caracterizada pelo fomento de novas forças produtivas
e introdução de novas relações de produção que viabilizem um processo
sustentável de crescimento econômico, com preservação do meio ambiente
e redistribuição dos ganhos aos marginalizados. Compete, dessa forma, ao

2
“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição” (Brasil, Presidência da República. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988. Capítulo II dos Direitos Sociais, artigo 6º, 1988).

60
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

Estado, atuar na provisão de um modelo de desenvolvimento capaz de reduzir


as desigualdades e promover a emancipação social, a exemplo da configuração
de ações públicas transversais em várias áreas que promovam o bem-estar da
população (Praxedes, 2009; Singer, 2004).
Inserido nesta discussão, o texto em tela tem como principal objetivo
discorrer sobre a temática da política pública de economia solidária a partir
dos seguintes tópicos: (1) sucinta apresentação do conceito de políticas
públicas com base nas principais referências bibliográficas sobre o tema;
(2) discussão da economia solidária como política pública a partir de três
vertentes: relatórios das Plenárias Nacionais do Fórum Brasileiro de Economia
Solidária (FBES); relatórios e documentos de referência das Conferências
Nacionais de Economia Solidária; texto do Projeto de Lei nº 137, de 2017,
sobre a política pública nacional de economia solidária e, por último, (3)
breves considerações sobre os desafios da política de economia solidária no
país.

POLÍTICAS PÚBLICAS: O QUE SÃO?


Antes de abordamos a temática da economia solidária faz-se necessário
compreender o que é uma política pública. Isso nos ajudará na discussão sobre
as diretrizes, conjunto de ações, estrutura da gestão, modelo de configuração
da política pública em economia solidária no país.
Primeiramente é importante considerar que não há uma definição única
de política pública. “Não existe uma única, nem melhor, definição sobre o
que seja política pública” (Souza, 2006, p. 24). O termo é impreciso e admite
diversas definições (Rua, 2013). Há também o argumento que “qualquer
definição de política pública é arbitrária” (Secchi, 2013, p. 2).
A palavra “política” guarda relação com orientações para a tomada
de decisão e o estabelecimento de ações. Exemplo: a política das empresas
tem adotado a flexibilização dos contratos de trabalho. Quando vinculada ao
termo “política pública” trata-se de um “conteúdo concreto e do conteúdo
simbólico de decisões políticas, além do processo de construção e atuação
dessas decisões” (Secchi, 2013, p. 1). Por exemplo: a política de trabalho e
renda no país deve ser melhorada.
61
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

A definição também pode ocorrer pela existência de um problema


público. Nessa ideia de política pública estão presentes dois aspectos
fundamentais: a intencionalidade pública e a resposta a um problema público.
Ou melhor: “a razão para o estabelecimento de uma política pública é o
tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente
relevante” (Secchi, 2013, p. 2). Por exemplo, o desemprego é um problema
público que segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) referentes aos últimos três meses do ano de 2019 atinge 11,6 milhões
de brasileiros.3 Outro problema a ser destacado é a precarização do mercado
de trabalho refletida na crescente informalidade que atinge cerca de 38,2
milhões de trabalhadores informais de acordo com a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE realizada em 2018.4
A ênfase nas definições sobre política pública também está presente
na finalidade e nas decisões que as configuram, como: (1) um conjunto de
ações estabelecidas para lidar com o problema ou uma questão de interesse
comum; (2) curso de decisões inter-relacionadas referente aos objetivos
e meios para atingi-los; (3) processos políticos que delimitam recursos,
forma de distribuição e modelo de gestão; (4) estratégias construídas pelos
diversos grupos – agentes públicos, representações da sociedade, governo,
empresariado – ao longo do processo de tomada de decisão (Rua, 2013).
Sobre este último aspecto é importante destacar que a condução de uma
política pública pela ação governamental envolve os meios político, econômico
e social, ação essa por vezes complexa e conflituosa, além da relação entre o
governo e os diversos atores já exemplificados (Viana, 1996).
Ainda sobre a compreensão de política pública, alinhada à discussão
do parágrafo anterior, tem-se que podemos conceituá-la como: (1) fluxo
de decisões públicas, orientado a manter o equilíbrio social ou até mesmo
a existência de desequilíbrios que modifiquem a realidade; (2) decisões
permeadas por valores, interesses, ideias, concepções de mundo que acabam
por influir na condução da ação pública; (3) estratégias que visam a atingir

3
Informações disponíveis em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php. Acesso em:
28 abr. 2020.
4
Informações disponíveis em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-
agencia-de-noticias/noticias/23325-desafios-do-mercado-de-trabalho-alimentam-debate-
sobre-direitos. Acesso em: 28 abr. 2020.

62
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

finalidades a serem defendidas pelos diversos atores que integram o fluxo da


política; (4) dimensão operacional com definição de objetivos, conjunto de
ações, metas, resultados a serem alcançados (Saravia, 2006).
O entendimento sobre políticas públicas também pode ser tecido a
partir de três questões, visto não existir um consenso entre os estudiosos
quanto as suas respostas: 1. apenas o Estado elabora políticas públicas?; 2. a
política pública também diz respeito à omissão ou falta de atenção sobre um
determinado assunto?; 3. políticas públicas são aquelas realizadas somente
em âmbito macro, estruturante, pertencente a um nível estratégico ou
também podemos considerá-las como diretrizes operacionais? (Secchi, 2013).
Buscando desatar o que Leonardo Secchi (2013) denomina de “nó
conceitual” nos estudos de políticas públicas, as respostas para as questões
anteriores podem ser um caminho didático interessante para a compreensão
desse assunto.
Em relação à primeira questão, pode-se dizer que há duas abordagens
reconhecidas sobre políticas públicas. A primeira delas, denominada estatista
ou estadocêntrica, considera a política pública exclusividade do Estado na
condução da ação pública expressa na legislação, recursos financeiros e
humanos, linhas de crédito, tributos.
A segunda, intitulada multicêntrica ou policêntrica, percebe a política
pública como não condicionada ou subordinada ao Estado, ou seja, inclui uma
pluralidade de atores como protagonistas na elaboração das políticas públicas:
organizações privadas, terceiro setor, organismos multilaterais, por exemplo,
a Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Rua, 2014; Secchi, 2013).
Inserida na abordagem multicêntrica podemos destacar a temática
sobre redes de políticas públicas. Para a economia solidária torna-se relevante
esse assunto como estratégia de produção, comercialização, distribuição e
consumo dos produtos, além de contribuir para a articulação de diversos
atores sociais e agentes públicos.
Por rede entende-se uma estrutura policêntrica com a participação
de “diferentes atores, organizações ou nódulos vinculados entre si por meio
do estabelecimento e manutenção de objetivos comuns” (Fleury; Ouverney,
2007, p. 9). Redes de políticas podem ser compreendidas como um conjunto
de relações estáveis entre uma diversidade de atores, caracterizadas por
63
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

uma gestão horizontal e independente, em que seus membros compartilham


interesses comuns e trocam entre si recursos, além de estabelecerem um
formato cooperado de ações (Secchi, 2013).
Um dos exemplos, neste sentido, é a Rede de Gestores de Políticas
Públicas em Economia Solidária,5 cuja finalidade é fomentar o desenvolvi-
mento da economia solidária no Estado e fortalecer a participação social nas
decisões sobre as políticas públicas. Seus principais objetivos consistem em: (1)
constituir uma agenda comum para a institucionalização de políticas públicas
de economia solidária no país; (2) ampliar a articulação entre os agentes
públicos e atores sociais no campo da economia solidária; (3) fortalecer a
interlocução entre as esferas de governo municipal, estadual e federal na
integração de estratégias que possam estruturar as políticas públicas em
economia solidária; (4) contribuir para a formação de gestores públicos em
economia solidária, como também ampliar os espaço da economia solidária
em programas de governo e estruturas administrativas do Estado.
Podemos destacar algumas características na configuração das redes,
como (1) relações de interdependência entre organizações e indivíduos; (2)
estruturas flexíveis que moldam a dinâmica da própria rede; (3) ações de
cooperação em torno de um problema e uma solução compartilhada; (4)
preservação da diversidade dos atores mesmo com a singularidade constituída
pela rede; (5) racionalidade comunicativa para a construção de consensos em
paralelo a uma ação instrumental para alcance do objetivo comum (Fleury;
Ouverney, 2007).
Como exemplo, temos a Justa Trama. Esta última constitui-se em
uma rede de empreendimentos de economia solidária na produção do
algodão agroecológico e demais produtos oriundos desta matéria-prima.
Ao total, são seis cooperativas de produção que formam uma central única
com a participação de trabalhadores e trabalhadoras da economia solidária
representados por agricultores, costureiras, artesãos, tecedores, coletores,
beneficiadores de sementes. Cada empreendimento que integra a rede é
responsável por uma etapa do processo da cadeia produtiva do algodão que
tem início com o plantio orgânico em Taúa (CE) e Pontaporã (MS), passando
pela fiação e tecelagem em Pará de Minas (MG) até alcançar a confecção

5
Informações disponíveis em: https://www.rededegestoresecosol.org.br/ Acesso em: 27 abr.
2020.

64
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

no município de Porto Alegre (RS), com a produção de roupas, colares,


brinquedos, contando também com a coleta de sementes, cascas de coco
para a confecção de botões em Porto Velho (RO).6
Dando prosseguimento à compreensão de política pública, o segundo
nó conceitual está presente quando definimos política pública pelo que um
governo não faz, ou seja, quando deixa de desenvolver alguma ação que
repercutirá na vida dos cidadãos (Souza, 2006). Por exemplo: a ausência
de um programa municipal de apoio aos catadores de materiais recicláveis
nas áreas de saúde física e mental consistiria em uma política pública, ou
a não criação de um Centro de Referência em Economia Solidária em um
determinado município.
Considerar omissões e negligências dos atores governamentais como
políticas públicas é desconsiderar a sua compreensão como diretriz, um campo
de atividade governamental, uma ação orientada para o enfrentamento de
uma situação de interesse comum que envolve um conjunto de decisões sobre
os objetivos e os meios para atingi-los (Secchi, 2013; Souza, 2006).
Por fim, a resposta para o terceiro nó em torno do conceito de políticas
públicas estaria em considerar somente as diretrizes em âmbito macro, de
caráter estruturante, por exemplo, a Política Nacional de Economia Solidária.
Ou seja, desconsideraríamos outras iniciativas de dimensão intermediária,
como um programa de assistência técnica aos empreendimentos econômicos
solidários ou um plano para recuperação de empresas por trabalhadores
organizados pela autogestão.
É importante considerar que independentemente do nível de operacio-
nalização, a compreensão de política pública está vinculada a uma iniciativa
de enfrentamento de um problema público (Secchi, 2013).
Podemos identificar um problema público pela “diferença entre a
situação atual e uma situação ideal possível para a realidade pública” (Secchi,
2013, p. 10), observando-se que “um problema só se torna público quando
os atores políticos intersubjetivamente o consideram um problema (situação
inadequada), e público (relevante para a coletividade) (Secchi, 2013, p. 10).
Por exemplo: o desemprego, a precarização do trabalho, a pobreza, o acúmulo

6
Informações disponíveis em: https://www.justatrama.com.br/ Acesso em: 27 abr. 2020.

65
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

de resíduos sólidos, a dificuldade de escoamento dos produtos oriundos


da agricultura familiar podem ser considerados problemas que atingem a
população e devem ser enfrentados por políticas públicas.
É também relevante a definição de política pública como um
instrumento direcionado a “colocar o governo em ação e/ou analisar essa
ação e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações”
(Souza, 2006, p. 26). Para isso há uma etapa em que “governos democráticos
traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que
produzirão resultados ou mudanças no mundo real” (Souza, 2006, p. 26).
Esse entendimento nos permite refletir sobre a relevância do tema da
economia solidária como política pública em nosso país, a partir do início
dos anos 2000, com a criação de uma secretaria nacional no âmbito do tem,
cuja finalidade consistiu em contribuir para a reorganização do mercado de
trabalho e o enfrentamento da pobreza (Praxedes, 2009).

ECONOMIA SOLIDÁRIA COMO POLÍTICA PÚBLICA


A economia solidária como área da política pública é considerada uma
estratégia de desenvolvimento para a geração de renda e trabalho. É capaz
de promover a inclusão social e produtiva em áreas urbanas e rurais tendo
como potencial público beneficiário a população de baixa renda e em estado
de vulnerabilidade social (Souza, 2012).
Pela economia solidária um novo modo de produção e distribuição
alternativo ao capitalismo é constituído a partir de empreendimentos
individuais e familiares, associados, como também por empreendi-
mentos autogestionários. A defesa do meio ambiente e do bem-estar dos
consumidores é considerada em oposição ao uso de tecnologias que ameaçam
a biodiversidade, a saúde do consumidor e a autonomia dos produtores
associados (Singer, 2001, 2004).
As formas de organização econômica que compõem a economia
solidária podem ser de produção de serviços, comercialização, finanças
e consumo realizadas pelo trabalho associado e baseadas na propriedade
coletiva com a partilha dos resultados. Também constituem as bases da
economia solidária: a união dos cooperados para o alcance de um objetivo
em comum; a autogestão compreendida pela autonomia do trabalhador e
66
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

tomadas de decisão realizadas coletivamente; a solidariedade como valor


intersubjetivo entre seus membros para alcançar a distribuição justa dos
resultados e o bem comum (CNES, 2014).
Com base em tal concepção, podemos considerar que a economia
solidária é capaz de promover um novo modelo de desenvolvimento distinto
daquele predominante na sociedade capitalista. Em substituição à divisão
entre os proprietários do capital e seus empregados, a maximização do retorno
sobre o capital investido na atividade econômica, o livre funcionamento dos
mercados pela competição somado ao individualismo dão lugar a um tipo de
desenvolvimento construído por cooperativas de trabalhadores sustentadas
em valores de cooperação, ajuda mútua, partilha entre seus membros tanto
dos benefícios quanto dos prejuízos, e controle exercido pelo trabalhador ao
longo do processo produtivo (Singer, 2004).
O potencial da economia solidária também é reconhecido no
espaço público, pois as experiências lidam com questões concretas sobre
determinadas demandas e necessidades sociais que partem da própria
sociedade e podem se articular com instâncias do poder público. As ações
públicas desenvolvidas configuram um novo agir organizacional que visam
à realização de objetivos sociais, culturais e políticos com o econômico
subordinado às demais dimensões e servindo de meio para a realização de
tais objetivos (França Filho, 2004).
Podemos afirmar que uma nova forma de gestão pública passa ser
configurada a partir do protagonismo da sociedade no compartilhamento de
carências, visões e ações que incidem sobre um território. O fenômeno da
economia solidária impulsiona a constituição de esferas públicas de discussão
e deliberação, em que os trabalhadores são integrados socialmente na
resolução de problemas locais que até então não obtiveram a atenção, seja
do setor público seja do setor privado (Mendonça; Gonçalves-Dias; Junqueira,
2012; França Filho, 2004).
No campo político-institucional, com a criação da Senaes em 2003,
o universo da economia solidária no país sofreu mudanças, pois contribuiu
para o crescimento e a disseminação de iniciativas. Entre elas destacamos:
os bancos comunitários, sistemas de trocas locais, cooperativas populares,
associações com vínculos de pertencimento a um território no desenvolvi-
mento de atividades simultâneas de produção, prestação de serviços, finanças
67
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

solidárias; instituição de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares


em diversas localidades, como também a contribuição na atuação do Fórum
Brasileiro de Economia Solidária (FBES) e da Rede Nacional de Gestores de
Políticas Públicas de Economia Solidária (Singer, 2014).
A economia solidária na política pública é constituída por um
conjunto de diretrizes norteadoras para o estabelecimento de programas
e ações públicas com base em (1) preceitos constitucionais de garantia a
uma vida digna como condição de cidadania; (2) finalidade de erradicação
da pobreza, promoção da inclusão social, equidade de gênero e etnia; (3)
defesa a ampliação de oportunidades e melhorias das condições de trabalho
e renda; (4) reconhecimento e fomento a formas de organização da economia
solidária com a criação de instrumentos legais que permitam o acesso ao
crédito e viabilizem fundos públicos; (5) promoção do desenvolvimento
territorial sustentável; (6) viabilização da integração e intersetorialidade de
políticas públicas no fomento dessa área entre os entes federados (União,
Estados e municípios); (7) estímulo à organização e à participação cidadã dos
trabalhadores da economia solidária (Coraggio, 2007 apud Souza, 2012).
No caso brasileiro, os fundamentos e as diretrizes para a construção da
política pública de economia solidária com indicação de seus instrumentos
organizativos e mecanismos de operacionalização da política foram discutidos
nas Plenárias Nacionais de Economia Solidária, sob a organização do FBES,
realizadas no período de 2002 a 2012. Tais fóruns participativos possuem
uma estrutura de organização e deliberação integrada em âmbito estadual
e local com a realização de etapas prévias de discussão como parte de um
constructo para a Plenária Nacional. O FBES, conforme o Relatório da IV
Plenária Nacional, pode ser compreendido como “instrumento do movimento
da Economia Solidária, um espaço de articulação e diálogo entre diversos
atores e movimentos sociais pela construção da economia solidária como
base fundamental de outro desenvolvimento socioeconômico do país que
queremos” (FBES, 2008, p. 7).
São duas as finalidades do FBES decididas em Plenária Nacional e que
possuem relação direta com a elaboração de políticas públicas refletidas
tanto na atuação política do movimento social em economia solidária quanto
na participação em instâncias colegiadas, como conselhos gestores, fóruns,
comitês: (1) atuação na representação, articulação e influência na elaboração
das políticas públicas de economia solidária, além do diálogo com diversos
68
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

atores e movimentos sociais no intuito de evidenciar as reivindicações; (2)


apoio e fortalecimento do movimento da economia solidária (FBES, 2008,
p. 42-43).

Plenárias Nacionais de Economia Solidária


Logo na 1ª Plenária de Economia Solidária, em 2002, já havia o
indicativo de orientações para o formato da política pública de economia
solidária com a construção dos Centros de Referência Públicos como pontos
de disseminação e sensibilização dos trabalhadores em economia solidária. A
proposta consistiu em aliar formação e assistência técnica por meio de cursos,
oficinas que promovessem o conhecimento e as tecnologias aos empreendi-
mentos econômicos solidários (Souza, 2012).
Em 2006, a 4ª Plenária Nacional apontou a política pública como um
instrumento para a promoção do desenvolvimento ao reivindicar a existência
de um marco legal em caráter nacional e como política permanente de Estado.
Os participantes pontuaram a importância de políticas públicas voltadas a
fortalecer e consolidar “redes e cadeias de produção, comercialização e
consumo solidárias, nas áreas de logística, infraestrutura para a criação de
espaços de comercialização e distribuição” (FBES, 2008, p. 13).
Os participantes da 4ª Plenária Nacional consideraram a conquista do
marco legal da economia solidária como uma estratégia a ser perseguida pelo
movimento social juntamente com os eixos de produção, comercialização
e consumo solidários; formação em economia solidária e a criação de um
Sistema Nacional de Finanças Solidárias. As principais ações encaminhadas
pelo fórum consistiram: (1) em uma lei nacional da economia solidária; (2)
alteração, aprovação e efetivação das leis de cooperativismo de acordo com os
princípios de valores da economia solidária; (3) aprovação e instituição de leis
municipais e estaduais de reconhecimento e fomento à economia solidária;
(4) tributação diferenciada para empreendimentos de economia solidária;
(5) regulamentação e ampliação do mercado institucional para produtos e
serviços da economia solidária; (6) articulação do movimento social pelo FBES
junto ao poder Legislativo (FBES, 2008).
Além de contribuir com o fortalecimento do FBES, a criação da Senaes/
MTE também possibilitou a constituição em âmbito nacional da Conferência
e do Conselho em Economia Solidária. Com isso, é importante atentar que
69
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

ao privilegiar espaços públicos participativos para a elaboração da política


pública, uma governança democrática e descentralizada é eleita como
mecanismo de planejamento e estrutura organizativa com a inclusão de
diversos atores sociais e agentes públicos. Tal estrutura segue um modelo que
prioriza a participação social de baixo para cima (bottom-up participation), em
detrimento de um modelo hierárquico (top-down), em que o esforço central
é a resolução de problemas de forma pactuada pela participação direta e
substancial dos segmentos sociais tradicionalmente excluídos nas decisões
públicas (Fung; Wright, 2003).
Em 2012, a 5ª Plenária Nacional também discutiu a política pública
de economia solidária a partir da dimensão do território. Este último é
considerado um espaço físico no qual as relações sociais são estabelecidas
e o que é comum passa a ser valorizado com respeito à diferença pelos
seus membros. O território permite a construção de um sentimento de
pertencimento e laços de identidade entre a população local construídos pelo
diálogo (FBES, 2012).
Com base em tal discussão, a economia solidária é percebida como
uma estratégia de desenvolvimento territorial, sustentável, diverso e solidário,
voltado ao bem viver, mostrando-se capaz de promover a organização
política e social de trabalhadores. Para isso, percebeu-se como necessário:
(1) organizar e fortalecer os fóruns deliberativos locais e microrregionais; (2)
integrar redes de atores para que ações no contexto local sejam promovidas,
os saberes e experiências sejam articulados e a integração econômica seja
estabelecida; (3) criar possibilidades e dar visibilidade a grupos específicos,
como mulheres, indígenas, comunidades tradicionais; (4) integrar o urbano
ao rural e vice-versa como forma de desfazer a dicotomia entre esses dois
espaços (FBES, 2012).
O movimento em economia solidária, conforme documento-síntese
da última Plenária Nacional, destaca a necessidade de (1) integrar territorial-
mente as políticas públicas e realizar o controle social das ações dos governos
municipal, estadual e federal pela participação social em comitês e conselhos
gestores; (2) fomentar políticas de financiamento para a área e constituir
consórcios de desenvolvimento local; (3) estabelecer estratégias de apoio aos
empreendimentos solidários de modo a ampliar as atividades econômicas e
a geração de renda, além de fomentar a criação de novos empreendimentos
solidários (FBES, 2012).
70
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

Importante considerar que ainda não há uma política pública


permanente e consolidada da economia solidária em âmbito nacional, mas
sim alguns programas e ações que beneficiam os agricultores familiares e
comunidades tradicionais, também considerados público da economia
solidária. Entre tais iniciativas destaca-se o Programa Nacional de Alimentação
Escolar (Pnae) e o Programa Nacional de Aquisição de Alimentos (PAA). Ambas
as políticas buscam garantir o acesso aos mercados institucionais pelos
agricultores familiares.
O PAA tem como principais finalidades: (1) possibilitar a inclusão
econômica e social da agricultura familiar pelo fomento à sua produção;
(2) estimular o consumo de produtos oriundos dos agricultores familiares;
(3) promover o acesso à alimentação regular de qualidade à população em
situação de insegurança alimentar e nutricional; (4) promover o abastecimento
de alimentos por meio de compras governamentais, inclusive para garantir
alimentação escolar e abastecimento de equipamentos públicos nos âmbitos
municipal, estadual e federal; (5) constituir estoques públicos de alimentos
produzidos por agricultores familiares, como também (6) apoiar a formação
de estoques por cooperativas e demais organizações formais da agricultura
familiar; (7) fortalecer circuitos locais e regionais, além de redes de comercia-
lização; (8) valorizar a produção orgânica e agroecológica; (9) estimular o
cooperativismo e o associativismo (Brasil, 2012a).
Para o alcance de tais finalidades, o PAA permite a compra de alimentos
pela agricultura familiar com dispensa de licitação e os destina às pessoas
em situação de insegurança alimentar e nutricional, à rede socioassistencial,
às redes públicas de ensino e de saúde, unidades de internação do sistema
socioeducativo, estabelecimentos prisionais, além de órgãos e entidades da
administração pública direta e indireta (Brasil, 2012a).
A mesma lógica aplica-se ao caso Pnae ao reconhecer na alimentação
escolar uma dimensão do desenvolvimento sustentável e, com isso, promover
incentivos para a aquisição de alimentos produzidos em âmbito local,
preferencialmente pela agricultura familiar com a priorização das comunidades
indígenas e quilombolas (Brasil, 2009).
A execução do Pnae é realizada por transferência automática de
recursos financeiros da União para Estados e municípios por meio do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Do total dos recursos
71
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

financeiros repassados pelo governo federal, no mínimo 30% devem ser


utilizados na aquisição de alimentos diretamente da agricultura familiar com
dispensa de licitação, tendo por prioridade os assentamentos da reforma
agrária, indígenas e quilombolas (Brasil, 2009).
Tanto na 4ª quanto na 5ª Plenárias Nacionais, o marco legal da política
pública de economia solidária foi considerado uma das questões centrais para
a viabilização de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável.
Para tanto, o movimento destacou a necessidade de definição da economia
solidária por um ponto de vista normativo para que haja o seu reconheci-
mento no âmbito do Estado e, consequentemente, a sua viabilização em ações
públicas para o setor. O mesmo se aplica à definição de “empreendimento
econômico solidário” devido à diversidade de arranjos e práticas existentes,
mas, principalmente, quanto à adaptação da legislação de cooperativas no
país para o campo da economia solidária.
Além das Plenárias Nacionais, foi instituído com a criação da Senaes/
MTE o Conselho Nacional de Economia Solidária, em 2006, e realizadas,
desde então, três Conferências Nacionais em Economia Solidária. Tais arranjos
institucionais – Conselho e Conferência – possibilitaram o debate sobre o
conteúdo da política pública de economia solidária, a partir das diretrizes da
participação social e da transversalidade de políticas (Cunha, 2014).

Conferências Nacionais de Economia Solidária


Na 1ª Conferência Nacional em Economia Solidária (Conaes) realizada
em 2006 os fundamentos da economia solidária e as principais concepções
foram afirmadas. Foi dado destaque à falta de um marco legal que “possibilite
e regulamente políticas de financiamento, formação, comunicação e comercia-
lização (...)” para que o Estado possa garantir a produção e os serviços da
economia solidária (CNES, 2006, p. 10). Ou seja, há um reforço sobre a
priorização da política pública para o setor, e também de demandas para a
institucionalização de uma política de Estado de economia solidária (Cunha,
2014).
O relatório final da 1ª Conaes dispôs sobre a concepção da economia
solidária como parte de um Estado Republicano e Democrático, além de
evidenciar um público diverso e excluído socialmente dos direitos à cidadania.
A economia solidária foi discutida pelo seu potencial em promover o desenvol-
72
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

vimento sustentável, com participação democrática comunitária e popular,


além de demandar ações transversais em várias áreas, como educação, saúde,
trabalho, habitação, economia, tecnologia, cultura, meio ambiente (CNES,
2006).
No relatório da 1ª Conaes já constava a constituição de um Sistema
Nacional de Economia Solidária que possibilitasse a articulação e a integra-
lização das ações entre governos federal, estadual e municipal, além da
criação de espaços institucionais de participação entre sociedade e Estado nas
tomadas de decisão políticas e no exercício do controle social. Destacamos,
igualmente, a criação de um Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário
com o intuito de favorecer a circulação dos produtos da economia solidária no
mercado interno, como também desenvolver ações articuladas de certificação
pública, logística para armazenamento e distribuição, multiplicação de espaços
de comercialização, além do apoio a ações educativas para o consumo
responsável e consciente (CNES, 2006).
Também foram delineados os objetivos de uma política pública de
economia solidária “enquanto estratégia de desenvolvimento sustentável,
democrática, includente e socialmente justa”, entre os quais podemos
destacar: (1) direito a uma vida digna; (2) participação cidadã; (3) reconheci-
mento e fomento às diferentes formas de organização produtiva da economia
solidária; (4) acesso aos fundos públicos e aos instrumentos de crédito,
formação, pesquisa, assistência técnica, comercialização, mecanismos de
certificação que possam viabilizar os meios de produção e as tecnologias
sociais; (5) programas de educação e formação em economia solidária; (6)
ações públicas que aproximem consumidores e produtores; (7) inclusão social
e redução das desigualdades regionais; (8) promoção de práticas produtivas
ambientalmente sustentáveis (CNES, 2006, p. 14).
A 1ª Conaes também estabeleceu prioridades para a política de
economia solidária direcionadas à superação das principais dificuldades
enfrentadas pelos empreendimentos econômicos, redes e cadeias produtivas
solidárias. São elas: (1) formação educacional contextualizada; (2) acesso à
infraestrutura para a produção; (3) canais justos e solidários de comercia-
lização, distribuição da produção e consumo; (4) acesso e organização dos
serviços de crédito; (5) reconhecimento jurídico das organização e atividades
desenvolvidas; (6) formação, assistência técnica e desenvolvimento
tecnológico (CNES, 2006, p. 15).
73
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

Quatro anos depois, em 2010, a 2ª Conaes continuou a evidenciar


a temática de políticas públicas sendo convocada para debater “o direito
às formas de organização econômica baseadas no trabalho associado, na
propriedade coletiva, na cooperativa e na autogestão, reafirmando a economia
solidária como estratégia e política de desenvolvimento” (CNES, 2010, p. 6).
Como apontado do relatório final, era preciso “avançar no reconhecimento da
economia solidária como direito de cidadania, tendo por base a instituciona-
lização de políticas públicas articuladas a um Sistema Nacional de Economia
Solidária” (CNES, 2010, p. 6).
Há também o reconhecimento quanto à interlocução política sobre
demandas e construção de políticas públicas para a economia solidária, a
partir da criação do FBES e da Senaes/MTE, principalmente em relação ao
diálogo com outas áreas (trabalho e renda, cultura, desenvolvimento social,
segurança alimentar e nutricional, etc.), a expansão de políticas municipais e
estaduais de economia solidária (CNES, 2010).
Mesmo reconhecendo avanços no fomento à produção e comercia-
lização solidárias na criação de redes de cooperação, produção, comerciali-
zação e consumo, como também no desenvolvimento das finanças solidárias
com a disseminação dos bancos comunitários e dos fundos solidários, os
participantes da 2ª Conaes afirmaram que as “políticas públicas existentes
ainda são limitadas, fragmentadas e com pouca abrangência, aquém da
necessidade real. (...) sofrem com a limitação dos recursos financeiros e de
estrutura institucional” (CNES, 2010, p. 7).
Ações mais efetivas no campo da política pública de economia solidária
também foram abordadas, como a aprovação da lei nacional como direito
de cidadania e dever do Estado; constituição de um Sistema Nacional de
Economia Solidária responsável por articular as iniciativas dos entes governa-
mentais e da sociedade nas esferas municipal, estadual e federal, além de
integralizar e promover a intersetorialidade das políticas; criação do Fundo
Nacional de Economia Solidária para financiamento das políticas públicas
de economia solidária e fortalecimento dos empreendimentos econômicos
solidários (CNES, 2010).
A 1ª Conferência Nacional já havia apontado para a elaboração de
uma política pública de economia solidária com os objetivos destacados
anteriormente, além da constituição de um Sistema Nacional de Economia
74
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

Solidária. Já na 2ª Conaes há a reivindicação para “implantar imediatamente


a Política Nacional de Economia Solidária em acordo com o anteprojeto de
lei discutido e deliberado no âmbito do Conselho Nacional de Economia
Solidária” (CNES, 2010, p. 25).
Quanto ao texto de referência da 3ª Conaes, o foco esteve na
elaboração de forma participativa do Plano Nacional da Economia Solidária,
cuja contribuição consiste em (1) elaborar e definir a política nacional para que
alcance mais concretude; (2) construir processos mais articulados e integrados
de planejamento e criação de políticas de economia solidária considerando
a diversidade do seu público; (3) estimular a criação de políticas locais de
economia solidária; (4) fortalecer e ampliar o movimento social da economia
solidária em sua capacidade política e organizativa; (5) promover um processo
de aprendizagem e construção coletiva de conhecimentos para a formação de
um identidade da economia solidária (CNES, 2014).
O Plano Nacional pode ser entendido como um instrumento de
orientação da política pública, formulado com base em uma contextu-
alização e uma visão de futuro, a partir das quais são estabelecidos tanto
objetivos quanto estratégias somados às respectivas linhas de ação e diretrizes
operacionais da política (Cunha, 2014).
No caso da economia solidária, as duas últimas Conferências Nacionais
resultaram em um acúmulo de discussões sobre a concepção e o conteúdo da
política nacional, o que serve de base para a elaboração de um Plano Nacional.
A mesma lógica aplica-se aos Estados e municípios com a convocação de
Conferências para a elaboração de planos estaduais e municipais de economia
solidária, conforme as suas especificidades e realidades; diversidade de atores
sociais e correlação de forças políticas (CNES, 2014).
Importante salientar que o caráter participativo dos planos e das políticas
é uma característica inerente à economia solidária sustentada no princípio
da autogestão, entendida como o “exercício da democracia com o efetivo
envolvimento consciente dos trabalhadores e trabalhadoras nas definições dos
temas e nas questões que lhes dizem respeito” (CNES, 2014, p. 11).
Autogestão constitui uma das formas de participação, considerada
a maior delas, na qual os participantes detêm autonomia na definição de
prioridades, elaboração das propostas, tomadas de decisão, sem qualquer
influência ou autoridade externa. O ato de participar possui o significado
75
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

de “fazer parte”, “tomar parte” ou “ter parte” com um maior grau de


engajamento, além de assumir sintomas de comprometimento e conscien-
tização pelos participantes (Bordenave, 1983).
Mesmo, no entanto, tendo sido realizada em 2014, a 3ª Conaes
cujo tema foi “construindo um Plano Nacional de Economia Solidária para
promover o direito de produzir e viver de forma associativa e sustentável”, a
elaboração desse documento como parâmetro nacional da política ainda não
foi concretizada. Consta, inclusive, como item no Projeto de Lei da Câmara
nº 137 de 2017 que caberá ao Conselho Nacional em Economia Solidária
a elaboração do Plano Nacional e sua apresentação ao Executivo federal,
a partir das deliberações da Conferência Nacional, incluindo os requisitos
orçamentários para sua execução (BRASIL, 2019, artigo 13º, §2º).

Projeto de Lei da Política Nacional de Economia Solidária


Após a realização de três Conferências Nacionais, o processo de
provação de uma política nacional de economia solidária ainda está em
curso. Até a data de elaboração deste capítulo, encontra-se em tramitação
na Câmara de Deputados o Projeto de Lei que dispõe sobre a Política Nacional
de Economia Solidária e os empreendimentos econômicos solidários, e cria o
Sistema Nacional de Economia Solidária, tendo sofrido revisões por parte de
representantes políticos ao longo desse processo.7
Mesmo com tal cenário, considera-se relevante destacar no documento
o reconhecimento da economia solidária como atividade produtiva, a
qualificação dos empreendimentos econômicos solidários e sua configuração
pelos Conselhos e Conferências Nacionais na área, além das diretrizes da
Política Nacional de Economia Solidária.
O texto compreende a economia solidária como
atividades de organização da produção e da comercialização de bens
e serviços, da distribuição, do consumo e do crédito, observados os
princípios da autogestão, do comércio justo e solidário, da cooperação

7
Em dezembro de 2019 o Projeto de Lei nº 137 de 2017 da Câmara (nº anterior PL 4685/2012)
foi aprovado, em revisão, pelo Senado Federal e remetido à Câmara dos Deputados. O Projeto
que dispõe sobre os empreendimentos de economia solidária, a Política Nacional de Economia
Solidária e o Sistema Nacional de Economia Solidária, passou a tramitar como PL 6606/2019.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPropos
icao=559138. Acesso em: 29 abr. 2023.

76
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

e da solidariedade, a gestão democrática e participativa, a distribuição


equitativa das riquezas produzidas coletivamente, o desenvolvimento
local, regional e territorial integrado e sustentável, o respeito aos
ecossistemas, a preservação do meio ambiente e a valorização do ser
humano, do trabalho e da cultura (Brasil, 2019, artigo 2º).

Pela definição anterior, pode-se perceber o reflexo das discussões


das Conferências Nacionais e das Plenárias do FBES quanto à concepção da
economia solidária sustentada em princípios de cooperação, autogestão,
comércio justo e solidário, sustentabilidade, a serem observados em
organizações produtivas do trabalho na promoção do bem-estar de seus
membros e da comunidade.
A formalização dos empreendimentos econômicos solidários também
é disposta no documento ao serem reconhecidos como as unidades
organizativas para a concretização da economia solidária. São considerados
instâncias beneficiárias da política pública pelas seguintes características: (1)
autogestão com exercício coletivo das atividades econômicas, tomada de
decisão compartilhada por meio da soberania assemblear e administração
democrática e transparente; (2) participação dos seus membros na
consecução do objetivo social característico do empreendimento; (3) prática
do comércio justo e solidário; (4) distribuição dos resultados financeiros
conforme deliberação em assembleia pelos seus membros; (5) destinação
das sobras (resultado operacional líquido) à consecução de suas finalidades
ou ao desenvolvimento comunitário, à qualificação profissional e social de
seus integrantes (Brasil, 2019, artigo 4º).
A Política Nacional de Economia Solidária é reconhecida como instrumento
que poderá contribuir para a garantia do direito a uma vida digna pelos cidadãos
ao promover a geração de trabalho e renda, melhoria da qualidade vida e a justiça
social (Brasil, 2019, artigo 6º). Entre seus princípios norteadores destaca-se a
articulação e a integração de demais políticas de promoção de desenvolvimento,
como também a coordenação de ações dos órgãos que promovem políticas de
geração de trabalho e renda (Brasil, 2019, artigo 7º).
Também constitui uma diretriz da Política Nacional de Economia
Solidária a “participação social na formulação, execução, acompanhamento,
monitoramento e controle das políticas e dos planos de economia solidária
em todas as esferas de governo” (Brasil, 2019, artigo 7º). Tal diretriz reflete
77
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

a democratização da gestão pública ao perceber a sociedade como partícipe


de todas as etapas do ciclo de políticas públicas. A essa gestão democrática
no campo das políticas públicas denomina-se gestão social (Tenório, 2010).
É importante salientar, contudo, que o conceito de gestão social não se
restringe somente à análise, à formulação e à instalação de políticas públicas,
mas a sua distinção com um tipo de gestão denominado estratégica. Como
explica Fernando Tenório (2018), na gestão estratégica “a liderança não é
compartilhada, mas imposta” (p. 412), ou seja, constitui “um tipo de ação
social utilitarista, fundada no cálculo de meios e fins e implementada mediante
a interação de duas ou mais pessoas, na qual uma delas tem autoridade
formal sobre a(s) outra(s)” (p. 412). Em consonância com a concepção de
economia solidária pelo princípio da autogestão, a gestão social constituiria
“um gerenciamento participativo, dialógico, no qual o processo decisório é
exercido por diferentes sujeitos sociais” (p. 412).
Por fim, o Projeto de Lei nº 137 de 2017 cria o Sistema Nacional de
Economia Solidária para a instituição da política pública e a integração dos
entes federativos – União, Estados e municípios – junto a sociedade civil. Para
tanto, são estabelecidas as diretrizes da intersetorialidade das políticas e da
descentralização das ações em regime de colaboração entre as esferas de
governo (Brasil, 2019, artigo 11; artigo 12). Esta última, em especial, implica
uma maior responsabilização e autonomia dos Estados e municípios na
condução da política de economia solidária (Noronha; Lima; Machado, 2008).
A participação social na política também integra o Sistema Nacional de
Economia Solidária pelas Conferências e Conselhos presentes nos três níveis
da Federação: nacional, estadual e municipal. É por intermédio das entidades
representativas que os trabalhadores dos empreendimentos econômicos
solidários, movimentos sociais, entidades de apoio e fomento poderão
participar e deliberar sobre questões norteadoras das políticas públicas de
economia solidária.
O propósito na institucionalização de tais espaços de participação
é permitir que sociedade e Estado atuem conjuntamente na definição
de estratégias para que propostas possam ser debatidas; escolhas sejam
realizadas sobre as melhores alternativas para a solução de problemas que
afetam a população e, a partir daí, políticas sejam elaboradas em consonância
com as demandas da população (Escorel; Moreira, 2008).
78
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

Por mais que haja conquistas para o movimento da economia solidária


no país conforme mencionadas nesta subseção, o Projeto de Lei nº 137 de
2017 sofreu alterações no decorrer da sua tramitação no Congresso Nacional,
o que compromete a consolidação da economia solidária como política pública
permanente e estruturante no âmbito do Estado.
Uma das mudanças realizadas pelo poder Legislativo diz respeito à
supressão do Fundo Nacional de Economia Solidária (FNES), cujo “objetivo
consiste em centralizar e gerenciar recursos orçamentários para os programas
estruturados no âmbito do Sistema Nacional de Economia Solidária, destinados
a implementar a Política Nacional de Economia Solidária” (Brasil, 2019, artigo 20).
Sobre isso, é importante destacar que no relatório da 2ª Conaes há um
item dedicado ao FNAES com apontamentos de possíveis fontes de receita,
como o Fundo Social do Pré-Sal, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), os
fundos setoriais, bancos públicos, lucro das empresas públicas, das empresas de
economia mista, doações de pessoas físicas e jurídicas, entre outros (CNES, 2010).
A não previsão de garantia legal do FNES sem a disposição das
respetivas vinculações orçamentárias colocam em xeque o financiamento
da política pública na provisão de programas direcionados aos empreendi-
mentos econômicos solidários utilizados para assessoria técnica, formação e
qualificação de trabalhadores; acesso a linhas de crédito diferenciadas; criação
de infraestrutura para produção, comercialização de produtos e serviços da
economia solidária (CNES, 2010).

DESAFIOS DA POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA:


SUCINTAS CONSIDERAÇÕES
Tendo como referência o que foi apresentado até o momento, esta
seção pretende fazer apontamentos sobre os desafios enfrentados para a
consolidação de uma Política Pública de Economia Solidária no âmbito nacional.
Alguns textos já publicados sobre o tema nos auxiliam a cumprir tal objetivo.
Antes disso, é importante considerar que a criação da Senaes em junho
de 2003, sob a liderança de Paul Singer, contribuiu para a economia solidária
alcançar a sua inserção como política pública no governo federal, mesmo que
sua consolidação não tenha sido concretizada.
79
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

A Senaes é fruto de um processo de mobilização de vários atores sociais


organizados em torno da defesa da economia solidária, entre os quais podemos
citar: a Cáritas Brasileira com histórico de atuação em projetos de desenvol-
vimento; a Anteag com o apoio de empresas recuperadas por trabalhadores
na região Sul; a Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS) ligada à Central
Única de Trabalhadores (CUT) na difusão do cooperativismo no meio sindical.
Soma-se a atuação de movimentos no meio rural, como a Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), a Federação dos
Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). Ao participarem do 2º Fórum Social Mundial em 2003,
o que resultou em um Grupo de Trabalho Nacional de Economia Solidária, os
participantes reivindicaram e negociaram com o governo eleito em 2002 um
espaço institucional para a economia solidária (Nagem; Silva, 2013).
Entre os desafios, um a ser destacado diz respeito à não inserção da
economia solidária no macrossistema político, tendo permanecido em um
núcleo interno restrito. Tal aspecto contribuiu para a não construção de
uma estratégia de desenvolvimento transversal com base nos princípios da
economia solidária na geração de trabalho e renda, assim como apontam
os relatórios da 2ª e 3ª Conferências Nacionais, e também o documento da
5ª Plenária Nacional do FBES. Isso pode ser evidenciado pelo baixo volume
de recursos destinado às ações de economia solidária (menos de 1% do
orçamento destinado ao MTE), o que expressa um papel marginal em relação
à medida de fortalecimento do mercado de trabalho assalariado como
prioridade do governo (Nagem; Silva, 2013).
Outro aspecto a ser ressaltado refere-se à não priorização da política
pública de economia solidária nos territórios, seja por parte do governo,
seja pelo movimento social. Como já exposto pelo movimento da economia
solidária no documento-síntese da 5ª Plenária Nacional: “percebemos
que a conjuntura está desfavorável para termos força para efetivar nossas
proposições ao Estado, nas diferentes esferas de governo, pois o Estado
brasileiro se desenvolve de forma desigual e classista (...)” (FBES, 2014, p. 25).
Mesmo com a atuação do movimento da economia solidária junto
a representações do Legislativo, o acúmulo de forças políticas ainda não
se mostrou suficiente para a aprovação de uma lei geral para a economia
solidária nem para a criação de um Fundo Público próprio ou, até mesmo, a
garantia de acesso àqueles já constituídos, como o FAT (Praxedes, 2009).
80
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

Tal cenário é agravado no momento atual com o governo federal


eleito em 2018, quando foi extinto o MTE. A Senaes foi rebaixada ao status
de departamento com vinculação à Secretaria Nacional de Inclusão Social e
Produtiva Urbana. Sobre isso, destaca-se a concepção restrita da economia
solidária ao meio urbano e a desconsideração do seu público diverso que
também se faz presente no meio rural, como apontam as Conferências
Nacionais, além do cargo de direção do Departamento de Economia Solidária
ser ocupado por um profissional sem afinidade com o campo da economia
solidária.8
É importante ressaltar, no entanto, a atuação do movimento da economia
solidária em seus diversos grupos e entidades representativas na construção
de uma política pública democrática e como parte da condição de cidadania.
Foram realizadas articulações em diversos campos institucionais junto aos
poderes Executivo e Legislativo tendo por finalidade alcançar a legitimidade
de suas demandas (Praxedes, 2009). Soma-se a isso o histórico de atuação em
três Conferências Nacionais com etapas prévias em âmbito subnacional, além
dos Fóruns e Conselhos em diversos Estados e municípios com a participação
de organizações, empreendimentos, entidades de apoio, associações, grupos e
coletivos que configuram o movimento da economia solidária no país.
Avanços devem ser considerados ao longo deste período no campo
da economia solidária, como (1) a disseminação de bancos comunitários
de desenvolvimento, fundos rotativos solidários e cooperativas de crédito,
a partir da colaboração do Banco Palmas na cidade de Fortaleza (CE); (2) a
formação da Rede de Gestores de Políticas Públicas de Economia Solidária
cujos objetivos consistem em proporcionar um intercâmbio na elaboração
de políticas públicas e projetos comuns na promoção do desenvolvimento
sustentável e solidário; (3) criação do PAA e Pnae como políticas que priorizam
a aquisição pelo poder público de alimentos produzidos pelos agricultores
familiares também considerados como público integrante da economia
solidária (Singer, 2014; Praxedes, 2009).
Por fim, para terminar a discussão sucintamente apresentada sobre a
política pública de economia solidária, assim como a trajetória do movimento
da economia solidária tem se realizado, voltemos nossa atuação, sobretudo

8
Informação disponível em: http://mds.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/quem-
e-quem/SENISP. Acesso em: 4 maio 2020.

81
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

no momento atual, para o fortalecimento dos fóruns, conselhos e demais


instâncias de articulação em âmbito subnacional para que possamos construir
uma rede em defesa do bem viver, do trabalho cooperado e autogestionário
como direito à cidadania. Como nos ensina Paul Singer: “A utopia é para
mostrar o caminho. Se quiser disputar mentes e corações precisa[mos] ter
uma ideia sobre o tipo de sociedade que almeja[mos]”.9 Façamos a economia
solidária nosso caminho.

REFERÊNCIAS
BORDENAVE, J. E. D. O que é participação? São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
BRASIL. Pesidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 29 abr. 2023.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.685/2012. Dispõe sobre
a Política Pública de Economia Solidária e os empreendimentos econômicos
solidários, cria o Sistema Nacional de Economia Solidária e dá outras providências.
2012a. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetram
itacao?idProposicao=559138. Acesso em: 4 maio 2020.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto nº 7.775 de 4 de julho de
2012b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/
decreto/d7775.htm. Acesso em: 4 maio 2020.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n° 11.947/2009 – PNAE –
Programa Nacional de Alimentação Escolar. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11947.htm Acesso em: 4 maio 2020.
BRASIL. Senado Federal. Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei nº 137/2017.
Dispõe sobre os empreendimentos econômicos solidários, a Política Pública de
Economia Solidária e o Sistema Nacional de Economia Solidária. 19 de outubro
de 2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetram
itacao?idProposicao=559138 Acesso em: 4 maio 2020.
CNES. Conselho Nacional de Economia Solidária. Secretaria Nacional de Economia
Solidária. Ministério do Trabalho e Emprego. I Conferência Nacional de Economia
Solidária. Economia Solidária como Estratégia e Política de Desenvolvimento.

9
Entrevista concedida por Paul Singer ao Programa Roda Viva da TV Cultura em 23 de março
2012 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x4UGroAnq8I&t=323s. Acesso em:
4 maio 2020.

82
CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

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CAPÍTULO 3 – POLÍTICA PÚBLICA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Thais Soares Kronemberger

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84
C apítulo 4

Educação Popular
e Economia Solidária

Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira


Professor-adjunto da Faculdade de Administração e Finanças
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FAF-Uerj).

Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas.


Pessoas transformam o mundo (Freire, 1987).
INTRODUÇÃO

E
ste capítulo tem a finalidade de apresentar a Educação Popular e sua
interação com a Economia Solidária. A Educação Popular é vista como
práticas educativas emancipatórias, tendo sempre um direcionamento
político, as quais se constituíram da experiência dos movimentos sociais
e organizações da sociedade civil no Brasil. Também abordar a Economia
Solidária como uma forma de produção baseada na autogestão, no coopera-
tivismo e na solidariedade que se contrapõe às explorações existentes nas
relações de trabalho, típicas do capitalismo.
A Educação Popular constitui-se de diferentes experiências pedagógicas
e de formação humana, cujo desafio maior é a emancipação do homem e a
reinvenção da vida em sociedade (Zitkoski, 2010). Na condição de uma prática
político-pedagógica emergente no continente latino-americano, ela tem o foco
nas questões sociais e de resistência ao modo de produção capitalista (Rosa;
Silva, 2017).
No Brasil, a Educação Popular parte de um conjunto de práticas e
experiências egressas das classes populares, universidades, sindicatos, dos
campos e de populações excluídas socialmente. Esse processo educativo
também foi fruto de experiências da educação formal e de políticas públicas
nos três níveis de governo – municipal, estadual, federal (Brasil, 2014).
Neste trabalho será discutida a relação a Educação Popular com a
Economia Solidária e como esses dois temas convergem e contribuem para o
desenvolvimento de relações sociais e de trabalho mais justas e sustentáveis.
Para tanto, o capítulo está dividido em mais quatro seções além desta
introdução. Na segunda seção apresentam-se os conceitos de Educação
Popular e seus princípios fundadores. Na terceira, introduz-se o movimento da
Economia Solidária no Brasil, como ele se relaciona com a Educação Popular
e de que forma esses dois temas estão estruturados na sociedade. A quarta
seção traz as considerações finais do trabalho e a quinta as referências biblio-
gráficas.

86
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

EDUCAÇÃO POPULAR
A América Latina é um continente que foi palco de práticas
exploratórias das suas riquezas por parte de seus colonizadores. Pode-se
afirmar que grande parte dos problemas sociais é consequência desse
processo histórico de exploração em detrimento de um projeto de desenvol-
vimento que contemplasse os interesses das nações latino-americanas. Não
é por acaso a existência de um contexto de desigualdades sociais advindas
de séculos de exploração, fruto de uma concepção europeia de mundo que
naturalizava o processo de colonização e de neocolonização que perdura até
os dias atuais, ocasionando o que se chama de subdesenvolvimento (Rosa;
Silva, 2017).
Nesse contexto, a Educação Popular (EP) nasceu na América Latina,
em meados do século 20, como “instrumento de luta política e educativa
contra a hegemonia das classes dominantes, partindo dos saberes, das
experiências e das culturas das classes populares” (Mello, 2013, p. 69). É
uma corrente de resistência cultural e de pensamento contra ditaduras que
emergiram no continente latino-americano e se expandiu nos anos 70 e 80
(Mello, 2013).
Conforme Carrillo (2012), não haveria uma única maneira de
conceituar a EP, pois seu significado está enraizado em momentos históricos,
determinações políticas e visões de educadores. É possível, contudo,
identificar cinco elementos constituintes que permitirão sua conceituação.
a. A leitura crítica tanto da ordem social quanto do papel
desempenhado pela educação formal vigente.
b. A intenção política emancipatória em relação à ordem social
predominante.
c. O objetivo de contribuir para o fortalecimento dos setores
dominados como sujeitos históricos, capazes de serem
protagonistas da mudança social.
d. A convicção de que a partir da educação é possível contribuir para a
consecução dessa mudança, atuando sobre a subjetividade popular.
e. A geração e o uso de metodologias educacionais dialógicas, partici-
pativas e ativas.
87
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

A EP no Brasil teve diferentes significados ao longo de sua história. Ora


referiu-se ao direito de todos à escola (como função própria do Estado), ora
como práticas educativas emancipatórias com finalidade de transformação
político-social, e ainda como o de educação para o povo, com o objetivo de
preparar a população como mão de obra para o trabalho (Brasil, 2014).
Paulo Freire foi quem iniciou a EP no Brasil na década de 50 com suas
experiências pedagógicas realizadas com o Movimento de Educação de Base
viabilizadas por meio de um convênio com a Conferência Episcopal Brasileira
e o governo brasileiro. Essas experiências foram sendo desenvolvidas nas
comunidades assumindo as características de uma EP (Ferrarini; Adams, 2015).
Para Paulo Freire, o Estado “é um espaço sociocultural em constante
disputa, seja entre sujeitos e classes sociais que têm interesses individualistas
e privatistas, ou entre aqueles que buscam concebê-lo como espaço público
em formação capaz de promover justiça econômica e social”. Essas disputas
acontecem também no plano cultural, em que há construção de significados
do papel social do Estado para justificar suas políticas institucionais (Brasil,
2014, p. 22).
A EP, na perspectiva de Paulo Freire, preocupa-se em denunciar as
injustiças contra os oprimidos e foi nesse sentido que ele desenvolveu a
teoria e a prática de uma pedagogia voltada para emancipação e libertação
dos indivíduos. O diálogo entre as pessoas como sujeitos históricos, sociais
e culturais é o núcleo dessa pedagogia em que se preservam as identidades
culturais ao mesmo tempo em que se contempla a sua diversidade (Figueiredo;
Frantz, 2018).
O ponto de partida e chegada da pedagogia da EP é uma utopia de
um mundo gerado no amor, na solidariedade, na participação e justiça
social em que os educandos e educadores estariam comprometidos com a
transformação de uma realidade social opressiva dominada pelo mercado,
para outra realidade fundada na “liberdade e na democratização social e
política, nos mais diversos lugares da sociedade, cujo fundamento primeiro
seja a ética em favor da humanização plena” (Figueiredo; Frantz, 2018, p. 693).
A EP nasceu no campo das lutas populares no Brasil, consolidando-se
como uma metodologia educacional, de concepção teórica e prática, que articula
diferentes saberes e fazeres, culturas e direitos humanos, com o compromisso
de emancipação das classes populares e sua transformação social (Brasil, 2014).
88
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

Desse modo, a EP constitui, ao mesmo tempo, “uma prática social e


política, vinculada a processos organizativos e formativos das classes populares
ao largo do sistema educativo formal, guardando uma especificidade na sua
concepção do fenômeno educativo” (Mello, 2013, p. 70).
Em relação à instituição das políticas públicas sobre a EP no Brasil,
houve um esforço coletivo promovido por meio de um amplo processo de
debates, diálogos e reflexões, a partir de diferentes práticas, do governo
federal, de movimentos sociais, de universidades e de educadores populares e
da educação formal do Brasil, desenvolvido por meio de reuniões, seminários
e articulações entre 2011 e 2014, para se selecionar as categorias que “contêm
em si uma ideia-força” da EP no país (Brasil, 2014, p. 22).
São sete categorias estruturantes da Educação Popular (Brasil, 2014),
seguindo os princípios de Paulo Freire (1987, 1996):
a. a dialogicidade;
b. a amorosidade;
c. a conscientização;
d. a transformação da realidade e do mundo;
e. a educação a partir da realidade concreta;
f. a construção do conhecimento e pesquisa participante;
g. a sistematização de experiências e do conhecimento.

Dialogicidade
O diálogo pressupõe o estabelecimento de relações horizontais, em
que as práticas sociais e educativas se dão a partir da compreensão de que
não há saber maior ou menor, mas saberes diferentes. É a partir dele que
se promovem, dialeticamente, novos conhecimentos. Com ele é possível
compreender a realidade e problematizar o mundo para transformá-lo.
O diálogo é o caminho para aprofundar a solidariedade e para superar
problemas. Por meio dele rompe-se se institui uma pedagogia emancipatória,
com cidadãos mais autônomos, críticos, criativos e éticos.
O diálogo entre o educador popular e as classes populares vai construir
a ação e a reflexão, possibilitando a troca de significados e o aprofundamento
na compreensão dos elementos constitutivos da realidade, proporcionando
a reconstituição simbólica do real e permitindo a construção de significados
89
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

comuns. Desse modo, aprofunda-se a solidariedade e elabora-se alternativas


para a superação das compreensões determinísticas a respeito de uma
realidade social.
A prática da relação dialógica é fundamental para romper e promover
a reflexão sobre as contradições a partir da problematização da realidade.

Amorosidade
A educação deve ser um ato de amor (amar aos homens e ao mundo).
Somente uma educação carregada de amor possibilita a vivência do respeito,
humaniza e liberta as pessoas.
“O ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa da
libertação. Mas este compromisso, porque amoroso, é dialógico (...). Como
ato de valentia, não pode ser piegas, como ato de liberdade não pode ser
pretexto de manipulação, senão gerador de outros atos de liberdade. A não
ser assim, não é amor. Somente com a supressão da situação opressora é
possível restaurar o amor que nela estava proibido. Se não amo o mundo,
se não amo a vida, se não amo os homens/mulheres, não me é possível o
diálogo” (Brasil, 2014; Freire, 1987, 1986).

Conscientização
Consiste em compreender a realidade em suas múltiplas facetas, causas
e consequências. É inserção crítica na história quando indivíduos assumem o
papel de sujeitos ativos no mundo. Realiza-se quando os sujeitos se organizam
coletivamente para atuar sobre a realidade e transformá-la.
Quanto mais elevado o nível de conscientização, maior a capacidade
de “desvelamento” da realidade, pois mais se penetrará na compreensão do
objeto, ante o qual nos encontramos para analisá-lo. Por esta mesma razão,
a conscientização não consiste em “estar frente à realidade” assumindo uma
posição falsamente intelectual, visto que a conscientização não pode existir
fora das “práxis”, sem o ato de ação- reflexão.
A consciência ingênua apoia-se em uma visão simplista sobre a
realidade e prefere exaltar o passado como referência para dizer o que é
o melhor. Além disso, é impermeável à investigação e, portanto, frágil na
discussão aprofundada dos problemas; a verdade é imposta e seu apelo
90
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

tem forte impulso passional. Dessa forma, a realidade é estática e imutável.


Ao contrário, a consciência crítica anseia pela profundidade na análise de
situações-limite, inclusive porque reconhece que a mudança é possível
(e necessária). Livra-se de preconceitos ao buscar uma postura crítica,
investigativa e indagadora diante da realidade.

Transformação da Realidade e do Mundo


O processo educativo baseado na educação popular procura sempre
ser transformador da realidade. Procura-se construir novas relações baseadas
na igualdade, na fraternidade, na justiça. As pessoas transformam-se em
protagonistas do seu destino e da sua contribuição na transformação. A
educação conscientizadora e libertadora deve contribuir na democratização
do Estado e da sociedade.
Mudam-se as relações, as pessoas e as relações entre as pessoas, não
deixando prevalecer o egoísmo, o individualismo, o sexismo, os preconceitos
e a discriminação. Um processo educativo apoiado na educação popular
procurará tornar as pessoas sujeitos de direitos, protagonistas dos seus destinos
e contribuintes na transformação. A educação conscientizadora, libertadora e
transformadora deve contribuir com a democratização do Estado e da sociedade.

Realidade Concreta
A realidade concreta é sempre o ponto de partida. É, nos fatos
concretos, na vida cotidiana, que encontramos os elementos para o diálogo,
para a análise, para o intercâmbio de percepções, ligando o presente com o
passado e o futuro.
A realidade concreta supõe levantar tanto a visão de mundo dos
educandos quanto os dados objetivos do contexto em que acontecerão
as práticas sociais e as experiências educativas. Isto é, a educação popular
busca romper com uma perspectiva de educação “conteudista”, sem vínculo
e relação com a realidade dos sujeitos envolvidos.
A Educação Popular assume a realidade como uma totalidade concreta,
questionando a fragmentação do conhecimento, que leva por vezes a
excessivos graus de especializações que impedem, com isso, um entendimento
integrado das práticas sociais e simbólicas de determinado sistema social.
91
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

Construção do Conhecimento
O saber e o conhecimento de todos devem ser levados em conta, pois
não há conhecimento válido ou não, mas distintos saberes. Reconhece-se e
valorizam-se os conhecimentos prévios do povo e defende-se que por meio
do diálogo ocorre o intercâmbio dos diferentes saberes e a construção de um
novo e coletivo conhecimento.
A Educação Popular conjuga a pesquisa em educação com os processos
de participação popular, integrando, no mesmo processo político-pedagógico,
os educadores e os educandos.
No processo educativo, apreender e produzir conhecimento são
momentos centrais no ciclo de aprendizagens capazes de articular a teoria
e a prática, entre o conhecimento histórico construído e as experiências e
saberes dos educandos e das educandas.
Nesta concepção, a pesquisa é o instrumento que viabiliza, mediado
pelo diálogo, o aprofundamento da temática em estudo e a produção do novo
saber. Sem a atividade de pesquisa, ensino-aprendizagem e aprendizagem-
-ensino, tanto por parte do educador quanto por parte do educando e, apesar
das especificidades dos papéis, ambos estão em contínuo processo de ensinar
e aprender.

A Sistematização das Experiências e do Conhecimento


É a estratégia metodológica da Educação Popular para a apropriação da
experiência vivida e refletida e dos conhecimentos produzidos coletivamente.
Métodos, técnicas e dinâmicas assumem o papel de instrumentos, dos quais
o educador lança mão para no processo ensino-aprendizagem viabilizar a
construção do conhecimento.
Nesta seção, a EP é apresentada como uma estratégia de ensino
composta por uma diversidade de experiências pedagógicas de cunho
humanístico, convergindo para o desafio da autonomia dos indivíduos e a
transformação social de modo a torná-la mais justa e sustentável.
Na próxima seção será abordado o movimento da Economia Solidária
e as experiências do trabalho cooperativo, assim como de que maneira a EP
contribui para esse setor que também se contrapõe a lógica mercadológica
do capitalismo.
92
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA


Na América Latina, as experiências inovadoras de geração de trabalho
e renda de forma associada e autogestionária se multiplicaram e tomaram
contornos do fenômeno que se denominou de Economia Solidária (ES),
despontando, a partir da década de 80, como a principal alternativa de
produção para os excluídos socioeconomicamente (Ferrarini; Adams, 2015).
É o compromisso da EP com os excluídos que irá aproximá-la da ES,
valorizando a dimensão produtiva dos despossuídos como forma de conquista
da autonomia e da libertação da opressão na qual vivem rotineiramente.
Assim, a EP e a ES “desenvolveram trajetórias convergentes e complemen-
tares”, em que a EP potencializa o “trabalho como princípio educativo para a
vida e para a cidadania” (Ferrarini; Adams, 2015, p. 214).
A ES fornece a prática do trabalho autogestionário e associado, ou seja,
uma nova cultura de trabalho que é por si própria um processo pedagógico e
educativo. Essa pedagogia forma-se a partir de uma dada realidade social em
que se desenvolve a EP: “A prática da pedagogia da autogestão com base na
Educação Popular se propõe a uma prática educativa que parte da socialização
da experiência de vida das pessoas e da sua compreensão da sociedade e
do mundo”. São essas experiências que criarão reflexões para construção de
novos entendimentos e conhecimentos que permitirão aos indivíduos e suas
comunidades “vivenciar práticas de novas relações de produção e de consumo”
(Brasil, 2016, p. 42). Esse seria o caminho para transformar as relações injustas
de trabalho, comercialização e consumo da contemporaneidade em uma
realidade social mais igualitária, fraterna e solidária (Brasil, 2016, p. 42).
Na ES a dimensão produtiva do trabalho é o princípio educativo que faz
os educadores refletirem sobre os referenciais políticos-pedagógicos da EP.
São essas reflexões, frutos de experiências educativas, que irão conceber as
diretrizes pedagógicas a serem replicadas em diferentes espaços e atividades
da ES, construindo outro padrão de tecnologia e trabalho para um desenvol-
vimento mais sustentável. Assim, “o trabalhador pode superar sua condição
de mercadoria, resgatar o direito de ser proprietário coletivo dos meios de
vida, superar a desvinculação entre si e seu produto, controlando o ritmo e o
tempo de trabalho” (Brasil, 2016, p. 49).
Com a proliferação dos empreendimentos em ES no Brasil a partir dos anos
80, a formação para o setor tornou-se cada vez mais complexa. Essa demanda
por formação não era atendida pelas políticas públicas tradicionais de apoio ao

93
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

empreendedor individual. Entre as principais demandas estavam “a necessidade


de maior articulação dos formadores entre si, para com os trabalhadores e entre
diferentes políticas e ações setoriais, assim como a insuficiência de reflexão e de
produção teórico-metodológica” (Ferrarini; Adams, 2015, p. 213).
A EP e o pensamento freiriano são reconhecidos como as bases
dos conteúdos para os empreendimentos solidários, por proporcionarem
processos de autogestão, metodologias participativas, incremento de
tecnologia social, além de “constituição de redes e cooperativas, participação
cidadã, trabalho emancipatório, direitos sociais” (Gontijo; Paula, 2019, p. 5-6).
Segundo Gontijo e Paula (2019, p. 6), nessa perspectiva “a qualificação
profissional vem acompanhada de qualificação social, formando um mosaico de
habilidades básicas para a cidadania e o trabalho e habilidades específicas nas
ocupações envolvidas, bem como habilidades de gestão, em especial de autogestão”.
Ferrarini e Adams (2015), contudo, atentam para o fato de que existe
uma clara tensão entre a dimensão produtiva e a pedagógica na ES. Enquanto
a primeira, por ser uma atividade prática tenderá a ser mais tecnicista e
pragmática, a pedagógica estará envolta em projeto mais substantivo de
dimensões políticas, culturais e éticas. Este conflito é espelhado na dimensão
formativa da ES, como mostra a Figura 1, em que caberá aos formadores
saberem equilibrar o lado mais pragmático da ES com o mais idealista.
Figura 1 – Continum da visão pragmática x visão idealista da formação em
Economia Solidária

Fonte: Ferrarini; Adams, 2015.

94
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

Por essa ótica, além dos dois polos (pragmático e idealista), esses
autores consideram que haveria espaço para se estabelecer formas interme-
diárias de se pensar a ES, e por consequência o viés pedagógico que se deseja
imprimir à formação dos atores desse movimento: ora tendendo para a visão
estratégica, ora para a substantiva.
Gontijo e Paula (2019, p. 7), com base em Silva (2004), Perriton e
Reynolds (2004), McLaren (1997), Freire (1989, 2002), relacionam esses dois
polos da formação em ES a duas concepções de ensino: a crítica e a neoliberal.
Enquanto a concepção neoliberal estaria afinada com os princípios de mercado
e do capitalismo, a concepção crítica de ensino teria como premissas:
• o processo de aprendizagem é analisado considerando-se o
contexto histórico, político, econômico e social;
• a sociedade também educa, não cabendo somente à escola esta
função;
• as escolas não são instituições neutras. Elas são o lócus de disputa
política, econômica, cultural e social;
• as escolas devem ser analisadas dialeticamente como estruturas
que reproduzem as desigualdades sociais e o discurso hegemônico,
ao mesmo tempo que criam alternativas para a resistência e
libertação destas dominações;
• a educação é uma formação tanto técnica quanto moral;
• a unidade de análise é social e não individual, dando ênfase aos
conceitos de comunidade e construção social da realidade;
• o objetivo é a emancipação dos grupos sociais e o desenvolvimento
de uma sociedade mais igualitária.
Esses autores estabeleceram um conjunto de diretrizes a partir da
literatura da área em que relacionam ES e educação (Gontijo; Paula, 2019, p. 6):
• educação como ato de diálogo;
• autoaprendizagem mútua;
• ciência aberta às exigências éticas de qualidade de vida;
• tecnologia social
• planejamento comunitário e participativo;
• caráter emancipador;
• autogestão;
• vivência prática.

95
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

Conforme Oliveira e Paiva (2016, p. 36), a formação emerge como uma


das principais demandas da ES no Brasil, cujas ações de qualificação “devem
fortalecer o seu potencial de inclusão social e de sustentabilidade econômica,
bem como sua dimensão emancipatória”. Esses autores afirmam “que a
educação para a economia solidária é um grande desafio, em especial para
os Empreendimentos Econômicos Solidários (EES)”, pois o crescimento desses
empreendimentos, em especial nos últimos anos, “exige respostas adequadas
e permanentes às suas necessidades de formação e assistência técnica”.
A formação em ES está prevista no Plano Nacional de Economia
Solidária 2015-2019 que ainda se encontra em vigor, haja vista não ter sido
elaborado outro para a nova gestão governamental (2020-2024). Esse plano
apresenta um conjunto de metas para o quadriênio em que se pode destacar:
“Promover a formação de 200 (duzentas) mil pessoas em economia solidária,
contemplando as necessidades dos empreendimentos econômicos solidários,
entidades de apoio e fomento e gestores públicos” (Brasil, 2015, p. 20).
Não foi possível verificar informações sobre se essa meta foi atingida
total ou parcialmente, pois o site da Secretaria Nacional de Economia
Solidária encontra-se desatualizado desde agosto de 2015. Tampouco foram
identificados estudos que fornecessem qualquer informação sobre o assunto.
Pode-se utilizar, entretanto, do conteúdo desse plano para fazer reflexões
sobre a formação em ES, haja vista que foi concebido por meio de Conferências
Públicas com participação ativa da sociedade em exposição e debates sobre
os desafios da ES no país, além de ter sido realizada uma análise contextual
do setor por especialistas e militantes da área (Brasil, 2015).
Tendo em vista o atingimento das metas do plano, foram elencados
quatro eixos de prioridades temáticas, sendo um deles o Eixo Educação e
Autogestão, cujos objetivos, resumidamente, são (Brasil, 2015):
• organizar e difundir o Projeto Político-Pedagógico da Educação em
Economia Solidária como referência para ações educativas em ES;
• garantir ações de formação e assessoria técnica permanente e contex-
tualizada para os Empreendimentos Econômicos Solidários (EES);
• incluir a economia solidária no sistema de ensino brasileiro; garantir
inovação e desenvolvimento de tecnologias sociais adequadas aos EES;
• construir e colocar em prática uma política pública de comunicação
em economia solidária nas três esferas governamentais.
96
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

Esses objetivos seriam alcançados por meio de um conjunto de ações,


a saber: constituição da Política Nacional de Educação em Economia Solidária;
fomento a ações educativas (incubação, formação, assessoramento técnico);
tecnologia social e inovação; divulgação e comunicação (Brasil, 2015).
Desse modo e em conformidade com esse plano nacional foram
identificadas algumas ações na área de educação e formação em ES que serão
aqui apresentadas. Ressalta-se que muitos dos trabalhos realizados partem
de convênios e redes de parcerias entre Organizações Não Governamentais,
movimentos sociais, universidades e governos.
As redes de formação, apoio e assessoria técnica em Economia Solidária
fazem parte de um programa nacional conveniado com o Ministério do
Trabalho e Emprego e Secretaria Nacional de Economia Solidária MTE/Senaes.
Seu objetivo é desenvolver atividades formativas continuadas para educadores
e lideranças da economia solidária para qualificar as ações destes agentes e
contribuir com a elaboração e divulgação de diretrizes metodológicas para a
formação e assessoria técnica em economia solidária e também a realização
de atividades formativas e sistematização de orientações para a ampliação e
fortalecimento de redes estaduais e nacional de educadores em economia
solidária. Foram identificados dois programas/projetos:
Projeto Centro de Formação e Apoio à Assessoria Técnica em Economia
Solidária da Região Sul (2013 a 2017) – Rede CFES Sul (http://camp.org.br/
cfes-sul/).
Programa Economia Solidária do Instituto Marista de Solidariedade –
Rede CFES Sudeste (https://marista.edu.br/ims/?page_id=2564).
Centro de Formação e Apoio à Assessoria Técnica em Economia Solidária
do Nordeste – Rede CFES-NE (https://cfesne.wixsite.com/cursoregional/cfes-ne).
As universidades podem contribuir sobremaneira com a formação em
ES. Segundo o Plano Nacional de ES, ensino, pesquisa e extensão universitária
articulam-se de forma ampla com a ES e suas políticas públicas, com foco na
Tecnologia Social e na metodologia autogestionária, tanto no meio rural como
urbano (Brasil, 2015).
Assim, a extensão universitária pode oferecer cursos na formação
em ES, enquanto as incubadoras universitárias de empreendimentos de
cooperativas populares disponibilizam assessoria técnica aos empreendedores
do movimento.

97
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

Em 2017, 66 universidades federais, estaduais e privadas de 20 Estados


firmaram convênio com o MTE e o CNPq para incentivar incubadoras de
empreendimentos econômicos solidários (Brasil, 2018).
As incubadoras universitárias puderam ofertar qualificação e assistência
técnica aos empreendimentos solidários por meio de:
• interação entre empreendimentos e equipes de incubação,
produção e troca de conhecimento;
• princípios metodológicos inspirados na proposta de educação
popular, autogestão, interdisciplinaridade e aprendizado mútuo;
• troca entre saberes acadêmicos e saberes populares;
• formação de Redes de Economia Solidária;
• promoção de políticas públicas de economia solidária e do
desenvolvimento territorial sustentável;
• superação da extrema pobreza.
Esta seção mostrou que a EP converge para a ES na medida em que
ambas buscam a autonomia dos excluídos na superação da pobreza e das
condições adversas impostas por um sistema capitalista que privilegia
benefícios para alguns em detrimento da escassez para muitos. A EP fornece
os princípios educacionais para a formação em ES e a práxis desta enriquece
as atividades educacionais daquela. Fica evidente pela discussão aqui
apresentada que a educação em ES é uma das sustentações do movimento,
com a atividade de assessoria e formação sendo um dos eixos principais da
política pública para o desenvolvimento do setor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A complexidade de um mercado culturalmente voltado para as práticas
capitalistas e o histórico de opressão em que vive a América Latina e o Brasil
fazem surgir um movimento alternativo de cunho socioeconômico baseado
em valores humanísticos, éticos e de maior justiça social, a Economia Solidária.
Esse movimento é um alento aos excluídos do mercado de trabalho que
buscam libertação e autonomia na condução de sua vida. Os empreendedores
solidários, entretanto, precisam de capacitação e apoio para conquistarem
98
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

seu merecido espaço em meio à selvagem competição capitalista. Assim, os


processos educativos da Educação Popular encaixam-se como a pedra angular
para o fortalecimento da Economia Solidária.
São as pedagogias populares e suas metodologias participativas
comprometidas com a autogestão, a tecnologia social e a solidariedade
que criam condições ao homem para a quebra do paradigma dominante
da exploração do trabalho e veneração do lucro. Não se trata de desprezar
a educação formal, mas complementá-la com a informal, impregnada da
sabedoria histórica e popular, enraizada na cultura das comunidades que
conhecem suas possibilidades e limitações.
A reflexão pedagógica da Educação Popular sobre as atividades
de cooperação e autogestão solidária gera uma identidade única de
transformação social pelo trabalho solidário e ensino popular. Nesse
sentido, a dimensão formativa é percebida como essencial ao fortaleci-
mento da Economia Solidária e que esse movimento possa ser um vetor de
transformação para uma sociedade mais sustentável.

REFERÊNCIAS
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Diálogo, n. 18, p. 13-35, 2011.
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. 1º Plano Nacional de Economia
Solidária 2015-2019. Brasília, 2015.
BRASIL. Secretaria-Geral da Presidência da República. Marco de Referência da
Educação Popular Para as Políticas Públicas. Brasília, 2014.
BRASIL. Secretaria Nacional de Economia Solidária, Ministério do Trabalho e
Emprego, Rede CFES. Referenciais Metodológicos de Formação e Assessoria
Técnica em Economia Solidária. Brasília, 2016.
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego – MTE. Disponível em https://www.gov.
br/trabalho-e-previdencia/pt-br/noticias-e-conteudo/trabalho/repositorio-de-noti-
cias-trabalho/trabalho/ultimas-noticias/propostas-de-empreendimentos-economi-
cos-solidarios-e-sociais-receberam-r-25-milhoes-em-2017. Acesso em: 20 jan. 2018.
CARRILLO, Alfonso Torres. La educación popular: trayectoria y actualidad. Bogotá,
Colômbia: Editorial El Búho, 2012. 153 p.
FERRARINI, Adriane Vieira; ADAMS, Telmo. A educação popular na formação de
trabalhadores da economia solidária: avanços políticos e desafios pedagógicos.
Ciências Sociais Unisinos, v. 51, n. 2, p. 212-221, 2015.

99
CAPÍTULO 4 – EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Carlyle Tadeu Falcão de Oliveira

FIGUEIREDO, José Wnilson; FRANTZ, Walter. Interculturalidade crítica e educação


popular em diálogo. Roteiro, v. 43, n. 2, p. 673-706, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa.
1. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: três artigos que se completam. São
Paulo: Cortez, 1989.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Porto Alegre: Artmed, 2002.
GONTIJO, Felipe Marques Carabetti; PAULA, Ana Paula Paes de. Os sentidos da
economia solidária: reflexões sobre um curso de formação. Educação e Pesquisa,
v. 45, 2019.
MARCON, Telmo. Movimentos sociais e educação popular no contexto das
sociedades complexas: desafios políticos e epistemológicos. Conjectura: Filosofia
e Educação, v. 20, n. 2, p. 53-76, 2015.
MCLAREN, Peter. A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos
fundamentos da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
MELLO, Marco. Educação crítica e educação popular: um diálogo (norte-sul) entre
comadres. Disponível em: http://acervo.paulofreire.org:80/xmlui/handle/7891/4291.
Acesso em: mar. 2013.
OLIVEIRA, A. A. R. de; PAIVA, Marlúcia Menezes. O movimento da economia
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PEREIRA, Dulcinéia de Fátima Ferreira; PEREIRA, Eduardo Tadeu. Revisitando a
história da educação popular no Brasil: em busca de um outro mundo possível.
Revista HISTEDBR On-line, v. 10, n. 40, p. 72-89, 2010.
PERRITON, Linda; REYNOLDS, Michael. Critical management education: from
pedagogy of possibility to pedagogy of refusal? Management Learning, London,
v. 35, n. 1, p. 61-77, 2004.
ROSA, Geraldo Antonio; SILVA, Daniela Quadros. Educação popular na América
Latina e questão social: da desigualdade à resistência. Educação, v. 42, n. 2, p.
319-332, 2017.
SILVA, Antônio Ozaí da. Pedagogia libertária e pedagogia crítica. Revista Espaço
Acadêmico, Maringá, n. 42, nov. 2004. Disponível em: http://www.espacoacade-
mico.com.br/042/42pc_critica.htm. Acesso em: 21 mar. 2011.
ZITKOSKI, Jaime José. Educação Popular e economia solidária: um diálogo possível
e necessário. Diálogo, n. 17, p. 97-106, 2010.

100
C apítu lo 5

Empreendimentos
de Economia Solidária:
Natureza e Aspectos Legais

Diego Altieri
Pós-doutor pela FGV/Ebape e pesquisador no Programa de Estudos em Gestão Social
(Pegs) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). É coordenador acadêmico e professor do
curso “Gestão e Economia Solidária” na Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro.
Possui Doutorado em Administração pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro
(FGV/Ebape) em cotutela com a Università degli Studi di Roma Tor Vergata (Itália).
diego.altieri@hotmail.com
INTRODUÇÃO

O
s Empreendimentos de Economia Solidária (EESs) são organizações
coletivas formais ou informais de trabalhadoras e trabalhadores
e fundamentam-se nos princípios da cooperação, transparência,
autogestão, democracia, equidade, solidariedade e ação econômica (Singer,
2000; Razeto, 1993).
Estas organizações/empreendimentos agem com uma outra lógica de
racionalidade, em que há a valorização do indivíduo/grupo sobre o capital,
com uma tendência em se distanciar da racionalidade utilitária (Singer, 2000,
2002).
Os diversos empreendimentos de economia solidária propõem um
sistema alternativo de geração de trabalho e distribuição de renda no qual os
trabalhadores são os proprietários dos meios de produção, tomam decisões
de forma coletiva e compartilham os resultados entre todos os componentes
de forma equânime e justa. Isso exige que a cooperação seja o elemento
principal da racionalidade econômica dos EESs em substituição ao conceito
de lucratividade típico do mercado capitalista (Razeto, 1986; Singer, 2008).
O conceito abraça uma perspectiva de desenvolvimento sustentável
e socialmente justo voltado à redução da desigualdade social, ao consumo
consciente, à preservação ambiental e à garantia dos direitos fundamentais
dos cidadãos. Um avanço, portanto, em questões sociais e não apenas
econômicas (Gaiger, 2015).
As formas concretas de manifestação da Economia Solidária são
múltiplas e criam um verdadeiro “polimorfismo” organizacional. As principais
são:
• Cooperativas: referindo-se principalmente aos EESs de produção ou
de prestação de serviços com a finalidade de promover trabalho e
renda para os cooperados. Esta tipologia relaciona-se também aos
EESs de comercialização e de finanças (Brasil, 1971; Singer, 2000).

102
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

• Associações: aparecem nos EESs de produção com a finalidade


de oferecer trabalho e renda para os associados, mas sem
remunerá-los de forma direta. Esta tipologia é sobretudo presente
para dar apoio à atividade produtiva dos associados, especialmente
por meio do uso coletivo de bens e serviços pelos associados ou
de comercialização. Outra finalidade é o provimento de serviços
sociais e de desenvolvimento comunitário e associativo (Singer,
2000; Angher, 2003).
• Grupos informais: formam-se para atividade de produção de bens
para ofertar trabalho e gerar renda dos componentes do grupo,
em especial como forma de obter rendimentos complementares
ou quando a remuneração nos outros EESs é insuficiente. Apoiam
também a atividade produtiva dos outros componentes do grupo,
por meio da comercialização ou do uso coletivo de bens e serviços
(Gaiger, 2003).
• Clube de trocas: caracterizam-se por se organizarem em torno da
troca direta, ou seja, sem o uso de moeda, ou indireta, com o uso
de moedas sociais, de bens e serviços de modo sistemático (Singer,
2008; Carneiro; Bez, 2011).
• Redes: referindo-se a redes de colaboração solidária entre os EESs,
com o objetivo de potencializar a capacidade de troca, os negócios
intercooperativos, o intercâmbio de produtos e tecnologias, o sistema
de ajuda intercooperativo, entre outras finalidades (Mance, 2003).
• Empresas autogestionárias: empresas capitalistas que entram em
processo falimentar e os trabalhadores assumem a gestão do espaço
e dos meios de produção da empresa (Singer, 2000; Lima, 2004).
Neste capítulo apresentaremos as primeiras duas tipologias de EESs
– cooperativa e associação – mostrando os primeiros passos para a criação
destes empreendimentos.

O QUE É UMA COOPERATIVA


Entre as conceituações de cooperativa podemos citar a Lei nº 5.764/71,
no seu artigo 4º: “As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma
e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência,
constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais
103
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

sociedades...” e a definição da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB),


que define uma cooperativa como: “Uma sociedade de, pelo menos, vinte
pessoas físicas, unidas pela cooperação e ajuda mútuas, gerida de forma
democrática e participativa, com objetivos econômicos e sociais comuns,
cujos aspectos legais e doutrinários são distintos das outras sociedades” (X
Congresso Brasileiro de Cooperativismo – Brasília, 1988).
Cooperativas são, portanto, constituídas por trabalhadores, produtores
ou consumidores que visam às satisfações de interesses sociais e econômicas
dos cooperados e não com a finalidade de gerar lucro e concentrar capital
(Brasil, 1971).
Segundo os dados da Agenda Institucional do Cooperativismo 2020,1
no Brasil existem mais de 6,8 mil cooperativas espalhadas em 7 ramos de
atividades, com o envolvimento de mais de 14,2 milhões de associados e a
geração de 398 mil empregos formais.
O embasamento legal das cooperativas é definido pela:
• Constituição Federal (inciso XVIII do art. 5º; art. 146, inciso III, alínea
“c”; §2º do art. 174 da CF/88).
• Código Civil (artigos 1.093 a 1.096 do Código Civil Brasileiro
instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).
• Lei federal nº 5.764/71.
• Legislações específicas de acordo com o ramo de atividade da
cooperativa, crédito, trabalho, saúde, educação, etc.
As cooperativas de trabalho, além de se aterem às normas prescritas
nas legislações citadas, devem, ainda, cumprir quanto ilustrado na Lei nº
12.690/2012, dado o conteúdo referente a esse ramo ou modalidade (Brasil,
2012; Pereira; Silva, 2012).

OS RAMOS DO COOPERATIVISMO
As cooperativas brasileiras atuam em diversas áreas e para facilitar a
organização e representação foram organizadas por sete ramos de atividades,
estabelecidas pela OCB desde abril de 2019, cada uma com o seu próprio

1
Disponível em: https://www.ocb.org.br/publicacao/1/agenda-institucional-do-cooperativismo.
Acesso em 2 abr.2020

104
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

Conselho Consultivo. Anteriormente a esta data constavam 13 áreas de


atuação.2 Os sete ramos de atividades são: agropecuário, de consumo, de
crédito, de infraestrutura, de produção de bens e serviços, de saúde e de
transporte de cargas e passageiros (OCB, 2020).

Agropecuário
Este ramo reúne cooperativas de produtores rurais, agropastoris e de
pesca, em que os meios de produção são de propriedade dos cooperados.
Essas cooperativas têm o papel de estar à frente de toda a cadeia produtiva,
ou seja, de receber, comercializar, armazenar e industrializar a produção dos
cooperados, oferecendo assistência técnica e priorizando investimentos em
educação e na área social dos produtores cooperados. No Brasil, as primeiras
cooperativas agropecuárias foram organizadas em Minas Gerais a partir de
1907 com o objetivo primordial de eliminar os intermediários da comerciali-
zação da produção agrícola, em especial do café.

Consumo
Este ramo é formado pelas cooperativas dedicadas à compra em
comum tanto de produtos quanto de serviços de consumo para seus
cooperados. Tais cooperativas podem ser fechadas (admitem membros de
determinada categoria profissional, cooperativa ou sindicato) ou abertas
(qualquer pessoa pode associar-se). Com esta última reorganização dos ramos,
esta área incorpora também as cooperativas com o objetivo de contratar
serviços educacionais e para o consumo de serviços turísticos (antigamente
classificadas dentro do Ramo Turismo e Lazer). A Rochdale, definida como a
primeira cooperativa moderna do mundo, fazia parte desse ramo operando
na compra e venda comum de mercadorias. Assim como no Brasil, esse
ramo é definido o mais antigo com a Sociedade Cooperativa Econômica dos

2
As 13 áreas de atuação anteriores à reorganização do número de ramos do movimento
cooperativista nacional eram: Agropecuário, Consumo, Crédito, Educacional, Especial,
Infraestrutura, Habitacional, Produção, Mineral, Trabalho, Saúde, Turismo e Lazer, Transporte.
As razões da reorganização foram de tornar mais efetiva a comunicação com a base e ampliar
o alcance das ações de representação dos interesses do cooperativismo brasileiro.

105
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

Funcionários Públicos de Ouro Preto, fundada em 1889. Outras cooperativas


de consumo daquela época foram fundadas em Limeira (SP), em 1891, e a
Cooperativa de Camaragibe, em Pernambuco.

Crédito
Fazem parte deste ramo as cooperativas que prestam serviços
financeiros a seus cooperados, com foco no incentivo à poupança e ao
financiamento das necessidades dos seus associados. No Brasil, em 1902 foi
instituída a primeira cooperativa de crédito no Rio Grande do Sul. Este modelo
foi utilizado em pequenas comunidades rurais para financiamento agrícola.
Hoje, este ramo do cooperativismo é o mais organizado com a presença de
redes de serviços financeiros, como a Sicoob, o Sistema de Cooperativas de
Crédito do Brasil, composto por 450 cooperativas singulares,16 cooperativas
centrais e a sua Confederação.

Infraestrutura
Composto pelas cooperativas que prestam serviços relacionados à
infraestrutura a seus cooperados, tais como energia e telefonia. Conhecidas no
Brasil como cooperativas de eletrificação e de telefonia rural, alguns exemplos
referem-se à geração e compartilhamento de energia elétrica, seja por repasse
de energia de concessionária ou por geração própria.
O ramo habitacional e as suas cooperativas de construção de imóveis
para moradia foram incorporados a esta área. O objetivo destas cooperativas
é a construção, manutenção e administração de conjuntos habitacionais para
seus cooperados.

Trabalho, Produção de Bens e Serviços


Esse ramo é composto por cooperativas que prestam serviços especiali-
zados a terceiros ou que produzem vários tipos de bens e mercadorias, como
material reciclável e artesanato. Este ramo é a nova denominação do antigo
Ramo Trabalho, reunindo os antigos ramos de produção mineral, parte do
turismo e lazer e especial. Dessa maneira fazem parte deste novo ramo as
cooperativas responsáveis por todos os processos da atividade mineradora,
cooperativas que contribuírem para que as comunidades explorem todo o
106
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

seu potencial turístico, e todas as cooperativas que organizam a atividade


profissional de seus trabalhadores associados para prestar serviços como
autônomos, organizados num empreendimento próprio.

Saúde
O segmento é constituído por cooperativas voltadas para preservação
e promoção da saúde humana. Na última década assistimos à formação de
novas cooperativas incluindo médicos, dentistas, psicólogos, entre outros
profissionais de saúde. A primeira cooperativa médica foi fundada em Santos
(SP), em dezembro de 1967. Este ramo surgiu no Brasil e é visto como pioneiro
para outros países nos quais se expandiu o segmento.

Transporte
Este ramo é formado por cooperativas que atuam na prestação de
serviços de transporte de cargas e passageiros, em que os cooperados são
proprietários dos veículos cujo objetivo é agrupar profissionais autônomos
e dividir entre eles os fretes e serviços de transportes. São exemplos as
cooperativas de transporte individual de passageiros (táxi e moto-táxi), o
transporte coletivo de passageiros (vans e ônibus), o transporte de cargas
(caminhões e furgões) e o transporte escolar.

OS SETE PRINCÍPIOS DO COOPERATIVISMO


Antes de apresentar orientações sobre o passo a passo para formação
e legalização das cooperativas, é importante introduzir os princípios do
cooperativismo que nortearam a formação da Carta de Princípios da Economia
Solidária, fruto da 3ª Plenária Nacional de Economia Solidária no Fórum
Brasileiro de Economia Solidária (FBES).3
A Aliança Cooperativa Internacional (ACI) formalizou, em 1995, os sete
princípios do cooperativismo4 inspirada pelos 28 cooperados pioneiros de
Rochdale, na Inglaterra, a primeira cooperativa do mundo.

3
Mais informações sobre a Carta de Princípios da Economia Solidária estão disponíveis em: https://
fbes.org.br/2005/05/02/carta-de-principios-da-economia-solidaria/. Acesso em: 27 mar. 2020
4
Disponível em: https://www.ica.coop/en/cooperatives/cooperative-identity. Acesso em: 27
mar. 2020.

107
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

Tais princípios são linhas orientadoras de ação para as cooperativas


colocarem em prática os fundamentos da economia solidária e os princípios de
cooperação, transparência, autogestão, democracia, equidade, solidariedade
e ação econômica.
1 – Adesão voluntária e livre – Um modelo para todos.
As cooperativas são abertas para todas as pessoas que estão
interessadas em utilizar seus serviços e que estejam alinhadas ao seu
objetivo econômico e social, desde que o façam de forma livre e espontânea,
assumindo as responsabilidades como membro.
2 – Gestão democrática – Todos têm os mesmos poderes.
As cooperativas são organizações democráticas nas quais todos os
cooperados têm a mesma importância e poder de decisão, participando
ativamente na formulação das suas políticas e evolução da cooperativa.
Todos os cooperados têm igual direito de voto em uma cooperativa (a cada
cooperado é atribuído um voto) e os seus representantes oficiais são eleitos
por todo o grupo. As decisões ocorrem em assembleias em que todos têm o
direito de participar e votar. Tais direitos passam pelo princípio de autogestão,
em que os cooperados visam a alcançar melhores oportunidades de trabalho
e um melhor nível de renda, com condições mais favoráveis e fortalecendo a
sua cidadania, sua dignidade e sua autoestima.
3 – Participação econômica dos membros – Todos são donos.
Em uma cooperativa, os membros contribuem equitativamente para
o capital da organização, que é controlado democraticamente para todos os
associados. Parte desse capital é de propriedade comum da cooperativa e o
valor de sobra/perda é dividido igualmente entre os cooperados. Os membros
destinam os excedentes da cooperativa para as seguintes finalidades:
benefícios aos membros na proporção das suas transações com a cooperativa,
desenvolvimento da cooperativa por meio da criação de reservas, apoio a
outras atividades aprovadas pelos cooperados.
4 – Autonomia e independência – Todos têm autonomia de decisão.
Existe autonomia e liberdade de decisão nas cooperativas baseadas na
ajuda mútua dos seus membros. Quando houver acordos ou parcerias com
outras organizações, públicas ou privadas, ou recorrerem a capital externo
é importante que isso seja feito em condições de não afetar o controle
democrático pelos membros e a sua autonomia.
108
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

Um caso especial é o das cooperativas de crédito, que se enquadram


em instituições financeiras, estão submetidas à fiscalização do Banco Central
para garantir tal autonomia e controle interno.

5 – Educação, formação e informação – Todos ensinam e aprendem.


Um dos propósitos das cooperativas é se comprometer com o desenvol-
vimento dos seus cooperados, promovendo a educação, a formação e a
informação. O objetivo é que estes possam contribuir, eficazmente, para o
desenvolvimento das suas cooperativas, informando-os e capacitando-os
sobre a natureza e as vantagens da cooperação.

6 – Intercooperação – Todos se ajudam.


A ajuda mútua estende-se para as relações entre as diversas
cooperativas visando a dar mais força ao movimento cooperativo, trabalhando
em conjunto, por meio das estruturas locais, regionais, nacionais e interna-
cionais. A colaboração entre as cooperativas tem como objetivo juntar-se em
torno de um bem comum.

7 – Interesse pela comunidade – Todos saem ganhando.


As cooperativas trabalham para o desenvolvimento sustentável da
comunidade da qual fazem parte, gerando benefícios sociais e econômicos
não apenas para seus cooperados. Isto pode ser concretizado por meio da
geração de empregos, em disponibilizar o espaço da cooperativa, por oferecer
produtos e serviços com preços reduzidos ou por doação.
A Carta de Princípios da Economia Solidária elaborada pelo movimento
de economia solidária no Brasil fortaleceu e expandiu tais princípios
ressaltando o valor central do trabalho com foco em relações de reciprocidade
e com propósitos de consumo consciente, desenvolvimento sustentável com
preservação ambiental e respeito à diversidade e redução da desigualdade
social (FBES, 2005). Em dezembro de 2012 a 5ª Plenária Nacional de Economia
Solidária reafirmou a maioria dos princípios propondo uma aproximação ao
conceito de bem viver em substituição ao de desenvolvimento sustentável,
passando da ideia central de crescimento econômico ao bem-estar das
pessoas e a cooperação entre elas (FBES, 2013).

109
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

ASPECTOS LEGAIS E PASSO A PASSO


DE COMO CRIAR UMA COOPERATIVA
Várias entidades e organizações públicas e privadas5 recomendam
um passo a passo para formação e legalização das cooperativas oferecendo
orientações aos grupos interessados.
É importante destacar que boa parte das cooperativas populares
formaram-se de maneira informal e foram criadas com particularidades locais
em situações distintas, em que as etapas de constituição e articulação do EES
não passaram por planejamento, mas sim um processo natural ditado pelas
necessidades do grupo (Ipea, 2016). Não existe, portanto, um único modelo
com características pré-fixadas para criar uma cooperativa.
Seguem-se os procedimentos geralmente recomendados para a
constituição de uma cooperativa.
Reunir o grupo. O primeiro passo é juntar um número inicial de pessoas
interessadas em criar a cooperativa. Em geral, uma cooperativa precisa de, no
mínimo, 20 pessoas para ser formada legalmente. No caso das cooperativas
de trabalho ou produção foi definido, pela lei, um número mínimo de 7
pessoas. É importante que o grupo pense de forma semelhante a respeito do
trabalho que será desenvolvido para determinar os objetivos da instituição
e discutir de que forma seja possível avançar no projeto. Nesta fase é muito
importante para o grupo participar de processos educativos para se alinhar aos
princípios cooperativistas e da Economia Solidária: Incubadoras Tecnológicas
de Cooperativas Populares (ITCP) ou Projetos Alternativos Comunitários (PACs)
da Cáritas são alguns exemplos de entidades que podem apoiar e fomentar
projetos comunitários.
Elaborar o projeto. Depois de ter definido as necessidades dos
cooperados e os objetivos da cooperativa é preciso elaborar o projeto da
instituição. É primordial durante este processo de elaboração ter sempre claro
o objetivo em comum do coletivo e buscar meios para garantir a sustenta-
bilidade de longo prazo da cooperativa. Será importante realizar um estudo
de viabilidade econômica, social, financeira e mercadológica respondendo a

5
Alguns exemplos são as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs),
entidades como o Sistema OCB, a Sebrae e movimentos como o Movimento Nacional de
Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

110
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

questões como: Que tipo de atividade a cooperativa irá desenvolver? Para


quem a cooperativa irá desenvolver e oferecer seus produtos? Qual será a
expectativa da receita? Quais os custos envolvidos? De onde virá o dinheiro
para montar a cooperativa? De que forma a cooperativa irá garantir a susten-
tabilidade financeira? Quais são os pontos fortes e os pontos fracos do
coletivo? Que tipo de desafios serão enfrentados, sejam regionais, nacionais
ou internacionais? Também nesta fase será significativo o apoio de ITCP e
outras instituições de apoio às cooperativas.
Definir as regras. Elaborado o projeto, o grupo de fundadores deve
elaborar uma proposta de estatuto para a cooperativa. Este documento deve
conter as informações básicas da cooperativa, como o endereço da sede, a
distribuição das cotas, a política de entrada e de saída dos cooperados, as
regras de eleição da diretoria, etc. Esta proposta deverá ser discutida em
Assembleia, votada e aprovada pela maioria dos membros.
Fundar a cooperativa. A convocação da Assembleia Geral de
Constituição e a reunião que irá formalizar a fundação da cooperativa são
momentos cruciais para a estruturação da cooperativa. Nesta Assembleia
serão eleitos os dirigentes e os componentes do Conselho Fiscal e se eles
receberão, se necessário, um pró-labore para ocupar estes cargos. Também
serão definidos o prazo dos mandatos e o valor do capital social, e por fim a
redação da ata de constituição.
Formalizar a cooperativa. Como etapa sucessiva à Assembleia de
Constituição, para a cooperativa estar autorizada a atuar no mercado será
necessário solicitar dois registros: na Junta Comercial do seu município e
após aprovação dos documentos na Junta Comercial, estes deverão ser
encaminhados à Receita Federal para a retirada do CNPJ.

AS DIFERENÇAS ENTRE LUCRO E SOBRA


Existe uma confusão entre os conceitos de lucros e sobras que parece
surgir da desconfiança da possibilidade da existência de organizações
baseadas em uma racionalidade diferente da racionalidade utilitária típica de
organizações capitalistas (Cançado et al., 2013).
Enquanto uma empresa é uma organização na qual seus sócios se
reúnem em um empreendimento com base no investimento de um capital
a ser aumentado por meio da maximização do lucro (Cooper; Argrys; 2003),
111
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

uma cooperativa é uma organização de pessoas, democraticamente geridas


para prestar serviços aos seus associados e as sobras são os resultados dos
ingressos menos as despesas realizadas na cooperativa (ICA, 2013).
Em outras palavras nas empresas mercantis há valorização do capital
destacando-se que o objetivo é aquele de maior rentabilidade para quem
investiu mais capital, que possui mais poder de decisão sobre o destino do
lucro e, em caso de distribuição, recebe proporcionalmente mais; enquanto
nas cooperativas há valorização de pessoas e seu trabalho, e quem decide
quanto será cobrado de Taxa de Administração (receita da cooperativa) são
os próprios cooperados e cada um deles tem direito a um voto, independen-
temente do tempo que já está na cooperativa e da cota-parte investida na
organização (Cançado et al., 2013).
Em detalhe, o lucro contábil pode ser definido como o total do
rendimento obtido com a venda menos os gastos realizados no mesmo
período; enquanto a sobra é o total arrecadado, chamado Taxa de
Administração, menos o total gasto pelo custo de funcionamento da
cooperativa. Na verdade, as sobras não representam acréscimo patrimonial,
mas devolução dos recursos não utilizados (Polonio, 2001).
Após a apuração das sobras devem ser deduzidos os fundos legais: um
mínimo de 10% para o Fundo de Reserva, cujas funções básicas são cobrir
possíveis futuras perdas e valores para o crescimento da cooperativa; e um
mínimo de 5% das sobras para o Fundo de Assistência Técnica, Educacional e
Social (Fates) para o desenvolvimento dos cooperados na condição de pessoas
e profissionais (Brasil, 1971).

O CADASTRO NACIONAL DE EMPREENDIMENTOS


ECONÔMICOS SOLIDÁRIOS
Um dos objetivos da antiga gerência da Senaes foi fortalecer o diálogo
com os EESs e ampliar as políticas de economia solidária no Brasil por meio da
inclusão dos empreendimentos no Cadastro Nacional de Empreendimentos
Econômicos Solidários (Cadsol). Tal iniciativa visa a permitir aos empreen-
dimentos de acessar às políticas públicas nacionais de economia solidária e
demais políticas e programas públicos de financiamento, crédito, aquisição e
comercialização de produtos e serviços.
112
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

O Cadsol foi instituído com medida governamental de 20146 e os


empreendimentos cadastrados podem requer a Declaração de Empreendi-
mento Econômico Solidário (DCSOL) em caso atenderem aos requisitos de:
• ser uma organização coletiva, formada por pessoas físicas ou
formada por outros empreendimentos;
• exercer atividades de natureza econômica permanentes;
• ser uma organização auto gestionária, onde os membros participam
da gestão das atividades econômicas e da decisão sobre a partilha
dos seus resultados, de forma democrática;
• ser supra familiar;
• realizar reuniões ou assembleias periódicas para deliberação de
questões relativas à organização das atividades realizadas pelo
empreendimento.
O Cadsol é um instrumento de reconhecimento público da condição de EES, e
o consequente atendimento aos princípios da economia solidária, o que o habilitaria
a exigir a certificação de comércio justo e solidário (Antunes; Conti, 2019).

O QUE É UMA ASSOCIAÇÃO


A Lei nº 10.406/2002, em seu art. 53, define associação como:
“Constitui-se as associações pela união de pessoas que se organizem para
fins não econômicos”.
Uma associação, em sentido amplo, é qualquer iniciativa formal
ou informal que reúne pessoas físicas ou outras sociedades jurídicas com
finalidades comuns, visando superar dificuldades e gerar benefícios para os
seus associados.
A associação então é a forma mais básica para se organizar juridicamente
um grupo de pessoas, físicas ou jurídicas, para alcançar objetivos comuns. Ela
possui os mesmos princípios das cooperativas. Tratando-se de organização sem
fins lucrativos, toda a renda proveniente de suas atividades deve ser revertida
para o cumprimento dos seus objetivos estatutários. Elas então não perdem o seu
status de associação se realizam atividades econômicas para manter ou aumentar
seu patrimônio, as quais estão presentes em seu estatuto (Angher, 2003).

6
A Portaria MTE 1.780/2014 instituiu o Cadastro Nacional de Empreendimentos Econômicos
Solidários – Cadsol. Disponível em http://portal.mte.gov.br/trabalhador-economia-solidaria/
cadsol. Acesso em: 5 abr. 2020.

113
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

As associações estão regulamentadas tanto na Constituição Federal


quanto no Código Civil:
• Constituição Federal (artigo 5°, XVII a XXI, e artigo 174, §2º).
• Lei nº 10.406/2002, artigos 53 a 61 e 2031.
As atividades mais comuns de associações sem fins lucrativos são:
• prestar assistência social e cultural;
• atuar na defesa dos direitos das pessoas ou de classes específicas
de trabalhadores e/ou empresários;
• defesa do meio ambiente;
• clubes de serviços;
• entidades filantrópicas;
• religiosas;
• clubes esportivos, entre outros.

AS DIFERENÇAS ENTRE ASSOCIAÇÃO E COOPERATIVA


Associação e cooperativa baseiam-se nos mesmos princípios e
aparentemente buscam os mesmos objetivos. É fundamental, no entanto,
entender a diferença entre estas duas tipologias de EES para adequar-se ao
modelo desejado. A diferença essencial entre uma e outra está na natureza
dos dois processos (Veiga; Rech, 2002).
Enquanto as associações são indicadas para atividades com finalidade
de assistência social, educacional, cultural, representação política, defesa de
interesses de classe, filantropia (Angher, 2003), as cooperativas têm finalidade
comercial e econômica e seu principal objetivo é viabilizar o negócio produtivo
dos associados junto ao mercado (Brasil, 1971).
A associação é adequada para levar adiante uma atividade social,
enquanto a cooperativa é mais apropriada para desenvolver uma atividade
comercial em média ou grande escala de forma coletiva (Veiga; Rech, 2002).
Essa diferença de natureza estabelece também o tipo de vínculo e o
resultado que os participantes recebem das organizações. Nas cooperativas, os
participantes são os donos do patrimônio e os beneficiários dos ganhos. Uma
cooperativa de trabalho beneficia os próprios membros e o mesmo acontece
em uma cooperativa de produção. As sobras das relações comerciais e
econômicas estabelecidas pela cooperativa podem, por decisão de assembleia
114
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

geral, ser distribuídas entre os próprios cooperados. Ademais, há o repasse


dos valores relacionados ao trabalho prestado pelos cooperados ou da venda
dos produtos por eles entregues na cooperativa (Veiga; Rech, 2002).
Em uma associação, os associados não são propriamente os donos. O
patrimônio acumulado pela associação, no caso de sua dissolução, deve ser
destinado a outra instituição semelhante, conforme determina a lei. Os ganhos
eventualmente obtidos pertencem à sociedade e não aos associados, pois,
também de acordo com a lei, tais ganhos devem ser destinados à atividade-fim
da associação. Na maioria das vezes, os associados não são nem mesmo os
beneficiários da ação do trabalho da associação (Pinto, 2006).
A associação tem uma grande desvantagem em relação à cooperativa,
pois ela engessa o capital e o patrimônio. Por outro lado, tem algumas vantagens
que compensam para grupos que querem se organizar: o gerenciamento é mais
simples e o custo de registro é menor, contudo, se o objetivo for econômico, o
modelo mais adequado é a cooperativa (Veiga; Rech, 2002).
A Tabela 1 destaca, resumidamente, outras diferenças entre associações
e cooperativas.
Tabela 1 – As principais diferenças entre associações e cooperativas

Fonte: Veiga; Rech, 2002.

115
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje no Brasil a economia solidária expressa-se por meio dos empreen-
dimentos econômicos solidários, destacando-se que as cooperativas são as
tipologias mais comuns e difundidas.
Singer (2003, p. 116) declara que a economia solidária é um conceito
extensivamente utilizado em diversas partes do mundo, “com acepções
variadas, mas que giram todas ao redor da ideia da solidariedade, em
contraste com o individualismo competitivo que caracteriza o comportamento
econômico padrão nas sociedades capitalistas”.
No Brasil existem duas vertentes cooperativistas chamadas de coopera-
tivismo popular ou solidário e cooperativismo tradicional ou capitalista. As
diferenças são baseadas na dimensão política das primeiras e no alto grau
de formalização das segundas. Enquanto o cooperativismo tradicional
está associado a uma visão empresarial dos empreendimentos, utilizando
ferramentas gerenciais vinculadas ao mercado competitivo e à racionalização
administrativa e organizacional; o cooperativismo popular está associado
ao conceito de autogestão e ao estabelecimento de espaços democráticos
para uma maior integração econômica dos excluídos, viabilizando melhores
oportunidades de trabalho e um melhor nível de renda por meio de um
comércio justo, solidário e sustentável.
A Lei n. 12.690/2012 e o Projeto de Lei 137/2017,7 que dispõe sobre a
Política Nacional da Economia Solidária e os empreendimentos econômicos
solidários, são os marcos regulatórios para a ascensão do autêntico coopera-
tivismo focado no bem comum e na transformação social de todos os seus
envolvidos, fortalecendo a cidadania e a democracia.

REFERÊNCIAS
ANGHER, A. J. (org.). Novo Código Civil: Lei Nº 10.406/2002. 1. ed. São Paulo:
Rideel, 2003.

7
No dia 11 de dezembro de 2019, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei nº 137 de 2017 e
o remeteu à Câmara dos Deputados para analisar as alterações feitas na Comissão de Assuntos
Econômicos. Para consultar notícias vinculadas e tramitação do projeto de lei acessar o site
do Senado Federal. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/
materia/131528. Acesso em: 3 abr. 2020.

116
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

ANTUNES, D. de C.; CONTI, B. R. O comércio justo e solidário na política pública


federal: histórico e perspectivas. In: Boletim Mercado de Trabalho: conjuntura e
análise. Brasília: Ipea, n. 66, abr. 2019, p. 205-218. 238 p. Disponível em: http://
www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=3473
2&Itemid=9. Acesso em: 7 abr. 2020.
BRASIL. Lei Federal nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971. Define a política nacional
do cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, e dá
outras providências, 1971. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L5764.htm. Acesso em: jul. 2019.
BRASIL. Projeto de Lei no 4.685, de 8 de novembro de 2012. Dispõe sobre a Política
Nacional de Economia Solidária e os empreendimentos econômicos solidários,
cria o Sistema Nacional de Economia Solidária e dá outras providências. Brasília:
Câmara dos Deputados, 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7775.htm. Acesso em: 1 jul. 2019.
CANÇADO, A. C. et al. Desfazendo um mal-entendido: discutindo as diferenças
entre lucros e sobras. Administração Pública e Gestão Social, v. 5, n. 1, p. 28-33,
2013.
CARNEIRO, G.; BEZ, A. C. Clubes de trocas: rompendo silêncio, construindo outra
história. 2. ed. Curitiba: Editora Popular: Cefuria, 2011.
COOPER, C. I.; C. ARGRYS. (org.). Dicionário enciclopédico de administração.
Coordenação da tradução Lenita Maria Rimoli Esteves e Celso Augusto Rimoli.
São Paulo: Atlas, 2003.
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FBES. Fórum Brasileiro de Economia Solidária. V Plenária Nacional de Economia
Solidária – Documento Síntese. Economia Solidária: bem viver, cooperação e
autogestão para um desenvolvimento justo e sustentável. 2013. Disponível em:
https://fbes.org.br/wp-content/uploads/Acervo/Institucional/Documento_final_V_
Plenaria_es.pdf. Acesso em: 28 mar. 2020.
GAIGER, L. I. A economia solidária diante do modo de produção capitalista.
Caderno CRH, v. 16, n. 39, 2003.
GAIGER, L. I. A economia solidária na contramarcha da pobreza. Sociologia,
problemas e práticas, n. 79, p. 43-63, 2015.
ICA. International Cooperative Alliance. Co-operative, identity, values & principles.
2013. Disponível em: http://2012.coop/en/what-co-op/co-operative-identity-values-
-principles. Acesso em: 3 jul. 2019.

117
CAPÍTULO 5 – EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA: NATUREZA E ASPECTOS LEGAIS
Diego Altieri

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Os novos dados do mapeamento


de economia solidária no Brasil: nota metodológica e análise das dimensões
socioestruturais dos empreendimentos. Brasília, DF: Ipea, 2016.
LIMA, J. C. O trabalho autogestionário em cooperativas de produção: o paradigma
revisitado. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 56, p. 45-62, 2004.
MANCE, E. A. Redes de colaboração solidária. In: CATTANI, A. D. (org.). A outra
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tivismo. 2020. Disponível em: https://www.ocb.org.br/publicacao/1/agenda-institu-
cional-do-cooperativismo. Acesso em: 2 abr. 2020.
PEREIRA, C. M.; SILVA, S. P. A nova lei de cooperativas de trabalho no Brasil:
novidades, controvérsias e interrogações. Mercado de Trabalho, v. 53, n. 90, p.
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PINTO, J. R. L. Economia solidária: de volta à arte da associação. Porto Alegre:
UFRGS Editora, 2006.
POLONIO, W. A. Manual das sociedades cooperativas. 3. ed. São Paulo: Atlas,
2001.
RAZETO, L. M. Economía popular de solidaridad: identidad y proyecto en una
visión integradora. Santiago: Area Pastoral Social de la Conferencia Episcopal de
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RAZETO, L. M. Los caminos de la economía de solidaridad. Santiago do Chile:
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SINGER, P. Economia solidária: um modo de produção e distribuição. In: SINGER, P.
(org.). A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego.
São Paulo: Contexto, 2000.
SINGER, P. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2002.
SINGER, P. Economia solidária. In: CATTANI, A. D. (org.). A outra economia. Porto
Alegre: Veraz Editores, 2003. p. 116-125.
SINGER, P. The Recent Rebirth of Solidary Economy in Brazil. In: SANTOS, B. Sousa
(ed.). Another Knowledge Is Possible: Beyond Northern Epistemologies. London:
Verso, 2008. p. 15-38.
VEIGA, S. M.; RECH, D. Associações: como constituir sociedades civis sem fins
lucrativos. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

118
C apítulo 6

Comercialização, Prestação de
Serviços e Construção de Redes
na Economia Solidária

Júlio Cesar Andrade de Abreu


Professor-adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Volta Redonda-RJ.
Pesquisador e docente dos Programas de Pós-Graduação em Administração
(PPGA/MPA) e em Administração Pública (PGPPD/Profiap) na UFF. Doutorado
em Políticas Públicas na Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
julioandrade@id.uff.br
INTRODUÇÃO

O
trabalho serial, em larga escala, com forte padronização, uniformização
e calçado em uma lógica de forte controle revela um modelo ideológico
de produção, que transborda para processos de comercialização dentro
de uma concepção conhecida como taylorista-fordista (Correa et al., 2007). Tal
modelo difere da prática da Economia Solidária, que possui uma concepção
dialógica, cooperativa e colaborativa. É na comercialização e na prestação de
serviços, contudo, que as realidades taylorista-fordista com a Economia Solidária
muitas vezes se encontram e, em alguns casos, dividindo o mesmo espaço de
uma feira livre ou a mesma prateleira de uma mercearia.
É na comercialização e na prestação de serviços que se identifica forte
relação com a geração de renda dos trabalhos na Economia Solidária.
O processo de comercialização e prestação de serviços em Empreendi-
mentos Econômicos Solidários (EESs) mostra-se como um grande desafio na
atualidade brasileira. De acordo com diversos estudos realizados (Ipea, 2016;
Gaiger, 2017; Rêgo, 2017) ao longo dos últimos anos, o cenário delineado no
caso brasileiro é de muita dificuldade para a comercialização e prestação de
serviços para EES, considerando que “por volta de 61% dos empreendimentos
afirmaram ter dificuldades na comercialização. Em virtude disso, a comercia-
lização figura como tema de Conferências Temáticas na Conferência Nacional
da Economia Solidária, bem como em eixos temáticos tanto das Plenárias
Nacionais de Economia Solidária como de Grupos de Trabalho do Fórum
Brasileiro de Economia Solidária” (Rêgo, 2017, p. 5).
O tema da comercialização e prestação de serviços na Economia
Solidária ganhou contornos dramáticos quando da conjuntura presente, em
que o quadro de pandemia fez com que a realização de feiras livres e outras
atividades de circulação nas cidades e contatos pessoais sejam evitados
ou proibidos,1 O impacto na realidade local é gigantesco, juntamente onde

1
Aqui se faz referência ao fato ocorrido no dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial
da Saúde (OMS) declarou o surto causado pelo novo Coronavírus (Sars-CoV-2) como pandemia.
Com milhares de contaminados e mortos espalhados pelo Brasil e pelo mundo, uma das medidas
indicadas pela OMS para contenção da pandemia foi o isolamento social, o que inclui quarentena
em várias cidades com limitação das atividades comerciais, eventos sociais, entre outras ações.

120
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

operam majoritariamente os empreendimentos econômicos solidários,


segundo o Sistema de Informações em Economia Solidária (Sies) e o
mapeamento materializado no Atlas Digital da Economia Solidária. De acordo
com o Sies, Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) são organizações
que possuem como características centrais (SIES, 2014):
coletivas – organizações suprafamiliares, singulares e complexas, tais
como: associações, cooperativas, empresas autogestionárias, grupos
de produção, clubes de troca, redes, etc., cujos participantes ou sócios
exercem coletivamente a gestão das atividades, assim como a alocação
dos resultados; permanentes que disponham ou não de registro legal,
prevalecendo a existência real e que realizam atividades econômicas
de produção de bens, de prestação de serviços, de fundos de crédito
(cooperativas de crédito e os fundos rotativos populares), de comercia-
lização e de consumo solidário.

O Sies2 é um projeto desenvolvido pela Universidade do Vale do Rio dos


Sinos em parceria com a então Secretaria Nacional de Economia Solidária que
efetuou um amplo mapeamento da Economia Solidária no Brasil. De acordo
com Sies (2014):
O primeiro mapeamento foi realizado em 2005, registrando em sua
primeira etapa aproximadamente 18 mil empreendimentos. Em 2007,
a base de dados foi ampliada com um mapeamento complementar,
chegando-se a quase 22 mil empreendimentos em todo o Brasil. O
segundo mapeamento foi realizado entre 2010 e 2013 e abrangeu os
Empreendimentos Econômicos Solidários (EES), as Entidades de Apoio
e Fomento (EAF) e também políticas públicas voltadas à Economia
Solidária (PPES). As informações nele coletadas constituem um retrato
da Economia Solidária no Brasil, o mapeamento deu origem ao Sistema
de Informações em Economia Solidária (Sies), permitindo que milhares
de EESs de base coletiva e autogestionária fossem identificados e
caracterizados. As informações nele coletadas constituem um retrato
da Economia Solidária no país.

Tal mapeamento resultou em diversos estudos que nos apresentam um


detalhamento sobre o perfil dos EESs brasileiros e focalizaremos neste capítulo
a dimensão da comercialização e prestação de serviços na Economia Solidária
para melhor compreender suas características e discutir seus desafios.

2
O mapeamento efetuado data de 2013. Para mais detalhes acessar http://sies.ecosol.org.br/

121
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

O presente capítulo está estruturado, além desta introdução, em


duas partes: na primeira é realizada uma análise dos dados do mapeamento
estruturado no “Atlas Digital Sies”, com informações sobre o processo de
comercialização e prestação de serviços em EES. O objetivo é caracterizar o
processo de comercialização e serviços no cenário brasileiro, detalhando suas
principais dificuldades.
Na segunda parte é desenvolvida uma discussão sobre o potencial das
redes e cadeias para o processo de comercialização e prestação de serviços
em Economia Solidária. Após a discussão destas duas partes são tecidas as
considerações finais do capítulo.

COMERCIALIZAÇÃO E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Discutir a comercialização e a prestação de serviços na Economia
Solidária mostra-se um grande desafio pela diversidade e complexidade
desta temática. Seja pela variedade regional, que imprime desafios ao tema,
seja pela particularidade de cada EES, este é um assunto sensível para o
movimento de Economia Solidária.
Analisando em perspectiva, temos como processos que antecedem a
comercialização e a prestação de serviços a dinâmica produtiva em si. Trata-se,
segundo Correa et al. (2007), do núcleo gerador de riqueza, em que ocorre a
agregação de valor por meio da transformação de insumos e matérias-primas
em produtos para a comercialização. Ocorre que a organização do processo
produtivo (que envolve o escoamento de produtos e todo o fluxo logístico) é
repleto de atravessadores. Estes atravessadores fazem a intermediação entre
os produtores e as grandes redes atacadistas e, muitas vezes, após o benefi-
ciamento o produto volta para ser comercializado no local onde foi produzido.
De acordo com Correa et al. (2007, p. 2), trata-se de um efeito “bumerangue”,
quando “muitas vezes (...) o produto volta para ser comercializado no mesmo
local onde foi produzido. É importante pensarmos que, inicialmente, o
melhor mercado para a Economia Solidária é o mercado local ou no máximo
o mercado regional, principalmente para os produtos alimentícios”.
E é no mercado local, justamente, onde se concentra a maior expressão
do comércio de Economia Solidária, de acordo com o Sies. Rêgo (2017, p. 6),
ao analisar a base de dados do Sies, observa que “com relação à abrangência

122
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

da comercialização, verifica-se que a maioria dos empreendimentos


comercializa no mercado local ou comunitário (66,72%) e no municipal
(64,69%)”.
De fato, ao analisarmos os dados do Sies fica nítida a vocação local
da comercialização dos EESs, conforme apontado por Rêgo (2017), e que
corrobora com a leitura efetuada por Correa (2007) sobre a necessidade de
um maior foco no mercado local ou regional como prática do comércio em
Economia Solidária.
Quando se questiona “Para quem é feita a comercialização de produtos
do empreendimento?” no mapeamento realizado em 2013, o resultado
aponta para 69% dos empreendimentos com venda direta ao consumidor
final, como principal forma de comercialização, o que se alinha com a prática
do mercado local como lócus majoritário da ação dos EESs, como se pode
observar Figura 1.
Figura 1 – Questão: “Para quem é feita a comercialização de produtos
do empreendimento?”
0,02 0,02 0,05

0,19
0,69 0,16

0,37

Venda direta ao consumidor final como forma de comercialização


Venda a revendedores/ atacadistas como forma de comercialização
Venda a órgão governamental como forma de comercialização
Venda para empresas privadas de produção como forma de comercialização
Venda a outros EES como forma de comercialização
Troca com outros EES como forma de comercialização
Outros

Fonte: Sies (2014).

Tanto a dimensão local como o foco no consumidor final são um traço


característico dos Empreendimentos Econômicos Solidários. Em contrapartida,
poucas relações são efetuadas com outros EESs. Os itens “Venda a outros EESs
como forma de comercialização” e “Troca com outros EESs como forma de
comercialização” correspondem respectivamente a 5,48% e 2,40%. Ainda que

123
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

exista uma variação de acordo com o segmento (empreendimentos agrícolas


possuem uma relação mais forte como outros EESs), tal aspecto representa
um caminho potencializador que poderia ser explorado pelos EESs e ainda,
objeto de políticas públicas para o fomento da Economia Solidária ou mesmo
foco de ações de assessoria e pesquisa acadêmica.
Ao passo que o mercado, digamos, não solidário, conta com políticas
públicas bastante consolidadas e a depender do ramo, com fortes subsídios,
inclusive com compra massiva por parte de órgãos governamentais, o mesmo
não se verifica na prática comercial dos EESs. Apenas 16,29% realizam “Venda
a órgão governamental como forma de comercialização”. E aqui reside um
importante segmento de fortalecimento do movimento de Economia Solidária.
Devemos considerar que o maior comprador do Brasil é o Estado, com uma
movimentação gigantesca de recursos que, uma vez articulados, poderiam
consistir em relevante política pública para fomento da Economia Solidária
e seus EESs. Para fins de exemplificação, o Decreto Federal 10.024 de 20193
estabelece que é obrigatória a realização de pregões eletrônicos para a compra
de bens e serviços por governos estaduais e municipais. Estima-se, segundo
Costa e Terra (2019), que o montante girou em torno de 47 bilhões de reais
no ano de 2017. Segundo o autor:
As contratações governamentais de bens e serviços têm sua
importância demonstrada por aspectos diversos, dos quais os mais
comumente relatados são o montante envolvido e a importância das
compras públicas para a economia dos países. Essa importância pode
ser evidenciada pelo percentual do Produto Interno Bruto (PIB) corres-
pondente a compras públicas, que, nos países membros da OCDE, foi
em média 13,8% no ano de 2015. Em relação ao Brasil, os números
divergem, e não é possível encontrar um consenso acerca do real
volume de aquisições governamentais na economia. Entretanto, os
dados referentes às aquisições registradas no painel de compras do
governo federal mostram que, no ano de 2017, mais de R$ 47 bilhões
em bens e serviços foram adquiridos (Costa; Terra, 2019, p. 7).

Se este montante representa a relevância da criação de políticas


públicas de fomento para a comercialização de EESs, ao mesmo tempo a
obrigatoriedade da realização de pregões eletrônicos (o que traz diversas

3
Para mais detalhes ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/
D10024.htm

124
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

vantagens para o processo de compras públicas que envolvem a transparência,


segurança, economicidade, entre outros), pode limitar a participação de EESs,
uma vez que poucos fazem uso de meios eletrônicos para comercialização,
como pode ser observado na Figura 2.
Figura 2 – Quais as principais formas de organização da comercialização
utilizadas pelo empreendimento?
0,02

0,24

0,56

0,54

Lojas ou espaços fixos de venda como principal forma de organização da comercialização


Feiras como principal forma de organização da comercialização
Central (is) de comercialização como principal forma de organização da comercialização
Comércio eletrônico como principal forma de organização da comercialização

Fonte: Sies (2014).

Quando analisada a questão sobre “Quais as principais formas de


organização da comercialização utilizadas pelo empreendimento?”, detalhada
na Figura 2, identifica-se que as lojas ou espaços fixos de venda, juntamente
com as feiras, são as principais formas de organização do processo comercial
dos EESs, ao mesmo tempo que o emprego de ferramentas de comércio
eletrônico é pouco observado, o que corrobora o foco local e o contato direto
com o consumidor final, indicado nos dados anteriores. E ainda, coloca-se
como desafio para que os EESs possam acessar e ampliar suas vendas para
órgãos governamentais, dado o cenário de ampliação do uso de ferramentas
eletrônicas para compras públicas.
Quando se observa as principais dificuldades encontradas pelos
Empreendimentos Econômicos Solidários no mapeamento efetuado pelo Sies
temos o seguinte quadro:

125
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

Tabela 1 – Quais as principais dificuldades na comercialização dos produtos?


Itens Qtde Frequência
Falta de capital de giro 711 27,05%
Estrutura para comercialização (local, espaço,
587 22,34%
equipamentos, etc.) inadequada
A concorrência, os atravessadores, existência de
481 18,30%
monopólios
Dificuldade ou custo elevado de transporte 476 18,11%
Dificuldade em manter a regularidade do fornecimento 427 16,25%
Os preços praticados são inadequados 370 14,08%
O empreendimento tentou mas não conseguiu encontrar
354 13,47%
quantidade suficiente de clientes
Precariedade das estradas para escoamento da produção 294 11,19%
Os clientes exigem um prazo para o pagamento 291 11,07%
Falta de registro legal para a comercialização (emitir nota
268 10,20%
fiscal, etc.)
Os compradores só compram em grande quantidade 205 7,80%
Não há sócios disponíveis para cuidar da comercialização 195 7,42%
Falta de registro sanitário ou alvará 173 6,58%
Os produtos não são conhecidos 148 5,63%
O empreendimento já sofreu muitos calotes e não sabe
135 5,14%
como evitar
Ninguém do empreendimento sabe como se faz uma venda
68 2,59%
(argumentação, negociação, etc.)
Resultados do Brasil agrupado por macrorregiões totalizado.
Múltiplas escolhas possíveis por empreendimento.
Fonte: Sies (2014).

Uma leitura da Tabela 1 deixa clara a diversidade de dificuldades


enfrentadas pelos EESs. De maneira agregada podemos ranquear as
principais dificuldades relatadas nos quatro primeiros postos (falta de capital
de giro; estrutura para comercialização; concorrência e custo de transporte),
com um total de 85,81%. De modo geral pode-se afirmar que 8 entre 10
empreendimentos sofrem com ao menos uma das dificuldades relatadas
neste quadro, evidenciando a diversidade do processo de comercialização
na Economia Solidária e, ao mesmo tempo, apontando pistas para seu
enfrentamento.

126
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

Rêgo (2017) sintetiza assim o quadro apresentado pela pesquisa do


mapeamento Sies:
• Crédito;
• Formação;
• Logística e
• Não articulação em rede.
Estes agrupamentos sintetizam bem o quadro de dificuldades
enfrentado pelos EESs. Direcionaremos nossa análise no próximo tópico para
o último item elencado neste agrupamento, qual seja, a não articulação em
rede e o potencial de tal formato para a comercialização e prestação de serviço
em Empreendimentos Econômicos Solidários.

REDES E SEU POTENCIAL PARA COMERCIALIZAÇÃO


NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
De acordo com Mance (2002), a dinâmica da Economia Solidária pode
ser descrita mediante um processo de fluxos e contrafluxos que envolvem
todas as etapas da produção de um bem ou serviço, até o consumidor final.
Trata-se, pois, de uma cadeia produtiva, que nas palavras de Mance (2002, p.
2) possui a seguinte definição:
As cadeias produtivas compõem todas as etapas realizadas para
elaborar, distribuir e comercializar um bem ou serviço até o seu consumo
final. Algumas concepções aí também integram o financiamento,
desenvolvimento e publicidade do produto, considerando que tais
custos compõem o custo final e lhe incorporam valor a ser recuperado
graças à venda do produto. Em outras palavras, uma cadeia produtiva
pode ser mapeada, levantando-se os itens que foram consumidos ou
realizados para a produção de um bem ou serviço.

O olhar baseado no prisma das cadeias produtivas fornece interessantes


subsídios para uma compreensão mais completa, por assim dizer, das
dificuldades enfrentadas pelos EESs. Tomemos como lastro a articulação
de Empreendimentos Econômicos Solidários ordenados em três elementos
básicos, que levam produtos ou serviços aos consumidores finais, como
representado na figura a seguir.

127
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

Figura 3 – Fluxo de um Empreendimento Econômico Solidário

Fonte: Elaborada pelo autor.

De acordo com Correa et al. (2007), a etapa do “processo produtivo”


envolve a transformação de insumos e matérias-primas em produtos e serviços.
Trata-se de um processo de agregação de valor que faz contraponto ao modelo
taylorista-fordista. A etapa da “organização do trabalho e escoamento da
produção” lida diretamente com o processo logístico, de embalagens e benefi-
ciamento. Já a “comercialização” envolve a venda e a prestação de serviços.
Demanda uma estrutura eficiente de distribuição e apresenta, no caso do EES,
forte foco no consumidor final e no âmbito local. Um exemplo bastante citado
quando se discute o processo de comercialização são as feiras livres. Sobre este
espaço de comercialização, Correa et al. (2007, p. 2) afirmam que:
A feira tem um significado para a identidade cultural. É um espaço de
trocas, intercâmbios e articulações com todos/as os/as habitantes. É,
portanto, o espaço de relação direta entre produtores e consumidores.
Precisamos de uma política pública que garanta condições dignas de
comercialização para a Economia Solidária. Ou seja, devemos disputar
desde o território o lugar da Economia Solidária.

Já a etapa do “consumo” traz consigo a necessidade de uma discussão


sobre seu significado e mais ainda, sobre a ideia de consumo responsável
e solidário, que se vincula à lógica do comércio justo (Mance, 2000, 2002;
Correa et al. 2007; Higa, 2005). O consumo aqui não pode ser confundido
com o consumismo, fortemente em voga na sociedade contemporânea.
Esta distinção é necessária para que as relações de consumo possam ser
repensadas. Para Correa et al. (2007, p. 2), “ao falar do consumo solidário,
não podemos deixar de refletir a importância de espaços fixos de comercia-
lização, onde nossos produtos possam ser encontrados. Só assim teremos
condições de realmente garantir um público consumidor. O grande problema

128
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

em muitos lugares é ter acesso aos produtos, sobretudo alimentares. Não há


uma estrutura à disposição e o contato com os empreendimentos é muito
difícil pela distância”.
Tal argumentação nos remete ao debate sobre as dificuldades para
o processo de comercialização dos EESs. E ao agruparmos os fluxos de um
Empreendimento Econômico Solidário (como apresentado na Figura 3) com as
dificuldades relatadas na Tabela 1, vistos anteriormente, podemos vislumbrar
os pontos das principais dificuldades apresentados nos fluxos organizacionais,
conforme demonstrado na Figura 4.
Figura 4 – Fluxos com principais dificuldades de comercialização

Fonte: Elaborada pelo autor.

As dificuldades identificadas no Sies, ao serem agrupadas sob um fluxo


de cadeia produtiva, indicam que alguns caminhos a serem percorridos pelos
EESs passam por uma ação organizada em rede, alinhando as visões de Rêgo
(2017), Mance (2000, 2002) e Correa et al. (2007).
De acordo com Mance (2002, p. 2):
Quando consideramos as cadeias produtivas em economia de rede,
partimos sempre do consumo final e produtivo, para então compre-
endermos as conexões e fluxos de matérias, informações e valores
que circulam nas diversas etapas produtivas em seu processo de
realimentação. A reorganização solidária das cadeias produtivas, sob
a lógica da abundância, amplia os benefícios sociais dos empreendi-
mentos em função da distribuição de riqueza que operam visando
sustentar o consumo nas próprias redes.

129
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

A proposição central de Mance (2000, 2002) envolve a construção de


redes para fortalecimento dos Empreendimentos Econômicos Solidários,
enfrentando suas principais dificuldades de comercialização e prestação de
serviços e,, ao mesmo tempo, lançando bases para uma outra racionalidade
nas relações de troca.
Trata-se, pois, de uma dinâmica de substituição de fornecedores de
insumos que operam sob a lógica de capital por aqueles que operem por
meio da lógica solidária (Mance, 2002). Ainda de acordo com Mance (2002,
p. 2), “substituir insumos elaborados de maneira ecologicamente incorreta,
por outros elaborados de maneira ecologicamente sustentável. Isso possibi-
litaria uma correção de fluxos de valores, o empoderamento cada vez maior
da economia solidária e a propagação de um desenvolvimento socialmente
justo e ecologicamente sustentável”.
Trata-se de uma proposição para remontagem das cadeias produtivas
em redes de Empreendimentos Econômicos Solidários. Dada a escala
envolvida, este é um desafio de grande monta. Sua efetivação pode
representar uma transformação na prática de milhares de EESs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A necessidade de se desenvolver caminhos para superação dos desafios
enfrentados para comercialização e prestação de serviços em Empreendi-
mentos Econômicos Solidários é cada vez mais presente. Os dados que foram
analisados e discutidos ao longo deste capítulo deixam claras a diversidade e
a complexidade exigida para a superação dos desafios impostos.
Um dos caminhos apontados na literatura envolve a construção de redes
que possam remontar as cadeias produtivas dos empreendimentos. Trata-se
de uma missão desafiadora. Sem integração à realidade dos Empreendimentos
Econômicos Solidários continuaram enfrentando um ambiente mercadológico
bastante hostil e desigual. A superação das dificuldades apresentada passa
por um processo de maior integração nas diversas fases da cadeia produtiva:
produção, distribuição, comercialização, são elementos que devem ser vistos
de maneira integrada e, mais do que isso, deve-se buscar a integração entre
os diferentes EESs para construção de redes.
130
CAPÍTULO 6 – COMERCIALIZAÇÃO, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E CONSTRUÇÃO DE REDES NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Júlio Cesar Andrade de Abreu

Por mais complexo e em certa medida até utópica, que a instituição


de redes de Economia Solidária possa parecer, trata-se de um caminho
viável e urgente. Seja pelos dados analisados, seja pela realidade dos EESs, a
construção de um caminho que viabilize a integração e a articulação em redes
pode representar um novo (e possível) mundo para os empreendimentos e
trabalhadores que vivem a Economia Solidária.

REFERÊNCIAS
CORREA, J. J. et al. Produção, comercialização e consumo solidários. In: Caderno de
aprofundamento aos debates, Rumo à IV Plenária Nacional de Economia Solidária.
Brasília: Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), 2007.
COSTA, Caio César de Medeiros; TERRA, Antônio Carlos Paim. Compras públicas:
para além da economicidade. Brasília: Enap, 2019.
GAIGER, Luiz Inácio. The Solidarity Economy in South and North America:
Converging Experiences. Bras. Political Sci. Rev., São Paulo, v. 11, n. 3, e0002,
2017.
HIGA, Willian Toshio Minatogawa. As redes de economia solidária: convergências e
divergências entre a cidadania e a inovação tecnológica. In: SIMPÓSIO ESTADUAL
LUTAS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA, 1., 2005. Londrina, PR: Gepal – Ciências
Humanas UEL, 2005.
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Novos dados do mapeamento de
economia solidária no Brasil: nota metodológica e análise das dimensões socioes-
truturais dos empreendimentos. Brasília, DF: Ipea, 2016.
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A experiência da rede brasileira
de comercialização solidária (Rede ComSol). In: Mercado de Trabalho: Conjuntura
e Análise, Brasília, DF, n. 62, abr. 2017.
MANCE, Euclides André. Cadeias produtivas em economia de rede. Revista
Candeia, a. I, n. 1, 2000.
MANCE, Euclides André. Redes de colaboração solidária. (Objeção 10). Petrópolis:
Editora Vozes, 2002.
MTE; SENAES. Estratégia territoriais de inclusão socioprodutiva. 2012. Brasília, DF:
Ministério do Trabalho; Secretaria Nacional de Economia Solidária,
RÊGO, Diogo Ferreira de Almeida. As dificuldades de comercialização da economia
solidária. Revista Mundo do Trabalho Contemporâneo, São Paulo, v. 2, n. 1, 2017.
SIES. Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária. Ecosolidária. 2014.
Disponível em: http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/sies.asp. Acesso em: 1º jan. 2020.

131
C apítulo 7

O Movimento da
Economia Solidária
e Sua Articulação

Riyuzo Ikeda Júnior


Doutor na linha de políticas públicas comparadas (PPGCTIA - UFRRJ). Mestre em
Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial – PPGDT/UFRRJ. Economista – UFRRJ.
Pesquisador do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento
Territorial – PEPEDT/ UFRRJ. rikedajunior@gmail.com

João Eduardo Branco de Melo


Doutorando em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (2018). joaoeduuardo1@gmail.com

Carlos Alberto Sarmento do Nascimento


Doutor na linha de políticas públicas comparadas (PPGCTIA - UFRRJ). Mestre em
Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial, PPGDT/UFRRJ. Especialista em Ad-
ministração Pública – UFF, cientista social – FEUC/UFRJ, pesquisador do Programa de
Ensino Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Territorial – PEPEDT/UFRRJ.
casn.sarmento@gmail.com
INTRODUÇÃO

A
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) foi
um marco nas políticas de fomento à participação social no Brasil, O
texto constitucional garantiu o Estado Democrático de Direito como
nunca antes previsto na mais alta e importante norma no sistema jurídico
nacional. Como exemplo a CRFB/88 prevê a participação em organizações
para fins pacíficos e lícitos sob o tema dos direitos e garantias fundamentais.
Mais que uma previsão constitucional a participação social em diversos
dispositivos da Constituição, incluindo o artigo 5º (Direitos e Garantias
Fundamentais) também é frequentemente associada ao desenvolvimento nas
suas diversas instâncias, sejam elas locais, estaduais, territoriais, regionais ou
nacional.
Aqui surgem duas questões que serão abordadas nesta seção: (i) a
questão de alcance da população, dada a territorialidade ou demais níveis
geográficos e (ii) a participação social como instrumento do desenvolvimento,
quando se intensifica a leitura sobre o desenvolvimento na área da Economia
Solidária.
Amadurecer a Economia Solidária e manter a engrenagem do tema
funcionando na conjuntura capitalista globalizada atual tem suma importância
para uma sociedade em transformação e que sofre extremas pressões
mercadológicas, como o Brasil do século 21. Como será abordado, a Economia
Solidária é parte integrante dos pilares do desenvolvimento que se busca de
uma sociedade em metamorfose, como é a brasileira.
A multidimensionalidade elucidada por Sachs (2008)1 introduz a perspectiva
de se ampliar a visão das reais necessidades de uma sociedade, tornando-se
possível observar que o desenvolvimento não parte apenas de questões

1
Sachs (2008) traduz a muldimensionalidade do desenvolvimento como sendo as diversas
dimensões que existem para serem igualmente fortalecidas para que haja real avanço de uma
sociedade. Entre alguns exemplos de dimensões estão: ambiental, econômica, social, política,
tecnocientífica, mas estas não excluem a inclusão de outras como o autor deixa evidente ao
longo de sua obra, como é o caso da Economia Solidária especificamente.

133
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

econômicas, capital, monetarismo ou quaisquer outras áreas ou instrumentos


semelhantes. A Economia Solidária torna-se parte de um todo, em que ela se
configura num pilar do desenvolvimento, mudança de hábitos e resistência, diante
de um sistema estritamente capitalista, consumista e utilitarista, preconizado pela
economia predominantemente ortodoxa e resumida a modelos.
Esta seção tem como objetivo traçar os movimentos de economia
solidária no Brasil mostrando como eles se organizam por meio dos fóruns
municipais, regionais e estaduais, todos articulados pelo Fórum Brasileiro
de Economia Solidária, apresentando também a função das plenárias na
construção das pautas do movimento e destacando resultados.
Como metodologia utilizou-se uma revisão bibliográfica de investigação
descritiva, pesquisa telemática e levantamento de dados sobre os organismos
de participação social na área temática de economia solidária para se ter um
panorama geral na atual conjuntura do Brasil em Economia Solidária.

A APROXIMAÇÃO DOS PODERES DE DECISÃO À POPULAÇÃO:


UMA VISÃO A PARTIR DA CRFB/88
A CRFB/88 foi um marco na descentralização dos poderes da República
ao longo das décadas seguintes. Historicamente notou-se a concentração das
diversas atribuições do Estado na figura da União, como é o caso da Carta
de 1988, que previu uma redistribuição de atividades e responsabilidades
tanto de forma horizontal quanto vertical. Horizontal diz respeito ao compar-
tilhamento de atribuições com os demais poderes da República: Legislativo e
Judiciário em relação ao poder Executivo e de forma vertical em relação aos
demais entes federativos: União, Estados Federados e municípios.
Essa descentralização de atribuição está associada a questões
vivenciadas historicamente no Brasil nas décadas de 90, anteriores e dias
atuais, bem como a presença de uma estrutura política que pregava o Estado
mínimo, redução de investimentos, proteção ao setor privado, entre outros:
o neoliberalismo, sobretudo na área econômica e social.
A experiência neoliberal em economias estabilizadas alavancou a
imagem da ideologia na economia global, sobretudo pelas investidas nos
Estados Unidos (EUA) – com Ronald Reagan na Presidência (1981-1989),
Inglaterra – com Margareth Thatcher como primeira-ministra (1979-1990) e
Chile – na ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
134
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

A inclusão dos municípios como parte do jogo de responsabili-


dades republicanas na administração e legislação do Brasil foi a primeira
experiência de delegação de tais instrumentos nas Cartas Magnas do país.
A desconcentração de poderes, por vezes já realizada no Brasil, já beneficiou
Estados federados algumas vezes, mas nunca os municípios em tais
dimensões como previsto na CRFB/88.2 O artigo 1º da CRFB/88 deixa claro
que a União, Estados e municípios, além do Distrito Federal3 formam esta
união indissolúvel e, assim, reconhece a importância de todos na existência
do Estado Brasileiro.
Essa redistribuição de atribuições da CRFB/88 aos demais entes
federativos teve a intenção de reforçar a aproximação das instâncias de
discussão à sociedade civil, devido ao fato de que os municípios são os
entes federados mais próximos da população e, assim, aqueles sujeitos a
melhor receber as demandas dos cidadãos, não somente por compreender
as necessidades da sociedade como também promover espaços de decisão.
Nesse ínterim os municípios firmaram-se como arrecadadores de tributos,
agentes do crescimento e desenvolvimento econômico e fortalecimento da
sociedade por meio de investimentos e criação, otimização e manutenção de
políticas públicas em geral.
Com o poder de decisão descentralizado a entes federativos na
base hierárquica do poder presumiu-se a proximidade com a população
fortalecendo as instituições do terceiro setor e instâncias participativas
como conselhos e órgãos colegiados no processo de amadurecimento dessas
próprias instituições e ações por elas promovidas.
O desenvolvimento local e regional passa a ser o foco das ações
do Estado, esvaziando atribuições nacionais. Esse esvaziamento não é a
perda da importância da esfera nacional, mas sim uma remodelação dos
processos de desenvolvimento antes adotados como prioridade do Estado
brasileiro.

2
Vide artigos 1º, 18, 19 e 29 e seguintes da Constituição da República Federativa do Brasil
(1988).
3
O Distrito Federal (DF) é região autônoma que possui atribuições mistas (dos Estados e dos
municípios). O único município do DF é Brasília, que possui a subdivisão em cidades-satélites
e Regiões Administrativas (RAs).

135
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

A título de exemplo citam-se os planos de desenvolvimento no


período 1945-1985, todos de âmbito nacional, mas que alguns reconheciam
a necessidade de se fortalecer as estruturas socioeconômicas regionais, como
nas Regiões Nordeste e Norte na tríade dos Planos Nacionais de Desenvolvi-
mento (PNDs) dos governos militares.
Na Economia Solidária as instâncias de discussões começaram a ganhar
forma a partir dos anos da década de 2000, tendo como consequência
movimentos ocorridos nas décadas anteriores. A institucionalização da área
deu-se inicialmente nos últimos anos do governo Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002), sobretudo entre 2001 e 2002. A partir de 2003 o governo
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) tornou oficial a criação das instâncias
estaduais e municipais de fóruns em Economia Solidária (FBES, 2019).
A criação e direcionamento de esforços para as instâncias estaduais e
municipais dos Fóruns de Economia Solidária tinham o objetivo de fomentar
a proximidade da área com a sociedade civil. O estímulo à institucionalização
do setor de Economia Solidária no Estado brasileiro também é outro esforço
voltados aos 27 Estados da Federação e 5.570 municípios brasileiros (FBES,
2019; IBGE, 2019).

A importância da participação social como instrumento do


desenvolvimento regional e local da Economia Solidária
O desenvolvimento, segundo Sachs (2008, p. 13), é aquele que vai
além da proliferação da “riqueza material”, atingindo uma “modernidade
inclusiva”, esta surgida de uma mudança na estrutura nacional promovendo
a igualdade e redução da pobreza por meio da redução das desigualdades,
criando oportunidades de equidade entre aqueles que detêm maior poder
social e os menos favorecidos pelo capital.
O desenvolvimento por si só, porém, não é elemento que possibilita
um avanço na qualidade de vida, devendo ele também ser sustentável e
coeso socialmente. Para que o caminho da gestão social seja adequadamente
trilhado e todos tenham oportunidades de expressão, é necessária a equidade
de poderes e atuação dos atores sociais envolvidos (sociedade civil, Estado
e mercado). A composição de um território necessita ter esse equilíbrio
136
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

entre os atores locais para que haja a coesão social e um “desenvolvimento


democrático”, que gere zelo pelos direitos alheios diante da heterogeneidade
do espaço territorial (Perico, 2009, p. 103).
O desenvolvimento local surge como alternativa aos tradicionais
parâmetros de desenvolvimento surgidos em meio à era do desenvolvi-
mentismo pós-Segunda Guerra Mundial, tal qual nível de industrialização,
crescimento, entre outros. A localidade emerge como solução aos problemas
nacionais enfrentados pelos países, servindo de base, naqueles casos isolados
de sucesso e solidez diante do fracasso do cenário maior, para a construção
dos novos pilares da nação (Ultramari; Duarte, 2009).
A contribuição da gestão social 4 e dos processos de participação
popular nas decisões que interfiram no desenvolvimento local são grandes,
podendo-se afirmar que a gestão social e o desenvolvimento local são
conceitos indissociáveis (Villela et al., 2014), levando a multidimensionali-
dade do desenvolvimento citada por Sachs (2004 apud Cançado, Sausen;
Villela, 2013). A questão do fortalecimento da entidade municipal na atual
Constituição da República preserva o desenvolvimento local como centro das
atenções sobre o bem maior, o bem comum, aquele que se revela como o
indicador de desenvolvimento por meio dos processos de discussão.
A valorização do desenvolvimento local via municípios ocorreu por dois
fatores importantes segundo Ultramari e Duarte (2009): primeiro é resultante
da frustração dos Estados Nacionais em lidar com problemáticas sociais
básicas e segundo devido à adoção do modelo neoliberal.
A contribuição neoliberal individualiza as práticas coletivas, uma vez
que o Estado se afasta de funções produtivas típicas, principalmente sobre
a economia nacional, bem como de tarefas sociais e incentiva a competição
entre pessoas, instituições e entes Nesse sentido o repasse de responsa-
bilidades do âmbito nacional e regional para o local pode ser visto como
“[...] um novo ensaio, uma nova tentativa de busca de algo que não dera
certo” (Ultramari; Duarte, 2009, p. 22). Vale salientar que a contribuição de

4
[...] a gestão social pode ser apresentada como a tomada de decisão coletiva, sem coerção,
baseada na inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e no entendimento esclarecido
como processo, na transparência como pressuposto e na emancipação enquanto fim último
(Cançado; Tenório; Pereira, 2011, p. 697).

137
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

movimentos democráticos e sociais, além de experiências em gestão social e


controle social nas décadas anteriores ao período de redemocratização (1985),
possibilitou também o levante do local em relação ao regional e nacional.
Colateralmente à descentralização de poder aos espaços locais, ocorre a
institucionalização da sociedade civil por meio de Organizações Não Governa-
mentais (ONGs), associações de moradores, organizações profissionais, entre
outras, que vislumbram no arranjo institucional uma nova forma de poder a
fim de se “organizar e resolver seus próprios problemas”, ocupando os espaços
omitidos pelo Estado (Ultramari; Duarte, 2009, p. 22).
A reação aos efeitos resultantes da descentralização de poder aos
municípios vem na forma de sobrevivência, ou seja, os espaços locais devem
se autopromover e atrair capital para seus territórios a fim de sustentar o
desenvolvimento local e também ocupar os espaços deixados pelo Estado
e aqueles que a sociedade civil não se mostra capaz ou não é típica para
assumir tal responsabilidade. Segundo Ultramari e Duarte (2009, p. 23): “[...]
o governo municipal passa a ser visto como viabilizador local da instalação e
do sucesso de novos empreendimentos, por meio do fornecimento de infraes-
trutura urbana e subsídios para a instalação de novas atividades econômicas”.
Nesse sentido as políticas públicas de Economia Solidária, nas instâncias
participativas acontecem, em âmbito municipal, por meio de fóruns municipais/
regionais, em plano estadual nos fóruns estaduais e em âmbito federal no
Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES – além dos conselhos municipais,
estaduais e o conselho nacional, em que as decisões e ações tomadas pelo
poder público municipal têm a participação decisória da sociedade civil.
Conforme mencionado anteriormente, na próxima seção será dada
maior ênfase ao Fórum Brasileiro de Economia Solidária por entender que “el
FBES asumió la responsabilidad por la representación de la sociedad civil en la
interlocución con el Gobierno Federal y en especial con la Secretaría Nacional
de Economía Solidária” (Schiochet, 2017, p. 70).

A INSTÂNCIA PARTICIPATIVA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA


NO ÂMBITO FEDERAL: O FBES
Inicialmente precisamos abordar o FBES a partir de um contexto
histórico e social. Desde o início dos anos 80 no Brasil o movimento de
Economia Solidária foi se desenvolvendo e tomando forma, contando com o
apoio de diversas entidades representativas.

138
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

Esse movimento impulsionou-se a partir do 1º Fórum Social Mundial


(FSM), que aconteceu na cidade de Porto Alegre no ano de 2001. O evento
contou com a presença de mais de 16 mil pessoas vindas de 117 países
diferentes. Entre as atividades desenvolvidas, 1.500 pessoas participaram da
oficina denominada “Economia popular solidária e autogestão”, discutindo
políticas públicas, organização de trabalhadores e perspectivas econômicas e
sociais de trabalho e renda. A experiência dessa oficina propiciou a criação do
Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária (GT Brasileiro), composto
por diversas redes e organizações (FBES, 2019).
No final do ano de 2002, após a vitória da chapa do então candidato
Lula (Partido dos Trabalhadores) nas eleições para o Executivo nacional, o GT
Brasileiro enviou uma carta intitulada “Economia Solidária como Estratégia
Política de Desenvolvimento”, elaborada e aprovada durante a 1ª Plenária
Brasileira de Economia Solidária, a qual reivindicava a criação da Secretaria
Nacional de Economia Solidária – Senaes (FBES, 2019).
O ano de 2003 foi um marco importantíssimo para toda a política
pública de Economia Solidária, pois foi criada a Senaes, vinculada ao Ministério
do Trabalho e Emprego. No âmbito do FBES, em janeiro daquele ano ocorreu a
2ª Plenária Nacional, mais uma vez durante o Fórum Social Mundial em Porto
Alegre. Ainda no mês de julho foi realizada a 3ª Plenária Nacional, durante
a qual foram elaboradas inúmeras pautas, cabendo destacar: i) definir a
composição e funcionamento do FBES; ii) fazer o processo de interlocução
com a Senaes; iii); criação dos fóruns estaduais e regionais (FBES, 2019).
A 4ª Plenária Nacional aconteceu somente no ano de 2008, mas
também foi de suma importância, uma vez que se notou o crescimento
substancial da Economia Solidária no Brasil, considerando que em 2002 a
organicidade da Economia Solidária manifestava-se em apenas cinco Estados.
Já no ano de 2003 as plenárias estaduais aconteceram em 17 Estados e
em 2006 os fóruns estaduais estavam presentes nos 27 Estados do país.
Partindo dos encontros estaduais, o FBES define-se como um instrumento do
movimento da Economia Solidária, sendo duas as suas atividades principais:
i) representação, articulação e incidência na elaboração e acompanhamento
de políticas públicas de Economia Solidária e no diálogo com atores de outros
movimentos sociais se inserindo nas lutas e reivindicações; ii) apoio ao fortale-
cimento do movimento de Economia Solidária a partir das bases (FBES, 2019).
139
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

Antecedendo a 5ª Plenária Nacional ocorreram “eventos preparatórios,


que foram elaborados durante o ano de 2012 e envolveram aproximadamente
10 mil pessoas em plenárias territoriais, estaduais, municipais e temáticas”
(Nagem; Jesus, 2013, p. 87). Na 5ª Plenária Nacional, ocorrida em 2012,
ampliou-se o debate sobre a economia solidária como uma estratégia de
desenvolvimento territorial sustentável como opção de organização popular
e de luta emancipada dos trabalhadores. Os debates dessa Plenária organi-
zaram-se em três dimensões: orientação política do movimento; orientação
das ações do movimento e organicidade do movimento (FBES, 2019).
Destacamos aqui os anos que ocorreram as Plenárias Nacionais do
FBES pois “pode-se afirmar que os fundamentos e princípios da Economia
Solidária, assim como a perspectiva de indicação de processos organizativos
para a constituição da política pública de Economia Solidária de abrangência
nacional estão presentes nos documentos das Plenárias Nacionais de
Economia Solidária” (Souza, 2012, p. 66).

Da organicidade dos fóruns locais,


regionais, estaduais e nacional
O relatório final da 5ª Plenária Nacional buscou estabelecer critérios
e regulamentar diversas questões que envolvem o movimento de Economia
Solidária, entre eles a organicidade dos fóruns locais, regionais, estaduais e
do fórum nacional. Dessa forma, foram estabelecidos os critérios obrigatórios
para o reconhecimento de um fórum, entre os quais:
• Democracia interna nas tomadas de decisão com base nos
regimentos internos e carta de princípios do FBES (reuniões, atas,
plenárias periódicas, entre outros).
• Ter Secretaria Executiva.
• Garantir a ampla socialização dos debates e informações na sua
região de abrangência.
• Existir apenas um Fórum Local em sua região de abrangência (ou
seja, apenas um fórum por Estado, por microrregião, por município,
etc.).
• Ter e manter um fundo de manutenção do Fórum Local, com
contribuições de seus integrantes.
140
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

•Garantir a participação, no mínimo de 50% das mulheres como


representantes dos empreendimentos e das entidades nas
instâncias do Fórum Local.
• Ter uma Carta de Adesão para novos integrantes ao Fórum Local.
• Ter e manter um cadastro dos empreendimentos, entidades e redes
do Fórum Local.
• Garantir a qualidade das suas representações, tanto para levar
deliberações do Estado quanto para repassar decisões nacionais
ao FBES. Além disso, garantir que suas/seus representantes não
representem apenas o seu segmento, mas o conjunto do Fórum
Local, e evitem acumular muitas funções de representação.
• Dialogar e articular-se com outros Fóruns Locais de Economia
Solidária (de outros Estados ou regiões).
• Composição diversa, com a presença e compromisso dos diversos
atores da Economia Solidária na sua região de abrangência (FBES,
2012, p. 104-105).5
O relatório final da 5ª Plenária aponta ainda que os Fóruns Locais
têm liberdade de definir a composição de suas coordenações desde que
respeitem os critérios apontados e ainda que os Fóruns Locais não devem
ser formalizados, ou seja, não devem ter personalidade jurídica (CNPJ) (FBES,
2012, p. 105). Também foram estabelecidos critérios de avaliação de um
Fórum Local, tais como:
• Ampliar a articulação com outros atores e fóruns de outras
temáticas da região de abrangência para construção de propostas
e lutas conjuntas, a partir da perspectiva do desenvolvimento local,
conhecendo e se envolvendo com a conjuntura dos movimentos
sociais, das lutas e dos problemas enfrentados no campo de
atuação da economia solidária

5
Há mais quatro critérios que foram suprimidos, pois de acordo com o relatório final, tais
disposições ainda precisam de regulamentação. Caso o leitor tenha interesse na leitura do
documento completo, sugerimos ler (FBES, 2012) que se encontra no referencial teórico com
o link para acesso ao documento.

141
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

• Propor políticas públicas na sua região de abrangência; acompanhar,


monitorar e articular as demandas de políticas públicas ligadas ao
tema, de forma articulada com os conselhos de Economia Solidária
(onde já existirem).
• Ser um espaço que agrupe diferentes forças e sujeitos do campo da
Economia Solidária na sua região de abrangência.
• Garantir que cada empreendimento, cadeia, rede ou entidade de
assessoria que venha a receber apoio financeiro devido a políticas públicas
para o setor da Economia Solidária busque retornar uma porcentagem dos
recursos adquiridos para o Fórum Local ao qual pertença.
• Ser um espaço de formação dos militantes da Economia Solidária:
realizar encontros e oficinas específicos de capacitação de seus
integrantes, conscientizar seus integrantes de que fazem parte
de um movimento social e estimular que conheçam os outros
movimentos sociais da sua região de abrangência.
• Buscar avançar para formas alternativas de representação de
empreendimentos solidários nos Fóruns Locais: via redes de
setor econômico ou territorial; via cadeias; via núcleos locais
de articulação de empreendimentos e assessorias nos bairros e
comunidades, entre outras.
• Buscar o aumento de entidades de assessoria para aumentar a
quantidade de profissionais auxiliando empreendimentos na sua
região de abrangência.
• Identificar, valorizar e socializar as conquistas alcançadas no
movimento da Economia Solidária.
• Ter um processo de certificação de produtos da Economia Solidária
a partir da efetivação do Sistema Nacional de Comércio Justo e
Solidário (SNCJS).
• Usar outros critérios para definir referências sobre a quantidade de
empreendimentos e entidades na região de abrangência do Fórum
Local, que não sejam o Mapeamento da Economia Solidária (FBES,
2012, p. 105-106).6

6
Ainda são critérios de avaliação específicos para Fóruns Estaduais: dar apoio para os
representantes da coordenação nacional articularem as microrregionais e as coordenações
estaduais devem ter representantes das microrregiões (FBES, 2012, p. 106).

142
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

A partir deste documento norteador, fica evidente como devem


acontecer os trabalhos e como está articulado o movimento de Economia
Solidária e a sua organicidade no âmbito dos fóruns.
Nesse sentido “a plenária nacional é a instância máxima de deliberação
do FBES, dando as diretrizes políticas mais amplas para orientar a Coordenação
Nacional e Coordenação Executiva (FBES, 2012, p. 107)”, por isso destacamos
anteriormente no texto quando aconteceram as plenárias nacionais. Após
apresentarmos a organicidade dos fóruns, vamos abordar quais os segmentos
que estão representados e ainda os avanços e perspectivas no âmbito dos
fóruns locais/regionais.

A representatividade presente nos fóruns


No âmbito dos fóruns, são três os segmentos que possuem representa-
tividade: os Empreendimentos Econômicos Solidários (EES), as entidades de
assessoria e os gestores públicos.
De acordo com Arcanjo e Oliveira (2017, p. 232) citando a Senaes
(2012):
b) Empreendimentos Econômicos Solidários (EES): são aquelas
organizações coletivas [...] tais como: associações, cooperativas,
empresas autogestionárias, grupos de produção, clubes de troca,
etc.; [...] permanentes, [...] que disponham ou não de registro legal,
prevalecendo a existência real e que realizam atividades econômicas
de produção de bens, de prestação de serviços, de fundos de crédito
[...], de comercialização [...] e de consumo solidário [...].
c) Entidades de Apoio, Assessoria e Fomento à Economia Solidária
(EAF): foram definidas como aquelas organizações que desenvolvem
ações nas várias modalidades de apoio direto junto aos empreendi-
mentos econômicos solidários [...].

Ainda há os gestores públicos que, de acordo com o que o FBES (2012,


p. 103) reconhece, são “aqueles que elaboram, executam, implementam
e/ou coordenam políticas públicas de economia solidária.” Apesar de não
participar dos fóruns como um segmento o FBES (2012, p. 103) considera que
os movimentos sociais “são aliados na construção de lutas comuns, a partir
das pautas específicas de cada um.”

143
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

A participação nos fóruns é de suma importância, pois a partir


deles são tomadas medidas possíveis para o avanço da política pública
de Economia Solidária nos níveis local, regional, estadual e federal. Nesse
sentido, participando deste espaço é possível acompanhar e ser parte ativa no
processo de instituição e consolidação do movimento de Economia Solidária.

Avanços e desafios no âmbito dos fóruns


locais/regionais
Neste tópico apresentamos os avanços e desafios no âmbito dos fóruns
locais e regionais partindo da observação participante no campo empírico
deste trabalho. No âmbito dos fóruns locais e regionais são inúmeros os
desafios, salientando-se os seguintes:
• Dificuldade de formar quórum para as reuniões.
• Dificuldade para encontrar/renovar entidades de apoio.
• A participação ativa e consciente dos representantes do poder público.
• Estimular a participação e o engajamento dos EES do meio urbano e rural.
Sobre a dificuldade de encontrar/renovar entidades de apoio, no
caso de municípios de pequeno e médio portes, esta questão apresenta
certa complexidade, uma vez que acabam participando os mesmos órgãos.
Nesse viés, seria de grande valia estimular a participação do maior número
de entidades de apoio para que seja possível uma renovação, não que as
instituições que constituem este espaço historicamente devem perder o
seu protagonismo, pelo contrário, seria no sentido de fortalecer ainda mais
o debate e a própria política pública. Ainda deste desafio decorrem outros
dois, ou seja, a dificuldade de encontrar locais em que possam acontecer as
reuniões e ainda a falta de quórum para algumas reuniões.
A participação ativa e consciente dos representantes do poder público é
um grande desafio, pois historicamente notamos a ausência do poder público
municipal/local neste espaço e quando existe esta participação percebemos
que ainda é pequena e às vezes o funcionário público envolvido sequer sabe
como acontece o fórum ou a própria Economia Solidária, o que prejudica
muito o andamento da reunião e a própria participação do poder público
nestes espaços. Esse fato se explica, em parte, pela rotatividade de servidores
públicos nas secretarias e órgãos municipais.
144
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

Estimular a participação e o engajamento dos EES é outro grande desafio,


considerando que muitas vezes as reuniões acontecem em dias de semana e
em horário comercial, então o trabalhador que sai do EES e se desloca até
a reunião “perde” um dia de serviço para estar presente, além disso precisa
gastar com o transporte até o local. Outra questão desafiadora é a participação
dos empreendimentos rurais, pois a vida no campo demanda uma atenção
profunda em suas atividades, além da dificuldade muitas vezes na questão de
deslocamento. Nesse sentido, as entidades de apoio devem se articular para
viabilizar a presença dos EES na reunião e salientar que a participação nos
fóruns deve ser vista de maneira potencializadora e não como perda.
Inúmeros e complexos são os desafios apresentados, porém há também
os avanços que estão acontecendo. Entre eles podemos destacar:
• A participação de pessoas/órgãos/instituições no âmbito da saúde
mental.
• A participação de pessoas/órgãos/instituições no âmbito dos
catadores de resíduos sólidos.
Sobre a participação no âmbito da saúde mental e dos resíduos sólidos,
Schiochet (2017, p. 71) caracteriza por:
Enfatizamos las relaciones con el Movimiento de la Lucha
Anti-Manicomio en la aproximación entre la salud mental y la economía
solidaria, con las organizaciones de los Pueblos y las Comunidades
Tradicionales en la promoción del etnodesarrollo y del Movimiento
Nacional de Recolectores de Material Reciclable con el desarrollo de
una política de inclusión socioeconómica de los recolectores en el
reciclaje de materiales.

Apesar dos desafios apresentados, ainda é possível perceber que


também há grandes avanços, principalmente na inclusão de setores que
transversalizam o espaço da Economia Solidária e que envolvem a saúde
mental e o meio ambiente. Sobre este último, têm se mostrado promissoras as
iniciativas junto aos consórcios intermunicipais e à gestão de resíduos sólidos.
Cabe salientar ainda a amplitude da Economia Solidária por meio de
seus fóruns que se espalham por todo o país, havendo mais de 160 fóruns
municipais, microrregionais e estaduais, envolvendo diretamente mais de 3
mil empreendimentos de Economia Solidária, 500 entidades de assessoria,
12 governos estaduais e 200 municípios pela Rede de Gestores em Economia
Solidária (FBES, 2019).
145
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que a economia solidária em seu histórico de
construção apresenta-se como uma alternativa de desenvolvimento local a
partir da promoção de práticas coletivas, que visem ao bem comum, diante de
um sistema capitalista vigente, que defende o individualismo metodológico,
social e de mercado como único caminho para seu crescimento econômico, que
pode até demonstrar resultados individuais positivos de crescimento de divisas,
entretanto não resulta em práticas de desenvolvimento coletivo nem territorial.
Cabe a ressalva no antagonismo entre crescimento e desenvolvimento,
em que o primeiro (crescimento) é individual, visando ao benefício de uma
única pessoa ou de determinado grupo, a partir da exploração humana e/ou
de recursos naturais de seu entorno, enquanto o segundo (desenvolvimento)
preza pela promoção do coletivo a melhoria de todos e a conservação de
práticas e espaços naturais de forma consciente e solidária, em que o diálogo
e as práticas horizontalizadas são o centro de todo o processo. Por tais motivos
pontuamos a Economia Solidária como instância voltada para o desenvolvi-
mento, com uma vertente muito mais humanística do que o puro e simples
crescimento promovido por instâncias financeiras e de mercado.
Após muitos anos de luta, a Constituição Federal brasileira de 1988
apresentou mudanças no cenário da prática social (entre elas as instâncias
de Economia Solidária), abrindo a possibilidade de uma maior participação
popular direta, vinculada a uma série de garantias de direitos como os
presentes nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal, assim como a abertura
de cenários nos quais o controle social, vinculado à remodelação dos sistemas
de distribuição de recursos e participação direta dos municípios nas instâncias
de gerenciamento e aplicação de políticas públicas e sociais no âmbito local,
se tornaria prática.
Nessa perspectiva a sociedade civil organizada, a partir de instâncias de
gestão e controle social, Economia Solidária e autogestão vem suprir vários
segmentos, visto o cenário de múltiplas necessidades, principalmente em
regiões periféricas do Brasil, que encontram na economia local, na ajuda mútua
e nos processos em rede, alternativas para a continuidade de sua existência.
É fato que o Brasil avançou muito no que se refere à Economia Solidária
e seus desdobramentos nos últimos anos, principalmente a partir do início do
século 21, permeado por políticas públicas de incentivo, a criação de fóruns,

146
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

comitês e eventos locais, estaduais e nacionais no setor, promovendo práticas


de Economia Solidária em todas as cinco regiões do país, tendo no governo
federal apoio como exemplo no caso da criação da Secretaria Nacional de
Economia Solidária – Senaes.
Nessas duas últimas décadas observou-se o aumento de algumas
dificuldades específicas, como a ampliação no quantitativo de participação
de coletivos nos encontros, entraves na promoção e estímulo ao engajamento
da prática de Economia Solidária, entre outros. Apesar destas dificuldades,
simultaneamente foram observados avanços (já mencionado), significati-
vamente valiosos, principalmente para grupos e territórios marginalizados,
afastados dos grandes centros urbanos.
Entendemos que no momento atual é necessária a resistência desses
coletivos de Economia Solidária e gestão e controle social, diante de um
desmonte de políticas públicas e sociais, promovidas pelo governo federal,
que tira paulatinamente direitos garantidos nas últimas décadas, provenientes
de uma luta popular, que por décadas buscou uma melhoria significativa em
sua qualidade de vida e sobrevivência de seus territórios.

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Secretaria Nacional de Economia Solidária: avanços e retrocessos. Revista Perseu:
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CANÇADO, A.; TENÓRIO, F. G.; PEREIRA, J. R. Gestão social: reflexões teóricas e
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ibge.gov.br/cidades-e-estados.html. Acesso em: 20 mar. 2019.

147
CAPÍTULO 7 – O MOVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA ARTICULAÇÃO
Riyuzo Ikeda Júnior – João Eduardo Branco de Melo – Carlos Alberto Sarmento do Nascimento

NAGEM, Fernanda Abreu; JESUS, Sebastiana Almire de. PLENÁRIA NACIONAL DE


ECONOMIA SOLIDÁRIA, 5., 2013. Trajetória e construção da economia solidária
no Brasil. Relatório [...]. Brasília: Ipea, p. 83-92, fev. 2013. Disponível em: http://
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Acesso em: 21 de maio de 2019.
PERICO, R. E. Identidade e território no Brasil. Brasília: Instituto Interamericano
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SACHS, Ignacy. Desenvolvimento, includente, sustentável, sustentado. Rio de
Janeiro: Garamond, 2008.
SCHIOCHET, Valmor. Participación y control social en la política pública de
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In: AMARILES, Cristina et al. Miradas sobre la economía social y solidaria en
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SOUZA, Armando Lírio de. Política pública de economia solidária e desenvol-
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ULTRAMARI, C.; DUARTE, F. Desenvolvimento local e regional. Curitiba: Ibpex,
2009.
VILLELA, L. E.; ARAUJO, A. C.; VIDAL, M. O.; COSTA, N. L. S. F. Desenvolvimento
Territorial Sustentável (DTS) e Gestão Social como conceitos indissociáveis: o
caso do município de Itaguaí-RJ. In: FERREIRA, Marco Aurélio Marques (org.).
Administração pública, economia solidária e gestão social: limites, desafios e
possibilidades. 1. ed. Viçosa: UFV, 2014. V. 1.

148
C apítu lo 8

Autogestão:
Teoria e Prática

Carlos Alberto Sarmento do Nascimento


Doutor na linha de políticas públicas comparadas (PPGCTIA – UFRRJ). Mestre em
Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial – PPGDT/UFRRJ. Especialista em
Administração Pública – UFF. Cientista social – FEUC/UFRJ. Pesquisador do Programa
de Ensino. Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Territorial – PEPEDT/UFRRJ.
casn.sarmento@gmail.com

João Eduardo Branco de Melo


Doutorando em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Pesquisador e
membro da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade do
Planalto Catarinense (ITCP/Uniplac). joaoeduuardo1@gmail.com

Riyuzo Ikeda Júnior


Doutor no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação
em Agropecuária (Área de Concentração: Políticas Públicas Comparadas), pela
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCTIA/UFRRJ). Mestre em Políticas
Públicas e Desenvolvimento Territorial – PPGDT/UFRRJ; economista – UFRRJ.
Pesquisador do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento
Territorial – PEPEDT/UFRRJ rikedajunior@gmail.com
E
ste capítulo subdivide-se em duas partes distintas e complementares.
A primeira apresenta o conceito de autogestão, suas atitudes, formas,
benefícios socioorganizacionais, sua importância como estrutura
comportamental dialógica e a valoração das relações interpessoais e sociais
durante o processo, demonstrando alguns de seus principais benefícios e seus
entraves mais comuns.
A segunda tem como perspectiva analisar a relação entre o conceito
de autogestão, apresentado na primeira parte, teoria e prática, expondo um
“caso exitoso” e algumas de suas características sobre esses conceitos como
medida mensurável da importância de uma organização coletiva a partir da
aplicabilidade prática de economia solidária conceituando, como campo fértil
para o desenvolvimento de técnicas autogestoras que, se bem executadas,
atuam de forma concomitante e complementar.

CONCEITOS EM AUTOGESTÃO E DESDOBRAMENTOS


O conceito de autogestão é novo e ganhou força no campo organi-
zacional, na década de 50 do século 20, tendo como experiência exitosa a
assembleia da República Federativa Popular da Iugoslávia, liderada por Josip
Broz Tito,1 que transferiu de forma gradual as propriedades privadas fabris, de
extração e estradas de ferro, a propriedade social, que aproximava o processo
de gestão para as mãos dos movimentos operários locais, ultrapassando
inclusive os conceitos de propriedade socialista (Tito, 1951), à medida que
apresentava “o produto espontâneo de uma unidade coletiva” (p. 1).
Apesar das críticas (à época), da própria União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS), que tratava esse sistema como um narcossindicalismo, de
gerência estatal e apoio encoberto do capital privado externo, A experiência
autogestora iugoslava perdurou até a década de 80, extinguindo-se por
completo com o fim da República Socialista Federativa da Iugoslávia em 1992.
A experiência iugoslava, entretanto, contribuiu em muito com os
conceitos de autogestão que seriam ampliados por corporações associativas
e cooperativas, principalmente a partir dos anos da década de 80 em todo

1
Nascido no império austro-húngaro em 1892, tornou-se em 1937 comandante supremo
das forças armadas e destacamentos de guerrilheiros Em 1943 foi eleito presidente Comitê
Nacional de Libertação da Iugoslávia e presidente da República Federativa Socialista da
Iugoslávia entre 1953 e 1980 (ano de seu falecimento).

150
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

o mundo, com experiências que aboliam o poder escalar e descentralizava


os meios de produção, em que toda a responsabilidade decisória e lucrativa
resulta de uma decisão de gestão compartilhada de seus associados.
Como medida alternativa de gestão perante um sistema estritamente
capitalista verticalizado de escalas complexas de controle, em que as bases
operárias e neooperárias não tinham (e continuam não tendo nos atuais
dias) nenhuma importância se não a produtivista, sendo sumariamente
descartáveis, de um conglomerado de gerência extremamente heterogestio-
nária, em que as ações excluem seus trabalhadores de quaisquer processos
decisórios, imputam uma prática de submissão de suas ações e vedam práticas
cognitivas de gestão operariada.
Atualmente pode-se definir o conceito de autogestão como um conjunto
de práticas organizacionais horizontalizadas, desenvolvidas e decididas de
forma coletiva, igualitárias e democráticas por todos os membros envolvidos,
em que não necessariamente todos devam ter obrigatoriamente o mesmo
poder de decisão, entretanto tenham o mesmo direito de tê-la, ocorrendo
de forma pública e justa, não somente no campo das decisões, mas também
na divisão do trabalho e dividendo dos custos e ganhos, anulando o papel de
gerência, tão comum em corporações estritamente capitalistas.
Figura 1 – Distinção modelos de autogestão e heterogestão

Fonte: Prado (2015).

151
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

Nessa perspectiva, os processos organizacionais de autogestão,


consequentemente, distanciam-se de conceitos de uma administração
organizacional tradicional, pautada em escala de controle e a uma estrutura
estritamente capitalista, que leva o trabalhador “apenas ao campo da
produção e do consumo” (Lisboa, 2009, p. 13).
Neste contexto, consideramos como empresa autogerida aquela onde
as decisões são tomadas de forma coletiva, pela obtenção de um
consenso para a ação prática entre os membros envolvidos, através do
conhecimento geral das questões; excluído, portanto, qualquer tipo de
autoridade burocrática ou hierárquica formal, o que não quer dizer que
não possam existir relações de autoridade consentida, em função da
experiência e respeito que caracterizem, naquele momento, alguns dos
membros do grupo (Gutierrez, 1988, p. 1).

Os processos autogestores, apresentam uma alternativa de sobrevivência


de grupos menores, principalmente associativos e cooperados diversificados,
como: (i) produtores rurais, (ii) vestuário, (iii) saúde, (iv) filantropia, (v) educação
(vi) segurança, (vii) esporte, (viii) alimentícios, (ix) categoria profissional, (x)
culturais, desportivas e sociais, entre outras (Sebrae, 2019).
Mesmo com essas diversidades nos campos de aplicação de processos
autogestores, eles apresentam características comuns a todos esses empreen-
dimentos, como o procedimento de promoção à liderança independente a
partir dos membros integrantes da organização, estimulando o consenso entre
os colaboradores envolvidos e a construção de processos democráticos.
Tais práticas permitem uma metodologia linear no fluxo de atividades
e informações de maneira que a transmissão de dados e conhecimentos
ocorram de forma simultânea, permitindo inclusive a resolução de problemas
e tomadas de decisão de forma coletiva, incentivando práticas humanizadas
no processo de trabalho. Consequentemente gera, em um grau avançado, a
autonomia dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento de suas
atividades, tendo o diálogo como principal elemento.
Por isso, o processo dialógico (poder do diálogo) tem papel central
na construção e desenvolvimento da autogestão dentro de organizações
coletivas, como instrumento que auxilia nos processos decisórios a partir de
uma parceria entre os envolvidos que arquitetam o empreendimento baseado
em práticas coletivas, subjetivas e horizontais. É o que Habermas (2012) define
como um ideal de “razão comunicativa”, que aproxima suas práticas de um
cenário reflexivo, autorreflexivo, participativo, comunitário e emancipador.

152
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

Essas ações têm, como uma de suas bases, a aproximação dos


interesses entre os indivíduos, em que muito mais importa o desenvolvimento
coletivo do que o crescimento individualizado. Nesse sentido, a autogestão,
como prática dialógica, tem um nível coletivo e participativo, como “fluxos
comunicativos que percorrem o limiar entre o mundo da vida e a sociedade
civil” (Lubenow, 2010, p. 236), quando importa os valores coletivos em
detrimento dos individuais.
Essa racionalidade comunicativa exprime-se na força unificadora da fala
orientada ao entendimento mútuo, discurso que assegura aos falantes
envolvidos um mundo da vida intersubjetivamente partilhado e, ao
mesmo tempo, o horizonte no interior do qual todos podem se referir
a um único e mesmo mundo objetivo (Habermas, 2004, p. 107).

Na prática são fundamentais algumas atitudes autogestoras, entre


as quais pode-se destacar o papel do foco na aprendizagem de todos
os envolvidos como objetivo organizacional, em que os valores e metas
definidas agreguem valor ao coletivo, de forma que se promova uma troca
de experiências (nessa questão específica o processo de aprendizagem, erros e
acertos devem ser valorizados e transmitidos), gerando práticas participativas,
inclusive na forma de execução do trabalho.
As organizações autogestoras, por formação e aptidão, distanciam-se
da estrutura de empresas tradicionais e verticalizadas, que priorizam níveis
hierárquicos, é o que Habermas (2000) define como razão instrumental, em
que as relações são monológicas (onde não ocorre diálogo), os aspectos
econômicos são hipervalorizados e o homem tem o controle sistêmico
sobre o homem, é “um tipo de ação reacional dirigida ao campo industrial,
ou material, mas também à esfera das relações humanas e à dominação
burocrática” (Lisboa, 2009, p. 13).
As ações direcionadas às práticas autogestoras, nesse sentido, têm
ao “mesmo tempo, a antiempresa tradicional enquanto está potencialmente
definida na estrutura desta mesma empresa” (Gutierrez, 1988, p. 2), ou seja,
toda organização estruturada em uma prática autogestora apresenta-se como
um sistema contrário à tradicionalidade da gestão e do trabalho, entretanto
ainda assim ocupando o mesmo espaço de mercado em que estão presentes
as empresas tradicionais.
Organizações autogestoras apresentam algumas diferenças e
vantagens em comparação com empresas tradicionais, principalmente nos
segmentos das decisões, divisão dos custos e sobras/excedentes e principal-

153
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

mente no processo de conscientização das relações humanas Justamente por


isso o relacionamento interpessoal e as normas comportamentais são tão
importantes nesse processo.
Em relação às diferenças e vantagens entre essas formas distintas de
gestão (principalmente nos casos associativos e cooperados), destaca-se
a questão do desempenho em comparação aos custos, sendo majorita-
riamente menor nas organizações autogestoras, com maior capacidade
de adaptação, autoconhecimento e necessidades de engajamento pelos
colaboradores envolvidos, compreensão de todo o processo de execução do
produto e/ou serviço realizado por seus atores (Prado, 2015), promovendo
intrinsecamente lideranças natas, oriundas desses coletivos, de maneira
não imposta, e sim natural, estimulando o diálogo e o consenso dos
participantes, visando a estruturas democráticas, a partir do desenvolvi-
mento do trabalho coletivo, gerando autonomia nas práticas das execuções
das ações organizacionais.
Outra vantagem das organizações de autogestão ocorre no campo da
aproximação das demandas dos seus usuários/clientes, de forma muito mais
próxima e intimista em comparação a empresas tradicionais, que em geral
têm seus produtos e/ou serviços estruturalmente já fixados e sem o grau de
maleabilidade com relação às necessidades do cliente.
Justamente por ter em seu corpo de associados uma representação
da própria sociedade e dos clientes que ela atinge (ou queira atingir), o que
proporciona e facilita a compreensão da demanda do cliente, não somente
com uma visão de dentro (da organização), para fora, mas em via de mão
dupla, em muito relacionada exatamente ao poder do diálogo que esse perfil
de organização solidária propõe.
Pelo perfil coletivo decisório que existe na autogestão, por vezes surge a
dúvida com relação à questão de regras na sua instituição e execução, quando
na prática o que se apresenta é justamente o contrário, pois as regras e
decisões escolhidas pela maioria, e pelo fato de justamente não ser impositiva
por poucos, acaba em sua última instância sendo apoiada e de responsabili-
dade fiscalizadora de todos. Desta forma “etimologicamente a autonomia é a
condição de uma pessoa ou de uma coletividade cultural, que determina ela
mesma a lei a qual se submete” (Lalande, 1999, p. 115).

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CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

Figura 2 – Autogestão, autonomia e responsabilidade

Fonte: Elaborada pelos autores (2019).

Assim como a questão das decisões, outro entrave que recai na rotina
das organizações autogestoras é com relação ao respeito às particularidades
de cada ator. Nesse sentido o pensar distinto dentro de uma organização
associativa não se apresenta como problema, e as individualidades devem ser
respeitadas e estimuladas, porém segue-se a obediência ao que foi decidido
em consenso pela maioria.
Por tal, esse perfil organizacional deve ter em sua estrutura a liberdade
de mudanças, saídas de antigos membros que não se identificam com
possíveis novas mudanças, assim como a abertura para entrada de novos
participantes (ainda que condicionada à aprovação do coletivo), a questão
do respeito às particularidades dos indivíduos recai na aplicação das regras,
princípios, transparência e distribuição das ações.
Por essa série de questões apresentadas, as organizações autogestoras
são relacionadas com o conceito de gestão social (que tem historicamente sua
aplicação na administração pública e nas políticas públicas e sociais), servindo
de forma adequada à questão organizacional, associativa e cooperada de
economia solidária à medida que “a gestão social, reforça-se a emancipação
e quanto mais emancipação, mais fácil se torna perceber o interesse bem
compreendido. Dessa forma, a gestão social tem um potencial intrínseco de
se devolver e se reforçar a partir da própria prática” (Tenório, 2013, p 19-20).
Práticas estas que têm na gestão social e no processo dialógico
(Habermas, 2012) sua sustentação ao substituir relações hierárquicas, pela
oportunidade da concepção de uma instituição mais horizontalizada, humana,
orientada no propósito do bem comum e desenvolvimento de todos os
participantes como propósito-fim.

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CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

Por isso a autogestão atua no sistema em que seus envolvidos


desenvolvem práticas mais confiáveis metodologicamente, com sobrecarga
menor de trabalho e com condições de desenvolverem produtos/serviços
de melhor qualidade, distanciando-se da “crença singela de que a posse e
usufruto de bens materiais, adquiríveis por meio do dinheiro, são fonte de
toda a felicidade terrena” (Lisboa, 2009, p. 11).
Pode-se concluir que as organizações autogestionárias têm sim seu
caráter legal e de obrigatoriedades, nas práticas do sistema moderno de
trabalho, com suas demandas e prazos a cumprir, desenvolvidas, entretanto,
de tal forma que os membros são chamados a cooperar e definir os próximos
passos, o que estimula a relação organização/indivíduo e busca avançar nos
processos de relações humanas, habilidade social, identificação de potencia-
lidades no território, redução dos individualismos metodológicos, promoção
de uma gestão homogênea e principalmente a empatia.
Por tais motivos os processos de autogestão encaixam-se tão bem nas
ações de economia solidária, à medida que se constitui uma base socioeco-
nômica coletiva, que prosperarão em parceria, distanciando-se do sistema
capitalista vigente, tão individual e estritamente materialista. Pensar economia
solidária nesse sentido é atuar em uma prática autogestora, como veremos
a seguir.

AUTOGESTÃO NA PRÁTICA
Nesta segunda parte deste capítulo será abordado o conceito de
autogestão a partir da realidade vivenciada no Empreendimento Econômico
Solidário – EES – das “Morenas do Divino”, localizado no interior do Estado
de Santa Catarina, destacando algumas práticas autogestionárias observadas
a partir de sua práxis. Este EES foi vencedor do V Prêmio Odair Firmino de
Solidariedade, organizado pela Cáritas Brasileira, o que evidencia uma
trajetória de empenho, autogestão, cooperação e solidariedade.
Cabe salientar ainda que não buscamos neste capítulo relatar
apenas um caso de sucesso, mas sim alguns indícios de como a autogestão
se apresenta na prática diária, lembrando que a autogestão acontece de
várias formas diferentes, variando de empreendimento para empreendi-
mento.

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CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
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O Empreendimento Econômico Solidário


das “Morenas do Divino”
O Empreendimento Econômico Solidário das “Morenas do Divino” está
situado no interior do município de Rio Rufino, Estado de Santa Catarina. A
localidade do Divino Espírito Santo localiza-se cerca de dez quilômetros (de
estrada de chão batido) da sede do município. Para ter acesso à localidade é
necessário passar pela ponte do Rio Canoas, o maior rio da região.
Cabe ressaltar que na época das cheias o Rio Canoas chega acima do
nível da ponte, fazendo com que os moradores fiquem ilhados, uma vez que
este é o único acesso para a localidade. O Divino Espírito Santo é a maior
comunidade rural do município de Rio Rufino, constituído por uma vila
de mais de 200 casas e totalizando cerca de 800 habitantes. As casas são
predominantemente de madeira, simples e muito próximas umas das outras
e da rua principal.
O Empreendimento Econômico Solidário iniciou-se a partir do contato
de uma moradora do município de Rio Rufino com a Economia Solidária e
a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade do
Planalto Catarinense (ITCP/Uniplac), na disciplina de Economia Solidária e
Desenvolvimento Regional do curso de Especialização em Desenvolvimento
Regional Sustentável promovido pela mesma universidade. Essa moradora/
aluna, em seu trabalho de conclusão de curso apresentou proposta e
alternativas para geração de trabalho e renda a partir do conceito de economia
solidária e autogestão, tendo em vista a vulnerabilidade econômica e social
da comunidade.
A partir deste contato inicial a ITCP/Uniplac foi até a localidade, com o
intuito de realizar um diagnóstico da situação vivenciada e propor algumas
alternativas baseadas na economia solidária. Desde o primeiro contato a
equipe da ITCP propôs uma visita a um empreendimento econômico solidário
incubado e que trabalha no ramo da panificação, fazendo bolos, pães, bolachas
caseiras, entre outros produtos. Também nessa visita foi apresentada a Feira
de Economia Solidária, que acontece no município de Lages, Santa Catarina,
distante 70 quilômetros do município de Rio Rufino.
Esta visita foi proposital, visto que os membros da ITCP estavam
cientes de que o “testemunho de outras experiências é tomado como agente
indutor de novos grupos de autogestão (Barbosa, 2007, p. 115)”. Crendo nesta
157
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

afirmação, constatou-se que as mulheres do Divino Espírito Santo poderiam


voltar-se para outra possibilidade, baseando-se ainda na educação popular
freiriana, ou seja, “quem ensina aprende a ensinar e quem aprende ensina
ao aprender (Freire, 2018, p. 40).”
De acordo com Cançado (2008, p. 113),
É importante repensar a questão das ações dos órgãos de apoio, é
necessário que os profissionais (técnicos) estejam preparados para
ensinar a pensar, o que é bem mais complexo do que ensinar a fazer.
Dentro da proposta de construção da autogestão em EES, os técnicos
devem estar alinhados com a perspectiva da educação dialógica e
perceber a importância da práxis no desenvolvimento dos empreen-
dimentos.

Trinta dias após a reunião de apresentação dessa tecnologia social,2


ocorrida na visita ao EES Art’Mulher e à Feira de Economia Solidária, o EES das
Morenas do Divino estava constituído, sendo definido o campo da panificação
(produção de bolachas, pães, bolos e salgadinhos), com a escolha do local de
trabalho a ser negociado com a comunidade, além da busca dos primeiros
recursos de capital para aquisição da matéria-prima. Inicialmente o grupo
estava composto de 22 mulheres com idades entre 20 e 40 anos, com exceção
de uma, aposentada, e apresentava uma idade mais avançada.
Durante a escolha do nome para o EES, soube-se que a localidade
do Divino Espírito Santo é conhecida pelos moradores do município como
“Morenos do Divino”, pelo fato de os moradores da localidade serem predomi-
nantemente afrodescendentes. Desta forma, a escolha pelo nome EES
“Morenas do Divino” aconteceu quase que de maneira natural, pois aponta a
identidade do grupo, além de trazer o recorte de gênero consigo.
O local escolhido para o início da produção foi a cozinha do salão de
festas e reuniões da comunidade, constituindo-se este o primeiro grande
desafio, pois para solicitar o empréstimo do salão era preciso o aval do
Conselho da comunidade. Então as mulheres deram-se conta de que, apesar

2
O conceito de tecnologia social abordado neste trabalho “compreende produtos, técnicas ou
metodologias replicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem
efetivas soluções de transformação social” (Rodrigues; Barbieri, 2008, p. 1.070).

158
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

de serem moradoras da localidade, o Conselho era ocupado por pessoas que


residiam em outras regiões. Diante disso, as mulheres decidiram participar do
Conselho da comunidade, estando atualmente à frente da entidade.
Nesse sentido, Barbosa (2007, p. 144) caracteriza que
Nessa reconceituação do trabalho, estabelece-se, nesse momento,
uma ponte entre o chamado mundo vivido e o trabalho. O empreen-
dimento vincula-se com lutas sociais de melhoria urbana do território
de moradia, expressas na participação, no planejamento público
local, nos assentamentos agrários, ou apóia outras iniciativas, com o
empréstimo de local para realização, por exemplo, de reuniões e cursos
da comunidade.

Com a escolha do local definida, faltavam os recursos para a compra


de matéria-prima. Em uma reunião realizada entre os técnicos da ITCP e as
integrantes do EES “Morenas do Divino”, um dos integrantes da equipe da
ITCP indagou se não era possível que cada uma das participantes pudesse
disponibilizar um recurso financeiro para o grupo.
O silêncio que havia se estabelecido foi rompido pela voz de uma
criança que exclamou: “Eu dou cinco reais”. A partir desta iniciativa as 22
mulheres se dispuseram a contribuir com o valor de R$ 20,00, resultando nos
primeiros R$ 445,00, possibilitando a compra dos ingredientes para produção
e início das vendas.
Com a escolha do local e o recurso para compra da matéria-prima,
as empreendedoras começaram a se reunir três vezes por semana para
produzir e comercializar seus produtos. Inicialmente foram vendidos
na própria comunidade e na sede do município de Rio Rufino, e ainda,
aproveitando que algumas integrantes possuem amigos e conhecidos em
outras localidades, também foram comercializados produtos no município
turístico de Urubici – SC.
Além disso, por iniciativa própria, as “Morenas do Divino” criaram uma
página no Facebook e um grupo de WhatsApp intitulado “Vendas Morenas
do Divino” demonstrando mais uma vez o seu potencial autogestionário e
ampliando seus canais de venda e comercialização.

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CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
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Figura 3 – Facebook EES “Morenas do Divino”

Fonte: https://www.facebook.com/Morenas-Do-Divino-1481246405298324/

Atualmente as “Morenas do Divino” comercializam seus produtos pelas


redes sociais, na Feira de Economia Solidária do município de Lages, nos
municípios turísticos vizinhos quando solicitadas. Também fornecem bolachas
destinadas à merenda escolar do município de Rio Rufino e sempre participam
de eventos que ocorrem na Universidade do Planalto Catarinense – Uniplac
– destacando-se pelo saber fazer diferenciado, qualidade e padronização de
seus inúmeros produtos.
Outra característica do potencial autogestionário do grupo foi a
padronização do uniforme. Decorridos três meses da criação do EES, todas as
integrantes usavam toucas e jalecos brancos com destaque e valorização de
sua marca. Aliás, a criação da logomarca foi outra prática que apresenta os
sinais da autogestão do EES “Morenas do Divino”.
A ITCP/Uniplac ficou responsável pela criação da logomarca para
posterior aceite. Desta forma, foi fotografada uma enorme montanha que
se destaca no entorno da comunidade do Divino Espírito Santo. Para a
surpresa da equipe de técnicos esta logomarca com a montanha foi recusada
de forma unânime. A partir dessa recusa veio a sugestão de uma pomba,
como representação do Espírito Santo, imagem cultuada na Igreja Católica,
demonstrando mais uma vez que o processo autônomo e de autogestão do
grupo prevaleceu. A explicação para a recusa da montanha e indicação da
pomba era porque “é o que nos representa”.
Com o avanço da produção e comercialização, originou-se também a
primeira crise vivenciada pelo EES “Morenas do Divino”. Um desvio de recursos
da contabilidade financeira acabou gerando instabilidade no grupo e também
uma ruptura nos vínculos pessoais, resultando no primeiro afastamento de
160
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

uma integrante. Apesar disso, o EES demonstrou uma grande capacidade de


resiliência e força autogestionária, sendo capaz de negociar suas pendências
e seguir adiante.
Considerando que “os processos de incubação devem estar metodolo-
gicamente direcionados para o processo autogestionário do grupo” (Cançado,
2004, p. 51), destaca-se aqui o papel de mediação realizado pela equipe da
ITCP/Uniplac, na prática e apoio à formação para autogestão local, reforçando
que o grupo deveria se orientar, refletir, analisar e decidir quais seriam as
medidas a serem tomadas partindo da decisão coletiva delas e tendo nelas
(empreendedoras) as principais beneficiárias.
Percebe-se que apesar dos inúmeros desafios enfrentados pelas
“Morenas do Divino”, o grupo não perdeu a sua identidade e coesão, sendo
atualmente composto por dez mulheres que se reúnem todos os dias para
produzir e compartilhando conhecimentos e desejos. É destacado a seguir,,
de forma sintetizada, alguns elementos autogestionárias marcantes deste EES,
que o diferencia de qualquer outro:
• A identidade do grupo.
• A preocupação e a responsabilidade com a comunidade e seu
entorno social.
• A participação no Conselho da comunidade, ou seja, a participação
para além do EES.
• A autonomia e pró-atividade sinalizada pela criação dos canais
de venda nas redes sociais e a padronização nas vestimentas e
produção.
• A resiliência coletiva, ou seja, a capacidade conjunta de lidar com
as perdas ou desafios que se apresentam.
• O espírito solidário e colaborativo demonstrado pelas integrantes.
Foi devido a estas características autogestionárias singulares em sua
trajetória que o EES “Morenas do Divino” se destacou, sendo merecedor do
prêmio recebido em âmbito nacional. A cerimônia de premiação ocorreu em
novembro de 2018, em Brasília – DF – contando com a presença de inúmeras
autoridades e representantes do EES (Cáritas Brasileira, 2018).

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CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

Figura 4 – Solenidade de entrega do V Prêmio Odair Firmino de Solidariedade


ao EES Morenas do Divino – Brasília (DF)

Fonte: Adaptação dos autores a partir de: http://caritas.org.br

Por fim, consideramos de vital importância trazer à tona estes aspectos


para demonstrar casos vivenciados na prática, visto que existem inúmeros
e expressivos casos de pessoas que ainda não conseguiram transpor seus
empreendimentos da teoria para a prática, desvinculados dos padrões de
subordinação ao trabalho impostas pelo sistema capitalista vigente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que o rito da autogestão em empreendimentos
solidários tem suas práticas criadas “recentemente” em comparação com
outros segmentos, atuando de forma horizontalizada, menos desigual e
buscando a valorização de práticas coletivas e participativas. Nesse sentido
o conceito de autogestão deixa de ter papel meramente formal e passa a
demonstrar a importância das relações humanas de forma racional em
sociedade.

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CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

Por sua vez a economia solidária torna-se uma alternativa ao sistema


capitalista extremo, ainda que sujeita às demandas normativas e de gestão
que o próprio capitalismo que forçosamente impõe à sociedade. Ainda assim
a importância do artifício autônomo de construção proporciona aos processos
autogestionáveis uma consonância dialógica, se mostra marco, perante um
aparelhamento totalmente verticalizado, em que muitos obedecem, poucos
participam da produção e os ganhos são repartidos de forma desigual. Por tal
razão, os conceitos de autogestão em economia solidária têm uma premissa
mais democrática e menos desigual, com diversidades no campo de aplicação,
mais coletivos e participativos.
O caso do EES Morenas do Divino, apresentado neste capítulo, vem
demonstrar essa fala e a importância da participação não somente nas esferas
produtivas, mas também nas de política e gestão do empreendimento e do
território, haja vista a necessidade da participação não somente na EES, mas
também nas instâncias de conselhos locais de gestão e controle social do
território.
O exemplo catarinense deve ser visto como uma possibilidade
bem-sucedida que pode servir de exemplo (respeitando cada um a sua especi-
ficidade), para a construção de outros processos de economia em diversos
segmentos no território brasileiro.
Logo, pensar na constituição de um empreendimento de economia
social autogestionável é ter a premissa da valorização do coletivo, das práticas
sociais das relações humanas e do ambiente de forma horizontal e tendo no
diálogo a peça-chave para o sucesso, em que o êxito de atividades tenha como
fim o bem comum dos envolvidos e a valorização de práticas sustentáveis e
solidárias para o território.

REFERÊNCIAS
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uma tendência de geração de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São
Paulo: Cortez, 2007.
CANÇADO, Airton Cardoso. Autogestão em cooperativas populares: os desafios
da prática. 2004. 134 p. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2004.

163
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

CANÇADO, Airton Cardoso. A construção da autogestão em empreendimentos


da economia solidária: uma proposta metodológica baseada em Paulo Freire. In:
SILVA JÚNIOR, Jeová Torres; MÂSIH, Rogério Teixeira; CANÇADO, Airton Cardoso;
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LISBOA, Marijane. Ética e cidadania planetária na era tecnológica: o caso da
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PRADO, Antônio Ides Antunes. A lógica do trabalho associado e cooperativista dos
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42, n. 6, p. 1.069-1.094, nov./dez. 2008.

164
CAPÍTULO 8 – AUTOGESTÃO: TEORIA E PRÁTICA
Carlos Alberto Sarmento do Nascimento – João Eduardo Branco de Melo – Riyuzo Ikeda Júnior

SEBRAE. Sistema Brasileiro de Apoio ás Micro e Pequenas Empresas. Conheça os


tipos de associações existentes no Brasil. Sebrae Nacional 26.3.2019. Disponível
em: http://www.sebrae.com.br/sites/ PortalSebrae/artigos/conheca-os-tipos-de-
-associacoes-existentes-no-brasil. Acesso em: 2 maio 2019.
TENÓRIO, Fernando Guilherme (org.). Gestão social e gestão estratégica. 1. ed.
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TITO, Josip B. As fábricas aos operários, Prishtina (Iugoslávia). 1. ed. EUA: Editora
St. Martin’s Press, 1952.

165
C apítulo 9

Para a Apreensão de um Conceito


de Cooperativa Popular:
Entendendo e Discutindo as Diferenças entre
Cooperativas Tradicionais e Populares1

Airton Cardoso Cançado


Doutor em Administração pela Universidade Federal de Lavras (Ufla), mestre em
Administração pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Estágio pós-doutoral na
Ebape/FGV e HEC/Montréal. Professor do Programa de Pós-Graduação em Desen-
volvimento Regional, coordenador do Mestrado Profissional em Gestão de Políticas
Públicas e do curso de Administração da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
airtoncardoso@yahoo.com.br

Naldeir dos Santos Vieira


Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); mes-
tre em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e coordenador
do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gestão e Desenvolvimento Regional (Neged).
naldeir. vieira@ufvjm.edu.br

1
Versão anterior deste texto foi publicada em 2013: Cançado, Airton Cardoso; Vieira, Naldeir
dos Santos. Uma discussão em torno das diferenças entre cooperativas tradicionais e
populares. Bahia análise & Dados, v. 23, n. 1, jan./mar. 2013, p. 9-85. A opção por publicar
esse texto em formato de capítulo de livro vem de uma demanda do curso de Gestão e
Economia Solidária, organizado pela Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro em parceria
com as seguintes universidades: FGV, UFRRJ, UERJ, UFF, UFT e Ufla. O capítulo será usado
como apostila para um dos módulos do curso.
INTRODUÇÃO

A
discussão deste trabalho surge em um contexto de emergência do
tema da economia solidária no Brasil, associado, intimamente, com
as mudanças no mundo do trabalho (desemprego, flexibilização da
legislação trabalhista, economia informal) (França Filho, 2008). A partir da
década de 80 do século passado, o tema aflora no país e toma impulso na
segunda metade da década seguinte, diretamente associado à luta contra
o desemprego em massa, agravado com a abertura às importações (Singer,
2003a). Esta emergência está ligada a um contexto de aprofundamento da
exclusão social (França Filho, 2002, 2008).
A organização de populações excluídas em bases associativo-solidárias
pode ser entendida, também, como uma reação deste estrato da população
e da própria sociedade civil organizada contra o aumento desta situação de
desemprego. Diversas pesquisas realizadas pelo Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese – a partir de 1998, nos
mostram que esta situação ainda persiste. Mesmo com a retomada do
crescimento, o número de empregos “formais” ainda se mostra insuficiente.
Neste contexto, as cooperativas tornaram-se instrumentos para que a
população que estava à margem do mercado de trabalho pudesse atingir seus
objetivos por meio da atividade produtiva de forma coletiva. Autores como
Moura e Meira (2002), Singer (2002, 2003a, 2003b), França Filho e Laville
(2004) e Bahia (2004) consideram estes empreendimento como diferentes
das cooperativas tradicionais, denominando-os de cooperativas populares.
Por não definirem este conceito, no entanto, surge, então, o questiona-
mento: O que são cooperativas populares? A inexistência de uma resposta a
este questionamento é resultado do fato de que tanto a economia solidária
como o cooperativismo popular, uma de suas formas de expressão, ainda
carecem de estudos mais aprofundados para delineamento e sedimentação
de seus conceitos. Em decorrência, neste trabalho, o objetivo é colaborar na
construção de um conceito para cooperativa popular a partir do que já foi
desenvolvido em trabalhos anteriores (Cançado, 2007).

167
CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

Na seção seguinte apresentaremos a economia solidária, como um


movimento, e continuaremos tratando do conceito de cooperativa e das
correntes teóricas cooperativistas. Depois discorremos sobre as origens e
desenvolvimento do movimento cooperativista, passando pela criação da
Aliança Cooperativa Internacional, sua chegada ao Brasil e da emergência da
economia solidária e do cooperativismo popular (como uma forma de sua
expressão). Ao final, propomos, baseados na literatura, um primeiro esboço
do conceito de cooperativas populares.

ECONOMIA SOLIDÁRIA
A literatura trata a autogestão como uma das condicionantes de
autenticidade, tanto da economia solidária como um todo quanto do coopera-
tivismo popular como uma forma de sua expressão. Entre os autores podemos
citar os trabalhos de Singer (2002), França Filho e Laville (2004), Moura e
Meira (2002), Arruda (1996), Bocayuva (2003), Gaiger (2000), Justino (2002),
Nakano (2003) e Oliveira (2003). Em nenhum destes trabalhos, porém, existe
uma definição clara acerca do conceito de cooperativa popular.
Para Proudhon, segundo Motta (1981, p. 166), autogestão é “[...] a
negação da burocracia e de sua heterogestão, que separa artificialmente
uma categoria de dirigentes de uma categoria de dirigidos”. Segundo Mandel
(1977), a autogestão tem um caráter de esforço-retorno proporcional ao
trabalho, cabendo ao trabalhador decidir sobre a amplitude deste esforço pelo
menos enquanto os recursos são escassos. Cançado (2007), em um trabalho
mais específico sobre o tema da autogestão em cooperativas populares,
define autogestão como um modo de organização do trabalho, em que não
há separação entre sua concepção e execução, os meios de produção são
coletivos e que pode ser caracterizado como um processo de educação em
constante construção na organização. De acordo com estas definições, então,
a autogestão seria a não separação entre concepção e execução do trabalho.
Podem ser identificadas três abordagens acerca do conceito de
economia solidária. Segundo Marcos Arruda (1996), a economia solidária
pode ser considerada um “outro modo de vida”, em que os valores percebidos
vão muito além da competição característica da sociedade capitalista. Outra
vertente entende o movimento da economia solidária como uma alternativa
ao modo de produção vigente. Este grupo, do qual faz parte Paul Singer
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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

(2002), acredita ser possível que outras relações entre os seres humanos
são possíveis, para além da divisão internacional do trabalho. Uma terceira
abordagem caracteriza a economia solidária como uma alternativa aos setores
populares, com a organização associativa dos trabalhadores revelando-se uma
saída para “sobreviver ao neoliberalismo”. Esta última abordagem é mais
evidente no país, e, entre os autores que abordam esta perspectiva, podemos
citar Gaiger (2000).
Segundo França Filho (2006a), a economia solidária pode ser percebida
de duas formas distintas. A primeira, classificada pelo autor como Insercional-
-Competitiva, acredita que os empreendimentos solidários devem se preparar
para enfrentar o capital de frente, via profissionalização dos empreendi-
mentos, em uma perspectiva próxima ao empreendedorismo. A segunda
forma, que o autor classifica como Sustentável-Solidária, discute outras
possibilidades para a sustentabilidade dos empreendimentos de economia
solidária, a qual se daria por meio da interação entre os próprios empreendi-
mentos, pela formação de redes de consumo-produção e ainda pela inserção
dos empreendimentos na perspectiva do comércio justo.
Desta maneira, a economia solidária é um conceito ainda em construção
(Singer, 2002), apesar de todos esses anos. Existe, no entanto, consenso de
que a autogestão é condição básica para que os empreendimentos possam
ser caracterizados como de economia solidária. França Filho (2002), Justino
(2002), Singer (2002), França Filho e Laville (2004), por exemplo, compartilham
desta opinião. Parece-nos razoável, então, entender que, mesmo que não
seja a única característica destes empreendimentos, a autogestão tem papel
central na economia solidária.
No país, o governo federal já acenou com políticas públicas relacionadas
ao apoio e fomento a empreendimentos solidários, como a criação da
Secretaria Nacional de Economia Solidária – Senaes2 – e o Programa Primeiro

2
Mais informações sobre o processo de constituição da Senaes em Oliveira (2003) e no site
www.mte.gov.br/economiasolidaria/default.asp. No governo Temer a Senaes foi rebaixada
à Subsecretaria. Desde janeiro de 2019 foi realocada no Ministério da Cidadania, dentro
da Secretaria de Inclusão Social e Produtiva Urbana, desconsiderando uma grande parte de
empreendimentos rurais (Ribeiro, 2020).

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

Emprego,3 que previa a inserção de jovens no mercado de trabalho também


por meio de empreendimentos solidários. Gontijo e Paula (2019) demonstram
preocupação com os novos rumos da Senaes, por meio da sua moderação no
discurso, sugerindo limitações da atuação da economia solidária via Estado.
O fomento à economia solidária vem sendo desenvolvido efetivamente
por diversas instituições, como as universidades, os sindicatos, as entidades
religiosas, as ONGs (Organizações Não Governamentais), etc. (Singer,
2002; França Filho, 2006b). As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares – ITCPs4 – são exemplos da atuação das universidades. O Bansol
(Agência de Fomento à Economia Solidária), da Escola de Administração
da Universidade Federal da Bahia – Ufba – foi outro exemplo. A Agência de
Desenvolvimento Solidário – ADS – filiada à Central Única dos Trabalhadores
– CUT – mobiliza sindicatos para apoiarem empreendimentos solidários e se
empenha na construção de uma rede de crédito solidário. O Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – organiza os assentamentos em forma
de cooperativas, as Cooperativas de Produção Agropecuárias. Entre outras
instituições, podemos citar a Cáritas (da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil – CNBB); a Fase, do Rio de Janeiro, a ATC, em São Paulo; algumas
prefeituras (Blumenau, Porto Alegre, Santo André, etc.) e o Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC (Singer, 2003a; França Filho, 2006b).
O apoio acontece efetivamente por meio de capacitação, assistência
técnica, trabalho voluntário, crédito subsidiado, ou até mesmo por doações
a fundo não reembolsável. Desta maneira, estes empreendimentos estão se
multiplicando, não havendo, ainda, números consolidados sobre seu tamanho
e importância econômica (Singer, 2003a).
Há diversas formas de expressão da economia solidária,5 mas iremos
tratar, neste trabalho, especificamente do cooperativismo popular; porém,
“[...] no stricto sensu, o cooperativismo popular não existe. Existe o coopera-

3
Mais informações sobre a primeira versão do PPE, no site www.mte.gov.br/primeiroemprego.
A atual configuração pode ser conferida no site: https://valor.globo.com/brasil/
noticia/2019/11/11/governo-lanca-programa-de-estimulo-ao-emprego-para-jovens-maiores-
de-55-anos-ficam-de-fora.ghtml
4
Mais informações sobre as ITCPs (ITCP-UFRJ, [199-]) e Justino (2002) e no site: http://www.
itcp.coppe.ufrj.br/
5
Mais informações sobre outras formas de expressão da economia solidária, em Singer (2002),
Bocayuva (2003), Silva JR. e França Filho (2003) e França Filho e Laville (2004).

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

tivismo como um sistema econômico, tanto aos olhos do Estado, quanto do


ponto de vista da legislação” (ITCP-UFRJ, [199-]). Justino (2002, p.18), tratando
das diferenças inerentes às cooperativas populares, observa: “na tentativa de
resolver esta contradição de criticar o sistema e desenvolver-se no interior do
mercado, estudiosos começaram a demarcar as diferenças entre cooperativas
‘tradicionais’ e as populares, fundadas na ‘concepção da autogestão’”. Desta
maneira, quando tratarmos de cooperativa popular neste trabalho, estará
sempre presente a “concepção da autogestão”. Entendemos que o coopera-
tivismo popular, como forma de expressão da economia solidária (Moura;
Meira, 2002; Singer, 2002, 2003a; França Filho; Laville, 2004; Bahia, 2004),
possui uma dimensão política, como tratam França Filho (2002) e França
Filho e Laville (2004) ao caracterizarem a economia solidária como uma
“reatualização histórica” da economia social, representada pelas cooperativas
“tradicionais”.
O processo de incubação6 dessas cooperativas populares, seja por meio
das ITCPs, ONGs ou de outras instituições, faz parte desta reação da sociedade
civil organizada ao agravamento da situação de desigualdade social. Segundo
Singer (2003a), o nascimento destas organizações requer, geralmente, um
patrocínio de apoiadores externos.
A heterogestão (gestão hierarquizada de diferentes ou desiguais),
porém, é o modelo hegemônico presente na sociedade capitalista. Esta
contradição entre controle horizontal (autogestão) e controle vertical
(heterogestão) reforça a importância deste trabalho, na medida em que uma
organização se propõe a ser gerida de forma diferente das demais. Ou seja, a
ideia da autogestão em cooperativas populares, para sua efetiva instituição,
propõe a seus membros uma nova forma de organizar e realizar a produção,
em que o trabalho manual e o trabalho intelectual são exercidos por todos os
membros da organização.
Esta discussão sobre cooperativas populares torna-se relevante para que
se possa entendê-las, e isto pode levar, por exemplo, a ajustes na legislação
e/ou nas metodologias de incubação. Legalmente no país existem apenas
cooperativas, não havendo, portanto, cooperativas populares. Esta situação
faz com que uma cooperativa popular seja tratada legalmente (constituição,

6
Incubação entendida como processo temporário de apoio à cooperativa para que ela possa
se organizar e depois se autosustentar, organizada de modo autogestionário (Cançado, 2007).

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

tributos, documentação, etc.) no mesmo patamar de direitos e deveres que


uma cooperativa agropecuária de grande porte, por exemplo, que exporta
toneladas de soja. Em outras palavras, a cooperativa popular existe de fato,
mas não de direito. Comparando com as demais sociedades mercantis, em
que existe a figura da microempresa, que possui diferenças (fiscais, tributárias,
etc.) em relação a empresas de maior porte, constata-se a necessidade de
uma diferenciação no tratamento destas organizações. Para que se avalie,
contudo, a situação das cooperativas populares, hoje, é necessário percebê-las
e discuti-las.
Na seção seguinte apresentaremos as origens do cooperativismo e da
primeira cooperativa moderna, a Cooperativa dos Probos Pioneiros Equitativos
de Rochdale.

ORIGENS DO COOPERATIVISMO:
RESPOSTA AOS DESMANDOS DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
Para entender o cooperativismo popular na atualidade, faz-se
necessário resgatar o cooperativismo como um movimento específico,
com suas origens no século 19, na Revolução Industrial, e, por outro lado,
a retomada do movimento como cooperativismo popular marcado pelo
contexto da exclusão social.
A Cooperativa dos Probos Pioneiros Equitativos de Rochdale
(Manchester, Inglaterra) pode ser considerada a primeira cooperativa
moderna. Diversos autores concordam com esta opinião, pois esta cooperativa,
registrada como Friendly Society, foi a primeira organização desta natureza que
sistematizou seus princípios e valores em seu estatuto. Entre estes autores
podemos citar: Maurer Jr. (1966), Carneiro (1981), Schneider (1999), Singer
(2000, 2002), Crúzio (2002), Bocayuva (2003), Cançado (2007) e Cançado et
al. (2012).
A constituição da Cooperativa de Rochdale, em 1844, é marcada pelo
contexto da exploração do trabalho em plena Revolução Industrial. Esta
primeira experiência deu-se como uma cooperativa de consumo, formada
por 28 operários (27 homens e uma mulher) qualificados em diversos ofícios.
Posteriormente o cooperativismo se difundiu, primeiro pela Europa e depois
pelo mundo (Maurer Jr., 1966; Carneiro, 1981; Singer, 2000, 2002).
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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

Robert Owen (1771-1858) é considerado um dos precursores do


cooperativismo, segundo Maurer Jr. (1966, p. 25-26). Quando se tornou
dirigente de uma fábrica em New Lanark passou a “[...] preocupar-se
intensamente com o bem-estar dos trabalhadores, dedicando-se à sua
educação, reduzindo as horas de trabalho, organizando armazéns onde
pudessem adquirir produtos a preços módicos”. Robert Owen foi ainda mais
além e com apoio de simpatizantes abastados “[...] criou nos Estados Unidos,
uma colônia de caráter comunista – a New Harmony – que terminou em
malogro” (Maurer Jr., 1966, p. 26).
A importância de Owen não se resume a estas experiências, ele foi
um ativo defensor da união das classes trabalhadoras em âmbito nacional
e internacional. Defendeu também um movimento que se intitulava Novo
Mundo Moral, que pregava a construção de um novo mundo por meio de
colônias ou comunidades cooperativas (Schneider, 1999).
Segundo Schneider (1999, p. 43), alguns dos fundadores da Cooperativa
de Rochdale já haviam participado de outras organizações pré-cooperativas,
como a Friendly Rochdale Co-operative Society. Eram também, segundo
o autor, “fiéis owenistas” e “[...] outros haviam aderido antes à corrente
política cartista,7 mas, após as tentativas frustradas de insurreição, aderiram
à corrente moderada de O’Connor”.8 Além disso, muitos dos pioneiros de
Rochdale participavam de movimentos em prol da melhoria das condições de
trabalho. Estas experiências anteriores proporcionaram um maior amadureci-
mento das ideias cooperativas, que seriam expostas quando da constituição
da cooperativa de Rochdale (Cançado et al., 2012).
Apesar de ser uma cooperativa de consumo, seus fundadores não
desejavam apenas alimentos puros a preços justos. Entre seus objetivos
estavam a educação dos membros e familiares, além do acesso à moradia e
ao trabalho (mediante a compra de terra e fábricas) para os desempregados e

7
O cartismo, ou movimento cartista, segundo Schneider (1999, p. 41), pregava a emancipação
do proletariado pela via política por meio do direito do voto, e foi “[...] a primeira importante
mobilização em prol da conscientização da classe proletária”.
8
O irlandês Feargus O’Connor, segundo Schneider (1999, p. 43), era um crítico de Owen e dos
owenistas, pois os considerava utópicos, “[...] já que não conseguiam melhorar efetivamente
as condições do trabalhador”. Foi um dos líderes do cartismo, porém com tendência mais
moderada, e após as insurreições fracassadas optou “[...] pela criação de comunidades rurais,
baseadas na propriedade privada e onde algumas funções da atividade econômica se exerciam
de forma cooperativa”.

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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os mal remunerados. Almejavam também o estabelecimento de uma colônia


cooperativa autossuficiente (Maurer Jr., 1966; Bocayuva, 2003; Schneider,
1999; Holyoake, 2005).
A cooperativa de Rochdale, bem como as primeiras cooperativas, não
possuía funcionários, os próprios cooperados revezavam-se nas atividades
do empreendimento (Maurer Jr., 1966; Singer, 2002; Holyoake, 2005). Na
medida em que realizavam o trabalho e participavam das decisões, podemos
considerar que nessas cooperativas a autogestão era uma prática adotada,
pois não havia separação entre concepção e execução do trabalho.
O êxito de Rochdale proporcionou uma grande expansão do cooperati-
vismo na Grã-Bretanha (Singer, 2003b; Holyoake, 2005). Em 1881, o número
de associados da cooperativas chegava a 547 mil e, em 1900, já eram 1,7
milhão (Singer, 2002).
Enquanto isso, na Europa continental, o cooperativismo também dava
seus primeiros passos. Na Alemanha foram criadas as primeiras cooperativas
de crédito. Segundo Maurer Jr. (1966, p. 45), as cooperativas de crédito da
Alemanha não nasceram da organização popular, como na Inglaterra, mas
do trabalho de dois homens oriundos da administração pública: Hermann
Schulze, prefeito de Delitzsch (conhecido como Schulze-Delitzsch) e Friederich
W. Raiffeisen, burgomestre de várias aldeias em torno de Neuwied, na
Renânia. No caso de Schulze-Delitzsch, as cooperativas admitiam pessoas
desconhecidas entre si, não tinham limite rígido de área e nem recebiam apoio
estatal. Foram organizadas como “[...] sociedades de crédito, com o objetivo
de fornecer pequenos empréstimos ou financiamentos destinados a atender
às necessidades da produção” (Maurer Jr., 1966, p. 45). Nestas cooperativas,
“o capital era constituído pelos associados, que formavam sociedades de
responsabilidade limitada. Eram quase sempre, embora não exclusivamente,
urbanas” (Maurer, Jr., 1966, p. 45). Raiffeinsen, por sua vez, primeiro tentou
algumas ações filantrópicas no campo do crédito e do consumo, posterior-
mente criou a Caixa de Crédito Rural de Anhausen, na Renânia, em 1862.
Estas organizações “[...] não tinham ações, reuniam apenas pessoas que
se conheciam mutuamente, vizinhos entre si, e eram de responsabilidade
ilimitada”. E ainda, “cada associado tinha direito a um voto, mas os lucros não
eram redistribuídos, iam todos para o fundo de reserva” (Maurer Jr., 1966,
p. 45).
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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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Na França foram constituídas as primeiras cooperativas de produção.


O cooperativismo francês começa pela tentativa de criar sociedades de
produtores, influenciado pelas ideias de Charles Fourrier (1772-1837),
idealizador dos Falanstérios (comunidades que abrigariam centenas de
famílias e nas quais seriam promovidas a abundância e a igualdade). Fourrier
defendia, também, a extinção do trabalho assalariado e o respeito às aptidões
naturais da pessoa. Charles Gide, que considerava Fourrier o precursor do
cooperativismo, também foi uma grande influência no cooperativismo francês
e mundial, principalmente por meio de sua participação na Escola de Nimes,
responsável pela primeira sistematização da teoria cooperativista (Maurer
Jr., 1966).
O cooperativismo também se espalhou pelo restante da Europa,
chegando à Suíça (1851), Itália (1864), Dinamarca (1866), Noruega (1885),
Suécia (1899), etc. Em cada um destes países o cooperativismo se desenvolveu
e apresentou grande importância econômica (Maurer Jr., 1966).
Posteriormente o cooperativismo, a partir de seu berço europeu,
espalhou-se pelo mundo, chegando até mesmo ao Japão nos fins do século
19 por meio do Visconde Shinagawa e do Conde Hirata (Maurer Jr., 1966).
No Brasil, o cooperativismo desembarca com os imigrantes europeus
no início do século 20. No seu início, no país, toma a forma de cooperativas de
consumo na cidade e de cooperativas agropecuárias no campo (Singer, 2002;
Silva, Cançado, Ghizoni, 2012).
Em Limeira interior de São Paulo, no ano de 1891, foi identificada
a primeira organização cooperativa formada por colaboradores em uma
empresa telefônica e recebeu o nome de ‘Associação Cooperativa dos
Empregados da Companhia Telefônica’. De lá para cá, o cooperativismo evoluiu
ao ponto de ser estabelecido como política nacional, dispondo de importante
apoio institucional, como demonstração de sua importância e reconheci-
mento, frente ao sistema econômico do país (Durlo; Carlesso, 2010, p. 186
apud Silva, Cançado, Ghizoni, 2012, p. 12).
Apesar do caráter conservador em sua introdução, não podemos falar
de um único cooperativismo no Brasil. Este é marcado pelo desenvolvimento
desigual, que possibilita a existência de um cooperativismo informal de
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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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classes sociais carentes e um cooperativismo legalizado, formado por classes


sociais mais abastadas. Desse modo, no cooperativismo brasileiro também é
constatada a divisão da sociedade de classes (Silva et al., 2003).
Na seção seguinte apresentaremos a polêmica em torno da criação da
Aliança Cooperativa Internacional e os seus desdobramentos.

AUTOGESTÃO, TRABALHO ASSALARIADO E PARTICIPAÇÃO


NOS EXCEDENTES: A FUNDAÇÃO E OS RUMOS DA ALIANÇA
COOPERATIVA INTERNACIONAL
Com o aumento do seu tamanho e da respectiva movimentação
financeira, no final do século 19, as grandes cooperativas de consumo se
distanciaram da autogestão plena (característica marcante das primeiras
cooperativas) e passaram a contratar funcionários para atividades menos
qualificadas, reproduzindo, guardadas as devidas proporções, a lógica de
exploração do trabalho que as primeiras cooperativas combatiam. Posterior-
mente esta prática foi adotada nas grandes cooperativas agrícolas da Europa
e América do Norte e, finalmente, torna-se uma prática comum (Schneider,
1999; Singer, 2000).
Ademais, estas organizações que anteriormente eram autônomas e
independentes nas suas atividades, receberam o reconhecimento do Estado,
gerando um arcabouço jurídico que separou o movimento associativista
original em organizações distintas: cooperativa, mutualista e associativa.
Isto é consolidado no tempo e cada grupo passa a se isolar em razão de seu
estatuto (lei) específico. Esta separação artificial (em um primeiro momento)
torna-se real na medida em que estes grupos de organizações passam a
defender seus interesses como grupos diferentes, organizados de maneira
distinta. Com isso, estes movimentos se institucionalizam ao longo do século
20, tornando-se praticamente um apêndice do aparelho do Estado (França
Filho, 2002).
Um debate fora particularmente incitado por estas iniciativas associa-
tivistas, que, ao recusarem a autonomia do aspecto econômico nas
suas práticas, em face dos demais aspectos – social, político, cultural,
etc. – ficaram mais conhecidas sob a rubrica de economia social (França
Filho, 2002, p. 12, grifo nosso).

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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Segundo França Filho e Laville (2004, p. 51), “este afastamento do


campo político, que assinala a passagem de um projeto de economia solidária
para aquele de economia social, é também sensível na história das ideias com
a inflexão da noção de solidariedade”.
A Economia Social tem um ideal de transformação social que não passa
pela tomada do poder político (Estado), mas pela multiplicação no caminho
da hegemonia do próprio modo como se operava a economia (França Filho,
2002). Pretende-se que a mudança se dê por meio da multiplicação das
cooperativas, organizações mutualistas e associações, que passam a operar
e competir com as demais organizações da sociedade capitalista e, por isso,
precisam ser competitivas, assumindo contornos mais capitalistas.
Bialoskorski Neto (2004, p. 7) argumenta que o cooperativismo é
Economia Social, defendendo que o desenvolvimento social se faz com
crescimento econômico, geração e distribuição de renda. Segundo ele, a
cooperativa é uma estrutura de excelência para os cooperados se inserirem
no mercado e/ou no emprego. “As cooperativas da Economia Social são um
movimento em que a neutralidade política é respeitada como princípio e em
que os mercados são parte integrante da eficiência econômica que será a
responsável pela eficácia social dessas organizações”.
Dessa maneira, uma das explicações para as mudanças ocorridas nestas
organizações, pode ser seu próprio instinto de sobrevivência, ou mesmo seu
egoísmo ante seus resultados alcançados até então.
No caso das cooperativas, em 1895 foi criada a Aliança Cooperativa
Internacional – ACI. Esta organização já nasce em meio a estas mudanças
em relação ao movimento cooperativista original (Schneider, 1999; Cançado;
Gontijo, 2009).
A constituição da ACI foi realizada em meio a um intenso debate
entre duas correntes. Ambas acreditavam na transformação da sociedade
por intermédio do cooperativismo, porém com diferenças de percepção
de como se daria esta mudança. A primeira corrente, representando
o cooperativismo de produção industrial e o cooperativismo agrícola,
defendia o ponto de vista de que o processo de transformação da sociedade
se daria por meio das cooperativas de produção e da abolição do trabalho
assalariado, com os trabalhadores participando dos excedentes. A outra
corrente, liderada pelas cooperativas de consumo, acreditava que as
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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

cooperativas de consumo iriam expandir-se e assumir progressivamente


os setores produtivos industrial e agrícola, com empresas sob seu controle,
porém esta corrente defende a utilização do trabalho assalariado e a não
participação dos trabalhadores nos excedentes (Bonner, 1944; Cole, 1944
apud Schneider, 1999; Singer, 2000).
Como é possível constatar, apesar de o objetivo ser o mesmo,
transformação da sociedade por meio do cooperativismo, a diferença básica
entre as correntes se dá na questão do trabalho assalariado e na distribuição
dos excedentes. De maneira geral, poderíamos afirmar que o primeiro grupo
adota uma postura mais revolucionária e o outro uma postura mais reformista
em relação ao capitalismo; ou, ainda, um grupo defende que o caminho para
a transformação da sociedade está na autogestão e o outro acredita que a
heterogestão deve ser mantida.
Na ocasião da fundação da ACI, o primeiro grupo (que defende a
autogestão) consegue que ela seja constituída segundo a sua orientação,
enfrentando a oposição do outro. No ano seguinte, 1896, as cooperativas
pertencentes ao grupo contrário à autogestão passam a fazer parte dos
quadros da ACI e lhe fornecem apoio técnico e financeiro, o que se mostrou
fundamental para o seu desenvolvimento. Volta-se, então, à polêmica anterior
sobre o trabalho assalariado e a participação dos trabalhadores no excedente
(Schneider, 1999).
À medida que outras cooperativas centrais de consumo inglesas e
escocesas aderem à ACI, a corrente defensora do trabalho assalariado e da
não participação destes trabalhadores nos resultados ganha força e passa a ser
hegemônica (Schneider, 1999), permanecendo com esta orientação até os dias
de hoje. Em seu artigo, Bialoskorski Neto (2004, p. 9) defende a necessidade
de que a cooperativa “esteja desvinculada de paradigmas de origem social
e política e para que ela esteja próxima da realidade da geração de renda e
emprego por meio da eficiência econômica, que é seu objetivo e razão de
sucesso”. Há em seu argumento uma interpretação da geração de emprego e
não de trabalho como algo natural no movimento cooperativista. Passaremos
agora a tratar dos princípios e conceitos do cooperativismo para entender
melhor este tipo de organização.

178
CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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COOPERATIVISMO: PRINCÍPIOS, DEFINIÇÕES


E DIFERENÇAS DAS SOCIEDADES MERCANTIS
O cooperativismo, desde Rochdale, possui um modelo teórico a ser
seguido, fundamentado nos princípios cooperativistas. 9 Estes princípios,
determinados primeiramente pelos fundadores da Cooperativa de
Rochdale, passaram posteriormente a ser discutidos e controlados pela ACI
(Schneider, 1999). No 10o Congresso da ACI, realizado na Basiléia, em 1921,
foi acordado que as cooperativas seriam recomendadas a se orientar pelos
princípios de Rochdale, tornando-se, inclusive, um critério para filiação
(Schneider, 1999).
Dessa maneira a ACI, “[...] munida de subsídios históricos e inspirada
na experiência cooperativa em vários países, passou a assumir formal e
explicitamente o legado de Rochdale” (Schneider, 1999, p. 56). A ACI passa
a ser, então, a “entidade responsável” pela discussão dos princípios coopera-
tivistas.
Nos anos de 1937 (Paris), 1966 (Viena) e 1995 (Manchester), ocorreram
reuniões da ACI que promoveram as mais importantes mudanças nos
princípios cooperativistas (Schneider, 1999). No Quadro 1 podemos observar
as principais modificações ocorridas nos princípios desde Rochdale.

9
A evolução destes princípios é discutida em Schneider (1999) e Cançado e Gontijo (2009).

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

Quadro 1 – Evolução dos Princípios Cooperativistas Segundo a Aliança


Cooperativa Internacional
PRINCÍPIOS COOPERATIVISTAS
Estatuto de 1844 Congressos da Aliança Cooperativa Internacional
(Rochdale) 1937 (Paris)10 1966 (Viena) 1995 (Manchester)
1. Adesão Livre a) Princípios 1. Adesão 1. Adesão
Essenciais de Livre (inclusive Voluntária e Livre
2. Gestão Democrática Fidelidade aos neutralidade política,
Pioneiros religiosa, racial e 2. Gestão
3. Retorno Pro Rata Democrática
das Operações social)
1. Adesão Aberta
2. Gestão 3. Participação
4. Juro Limitado ao 2. Controle ou Gestão Democrática Econômica dos
Capital Investido Democrática Sócios
5. Vendas a Dinheiro 3. Distribuição das
3. Retorno Pro-Rata Sobras: 4. Autonomia e
6. Educação dos das Operações Independência
Membros a) ao
4. Juros Limitados ao desenvolvimento da 5. Educação,
7. Cooperativização Capital cooperativa; Formação e
Global Informação
b) aos serviços
6. Intercooperação
b) Métodos Essenciais comuns;
de Ação e Organização c) aos associados 7. Preocupação
com a Comunidade
5. Compras e Vendas pro-rata das
à Vista operações

6. Promoção da 4. Taxa Limitada


Educação de Juros ao Capital
Social
7. Neutralidade
Política e Religiosa 5. Constituição de
um Fundo Para
a Educação dos
Associados e do
Público em Geral
6. Ativa Cooperação
Entre as Cooperativas
em Âmbito
Local, Nacional e
Internacional
Fonte: Adaptado de Pereira et al. (2002) e Cançado; Gontijo (2009).

10
Os Princípios Essenciais de Fidelidade aos Pioneiros eram obrigatórios para a adesão à ACI,
enquanto os Métodos Essenciais de Ação e Organização tinham apenas caráter de orientação
(Schneider, 1999).

180
CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

Essa evolução dos princípios cooperativistas foi acompanhada por


diversas consultas e discussões realizadas pela ACI entre teóricos do coopera-
tivismo, dirigentes de cooperativas e representantes das organizações
cooperativas locais, havendo sempre muito debate antes de alguma mudança
(Schneider, 1999; Cançado; Gontijo, 2009; Cançado et al., 2012).
O congresso da ACI de 1995, realizado em Manchester, traz algumas
alterações nos princípios cooperativistas. A inclusão dos princípios
“Autonomia e Independência” e “Preocupação com a Comunidade” pode
indicar uma tendência de reatualização do cooperativismo. Com esta
orientação, as cooperativas passam formalmente a serem agentes autônomos,
independentes e corresponsáveis pela comunidade. Uma das leituras desta
mudança nos princípios pode estar relacionada com a emergência do tema
da economia solidária, ou seja, o cooperativismo passa a ser, pelo menos na
orientação da ACI, um agente ativo de mudança, assumindo uma dimensão
política (Cançado et al., 2004).
Para entendermos esta dimensão política, vamos analisar os dois
novos princípios. Segundo a ACI, versando sobre o princípio da Autonomia
e Independência,
as cooperativas são organizações autônomas, de ajuda mútua,
controladas pelos seus membros. Se estas firmarem acordos com
outras organizações, incluindo instituições públicas, ou recorrerem a
capital externo, devem fazê-lo em condições que assegurem o controle
democrático pelos seus membros e mantenham a autonomia das
cooperativas (ACI, 2011).

Esta definição deixa claro que as cooperativas devem ser geridas só


por seus membros, ou seja, a autonomia é um dos princípios que norteiam
a organização cooperativa. A ACI, nesta definição, também evidencia a
independência que as cooperativas devem possuir tanto diante do Estado
quanto diante da iniciativa da privada.
A respeito do outro novo princípio, “Preocupação com a Comunidade”,
a ACI destaca o seguinte: “as cooperativas trabalham para o desenvolvi-
mento sustentado das suas comunidades através de políticas aprovadas
pelos membros” (ACI, 2011). O desenvolvimento sustentado a que se refere
esta definição traz uma característica inerente às cooperativas. Por serem
organizações de pessoas e não de capital, as cooperativas possuem um espaço
geográfico nítido, na medida em que estas pessoas residem em algum lugar.
Quanto maior a cooperativa, menos se torna possível perceber este contorno,
181
CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

porém ele continua existindo. Nesse sentido, quando as cooperativas passam


a olhar para fora da própria organização, projetando-se no espaço público,
emerge uma noção de corresponsabilidade pela região em que os cooperados
habitam. Outra característica desta definição é a menção ao desenvolvimento
sustentável, avesso ao assistencialismo e mais próximo de ações estruturantes.
É importante lembrar que as ações na comunidade devem ser aprovadas pelos
membros, o que reforça a noção de democracia nestas organizações.
Em síntese, utilizando as definições dos dois princípios, as cooperativas
são organizações autônomas e independentes interessadas no desenvolvi-
mento sustentável de suas comunidades. Organizações com esta natureza
possuem uma dimensão política de mudança.
É interessante, porém, notar que as questões centrais de debate na ACI,
quais sejam, o trabalho assalariado e a distribuição dos excedentes, não são
tratadas de maneira direta pelos princípios. O texto dos princípios não é contra
nem a favor de tais questões, o que faz com que as cooperativas possam
contratar mão de obra assalariada sem contrariá-los, reforçando os preceitos
capitalistas, ou, usando a expressão marxista, expropriando a mais-valia.
Parece-nos um grande paradoxo pretender mudar a sociedade
reforçando os sistemas de dominação existentes, ou seja, reforçando a
diferença de distribuição de renda característica da organização capitalista
do trabalho.
Na sequência vamos observar algumas definições de cooperativa,
tentando perceber se elas abordam a questão do trabalho assalariado e a
distribuição dos excedentes, começando pela própria ACI.
Segundo a ACI (2011), “[...] na tradição de seus fundadores, os membros
da cooperativa acreditam nos valores éticos da honestidade, democracia,
transparência, responsabilidade social e solidariedade”. Ainda, “uma
cooperativa é uma associação de pessoas que se unem, voluntariamente, para
satisfazer aspirações e necessidades econômicas, sociais e culturais comuns,
através de uma empresa de propriedade comum e democraticamente gerida”.
Esta definição de cooperativa da ACI abre claramente a possibilidade
de contratação de mão de obra assalariada e não menciona a questão dos
excedentes. Existem, entretanto, outras definições de cooperativa que dão
outros enfoques a este tipo de organização.

182
CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

Cooperação, também cooperativa ou sociedade cooperativa indica


em geral qualquer forma de trabalho em conjunto, em contraste com
concorrência ou oposição. Em economia e história social o termo é
empregado (como o adjetivo cooperativo) para descrever qualquer
forma de organização social ou econômica que tem por base o trabalho
harmônico em conjunto, em oposição à concorrência. (Silva, 1986, p.
232).
Uma associação de pessoas, usualmente com recursos limitados que
se predispõem a trabalhar juntas e de forma contínua, possuem um
ou mais interesses comuns e que, por estes motivos, formam uma
organização democraticamente controlada, em que custos, riscos e
benefícios são eqüitativamente divididos entre os membros (Verhagen,
1984 apud Pereira et al., 2002, p. 6).

Como se pode notar, Silva (1986) tem uma visão de cooperativa mais
próxima da autogestão. Silva fala em “trabalho harmônico em conjunto” e
Verhagen, de divisão equitativa dos custos, riscos e benefícios. Nestes dois
casos, a heterogestão é estranha à cooperativa.
Além desses conceitos, as definições do Dicionário do pensamento
marxista e do Dicionário básico do cooperativismo são respectivamente:
[...] a cooperação, para Marx, é a negação do trabalho assalariado. O
movimento cooperativo representa uma vitória preliminar da economia
política da classe trabalhadora sobre a dos proprietários. A cooperação
jamais poderia derrotar o monopolismo, a menos que se desenvolvesse
em dimensões nacionais (Bottomore, 1983, p. 20).
[...] um movimento social, cuja sociedade é definida em função do fator
trabalho (proporção de trabalho que cada sócio dedica à cooperativa),
tem por objetivo realizar uma atividade econômica, que ofereça
benefícios mútuos e onde o interesse das pessoas prevaleça sobre os
interesses dos portadores de capital. (Tech, 2000, p. 71).

Estas duas definições também estão mais próximas da autogestão.


Marx, segundo Bottomore (1983, p. 20), é extremamente claro: “cooperação
[...] é a negação do trabalho assalariado”. Tech (2000), por sua vez, fala
do “fator trabalho” e da prevalência do “interesse das pessoas” sobre
“os interesses dos portadores de capital”. Estas são posições claramente
partidárias da não contratação de mão de obra assalariada.
Existem, porém, outras visões acerca das organizações cooperativas que
se aproximam mais da visão da ACI. Para Zylbersztajn (2002, p. 55):

183
CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

As cooperativas são arranjos institucionais amplamente difundidos


por diferentes setores da economia, cuja característica comum é
compartilhar os princípios fundamentais do cooperativismo. O compar-
tilhamento doutrinário, embora não seja homogêneo e universal,
criou as bases para uma linguagem comum, permitindo que se faça
referência a um movimento cooperativista internacional, devidamente
estruturado e regido, institucionalmente, pela Aliança Cooperativa
Internacional.

Neste caso, o autor direciona sua definição no sentido dos princípios


cooperativistas regidos pela ACI. Esta posição também não discute a questão
do trabalho assalariado e da divisão dos excedentes, deixando, desta maneira,
o assunto para os próprios princípios e a ACI, que, como já referido, não se
pronunciam diretamente sobre ele.
Após essas definições, observa-se duas linhas distintas de entendimento
do que seja uma cooperativa: a primeira linha, representada por Silva,
Bottomore (citando Marx) e Tech, é contra o trabalho assalariado, enquanto
uma segunda linha, representada basicamente pela ACI e por autores que
concordam com suas posições, não é contra o trabalho assalariado, mas
também não se manifesta a favor, deixando, então, margem a este tipo de
decisão.
Cabe esclarecer que estamos tratando de um assunto que possui
outras particularidades e não é tão simples como escolher entre autogestão
e heterogestão, ou entre o bem e o mal. As cooperativas que optam por
contratar mão de obra assalariada normalmente o fazem primeiro contratando
trabalhadores não qualificados para atividades mais simples e à medida
que a organização cresce e se complexifica, passam a demandar outros
trabalhadores mais qualificados, como administradores, economistas ou
engenheiros, que, pela própria natureza de sua profissão, podem não querer
ser associados de uma cooperativa agropecuária, por exemplo. Além destes
fatores já citados, segundo Singer (2002, p. 48), “[...] a experiência autogestio-
nária no Brasil e alhures, deixa muito claro que muitos trabalhadores preferem
ser assalariados, mesmo tendo a oportunidade de trabalhar por conta própria
ou em cooperativas”.
Entendemos que calcular a remuneração de trabalhadores (como
cooperados) de funções distintas em uma cooperativa complexa poderia
tornar-se operacionalmente impraticável, quando se entende que a
cooperativa remunera a produção (ou o trabalho). Surgem perguntas como:
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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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Qual trabalho vale mais? Como medir a produção de um trabalhador de


escritório em relação a outro de chão de fábrica ou a um produtor rural? As
respostas a tais questionamentos, de alguma maneira, podem remeter-nos
novamente à questão do salário (baseado no mercado).
Não entraremos nessa discussão por não ser objetivo deste trabalho,
mas gostaríamos de deixar assinalado que nos parece que as cooperativas,
quando se tornam maiores e mais complexas, reproduzem a exploração do
trabalho, principalmente do menos qualificado, aproximando-se muito, em
termos de gestão, das demais empresas capitalistas.
Um caso emblemático que retrata bem esta situação é o do Complexo
Cooperativo de Mondragón, sediado na cidade basca de mesmo nome. O
complexo possui um grande banco, indústrias, a maior rede de supermercados
da Espanha, tem 43 mil pessoas trabalhando e é economicamente muito
eficiente. Uma parte dos trabalhadores destas cooperativas, porém, é
composta por funcionários e não cooperados. Esta situação acontece para que
possa haver demissão quando se fizer necessário, pelas regras do mercado
capitalista, ou seja, para preservar a eficiência do complexo cooperativo existe
uma população flutuante de funcionários contratados passíveis de demissão,
quando for preciso (Singer, 2000, 2001, 2002, 2003b).
No caso brasileiro, as cooperativas agropecuárias tomaram grandes
dimensões e utilizam fartamente mão de obra contratada. Segundo a
Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB11 – em dezembro de 2007 as
suas 7.682 cooperativas afiliadas possuíam 254.556 empregados, com 134.579
deles alocados apenas nas cooperativas agropecuárias (OCB, 2009).
Retomando a discussão anterior, depois dessas observações vamos
ressaltar as diferenças entre as organizações cooperativas das demais
sociedades comerciais para entendê-las de maneira mais clara. A princípio,
as cooperativas se diferenciam das demais empresas por serem sociedades
de pessoas e não de capital, nas quais o que é valorizado é o trabalho e não
o aporte de recursos financeiros.

11
A OCB é o órgão de representação do cooperativismo no país. Mais informações no site:
http://www.ocb.org.br.

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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O que diferencia principalmente as cooperativas dos demais tipos de


sociedade é o personalismo que lhes constitui a base, cuja consequência é
um tratamento bem diferenciado das sociedades do tipo capitalista quanto
ao voto nas deliberações sociais e quanto à distribuição de eventuais sobras
líquidas decorrentes das operações sociais (Padilha, 1975, p. 52).
Outro aspecto importante a ser ressaltado na diferença entre
cooperativa e sociedade mercantil são seus objetivos e gestão. Enquanto nas
organizações comerciais o objetivo é o lucro e a gestão é definida por quem
controla financeiramente a organização, nas cooperativas o seu objetivo básico
consiste em prestar serviços aos cooperados, viabilizando e desenvolvendo
a produção e o consumo, possibilitando a seus cooperados se apropriarem
de seu trabalho sem a intermediação de terceiros. Da mesma maneira, sua
gestão tende a ser diferenciada das sociedades mercantis, pois desde o
estatuto de Rochdale as cooperativas devem ser organizações democráticas,
na medida em que cada cooperado, independentemente do seu investimento
na organização, tem direito a um voto e pode, ainda, ser votado para cargos
de direção na cooperativa.
Em uma visão ampla, Carneiro (1981, p. 60) analisa a diferença
primordial entre estes tipos de organizações que, segundo ele, existe e
necessariamente deve existir:
A cooperação, sob forma ideal, deve ir além de promover os interesses
de pessoas, mas, sobretudo, de promover o progresso e o bem-estar
da humanidade. É essa finalidade que diferencia uma sociedade
cooperativa de uma empresa econômica ordinária, que justifica sua
ação, não somente do ponto de vista de sua eficácia comercial, mas
também do ponto de vista de sua contribuição aos valores sociais e
morais, que elevam a vida humana acima do que é puramente material
e animal.

Segundo Schneider (1999, p. 173), Watkins acredita que “[...]


a democracia não é o mais importante princípio cooperativista [...] a
associação é o verdadeiro fundamento da cooperação”, porém admite que
“[...] a democracia é a ‘diferença’ ou a característica principal que distingue a
cooperação como um sistema de organização econômica”.
Dessas definições pode-se concluir que, mesmo dando maior
importância a um ou outro aspecto, o cooperativismo, ou melhor, a
cooperativa, é outra forma de organizar o trabalho e distribuir os resultados.
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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

As diferenças que emergem entre cooperativas e as demais empresas, como


foi visto, caminham no sentido da autogestão e da valorização da pessoa e do
seu trabalho, distanciando-se da contratação de mão de obra.
Trazendo esta discussão mais especificamente para o Brasil, em que
o cooperativismo é regido pela Lei 5.764/71, a autogestão é praticamente
inviabilizada juridicamente, pois esta lei exige que a cooperativa delimite
seu objeto de atuação e a entrada de novos cooperados está estreitamente
vinculada a este objeto. Por exemplo, uma cooperativa que se defina como
cooperativa de médicos não pode ter em seus quadros um cooperado que
não seja médico, independentemente de seu tamanho e necessidades. A
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT – também impossibilita que esta
cooperativa de médicos possua, por exemplo, uma secretária cooperada
(Brasil, 2011).
As cooperativas populares, na grande maioria das vezes, não dispõem
de recursos para contratar funcionários, e, mesmo se os possuíssem, sua
própria orientação é estranha a este processo. Para entender melhor o
cooperativismo popular, trataremos agora dessas cooperativas.

COOPERATIVISMO POPULAR: CARACTERÍSTICAS E


DELIMITAÇÕES DE UM CONCEITO EM FORMAÇÃO
Atendo-nos ao contexto brasileiro, observamos que as cooperativas
populares, sendo muitas informais, em sua grande maioria não fazem parte
do sistema de representação do cooperativismo no país. Segundo Pereira et
al. (2002), em pesquisa realizada na Zona da Mata de Minas Gerais entre
2001 e 2002, para cada cooperativa registrada no sistema de representação
do cooperativismo, formado pela OCB e pelas OCEs (Organizações das
Cooperativas dos Estados), havia pelo menos uma que não se registrou. Este
estudo considerou apenas as cooperativas formalizadas, ou seja, aquelas
constituídas formalmente. Os números desse cooperativismo tendem a ser
maiores na medida em que se considera que esta formalização requer aporte
de recursos e burocracia junto ao órgão competente, a Junta Comercial de
cada Estado.
Na Lei do Cooperativismo (5.764/71) não há menção a cooperativas
populares, ou seja, legalmente existem apenas cooperativas, não há
cooperativas populares.
187
CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

Segundo Justino (2002), a diferença entre uma cooperativa “tradicional”


e uma cooperativa popular estaria na própria essência da autogestão.
Para Oliveira (2003), o cooperativismo popular pode ser caracterizado em
termos econômicos (prática dos princípios da cooperação), administra-
tivos (autogestão) e políticos (práticas coletivas democráticas para lutas de
emancipação e transformação social e cultural).
Na concepção de Singer (2003b) existem dois tipos de cooperativa:
de um lado, a autêntica, que é socialista, igualitária, solidária e democrática,
em que a igualdade faz sentido e, de outro, cooperativas de visão essencial-
mente capitalista, como as agrícolas, nas quais grandes fazendeiros exploram
pequenos proprietários.
De acordo com Oliveira (2003) existem três correntes do cooperati-
vismo: aquela em que o cooperativismo representa um fim em si, liderada
pela ACI; a que usa o cooperativismo para reforçar os princípios liberais,
representada pelos líderes das cooperativas agropecuárias brasileiras, e a
corrente que entende o cooperativismo como um instrumento para negar a
ordem liberal e servir como alternativa aos efeitos negativos causados pelo
capitalismo globalizado.
Conforme a ITCP-UFRJ (2004), em uma cooperativa popular pode haver
divisão de tarefas, mas não pode haver divisão entre o trabalho manual e o
intelectual, ou seja, em cooperativas populares o modo de organização do
trabalho é a autogestão. Esta visão é compartilhada pela ITCP-USP (2004), que
acrescenta ainda a importância de uma educação continuada para a gestão
democrática.
Como mencionado anteriormente, entendemos cooperativa popular
como uma forma de expressão da economia solidária. Baseados em Justino
(2002), Oliveira (2003) e Singer (2003b), podemos considerar a autogestão
como característica presente nas cooperativas populares. O próprio nome
“popular” traz a ideia de “classes populares” ou “menos favorecidas”, o
que pode ser também descrito como “classes excluídas”, se entendermos a
economia solidária como uma reação à situação de desemprego e exclusão
social.
Segundo Singer (2003a), o apoio ao empreendimento em seu início
também caracteriza o cooperativismo popular, seja por parte de universidades,
empresas, instituições religiosas ou outros agentes. Sem desmerecer a

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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importância destas ações de incubação ou assessoria, não iremos generalizar


este aspecto, do contrário estaríamos excluindo da categoria de cooperativas
populares aquelas que não têm qualquer apoio.
Como característica derivada do próprio cooperativismo “tradicional”,
a propriedade coletiva dos meios de produção, em nosso entendimento,
também se faz presente nas cooperativas populares. A autogestão sem
a propriedade coletiva dos meios de produção deixa de ser uma forma de
organizar o trabalho para se tornar uma mera concessão dos proprietários
destes meios de produção.
Outra nuance do cooperativismo popular é a dimensão política do
empreendimento. A partir da autogestão, que pode desencadear um processo
emancipatório, em que o cooperado possa reconhecer-se como protagonista
de sua história, esta organização ultrapassa as fronteiras das dimensões
econômica e social, características das cooperativas “tradicionais”. Além disso,
o fato de ser uma organização que surge como reação a uma situação de
exclusão social também tem uma dimensão política.
Sintetizando essas características, podemos definir cooperativas
populares como: organizações autogestionárias de grupos populares, nas quais
a propriedade dos meios de produção é coletiva, integrando três dimensões:
econômica, social e política.
Dessa maneira, as principais diferenças entre cooperativas tradicionais
e cooperativas populares seriam a concepção de autogestão e a dimensão
política. Não pretendemos aqui esgotar o conceito acerca das cooperativas
populares, desejamo delinear contornos mais visíveis do que seja este tipo
de organização. Uma melhor definição do que seriam os “grupos populares”,
por exemplo, traria mais clareza ao conceito. Outras contribuições também
podem ajudar a aperfeiçoar esta primeira tentativa de definição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a delimitação do conceito de cooperativas populares, salienta-se
que o objetivo não é segmentar o movimento cooperativista, o que seria uma
ideia estranha ao próprio termo cooperação (operar em conjunto), mas sim
delinear algumas características que as tornam diferentes das cooperativas
ditas tradicionais. Estas diferenças advêm da própria origem destas
cooperativas, pois a cooperativa para se formalizar delimita seu objeto de ação
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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
E DISCUTINDO AS DIFERENÇAS ENTRE COOPERATIVAS TRADICIONAIS E POPULARES
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e passa a ter a obrigação legal de contratar mão de obra para as atividades


não diretamente relacionadas a este objeto, e qualquer ação contrária a este
aspecto pode expor a organização a processos na Justiça do Trabalho. Dessa
maneira, as cooperativas tradicionais, por serem organizações formalizadas
legalmente, seguem uma conduta compatível com esta situação.
Pode-se argumentar ainda que esta legislação “protege” os
trabalhadores das falsas cooperativas e da precarização das relações de
trabalho. De fato, existem casos em que ocorrem abusos desta natureza, mas
este não é o assunto central deste trabalho. O que queremos ressaltar aqui é
que a autogestão, entendida como não separação entre concepção e execução
do trabalho, não é viável sob esta legislação.
Outro aspecto bastante relevante às cooperativas populares é a questão
de sua formalização. A burocracia é muito complexa, demorada e exige um
aporte de recursos nem sempre disponível para este estrato da população.
Assim, estas cooperativas, mesmo que desejem, terão grandes dificuldades
para se formalizar. E, ainda, a formalização traz diversos desdobramentos que
aumentam seus custos de operação, como a contratação de um contador e o
pagamento de impostos, por exemplo. No caso das sociedades comerciais, nas
quais existe a figura da microempresa, que tem um tratamento diferenciado
em relação às organizações de maior porte, estas diferenças são consideradas
e há incentivos à formalização dessas atividades.
Finalmente, a questão da dimensão política destes empreendimentos
populares é uma possibilidade concreta de emancipação, de assunção de
responsabilidades e participação direta nos resultados, em que os próprios
cooperados podem se perceber como protagonistas de sua história, deixando
de lado uma postura de “espera de ajuda” e assumindo outra atitude mais
proativa e independente.

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CAPÍTULO 9 – PARA A APREENSÃO DE UM CONCEITO DE COOPERATIVA POPULAR: ENTENDENDO
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Airton Cardoso Cançado – Naldeir dos Santos Vieira

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194
C apítulo 10

Metodologia de Incubação
de Cooperativas Populares:
O Caso da Incubacoop/Ufla

José Roberto Pereira


Prof. Titular em Administração Pública e Gestão Social
da Universidade Federal de Lavras.
jrobertopereira2013@gmail.com
INTRODUÇÃO

A
s Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs) sugiram,
no Brasil, em meados da década de 90 do século 20, na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com intuito de organizar e qualificar
trabalhadores desempregados ou que exerciam trabalho precarizado,
sobrevivendo no mundo informal da economia, na condição de “excluídos”.
Quem não tem trabalho formal não tem acesso ao sistema de crédito e nem
aos bens de consumo em geral, ou seja, está excluído da economia capitalista
formal. As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares no Brasil
formam uma rede nacional denominada Rede de ITCPs, cujo principal objetivo
é assessorar grupos de trabalhadores a constituir associações e cooperativas
dentro dos princípios da economia solidária. As ITCPs são formadas por
estudantes e docentes de várias áreas do conhecimento científico e
apresentam estruturas de organização, gestão e metodologia de incubação
diversificadas no âmbito das Instituições de Ensino Superior (IESs), tanto
públicas quanto privadas. As cooperativas e associações incubadas, também
conhecidas como empreendimentos de economia solidária, apresentam
natureza e forma diversificadas, desde catadores de materiais recicláveis a
grupos de agricultores familiares. As incubadoras, portanto, representam uma
forma institucional de efetivação de políticas públicas de geração de trabalho
e renda, de apoio à criação e ao fortalecimento de cooperativas populares e
associações em geral.
O caráter solidário estabelece-se tanto no âmbito da própria Rede de
ITCPs, ao constituir um fórum de discussão sobre metodologias de incubação,
formas de organização e gestão, quanto no âmbito dos empreendimentos
de economia solidária, estimulados a constituírem redes de cooperação
interpessoal e interorganizacional. A solidariedade é da natureza humana
e pode-se observá-la desde os primórdios da História da humanidade, na
organização da família e de grupos de parentescos e na divisão do trabalho
para a produção. A solidariedade constitui um princípio fundamental para
a ação coletiva no sentido de superar a precarização do trabalho, construir
o bem comum por meio do autogoverno ou da autogestão e alcançar a

196
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

emancipação social. Nesse contexto, a economia solidária, ao contrário


da economia capitalista, centrada no capital, na competitividade e nos
interesses individuais, organiza-se a partir das pessoas na condição de seres
humanos autodeterminados, privilegiando as trocas solidárias por meio da
reciprocidade e das formas coletivas de propriedade. A economia solidária,
portanto, norteia as ações das ITCPs no Brasil, especialmente no processo de
incubação dos empreendimentos, na forma de cooperativas populares ou
de associações.
O cooperativismo é um movimento internacional que busca constituir
uma sociedade mais justa, em bases democráticas, por meio da valorização
do trabalho e da produção ao eliminar o lucro e privilegiar as formas de
remuneração proporcional ao trabalho de cada associado. As cooperativas
organizadas como forma de economia solidária representam um tipo de
organização formal, que reúnem os objetivos econômicos e sociais dos
trabalhadores associados, no sentido de exercerem a cidadania deliberativa.
As cooperativas desta natureza são conhecidas como cooperativas populares.
Da mesma forma, as associações organizadas formalmente cumprem papel
semelhante para a ação coletiva dos trabalhadores desempregados ou em
situação de trabalho precarizado.
Assim entendido, o processo metodológico de incubação desses
empreendimentos pelas ITCPs é de fundamental importância para a inclusão
dos trabalhadores na economia solidária e nas transformações sociais. Assim,
o objetivo deste texto é apresentar ao leitor o relato de uma experiência
de aproximadamente 15 anos da Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares da Universidade Federal de Lavras (Incubacoop-Ufla) no processo
metodológico de incubação de empreendimentos de economia solidária,
envolvendo a formação cidadã de estudantes e de trabalhadores. Para
tanto, este texto está organizado nesta introdução e nas seguintes seções:
A Origem das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares no Brasil;
A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Ufla; O Processo
Metodológico de Incubação de Cooperativas Populares da Incubacoop-Ufla;
Considerações Finais.

197
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

A ORIGEM DAS INCUBADORAS TECNOLÓGICAS


DE COOPERATIVAS POPULARES NO BRASIL
As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs) surgiram
no contexto de alto índice de desemprego no Brasil dos anos 90 e inspiradas
no movimento de Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e pela Vida
– ACCMV – coordenado pelo sociólogo Herbert de Souza, conhecido como
Betinho. Entre as linhas de ação desse movimento destacava-se a geração
de trabalho e renda, a qual motivou a criação de uma cooperativa popular
formada por moradores da região da Maré, no Rio de Janeiro. A experiência-
-piloto da Cooperativa de Manguinhos ocorreu junto a Fundação Oswaldo
Cruz – Fiocruz. Os resultados alcançados por essa experiência estimularam
professores e estudantes do Programa de Pós-Graduação em Engenharia
– Coppe – da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a organizar uma
estrutura de apoio e assessoramento, baseada nos princípios da autogestão
e do cooperativismo, às iniciativas econômicas da população de baixa renda.
Como resultado, foi criada a primeira Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares – ITCP – cujo propósito era utilizar os conhecimentos técnico-cientí-
ficos gerados pela universidade, envolvendo os estudantes na sua formação
superior e de Pós-Graduação, para assessorar a organização e consolidação de
empresas autogestionárias e cooperativas constituídas por trabalhadores em
situação de exclusão social. Esta primeira incubadora foi constituída em 1995
pela Coppe/UFRJ como um projeto interdisciplinar de extensão universitária
com o objetivo de gerar trabalho e renda e promover a cidadania (Guimarães,
2000). Essa experiência logrou êxito e o modelo de estrutura organizacional
inovadora da ITCP da Coppe-UFRJ foi replicado em várias Instituições de
Ensino Superior.
Em 1998, o governo federal criou o Programa Nacional de Incubadoras
Tecnológicas de Cooperativas Populares – Proninc – com base no modelo
da Coppe-UFRJ com objetivo de gerar novas incubadoras vinculadas às
universidades e aperfeiçoar a metodologia de incubação, no sentido de
promover trabalho e renda à populações de baixa renda na forma de
cooperativas populares. Os recursos iniciais do Proninc foram repassados com
a finalidade de estruturar as incubadoras e para a realização de pesquisas
voltadas a aperfeiçoar o processo metodológico de incubação. Nesse sentido,
foi financiada a criação de seis incubadoras vinculadas às seguintes Instituições
198
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

de Ensino Superior: Universidade Federal de Juiz de Fora; Universidade Federal


Rural de Pernambuco; Universidade Estadual da Bahia; Universidade de São
Paulo; Universidade Federal do Paraná, além da UFRJ (Guimarães, 2000;
Singer, 2000). O programa financiou essas universidades apenas por dois anos,
o que dificultou a continuidade das ações de extensão iniciadas. No ano de
2000 apenas duas universidades foram contempladas com financiamento
pelo programa: a Universidade Federal do Ceará e a Universidade Federal de
Juiz de Fora. Mesmo com restrições orçamentárias outras ITCPs foram criadas
e decidiram se organizar em rede com o objetivo de “instituir um processo
intenso de trocas de experiências e de colaboração mútua” e “definir sua
missão na atual conjuntura histórica do país” (Singer, 2000, p. 130).
De acordo com Guerra e Pereira (2010, p. 23-24) as ITCPs “visam
articular multidisciplinarmente áreas de conhecimento de universidades
brasileiras, com grupos populares, objetivando contribuir na formação de
cooperativas populares e/ou empresas autogestionárias. Atuam com um duplo
propósito, na formação dos estudantes, por meio da vinculação do ensino, da
pesquisa e da extensão, e na geração de trabalho e renda”. As Incubadoras
Tecnológicas de Cooperativas Populares foram disseminadas por todas as
regiões do país.

INCUBADORA TECNOLÓGICA DE COOPERATIVAS POPULARES DA


UNIVERSIDADE FEDERAL DE LAVRAS – INCUBACOOP-UFLA
O associativismo e o cooperativismo são meios capazes de oferecer
oportunidade de superação ou resolução de problemas políticos, sociais e
econômicos que se encontram presentes em diferentes grupos sociais, desde
que tenham compromisso ético com o bem comum e com a emancipação
social. O cooperativismo é uma forma de organização muito comum em
diversos países e tem sido responsável pela organização de milhões de pessoas
no mundo todo, que procuram resolver seus problemas comuns com justiça
social. Considero o conceito elaborado por Verhagen (1984, p. 19) o mais
adequado para compreendermos o que é uma cooperativa e o sentido do
cooperativismo popular:

199
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

Cooperativa é uma associação de pessoas, usualmente com recursos


limitados, que se predispõem a trabalhar juntas e de forma contínua,
possuem um ou mais interesses comuns e que, por estes motivos,
formam uma organização democraticamente controlada, em que
custos, riscos e benefícios são eqüitativamente divididos entre os
membros.

Esse conceito é adequado porque destaca que cooperativa é uma


organização de pessoas e não de capital como a maioria das organizações.
Em relação aos recursos limitados pode-se acrescentar bens comuns porque
quando trabalhadores se associam na perspectiva da economia solidária é
porque dispõem de bens a compartilhar de forma solidária e democrática,
dividindo proporcionalmente custos, riscos e benefícios em relação ao
trabalho investido. Acrescenta-se a esse conceito a propriedade coletiva como
bem comum aos associados na definição apresentada pela Aliança Coopera-
tivista Internacional (ACI), ao considerar que cooperativa é uma associação
autônoma de pessoas que se unem, voluntariamente, para satisfazer
aspirações e necessidades econômicas, sociais e culturais comuns, por meio
de uma empresa de propriedade coletiva e democraticamente gerida. Pela
lei brasileira do cooperativismo, Lei nº 5.764 de 16.12.71, que ainda está em
vigor, cooperativa é definida como “uma sociedade de pessoas, com forma e
natureza jurídica própria, de natureza civil, não sujeita à falência, constituída
para prestar serviços aos associados”.
Esses conceitos são orientados pelos princípios universais do coopera-
tivismo elaborados na origem da primeira cooperativa a ser constituída, a
Cooperativa de Rochdale, na Inglaterra, e alterados duas vezes pela ACI.
Atualmente são sete princípios, quais sejam: adesão voluntária e livre;
gestão democrática pelos membros; participação econômica dos membros;
autonomia e independência; educação, formação e informação; interco-
operação; interesse pela comunidade. Uma discussão aprofundada desses
princípios e suas relações com o conceito de cooperativismo popular e com a
gestão social de cooperativas encontra-se em Pereira e Cançado (2018).
No que diz respeito ao cooperativismo popular, considera-se como
principal objetivo dessa forma de organização a inclusão social, econômica,
cultural, ambiental e política dos grupos de trabalhadores. Não se pode falar
200
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

de cooperativas populares sem ressaltar o significado de economia solidária,


representado pelas diferentes formas de autogestão. Segundo o autor chileno
Luís Razeto (1993, p. 40), por economia solidária entende-se:
Uma formulação teórica de nível científico, elaborada para dar
conta de conjunto significativo de experiências econômicas (...), que
compartilham alguns traços constitutivos e essenciais de solidariedade,
mutualismo, cooperação e autogestão comunitária, que define uma
racionalidade especial, diferente de outras racionalidades econômicas.

As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares constituem


uma iniciativa nesse sentido e estão vinculadas às universidades brasileiras,
formando uma rede de interação e comunicação, portanto, um arranjo
institucional inovador. Foi nesse contexto de formação em associativismo e
economia solidária difundido pela Rede de ITCPs que surgiu a Incubacoop na
Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais, em 2005.
A Incubacoop-Ufla tem por objetivo assessorar grupos de trabalhadores
nas áreas de legislação, contabilidade, finanças, gerência, economia
e educação, para a constituição e funcionamento de cooperativas e
associações por meio da formação de estudantes de cursos de Graduação
e de Pós-Graduação nas diversas áreas do conhecimento científico da
universidade. A Incubacoop possui um regimento interno e está vinculada
formalmente à estrutura da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec) como
um órgão institucional da Coordenadoria de Desenvolvimento Tecnológico
e Social (Codets), com regulamento específico. A Incubacoop-Ufla faz parte
da Rede de ITCPs, amparada no decreto nº 7.357, de 17 de novembro de
2010 que normatiza as ITCPs como organizações que desenvolvem “ações
de incubação de empreendimentos econômicos solidários e atuem como
espaços de estudos, pesquisas e desenvolvimento de tecnologias voltadas
para a organização do trabalho, com foco na autogestão” (Brasil, 2010).
Nesse sentido, a Incubacoop fundamenta-se em metodologias participa-
tivas que visam à inserção social e ao combate à pobreza. Além disso, possui
parceria com outras instituições para realização de suas atividades, tais como
prefeituras, fundações, ONGs, entre outras.
Historicamente, a prefeitura de Lavras apoiou a incubadora com
alguns patrocínios às atividades de extensão no centro da cidade, bem
como a utilização de funcionários para auxiliar e se tornarem capacitados
na metodologia de incubação e pós-incubação. Em ações nas escolas da
201
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

rede pública municipal, a prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de


Educação, apoiou o ciclo de palestras sobre economia solidária, coleta seletiva
ministrada pelos bolsistas, como também nas visitas dos alunos dessas escolas
à Universidade. Os diretores das escolas prontificaram-se a nos apoiar nos
projetos de incubação e pós-incubação, especialmente nas ações de extensão.
A prefeitura de Lavras tem se mostrado aberta à realização de parcerias, na
busca de soluções para os graves problemas sociais do município, sobretudo
os relativos ao desemprego. Em especial, demonstra interesse por empreen-
dimentos que auxiliem na gestão de resíduos sólidos. Para realizar o trabalho
de incubação é adotado o procedimento de assinatura de um termo de
compromisso entre as partes, Incubacoop e grupos incubados.
Os princípios que norteiam as ações da Incubacoop vão ao encontro
das características e demandas dos grupos, que se constituem de um grande
contingente de trabalhadores, desempregados ou vinculados ao plano da
economia informal, que podem conquistar requisitos básicos de cidadania a
partir da organização do trabalho em cooperativas e/ou associações. As ações
da incubadora estão orientadas também pelos seguintes princípios comuns
à rede de ITCPs:
a. colocar-se como agentes do cooperativismo popular, entendido
como um meio que possibilita a melhoria da qualidade de vida e
de trabalho dos associados, suas famílias e comunidades em que
se inserem, visando ao pleno exercício da cidadania;
b. estimular o ensino, a pesquisa e a extensão sobre o cooperativismo
popular e a economia solidária, envolvendo a interdisciplinaridade
do corpo docente, discente e técnico;
c. disponibilizar conhecimentos capazes de instrumentalizar propostas
de políticas públicas voltadas a essa forma de organização para o
trabalho;
d. desenvolver e pôr em prática uma metodologia de trabalho para
a incubação da Cooperativa Popular, da organização do grupo até
sua inserção e consolidação no mercado;
e. desenvolver e aplicar metodologias capazes de garantir na prática
uma forma de organização para o trabalho autogestionário;
f. desenvolver um processo educacional continuado e particularizado
(técnico, administrativo, tecnológico, entre outros);
202
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

g. valorizar a educação integral do ser humano como direito


fundamental de todo cidadão;
h. socializar os avanços metodológicos, os conhecimentos e as
informações obtidas com as demais Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares, no meio acadêmico, em instituições afins
e na sociedade em geral.
Dentro desses princípios, a Incubacoop-Ufla constituiu espaço de
trabalho e de orientação, ao longo de seus 15 anos de existência, para cerca de
200 estudantes de Graduação, 9 estudantes de Mestrado e 1 de Doutorado,1
além de cursos de extensão e de viabilizar a publicação de várias cartilhas de
orientação aos grupos incubados, tais como: Como Constituir uma Cooperativa
(2013); Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (2010); Saindo do
Desemprego (2010); Do Coletar ao Reciclar, Público Infantil (2010); Do Coletar
ao Reciclar, Público Adulto (2010).

1
Foram nove estudantes de Mestrado envolvidos direta ou parcialmente com a Incubacoop e
que resultaram em dissertações de Mestrado, quais sejam:
Jéssica de Carvalho Machado. Gestão de Cooperativas: Uma Análise do Tipo de Racionalidade
Predominante. 2017. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de
Lavras. Orientador: José Roberto Pereira. Ingressou no Doutorado em Administração em 2018
com tema sobre gestão social de cooperativas.
Marcondes Lomeu Bicalho. Gestão Socioambiental de Resíduos Sólidos Urbanos em
Lavras-MG. 2014. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de Lavras.
Orientador: José Roberto Pereira.
Edimilson Eduardo da Silva. Gestão de Resíduos Sólidos na Microrregião de Lavras-MG. 2013.
Dissertação (Mestrado Profissional em Administração Pública)-Universidade Federal de Lavras.
Orientador: José Roberto Pereira.
Elisângela Abreu Natividade. Gestão de Política Pública de Geração de Trabalho e Renda: uma
análise do Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares. 2011. Dissertação
(Mestrado em Administração) – Universidade Federal de Lavras. Orientador: José Roberto Pereira.
Ataualpa Luiz de Oliveira. Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares: um estudo sobre os vínculos sociais constituintes e mantenedores. 2010.
Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de Lavras. Orientador: José
Roberto Pereira.
Fernanda Simplício Cardoso. Vínculos Sociais e Subjetividade em Cooperativas Populares de
Minas Gerais. 2009. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de
Lavras. Orientador: José Roberto Pereira.
Ana Carolina Guerra. Gestão de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares: uma
análise comparativa. 2008. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal
de Lavras. Orientador: José Roberto Pereira.
Maria Eugênia Monteiro Castanheira. Ação Coletiva no Espaço Organizacional de Cooperativas
Populares. 2008. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de Lavras.
Orientador: José Roberto Pereira.
Mirella Caetano de Souza. Gestão de Cooperativas Populares em Minas Gerais: uma análise
comparativa. 2008. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de
Lavras. Orientador: José Roberto Pereira.

203
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

O PROCESSO METODOLÓGICO DE INCUBAÇÃO


DA INCUBACOOP-UFLA
A abordagem metodológica de incubação adotada pela Incubacoop-
-Ufla em relação aos empreendimentos coletivos está fundamentada no
processo de educação dialógica de Paulo Freire, no sentido da transformação
social. Por um lado, procura-se problematizar a realidade dos estudantes,
professores e funcionários no âmbito acadêmico e da sociedade como um
todo. Por outro lado, procura-se problematizar a realidade dos trabalhadores
desempregados, que trabalham de forma precarizada ou que estão excluídos
do mundo do emprego formal. São dois mundos, duas realidades distintas,
mas que se propõem a se encontrar por meio das ações educativas no
âmbito da Incubacoop/Ufla. Ambas as partes passam a ser, simultaneamente,
educadores/educandos, transformam e são transformados.
Como isso pode ser realizado é o método adotado que vai informar.
Neste caso, é o método dialógico que norteia as ações dos professores,
estudantes e funcionários técnico-administrativos da universidade em relação
aos trabalhadores. Este método orienta as ações e reflexões dos atores sociais
envolvidos no processo de estruturação da incubadora e da própria incubação,
estabelecendo-se o diálogo entre a realidade dos trabalhadores e a realidade
do mundo acadêmico, entre os valores da cultura popular e os valores da
cultura científica. Este propósito metodológico está de acordo com o que
propõe Boaventura de Sousa Santos (1989), ao tratar da segunda ruptura
epistemológica, ou seja, o rompimento de uma nova ciência com os estatutos
da ciência atual – arrogante, “verdadeira”, determinante – o que ocorre a partir
do momento em que se coloca em diálogo o conhecimento científico com o
conhecimento popular, no sentido de se produzir um “conhecimento prático
esclarecido”. Esta é a orientação e a prática metodológica na Incubacoop/
Ufla. Assim, o processo metodológico de incubação dos empreendimentos
coletivos está pautado no diálogo entre estas duas realidades, observando-se
os seguintes procedimentos:
1. Formação dos estudantes bolsistas da Incubacoop/Ufla: A formação
dos estudantes está fundamentada na educação dialógica ao colocar
em prática o princípio “ação-reflexão-ação transformada” dentro
do caráter da “interdisciplinaridade”. Para cada empreendimento
coletivo a ser incubado, quatro estudantes formam uma equipe
204
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

interdisciplinar, sob a coordenação de um professor, contemplando


a questão de gênero e de áreas de conhecimento diferentes. Além
disso, todo o trabalho de organização interna da incubadora está
pautado neste princípio, no âmbito da organização dos estudantes
em setores (Setor de Pesquisa, Setor de Educação Pré-Cooperati-
vista, Setor de Projetos, Setor de Formação Cooperativista, Setor de
Gestão Social de Cooperativas, Setor de Certificação Cooperativa).
Os estudantes são formados por cursos específicos no âmbito
acadêmico e na prática da relação deles com os trabalhadores,
estabelecendo, assim, a relação dialógica entre a aprendizagem em
sala de aula com a aprendizagem na realidade dos trabalhadores
incubados.
2. Critérios de entrada dos empreendimentos coletivos a serem
incubados:
a. A incubadora trabalha com grupos de trabalhadores e não com
trabalhador individual.
b. Grupos de trabalhadores desempregados.
c. Grupos de trabalhadores que realizam o trabalho de forma
precarizada.
d. Grupos de trabalhadores que têm renda de até três salários
mínimos.
e. Grupos de trabalhadores beneficiários de programas sociais do
governo federal.
f. Cooperativas populares em situação de precarização ou em
dissolução.
3. Tipo de Intervenção Social da Incubacoop em relação aos empreen-
dimentos coletivos a serem incubados: Intervenção social é um
conjunto de ações praticadas por equipes interdisciplinares da
incubadora, como assessores externos aos grupos de trabalhadores.
Esta intervenção pode assumir um caráter “tutorial” ou um caráter
“educativo” (Alencar, 1990). O tipo de intervenção adotado pela
incubadora é participativo ou educativo. A intervenção assume um
caráter educativo quando a coletividade é estimulada pelo agente
externo (equipe interdisciplinar) “a desenvolver a habilidade de
diagnosticar e analisar seus problemas, decidir coletivamente
205
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

sobre as ações para solucioná-los, executar tais ações e avaliá-las,


buscando, sempre que necessário, novas alternativas” (Alencar,
1995, p. 99). É uma intervenção não diretiva e procura, ao contrário
da imposição de conhecimentos e ideias, explorar o ambiente
socioeconômico e político, com o objetivo de identificar problemas,
suas causas, selecionar meios para solucioná-los ou contorná-los,
formular estratégias de ação, avaliar as ações executadas e propor
novas ações; “é um tipo de intervenção essencialmente dialógico,
no qual o agente externo procura discutir em iguais termos com
a coletividade os problemas a serem enfrentados, suas causas e
possíveis soluções; neste sentido, o papel-chave do agente é o de
acompanhar o processo de análise das situações e decisões a serem
tomadas sem, contudo, intervir diretamente nesse processo; além
disso, esse tipo de intervenção enfatiza a importância dos pequenos
projetos econômicos como meio de lhes mostrar que são capazes,
bem como um meio para estimular o associativismo e encorajar a
participação” (Oakley e Marsden, 1985, p. 71).
4. Métodos participativos utilizados no processo de incubação:2 Os
métodos participativos utilizados pela Incubacoop/Ufla são os
seguintes: Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (DRPE);
Método Altadir de Planificação Popular (MAPP); Plano de Negócios
para Associações e Cooperativas (publicado pela Fase).
5. Educação pré-cooperativista no processo de incubação: A educação
pré-cooperativista é aquela que antecede a formalização da
cooperativa, fase fundamental para estruturação coletiva dos
trabalhadores. Nesta fase destacam-se dois tipos de convergências
a serem desenvolvidos entre os trabalhadores incubados, a
convergência objetiva e a convergência subjetiva. A convergência
objetiva é aquela resultante do fato, ou seja, da existência de
condições socioculturais e econômicas semelhantes que levam os
indivíduos a apresentarem interesses convergentes. Esta condição,
entretanto, embora necessária, não é suficiente para levá-los a se
organizarem e a cooperarem. A consciência dos indivíduos sobre

2
Sobre Diagnóstico participativo veja os textos de Pereira (2010, 2007).

206
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

os interesses, as necessidades, os problemas e os objetivos comuns


ao grupo é que se denomina de convergência subjetiva. Este
tipo de convergência é construído com a prática da cooperação,
da solidariedade, bem como da reflexão sobre os problemas
coletivos, em dinâmica grupal, estimulando-se a ação comunicativa
emancipadora. Trata-se, pois, da formação da consciência coletiva,
que tem como condição fundamental a participação social dos
indivíduos, especialmente por meio dos atos de fala.
6. Participação e promoção de eventos: a Incubacoop/Ufla promove
eventos de economia solidária, seminários, encontros, reuniões,
palestras, visitas, no sentido de complementar a formação
dos estudantes bolsistas, dos trabalhadores envolvidos e da
comunidade local.
7. Cursos de capacitação e formação: Tanto os estudantes quanto os
trabalhadores incubados são submetidos à realização de cursos
de capacitação e formação em áreas temáticas de metodologias
participativas, da atividade principal que envolve o empreendi-
mento coletivo, do cooperativismo, da economia solidária, entre
outras. Para tanto é organizada, para cada empreendimento
coletivo incubado, uma agenda de cursos ao longo de todo o
processo de incubação, de forma continuada e em uma sequência
pedagógica de aprendizagem coletiva. É dada especial atenção à
formação dos empreendimentos incubados nos cursos sobre gestão
social e organização do trabalho.
8. Emancipação dos empreendimentos coletivos incubados: Para
avaliar a emancipação, a incubadora desenvolve um conjunto de
critérios, em parceria com as instituições envolvidas, incluindo a
Rede de ITCPs, fundamentando-se nos princípios da economia
solidária e do cooperativismo popular.
Observados estes aspectos relacionados anteriormente, passa-se para
o processo metodológico de incubação dos empreendimentos coletivos em si.
As fases são divididas em 12 meses, como segue.

207
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

Fase 1 – Primeiros quatro meses


1. Realização do Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (DRPE)
com objetivo de identificar as potencialidades e limitações do
empreendimento incubado e suas prioridades.
2. Planejamento participativo de acordo com as prioridades
levantadas, utilizando-se o Método Altadir de Planificação Popular
(MAPP) e o Plano de Negócios.
3. Análise de viabilidade social e econômica do empreendimento
coletivo incubado.

Fase 2 – Do quinto ao nono mês


4. Educação cooperativista com vistas a consolidar a cultura solidária
entre os membros do empreendimento incubado.
5. Formação na área de gestão social e organização do trabalho,
compreendendo os aspectos operacionais, financeiros, contábeis
e funcionais ou burocráticos
6. Instituição de ações cooperativistas utilizando-se de metodologias
participativas.

Fase 3 – Do décimo ao décimo segundo mês:


7. Observação empírica da incubadora em relação à prática dos
trabalhadores na gestão da cooperativa recém constituída.
8. Avaliação social, econômica, cultural e administrativa de todo o
processo de incubação.

A incubadora adota uma metodologia circular de incubação como


pode ser observado na Figura 1, utilizando-se de métodos participativos de
diagnóstico, planejamento, plano de negócios e gestão social das atividades
de intervenção realizadas.

208
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

Figura 1 – Percurso metodológico da Incubação e Pós-Incubação

Fonte: Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (2010).

Alguns aspectos do processo metodológico de incubação, apresentados


na Figura 1, merecem ser detalhados. O DRPE é um método de diagnóstico
que permite obter informações qualitativas e quantitativas em curto espaço
de tempo. O DRPE é contrário aos métodos de diagnóstico que acabam por
paralisar a realidade em um certo momento, como se fosse uma fotografia,
na qual se apresentariam situações domesticadas e dóceis personagens.
Constitui um instrumento de diagnóstico que privilegia a interação dialógica
entre equipe interdisciplinar e trabalhadores, a fim de identificar problemas,
suas causas e possíveis soluções. Para maior profundidade sobre este método
recomenda-se a leitura do livro “Diagnóstico Participativo: o método DRPE”
(Pereira, 2017).
Espera-se que os resultados obtidos com o DRPE possam traçar o perfil
socioeconômico e cultural dos trabalhadores, bem como estimulá-los a se
organizarem melhor e a melhorar suas condições de trabalho. Além disso, os
resultados do DRPE proporcionam a continuidade da intervenção social com
a realização do planejamento participativo por meio do método MAPP.
O Método Altadir de Planificação Popular (MAPP) trabalha com
técnicas de discussão em grupo, ou seja, planeja quem executa, executa
quem planeja. O objetivo desse método é que as organizações sociais dos
trabalhadores identifiquem e selecionem os problemas que consideram
mais relevantes, os hierarquizem e definam maneiras de enfrentá-los com
os meios ao seu alcance. Esse método ajuda a pensar sistematicamente, cria
uma disciplina de discussão em grupo e permite identificar soluções criativas

209
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

aos problemas dos trabalhadores. No caso da Incubacoop/Ufla, este método


é utilizado para elaborar o projeto de constituição da futura cooperativa. Para
conhecer este método em sua essência recomenda-se a leitura do texto de
Matus (2007).
A avaliação de viabilidade econômica e financeira tem como base a
elaboração de um plano de negócios especialmente estruturado para a
atividade econômica dos trabalhadores de acordo com as orientações do
livro “Plano de Negócios para Cooperativas e Associações” (Salles, 2001).
Procura-se identificar e analisar toda a “cadeia produtiva” que envolve a
atividade econômica pretendida. Depois de elaborado o fluxo de caixa é que
se faz as análises de viabilidade econômica e financeira da atividade, tais como
benefício/custo, taxa interna de retorno, entre outras.
Na etapa seguinte a intervenção da Incubacoop/Ufla procura estimular
a formação da cultura cooperativista dos empreendimentos coletivos, bem
como dar suporte gerencial e técnico no que diz respeito aos novos processos
produtivos e da gestão, a introdução de novas tecnologias, colocando em
prática os processos administrativos, contábeis e jurídicos.
Os mecanismos gerenciais de execução da Incubacoop/Ufla estão
fundamentados nos princípios da gestão social. Por que gestão social? Porque
nos projetos sociais, como no caso da Incubacoop/Ufla, estão presentes
vários aspectos importantes para a gestão: Participação de diversos sujeitos
sociais como trabalhadores, prefeitos, estudantes, professores, técnicos;
Envolvimento de distintas instituições governamentais e não governamentais,
seja em âmbito municipal, estadual ou federal, como prefeituras, Secretarias
de Estado, ONGs, Sindicatos, Associações; As tradições culturais do local em
que são aplicados os recursos; As condições econômicas e ambientais da
região.
A gestão social da incubadora necessita manejar essa complexidade,
as incertezas no processo de desenvolvimento e os conflitos emergentes,
no sentido de obter resultados efetivos de geração de trabalho e renda,
de forma equitativa, sustentável e democrática. Para isso, a gestão social
da Incubacoop/Ufla fundamenta-se nos seguintes princípios da cidadania
deliberativa, conforme Villela (2012, p. 39-40), quais sejam: processo de
discussão, inclusão, pluralismo, igualdade participativa, autonomia e bem
comum.
210
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo metodológico de incubação adotado e aperfeiçoado pela
Incubacoop/Ufla ao longo dos 15 anos de sua existência é dinâmico e revela
sua incompletude por razões relacionadas ao índice elevado de entrada e saída
de estudantes que compõem as equipes interdisciplinares de intervenção
social. Em média os estudantes permanecem na incubadora por oito meses ou
dois semestres de aula, o que dificulta o processo de aprendizagem continuada
por ambas as partes, tanto estudantes quanto os trabalhadores envolvidos
no processo de incubação. A continuidade dos trabalhos do processo de
incubação por vezes é interrompida pelas mudanças de equipe. Nem sempre
se consegue realizar todo o processo de incubação por uma mesma equipe,
ou seja, uma equipe inicia com o DRPE, outra com o MAPP, e por vezes outra
equipe elabora o plano de negócios, gerando a descontinuidade do processo.
Apesar disso, considera-se que o processo metodológico tem
proporcionado resultados relevantes para os estudantes e trabalhadores
envolvidos, assim como para os professores e técnicos-administrativos, pelas
seguintes razões: formação qualitativa dos estudantes; realização de cursos de
curta duração; elaboração e aperfeiçoamento das metodologias participativas
empregadas pelas equipes interdisciplinares; publicações técnicas e científicas
realizadas em eventos; recursos materiais disponibilizados aos trabalhadores,
como máquinas e equipamentos de proteção individual, entre outros; geração
de trabalho e renda para os trabalhadores envolvidos.
Sem deixar de reconhecer os ganhos subjetivos dos alunos e
trabalhadores envolvidos nas incubadoras, as melhorias do processo de
incubação demandam investimentos na criação e qualificação de uma equipe
técnica permanente capaz de dar suporte aos trabalhos desenvolvido pelos
alunos. Caso contrário as ITCPs reproduzirão continuamente o mito do eterno
recomeço.

REFERÊNCIAS
ALENCAR, Edgard. Intervenção tutorial ou participativa? Cadernos de
Administração Rural, Lavras, v. 2, n. 1, p. 23-43, jan./jun. 1990.

211
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

ALENCAR, Edgard. Formas de intervenção e associações comunitárias:


apresentação de três casos. Revista Brasileira de Administração Contemporânea,
Rio de Janeiro, v. 1, n. 10, p. 97-115, set. 1995.
BRASIL. Decreto nº 7.357, de 17 de novembro de 2010. Dispõe sobre o Programa
Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares – Proninc, e dá outras
providências.
GUERRA, A. C. Gestão das incubadoras tecnológicas de cooperativas populares:
uma análise comparativa. 2008. Dissertação (Mestrado em Administração) –
Universidade Federal de Lavras, DAE, Lavras, 2008.
GUERRA, A. C.; PEREIRA, J. R. Incubadoras tecnológicas de cooperativas populares:
possibilidades de gestão. APGS, Viçosa, v. 2, n. 1, p. 21-44, jan./mar. 2010.
GUIMARÃES, G. Incubadoras tecnológica de cooperativas populares: contribuição
para um modelo alternativo de geração de trabalho e renda. In: SINGER, Paul;
SOUZA, André (org.). A economia solidária no Brasil: autogestão como resposta
ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000. p. 111-122.
MATUS, Carlos. MAPP – Método Altadir de Planificación Popular. Buenos Aires:
Lugar Editorial, 2007. 64 p.
OAKLEY, P.; MARSDEN, D. Approaches to participation in rural development.
Geneva: International Labour Office, 1985. 91 p.
PEREIRA, J. R. Diagnóstico participativo em cooperativas. In: RIGO, A. S.; SILVA JR,
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de desenvolvimento: ações, articulações e agendas. 1. ed. Recife: Univasf, 2010.
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PEREIRA, J. R., Considerações metodológicas sobre o processo de incubação de
cooperativas populares. In: CANÇADO, A. C.; PEREIRA, J. R.; SILVA JÚNIOR, J. T.
Economia solidária, cooperativismo popular e autogestão: as experiências de
Palmas/TO. 1. ed. Palmas: NESol/UFT, 2007. 320 p. V. 1.
PEREIRA, José Roberto; CANÇADO, A. C. Gestão social de cooperativas. Curitiba:
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PEREIRA, José Roberto. Diagnóstico participativo: o método DRPE. Tubarão: Perito,
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RAZETO, L. Economia de solidariedade e organização popular. In: GADOTTI, M.;
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212
CAPÍTULO 10 – METODOLOGIA DE INCUBAÇÃO DE COOPERATIVAS POPULARES: O CASO DA INCUBACOOP/UFLA
José Roberto Pereira

SINGER, P.; SOUZA, A. (org.). A economia solidária no Brasil: autogestão como


resposta ao desemprego. São Paulo: Cortez, 2000. 360 p.
SINGER, P. Incubadoras universitárias de cooperativas: um relato a partir da
experiência da USP. In: SINGER, Paul; SOUZA, André (org.). A economia solidária
no Brasil: autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Cortez, 2000. p.
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VERHAGEN, K. Co-operation for survival. Dordrecht: ICG Printing, 1984.
VILLELA, Lamounier E. Escopo metodológico. In: TENÓRIO, F. G. (org.). Cidadania e
desenvolvimento local: critérios de análise. Rio de Janeiro: FGV, 2012. 264 p. V. 1.

213
C apítu lo 1 1

Economia Solidária
e Desenvolvimento:
Perspectivas a Partir da Importância
da Reciclagem de Resíduos Sólidos

Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi


Doutora em Desenvolvimento Regional pelo PPGDR/Unijuí (2022).
Mestre em Desenvolvimento pela PPGDR/Unijuí (2008). Professora do Centro
Universitário Unifacvest-SC. josibrugnera@yahoo.com.br.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4959-9272

Taciana Angélica Moraes Ribas


Doutoranda em Desenvolvimento Regional no PPGDR-Unijuí. Mestre em
Desenvolvimento Regional pelo PPGDR/Unijuí (2017). Bolsista Prosuc/Capes.
taciana.ribas@sou.unijui.edu.br. Orcid: https://orcid.org/0000-00027255-3793

Sérgio Luís Allebrandt


Doutor em Desenvolvimento Regional pelo PPGDR/Unisc (2010).
Mestre em Gestão Empresarial pela Ebape/FGV (2001). Professor Titular do
PPGDR/Unijuí. Bolsista Produtividade CNPq. allebr@unijui.edu.br.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2590-6226

Airton Adelar Mueller


Doutor em Sociologia pela Freie Universität Berlin, Alemanha (2015).
Mestre em Desenvolvimento Regional pelo PPGDR/Unisc (2007). Estágio de
Pós-Doutorado pelo PPGDR/Unijuí (2017). Professor-adjunto do PPGDR/Unijuí.
airton.mueller@unijui.edu.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6270-5856
Introdução

O
presente capítulo consiste em compreender como a economia
solidária pode se constituir em alternativa aos problemas dos
resíduos sólidos, que geram impactos socioeconômicos e ambientais
no desenvolvimento, seja na dimensão local, regional ou territorial, haja vista
que um dos grandes problemas atuais na gestão pública está relacionado à
precariedade do saneamento básico, causado pelo aumento de geração de
resíduos sólidos, ocasionados pelo rápido crescimento das cidades, e a maioria
dos gestores públicos não estava preparada para esta demanda.
Essa discussão vem de longa data e sabe-se que o saneamento básico
na condição de serviço público, vem sendo discutido desde meados do
século 19, pois foi esse o século das primeiras medidas sanitárias, criadas
para tentar reduzir o surto de cólera e epidemias que se iniciaram na Ásia e
Europa (Santos, 1994).
De acordo com Cunha (2018), no Brasil há uma estimativa de que
milhões de pessoas não têm acesso aos serviços de saneamento básico (água
potável; coleta, transporte, tratamento e disposição final de esgoto e resíduos
sólidos), cenário este que deixa o país com uma lacuna enorme na solução
destes problemas, pois há uma ineficiência na elaboração e implementação
de políticas públicas nesta área.
No Brasil, a população cresceu 0,8%, e aumentou entre 2014 e 2015
em 1,7% na geração de resíduos sólidos, repercutindo na retração de 3,8% na
atividade econômica medida pelo Produto Interno Bruto (PIB). Este contexto
deixou o país em uma situação de negligência devido ao descaso do setor
público, tendo se originado mais de 1.140 “lixões” a céu aberto, espalhados
por todo o território nacional (Marchi; Silva, 2018).
Com estas demandas crescendo e os problemas aumentando,
percebeu-se a necessidade de que se tomassem medidas urgentes para sanar
tais questões, para que não houvesse um colapso, já a caminho, em todo o
território nacional, agravando ainda mais os danos ao meio ambiente, à saúde,
ao coletivo.

215
CAPÍTULO 11 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS A PARTIR DA IMPORTÂNCIA DA RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi – Taciana Angélica Moraes Ribas – Sérgio Luís Allebrandt – Airton Adelar Mueller

Na tentativa de se trabalhar estas lacunas, foram criadas a Lei Nacional


de Saneamento Básico (LNSB) e a Política Nacional de Resíduos Sólidos
(PNRS), e em apoio a estas, o Plano Estadual de Resíduos Sólidos (Pers), e o
Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS). Não é
objetivo principal deste trabalho trazer um aprofundamento das Leis, mas de
forma reduzida, apresentaremos um pouco dos principais elementos destas
legislações/planos (Quadro 1).
Sobre a PNRS cabe salientar que veio, também, para contribuir na
quebra de um tabu, em que a nomenclatura “lixo”, vinha arraigada de uma
conotação de “algo sem valor econômico”, passando-se então a tratar o “lixo”
como resíduos sólidos, dando a ele não apenas uma valorização econômica,
mas como algo de suma relevância nos campos ambiental e social.
De Freitas et al. (2019, p. 225), fazem uma reflexão sobre a
nomenclatura e a conjuntura no qual o termo lixo é empregado, destacando
que “[...] quem julga que algo não lhe serve mais é o próprio gerador do
resíduo. [...] não cabe afirmar que lixo é “coisa imprestável” já que pode ser
facilmente e muito bem reutilizado, pelo seu usuário”.
Sobre resíduos sólidos, de acordo com Cunha (2018), estes são
“materiais, substâncias, objetos ou bens descartados resultantes das
atividades humanas em sociedade”, cujo destino deve ser dado da forma
correta quando poderá haver o aproveitamento dos mesmos, gerando emprego
e renda, bem como trabalhar a inclusão cidadã, a partir da educação ambiental,
tendo como elemento primordial o reaproveitamento e a transformação dos
resíduos para o processo de reciclagem.
Esta afirmação vem ao encontro do que está disposto na Política Nacional
de Resíduos Sólidos (PNRS), que traz o rejeito como sendo
[...] resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades
de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e
economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não
a disposição final ambientalmente adequada (Brasil, 2010).

216
CAPÍTULO 11 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS A PARTIR DA IMPORTÂNCIA DA RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi – Taciana Angélica Moraes Ribas – Sérgio Luís Allebrandt – Airton Adelar Mueller

Quadro 1 – Leis e Planos que fundamentam/regulam o saneamento básico no


Brasil
LEIS/PLANOS DISPOSIÇÕES
Lei Nacional de Sanea- – Foi considerado o marco legal do saneamento básico.
mento Básico – LNSB, – Regulamentada pelo Decreto Federal nº 7.217 de
Nº 11.445 de 05/01/2007. 21/06/2010.
– Substituiu as Leis nos – Estabelece diretrizes nacionais para política federal
6.766, de 19 de dezembro de saneamento básico, colocando este serviço como
de 1979, 8.666, de 21 de um conjunto de ser– viços, infraestruturas e instalações
junho de 1993, e 8.987, de operacionais de abasteci– mento de água potável; es-
13 de fevereiro de 1995; e gotamento sanitário; limpeza urbana e manejo dos resí-
revoga a Lei nº 6.528, de 11 duos sólidos; e, drenagem e manejo das águas pluviais,
de maio de 1978. limpeza e fiscalização preventiva das redes urbanas.
– Dispõe sobre seus princípios, objetivos e instrumen-
tos, diretrizes
Política Nacional de Resí-
relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de
duos Sólidos – PNRS,
resíduos sólidos, incluídos os perigosos, às responsa-
Lei Nº 12.305 de 2/8/2010
bilidades dos geradores e do poder público e aos ins-
– Integra a Política Nacio- trumentos econômicos aplicáveis.
nal do Meio Ambi-
– A PNRS define uma ordem de prioridade para a ges-
ente (PNMA); articula-se tão e o gerenciamento de resíduos sólidos: não gera-
com a Política Nacional ção, redução, reutilização,
de Educação Ambiental
reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e, por fim,
(PNEA) e com a Política Fe-
disponibilização final ambientalmente adequada dos
deral de Saneamento Bá-
rejeitos.
sico (PFSB) e com a Lei de
– Aplica-se às pessoas físicas e/ou jurídicas, de direito
Consórcios Públicos.
público ou privado, responsáveis diretos ou não, pela
geração dos resíduos. sólidos.
– Consente aos órgãos técnicos do Estado, empreen-
dedores e cidadãos, estarem a par do cenário atual e
a planejar ações objetivando atender as demandas de
curto, médio e longo prazos, para uma gestão satisfa-
tória dos resíduos sólidos produzidos no Estado.
Plano Estadual de Resí-
– Devem ser programados visando ao prazo indeter-
duos Sólidos – PERS
minado, com abrangência em toda a dimensão de
– Instrumento da Políti- seu território, com execução de 20 anos e revisões
ca Nacional de Resíduos periódicas a cada 4.
Sólidos – PNRS criado
– Possibilita ao Estado a elaboração de planos micror-
com base na Lei Federal
regionais de
12.305/2010.
resíduos sólidos, e de projetos específicos focados nas
regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas.
– Apoiar os planos municipais de gestão integrada e de
gerenciamento dos geradores de resíduos – públicos
ou privados.

217
CAPÍTULO 11 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS A PARTIR DA IMPORTÂNCIA DA RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi – Taciana Angélica Moraes Ribas – Sérgio Luís Allebrandt – Airton Adelar Mueller

Plano Municipal de Gestão


Integrada de Resíduos Sóli-
dos – PMGIRS
– De acordo com a Políti-
ca Nacional de Resíduos
Sólidos (PNRS) – Lei Fede- – O PMGIRS deve estar estabelecido no Plano de Sa-
ral nº neamento Básico do Município, incorporando-se aos
12.305/2010 – a gestão in- planos de água, esgoto e de drenagem urbana.
tegrada de resíduos sólidos – Possui a mesma validade dos planos estaduais.
consiste em um “conjunto – É requisito fundamental para acesso a recursos da
de ações voltadas para a União, ou por
busca de soluções para os ela controlados, destinados a empreendimentos e
resíduos sólidos, de forma serviços relacionados à limpeza urbana e ao manejo
a considerar as dimensões de resíduos sólidos.
política, econômica, am-
biental, cultural e social,
com controle social e sob
a premissa do desenvolvi-
mento sustentável”.
Fonte: Elaboração própria, extraído do site planalto.gov.br/Brasil, 2010, e de Marchi
e Silva (2018).

Neste viés, alia-se a isto a Economia Solidária (ES), que vem como
uma ferramenta, apresentada como um ideário para um “novo modelo de
desenvolvimento sustentável, includente e solidário” (Silva; Silva, 2008), uma
vez que os resultados econômicos, sociais, políticos e culturais beneficiam a
todos os envolvidos.
Assim, vislumbra-se como um dos parâmetros ou alternativas para a
ES, qual seja, a transformação de resíduos recicláveis descartados para o fim
de gerar fonte de renda, empregabilidade direta e indireta, e ainda, como
forma de cooperação, por meio do associativismo com o meio ambiente e o
desenvolvimento social, humano e econômico.
Nesse contexto, quando citamos a ES e a cooperação em busca do
desenvolvimento, todavia, devemos trazer a lume temporalmente a evolução
no contexto mundial, em especial as transformações ocorridas nas últimas
três décadas, como a redefinição das funções do Estado, tendo em vista o
pós-guerra, a globalização e os efeitos do neoliberalismo.
Desse modo, observa-se que as respectivas variações ou reposiciona-
mentos dos agentes da sociedade civil e da necessidade de novos mecanismos
reguladores são necessárias para readequar o controle das externalidades
218
CAPÍTULO 11 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS A PARTIR DA IMPORTÂNCIA DA RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi – Taciana Angélica Moraes Ribas – Sérgio Luís Allebrandt – Airton Adelar Mueller

produzidas pelo sistema capitalista. As alterações do sistema e o papel das


organizações que atuam no campo social e tecnológico, que visam ao capital,
estiveram mais voltadas aos interesses de caráter positivista e empresarial
em razão de que as normativas e regulamentações sempre bloquearam a
promoção e o incentivo do cooperativismo local e social.
Nessa esteira, percebe-se quão ineficiente o Estado tornou-se nas
últimas décadas, seja no fomento e aplicabilidade das políticas públicas
em regulamentação do mercado, seja na livre concorrência e iniciativa.
Importante reforçar que as deficiências citadas anteriormente correspondem
aos princípios da economicidade, ordem econômica, tudo em busca da
equidade, conforme proposto no texto do artigo 170 da Carta Magna de 1988.
Em trilha oposta à tendência, inseriu-se como modelo de Economia
Solidária cidadã a proposta de reciclagem de resíduos em espaços associativos.
A proposta de reciclagem vislumbra um segmento social de material reciclável
que integra o cenário urbano em busca da sustentabilidade. No Brasil, há
muito anos, este modelo aplica-se em espaços espalhados nas pequenas e
grandes cidades.
Em linhas mestras, o objetivo geral do presente trabalho é apresentar
esse modelo, ou a perspectiva enquanto parâmetros de enfrentamento
da inclusão/exclusão econômica e social. Também busca-se apresentar
alternativas às restrições que lhes são infringidas pela dinâmica do mercado
de trabalho, com estratégias de ações coletivas em busca de cidadania em
trabalho associativo, empreendedor e dinâmico no âmbito local, reduzindo
os impactos ambientais e tendo como pressuposto a reciclagem.
Para melhor compreensão deste estudo, o texto, além desta introdução,
apresenta os apontamentos metodológicos que abordam os caminhos e
procedimentos adotados na pesquisa. Segue o referencial teórico, com seções
que abordam aspectos da Economia Solidária e do Associativismo, avançando
para o papel da reciclagem como fonte de renda e de desenvolvimento
sustentável. Seguem-se as discussões e análises, que discorrem sobre os
resultados acerca das dinâmicas da coleta de resíduos sólidos, delineando
com os aspectos da Economia Solidária, em que a análise principal se baseou
em dados coletados nos estudos do Sistema Nacional de Informações sobre
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Saneamento (SNIS) e Ministério do Meio Ambiente (MMA). Finaliza-se com


as considerações finais com o entendimento dos autores, em sintonia com o
referencial teórico, encerrando-se com as referências utilizadas no capítulo.

APONTAMENTOS METODOLÓGICOS
O âmbito da investigação no presente estudo atrela-se à análise
empírica, a partir de estatísticas de coletas e reciclagem dos municípios do
Brasil, como agentes transformadores no processo de educação ambiental,
gerenciamento de descartes conforme dispõem as políticas públicas. Em
especial, a formação de renda e inclusão dos menos assistidos no modelo
capitalista vigente, numa perspectiva de economia solidária.
Neste caminho, este estudo está ancorado no enfoque da teoria crítica,
pois esta enfatiza o papel da ciência na transformação da sociedade, uma
vez que procura averiguar a realidade dos grupos e instituições, associando
as ações humanas com aspectos culturais, sociais e políticos, no intuito
de compreender as redes de poder – como são geradas, conduzidas e
modificadas (Alves-Mazzotti; Gewandsznajder, 2004; Allebrandt, 2010).
A presente investigação enquadra-se ainda como uma pesquisa
bibliográfica de revisão de literatura narrativa, uma vez que não se utilizou
de protocolo pré-definido.
A revisão de literatura narrativa não exige um protocolo rígido para sua
confecção, uma vez que este método apresenta uma temática mais aberta,
onde a busca das fontes não é pré-definida e proporciona aos investigadores
selecionar os artigos arbitrariamente, fornecendo aos autores informações
sujeitas a viés de seleção, com grande interferência da percepção subjetiva
(Unesp, 2015).
Corroborando, Gil (2010, p. 29) aponta que a “pesquisa bibliográfica
é elaborada com base em material já publicado. Tradicionalmente, esta
modalidade inclui material impresso, como livros, revistas, jornais, teses,
dissertações e anais de eventos científicos”.
Este foi o caminho utilizado pelos investigadores, que se valeram de
textos escritos por autores que estão alinhados com o objeto de estudo, bem
como com os estudos aplicados no Programa de Pós-Graduação em Desenvol-
vimento Regional – PPGDR/Unijuí.
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Tem-se no presente estudo uma pesquisa de natureza descritiva cujo


propósito consiste em entender e descrever características de um determinado
modelo ou fenômeno (Gil, 2002), e permite que os pesquisadores se
aprofundem na busca de informações acerca do objeto explorado, relatando
os acontecimentos e fenômenos de uma determinada realidade (Triviños,
1987).
Quanto à abordagem, pode-se afirmar que é híbrida na condição de
elementos de investigação, pois ao mesmo tempo que se tem resultados
baseados em dados quantitativos extraídos do SNIS e do MMA por meio da
análise de modelos sustentáveis, manejo dos descartes e na viabilização da
reciclagem como fonte de renda e inclusão cidadã, ainda se tem um olhar
qualitativo em que não há uma preocupação com uma representatividade
numérica.
Por esta pesquisa, também classificada como descritiva, pois se objetiva
encontrar e relacionar as variáveis existentes em uma determinada realidade,
é que se justifica a abordagem quantitativa, uma vez que se procura descobrir
e classificar a relação entre variáveis, as quais propõem descobrir as caracte-
rísticas de um fenômeno que possui elementos que quantificam a coleta
de dados e o tratamento das informações, nos quais os investigadores se
apropriam de dados estatísticos (Richardson, 1999). Desse modo, entende-se
que os resultados obtidos não são passíveis de manipulação/distorção ou
com margem de erros, dando-lhes mais confiabilidade (Diehl, 2004). Assim,
constata-se que a pesquisa quantitativa oferece aos pesquisadores um
método que pode ser mensurado em escala numérica.
No que concerne à pesquisa qualitativa, de acordo com Minayo
(2001), esse método de amostragem é interessante, pois possibilita abranger
a totalidade do problema investigado em suas múltiplas dimensões e
está fundamentada na compreensão de um determinado grupo social ou
organização. O intuito principal está em explicar o porquê de determinadas
situações, enfatizando o que melhor convém a ser feito, sem a necessidade
de mensurar valores, uma vez que as trocas simbólicas não são submetidas
à prova dos fatos, pois os dados analisados são não métricos e se valem de
diferentes abordagens.
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Ainda, para esta pesquisa, utilizou-se da análise documental. Esta


técnica possibilita aos pesquisadores, a partir da análise do documento,
relatar de forma mais objetiva as informações nele contidas (Bardin,1997).
Neste estudo analisou-se a Lei Nacional de Saneamento Básico (LNSB) e a
Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), bem como documentos/relatórios
disponíveis no SNIS e MMA.

ECONOMIA SOLIDÁRIA (ES) E ASSOCIATIVISMO


No tocante à Economia Solidária, doravante descrita como ES, objeto
em pauta, o projeto de associação para a reciclagem dos resíduos descartados
seria uma alternativa de renda e inclusão na temática cidadã.
Cumpre afirmar o entendimento pontual do s e u idealizador ( Singer,
2002), que chamou o projeto de “cooperativismo revolucionário”. Assim,
verifica-se que a economia solidária surge como uma forma de projeto às
classes populares, gerando emprego e renda, com proposta diferenciada,
além de estimular a economia local.
Neste viés, a Economia Solidária apresenta-se como uma forte
alternativa, por se tratar de um modelo econômico que surge categorica-
mente, em que as comunidades buscam suas particularidades e organização
inclusiva no desenvolvimento econômico. Assim, a participação coletiva faz
com que os integrantes criem laços de amizade e integração, em virtude da
ampla participação social.
Em especial, no Brasil a Economia Solidária foi solidificando-se e
fomentando suas matrizes e paradigmas, tendo ocorrido a sua primeira
conceituação somente nos anos 90, com a obra: “Economia de Solidariedade
e Organização Popular”, do teórico Luis Razeto, que discorre com vistas ao
tema, pontuando-o como
[...] uma formação teórica de nível científico, elaborado a partir e para
dar conta de produtos significativos de experiências econômicas [...], que
compartilham alguns traços constitutivos e essenciais de solidariedade,
mutualismo, cooperação e autogestões comunitárias, que definem uma
racionalidade especial, diferente de outras racionalidades econômicas
(Razeto, 1993, p. 40).

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Conforme supracitado, nota-se que esta visão no Brasil tornou-se fator


relevante e decisivo para libertar, em parte, as amarras do capitalismo. Da
mesma forma, como perspectiva de inclusão alternativa para a sociedade na
busca de renda direta e indireta mostra-se como opção relevante.
Por sua vez, em linhas verossimilhantes, no viés econômico e
integrativo, Singer (1998 apud Singer 2002) observa que o desemprego
estrutural, reflexo da globalização, não aumenta necessariamente o número
de desempregados, mas ao contrário, intensifica a deterioração do mercado
de trabalho por meio da precarização e das terceirizações.
Mediante estes diagnósticos anteriormente elencados, nos reportamos
à Economia Solidária e ao Associativismo, que nos remetem ao posicio-
namento de Singer (2002), o qual dispõe que a Economia Solidária se
originou na Inglaterra durante a Segunda Revolução Industrial.
De acordo com o autor, a princípio as cooperativas inglesas rejeitavam
o lucro, sendo o cooperativismo um modo de produção alternativo ao
capitalismo, contribuindo para o amplo desenvolvimento do comércio em
países como Inglaterra, França e Suíça. O cooperativismo de consumo,
entretanto, perdeu a disputa para o grande capital, pois este ofereceu preços
atrativos e atendeu aos consumos homogeneizados, em que pese, ainda,
existir espaço para demandas específicas e para aquelas atividades que
possam ser realizadas em pequena escala.
Nesse aspecto, no Brasil, o cooperativismo teve início em meados
do século 20, incorporado por imigrantes europeus. Existiam cooperativas
de consumo nas cidades, que faliram em razão do crescimento do varejo e
das cooperativas agrícolas, que se tornaram, na maioria, em regra empresas
capitalistas (Singer, 2002).
Em conformidade com o pensamento do teórico Singer (2002),
considera-se o cooperativismo um modo de produção, no qual todos os seus
membros são iguais e cooperam entre si. Na empresa solidária a remuneração
dos sócios ocorre com o recebimento de valores variáveis de acordo com a
receita obtida.
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Neste modelo, as decisões são tomadas de forma coletiva, com a efetiva


participação dos sócios durante assembleia, havendo assim, a autogestão. O
destino do lucro nas cooperativas é decidido em assembleias. Comumente é
investido uma parte em um fundo indivisível e o restante divide-se entre os
sócios.
Dessa forma o trabalho torna-se rentável, vantajoso, ao qual agrega-se
a mão de obra informal, inserindo as vítimas da exclusão social, que são um
dos grandes problemas na sociedade. Resta claro, conforme considerações
de Singer (2002) apresentadas para a reflexão, que a exclusão se relaciona
por vezes devido ao fato de o mercado de trabalho não possuir meios para
absorver toda a mão de obra existente, evidenciando, assim, um dos cenários
visíveis e cruéis na contemporaneidade.
O viés da ES e do cooperativismo pode ser utilizado como mecanismo
de reinserção no mercado de trabalho, com a consequente formação de
renda direta para os, então, excluídos e, sobretudo, o rearranjo da economia
local como reflexo. Importante destacar, ainda, que a Economia Solidária
surgiu como resposta, por parte de diferentes grupos sociais, às contradições
do sistema capitalista e às imperfeições das relações de mercado, pois uma
parcela da população excluída do mercado de trabalho formal busca sua
sobrevivência coletivamente (Singer, 2002).
Neste contexto, percebe-se que a ES passa a ter mais relevância,
auferindo mais espaços no Brasil, colocando as associações, cooperativas ou
atividades solidárias como protagonistas neste cenário. Essas organizações
moldaram-se inicialmente como entidades informais ou grupos comunitários
de produção, cooperativa e/ou pequenas empresas, e tinham à frente
trabalhadores que se encontravam sem possibilidades de sustento e/ou
motivados por suas ideologias (Gaiger, 2004).
Essas associações que atuam no campo da Economia Solidária caracte-
rizam-se por terem a autogestão e socialização dos meios de produção
e distribuição como principais elementos, em que não há divisão entre
capital e trabalho, sendo eles mesmos os detentores do capital (Ferreira,
2005). Para Oliveira (2005), o setor da Economia Solidária nasceu no espaço
intermediário entre Estado, mercado e setor informal, para cumprir um papel
social, econômico e político, abarcando as famílias, comunidades e redes que
exercem um papel importante na sociedade.
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A ES é considerada um passo concreto, indispensável para dar


credibilidade e gerar intensa adesão social aos propósitos de uma nova
arquitetura mundial, prova necessária para evitar apenas o oferecimento
de uma ideologia mistificadora, de alternativas inaplicáveis (Gaiger,
2004, p. 799).

O que proporciona força para a Economia Solidária é a capacidade dos


atores sociais de coordenarem estas organizações diante das alternâncias
no interior do processo produtivo, evidenciando o papel da governança na
economia política local (Pochmann, 2004). O autor ainda sugere que esta
dinâmica provavelmente esteja inserida na dimensão macroeconômica
nacional, a qual desempenha um importante papel nas perspectivas de avanço
ou retrocesso do desenvolvimento local ou regional.
Assim, são múltiplas as iniciativas que caracterizam a Economia
Solidária, tais como as cooperativas com seus coletivos de trabalhadores
organizados com base na democracia, nas tomadas de decisão e organizadas
em diferentes setores da economia. Além de outras formas de associativismo
ou grupos informais de organização socioprodutiva, existe um verdadeiro
pluralismo organizacional, com suas variáveis estruturantes.
Essas iniciativas colocam o cidadão como protagonista no cenário do
desenvolvimento, por meio das organizações do setor da Economia Solidária.
Isso exige uma transformação política e social, na qual esses sujeitos se
tornam os principais atores sociais, e que possam atuar junto ao gestor
social, discutindo sobre as ações que visem ao desenvolvimento. Ademais,
nas palavras do teórico Brandão (2008, p. 154):
O desenvolvimento enquanto processo multifacetado de intensa
transformação estrutural resulta de variadas e complexas interações
sociais que buscam o alargamento do horizonte de possibilidades
de determinada sociedade. [...] isso implica na “construção social e
política de trajetórias sustentadas e duradouras e deve ser dotada de
durabilidade orgânica, sendo permanentemente inclusiva de parcelas
crescentes das populações marginalizadas dos frutos do progresso
técnico, endogeneizadora de centros de decisão e ter sustentabilidade
ambiental.

Por assim dizer, o desenvolvimento ocorre por meio dos agentes locais,
sociais, que a partir das dinâmicas da ES passam a implementar e fomentar
este setor na cadeia de produção, recuperação e reciclagem de resíduos
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sólidos e ainda, colaboram no aspecto de inclusão e desenvolvimento


sustentável. Essa ideia é trabalhada por Silva e Silva (2008, p. 2), os quais,
ancorados em Gomes et al. (2007), destacam que
o desenvolvimento sustentável se dá por meio de associações
alicerçadas nos elementos que fundamentam a Economia Solidária,
uma vez que este cenário pode ser um grande propulsor na melhoria da
qualidade de vida de todos os atores sociais envolvidos, e essa melhoria
reflete nas gerações presentes e/ou futuras, acarretando no desenvol-
vimento harmônico e sustentável.

Constata-se, no entanto, que é por meio dos atores sociais envolvidos


nestes processos e dinâmicas da ES que é possível que ocorra o diálogo sobre
o desenvolvimento. Essa participação social não pode ser colocada de lado,
pois esses sujeitos são parte do constructo da promoção social, da democracia
participativa, na construção de ambientes equilibrados e produtivos e na
associação com preceitos fundamentais da ES (Gomes et al., 2007). Desse
modo, para melhor enfatizar estas dinâmicas da ES e do associativismo, o
tópico a seguir vai abordar a questão do desenvolvimento e coleta seletiva e a
reciclagem como meio para o desenvolvimento sustentável e socioeconômico.

DESENVOLVIMENTO E COLETA SELETIVA:


A Reciclagem de Resíduos como Alternativa
de Desenvolvimento Sustentável e Fonte de Geração
de Emprego e Renda
A Constituição Brasileira de 1988 promoveu a perspectiva do desenvol-
vimento sustentável, quando estabeleceu no artigo 170 que a liberdade de
iniciativa é um dos fundamentos da ordem econômica constitucional, desde
que as pessoas cumpram seus princípios, um dos quais é a defesa do meio
ambiente. Ou seja, a liberdade da empresa não pode ser desconectada da
obrigação de proteção ambiental, mas sim sujeita a ela e é uma de suas
condições. No que se refere à reciclagem e seu importante papel na ordem
econômica para o meio ambiente e para o desenvolvimento sustentável, é
importante destacar o caráter da educação ambiental e das políticas públicas.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal identificou a “limitação
da liberdade de iniciativa” com base no princípio da proteção do ambiente:
a atividade econômica não pode ser exercida sem harmonia com os princípios
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de eficácia da proteção ambiental. Ou seja, a segurança do meio ambiente


não pode ser comprometida pelos interesses corporativos ou se tornarem
dependentes de natureza puramente econômica das corporações.
Acreditava-se que a sustentabilidade estaria amplamente envolvida
com o meio ambiente. Ocorre que teóricos entendem que a sustentabilidade
necessita apoiar-se em vários pontos, entre os quais se destacam três: o
social, o econômico e o ambiental. Considerando que a existência da susten-
tabilidade depende dessa relação socioeconômica e ambiental, ela pode
ser vista como um grande sujeito e discutida de diferentes maneiras. Sachs
(2002), por exemplo, utiliza, definindo oito tipos de sustentabilidade (social,
econômica, ecológica, espacial, territorial, cultural, política nacional e política
internacional) para apresentar as dimensões do que denomina ecodesenvol-
vimento.
Logo, o quesito sustentabilidade baseia-se num conceito de
solidariedade, como um vínculo intergeracional no direito ao meio ambiente
e permite uma nova concepção de responsabilidade ética que vai além da
esfera de proximidade dos sujeitos envolvidos. A sustentabilidade, portanto,
necessita de planejamento, acompanhamento e avaliação dos resultados.
Observa-se, assim, que a sustentabilidade é condizente com o crescimento
econômico fundamentado na justiça social e eficiência no uso dos recursos
naturais (Lozano, 2012).
A partir desse aspecto a análise sobre a reciclagem como consequência
da transformação da matéria-prima para a elaboração de novos produtos,
e o acréscimo na renda familiar de coletores e cooperativas de reciclagem,
são ações e elementos que contribuem para coibir os impactos ambientais,
estimulando a preservação em favor da presente e das futuras gerações,
um verdadeiro direito intergeracional, conforme assinala o teórico Carvalho
(2013).
Nessa direção, tendo como pressuposto a ideia de reciclagem e
transformação de resíduos, levamos em conta a questão de gestão e desenvol-
vimento local, com percepções de suma relevância, tais como: ganhos
ambientais e ganhos culturais. Ambos os ganhos resultam em politização e
consciência em favor da educação dos atores sociais. O que, por sua vez, insere
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estes sujeitos de direitos e obrigações na órbita social e nos benefícios das


esferas públicas na geração de empregabilidade, renda, e ainda, no resgate
social inclusivo.
Quanto aos encaminhamentos das esferas públicas, destacamos o
relevante papel da coleta seletiva, incentivo à reciclagem, participação em
cooperativas e dos demais atores locais/sociais, de forma regionalizada
nos municípios para demonstrar as dimensões virtuosas da reciclagem,
tornando-se, assim, instrumento indispensável para a cadeia de produção
e para o desenvolvimento estratégico e de políticas econômicas solidárias.
Política Nacional de Resíduos Sólidos, coleta seletiva e associações de
catadores: um panorama do Brasil
No Brasil, a imagem do trabalho dos catadores ou coletores de resíduos
está integrada há muitos anos, em especial no cenário urbano. A atuação do
coletor, muitas vezes, se dá sob condições que comprometem sua integridade
física, em muitos casos de forma autônoma e isolada. O movimento coletivo,
no entanto, por meio de cooperativas e associações tem apresentado
aumento expressivo, devido à introdução da Política Nacional de Resíduos
Sólidos (PNRS).
A PNRS foi um marco para a gestão dos resíduos sólidos no país, por
estabelecer os princípios, objetivos, instrumentos, além de dispor sobre as
diretrizes referentes à gestão e ao gerenciamento desses resíduos, inclusive
os perigosos, às responsabilidades dos geradores e do poder público e aos
instrumentos econômicos aplicáveis (Brasil, 2010).
Dispõe ainda em suas alíneas sobre o que precisa ser feito ou
conduzido no processo de manejo dos resíduos sólidos no país. Além disso,
cria instrumentos importantes para a redução e geração dos resíduos,
aumentando consequentemente a reciclagem, a reutilização e destinação
ambiental adequada. Uma dessas mudanças decorrentes da PNRS é a logística
reversa, que segundo o art. 3º, inciso XII, da PNRS (Brasil, 2010) entende-se
por
[...] um instrumento de desenvolvimento econômico e social
caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios
destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao
setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros
ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada
(Brasil, 2010).

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Outra alteração depois da PNRS, não menos importante, é o estabele-


cimento da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos,
que segundo o art. 3º, inciso XVIII da PNRS trata-se de um grupo de medidas
individuais e ordenadas por parte dos fabricantes, importadores, distribuidores
e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de
limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, no sentido de diminuir os
resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para a redução das implicações
causadas à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de
vida dos produtos (Brasil, 2010).
Os instrumentos legais que partem da PNRS possibilitam, por exemplo,
o surgimento de novas vertentes que vêm para facilitar o processo de
manejo dos resíduos. Ressalta-se que a reutilização dos resíduos (aprovei-
tamento do resíduo sem que ocorra uma transformação biológica, física ou
físico-química) como política tem colaborado, tanto para a ampliação do
número de cooperativas de catadores quanto para o crescimento de catadores
individuais, que veem essa atividade como meio de obter trabalho e renda,
diante da falta de perspectivas melhores.
Logo, o aumento dos resíduos sólidos e a grande demanda de trabalho
no setor (incluindo formação de cooperativas e de catadores individuais), são
reflexos da expansão da produção inteligente e do aumento do consumo em
massa, produzidos pelo fenômeno da Quarta ou Nova Revolução Industrial, a
chamada Indústria 4.0, fenômeno mundial que faz gerar uma gama maior de
insumos para a produção e, consequentemente, ocorre um excessivo descarte
em lixões em virtude do crescente consumo de produtos nos centros urbanos
por parte da sociedade, como também das indústrias.
Importante observar que a Indústria 4.0 tem otimizado a produção
de bens e serviços, por meio das fábricas inteligentes, em que cada vez se
produz mais, com melhor qualidade e agilidade. Por outro lado, utilizam-se,
ao mesmo tempo, de um grande volume de combustíveis, como petróleo, gás
natural, carvão mineral para este feito, sempre em busca da satisfação das
necessidades da população, da indústria e do comércio. Trata-se de energias
não renováveis e de extração recorrente, que, ao serem queimadas, elevam
a emissão de gases poluentes, interferindo profundamente nas mudanças
climáticas, que ocasionam excessivo calor ou frio, alagamentos, terremotos,
secas, entre outros problemas ambientais.
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Diante dessa forte demanda energética surge como solução a


prática da Logística Reversa, que é a transformação de resíduos sólidos em
matéria-prima energética. Política que ganha mais espaço e solidez no sistema
econômico contemporâneo, de modo que se consolida como uma alternativa
eficiente e eficaz para a solução dos problemas, diminuindo a extração de
recursos naturais e dos problemas ambientais gerados pelo aumento dos
resíduos sólidos. De acordo com o Anuário da Reciclagem (AR, 2017/2018, p.
8), Logística Reversa (LR)
[...] é o conjunto de ações para que o resíduo pós-consumo retorne
para a cadeia produtiva, substituindo matéria-prima virgem. Esse
fluxo inclui várias etapas, primeiro a coleta dos resíduos, posterior-
mente sua triagem e destinação adequada (reutilização, reciclagem
ou compostagem). Com isso, a LR busca, principalmente, diminuir
os resíduos depositados nos aterros sanitários ou lixões, e reduzir a
extração de matérias-primas.

Ações essas relevantemente sociais, econômicas e ambientais, tendo


em vista que “com intenso avanço da urbanização e industrialização da
sociedade nas últimas décadas, houve também grande crescimento da geração
de resíduos” (AR, 2017/2018, p. 7). E, portanto, a necessidade urgente de ações
para gerenciar esses resíduos e o uso indiscriminado de recursos naturais, como
no caso a instituição da PNRS, que também contribui significativamente para
o aumento de cooperativas, que vão realizar o processo de coleta seletiva
lá na ponta da cadeia de resíduos. Sendo assim, o descarte adequado e o
reaproveitamento dos resíduos sólidos, além de servirem de combustíveis e
diminuírem a extração de recursos naturais pela indústria, consequentemente
contribuem para a qualidade na saúde da população e do meio ambiente e o
desenvolvimento sustentável.
Diante do exposto é salutar frisar que os catadores de resíduos sólidos
recicláveis, como também as cooperativas de catadores, têm significativa
importância nesse cenário, sobretudo porque são os agentes responsáveis pela
coleta, triagem e destinação desses materiais, para que tenham destinação
adequada, especialmente para a reciclagem. Confirmando estas afirmativas,
a Pesquisa Ciclosoft 2018, assinalou que 1.227 municípios do país, o que
corresponde a 22% do total, dispõem de programas de coleta seletiva. E
cerca de 35 milhões de cidadãos têm acesso a programas municipais de coleta
seletiva, observando-se que os programas mais satisfatórios ocorrem quando
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há uma consonância de modelos de coleta seletiva (Cempre, 2018-2020). Os


dados da pesquisa ainda revelam que a coleta de resíduos “porta a porta”
corresponde a 80%, os pontos de entrega voluntária (PEVs) equivalem a
45% e as cooperativas representam 64% destas, isto é, as cooperativas ou
organizações de coletas seletivas são a maioria dos agentes recicláveis. De
acordo ainda com a pesquisa, considerando que os municípios podem ter
mais de um administrador de coleta seletiva (agentes executores), 39%
dos municípios pesquisados realizam a sua própria coleta; em 36% as
empresas particulares são contratadas para fazê-la e 50% apoiam ou mantêm
cooperativas de catadores (Cempre, 2018-2020).
O apoio às cooperativas está baseado em: maquinários, galpões de
triagem, ajudas de custos com água e energia elétrica, caminhões
(incluindo combustível), capacitações e investimento em divulgação e
educação ambiental. Na pesquisa 2018 ficou evidenciado o crescimento
da participação dos catadores organizados em associações e/ou
cooperativas (Cempre, 2018-2020).

Com isso, é possível afirmar que metade dos municípios pesquisados


incentivam as cooperativas, observando-se que estas são responsáveis por
mais da metade (64%) da coleta de resíduos em municípios que possuem
esse tipo de serviço, gerando consequentemente valor econômico e social
para os munícipes. Complementando ainda os dados de 2018, a pesquisa
realizada pelo Cempre em 2020 apresenta significativas mudanças, além
de desenvolvimento do setor, isso porque, em 2020, 1.269 municípios do
Brasil já têm acesso ao serviço de coleta seletiva, um adendo de 42
municípios em dois anos. A pesquisa traz, também, informações e indicadores
relacionados à gestão pública da coleta seletiva municipal de 341 municípios,
que correspondem a cerca de 35% da população brasileira, bem como observa
que tanto na zona rural quanto na urbana o método de coleta “porta a porta”
é o mais utilizado, atendendo respectivamente 72,96% e 90,47% da população
envolvida.
Em relação ao agente executor da coleta seletiva, a maior parte do
serviço é efetivado por empresas licitadas (50,85%). O estudo também
identificou 549 organizações de catadores, presentes em 24 Unidades
Federativas. Mais de 95% destas organizações são classificadas principal-
mente como associações ou cooperativas de catadores. As entidades que
responderam à pesquisa empregaram juntas quase 15 mil pessoas e reciclaram
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CAPÍTULO 11 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS A PARTIR DA IMPORTÂNCIA DA RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi – Taciana Angélica Moraes Ribas – Sérgio Luís Allebrandt – Airton Adelar Mueller

350 mil toneladas em 2019. As unidades de triagem consultadas possuem em


média 27 catadores e comercializam cerca de 26,3 t/mês. Quanto à forma
de remuneração dos serviços, a pesquisa verifica que em torno de 73,77%
dos catadores têm algum tipo de vínculo com o poder público municipal
e 56,47% são apoiados por programas de Logística Reversa. Em relação à
remuneração, 86,7% dos catadores recebem entre 0,5 e 2 salários-mínimos.
A pesquisa também revela um aumento de 186% na coleta seletiva desde
a publicação da PNRS, que tem como objetivo a redução da quantidade
de resíduos para aterros e lixões (Tetra Pak, 2021).
Ou seja, tendo por base esse conjunto de dados é possível afirmar que
todo esse conjunto de ações, como aumento de cooperativas e catadores,
aumento da destinação correta de resíduos, valor agregado do produto
reciclado, Logística Reversa, entre outros aspectos, incidem positivamente na
diminuição de resíduos, favorecem o meio ambiente, geram a sustentabi-
lidade, favorecem o desenvolvimento econômico e social da população, e
acima de tudo são iniciativas que surgem em perspectiva da aplicação da lei
na prática, no caso da PNRS. O Gráfico 1 demonstra o crescimento do número
de municípios que possuem coletas seletivas, observando-se que em 1994
eram cerca de 81 municípios indo para 1.269 no ano de 2020.
Gráfico 1 – Evolução dos números de municípios com coleta seletiva no Brasil,
de 1994 a 2020

Fonte: Elaborado a partir de dados das pesquisas da Cempre, 2018-2020.

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Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi – Taciana Angélica Moraes Ribas – Sérgio Luís Allebrandt – Airton Adelar Mueller

De acordo com os dados apresentados pela Cempre (2018-2020),


levando em consideração que o Brasil possui atualmente 5.570 municípios
(IBGE, 2020), somente 22,78% destes possuem algum tipo de coleta seletiva,
ficando de fora desse contingente 77,22% de municípios. Na sequência,
observa-se o número de entidades associativas de resíduos recicláveis, por
região, de 2011 a 2018, destacando-se que nas regiões Sul e Sudeste está
acomodado um maior número de associações de reciclagem (Gráfico 2).
Gráfico 2 – Número de entidades associativas de catadores, de 2011 a 2018

Fonte: Elaborado pelo autor, conforme a SNIS-RS, 2012 a 2019 (ano-base 2011 a 2018).

O número de catadores de 2011 a 2018 segue sempre em


ascendência desde 2011, poré com um pequeno declive de 7 pontos em
2015, conforme demonstrado no Gráfico 3.
Gráfico 3 - Número de organizações de catadores 2011 a 2018, no Brasil

Fonte: Elaborado pelo autor, conforme a SNIS-RS, 2012 a 2019 (ano-base 2011 a 2018).

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Considerando os dados apresentados, é possível afirmar que em 6 anos,


de 2011 a 2017, desde a promulgação da PNRS de 2010, houve um acréscimo
de 500 entidades associativas de catadores. Em seguida, na Tabela 1, podem
ser visualizados os dados relativos ao número de entidades associativas em
2018, 2019 e 2020.
Tabela 1 – Número de entidades associativas de catadores de 2018 a 2020Ano

Fonte: Autor, com base nos dados da pesquisa Tetra Pak (2021).

O conjunto de dados esboçados na Tabela 1 permite averiguar que


no período de três anos (2018, 2019 e 2020) houve um acréscimo de 629
entidades associativas de catadores, crescimento considerável de entidades,
mais que o somado em sete anos, avaliando o demonstrado anteriormente
(Gráfico 3). Considerando, contudo, que de acordo com dados do Banco
Mundial o Brasil é o 4º produtor no mundo na produção de plástico (Pires;
Oliveira, 2021), o número de cooperativas para dar conta de tudo isso teria
que ser superior.
Por meio de análise dos números e perspectivas da realidade, minucio-
samente apontadas até o momento, é possível frisar ainda que o desenvol-
vimento do setor de reciclagem e a ampliação de cooperativas associadas, a
Economia Solidária pode ter relação direta com os planos e gestão de coleta
elaborados e postos em prática pelas administrações públicas desde a criação
da PNRS em 2010.
Em relação aos planos e à gestão de coleta pode-se observar que estes
são uma obrigação jurídica estabelecida na PNRS de 2010 por parte do poder
público municipal, ressaltando-se que em suas metas de coleta seletiva deve
constar um Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, o qual consiste em
[...] um conjunto de ações exercidas, direta ou indiretamente, nas
etapas de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destinação
final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos e disposição final
ambientalmente adequada dos rejeitos, de acordo com plano municipal
de gestão integrada de resíduos sólidos ou com plano de gerenciamento
de resíduos sólidos (Brasil, 2010).

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CAPÍTULO 11 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS A PARTIR DA IMPORTÂNCIA DA RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
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Entende-se por coleta seletiva a “coleta de resíduos sólidos previamente


segregados conforme sua constituição ou composição” (Brasil, 2010). A
reciclagem é um processo industrial que converte o resíduo descartado
(matéria-prima) em produto semelhante ao inicial ou algum outro tipo de
produto. Para tanto, as associações de catadores de materiais recicláveis,
também chamados de empreendimento coletivos de resíduos recicláveis, têm
grande importância na cadeia produtiva da reciclagem.
O passo seguinte a apresentar é o Sistema Nacional de Informações
sobre Saneamento, porque, nessa esteira, além do olhar econômico
é importante reforçar o aspecto legal e eficaz disposto no Sistema da
Política Nacional de Resíduos Sólidos. Em seus artigos 1º e 2º, lei nº Lei nº
12.305/2010 dispõe a respeito do campo de aplicação e seu objeto; já o
artigo 3º possui definições de extrema importância para a adoção de políticas
corretas para a preservação do meio ambiente, com destaque para o controle
e a destinação dos resíduos sólidos produzidos diariamente no país.
O sistema que deve ser utilizado pelos padrões desta lei encontra-se em
específico no artigo 3º, capítulo II, da Lei nº 12.305/2010, como ferramenta
ao desenvolvimento. Diante dessas perspectivas, a gestão dos Estados
e municípios de forma autônoma, a fim de auxiliar na criação de projetos
ambientais de cunho sustentável e assegurando a eficácia do desenvolvimento
dos mesmos está destacada no artigo 18 da Lei nº 12.305/10, em igual teor:
Art. 18. A elaboração de plano municipal de gestão integrada de
resíduos sólidos, nos termos previstos por esta Lei, é condição para
o Distrito Federal e os Municípios terem acesso a recursos da União,
ou por ela controlados, destinados a empreendimentos e serviços
relacionados à limpeza urbana e ao manejo de resíduos sólidos, ou
para serem beneficiados por incentivos ou financiamentos de entidades
federais de crédito ou fomento para tal finalidade.

Entende-se, portanto, que a lei é de suma importância para o ambiente,


visando ao seu cuidado com resíduos que podem apresentar problemáticas
graves e preocupantes, tanto ao contexto ambiental quanto para a saúde
pública, devido à ausência de gerenciamento e manuseio irregular. Nessa
mesma linha a Lei de Diretrizes Orçamentárias aprovada em 2009 trouxe em
seu artigo 34 a possibilidade de transferência de recursos, a título de auxílios
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CAPÍTULO 11 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS A PARTIR DA IMPORTÂNCIA DA RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
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[...] voltados diretamente às atividades de coleta e processamento de


material reciclável, desde que constituídas sob a forma de associações
ou cooperativas integradas por pessoas em situação de risco social, na
forma prevista em regulamento do Poder Executivo, cabendo ao órgão
concedente aprovar as condições para a aplicação dos recursos (Ipea,
2012, p. 58).

Avanço importante que estimula a organização de entidades cooperadas


no setor da reciclagem, entretanto, apesar de a legislação favorecer o
desenvolvimento de entidades associativas como estas, é relevante também
o poder público propor políticas destinadas à educação ambiental, à coleta
seletiva, à reciclagem e transformação dos resíduos sólidos, que são cada
vez mais produzidos pela população brasileira, como igualmente instituir
mecanismos econômicos para subsidiar a geração de trabalho e renda e a
inclusão social dos catadores de resíduos sólidos e suas famílias, garantido os
direitos fundamentais constituídos.
Destaca-se que uma das mais relevantes discussões mundiais na
atualidade é o papel da reciclagem pelo seu caráter minimizador dos impactos
ao meio ambiente e aos direitos intergeracionais. Por conseguinte, os efeitos
positivos destas dinâmicas na atuação da gestão social, Economia Solidária,
aos agentes locais, é importante mensurar algumas dimensões de suma
relevância.
Em uma dessas dimensões, entre outras, aparece a educação e a
conscientização do meio ambiente, tendo em vista o reconhecimento de
que o problema ambiental é um dos aspectos da crise do modelo ocidental,
que terá de enfrentar um grande desafio. Este desafio envolve considerar a
possibilidade de assumir a obrigação de ter um comportamento sustentável,
bem como inclui como sujeitos do direito ao meio ambiente aqueles que ainda
não nasceram.
Outra dimensão refere-se aos aspectos legais norteadores, como a
Carta Magna de 1988 em seu artigo 225, Lei Federal nº 6.938/91, que tutela
a Política Nacional do Meio Ambiente à Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Uma robusta legislação, como a Lei nº 12.305/10 e a Lei dos Crimes Ambientais
nº 9.605/98, que deveria transcender ao caso concreto de forma efetiva e com
equidade.
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O papel do Estado está na aplicabilidade e fiscalização dos princípios


constitucionais de desenvolvimento sustentável bem como da tutela jurídica
ambiental. Isto porque a Constituição Federal de 1988 também conceitua
meio ambiente, em seu artigo 225, aduzindo que todos possuem o direito
ao meio ambiente, de forma com que ele seja ecologicamente equilibrado,
para o bem de uso comum a toda a população e se fazendo essencial a uma
correta qualidade de vida. Desta forma, impõe-se à população e ao poder
público a obrigação de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações (Brasil, 1988).
Nessa perspectiva, a criação e implementação de políticas públicas
eficientes e eficazes destinadas ao descarte adequado dos resíduos e a sua
reciclagem, nos âmbitos local e regional, permitem a geração de trabalho
e renda, a inclusão social e cidadania dos catadores e suas famílias. Isto
acontece quando há o incentivo à organização de cooperativas e de
entidades associativas, o que tende a contribuir para o desenvolvimento
econômico dos municípios e pode acabar com os “lixões”, locais que
contaminam o ambiente e acabam prejudicando a saúde da população. Sendo
assim, pode ser dito que a reciclagem é um modelo sustentável e paliativo
para minimizar o impacto humano no meio ambiente e, por conseguinte,
ao impacto socioeconômico a partir dos arranjos e dinâmicas da Economia
Solidária local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constatou-se pelo presente estudo, por meio do modelo de Economia
Solidária e Associativismo, que estas variáveis podem minimizar os impactos
socioeconômicos e socioambientais que afetam os municípios brasileiros,
conforme diagnósticos já demonstrados. Nesse sentido, conforme quantificado
no presente estudo, em análises de coleta e reciclagem observou-se que os
dados das regionalizações dos municípios no Brasil, no decorrer dos anos de
2014 a 2017, evoluíram de acordo com o passar dos anos, contudo
numa proporção pequena ainda. Verificou-se que, no Brasil, esse crescimento
corresponde a 23,1% e que apenas 1.320 municípios têm programas de
coleta seletiva, em que apenas 2% desse lixo é separado para reciclagem.
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CAPÍTULO 11 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS A PARTIR DA IMPORTÂNCIA DA RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Josiane Dilor Brugnera Ghidorsi – Taciana Angélica Moraes Ribas – Sérgio Luís Allebrandt – Airton Adelar Mueller

Nesse contexto, observou-se que no ano de 2015 as informações


colhidas de relatórios divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente
detectaram um aumento considerável de aproximadamente 19% dos
municípios que declararam possuir Planos de Gestão Integrada de Resíduos
Sólidos, com potencial para gerar receita sustentável para o município. Em
2020 o Ministério divulgou dados sobre a gestão de resíduos sólidos no Brasil,
todos referente ao ano de 2017, registrando que no respectivo relatório
observou-se que pouco mais da metade dos municípios brasileiros, aproxi-
madamente 54,8%, possuíam Plano Integrado de Resíduos.
Quanto à iniciativa de reciclagem, segundo dados do Cempre
(2018-2020), 44% desses municípios diagnosticados mantêm cooperativas
de catadores como agentes executores da coleta de lixo municipal. E ainda
que 67% dos casos são de empresas privadas contratadas para executar a
coleta, destacando-se que há um grande número, ainda não mensurado, de
catadores informais.
Nesse processo que versa sobre desenvolvimento do local ao regional,
a partir das articulações das políticas públicas na busca paliativa para além
do olhar econômico é relevante destacar a Política Nacional de Resíduos
Sólidos, lei nº 12.305/2010, nos artigos 1º e 2º dispõe a respeito do campo de
aplicação e seu objeto. Já o artigo 3º possui definições de extrema importância
para a adoção de políticas corretas para a preservação do meio ambiente,
com destaque para o controle e a destinação dos resíduos sólidos produzidos
diariamente no país. Em especial há uma análise a partir do âmbito local na
qual se constatou um baixo grau de eficiência dos municípios no controle do
acúmulo de descartes sem destinação adequada. Como resultado, há no Brasil
um significativo número de municípios que, de forma geral, banalizam esse
importante processo que implica prejuízos ao homem e ao meio ambiente.
Nesse sentido, reforça-se o entendimento, de que o debate do
localismo sobre o desenvolvimento, seja empreendedorismo, Economia
Solidária e popular, capital social, enfim, nesse contexto, que “o local pode
tudo”, dependendo de sua vontade de autoimpulso (Castells; Borja, 1997).
O crescimento da Economia Solidária é notório, porque, apesar das
dificuldades, os resultados que se apresentam são muito significativos, com
maior evidência nos benefícios para a população do campo e da cidade, na
geração de trabalho e renda, na promoção do desenvolvimento local e na
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preservação ambiental proporcionada por esta. Isso porque a Economia


Solidária é uma área com uma grande gama de oportunidades e desafios.
Em sua prática, sempre se sobressai a unidade de produção e a solidariedade,
sem deixar de lado os trabalhadores que dela precisam.
Quanto à questão do aumento no número de cooperativas, é
importante ressaltar que após a promulgação da PNRS em 2010, que
estabeleceu os objetivos, os instrumentos e as diretrizes de gestão integrada e
gerenciamento de resíduos sólidos no país, ocorreu um aumento significativo
dessas cooperativas. Esse aumento de cooperativas e da coleta seletiva nos
municípios deve-se muito à própria política que prevê o fim dos denominados
“lixões”. Esta política acabou incentivando investimentos nos municípios e, por
outro lado, estimulando os catadores a se organizarem como cooperados, por
meio de organizações coletivas ou pela Economia Solidária.
Pelo fato de a reciclagem ser uma atividade econômica e social
engajada em garantir a qualidade de vida e um novo tipo de consumo, o
sustentável, que além de contribuir para um novo modo de vida dos que desta
participam, contribui para a proteção do meio ambiente, com base na territo-
rialidade e no desenvolvimento local. Isto pode acontecer porque o desenvol-
vimento é resultado das relações humanas e de pessoas que, dependendo
das suas escolhas, desejos, vontades, decisões e desempenho, podem ou não
contribuir para o desenvolvimento local e até mesmo global.

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242
C apítulo 12

Economia de Francisco:
Um Novo Mundo é Possível

Cláudio da Rocha Santos


Membro da Ordem Franciscana Secular (OFS).
claudio_ofs@yahoo.com.br

Jefferson E. S. Machado
Doutor em História Comparada PPGHC/UFRJ.
jeffesm@yahoo.com.br
O
papa Francisco convocou um encontro mundial para tratar de
uma nova economia, que, simbolicamente, está sendo chamada
de “Economia de Francisco”. O evento na cidade de Assis é uma
referência à visão de São Francisco de Assis que, no século 13, deixou o lar
paterno e fortuna para viver uma experiência singular com Deus que o levou
a abraçar a minoridade e a ser irmão de todas as criaturas. A proposta é
repensar, debater e buscar novos rumos para a economia mundial diante de
um cenário de globalização de mercados e financeirização da economia, hoje
centrada, quase que exclusivamente, na maximização dos lucros de empresas
e na concentração de riquezas.
O papa Francisco quer “trazer gente jovem, além das diferenças de
crenças ou nacionalidades, para um acordo no sentido de repensar a economia
existente, e de humanizar a economia de amanhã: torná-la mais justa, mais
sustentável, assegurando uma nova preeminência para as populações
excluídas”, direcionando-a para a promoção do bem comum e com um novo
protagonismo de quem se encontra à margem. O papa também indica Assis
como o “lugar apropriado para inspirar uma nova economia, pois foi ali
que Francisco se despojou de toda mundanidade para escolher Deus como
estrela polar da sua vida, fazendo-se pobre com os pobres, irmão universal”
(Francisco, 2019, p. 1).
A decisão do pobrezinho de Assis inspirou o movimento penitencial
franciscano que revolucionou a Igreja no século 13, quando a supremacia
papal enfrentava fortes contestações diante do relaxamento dos costumes e
devassidão moral do clero, em meio a um contexto de franco crescimento das
cidades e expansão comercial na Europa. Segundo o papa, esse período foi a
gênese de uma visão econômica que permanece atual.
O encontro é duplamente especial porque celebra os cinco anos da
publicação da Carta Encíclica Laudato Si, sobre o cuidado com a Casa Comum,
inspirada na invocação de São Francisco, “Louvado Sejas, meu Senhor”, que
no Cântico das Criaturas recorda que a Terra, a nossa casa comum, “se pode
comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa
mãe, que nos acolhe nos seus braços” (Francisco, 2015a, p. 1).
A partir do Magistério Social da Igreja, Concílio Vaticano II e das
Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano, traçamos um panorama
do “pensamento econômico” do papa Francisco que, em parte, é uma

244
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

construção latino-americana, considerando que ele é primeiro papa eleito


fora do velho continente depois de dois mil anos de história da Igreja Católica.
Os recentes documentos promulgados pelo papa Francisco revelam, portanto,
profundas mudanças na agenda do papado e na posição da Igreja diante das
questões políticas, sociais e econômicas contemporâneas, tornando-a uma das
principais vozes no cenário global a se contrapor a um modelo de economia
que produz e reproduz desigualdades, gera morte e desvirtua o próprio
sentido da economia para a administração de tudo relacionado a uma “casa”,
mesmo que esta seja o nosso planeta.

ECONOMIA E VIDA NOS TEMPOS DE FRANCISCO


E CLARA DE ASSIS
A proposta de uma nova economia conclamada pelo papa Francisco
está relacionada ao contexto em que surge Francisco de Assis, filho de um
nobre mercador de tecidos, e de seus novos companheiros e seguidoras, como
Clara de Assis, jovem pertencente à nobreza. Os séculos 12 e 13 são marcados
por profundas transformações a partir do surgimento e consolidação de uma
nova mentalidade urbana com o fenômeno de crescimento e reestruturação
das cidades na Europa.
Essa nova mentalidade traz consigo uma nova visão econômica e uma
nova forma de espiritualidade encarnada pelo jovem Francisco de Assis, que
tem como expoente feminino de sua espiritualidade Clara de Assis, que deu
origem ao que hoje denominamos de movimento “francisclariano”. Os séculos
12 e 13 abrem-se ao franco desenvolvimento e incremento da atividade
comercial, favorecida pela monetarização da economia, da modernização das
técnicas agrícolas, do crescimento demográfico e de expansão das cidades
que, paulatinamente, provocam rupturas e afirmam novas subjetividades que
deram vazão, inclusive, a movimentos contestatórios da ortodoxia da Igreja.
A cidade medieval é fruto de uma revolução comercial que provocou
profundas transformações na estrutura feudal, essencialmente agrária
e sob influência do poder da Igreja, cuja supremacia estendia-se sobre a
esfera temporal. O modo de vida de Francisco e de Clara de Assis, baseado
literalmente no Evangelho, opõe-se à força do sistema econômico que se
impunha com força cada vez maior.
245
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

O Francisco de Roma, sumo pontífice, vai ao encontro do Francisco de


Assis, o poverello, e almeja uma sociedade em que todos possuam a mesma
dignidade e importância diante de Deus e dos homens, e onde ninguém seja
excluído ou categorizado em razão de sua riqueza ou posição social, na qual
o “ser” se sobreponha ao “ter”. Apesar do acúmulo de riquezas que marca
o pujante desenvolvimento das cidades medievais, Francisco de Assis e seus
seguidores tornam-se ícones de um modo de vida que simboliza um outro
mundo possível diante de uma Igreja opulenta e em ruínas e das contradições
de uma sociedade pré-capitalista que acaba de surgir.

O PRIMEIRO PONTÍFICE DAS AMÉRICAS


O cardeal arcebispo de Buenos Aires, Dom Jorge Mario Bergoglio, foi
eleito papa pelo conclave de cardeais eleitores convocado após a abdicação do
papa Bento 16, oficializada em 28 de fevereiro de 2013, tendo o papa emérito
justificado que “suas forças, devido à idade avançada, já não lhe permitiam
exercer adequadamente o pontificado” (La Repubblica, 2013).
O primeiro papa das Américas foi eleito aos 76 anos de idade, em 13
de março de 2013 e inaugurou o seu pontificado no dia 19 de março, data em
que a Igreja celebra São José, patrono das famílias, dos trabalhadores e da
Igreja Universal.1 A data é simbólica para um pontificado que, inegavelmente,
se colocará a serviço dos anseios dos pobres e dos trabalhadores diante da
globalização neoliberal.
O primeiro grande sinal do pontificado de Bergoglio foi a escolha de seu
nome pontifício. “Francisco” não é uma alusão a São Francisco Xavier, santo
da Companhia de Jesus e patrono das missões e da mesma congregação de
Bergoglio, mas a outro Francisco, o poverello2 de Assis, seguidor dos ideais
de pobreza e de não apropriação que ajudaram a manter erguida a Igreja no
século 13.
Apesar da surpresa em torno da eleição do primeiro papa fora
do continente europeu, Dom Bergoglio não é um ilustre desconhecido.
Ainda como cardeal e na condição de presidente da Conferência Episcopal

1
O termo “católico”, derivado da palavra grega: καθολικός (katholikos), significa “universal”.
2
Substantivo italiano que significa “pobrezinho”.

246
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

Argentina, uma das mais influentes da América Latina, contribuiu para o êxito
das conclusões da 5ª Conferência Episcopal Latino-Americana e do Caribe,
realizada na cidade de Aparecida do Norte (SP) em 2007.

O MAGISTÉRIO SOCIAL E O CONCÍLIO VATICANO II


Os pressupostos do que simbolicamente chamamos “Economia de
Francisco” não são uma novidade na Igreja, em especial na América Latina
e Caribe. Eles encontram alicerce no próprio Evangelho, nos princípios
da Doutrina Social da Igreja e em seu rico magistério, tendo como marco
contemporâneo a promulgação da Encíclica Rerum Novarum (em português,
“Das Coisas Novas”), em 15 de maio de 1891, pelo papa Leão XIII, considerada
como a “Carta Magna” do Magistério Social da Igreja e, de modo especial, o
processo de “aggiornamento3” experimentado pela Igreja, na segunda metade
do século 20, com o Concílio Vaticano II (1963-1966), convocado pelo papa
João XXIII, em 1962, e continuado por seu sucessor, o papa Paulo VI.
O Concílio manifesta categoricamente a preocupação da Igreja com
a realidade temporal e com os anseios e sofrimentos humanos, apontando
novos sinais para a ação evangelizadora da Igreja no mundo (Concílio Vaticano
II, 1965, p. 1). O “aggiornamento” iniciado no pontificado de João XXIII
representou uma guinada nos rumos da Igreja na segunda metade do século
20 e ainda hoje traz frutos à ação da Igreja, mesmo decorridos mais de 50
anos de sua realização.
A partir da década de 60, os frutos desse “aggiornamento” podem
ser percebidos no magistério do papa Paulo VI, precursor das viagens
apostólicas da era moderna, sendo o primeiro pontífice a visitar os cinco
continentes. Paulo VI produziu documentos notáveis de grande profundidade
e atualidade, como a Carta Encíclica Populorum Progressio (1967), uma das
mais importantes da Igreja Católica, que propõe a cooperação entre as nações
para promover o desenvolvimento integral dos povos.
Sua repercussão internacional suscitou ferozes críticas dos círculos
conservadores pela posição que a Igreja manifestou contra a ditadura de um
“liberalismo sem freios” pois, nas palavras do papa, “constituiu-se um sistema

3
Termo italiano que significa “renovação”, “atualização”, e foi a orientação-chave dada como
objetivo para o Concílio Vaticano II.

247
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

que considerava o lucro como motor essencial do progresso econômico, a


concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens
de produção como direito absoluto, sem limite nem obrigações sociais corres-
pondentes” (Paulo VI, 1967, p. 8).
Paulo VI denuncia o liberalismo desenfreado, gerador do “imperialismo
internacional do dinheiro” (expressão que será retomada por seus sucessores),
reprova os abusos do capitalismo, “fonte de tantos sofrimentos, injustiças e
lutas fratricidas com efeitos ainda duráveis”, e recorda, de modo solene, que
a economia está a serviço do homem (Paulo VI, 1967, p. 8). Afirma que “não
é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a
miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos” (Paulo VI,
1967, p. 10).
O papa também adverte para o perigo de uma “coletivização integral ou
de uma planificação arbitrária” que, privando os homens da liberdade, poriam
à margem o exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana, numa
crítica à economia do bloco socialista (Paulo VI, 1967, p. 10). Nesse mesmo
sentido, Paulo VI também inova ao promulgar, no fim de 1975, a Exortação
Apostólica Evangelii Nuntiandi (em português, “Anunciando o Evangelho”), que
conferiu um notável dinamismo à ação evangelizadora da Igreja pós-conciliar
diante dos “tempos novos da evangelização” e que pressupõe o desenvolvi-
mento e a libertação dos povos excluídos.

AS CONFERÊNCIAS GERAIS DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO


Medelín
Os ventos do Concílio Vaticano também ecoaram pela América Latina,
a Pátria Grande, a partir das Conferências Gerais do Episcopado Latino-
-Americano em Medellín, Colômbia (1968), Puebla, México (1979), Santo
Domingo (1992) e Aparecida (2007).
A Conferência de Medellín é importante porque marca a primeira visita
de um pontífice à América Latina. Ela se realiza, conforme apontam os bispos,
“sob o signo da transformação e do desenvolvimento” que ocorre com uma
“rapidez extraordinária” e que “atinge e afeta todos os níveis do homem,
desde o econômico até o religioso”.
248
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

Na sessão de abertura Paulo VI alertou para o perigo do crescimento


da secularização na vida da Igreja e insistiu na promoção da justiça e da paz
num contexto de avanço da dialética marxista e do acirramento da luta de
classes que dominava o cenário latino-americano. Apesar do contexto de forte
polarização política nas Américas, Medellín denuncia a miséria que marginaliza
grupos humanos inteiros e a injustiça que “clama aos céus” (Celam, 1968, p.
3), pois no plano econômico o episcopado critica o sistema empresarial latino-
-americano por sua “posição errada sobre o direito de propriedade dos meios
de produção e sobre a finalidade mesma da economia” (Celam, 1968, p. 5).
O documento acusa o sistema liberal capitalista e o sistema marxista
de atentarem contra a dignidade da pessoa humana. O primeiro por ter
como pressuposto a “primazia do capital” em razão do lucro, e o último
pela “concentração totalitária do poder do Estado” (Celam, 1968, p. 5). O
episcopado defende uma economia verdadeiramente humana que não se
identifica com os donos do capital que dominam indivíduos e grupos, e afirma
a primazia do trabalho sobre o capital, pilar da doutrina social da Igreja.
Medellín condena a dependência de um único centro de poder
econômico e aponta como fatores para o empobrecimento global e relativo
dos países latino-americanos a distorção crescente do comércio internacional,
a fuga de capitais econômicos e humanos, a evasão de impostos e envio de
lucros e dividendos para grandes centros do capitalismo, o endividamento
progressivo e os monopólios internacionais. A ditadura econômica e o
imperialismo internacional, que já haviam sido condenados por Pio XI na
Carta Encíclica Quadragesimo Anno e pelo próprio Paulo VI na Populorum
Progressio, que acusa o capitalismo liberal de nefasto e por representar a
“fonte de sofrimentos, injustiças e lutas fratricidas com efeitos ainda duráveis”
(Paulo VI, 1967, p. 9).
O episcopado julga necessário uma transformação global nas estruturas
latino-americanas a partir de uma reforma política que promova o bem
comum, assegure os direitos e liberdades inalienáveis dos cidadãos, além
de proporcionar e fortalecer a criação de mecanismos de participação e
representação populares. A paz somente será alcançada por meio da criação
de uma ordem nova que “comporte uma justiça mais perfeita entre os
homens” (Celam, 1968, p. 12), numa perspectiva de desenvolvimento integral
do ser humano e de superação das condições inumanas e o problema da
violência, um dos mais graves da América Latina, segundo Medellín.
249
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

É nessa atmosfera de grande efervescência e de “aggiornamento” da


Igreja que o jovem Jorge Mario Bergoglio, futuro papa, é ordenado presbítero
em 13 de dezembro de 1969, em Buenos Aires.

Puebla
Ainda no pontificado de Paulo VI, foi convocada a III Conferência Geral
do Episcopado Latino-Americano, em Puebla de los Angeles, México, de 28 de
janeiro a 13 de fevereiro de 1979, que teve como documento de referência a
Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, do papa Paulo VI. O documento é
dedicado ao tema da evangelização no mundo contemporâneo sem perder de
vista as realidades temporais nas quais a Igreja também se insere.
Paulo VI convocou oficialmente a III Conferência em 1977, para ser
realizada em dezembro de 1978, mas o seu falecimento, em 6 de agosto de
1978, e o breve pontificado de João Paulo I, de apenas 33 dias, concorreram
para o seu adiamento até o início do pontificado de João Paulo II.
Puebla teve como preocupação fundamental a evangelização na
América Latina com olhos voltados para o futuro e atenta à realidade do
homem latino-americano. Fez um chamado à fidelidade à Igreja, a uma
antropologia fundamentada no Evangelho e nos valores perenes da ética
cristã, ao serviço à unidade, à defesa da dignidade humana, ao cuidado da
família, das vocações sacerdotais e religiosas e da juventude.
O episcopado novamente denuncia a situação de “pobreza desumana
em que vivem milhões de latino-americanos” (Celam, 1979, p. 69), tida
como o “mais devastador e humilhante flagelo” do continente, que se
exprime, conforme o documento, em “mortalidade infantil, em falta de
moradia adequada, em problemas de saúde, salários de fome, desemprego
e subemprego, desnutrição, instabilidade no trabalho, migrações maciças,
forçadas e sem proteção” (Celam, 1979, p. 69).
Puebla reafirma a evangélica opção preferencial pelos mais pobres e
marginalizados. À luz da fé, a “situação de pecado social” (Celam, 1979, p.
43) é encarada pelo episcopado como um escândalo e contradição com o ser
cristão, uma vez que a distância entre ricos e pobres, contrária ao plano do
Criador, “converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas” (Celam,
1979, p. 69).
250
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

Mesmo antes do advento da globalização, Puebla já denunciava uma


economia fundada em formas envelhecidas de livre mercado que idolatram a
riqueza, legitimada por ideologias liberais que alargam a distância entre ricos
e pobres, antepondo “o capital ao trabalho, o econômico ao social” (Celam,
1979, p. 71) e reafirma a necessidade de se colocar a economia a serviço do
homem e do bem comum.
Puebla retoma expressamente a Populorum Progressio e faz uma
crítica direta ao capitalismo liberal desenfreado que “considera o lucro como
motor essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema
da economia, a propriedade privada dos meios de produção como direito
absoluto, sem limite nem obrigações correspondentes” (Celam, 1979, p. 172).
As novas formas de exploração capitalista são geradoras de desequilíbrios
sociopolíticos, em âmbitos nacional e internacional, são responsabilizadas pela
marginalização e degradação das condições de vida e de trabalho no campo
e nos centros urbanos, com a situação de desemprego, subemprego, baixos
salários, desregulamentação da legislação trabalhista e com a dificuldade de
organização dos trabalhadores para a defesa dos próprios direitos.

Santo Domingo
A história da Igreja na América Latina prossegue e já no início do
último decênio do século 20, é realizada em 1992 a IV Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano, em Santo Domingo, na República Dominicana.
Apesar do caráter histórico que marcou os 500 anos da chegada dos conquis-
tadores e da Igreja nas Américas, a atenção do episcopado latino-americano
estava voltada para os impactos causados aos povos e economias pelos ventos
fortes da globalização neoliberal que possibilitaram alargar as fronteiras
mundiais a partir da década de 90.
Santo Domingo reafirma as opções fundamentais de Medellín e Puebla,
com ênfase especial nos pobres, nos jovens, na defesa da vida e da família,
e denuncia as violações dos direitos humanos geradas pelas condições de
extrema pobreza e de estruturas econômicas injustas que originam grandes
desigualdades, agravadas pelo terrorismo, repressão e assassinatos. Há
especial menção às “violências contra os direitos das crianças, da mulher e
dos grupos mais pobres da sociedade” (Celam, 1992, p. 133).
251
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

Ao traçar os desafios pastorais da Igreja na América Latina, o episcopado


aponta o crescente empobrecimento a que estão submetidos milhões de
latino-americanos, que “chega a intoleráveis extremos de miséria” (Celam,
1992, p. 139), revelando-se “o mais devastador e humilhante flagelo que
vive a América Latina e Caribe” (Celam, 1992, p. 139), além de elencar como
sinais dos tempos naquele momento histórico (e que permanecem atuais) os
direitos humanos, ecologia, terra, empobrecimento e solidariedade, trabalho,
mobilidade humana, ordem democrática, nova ordem econômica, integração
latino-americana, família e vida. À luz dos valores evangélicos, o episcopado
pede a promoção da reconciliação e da justiça para a “superação de toda
injusta discriminação por razão de raças, nacionalismos, culturas, sexos e
credos, procurando eliminar todo ódio, ressentimento e espírito de vingança”
(Celam, 1992, p. 133).
Santo Domingo aponta para uma economia de solidariedade e
participação, por meio da qual os povos latino-americanos “tratam de
responder às angustiantes situações de pobreza”, agravadas pelo modelo
econômico neoliberal, que afeta principalmente os mais pobres” (Celam, 1992,
p. 141) e “instaurar uma verdadeira economia de comunhão e participação
de bens, tanto na ordem internacional como nacional” (p. 150). Mais uma vez
ocorre a denúncia dos mecanismos da economia de mercado que prejudicam
fundamentalmente os pobres e afetam o continente e a integração latino-
-americana (p. 150).
Meses antes de Santo Domingo, o padre Jorge Mario Bergoglio havia sido
nomeado bispo por João Paulo II, em maio de 1992, e sagrado no mês seguinte.
Nos anos seguintes a Santo Domingo, Dom Bergoglio segue galgando postos
na hierarquia da Igreja argentina. Em junho de 1997 foi nomeado arcebispo
coadjutor de Buenos Aires e com a morte de Dom Antônio Quarracino, em
1998, tornou-se arcebispo metropolitano de Buenos Aires. No Consistório
Ordinário Público de 2001, presidido pelo Papa João Paulo II, Bergoglio foi feito
cardeal, recebendo o título de cardeal-presbítero de São Roberto Belarmino.

Aparecida
O Documento de Aparecida contempla os múltiplos rostos de excluídos
do continente, cujas angústias e dores o futuro papa Francisco levará para
o seu pontificado em Roma (Celam, 2007, p. 39) e trata de diversos temas
252
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

de interesse da Igreja, como a família, a evangelização no século 21, a


dignidade humana, as relações entre a Igreja e a sociedade globalizada, a
injustiça estrutural, as agressões à biodiversidade, à ecologia, a devastação
da Amazônia e o degelo da Antártica, que agravam a catástrofe climática,
a questão de gênero, realidade dos povos indígenas e afrodescendentes e
outros.
Como o próprio documento afirma, “a V Conferência do Episcopado
Latino-Americano e Caribenho é novo passo no caminho da Igreja,
especialmente a partir do Concílio Ecumênico Vaticano II”. O sopro do Concílio
vence as barreiras do século 20 e permanece atual no magistério da Igreja,
apesar das inúmeras transformações ocorridas nas sociedades de todo o
mundo.
Diante das assimetrias de uma globalização marcada pela corrupção
e injustiça estrutural, o episcopado aponta para a necessidade de promover
uma globalização diferente, sob a prevalência da solidariedade, da justiça e
do respeito aos direitos humanos (Celam, 2007, p. 12). Aparecida denuncia
ainda a subordinação que as instituições financeiras e as empresas transna-
cionais impõem às economias locais com maior fragilidade, além de respon-
sabilizar as indústrias extrativistas internacionais e a agroindústria por,
muitas vezes, desrespeitarem os direitos econômicos, sociais, culturais
e ambientais das populações locais, subordinando a preservação do meio
ambiente ao desenvolvimento econômico, “com danos à biodiversidade com
o esgotamento das reservas de água e de outros recursos naturais, com a
contaminação do ar e a mudança climática” (Celam, 2007, p. 13).
O episcopado destaca como fenômenos positivo as diversas
experiências, por exemplo, o microcrédito, a economia popular solidária e
o comércio justo, diante da precariedade do trabalho formal e da realidade
do subemprego, desemprego e o trabalho informal. Aparecida defende
uma promoção eficaz da economia e de políticas públicas para a criação de
empregos e lei que favoreçam as organizações solidárias (Celam, 2007, p. 15).
A partir das discussões de Aparecida, o papa Francisco propõe uma “Igreja
em saída”, que sai de si mesma e vai ao encontro das pessoas, e ele próprio,
como pontífice, será uma das vozes que ecoa contra a situação desumana
causada pelo avanço neoliberal e a globalização sem solidariedade que afeta
negativamente os países periféricos e, consequentemente, os mais pobres.
253
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

O sistema econômico e o mundo globalizado vão além da exploração


e da opressão causadas pelas medidas econômicas neoliberais, passando
a categorizar socialmente as massas de excluídos como supérfluos e
descartáveis, vistas também como “sobrantes”, e para as quais não restam
nem mesmo as migalhas da mesa do banquete, pois estão completamente à
margem da pertença à sociedade na qual vivem.
Essa sucinta retrospectiva das conferências realizadas pelo episcopado
latino-americano é necessária para conhecermos os referenciais históricos
que representam chaves importantes para uma compreensão da Igreja
contemporânea e do pontificado do papa Francisco. Extraí-lo desse contexto
é apagar os referenciais históricos que envolvem sua rica experiência pastoral
no continente, junto aos pobres das periferias de Buenos Aires, uma das
principais metrópoles da América Latina.

ECONOMIA E TRABALHO EM JOÃO PAULO II


O pontificado de João Paulo II também criticou estruturas econômicas
injustas em documentos de seu magistério petrino. Na Encíclica Laborem
Exercens, promulgada em 14 de setembro de 1981, ele aponta que o erro
primitivo do capitalismo foi tratar os trabalhadores “da mesma maneira que
todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um instrumento e
não segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho – ou seja, como sujeito
e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade de todo o processo
de produção”.
João Paulo II reafirma a doutrina social da Igreja e sua “firme convicção
do primado da pessoa sobre as coisas e do trabalho do homem sobre o
capital, entendido como o conjunto dos meios de produção” (João Paulo II,
1981, p. 22) e refuta a antinomia entre trabalho e capital. O papa reconhece
a necessidade de construir a justiça na Terra, “não encobrindo com isso as
estruturas injustas, mas demandando a revisão e a transformação das mesmas
numa dimensão mais universal” (João Paulo II, 1981, p. 4).
João Paulo II estimula a presença solidária dos movimentos de
trabalhadores onde haja degradação social do homem-sujeito do trabalho, a
exploração dos trabalhadores e as zonas crescentes de miséria e mesmo de
fome e afirma que a Igreja está “vivamente empenhada nesta causa, porque a
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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

considera sua missão, seu serviço e como uma comprovação da sua fidelidade
a Cristo, para assim ser verdadeiramente a Igreja dos pobres” (João Paulo II,
1981, p. 14).
Ao longo de seu pontificado João Paulo II recordará o magistério social
de dois de seus predecessores: Leão XIII e Paulo VI. Em 30 de dezembro de
1987 promulga a Encíclica Sollicitudo Rei Socialis, em comemoração pelos 20
anos da Populorum Progressio; e em 15 de maio de 1991 lança a Encíclica
Centesimus Annus (em português, “Centésimo Ano”) no centenário da Rerum
Novarum. Ambas retomarão questões candentes do progresso e desenvolvi-
mento dos povos no século 20. A Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifi-
deles Laici (em português, “Cristãos Leigos”), promulgada em 30 de dezembro
de 1988, é outro documento singular de seu pontificado, que apresenta o
laicato como o novo sujeito eclesial, destacando sua importância na missão na
Igreja e no mundo tendo em vista o “contexto das importantes transformações
em curso no mundo da economia e do trabalho” (João Paulo II, 1988, p. 51).

A GLOBALIZAÇÃO EM BENTO XVI


O pontificado de João Paulo II durou 26 anos e findou com sua morte,
em 2 de abril de 2005. João Paulo II foi sucedido por Bento XVI, eleito em 19
de abril de 2005. O cardeal Joseph Ratzinger é um renomado teólogo alemão e
antes do papado exerceu durante 23 anos o cargo de prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé.
Quase três décadas após a Laborem Exercens, Bento XVI promulga,
em 29 de junho de 2009, a Carta Encíclica Caritas in Veritate, que retoma
o magistério social de Paulo VI ao afirmar que a questão do progresso
“permanece ainda um problema em aberto, que se tornou mais agudo e
premente com a crise econômico-financeira em curso” (Bento XVI, 2009,
p. 21), numa referência à crise de 2008. Em virtude do caráter pluridimen-
sional e polivalente da globalização, Bento XVI aponta para a necessidade
de compreender esse fenômeno, incluindo a dimensão teológica, de modo
a “viver e orientar a globalização da humanidade em termos de relaciona-
mento, comunhão e partilha” (Bento XVI, 2009, p. 29) para uma “economia
da gratuidade e da fraternidade” como uma “forma concreta e profunda de
democracia econômica” (p. 25).
255
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

Outra preocupação manifesta é com “a dimensão ético-cultural da


globalização e do desenvolvimento solidário dos povos” (Bento XVI, 2009, p.
49) condicionadas, segundo o pontífice, por “perspectivas ético-culturais de
delineamento individualista e utilitarista”, que são dificuldades e perigos para o
alcance de “metas de humanização solidária” (Bento XVI, 2009, p. 29) e para o
uso mais eficiente dos recursos, uma das maiores tarefas da economia (p. 35).
Bento XVI também ressalta a necessidade de buscar uma solução
adequada para os “graves problemas socioeconômicos que afligem a
humanidade” (p. 3) e afirma que a economia tem necessidade da ética
para o seu correto funcionamento, pois a competitividade da economia de
mercado “revela-se incompleta para satisfazer as exigências duma economia
plenamente humana”. Não se trata, segundo o papa, de uma ética qualquer,
mas de uma ética “amiga da pessoa”, favorável à “justiça e ao verdadeiro bem
do homem” (Bento XVI, 2009, p. 31).
Traçando hoje um paralelo com a crise global de proporções
catastróficas agravada pela Covid-19, a imprensa mundial noticiou que desde
o início da pandemia a fortuna de bilionários em todo o mundo quebrou
recordes. Segundo a Forbes, a riqueza total mantida por bilionários em todo o
mundo aumentou 25%, para mais de U$ 10 trilhões, superando o PIB brasileiro
que, em 2019, foi de US$ 1,80 trilhão.
Esse abissal contraste deixa claro que a política econômica moderna
tem como função proteger o patrimônio e os investimentos dos ricos, mesmo
que seja preciso instaurar a barbárie e sacrificar a vida dos pobres.

OS ROSTOS DE UM NOVO PONTIFICADO


O que Francisco traz de novo, como bispo de Roma, é colocar no centro
de seu pontificado as feições dessa massa sobrante que traz “os traços do
Cristo sofredor, o Senhor que nos questiona e interpela” (Celam, 1979, p.
46) diante das injustiças que ainda imperam, e denunciar de modo profético
e contumaz o sistema capitalista e ao que seu pontificado denominou de
“globalização da indiferença”, fenômeno que exclui aqueles que não podem
pagar pelos benefícios da globalização e são descartados.
Os sinais dessa “novidade” não tardaram a se confirmar, estando
mais precisamente claros durante a visita simbólica que Francisco fez à Ilha
de Lampedusa, em 8 de julho de 2013, ocasião em que se solidarizou com
256
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

milhares de pessoas que arriscam a vida todos os anos em alto-mar para


chegar à Europa, e rezou por aqueles que sucumbiram à travessia. Durante
sua primeira visita pastoral fora de Roma desde a nomeação como pontífice,
o papa encontrou um grupo de 50 migrantes recém-chegados, principalmente
jovens somalis e euritreus.
Na presença de milhares de moradores, turistas e migrantes, o papa
rezou uma missa campal na qual o altar improvisado foi um pequeno barco de
pesca, o púlpito foi a roda de um navio e a cruz feita de madeira retirada de uma
das embarcações. Francisco disse ter ido à ilha após saber da morte de pelo
menos dez pessoas em um naufrágio ocorrido em 17 de junho daquele ano.
O papa tem defendido os direitos dos refugiados desde o primeiro ano de
seu pontificado. Por ocasião do Dia Mundial do Refugiado, conclamou os povos
e os governos a darem mais atenção às famílias nessa condição e pediu mais
compreensão e hospitalidade com aqueles que deixam suas casas e arriscam
sua vida em busca de esperança e de um lugar melhor para suas famílias.
A visita do papa aos refugiados tem um significado humanitário e
simbólico que será repetido com outros gestos emblemáticos de solidariedade
não apenas com imigrantes, mas com crianças com deficiência, doentes,
encarcerados, idosos, indígenas, mulheres, pessoas em situação de rua e as
vítimas de violência sexual, em um movimento que vai dando novas feições ao
seu pontificado e à Igreja romana. A exemplo do poverello de Assis, o Francisco
pontífice estenderá seu cuidado a todas as criaturas, e de modo especial à
nossa Casa Comum.
O primeiro ano do pontificado de Francisco encerra-se com o
lançamento da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Evangelii Gaudium (Alegria
do Evangelho), a primeira escrita pelo atual pontífice e publicada no
encerramento do Ano da Fé, em 24 de novembro de 2013.
O documento é fruto da XIII Assembleia Geral Ordinária sobre “A
nova evangelização para a transmissão da fé cristã”, que reuniu 170 bispos
do mundo inteiro em Roma, em outubro de 2012. A Evangelii Gaudium tem
como principal tema a alegria cristã no anúncio do Evangelho no mundo atual,
retomando as mesmas inquietações do pontificado de Paulo VI. Francisco
propõe algumas diretrizes para uma nova etapa evangelizadora na qual
estão inclusas a pendente reforma missionária da Igreja, a inclusão social dos
pobres, o bem comum, a paz e o diálogo social.
257
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

A exortação traz novas críticas ao sistema capitalista e ao consumismo


desenfreado, e confirma que os pobres são os destinatários privilegiados do
Evangelho. Francisco denuncia a idolatria do dinheiro, a tirania invisível do
livre mercado, a especulação financeira, a corrupção generalizada e a evasão
fiscal como responsáveis pela desigualdade social e violência no mundo, temas
que permanecem atuais no magistério social da Igreja desde o último século.
O papa Francisco aponta como desafio do mundo contemporâneo não
tolerar uma economia de morte, de exclusão e de desigualdade social, de
modo a assegurar o valor da vida humana diante de uma cultura que descarta,
exclui e marginaliza grandes massas da população (Francisco, 2013c, p. 21).
O pontífice denuncia a globalização da indiferença que se desenvolveu com
o crescimento econômico favorecido pelo livre-mercado que não foi capaz
de produzir, por si mesmo, “maior equidade e inclusão social no mundo”
(Francisco, 2013c, p. 21). A cultura do bem-estar, segundo Francisco, nos
anestesiou e nos tornou egoístas e incapazes de nos compadecer ao ouvir
os clamores alheios e de cuidar dos sofredores, “como se tudo fosse uma
responsabilidade de outrem, que não nos incumbe” (p. 21).
Outro desafio a ser superado é a nova idolatria do dinheiro, cujo
domínio é aceito pacificamente por nós e nossas sociedades. Francisco faz
uma analogia entre o cintilante bezerro de ouro do livro do Êxodo (cf. Ex 32),
fabricado e adorado, e a economia de mercado para criticar o fetichismo
em torno do dinheiro e de uma “economia realmente sem fisionomia nem
finalidades humanas” (Francisco, 2013b, p. 2). O bezerro de ouro representa a
infidelidade e a rejeição do povo a um projeto de libertação que é substituído
por um deus manipulável, estático, aprisionado dentro dos esquemas
humanos.
O papa denuncia ainda, as ideologias que defendem a autonomia
absoluta dos mercados e a especulação financeira que provoca desequilí-
brios, ao passo que os rendimentos de uma “minoria crescem de maneira
exponencial, os da maioria vão se exaurindo” (Francisco, 2013b, p. 2).
Uma economia de mercado que nega o direito de regulação pelos
Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum e instaura “uma
nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras”, diz Francisco, que igualmente alerta
para a expansão da dívida e os respectivos juros associados a um enraizamento
258
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

da corrupção e uma evasão fiscal egoísta em dimensões globais. Outro desafio


é regressar a uma ética que permita criar um equilíbrio e uma ordem social
mais humana, fora das categorias de mercado, pois o dinheiro deve servir e
não governar o mundo (Francisco, 2013b, p. 2).
Francisco exorta a Igreja a uma “solidariedade desinteressada e a um
regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano”
(Francisco, 2013c, p. 23), e, por fim, aponta como desafio eliminar a exclusão
e a desigualdade na sociedade e entre os povos, geradores de violência
porque o sistema social e econômico é radicalmente injusto e contém um
potencial de dissolução e de morte para a sociedade, afastando-nos de um
futuro melhor. Segundo destaca, uma economia que promove a exacerbação
do consumo aliada à desigualdade social é duplamente daninha para o tecido
social, pois gera uma violência que jamais poderá ser resolvida pelas corridas
armamentistas (Francisco, 2013c, p. 23).
Desde o início de seu pontificado Francisco tem afirmado que a
desigualdade é a raiz dos males sociais e reconhece que os problemas do
mundo não serão resolvidos enquanto não forem radicalmente solucionados
os problemas dos pobres e não houver uma renúncia à autonomia absoluta
dos mercados e da especulação financeira e esforços para atacar as causas
estruturais da desigualdade social (Francisco, 2013c, p. 67). A dignidade da
pessoa humana e o bem comum, observa o papa, são questões que deveriam
estruturar toda a política econômica para um verdadeiro desenvolvimento
integral (Francisco, 2013c, p. 67); ele igualmente nos alerta que não podemos
mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado.
Na Evangelii Gaudium estão os fundamentos da economia de Francisco,
pois segundo indica o próprio termo, a economia “deveria ser a arte de
alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo
inteiro” (Francisco, 2013c, p. 68), pois qualquer medida econômica de certa
projeção, tomada em qualquer parte do planeta, repercute no mundo inteiro.
O modo como o sistema econômico mundial opera e acumula riquezas num
extremo e no outro despreza a vida, produz desigualdades sem um ideal de
justiça econômica que sirva e sustente a vida.
O impulso para a acumulação injusta que percorre a História da
humanidade e a exploração dos povos foi considerada uma tendência
natural da organização das sociedades humanas. As disfunções da economia,
259
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
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contudo, a exploração por meio do trabalho e a acumulação usurária dos


bens produzidos são rejeitadas como comportamentos que insultam a Deus
e aos pobres.
Economia e vida não deveriam ser realidades excludentes entre si,
cabendo à dimensão econômica a justa medida entre capital e trabalho,
público e privado, produção e justa distribuição dos bens. Aí está posta a
necessidade de compreendermos nossa realidade para edificarmos uma nova
forma de economia, orientada por princípios éticos, que crie as condições de
segurança e oportunidades de desenvolvimento da vida de todas as pessoas,
em especial os mais pobres e vulneráveis.
Conforme já mencionado, o sistema econômico neoliberal e capitalista
tem levado as pessoas à valorização do ter em detrimento do ser, pois cria
novas formas de escravidão que agravam a pobreza e a miséria, modificam
os padrões de produção e consumo que aceleram a degradação ambiental
e deterioram as condições de vida da população. Apesar de reconhecer que
“a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política”, a
Evangelii Gaudium declara que a Igreja “não pode nem deve ficar à margem
na luta pela justiça” e que todos os cristãos, incluindo o clero, “são chamados
a preocupar-se com a construção dum mundo melhor” por meio de uma
ação transformadora, segundo o pensamento social da igreja (Francisco,
2013c, p. 61).
É inegável, por exemplo, a extraordinária participação do papa Francisco
no acordo histórico de restabelecimento total das relações diplomáticas entre
Cuba e Estados Unidos, em 14 de dezembro de 2014, assim como a reabertura
da embaixada norte-americana em Havana e de Cuba em Washington, após
meio século de desencontro e enfrentamento.

ROMA AO ENCONTRO DE ASSIS


Outro grande salto do pontificado de Francisco relacionado ao seu
magistério social e digamos, ao seu “pensamento econômico”, foi a Carta
Encíclica Laudato Si (em português, “Louvado Sejas”), com o subtítulo “sobre
o cuidado com a Casa Comum”, promulgada em 24 de maio de 2015. O título
da Encíclica foi inspirado no Cântico das Criaturas, canção religiosa composta
no século 13 por Francisco de Assis, pouco antes de sua morte, em 1226.
260
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

Em 1999, antes do encerramento do último milênio, a revista


americana Times fez uma pesquisa entre seus leitores para saber qual seria a
personalidade mais marcante e mais importante do milênio que se findava,
e São Francisco ficou em primeiro lugar. A escolha é mesmo surpreendente,
sobretudo pelo fato de essa publicação não ter um perfil religioso e a maioria
dos concorrentes não figurarem entre personalidades religiosas.
Antes, porém, São Francisco já havia sido proclamado pelo papa João
Paulo II como patrono da ecologia. Em 27 de outubro de 1986 João Paulo o
declarou “homem da paz e da fraternidade”, quando promoveu um encontro
inter-religioso em Assis, no qual vários líderes religiosos se uniram para orar
pela paz. O Espírito de Assis, como ficou conhecido o encontro, contou com a
presença de todos os principais representantes das igrejas cristãs, bem como
de 60 representantes de outras religiões, incluindo o Dalai Lama.4
Voltando à Laudato Si, ela foi a primeira encíclica escrita integralmente
pelo papa Francisco, após a publicação de Lumen Fidei (em português, “Luz
da fé”), promulgada em 29 de junho de 2013, e que é, em grande parte,
um trabalho de Bento XVI. Na Laudato Si Francisco se dirigiu não só aos
membros da Igreja, mas “a cada pessoa que habita neste planeta”, apelando
à comunidade política internacional para que adote atitudes urgentes de
proteção ambiental e gestão dos recursos naturais, como forma de buscar a
continuidade desses recursos.
Na encíclica, o papa Francisco condena as tendências tecnocráticas de
domínio sobre a economia e a política e critica o consumismo exacerbado
e seletivo, o desenvolvimento irresponsável, a exploração desmedida dos
recursos naturais e a cultura do descarte e do egoísmo. Faz também um apelo
à mudança e à unificação globais para combater a degradação ambiental e as
alterações climáticas que “são um problema global com implicações graves:
ambientais, sociais, econômicas, políticas e de distribuição de riqueza”
(Francisco, 2015a, p. 9) que representam “um dos principais desafios que a
humanidade enfrenta nos nossos dias”, lançando um alerta para “a destruição
sem precedentes dos ecossistemas, que terá graves consequências para
todos nós” (Francisco, 2015a, p. 8) se não forem empreendidos esforços de
mitigação imediata.

4
Chefe de Estado e líder espiritual do Tibete. É o título de uma linhagem de líderes religiosos
da escola Gelug do budismo tibetano.

261
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

A questão ecológica tornou-se um dilema de proporções globais,


envolvendo o futuro de nossas sociedades e todas as pesquisas sobre o
aquecimento global estão associadas aos desequilíbrios ecológicos atuais,
não sendo possível ocultar o quão tem sido determinante a influência do
sistema econômico vigente no desencadear dessa crise. A economia capitalista
e neoliberal, ao pressupor que os recursos naturais de nosso planeta são
infinitos, torna-se insensível à degradação ambiental e, dessa forma, tudo,
principalmente a terra, deve se submeter às metas do capital e do lucro.
A exploração predatória dos ecossistemas e dos biomas, a exemplo do
agronegócio, expande-se de modo irresponsável com o desmatamento e as
queimadas, poluindo a atmosfera e as águas, tendo em vista somente o lucro.
A ganância e o desprezo pelo meio ambiente ameaçam a própria produção
agrícola, as condições ambientais de vida e o desenvolvimento humano,
pondo em risco a vida das gerações futuras.
Francisco alerta os cristãos para o valor real do problema ambiental,
exortando-os a uma conversão ecológica, que significa uma mudança de
mentalidade e de atitudes para contemplar a dimensão ecológica diante
da atual crise causada pelo egoísmo e pela ganância humana, responsáveis
pela concentração de riquezas e pelos desequilíbrios em todo o globo. O
seguimento de Jesus, na visão de Francisco, implica uma conversão integral
que torne os cristãos sensíveis aos clamores da natureza e dos pobres, pois a
indiferença a eles é uma incoerência com a vida cristã.
A Laudato Si é uma resposta às expectativas das comunidades
religiosas, ambientais e científicas internacionais, bem como das lideranças
políticas, econômicas e dos meios de comunicação, acerca da gravidade da
crise ecológica em virtude das alterações climáticas. Francisco espera que sua
encíclica influencie as políticas econômica e energética e que estimule um
movimento global por mudanças efetivas para deter a degradação ambiental
antes que se torne irreversível.
Seguindo o programa da Laudato Si, Francisco reafirma a sua crítica
ao paradigma tecnocrático que tende a exercer o seu domínio também
sobre a política e a economia e afirma que ela “assume todo o desenvol-
vimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais
consequências negativas para o ser humano”, em que a “finança sufoca a
economia real”. Segundo o papa, não “se aprendeu a lição da crise financeira
262
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

mundial e, muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento


ambiental” (Francisco, 2015a, p. 35). Francisco vaticina que o mercado é
incapaz, por si mesmo, de garantir “o desenvolvimento humano integral nem
a inclusão social” (2015a, p. 35).
Logo após a promulgação da Laudato Si, o papa Francisco reafirma
os pilares de seu magistério social nas visitas apostólicas feitas ao Equador,
Bolívia e Paraguai, de 5 a 12 de julho de 2015. Na Bolívia, participou do II
Encontro Mundial dos Movimentos Populares, realizado de 7 a 9 de julho
de 2015, em Santa Cruz de la Sierra, que reuniu cerca de 1.500 militantes
de 40 países, entre eles o Brasil, com uma delegação que contou com 200
representações de diversos movimentos sociais. No discurso de encerramento,
Francisco propôs três grandes tarefas que requerem a decisiva contribuição do
conjunto dos movimentos populares: a primeira é pôr a economia a serviço
dos povos, a segunda é unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça,
e a terceira, talvez a mais importante, que devemos assumir hoje, conforme
assinalou, é defender a Mãe Terra.
A primeira tarefa que o papa aponta é a construção de uma economia
justa e verdadeiramente comunitária, de inspiração cristã, na qual “o ser
humano, em harmonia com a natureza, estrutura todo o sistema de produção
e distribuição de tal modo que as capacidades e necessidades de cada um
encontrem um apoio adequado ao ser social” (Francisco, 2015b, p. 6). Uma
economia que garanta aos povos “dignidade, bem-estar e civilização em seus
múltiplos aspectos” (2015b, p. 6). Francisco mais uma vez denuncia o sistema
capitalista, que, segundo afirma, é responsável por “acelerar irresponsavel-
mente os ritmos de produção, além de implementar métodos na indústria e
na agricultura que sacrificam a Mãe Terra na ara da produtividade” ( p. 7) e
por continuar “a negar a milhares de milhões de irmãos os mais elementares
direitos econômicos, sociais e culturais” (Francisco, 2015b, p. 7) e, de modo
profético condena esse sistema que atenta contra o projeto de Jesus e a Boa
Nova que ele trouxe.
O discurso do papa é enfático ao condenar o capitalismo e sua economia
de morte, exclusão que destrói seres humanos e a própria obra da criação:
Os seres humanos e a natureza não devem estar ao serviço do dinheiro.
Digamos não a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o
dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia
exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra. A economia não deveria

263
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração


da casa comum. Isto implica cuidar zelosamente da casa e distribuir
adequadamente os bens entre todos (Francisco, 2015b, p. 6).

Para Francisco, o rosto de Cristo é o rosto da humanidade que sofre com


as injustiças sociais e o sofrimento que ainda campeiam por toda a América
Latina. Ele conhece como ninguém o rosto dos pobres, porque conviveu e
cuidou deles nas periferias de Buenos Aires: “o rosto do camponês ameaçado,
do trabalhador excluído, do indígena oprimido, da família sem-teto, do
imigrante perseguido, do jovem desempregado, da criança explorada, da
mãe que perdeu o seu filho num tiroteio porque o bairro foi tomado pelo
narcotráfico, do pai que perdeu a sua filha porque foi sujeita à escravidão”
(Francisco, 2015b, p. 4).
Francisco também menciona os catadores de material reciclável, os
vendedores ambulantes, o trabalhador irregular, os pescadores, os favelados,
os estudantes, os jovens e os militantes e missionários que atuam nessas
realidades promovendo alternativas criativas para que os excluídos tenham
teto, terra e trabalho. Isso sem contar os muitos outros rostos que Francisco
irá descobrir ao longo de seu profético pontificado.
A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano, observa
Francisco, “não é mera filantropia, mas ‘um dever moral’, e para os cristãos
é um mandamento”, pois “trata-se de devolver aos pobres e às pessoas
o que lhes pertence” (Francisco, 2015b, p. 7). E salienta que a destinação
universal dos bens “não é um adorno retórico da doutrina social da Igreja,
mas um testemunho efetivo que visa a garantir os mais elementares direitos
econômicos, sociais e culturais negados a milhares de irmãos” (Francisco,
2015b, p. 7).
Francisco defende uma justiça econômica global que traga verdadeira
inclusão social, em que não haja nenhuma família sem-teto, nenhum
camponês sem-terra e nenhum trabalhador sem direitos, mas que todos
também tenham “acesso à educação, à saúde, à inovação, às manifestações
artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e à recreação” (Francisco,
2015b, p. 5). Ele aborda as causas estruturais do drama social e ambiental
contemporâneo que estão no âmago de uma economia idólatra e destaca a
importância das cooperativas e organizações comunitárias que conheceu de
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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

perto, surgidas da exclusão, para adotar formas solidárias que dignificam os


trabalhadores, que, descartados pelo mercado global, eram explorados como
escravos.
Animado pela esperança, o papa indica saídas inovadoras a partir das
iniciativas e experiências das cooperativas de catadores de material reciclável,
dos pescadores e dos produtores de alimentos. Os governos que assumem
como programa colocar a economia a serviço das pessoas, destaca Francisco,
“[...] devem promover o fortalecimento, melhoria, coordenação e expansão da
economia popular e produção comunitária. Isto implica melhorar os processos
de trabalho, provê-los de adequadas infraestruturas e garantir plenos direitos
aos trabalhadores deste setor” (Francisco, 2015b, p. 7).
A segunda tarefa que Francisco propõe é unir os povos no caminho da
paz e da justiça com pleno exercício da soberania, respeito pelos direitos do
homem e dos povos sem novas formas de colonialismo com suas múltiplas
feições que afetam seriamente as possibilidades de paz e de justiça. Segundo
Francisco, nenhum poder efetivamente constituído tem o direito de privar
os países pobres do pleno exercício da sua soberania; ele conclama os
movimentos populares para que cuidem e façam crescer a unidade da “Pátria
Grande” contra toda a tentativa de divisão.
O pontífice define o sistema capitalista como um novo colonialismo
que assume variadas fisionomias para atentar contra o desenvolvimento
humano equitativo e coarctar a soberania. “Às vezes, é o poder anônimo do
ídolo dinheiro: corporações, credores, alguns tratados denominados de livre
comércio e a imposição de medidas de austeridade que sempre apertam o
cinto dos trabalhadores e dos pobres” (Francisco, 2015b, p. 8).
Ele retoma o Documento de Aparecida (2007) no qual o episcopado
latino-americano denuncia as múltiplas feições do sistema capitalista ao
afirmar que “as instituições financeiras e as empresas transnacionais se
fortalecem a ponto de subordinar as economias locais, sobretudo debilitando
os Estados, que parecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos
de desenvolvimento a serviço de suas populações” (Celam, 2007, p. 37).
Outros nobres disfarces do novo colonialismo, que Francisco denuncia,
são as lutas anticorrupção e de combate ao narcotráfico e ao terrorismo
internacional, graves males de nossos tempos, que acabam por impor medidas
distantes do foco desses problemas que não são solucionados e que, por
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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
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vezes, agravam a situação dos países. Essas são reflexões importantes que
podem ser trazidas para o cenário político brasileiro, caracterizado por franca
judicialização da atividade política, enfraquecimento das instituições públicas
e um forte esgarçamento do tecido social com níveis aviltantes de miséria,
fome, desemprego e retrocessos sociais por todo o país.
Abrimos aqui um parêntese para ilustrar esse pensamento, recordando
a posição corajosa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) contra
a PEC 241, hoje Emenda Constitucional nº 95, que limitou, a partir de 2017,
o teto de gastos públicos com despesas primárias como assistência social,
educação, saúde, habitação, infraestrutura, entre outras políticas setoriais,
com cifras corrigidas pela inflação, por até 20 anos. Em nota, os bispos
denunciaram a PEC 241 de injusta e seletiva, pois “elege para pagar a conta
do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres, ou seja, aqueles
que mais precisam do Estado para que seus direitos constitucionais sejam
garantidos. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando
não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não
propõe auditar a dívida pública” (CNBB, 2016, p. 1).
Francisco também critica a concentração monopolista dos meios
de comunicação, que, segundo ele, são mecanismos de uma engrenagem
gigante a serviço do colonialismo ideológico que “impõe padrões alienantes
de consumo e certa uniformidade cultural” que adota o novo colonialismo
(Francisco, 2015b, p. 8). O papa assevera que nenhum dos graves problemas
da humanidade pode ser solucionado sem uma responsabilidade comum dos
países, pois qualquer medida adotada em qualquer parte do planeta logo
repercute no todo em termos econômicos, ecológicos, sociais e culturais, num
contexto singular em que até mesmo o crime e a violência se globalizaram.
Os que promovem a paz são chamados de bem-aventurados e Francisco
conclama os movimentos populares a negar as velhas e novas formas de
colonialismo e a tirania do ídolo dinheiro para dizer sim ao encontro de povos
e culturas. As críticas do papa não se limitaram ao colonialismo, mas também
às ofensas e crimes da própria Igreja contra os povos originários durante
séculos de conquista e de colonização luso-espanhola da América, pelos quais,
a exemplo de João Paulo II, ele humildemente pediu perdão e fez justiça ao
lembrar dos sacerdotes, bispos, religiosos e leigos que “fizeram oposição à
lógica da espada com a força da cruz” (Francisco, 2015b, p. 9).
266
CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
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Por último, Francisco propõe que assumamos a defesa da Mãe Terra,


que está sendo “saqueada, devastada, vexada impunemente” (Francisco,
2015b, p. 10) e afirma que a covardia em defendê-la é um grave pecado. Em
nome de um imperativo ético, o papa exorta os movimentos populares para
que clamem, se mobilizem e exijam, de modo pacífico – mas tenaz – a adoção
urgente de medidas adequadas para salvar a criação. Movido por uma fé
revolucionária, marcada pela esperança na justiça e na solidariedade entre os
povos, o papa coloca-se ao lado dos movimentos sociais e afirma que o futuro
da humanidade não depende única e exclusivamente daqueles que governam
e dominam o mundo, mas da capacidade de organização e de convicção no
processo de mudança:
O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes
dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente
nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também
nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo
de mudança (Francisco, 2015b, p. 10.)

Preocupado com o futuro da criação e visando a contribuir para a


superação da crise ecológica que a economia está vivendo, o papa Francisco
instituiu em 10 de agosto de 2015 o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado com
da Criação, que passa a ser celebrado no dia 1º de setembro, assim como
já ocorre na Igreja Ortodoxa. Francisco propõe aos cristãos uma conversão
ecológica como parte essencial de uma exigência virtuosa:
A crise ecológica nos chama, portanto, a uma profunda conversão
espiritual: os cristãos são chamados a uma conversão ecológica, que
comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia,
todas as consequências do encontro com Jesus. De fato, “viver a
vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um
aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma
existência virtuosa” (Francisco, 2015c, p. 8).

Francisco destaca que o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da


Criação, a ser celebrado todos os anos,
[...] oferecerá a cada fiel e às comunidades a preciosa oportunidade
para renovar a adesão pessoal à própria vocação de guardião da
criação, elevando a Deus o agradecimento pela obra maravilhosa que
Ele confiou ao nosso cuidado, invocando a sua ajuda para a proteção
da criação e a sua misericórdia pelos pecados cometidos contra o

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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

mundo em que vivemos A celebração deste Dia, na mesma data, com


a Igreja Ortodoxa, será uma ocasião profícua para testemunhar a nossa
crescente comunhão com os irmãos ortodoxos (Francisco, 2015c, p. 2).

O papa recorda que “vivemos em um tempo em que todos os cristãos


enfrentam idênticos e importantes desafios, diante dos quais, para ser mais
críveis e eficazes, devemos dar respostas comuns”. Por isto, é seu desejo
que tal dia possa envolver, de qualquer modo, também outras Igrejas e
comunidades eclesiais e ser celebrado em sintonia com as iniciativas que o
Conselho Mundial de Igrejas promove sobre este tema (Francisco, 2015c, p. 2).
Outras chaves para a compreensão do pontificado de Francisco estão
na misericórdia, justiça e solidariedade. Francisco nos exorta ao verdadeiro
seguimento de Cristo, que se expressa na nossa atenção aos excluídos e
marginalizados e na corresponsabilidade de libertação dos pecados estruturais
e sociais que geram preconceitos, discriminação e exclusão. O seu testemunho
pessoal abre a possibilidade de a Igreja trilhar novos caminhos, de se
conscientizar da necessidade de uma mudança de mentalidade, de renovar-se
para ser uma igreja em saída, a serviço do Reino.
No final de 2015, o Papa Francisco novamente surpreende a Igreja
ao promulgar a Bula Misericordiae Vultus (em português “O Rosto da
Misericórdia”), proclamando o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, de 8 de
dezembro de 2015 a 20 de novembro de 2016, que teve como tema “Miseri-
cordiosos como o Pai” (cf. Lc 6,36). Na bula, o papa novamente alerta sobre
as situações de precariedade e os sofrimentos do mundo atual:
Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz,
porque seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença
dos povos ricos. Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a
cuidar destas feridas, a aliviá-las com o óleo da consolação, a enfaixá-las
com a Misericórdia e tratá-las com a solidariedade e a atenção devidas.
Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, na habituação que
anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo
que destrói. Abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo,
as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e
sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos
apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor
da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se
torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira da indiferença que
frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo
(Francisco, 2015d, p. 8).

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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

Não raras vezes procuramos justificativas para a nossa indiferença e


omissão. Criamos culpados, transferimos responsabilidades e chegamos a
justificar que não temos dinheiro e, por isso, não temos condições de ajudar
ou até mesmo nos sentimos no direito de explorar o outro para acumular
dinheiro ou satisfazer os nossos interesses. E mais uma vez Francisco nos
alerta para os valores essenciais à vida:
Não caiais na terrível cilada de pensar que a vida depende do dinheiro e
que, à vista dele, tudo o mais se torna desprovido de valor e dignidade.
Não passa de uma ilusão. Não levamos o dinheiro conosco para o além.
O dinheiro não nos dá a verdadeira felicidade. A violência usada para
acumular dinheiro que transuda sangue não nos torna poderosos nem
imortais. Para todos, mais cedo ou mais tarde, vem o juízo de Deus, do
qual ninguém pode escapar (Francisco, 2015d, p. 12).

Ao passo que deseja que a palavra do perdão chegue a todos, Francisco


quer que o convite para experimentar a misericórdia não deixe ninguém
indiferente e chegue, de modo particular, aos homens e mulheres que
pertencem a um grupo criminoso, seja qual for, e extensivo aos fautores ou
cúmplices da corrupção para que acolham o convite à conversão e à justiça,
sem, no entanto, deixar de condenar de forma veemente o pecado da
corrupção enraizada no sistema capitalista:
Essa praga putrefata da sociedade é um pecado grave que brada
aos céus, porque mina as próprias bases da vida pessoal e social. A
corrupção impede de olhar para o futuro com esperança, porque,
com a sua prepotência e avidez, destrói os projetos dos fracos e
esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nos gestos diários
para se estender depois aos escândalos públicos. A corrupção é uma
contumácia no pecado, que pretende substituir Deus com a ilusão do
dinheiro como forma de poder. É uma obra das trevas, alimentada
pela suspeita e a vida. [...] Para a erradicar da vida pessoal e social são
necessárias prudência, vigilância, lealdade, transparência, juntamente
com a coragem da denúncia. Se não se combate abertamente, mais
cedo ou mais tarde torna-nos cúmplices e destrói-nos a vida (Francisco,
2015d, p. 12).

No término do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, em 20 de


novembro de 2016, Francisco promulga a Carta Apostólica Misericórdia
et Misera (em português, “Misericórdia e Miséria”), na qual institui o Dia
Mundial dos Pobres como gesto concreto desse Ano Santo extraordinário.
Intuiu Francisco que a celebração da data no domingo que antecede o
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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
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encerramento do ano litúrgico católico é a mais digna preparação “para bem


viver a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, que se
identificou com os pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de
misericórdia (cf. Mt 25, 31-46)” (Francisco, 2016, p. 14) e também para
[...] ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza
está no âmago do Evangelho e a tomar consciência de que não poderá
haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa
casa. Além disso, este dia constituirá uma forma genuína de nova
evangelização (Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua
perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia
(Francisco, 2016, p. 14).

Na visão de Francisco, os pobres não são apenas destinatários de


nossa compaixão, mas hoje e sempre eles “são destinatários privilegiados do
Evangelho”, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino
que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo
indissolúvel entre a fé cristã e os pobres (Francisco, 2013c, p. 19).
O pontificado de Francisco optou pelos pobres e o seu clamor profético
ecoa em sua cruzada em defesa da vida, da dignidade da pessoa humana,
dos direitos humanos e da democracia, o que o torna, reconhecidamente,
uma das lideranças mundiais de maior projeção internacional. É incansável
em promover o diálogo permanente, a articulação das forças sociais e a
colaboração entre igrejas e sociedades para findar a perversidade de um
modelo econômico que visa, em primeiro lugar, o lucro, sacrifica pessoas,
cria desigualdades inaceitáveis, pois o mercado acaba sendo um ídolo que
governa os povos e nações. Francisco quer ajudar a construir novas relações
e unir diferentes instâncias da sociedade em prol do bem comum e na defesa
da vida, como valor mais importante do que os interesses do mercado.
O desejo de Francisco é inspirar uma economia que seja dirigida para
a satisfação das necessidades humanas e para a construção do bem comum,
favorecendo o desenvolvimento integral de grupos e das pessoas individual-
mente, implicando uma ordem justa, referenciada pelo respeito à dignidade
da pessoa e o respeito aos direitos humanos. O papa destaca que o mundo
não enfrenta uma escassez de recursos ou de dinheiro e que a deformidade
decorre de uma injusta economia global que produz estruturas de pecado
como a extrema pobreza e a riqueza opulenta. Conclama, portanto, a toda
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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
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comunidade internacional para ações sociais e políticas coletivas que levem


à efetivação de um modelo econômico de solidariedade e justiça para todas
as pessoas.
Nessa perspectiva, o encontro que, simbolicamente, é chamado de “A
Economia de Francisco”, propõe um pacto, no espírito de Assis, para criar
uma nova consciência crítica para enfrentar os temas do desenvolvimento,
da justiça, da economia e da vida humana, para que a economia de hoje se
torne mais justa, fraterna e sustentável, estimulando um novo protagonismo
a partir de quem está excluído.
O pontificado de Francisco quer valorizar cada pessoa humana; superar
o consumismo que valoriza o ter em detrimento do ser; criar laços de convívio
mais próximos entre as pessoas para o conhecimento mútuo e estímulo à
cooperação, integrando plenamente cada pessoa; mostrar a relação entre
fé e vida, a partir da prática da justiça, dimensão inerente ao anúncio do
Evangelho; e reconhecer as responsabilidades individuais diante dos graves
problemas econômicos atuais e gerar mudanças.
No dia 3 de outubro de 2020, o papa Francisco promulgou a Carta
Encíclica Fratelli Tutti (em português, “Todos Irmãos”), sobre a fraternidade e
a amizade social. Ao longo dos seus oito capítulos, o papa trata das distorções
de valores e questões indispensáveis a uma convivência saudável entre todas
as pessoas de boa vontade.
Francisco mais uma vez reforça a necessidade de superação do egoísmo
e do desinteresse pelo bem comum e alerta para os riscos da prevalência de
uma lógica de mercado baseada no lucro e na cultura do descarte, secundada
pelo desemprego, o racismo, a pobreza e a desigualdade de direitos e da
chaga da corrupção, além da corrupção e suas aberrações como a escravidão,
o tráfico de pessoas, as mulheres subjugadas e depois forçadas a abortar, o
tráfico de órgãos, entre outras problemas globais que requerem ações globais
urgentes.
Segundo o papa, “é necessário fazer crescer não só uma espiritua-
lidade da fraternidade, mas também e ao mesmo tempo uma organização
mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos
abandonados que sofrem e morrem nos países pobres” (Francisco, 2020,
p. 43). Ele novamente denuncia que a especulação financeira continua a
fazer estragos por ter a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental
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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

e considera indispensável que haja “uma política econômica ativa, visando


a promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a
criatividade empresarial, para ser possível aumentar os postos de trabalho
ao invés de os reduzir” (Francisco, 2020, p. 44).
Francisco aborda a fragilidade do atual modelo econômico e o
paradigma do livre mercado, afirmando que “a fragilidade dos sistemas
mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a
liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que
não esteja sujeita aos ditames das finanças, devemos voltar a pôr a dignidade
humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas
sociais alternativas de que precisamos” (Francisco, 2020, p. 44). Assim, a
“Economia de Francisco” tem seu olhar voltado para a economia popular
solidária que reúne desempregados, trabalhadores precários e informais, que
estão excluídos de “determinadas visões econômicas fechadas e monocro-
máticas” (Francisco, 2020, p. 44), que não dão lugar aos movimentos sociais.
Reforçando o princípio da subsidiariedade, outro pilar da Doutrina
Social da Igreja, Francisco destaca a importância da participação social e
enfatiza o papel desempenhado pelos movimentos sociais na criação de
formas de economia popular e de produção comunitária.
É necessário pensar a participação social, política e econômica segundo
modalidades tais que incluam os movimentos populares e animem as
estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com aquela
torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na
construção do destino comum e, por sua vez, se incentive a que “estes
movimentos, estas experiências de solidariedade que crescem de
baixo, do subsolo do planeta, confluam, sejam mais coordenados, se
encontrem. Mas fazê-lo sem trair o seu estilo caraterístico, porque são
semeadores de mudanças, promotores de um processo para o qual
convergem milhões de pequenas e grandes ações interligadas de modo
criativo, como numa poesia.” Nesse sentido, são “poetas sociais” que à
sua maneira trabalham, propõem, promovem e libertam. Com eles será
possível um desenvolvimento humano integral, que implica superar a
ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres,
mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida
num projeto que reúna os povos (Francisco, 2020, p. 44).

A partir de um amplo movimento de diálogo e fraternidade, a


“Economia de Francisco” pretende construir pontes entre todos os povos
para solucionar problemas estruturais da economia que geram desigualdade
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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
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e exclusão, e compreender que as decisões que regem a economia são frutos


de decisões políticas que podem ser questionadas e transformadas para que
o mundo tenha, de fato, uma economia socialmente justa, economicamente
viável, ambientalmente sustentável e eticamente responsável. Em síntese,
trata-se de construir uma economia à medida do homem e para o homem.
Embora o “pensamento econômico” do pontificado de Francisco não
seja algo singular na Igreja, a originalidade está no fato de trazer para o
centro do seu pontificado agendas contemporâneas que atualizam o ensino
da Doutrina Social da Igreja e dão um protagonismo singular à Igreja no
século 20 para além da questão religiosa e dos muros de Roma. Francisco tem
colaborado de forma significativa para intensificar o debate mundial na esfera
econômica ao passo que aprofunda sua postura de diálogo e de preocupação
com os grandes problemas que envolvem a humanidade.
Francisco ressignifica o papado perante um cenário mundial de
desigualdade, pobreza e consumo predatório dos recursos naturais e,
portanto, contrário à dignidade da pessoa humana e que desrespeita as
demais formas de vida do planeta.
Nesse sentido, a “Economia de Francisco” é oportuna e reúne grandes
expectativas de contribuição para o debate global, e é significativa para o
contexto em que vivemos, tanto no Brasil como na América Latina e Caribe, em
que os índices alarmantes de pobreza convivem com uma concentração cada
vez maior das riquezas. Torna-se fundamental dar ressonância a esse debate
no âmbito da universidade, da política, da sociedade civil e da economia, com
novas perspectivas de pensamento e propostas de transformação.
Ao pretender influenciar os rumos do pensamento econômico, a
denominada “Economia de Francisco” procura fortalecer as perspectivas que
se orientam ao desenvolvimento humano, de modo mais igualitário e atento a
todas as formas de vida no planeta. O Francisco de Assis e o de Roma inspiram
o mundo e todas as pessoas de boa vontade a se comprometerem cada vez
mais a viver e trabalhar pela justiça, pela paz e pela integridade da criação, na
promoção de uma globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce
entre os pobres.

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CAPÍTULO 12 – ECONOMIA DE FRANCISCO: UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL
Cláudio da Rocha Santos – Jefferson E. S. Machado

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