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INTRODUÇÃO
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Doutor em Ciências Humanas/ Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ; Mestre em Cognição e Linguagem pelo Programa de
Pós Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual Norte Fluminense Darcy Ribeiro -
UENF; Professor do Programa de Pós Graduação em Segurança Pública da Universidade Vila Velha -
UVV; Professor de Educação de Jovens e Adultos no Sistema Prisional, Secretaria Estadual de Educação
do estado do Espírito Santo - SEDU.
A educação em espaços prisionais é uma realidade recente no Brasil. Segundo
Julião (2016), as primeiras experiências não ultrapassam algumas décadas. A iniciativa
pioneira do estado do Rio de Janeiro em 1967 foi seguida pelo estado de São Paulo nas
décadas subsequentes com a oferta de aulas de alfabetização e voltadas para a elevação
da escolaridade em algumas unidades prisionais. Em geral essas iniciativas eram
voluntariosas e isoladas, não se disseminando pelos demais estados da federação. Apenas
após o Conselho Nacional de Educação e o Conselho Nacional de Política Penitenciária
aprovarem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação no Sistema Prisional
entre 2009 e 2010 é que os estados passaram a reconhecer a educação de jovens e adultos
privados de liberdade como uma política pública de educação (p.28). Tanto a aprovação
das diretrizes quanto a modificação legal que tornou possível a remição de pena pelo
estudo em 2011 resultaram da expansão de um campo de estudo e do ativismo que,
segundo Torres (2019,p.22), se desenvolveram significativamente nos últimos vinte anos
a partir da constituição de uma “questão carcerária” que teve como pano de fundo o
“Massacre do Carandiru”, em 1992; o aumento vertiginoso da população carcerária; o
surgimento de facções e organizações dentro das unidades prisionais (em especial o
Primeiro Comando da Capital, PCC); e as rebeliões de presos cujo ápice se deu em 2006
com o maior episódio dessa natureza na história do país até então justamente em São
Paulo, estado berço do PCC (p.23).
Minha experiência com educação em prisões se iniciou em fevereiro de 2019
quando comecei a atuar como professor no sistema prisional do estado do Espírito Santo.
É interessante observar o que relata Rafael Godoi (2016, p.2), que “a presença de
pesquisadores em instituições punitivas é altamente regulada no Brasil, tanto por questões
de segurança, como para não atrapalhar as rotinas diárias, ou mesmo pelo interesse
deliberado em manter suas estruturas e dinâmicas inacessíveis à sociedade mais ampla”;
Cressey (1958) já alertava que além da função de proteger a sociedade da suposta ameaça
representada pelos que se encontram internos, a unidade prisional também tem a função
de proteger os internos dos olhares curiosos (p.43), argumento evocado com certa
frequência para manter as rotinas punitivas além dos olhos da sociedade civil. Apesar das
restrições, eu estava ali, todos os dias, vivendo a rotina da unidade, sentindo o cheiro de
gás, vivenciando os dramas diários. Era uma oportunidade ímpar. Tratei de manter rotina
de anotações acerca das experiências que se desenrolavam enquanto sistematizava as
possibilidades de reflexão. Como não tinha nenhum tipo de autorização para a realização
de pesquisas, limitei a perspectiva àquilo que eu poderia tomar como objeto sem realizar
nenhum tipo de entrevista ou coletar dados de atores. Tratava-se de dar forma a uma
experiência etnográfica enquanto professor e observador das rotinas da prisão.
As aulas nas unidades foram suspensas em meados do mês de março de 2020
juntamente com toda a rede de ensino do estado em decorrência da pandemia de Covid
19. Foram implementadas atividades on line para os estudantes da rede estadual de ensino.
Privados de acesso à redes de computador e aparelhos eletrônicos, os estudantes das
unidades prisionais ficaram absolutamente sem aulas e os professores - todos contratados
na modalidade de designação temporária - se viram diante do risco de seus contratos
serem encerrados. Por iniciativa da Secretaria Estadual de Educação e da Secretaria
Estadual de Justiça do Espírito Santo, deu-se início a uma formação junto a esses
profissionais. Os encontros se deram por meio do aplicativo google meet. O currículo da
formação e o recrutamento dos professores para atuarem como formadores foi
coordenado pelo NEV - Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Violência,
Segurança Pública e Direitos Humanos - vinculado ao Departamento de Serviço Social
da Universidade Federal do Espírito Santo. Vivenciei dupla função nesse processo: ora
como professor em formação, ora como formador a convite do NEV, tendo em vista
minha formação acadêmica com ênfase na área de Sociologia do Crime e da Violência.
O texto indicado para leitura do primeiro encontro da formação foi “Pedagogia da
Autonomia” de Paulo Freire. Já de início se colocava o dilema e as manifestações não
tardaram. Como falar de autonomia em um espaço no qual ao sujeito do processo
educacional não é facultado nem um mínimo espaço de autonomia? Esse foi um dos ricos
debates suscitados nos encontros e sobre o qual sustento a argumentação do presente
texto.
Elenco dois termos - “procedimento” e “autonomia” - para pensar as contradições
que perpassam essa experiência de ensinar em um espaço de privação de liberdade no
qual duas instituições - a penal e a educacional - se confrontam na ânsia da realização de
suas perspectivas institucionais. Tratarei ambos os termos ao longo do texto como
categorias nativas, sem adentrar em significados acadêmicos ou técnicos, buscando situá-
los no campo da experiência observada e vivida. Assumo como hipótese inicial que a
contradição entre os objetivos da instituição prisional e da instituição educacional não
pode ser superada por ser constitutiva das próprias instituições. A tensão entre essas duas
instituições será uma constante inevitável do processo de educação em espaços de
privação de liberdade, ensejando uma constante disputa de significados e espaços.
Para dar conta dessa proposta, descrevo inicialmente as duas categorias que
elenquei para nortear a discussão, passando em seguida à discussão das contradições
específicas da educação em espaços de privação de liberdade, concluindo com
perspectivas que possam orientar políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade
dos processos educacionais em prisões, tendo em vista estratégias de empoderamento da
instituição educacional na busca de um equilíbrio no âmbito da instituição penal.
1 DESENVOLVIMENTO
1.2 Procedimento
Meu dia a dia nas unidades prisionais é marcado por muitas idas e vindas. De uma
galeria para a outra, de uma unidade para a outra, é bem comum que precise aguardar o
“procedimento” terminar para que os portões sejam abertos e eu posso transitar por
determinados espaços. Os internos se despem e se vestem rapidamente, em movimentos
padronizados, repetitivos, quase automáticos. Na unidade feminina é mais frequente que
eu tenha de aguardar, afinal, como homem, não posso ver as mulheres no “procedimento”.
Já na masculina, são as professoras que esperam com mais frequência. Mas esse não é o
único “procedimento”. Quando um interno fala durante a fila - “olha o “procedimento”!;
e mesmo na fala diária dos estudantes internos - “tem que fazer bem o ‘procedimento’,
para não ter problemas”. Como um outsider na unidade prisional, não vejo sentido na
maior parte dos “procedimentos” e nem como eles podem efetivamente evitar qualquer
perigo. Procuro o sentido nas práticas que observo, nem sempre declaradas nos manuais.
Com essa perspectiva, percebo o “procedimento” como um treinamento constante de
submissão e disciplinamento corporal e mental. Interessante que certa vez uma estudante
comentou que quando em saída temporária, fora da prisão, percebia movimentando-se de
acordo com o “procedimento”, cabeça baixa, mãos para trás. O uso constante do
“procedimento”, a meu ver, não visa apenas evitar situações de risco efetivo. Submeter
os internos ao “procedimento” com a frequência parece aos meus olhos muito mais como
um esforço constante e metódico de domesticação, de subtração de qualquer ato de
vontade do que gestão de riscos.
1.3 Autonomia
É importante ressaltar que a unidade prisional é uma Instituição Total - IT2, como
diz Goffman (1974), que se caracteriza pela ruptura das barreiras que em geral separam
três esferas da vida: o repouso, o trabalho e o lazer (p.17). No caso das unidades prisionais,
não há dúvida que tratam-se de IT´s nas quais o objetivo é “proteger as pessoas contra
perigos intencionais” e nessas, por conseguinte, o bem-estar das pessoas isoladas não se
trata de uma preocupação relevante.
Seja como um “perigo intencional” ou como um “perigo não intencional incapaz
de cuidar de si”, a percepção no âmbito da IT é de que o indivíduo que a ela chega está
habitado por um “Eu” defeituoso, falho em seu processo de socialização e, ou, quando
não, intrinsicamente defeituoso e quase impossível (senão impossível) de recuperar.
Portanto, faz-se necessário que esse “Eu” seja quebrado e consertado, substituído. Logo
de início, no caso das prisões, há todo um aparato de despersonalização, conforme relata
Goffman. Roupas, aparência, rotinas, horários, alimentação, isolamento da vida externa,
testes de obediência, são algumas das estratégias de mortificação do “Eu” que estimulam
a ruptura com o que se era antes. É preciso ressaltar que os indivíduos passam ao universo
da prisão involuntariamente, sendo, portanto, objeto de uma desconstrução forçada.
O “procedimento” é a ferramenta frequentemente utilizada para anular qualquer
espontaneidade física dos internos que denote qualquer forma de individualidade. A
“autonomia” é sempre um risco porque o preso é “bandido”, pensa e age como tal
(MISSE, 1999). Suponho uma dedução lógica por parte dos operadores da unidade
prisional, que se o preso é “bandido” e se “bandidos” fazem tais e tais coisas que podem
gerar riscos, então é preciso impedir que ele seja quem ele é a qualquer custo. Sob essa
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Como essa expressão será usada com certa frequência no decorrer do trabalho, faz-se a opção de usar a
sigla IT.
perspectiva, a disciplina, o treino corporal (em uma análise bem foucaultiana) será uma
ferramenta muito útil para reduzir o risco.
A justificativa óbvia para a frequência dos “procedimentos” é a segurança.
Cheguei a compartilhar a minha curiosidade com certos agentes acerca da lógica de
alguns. Por exemplo, não me é permitido passar pelas galerias da unidade feminina
durante o “procedimento”, o que me leva eventualmente a esperas por vezes bem longas.
Mas nas unidades masculinas quem não pode passar são as professoras. Um dia perguntei
para os agentes como ficaria se o professor fosse homossexual. Em outra ocasião,
perguntei como “manter a cabeça baixa” - elemento importante do “procedimento” -
contribuiria para evitar qualquer risco à segurança. Em nenhuma das duas ocasiões obtive
resposta clara e objetiva, embora no primeiro caso a questão tenha provocado um
saudável debate com as agentes de plantão na unidade feminina.
Os professores também precisam respeitar alguns “procedimentos”, em geral,
“para sua própria segurança”. Usar jalecos, não tocar nos internos, não sair de seu espaço
delimitado dentro da sala de aula; não transitar entre as cadeiras; não se movimentar
bruscamente. No plano pedagógico, em especial textos, filmes e músicas precisam ser
aprovados pela unidade antes de serem trabalhados em sala de aula. A minha lista
particular de obras barradas é razoavelmente extensa. Em nenhum dos casos obtive
qualquer possibilidade de argumentação. Para ficar em alguns exemplos, na unidade
feminina a obra “Quando Nietzsche Chorou” foi barrada por conteúdo sensual. Na
masculina um projeto sobre suicídio usando textos de Durkheim em setembro de 2019 foi
recusado pelo risco de incentivar o suicídio; um projeto interdisciplinar com o professor
de Física utilizando o filme “Vingadores Ultimato” foi barrado por incitar a violência; a
discussão da música “Hey Joe” na versão em português do grupo “Rappa” também foi
barrada por incitar a violência. No pano de fundo dessas restrições, a segurança, tendo
em vista o risco de que a partir dessas obras os internos desenvolvam pensamentos
“perigosos” que reverberem em “ações” perigosas.
É importante ressaltar que o “procedimento” varia de unidade para unidade, sendo
provável que nem tudo que pude vivenciar nas unidades nas quais trabalho se repitam da
mesma forma em outras unidades do estado. Por exemplo, embora exista um número
muito maior de internos condenados por crimes violentos na unidade masculina, o rigor
do “procedimento” de entrada do professor é maior na unidade feminina. Já na unidade
masculina, as portas das salas permanecem trancadas durante as aulas, o que garante
inclusive maior liberdade ao professor já que as câmeras não gravam áudios. Na unidade
feminina as portas ficam abertas e não poucas vezes me senti constrangido com a presença
da agente de plantão na porta da sala sem nenhum motivo de segurança justificável,
havendo casos, inclusive, nos quais a estudante interna foi questionada em razão de frases
ditas dentro da sala. Em geral as decisões que restringem a ação dos professores não são
registradas de nenhuma forma, não havendo formas de responsabilização da unidade
quanto à decisão tomada, assim como recurso ou discussão. Por outro lado, qualquer
violação do “procedimento” por parte do professor precisa ser documentada, em razão
das questões de segurança.
Se o “procedimento” é o instrumento por excelência da instituição prisional para
a anulação constante do “eu” e a “autonomia” o instrumento da instituição educacional
para consolidar a individualidade, não é necessário muito esforço para perceber que a
tensão será uma constante. E como o professor, arauto da “autonomia”, atua dentro do
espaço físico onde predomina o “procedimento”, este último leva ampla vantagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
SILVA, Roberto da; MOREIRA, Fábio Aparecido. O projeto político pedagógico para a
educação em prisões. Em aberto. Brasília, v.24, n.86, p.89-102, nov.2011. Disponível
em http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/view/2317. Acesso em
fevereiro de 2020.