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Cientistas alertam: não

deveríamos existir

Desafio teórico é explicar por que toda a matéria não


desapareceu

Por Marcelo Ferroni

Por incrível que pareça, o fato de existirmos deixa os físicos confusos. Para
eles, também não deveriam existir o ar, as árvores, as formigas, os outros
animais, a rua, os vizinhos, as contas a pagar, a cidade, o planeta. Até mesmo
a Galileu que você está lendo nesse exato momento não deveria existir.
Parece brincadeira? Não é. Afinal, se a natureza seguisse à risca as leis da
física, toda a matéria — os tijolos formadores de estrelas, planetas, formigas,
árvores e seres humanos — deveria ter sido aniquilada instantes depois do
início do Universo. Ou seja, pelas regras do jogo, a matéria teria sido
cancelada pela partícula oposta: a antimatéria. Segundo essas regras, logo
após o Big Bang, a explosão que teria dado início ao Universo, partículas e
antipartículas começaram a se formar na mesma proporção, para em seguida
se encontrar e se aniquilar mutuamente, voltando a ser energia.

Mas, por algum motivo, não foi o que aconteceu; as antipartículas sumiram. As
outras, suas opostas, estão por toda parte. Os físicos agora quebram a cabeça
para explicar por quê.

Antimatéria lembra imediatamente ficção científica. Basta citar o seriado


Jornada nas Estrelas, em que ela é o combustível da nave Enterprise. Sua
escolha para o seriado não ocorreu por acaso: a antimatéria, se pudesse ser
estocada em naves, seria o combustível ideal para viagens espaciais porque,
ao se encontrar com qualquer quantidade de matéria, resultaria na destruição
das duas espécies de partículas, transformando tudo em energia. No mundo
real, no entanto, ela não tem nada de fantástico. Por sinal, é conhecida dos
físicos há décadas. Em 1928, sua existência foi prevista pelo britânico Paul
Dirac, o que lhe valeu o Nobel de 1933. Desde então, ela tem sido tratada
como coisa corriqueira, sendo constantemente criada nos enormes
aceleradores de partículas.

Em alguns aspectos, as antipartículas são idênticas às partículas. Um elétron,


por exemplo, tem a mesma massa do seu oposto (o pósitron); um próton, a
mesma massa que um antipróton. A principal diferença está na carga. O
pósitron, como o próprio nome diz, tem carga contrária ao elétron, ou seja,
positiva. O antipróton tem carga negativa. Fácil, não é? Mas aí é que está o
problema: apesar de terem a existência comprovada pelos físicos, até agora
nenhuma "antiestrela" ou "antigaláxia" foi detectada, e provavelmente nunca
será. Qualquer antipartícula perdida no Universo seria rapidamente aniquilada
ao se encontrar com uma partícula. (Pelo mesmo motivo, é inviável armazenar
o combustível de antimatéria em uma nave formada por matéria.)

Se não puderam ser encontradas no Cosmo, as antipartículas tiveram de ser


criadas em laboratório para que as idéias de Dirac fossem comprovadas. E foi
o que aconteceu. Em 1932, o físico norte-americano Carl Anderson detectou
pela primeira vez um pósitron, formado com a energia liberada em um
daqueles equipamentos monstruosos que os cientistas chamam de
aceleradores de partículas. Desde então, outras antipartículas foram
detectadas e, em 1995, pesquisadores europeus construíram um átomo de
anti-hidrogênio em laboratório.

Descobriu-se também que antipartículas podiam ser formadas nos chamados


raios cósmicos, compostos de partículas altamente energéticas que atingem
constantemente a Terra e, ao se chocar com a atmosfera, liberam pares de
partículas e antipartículas. Isso ocorre em uma fração de segundo; nada de
antimatéria poderia ser observada "flutuando" pelo Universo. Bem que os
cientistas tentaram. "Já se procurou por sinais de antimatéria, mas nada foi
encontrado", atesta George Matsas, do Instituto de Física Teórica da Unesp
(Universidade Estadual Paulista).

Deslize da natureza

Admitindo-se que as antipartículas sempre foram raras no Cosmo, não há o


que reclamar. O problema é que o mesmo modelo da física que prevê a
existência da antimatéria diz também que, no início do Universo, elas foram
criadas em mesmo número que as partículas. Ou seja, havia uma simetria
entre elas. Na mesma quantidade, o natural era que essas partículas e
antipartículas se aniquilassem mutuamente, e o Universo se tornasse um
espaço vazio, repleto de energia. Por sorte, não foi o que aconteceu. "É como
se fosse um deslize da natureza", diz Matsas. "Ou somos nós que ainda não
compreendemos um comportamento fundamental do Universo."

Essa "quebra de simetria", como é chamada pelos físicos, ocorreu antes que o
Universo completasse um segundo de existência. Logo depois do Big Bang, o
Cosmo não era formado por matéria, mas por energia em forma de radiação
(veja ilustração na página anterior). Conforme ele se expandia e esfriava, a
energia formava pares de partículas e antipartículas, que se aniquilavam,
transformando-se novamente em energia. No entanto, a matéria de alguma
forma foi poupada desse destino. E a antimatéria sumiu. "Não sabemos como
explicar essa quebra de simetria no início do Universo", conta Miriam
Gandelman, professora do Instituto de Física da UFRJ (Universidade Federal
do Rio de Janeiro). Seja o que for que tenha acontecido, a natureza favoreceu
a matéria em detrimento da antimatéria. Os pesquisadores tentam de todas as
maneiras compreender o desequilíbrio. Uma resposta promissora foi proposta
em 1966 pelo cientista soviético Andrei Sakharov (1921-1989). Agora, os
físicos buscam a confirmação de seus resultados em experimentos com os
aceleradores de partículas.

O físico Andrei Sakharov, cientista e ativista com uma vida conturbada (leia
texto abaixo), imaginou que o Universo deveria obedecer a três pré-condições
para que houvesse a tal quebra de simetria. Essas condições admitem a
existência de um desvio nas leis da natureza ocorrido por causa das
circunstâncias extremas do Big Bang.

Os dois primeiros requisitos são condições que poderiam ter ocorrido no


estágio inicial do Universo. Apesar de não terem sido observadas em
experimento, foram aceitas como hipóteses pela comunidade científica. "São
cenários que possibilitam falar em quebra de simetria", comenta o físico
Rogério Rosenfeld, também da Unesp.

A terceira condição está relacionada à própria natureza das partículas e


antipartículas. Ela propõe que há uma mínima assimetria entre elas, ou seja,
uma sutil diferença em seu comportamento. Essa variação faria com que as
partículas fossem "privilegiadas" na formação do Universo. Para Sakharov,
essa diferença poderia ser medida, e é isso que os físicos tentaram fazer.

Descoberta das diferenças

Em 1964, dois anos antes de Sakharov propor sua teoria, os físicos norte-
americanos James Cronin e Val Fitch chegaram a mostrar que havia uma
violação de simetria em um tipo peculiar de matéria: o chamado káon, ou
méson-K, e seu par. O méson-K é composto por um quark down e um
antiquark strange, partículas subatômicas que compõem a matéria (veja
quadro na página anterior). Logo após ser criado nos aceleradores, ele decai,
liberando energia e outras partículas. Seu tempo de desintegração, no entanto,
é diferente do tempo do antiméson-K (formado por um antiquark down e um
quark strange). Por essa descoberta, Cronin e Fitch levaram o Nobel de 1980.

O decaimento dos mésons-K mostra uma clara diferença de comportamento


entre partículas e antipartículas. Além disso, os resultados se encaixam no
modelo vigente do mundo subatômico. Mas essa diferença, como foi mostrado
na época, era ainda muito pequena e não podia explicar de onde veio toda a
matéria do Cosmo. Era preciso estudar partículas mais pesadas, que
mostrassem uma variação muito maior entre matéria e antimatéria. E, se
preciso, mudar o modelo.

O novo candidato foi o méson-B. Formado por um quark down e um antiquark


bottom, é muito mais pesado que o méson-K. Sua quebra de simetria,
portanto, explicaria a existência de uma quantidade maior de matéria. No início
deste ano, aceleradores nos EUA e no Japão publicaram simultaneamente
suas primeiras medições do decaimento dos mésons-B (veja quadro abaixo).
Os resultados, no entanto, não são de entusiasmar. Eles não parecem explicar
a enorme quantidade de matéria no Universo. "As medidas ainda não são
precisas o suficiente para confirmar ou derrubar o modelo vigente", diz David
Hitlin, um dos coordenadores do grupo americano, da Universidade Stanford.
"Eles só dão um gostinho do que está para vir."

Segundo Gandelman, a própria teoria vigente tem problemas. "As contas não
batem", admite. "É só ampliando o modelo que poderemos compreender a
quebra de simetria." Agora, dizem, é esperar por novos resultados.

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