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CUIDADOS

PALIATIVOS

Professoras: Maria Flor e Rosenira Dantas -


2019/2 1
SUMÁRIO

1. CUIDADOS PALIATIVOS: CONCEITO, FUNDAMENTOS E PRINCÍPIOS

2. MODALIDADES DE ATUAÇÃO E MODELOS DE ASSISTÊNCIA EM


CUIDADOS PALIATIVOS

3. A INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA EM CUIDADOS PALIATIVOS

4. HUMANIZAÇÃO E CUIDADOS PALIATIVOS

5. A PSICOLOGIA EM CUIDADOS PALIATIVOS: UM CASO CLÍNICO

6. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO TRATAMENTO DE PACIENTES


TERMINAIS E SEUS FAMILIARES

7. A COMUNICAÇÃO EM CUIDADOS PALIATIVOS: UMA ESTRATÉGIA


FUNDAMENTAL............ 40
8. A PSICOLOGIA EM CUIDADOS PALIATIVOS PEDIÁTRICOS
9. ESPIRITUALIDADE EM CUIDADOS
PALIATIVOS…………………………………………………………….. 45
10.................................. ESPIRITUALIDADE E O PACIENTE TERMINAL1
11. A MORTE NO CONTEXTO DOS CUIDADOS
PALIATIVOS……………………………………………………… 60

12.LUTO EM CUIDADOS PALIATIVOS

13.LUTO EM CUIDADOS PALIATIVOS

14.BIOÉTICA: REFLETINDO SOBRE OS CUIDADOS5

15.BIOÉTICA EM CUIDADOS PALIATIVOS

16.EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA.

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1. Cuidados Paliativos: conceito, fundamentos e princípios

Dalva Yukie Matsumoto

INTRODUÇÃO

Temos assistido nas últimas décadas a um envelhecimento progressivo da população, assim


como o aumento da prevalência do câncer e de outras doenças crônicas(1). Em contrapartida, o avanço
tecnológico alcançado principalmente a partir da segunda metade do século XX, associado ao
desenvolvimento da terapêutica, fez com que muitas doenças mortais se transformassem em doenças
crônicas, levando a longevidade dos portadores dessas doenças. No entanto, apesar dos esforços dos
pesquisadores e do conhecimento acumulado, a morte continua sendo uma certeza, ameaçando o ideal
de cura e preservação da vida, para o qual nós, profissionais da saúde, somos treinados.
Os pacientes “fora de possibilidade de cura” acumulam-se nos hospitais, recebendo
invariavelmente assistência inadequada, quase sempre focada na tentativa de cura, utilizando métodos
invasivos e de alta tecnologia. Essas abordagens, ora insuficientes, ora exageradas e desnecessárias,
quase sempre ignoram o sofrimento e são incapazes, por falta de conhecimento adequado, de tratar os
sintomas mais prevalentes, sendo o principal sintoma e o mais dramático, a dor. Não se trata de cultivar
uma postura contrária à medicina tecnológica, mas questionar a “tecnolatria”(2) e refletirmos sobre a
nossa conduta, diante da mortalidade humana, tentando o equilíbrio necessário entre o conhecimento
científico e o humanismo, para resgatar a dignidade da vida e a possibilidade de se morrer em paz.
Cada vez mais encontramos em nossos serviços pacientes idosos, portadores de síndromes
demenciais das mais variadas etiologias ou com graves sequelasneurológicas. Devemos enfrentar o
desafio de nos conscientizar do estado de abandono a que estes pacientes estão expostos, inverter o
atual panorama dos cuidados oferecidos e tentarmos implantar medidas concretas, como: criação de
recursos específicos, melhoria dos cuidados oferecidos nos recursos já existentes, formação de grupos
de profissionais e educação da sociedade em geral(3). Os Cuidados Paliativos despontam como uma
alternativa, para preencher esta lacuna nos cuidados ativos aos pacientes.

Breve história dos cuidados paliativos

O Cuidado Paliativo se confunde historicamente com o termo Hospice. Esta palavra data dos
primórdios da era cristã quando estas instituições fizeram parte da disseminação do cristianismo pela
Europa(4). Hospices eram abrigos (hospedarias) destinados a receber e cuidar de peregrinos e

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viajantes, cujo relato mais antigo remonta ao século V, onde Fabíola, discípula de São Jerônimo,
cuidava de viajantes vindos da Ásia, África e dos países do leste, no Hospício do Porto de Roma(5).
Várias instituições de caridade surgiram na Europa no século XVII abrigando pobres, órfãos e
doentes. Esta prática se propagou com organizações religiosas católicas e protestantes, e no século
XIX passaram a ter características de hospitais.
As Irmãs de Caridade Irlandesas fundaram o “Our Lady’s Hospice of Dying” em Dublin em 1879 e
a Ordem de Irmã Mary Aikenheads abriu o “St Joseph’s Hospice” em Londres em 1905 (4).
O Movimento Hospice Moderno foi introduzido por uma inglesa com formação humanista e que se
tornou médica, Dame Cicely Saunders. Em 1947 Cicely Saunders, formada recentemente como
Assistente Social e em formação como enfermeira, conheceu um paciente judeu de 40 anos chamado
David Tasma, proveniente
do Gueto de Varsóvia. David recebera uma colostomia paliativa devido a um carcinoma retal
inoperável. Cicely o visitou até sua morte, tendo com ele longas conversas. David Tasma deixou-lhe
uma pequena quantia como herança, dizendo: “Eu serei uma janela na sua Casa”. Este foi, segundo
Cicely Saunders, o ponto de partida para o compromisso com uma nova forma de cuidar(4). Dessa
forma, em 1967 funda o “St. Christopher’s Hospice”, cuja estrutura não só permitiu a assistência aos
doentes, mas o desenvolvimento de ensino e pesquisa, recebendo bolsistas de vários países(6). Logo à
sua entrada podemos ver a janela de David Tasma.
Cicely Saunders relata que a origem do Cuidado Paliativo moderno inclui o primeiro estudo
sistemático de 1.100 pacientes com câncer avançado cuidados no St. Joseph’s Hospice entre 1958 e
1965. Um estudo descritivo, qualitativo foi baseado em anotações clínicas e gravações de relatos de
pacientes. Este estudo mostrou o efetivo alívio da dor quando os pacientes foram submetidos a
esquema de administração regular de drogas analgésicas em contrapartida de quando recebiam
analgésicos “se necessário”. Este trabalho publicado por Robert Twycross nos anos 1970 põe por terra
mitos sobre os opiáceos. Foram mostradas evidências que os opiáceos não causavam adição nos
pacientes com câncer avançado e que a oferta regular destes medicamentos não causavam maiores
problemas de tolerância. O que se ouvia nos relatos dos pacientes era alívio real da dor(4).
Profissionais de outros países, principalmente dos Estados Unidos e Canadá após período de
experiência no St. Christopher’s Hospice, levaram a prática dos Cuidados Paliativos para seus países
de origem. Na década de 1970, o encontro de Cicely Saunders com Elisabeth Klüber-Ross nos Estados
Unidos fez com que o movimento Hospice também crescesse naquele país.
Em 1982 o Comitê de Câncer da Organização Mundial de Saúde-OMS criou um grupo de trabalho
para definir políticas para o alívio da dor e cuidados do tipo Hospice para pacientes com câncer, e que
fossem recomendados em todos os países.
O termo Cuidados Paliativos, já utilizado no Canadá, passou a ser adotado pela OMS devido à
dificuldade de tradução adequada do termo Hospice em alguns idiomas(7).
A OMS publicou sua primeira definição de Cuidados Paliativos em 1990: “Cuidado ativo e total
para pacientes cuja doença não é responsiva a tratamento de cura. O controle da dor, de outros
sintomas e de problemas psicossociais e espirituais é primordial. O objetivo do Cuidado Paliativo é
proporcionar a melhor qualidade de vida possível para pacientes e familiares”. Esta definição foi
revisada em 2002 e substituída pela atual.
Filosofia e fundamentos éticos dos Cuidados Paliativos Halina Bortnowska, filósofa e escritora
polonesa, voluntária num Hospice, discorreu sobre a ética da cura e a ética da atenção. Descreveu ética

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como “uma constelação de valores sustentados pela pessoa”. Dizia que, na ética da cura, as virtudes
militares eram predominantes: não se dar por vencido, perseverar, ser “duro”. Já na ética da atenção, o
valor central é a dignidade humana, enfatizando a solidariedade entre o paciente e o profissional da
saúde, em atitude que resulta numa “compaixão afetiva”. Na ética da cura, o médico “é o general”; na
da atenção, “o paciente é o soberano”.
Dr. Robert Twycross fala sobre a dificuldade do médico em dizer a verdade ao paciente, quando
esta verdade desnuda a terminalidade da vida e a ausência de perspectiva de cura. Coloca-se em jogo
o seu próprio medo da morte e as pressões culturais associadas. Fica a ideia de que, com a verdade
dolorosa, podemos destruir a esperança e levar o paciente irreversivelmente ao desespero e à
depressão.
Conclui que a mentira e a evasão são o que realmente isolam o paciente atrás de um muro de
palavras ou no silêncio que impede a adesão terapêutica e de compartilhar seus medos, angústias e
preocupações. Enfatiza que devemos ter o compromisso da abertura e da honestidade e que o primeiro
desafio ético do médico seria equipar a si mesmo de boas habilidades de comunicação e
sensibilidade(8).
Segundo Siqueira,(9) “a ética médica tradicional concebida no modelo hipocrático tem um forte
acento paternalista... Somente na década de 1960, os códigos de ética profissional passaram a
reconhecer o enfermo como agente autônomo”.
Baseados no princípio bioético da autonomia do paciente através do consentimento informado,
possibilitando que ele tome suas próprias decisões, no princípio da beneficência e da não maleficência,
os Cuidados Paliativos desenvolvem o cuidado ao paciente visando à qualidade de vida e à
manutenção da dignidade humana no decorrer da doença, na terminalidade da vida, na morte e no
período de luto.

Conceito de Cuidado Paliativo

Segundo a definição da Organização Mundial de Saúde – OMS, revista em 2002, “Cuidado


Paliativo é uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que
enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento.
Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física,
psicossocial e espiritual”.
O Cuidado Paliativo não se baseia em protocolos, mas sim em princípios.
Não se fala mais em terminalidade, mas em doença que ameaça a vida. Indica-se o cuidado
desde o diagnóstico, expandindo nosso campo de atuação. Não falaremos também em impossibilidade
de cura, mas na possibilidade ou não de tratamento modificador da doença, desta forma afastando a
ideia de “não ter mais nada a fazer”. Pela primeira vez, uma abordagem inclui a espiritualidade dentre
as dimensões do ser humano. A família é lembrada, portanto assistida também após a morte do
paciente, no período de luto.

Princípios dos Cuidados Paliativos

Os Cuidados Paliativos baseiam-se em conhecimentos inerentes às diversas especialidades,


possibilidades de intervenção clínica e terapêutica nas diversas áreas de conhecimento da ciência

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médica e de conhecimentos específicos. A OMS em 1986 publicou princípios que regem a atuação da
equipe multiprofissional de Cuidados Paliativos. Estes princípios foram reafirmados na sua revisão em
2002:

1. Promover o alívio da dor e outros sintomas desagradáveis


Desta forma é necessário conhecimento específico para a prescrição de medicamentos, adoção
de medidas não farmacológicas e abordagem dos aspectos psicossociais e espirituais que caracterizam
o “sintoma total”, plagiando o conceito de DOR TOTAL, criado por Dame Cicely Saunders, onde todos
estes fatores podem contribuir para a exacerbação ou atenuação dos sintomas, devendo ser levados
em consideração na abordagem.

2. Afirmar a vida e considerar a morte como um processo normal da vida


Bernard Lown em seu livro “A arte perdida de curar” afirma: “As escolas de medicina e o estágio
nos hospitais os preparam (os futuros médicos) para tornarem-se oficiais-maiores da Ciência e gerentes
de biotecnologias complexas.
Muito pouco se ensina sobre a arte de ser médico. Os médicos aprendem pouquíssimo a lidar
com moribundos... A realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que
possibilita o prolongamento interminável do morrer”(9).
O Cuidado Paliativo resgata a possibilidade da morte como um evento natural e esperado na
presença de doença ameaçadora da vida, colocando ênfase na vida que ainda pode ser vivida.

3.Não acelerar nem adiar a morte

Enfatiza-se desta forma que Cuidado Paliativo nada tem a ver com eutanásia, como muitos ainda
querem entender. Esta relação ainda causa decisões equivocadas quanto à realização de intervenções
desnecessárias e a enorme dificuldade em prognosticar paciente portador de doença progressiva e
incurável e definir a linha tênue e delicada do fazer e do não fazer. Um diagnóstico objetivo e bem
embasado, o conhecimento da história natural da doença, um acompanhamento ativo,
acolhedor e respeitoso e uma relação empática com o paciente e seus familiares nos ajudarão
nas decisões. Desta forma erraremos menos e nos sentiremos mais seguros.

4. Integrar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado ao paciente


A doença, principalmente aquela que ameaça a continuidade da vida, costuma trazer uma série de
perdas, com as quais o paciente e família são obrigados a conviver, quase sempre sem estarem
preparados para isto. As perdas da autonomia, da autoimagem, da segurança, da capacidade física, do
respeito, sem falar das perdas concretas, materiais, como de emprego, de poder aquisitivo e
consequentemente de status social, podem trazer angústia, depressão e desesperança, interferindo
objetivamente na evolução da doença, na intensidade e frequência dos sintomas que podem apresentar
maior dificuldade de controle. A abordagem desses aspectos sob a ótica da psicologia se faz
fundamental. A novidade é a possibilidade de abordá-los também sob o ponto de vista da
espiritualidade, que se confundem e se sobrepõem invariavelmente à questão religiosa. Noventa e cinco
por cento dos americanos creem numa força superior e 93% gostariam que seus médicos abordassem
essas questões, se ficassem gravemente enfermos(10). Segundo Saporetti(10), “espírito, do latim

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‘spiritus’ significa sopro e se refere a algo que dá ao corpo sua dimensão imaterial, oculta, divina ou
sobrenatural que anima a matéria. O espírito conecta o ser humano à sua dimensão divina ou
transcendente”.
É mais este aspecto, o da transcendência, do significado da vida, aliado ou não à religião, que
devemos estar preparados para abordar. Sempre lembrando que o sujeito é o paciente, sua crença,
seus princípios.

5. Oferecer um sistema de suporte que possibilite o paciente viver tão ativamente quanto
possível, até o momento da sua morte
Não devemos nos esquecer que qualidade de vida e bem-estar implicam a observância de vários
aspectos da vida. Problemas sociais, dificuldades de acesso a serviços, medicamentos e outros
recursos podem ser também motivos de sofrimento e devem ser incluídos entre os aspectos a serem
abordados pela equipe multiprofissional. Viver ativamente, e não simplesmente viver, nos remete à
questão da sobrevida “a qualquer custo”, que esperamos combater. Sermos facilitadores para a
resolução dos problemas do nosso paciente é nosso dever e nossa responsabilidade.

6. Oferecer sistema de suporte para auxiliar os familiares durante a doença do paciente e a


enfrentar o luto
Nunca estamos completamente sós. O ser humano é por natureza um ser gregário. Todo o núcleo
familiar e social do paciente também “adoece”. Segundo Dra. Maria Helena Pereira Franco(11), “a
unidade de cuidados paciente-família se coloca como una e específica ao mesmo tempo. A célula de
identidade do ser humano é a família, respeitadas todas as condições que fazem dela um universo
cultural próprio, muitas vezes distante ou até mesmo alheio ao universo cultural dos profissionais da
saúde”. A família, tanto a biológica como a adquirida (amigos, parceiros, etc.), pode e deve ser nossa
parceira e colaboradora. Essas pessoas conhecem melhor do que nós o paciente, suas necessidades,
suas peculiaridades, seus desejos e angústias, muitas vezes não verbalizados pelo próprio paciente. Da
mesma forma, essas pessoas também sofrem e seu sofrimento deve ser acolhido e paliado.

7. Abordagem multiprofissional para focar as necessidades dos pacientes e seus


familiares, incluindo acompanhamento no luto
Na prática do cuidado ao paciente, frequentemente iremos nos deparar com inúmeros fatores que
atuarão concomitantemente na modificação da resposta terapêutica medicamentosa, na evolução da
própria doença e na relação com o paciente e a família. A integração sugerida pelo Cuidado Paliativo é
uma forma de observarmos o paciente sob todas as suas dimensões e a importância de todos estes
aspectos na composição do seu perfil para elaborarmos uma proposta de abordagem. Ignorar qualquer
dessas dimensões significará uma avaliação incompleta
e consequentemente uma abordagem menos efetiva e eficaz dos sintomas. O sujeito da ação é
sempre o paciente, respeitado na sua autonomia. Incluir a família no processo do cuidar compreende
estender o cuidado no luto, que pode e deve ser realizado por toda a equipe e não somente pelo
psicólogo. A equipe multiprofissional com seus múltiplos “olhares” e percepção individual pode realizar
este trabalho de forma abragente.

8. Melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente o curso da doença

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Com uma abordagem holística, observando este paciente como um ser biográfico mais que um
ser simplesmente biológico, poderemos, respeitando seus desejos e necessidades, melhorar sim o
curso da doença e, segundo a experiência de vários serviços de Cuidados Paliativos, também prolongar
sua sobrevida. Vivendo com qualidade, ou seja, sendo respeitado, tendo seus sintomas
impecavelmente controlados, seus desejos e suas necessidades atendidas, podendo conviver com seus
familiares, resgatando pendências, com certeza nossos pacientes também viverão mais.

9. Deve ser iniciado o mais precocemente possível, juntamente com outras medidas de
prolongamento da vida, como a quimioterapia e a radioterapia e incluir todas as investigações
necessárias para melhor compreender e controlar situações clínicas estressantes
Pela própria definição de Cuidados Paliativos da OMS, esses devem ser iniciados desde o
diagnóstico da doença potencialmente mortal. Desta forma iremos cuidar do paciente em diferentes
momentos da evolução da sua doença, portanto não devemos privá-lo dos recursos diagnósticos e
terapêuticos que o conhecimento médico pode oferecer. Devemos utilizá-los de forma hierarquizada,
levando-se em consideração os benefícios que podem trazer e os malefícios que devem ser
evitados(7).
Uma abordagem precoce também permite a prevenção dos sintomas e de complicações inerentes
à doença de base, além de propiciar o diagnóstico e tratamento adequados de doenças que possam
cursar paralelamente à doença principal.
Uma boa avaliação embasada nos exames necessários, além da definição da capacidade
funcional do paciente é indispensável para a elaboração de um plano integral de cuidados, adequado a
cada caso e adaptado a cada momento da evolução da doença.

O Cuidado Paliativo no Brasil

O Cuidado Paliativo no Brasil teve seu início na década de 1980 e conheceu um crescimento
significativo a partir do ano 2000, com a consolidação dos serviços já existentes, pioneiros e a criação
de outros não menos importantes. A cada dia vemos surgir novas iniciativas em todo o Brasil. Ainda
temos muito que crescer, levando-se em consideração a extensão geográfica e as enormes
necessidades do nosso país. Desta forma, será maior a nossa responsabilidade em firmarmos um
compromisso para, unidos num único propósito, ajudarmos a construir um futuro promissor para os
Cuidados Paliativos, para que um dia, não muito distante todo cidadão brasileiro possa se beneficiar
dessa boa prática.

Referências
.
2. Pessini , L. Distanásia: até quando investir sem agredir? Bioética 4, p. 31-43, 1996.
3. GALRIÇA NETO I. Pequeno Manual Básico de Cuidados Paliativos – Região de Saúde de Lisboa.
4. Saunders , D. C. Introduction Sykes N., Edmonds P.,Wiles J. “Management of Advanced Disease”
2004, p. 3-8.
5. Cortes , C. C. Historia y desarrollo de los cuidados paliativos. In: Marcos G. S., ed.Cuidados paliativos
e intervención psicossocial em enfermos com câncer. Las palmas: ICEPS;1988.
7. MACIEL, M. G. S. Definições e princípios. Cuidado paliativo, CREMESP, 2008; (1-I),p. 18-21.

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8. TWYCROSS, R. Medicina Paliativa: Filosofia e considerações éticas. Acta bioética, ano VI, nº 1.2000.
9. SIQUEIRA, J. E. Doente terminal. Cadernos de bioética do CREMESP. Ano 1 vol. 1.2005.
10. SAPORETTI, L. A. Espiritualidade em Cuidados Paliativos. Cuidado paliativo, CREMESP, 2008; (4-
I), p. 522-523.
11. FRANCO, M. H. P. Multidisciplinaridade e interdisciplinaridade-psicologia. Cuidado paliativo,
CREMESP, 2008(1-III) 74-76.

2. MODALIDADES DE ATUAÇÃO E MODELOS DE ASSISTÊNCIA EM CUIDADOS


PALIATIVOS

Luís Fernando Rodrigues

Introdução

Nos últimos 10 anos os Cuidados Paliativos têm se disseminado fortemente em todo o mundo, e
no nosso país não tem sido diferente. O contraste que observamos, no entanto, diz respeito justamente
aos modelos de assistência empregados nos diversos países para atender à necessidade dos cuidados
em fim de vida. Na Europa, a referência aos hospices como locais de cuidado intensivo na
terminalidade (entendendo intensivo como presença intensa junto ao paciente visando execução de
reavaliações e ajustes constantes de medidas para alívio de sofrimento, e não emprego de maquinário
com tecnologia avançada) evidencia o quão diferente a organização dos serviços pode ser.
Desde o cuidado de nível 1, executado por equipes de saúde da família para necessidades mais
básicas, até o de nível 3, com equipes capacitadas para resolução de problemas complexos, os
cenários de atuação são diversificados(4). O objetivo deste texto é explorar vantagens e dificuldades
para a execução de cuidados em cada um desses cenários.

Modelos de assistência Hospital

Historicamente, quando falamos de cuidado de saúde, e principalmente quando falamos em


cuidados em etapa terminal de enfermidade, imediatamente nossa mente nos remete ao cuidado
hospitalar, já que quem está muito doente, em nossa cultura, deve procurar um hospital. E é nesse
ambiente que temos visto se desenvolver alguns dos principais serviços de Cuidados Paliativos no
Brasil: Hospital Emílio Ribas de São Paulo, Instituto Nacional do Câncer (INCA) no Rio de Janeiro,
Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (HSPE/SP), Grupo Interdisciplinar de Suporte
Terapêutico Oncológico (GISTO) do Hospital Erasto Gaertner em Curitiba, Centro de Estudos e
Pesquisas Oncológicas (CEPON) de Florianópolis, Hospital do Câncer de Barretos, Hospital Costa
Cavalcanti de Foz do Iguaçu, Hospital do Câncer de Londrina, entre tantos outros serviços que se
multiplicam. Existe também esse serviço no Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo
(HSPM/SP). Ele atua em espaço físico fora do hospital, sendo algo mais próximo do modelo de hospice
existente na Europa. O ambiente hospitalar, com suas peculiaridades, faz com que seja buscado
prioritariamente como um ambiente de cuidados em fim de vida. No Quadro 1 estão as vantagens e
desvantagens desse ambiente.

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Uma das maiores desvantagens do ambiente hospitalar é o fato de o paciente estabelecer
associação com procedimentos invasivos e por vezes dolorosos, como punções venosas ou arteriais,
sondagens (urinárias, nasogástricas etc.), drenagens e intubação, num momento da vida em que
importantes são o conforto e o alívio dos sintomas. A existência de uma unidade de Cuidados Paliativos
em um hospital pode dar a impressão aos outros pacientes e familiares que é uma unidade para
moribundos (o que não corresponde à realidade, pois o cuidado de fim de vida é apenas um dos
aspectos dos Cuidados Paliativos), podendo fazer com que, desta forma, o nível de ansiedade do
paciente possa aumentar, significando piora do controle dos sintomas psíquicos.

Quadro 1 - Vantagens e desvantagens do cuidado hospitalar(2)


VANTAGENS

 Profissionais disponíveis 24 horas


 Arsenal medicamentoso disponível
 Logística adaptada ao ambiente

DESVANTAGENS
 Horários para visitas restritos
 Número de acompanhantes restrito
 Pacientes sob Cuidados Paliativos entre pacientes com outros diagnósticos (hospital geral)
 Pacientes sob Cuidados Paliativos entre pacientes em outras etapas de doença
 Unidade exclusiva para Cuidados Paliativos pode dar a má impressão de que é
 unidade para moribundos
 Proporção pacientes-funcionário alta, diminuindo o tempo disponível para pacientes
 Domicílio

Quando os profissionais conseguem conduzir seu mister (de tratar os pacientes fora de
possibilidade terapêutica de cura e dentro da ótica dos Cuidados Paliativos) de maneira ótima,
abordando de forma franca, honesta e verdadeira as questões relativas a diagnóstico, prognóstico e
planejamento de cuidados, por vezes o paciente solicita os cuidados em sua própria residência. Isso lhe
confere mais conforto e serenidade, além de poder garantir sua autonomia.
Embora possa parecer tendencioso defender o domicílio como local preferencial de cuidados por
enfatizarmos os aspectos mais subjetivos do tratamento nesse ambiente, devemos avaliá-lo de maneira
crítica e observar seus prós e contras
(Quadro 2)
Uma das grandes vantagens observadas é o fato de permitir ao indivíduo ter as suas
necessidades atendidas na medida de suas preferências, sem a necessidade de seguir a rigidez de
regras e horários do hospital(6)
. Simbolicamente o domicílio representa o retorno ao ventre materno, local de aconchego, calor e
proteção, situações que são procuradas pelas pessoas portadoras de doença ameaçadora da vida e
que se encontram vulneráveis.

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Como disse Rubem Alves, “a morte é o parto ao contrário”, e, para se fazer o caminho inverso, é
necessário retornar ao útero. Como isso é fisicamente impossível, a simbologia do lar visto como um
ambiente protetor se encaixa perfeitamente nessa observação.
No entanto, para atingirmos o sucesso no atendimento domiciliar com o enfoque paliativo, é
necessário reunir uma série de condições que propiciará um cuidado eficaz, como podemos verificar no
Quadro 3. É importante destacar que, para essa modalidade

Manual de Cuidados Paliativos da ANCP


Quadro 3 – Critérios para inclusão no atendimento domiciliar(6)

Ter diagnóstico definido


Ter um plano terapêutico definido e registrado
Residir em domicílio que ofereça as condições mínimas para higiene (luz e água encanada)
Ter cuidador responsável e capaz de compreender as orientações dadas pela equipe
Desejo e/ou permissão expressa para permanecer no domicílio dados pelo paciente ou familiar no
impedimento desse

Quadro 2 - Vantagens e desvantagens do cuidado domiciliar

VANTAGENS

 Atender as necessidades conforme a preferência do paciente


 Maior sensação de conforto e proteção
 Disponibilidade dos cuidadores direcionada totalmente ao paciente

DESVANTAGENS

 Dependendo da forma como o serviço está estruturado, a disponibilização de drogas


 pode não ser imediata
 Residir o paciente longe de recursos de saúde
 Dificuldade na obtenção da declaração de óbito para pacientes que optam por morrer em casa
de atenção, a anuência do paciente e/ou da família é extremamente importante e que, apesar de ser
possível que o óbito aconteça em casa, é necessário checar se paciente e família conseguirão
desenvolver a capacidade de lidar com tal situação durante a evolução do período de cuidado.

Modalidades de assistência(3)
 Câncer
A história dos Cuidados Paliativos se iniciou com o câncer, quando Cicely Saunders cuidou de
seu amigo, David Tasma, e acompanhou a trajetória de dor e sofrimento pelo qual ele passou antes de
morrer. Daí surgiu a sua ideia de agregar os conhecimentos nas várias áreas do saber científico e
empregá-los no auxílio daqueles que sofriam até morrer.

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O grande dilema ético nessa situação é em que momento interromper os tratamentos dirigidos ao
tumor e começar a redirecioná-los para o sofrimento em seu sentido mais amplo(5). Então a medicina
logo percebeu que essa filosofia de cuidados poderia se estender a outros grupos de doenças.

 Doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC)


Em recente levantamento não publicado, o Sistema de Internação Domiciliar (SID) daSecretaria
Municipal de Saúde de Londrina evidenciou, em 384 pacientes acompanhados no ano de 2008,
aproximadamente 14% de portadores de DPOC, segundo grupo de doenças depois das neoplasias,
número semelhante a outros levantamentos. Dispneia, tosse e ansiedade são sintomas frequentes
nesse grupo, que devem ser abordados de forma eficaz por equipe devidamente capacitada.
 Insuficiência cardíaca congestiva (ICC)
É outro grupo frequente, muito associado em nosso país a doença de Chagas, hipertensão arterial (HA)
não-controlada e diabetes. As internações hospitalares pela descompensação dessa condição
contribuem para as altas taxas de ocupação hospitalar de maneira repetitiva. Esse grupo também pode
ser alvo dos Cuidados Paliativos.
 Insuficiência renal crônica (IRC)
Também uma consequência da HA e do diabetes mal controlados, encontra na terapia renal substitutiva
um modo de prolongar a vida dos pacientes portadores dessa condição.
No entanto, assim como o câncer, apresenta uma etapa terminal, principalmente aquele paciente que
não consegue o transplante e evolui para uma situação de fim de vida.
Existem trabalhos europeus que exploram as questões relativas à suspensão da diálise e à condução
do paciente de forma paliativa.
 Doenças neurológicas degenerativas
Com o envelhecimento da população aumentou a incidência das patologias degenerativas, mormente
Alzheimer e Parkinson, são doenças que não têm evolução tão acelerada como o câncer, mas que
também têm sua etapa terminal. O controle da dor, da obstipação, da insônia e das crises de agitação
psicomotora é o maior desafio no grupo de pessoas acometidas por essas doenças.
 Cuidado Paliativo na unidade de terapia intensiva (UTI)
Parece contraditória essa abordagem, pois os pacientes com doença avançada e próximos da morte
não devem ser encaminhados e manejados em uma UTI, mas todos aqueles que precisarem de UTI
terão o direito de receber Cuidados Paliativos. As condições crônicas não devem, a priori, ser cuidadas
em ambiente de terapia intensiva, embora os cuidados que eles requeiram sejam intensivos no sentido
de proximidade intensa do profissional, e não em intensidade de verificação de sinais e medidas para
sustentação da vida. Já os pacientes que tiverem critérios para terapia intensiva podem evoluir para
uma situação de não-reversibilidade e devem ter suas dores aliviadas. A família deverá ser abordada e
auxiliada na elaboração do luto.
 Cuidado Paliativo em pediatria
Situação das mais desafiadoras e difíceis, exige do pediatra experiente que cuida de crianças com
critérios para Cuidados Paliativos toda sua habilidade para lidar com a disrupção do binômio mãe-filho.
A morte da criança é difícil de ser aceita, não apenas por

Manual de Cuidados Paliativos da ANCP mãe e familiares, mas também pela equipe de
profissionais, que deve ser cuidadosamentepreparada para trabalhar nesse cenário especial.

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Referências

1. DOYLE, D. et al. The Oxford Textbook of Palliative Medicine. Oxford University Press. 3rd ed.
2006.
2. DUNLOP, R.; HOCKLEY, G. M. Hospital based palliative care teams. Oxford University Press.
1st ed. 1998.
3. EMANNUEL, L.; LIBRACH, L. Palliative care: core skills and clinical competences. Saunders
Elsevier, 2007.
4. MACIEL, M. G. S. et al. Critérios de qualidade para os cuidados paliativos no Brasil. Academia
Nacional
de Cuidados Paliativos, 2007.
5. PALMER, E.; HOWARTH, J. Palliative care for the primary care team, quay books. 2005.

3 . A INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA EM CUIDADOS PALIATIVOS

Anne Cristine de Melo,


Fernanda Fernandes Valero
Marina Menezes

intervenção psicológica em Cuidados Paliativos

O questionamento sobre o que faz o psicólogo na equipe de CP sustenta a idéia de articulação


entre teoria e prática, definindo assim a identidade do psicólogo nesta equipe. De acordo com Nunes
(2009) a atividade junto aos CP promove indagações e desafios, aos quais o psicólogo deve responder
criativamente buscando fundamentar seu trabalho num referencial teórico consistente (psicanálise,
psicologia analítica, psicologia social, análise do comportamento, fenomenologia, entre outros).
Breitbart (2009) ressalta que a maioria dos psicoterapeutas e clínicos utilizava-se de dois
conceitos básicos universalmente aceitos como base da intervenção psicoterapêutica com pacientes
terminais: Apoio e Não-Abandono, sendo o objetivo mais ousado da psicoterapia com pacientes
terminais, a possibilidade de ajudá-los a atingir um senso de aceitação da vida vivida e assim, de
aceitação da morte. Além disso, Pérez-Ramos (2004) reflete que quando o paciente luta pela vida existe
o desejo consciente e inconsciente de se obter do psicólogo a ajuda para ter as dificuldades internas de
estar doente compreendidas e superadas.
Referente às funções ou intervenções do psicólogo em CP, ainda segundo a perspectiva de
Pérez-Ramos (2004) são citadas: a compreensão dos fenômenos intrínsecos das relações; o
conhecimento das reações do paciente; a orientação de familiares e profissionais; a escuta de várias
pessoas da mesma família; a atuação promovendo o movimento de humanização hospitalar; a
participação da comissão de bioética, entre outras atribuições. Nesse sentido Comas, Schröder e
Villaba (2003) também sugerem como intervenções desenvolvidas pelo psicólogo: a) a avaliação e
diagnóstico do paciente; b) avaliação do contexto familiar que inclui o cuidador principal do paciente; c)

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o contato com a equipe para informar verbalmente o diagnóstico e o plano de ação previsto; d) enfatizar
a utilidade das habilidades de enfrentamento trabalhando as mesmas; e) trabalhar a elaboração da
informação sobre seu estado de saúde; f) manejar a aproximação sócio-familiar.
Na avaliação psicológica do paciente é necessário manter contato direto e próximo a toda equipe
da unidade de CP que é responsável pelo paciente (médicos, enfermeiros, assistente social, etc.), pois,
este intercâmbio interdisciplinar permite ao psicólogo obter toda informação e dados necessários do
paciente e da família de diversas perspectivas profissionais. Comas et al. (2003) referem a utilização de
instrumentos como a Escala de Avaliação Psicossocial, denominada Full d’Avaluació
Psicosocial desenvolvida por Comas e Schröder em 1994, que avalia fatores de risco e
comportamentos indicadores de impacto emocional, auxiliando na distinção entre os pacientes que
necessitam de intervenção psicológica específica dos que inicialmente ainda não precisam. Urch,
Chamberlain e Field (1998) e Zigmond e Snaith (1983) citados em Comas et al. (2003) acrescentam o
HAD (Hospital Anxiety and Depression Scale), que trata-se de um questionário que favorece o
diagnóstico clínico através da identificação de possíveis transtornos psicopatológicos. A entrevista semi-
estruturada, também é citada como instrumento de avaliação em CP, sendo que o psicólogo deve
transformá-la em um diálogo aberto com o paciente, para que, além de obter as informações
expressadas verbalmente sobre a própria doença e a interação com a equipe, seja possível avaliar o
comportamento não-verbal.
Além dos instrumentos para avaliação psicológica, Comas et al. (2003) ressaltam a possibilidade
de adotar os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR (APA, 2002) adaptados para situações de doenças
terminais direcionando o diagnóstico clínico final do psicólogo. Ainda na fase de avaliação, a atuação do
psicólogo pode favorecer o ajustamento psicológico e a comunicação do diagnóstico ao paciente e sua
família (Castro, 2001). Segundo Nunes (2009) a escuta clínica ao paciente, como forma de intervenção
psicológica em CP, permite ajudá-lo a reconhecer e transformar aspectos que trazem sofrimento e
prejuízo ao paciente, iniciando o acompanhamento psicológico o mais precocemente possível.
Em relação à avaliação do contexto familiarque inclui o cuidador do paciente, deve-se verificar se
o paciente tem um cuidador principal ou não, se há ocorrência de resposta emocional alterada e de
domínio depressivo ou ansioso, a existência ou não de perdas recentes (mortes ou mudanças
importantes), assim como a existência de transtornos emocionais prévios ou atuais e a necessidade de
tratamento. Também deve se verificar se o paciente dispõe de rede de apoio afetivo e se tem
pendências para resolver, como o cumprimento de algumas vontades e assuntos práticos (Comas et al.
2003).
A OMS (2007) preconiza que opapel da equipe multiprofissional, sobretudo do assistente social e
do psicólogo, é ajudar a família e paciente com os problemas pessoais, sociais de doença e
incapacidade, bem como prestar apoio durante a progressão da doença e do processo de luto se o
paciente estiver no final da vida, pois, de acordo com Mendes, Lustosa e Andrade (2009) quanto mais
os familiares verbalizarem o pesar antes da morte do ente querido, mais a suportarão depois. Deve-se
permitir ao parente chorar, participar e conversar, já que é longo o período de luto que tem pela frente,
sendo necessária a ajuda e assistência desde a confirmação de um chamado diagnóstico desfavorável,
até os meses posteriores à morte de um membro da família.
A partir do diagnóstico realizado,deve-secontatar a equipepara informar verbalmente o diagnóstico
e o plano de ação previsto, a fim de discutir possíveis recomendações de manejo da situação e
sintomatologia psicológica do paciente (Comas et al. 2003). Nesse sentido, Castro (2001) recomenda

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que o psicólogo assessore a equipe médica no planejamento desta comunicação do diagnóstico aos
envolvidos, respeitando as características emocionais individuais, possibilitando à equipe, o manejo das
reações emocionais.
Quanto a utilização derecursos e habilidades de enfrentamento, de acordo com Comas et al.
(2003) o psicólogo pode examinar as formas de enfrentamento do paciente diante de problemas
concretos, treinar novos recursos como, visualização, relaxamento, meditação, reafirmar/corrigir
padrões adaptativos e desadaptados de enfrentamento e trabalhar a história de vida do paciente
(reviver situações prazerosas, elaborar significados positivos, etc.). O psicólogo pode ainda, durante as
intervenções, explorar com o doente a intensidade de suas reações emocionais, pois esta tomada de
consciência e a auto-observação podem permitir ao paciente um melhor autocontrole.
Na abordagem de um paciente oncológico em fase terminal no contexto dos CP, Oliveira, Santos e
Mastropietro (2010) relatam a intervenção psicológica oferecida em contexto hospitalar no processo do
morrer e suas implicações, os autores afirmam que, uma das formas de amenizar essa experiência
dolorosa é ouvir as comunicações de sentimentos dos pacientes a partir da “escuta interessada” e
“companhia viva”. Isso requer do profissional a consciência de que é possível o paciente comunicar
seus sentimentos por meio de imagens mentais e representações verbais que surgem
espontaneamente ao longo da interação que se estabelece, possibilitando a manutenção do contato
com áreas e fenômenos psíquicos raramente explorados.
Na tentativa de organizar a energia psíquica e os sentimentos acerca da vivência de perda tanto
por parte dos pacientes como dos familiares, o profissional de saúde mental oferece assistência
respeitando o processo de enfrentamento, descrito por Kübler-Ross (1969/2000): negação, raiva,
barganha, depressão e aceitação.
O psicólogo, ao atuar com paciente em CP, acessa suas informaçõessobre sua saúde,
possibilitando através de perguntas diretas sobre os significados de vida e de morte, a elaboração dos
momentos chaves que deram significado à vida do mesmo (Comas et al. 2003). As intervenções
psicológicas em CP também favorecem ao paciente a obtenção de pensamentos reconfortantes sobre o
morrer, elaborando assuntos pendentes, despedidas, silêncios, etc. Tais ações favorecem a adequação
da esperança e a regulação das expectativas do paciente. Mendes et al. (2009) afirmam também que o
paciente muitas vezes prioriza esta atitude de denegação, a fim de deixar uma boa imagem antes de
morrer, solicitando auxílio à equipe, que muitas vezes encontra dificuldades para prover este suporte,
em função do despreparo profissional para lidar com a morte.
Outro recurso utilizado pelo psicólogo é explorar fantasias geradas diante das perdas e medos do
paciente, pois, além de favorecer a elaboração desses conteúdos, das expectativas e frustrações,
propicia novas possibilidades de um ajustamento funcional à situação. Fantasias expressas sobre a
morte geralmente vêm carregadas de pânico e dor. Abordar o tema e discutir sobre a morte
abertamente possibilita uma transição tranquila para o paciente, que, bem cuidado, morre sem dor,
cercado do amor da família e de amigos. Assim como, a identificação de aspectos positivos da
personalidade do paciente, como senso de humor, criatividade e espiritualidade, visto que estes
beneficiam pacientes e família. O psicólogo também favorece a comunicação entre a equipe, paciente e
família, para mediar e facilitar este contato (Prade, Casellato & Silva, 2008).
O manejo da aproximação sócio familiar é apontado por Comas et al. (2003) que também
sugerem que o psicólogo atue a fim de desbloquear a comunicação entre paciente e família
esclarecendo reações como mutismo, hostilidade e confusão, além de proporcionar periodicamente

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informações sobre a doença que possam ser úteis ao paciente para facilitar a comunicação com a
família, e promover formas de cuidado, estimulando a participação dos familiares/cuidadores.
No sentido de orientar familiares e pacientes, Lisboa e Crepaldi (2003) citam os rituais de
despedidacomo uma intervenção psicológica em CP a pacientes terminais, possibilitando pedidos de
perdão, agradecimentos, despedidas e a redefinição de questões que possam estar pendentes no
relacionamento familiar. Para as autoras, existe um tempo maior de preparação para a morte no caso
de pessoas com doenças crônicas em estágio avançado. Por meio dos rituais de despedida, os
pacientes comunicam a necessidade de saber sobre o bem-estar dos que ficam e de se sentirem
acompanhados pela família. Além disso, os familiares relatam a diminuição das sensações de
impotência e culpa; a oportunidade de aprendizado; e o privilégio de participar de um momento especial
e bonito.
São amplas as possibilidades de atuação da psicologia no âmbito dos CP, tanto em equipes
multidisciplinares como no serviço especializado. A prática da intervenção psicológica por profissionais
capacitados para o processo de CP é orientada a minimizar o sofrimento inerente a essa fase da vida,
na elaboração das eventuais sequelas emocionais decorrentes deste processo. Busca-se a
humanização do cuidado, propiciando a comunicação eficaz, a escuta ativa, compreensiva e reflexiva, a
elaboração de questões pendentes, facilitando as relações equipe – paciente – família, não
necessariamente nessa ordem, além de uma melhor adesão ao tratamento. Por meio de instrumentos
de uso exclusivo do profissional da psicologia e técnicas apropriadas à intervenção psicológica, o
psicólogo adquire e assume sua importância nesse contexto de atuação, possibilitando o
reconhecimento da sua prática.

Relevância da intervenção psicológica com pacientes em CP, incluindo pacientes terminais

Os pacientes em CP que se encontram em fase terminal, geralmente passam por longos períodos
de tratamento e, consequentemente, criam vínculos muito fortes no ambiente hospitalar ou unidade de
CP num momento particularmente crítico de suas vidas: o momento de estar doente, emocionalmente
abalado e próximo à morte. Diante dessa situação de terminalidade, o psicólogo atua buscando
qualidade de vida, trabalhando as questões do sofrimento, amenizando ansiedade e depressão do
paciente, auxiliando-o também na sua adesão aos diferentes tipos de tratamento e a lidar com os
efeitos colaterais destes em seu dia a dia. Além disso, o amparo ao paciente terminal em CP, à sua
família e à equipe médica torna-se importante, pois, todos se beneficiam quando se toma consciência
do processo de morrer (Castro, 2001).
Considerando que muitos pacientes terminais em CP apresentam dificuldades em aceitar seu
diagnóstico ou prognóstico com a comunicação da terminalidade efetuada pelo médico, a presença
continuada do psicólogo é fundamental para o paciente evoluir e aceitar favoravelmente sua nova
condição (Gorayeb, 2001).
A natureza complexa, multidimensional e dinâmica da doença propõe um avanço dos CP
englobando a bioética, comunicação e natureza do sofrimento (Barbosa, 2009). Nesse contexto é
possível perceber a relevância da psicologia com suas contribuições para a compreensão dos aspectos
psíquicos do sofrimento humano diante de um quadro de doença que passe a ser tratado em CP ou da
terminalidade em CP. Compreende-se, portanto, que a contribuição do profissional da psicologia ocorre
em diversas atividades, e segundo Franco (2008) estas se dão a partir de saberes advindos de uma

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visão do fenômeno como pertencente ao campo da mente e das vivências e expressões da mesma,
pelo corpo.

4. HUMANIZAÇÃO E CUIDADOS PALIATIVOS

CUIDADOS PALIATIVOS COMO FERRAMENTA DE HUMANIZAÇÃO PARA PACIENTES


ONCOLÓGICOS: REVISANDO A LITERATURA

Thais Cristina Kiefer Machado: Enfermagem (Graduanda - EMESCAM)


Bruno Henrique Fiorin: Enfermagem (Docente- EMESCAM)
RESUMO

Este artigo consiste em uma revisão bibliográfica dos últimos dez anos que visa discutir a
assistência em Cuidados Paliativos sob a perspectiva da Humanização. Trazendo a possibilidade de
evolução e avanços efetivos na qualificação da assistência à saúde com enfoque no profissional
Enfermeiro, evidenciando o sujeito paciente, objeto de estudo e cuidado. Abordaremos o resgate da
Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão do SUS (PNH) consolidando o princípio da
integralidade da assistência, que implica
considerar todas as dimensões possíveis para se realizar intervenções que promova qualidade
maior de vida a esses pacientes oncológicos em cuidados paliativos. O objetivo geral deste trabalho
resume-se em discutir a atenção em Cuidados Paliativos a partir da reflexão sob a perspectiva da
Política de Humanização. A metodologia utilizada foi um levantamento bibliográfico realizado através do
banco de dados virtual BIREME, considerando sob seleção de filtros os principais artigos da saúde
brasileira sobre o tema. A justificativa está pautada no relevante tema da atualidade que evidencia uma
nova forma de assistência de promover qualidade de vida. A revisão revela ser imprescindível que a
formação dos profissionais da saúde seja com enfoque no trabalho que use como ferramentas canais
para valorizar a interação de sensibilidade e reflexão, pensando na complexidade da abordagem em
Cuidados Paliativos e também em conformidade com a proposta da PNH.

1. INTRODUÇÃO

As representações sociais do corpo humano na contemporaneidade incluem a integralidade da


assistência digna, na manutenção da saúde, no tratamento da doença e no acompanhamento da morte.
Os Cuidados Paliativos definem-se como um conjunto de práticas e discursos voltados para o período
final da vida
de pacientes fora de possibilidades terapêuticas curativa, é uma nova especialidade da saúde,
que reflete uma mudança de paradigma e de conceitos sobre o corpo humano, o adoecimento e a morte
que inclui o suporte emocional, social e espiritual aos doentes e seus familiares desde o diagnóstico da
doença ao final da vida e estendendo-se ao período de luto.

O indivíduo já não é entendido apenas como um integrante de estudos acadêmicos ou


epidemiológico, como um paciente submisso e indefeso ou como objeto de pesquisas científicas e
tecnológicas. Ele é visto como um indivíduo que necessita de cuidados, que possui liberdade para

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decidir sobre sua própria vida e com direito garantido pelo Estado de ter sua totalidade e autonomia bio-
psico-social-espiritual respeitada, assistida, atendida e orientada para uma existência salutar, ou pelo
menos confortável, até o processo de
morte que escolher.

Tornam-se cada vez mais necessários a reflexão e o debate sobre os modelos de gestão e de
atenção, a formação profissional e o exercício desse cuidado, para que as práticas de atenção à saúde
da população sejam viabilizadas em conformidade com os princípios do SUS. Neste sentido, a Política
Nacional de Humanização se apresenta como estratégia de transformação do sistema em direção ao
alcance dos princípios fundamentais defendidos nessa reforma sanitária.

A política ajuda na reflexão sobre o conceito de humanizar, que é ofertar atendimento de


qualidade articulando os avanços tecnológicos com acolhimento, com melhoria dos ambientes de
cuidado e das condições de trabalho dos profissionais (Brasil, 2004). O surgimento do conceito de
humanização no campo da saúde remete ao paradigma de direitos humanos, expressos individual e
socialmente. O núcleo deste conceito é a noção de dignidade e respeito à vida humana, com ênfase na
dimensão ética na relação entre profissionais da saúde e pacientes. A preocupação com a humanização
da assistência surge, nos anos 90, com propostas para assegurar direitos fundamentais diante de uma
prática médica vista como impessoal e
desumana.
Em 1860, a enfermeira Florence Nightingale demonstrou a importância da utilização de dados
estatísticos para a avaliação da atuação na saúde. O perfil epidemiológico brasileiro aponta as
neoplasias como a segunda causa de mortalidade, passando nos últimos vinte e cinco anos do quinto
para o segundo lugar.
Projeções da Organização Mundial da Saúde estimam que em 2030, o número de mortes por
câncer chegue a 23,4 milhões. Com essas estimativas de aumento progressivo dos diversos tipos de
câncer, vem instigando novas pesquisas e estudos a prol de buscar desvendar a etiologia, bem como
formas terapêuticas sem possibilidade de cura para tratamento.
E através de uma abordagem paliativa multiprofissional humanizada dos sintomas físicos,
psicológicos e espirituais dos pacientes com câncer avançado que se pode chegar num alívio de até
90%.
A Resolução n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina (CFM), confere o conceito de
ortotanásia para que haja cuidados necessários que aliviam os sintomas, evitando os sofrimentos.
Segundo a referida resolução, na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao
médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente,
garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na
perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante
legal.
A abordagem da enfermagem dentro desse contexto exige empenho tanto individual quanto da
equipe multidisciplinar, realizando assim um trabalho onde é introduzido o conceito da humanização, a
prol de atender as necessidades do cliente e de sua família, que compreende o conforto e a qualidade
de vida dos
mesmos.

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Ressalta-se então a necessidade de que a formação profissional propicie essa articulação para
que adotem uma visão integral do usuário, capacitando-os para atuar com a perspectiva da
humanização.
2. OBJETIVO

Realizar uma revisão bibliográfica relacionando os cuidados paliativos como ferramenta de


Humanização aos pacientes sem possibilidades curativas acometido por câncer.

3. MATERIAL E MÉTODO

O presente trabalho consiste em uma revisão bibliográfica do tipo narrativa sobre os cuidados
paliativos para pacientes oncológicos, enquanto ferramenta de humanização.
O levantamento bibliográfico foi realizado através da internet, pela BIREME, considerando os
principais artigos da saúde brasileira dos últimos dez anos.
Para o levantamento dos artigos, utilizamos as palavras-chave: Cuidados Paliativos. Humanização
da Assistência. Enfermagem oncológica.

4. DESENVOLVIMENTO

CUIDADOS PALIATIVOS E HUMANIZAÇÃO


A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2002, define Cuidado Paliativo como a abordagem
que promove qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a
continuidade da vida, através de prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce,
avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual.
A OMS (2002) e Maciel (2008) aborda que esta definição exclui a expressão “fora de possibilidade
de cura”, que constava na definição de 1990, já que para a maioria das doenças o que se busca com o
tratamento é o controle, não a cura. Assim, torna-se subjetiva a definição do momento em que o
paciente pode ser considerado “fora de possibilidades de cura”. A autora destaca, ainda, que consiste
em um equívoco considerar que os Cuidados Paliativos somente se aplicam na fase do fim da vida,
quando “não há mais nada a fazer”, pois esta abordagem pode ser realizada concomitantemente com o
tratamento curativo, por qualquer profissional da saúde, sem que seja necessária uma equipe
especializada.
Cuidados Paliativos crescem em significado, passando a ser uma necessidade absoluta, quando
se alcança a fase em que a incurabilidade da doença se torna uma realidade. Ou seja, nesta fase,
entendida como aquela em que o processo de morte se desencadeia de forma irreversível e o
prognóstico de vida pode ser definido em dias a semanas, os Cuidados Paliativos se tornam
imprescindíveis e complexos o suficiente para demandar uma atenção específica e contínua ao doente
e à sua família, prevenindo uma morte caótica
e com grande sofrimento.
Para Kübler-Ross (2008), Pinheiro, Benedetto & Blasco (2011) o termo paliar se origina do latim
palliare, que significa “encobrir, tampar, diminuir a dificuldade de um processo”.
O primeiro a escrever sobre Cuidados Paliativos foi o médico William Osler, no início do século
XX, com uma abordagem centrada nas pessoas e não em suas doenças, baseando-se no respeito ao

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sofrimento humano. Por volta de 1960 surgiram os conceitos atuais dos Cuidados Paliativos com Cecily
Saunders, criadora do Movimento Hospice e Cuidados Paliativos e fundadora do Saint Christopher ‟s
Hospice, em Londres, o primeiro hospital destinado ao tratamento de pacientes na fase do fim da vida.
Saunders buscava identificar
as reais necessidades dos pacientes, enfatizando a excelência no tratamento de sintomas e
abordando a pessoa como totalidade, em seus aspectos físicos, emocionais e espirituais. Contribuições
importantes também foram realizadas pela psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross que, em seu livro On Death
and Dying, publicado em 1968, descreve a crise psicológica dos pacientes terminais, apontando suas
necessidades e discutindo autonomia e a ideia de morrer com dignidade.
O Manual de Cuidados Paliativos, elaborado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos
(2009) indica que o Cuidado Paliativo, sem dúvida, é o exercício da arte do cuidar aliado ao
conhecimento científico, em que a
associação da ciência à arte proporciona o alívio do sofrimento relacionado com a doença. Por ser
parte fundamental da prática clínica, pode ocorrer de forma paralela às terapias destinadas à cura e ao
prolongamento da vida.
O foco da atenção em Cuidados Paliativos é a adequada avaliação e o manuseio dos sintomas,
constituindo-se como uma proposta terapêutica aos diversos sintomas que acarretam em sofrimento
físico, psíquico, social ou espiritual, com o intuito de melhorar a qualidade de vida. Oferecendo cuidado
ao paciente e sua família em todas as fases da trajetória da doença, esta abordagem avança como um
modelo terapêutico que possibilita um maior entendimento dos mecanismos de doenças e sintomas e
disponibiliza diversas opções terapêuticas para sintomas físicos e psíquicos, englobando bioética,
comunicação e natureza do sofrimento.
São princípios dos Cuidados Paliativos, conforme determinados pela OMS (2002):
 Alívio da dor e de sintomas estressantes para o doente.
 Visão da morte como um processo natural, pois a compreensão doprocesso de morrer permite
ao paliativista ajudar o paciente acompreender sua doença, a discutir claramente o processo da sua
finitude e a tomar decisões importantes para viver melhor o tempo quelhe resta.
 Não antecipar ou postergar a morte, mas propor medidas que melhorem a qualidade de vida e,
se possível, retardem a evolução da doença, de forma que as ações, sempre ativas e reabilitadoras,
sejam realizadas
 dentro de um limite para que não signifiquem mais desconforto ao paciente do que a própria
doença.
 Integrar aspectos psicossociais e espirituais, o que implica que o cuidado seja conduzido por
uma equipe multiprofissional, na qual cada membro tenha seu papel específico, mas todos ajam de
forma integrada.
 Oferecer um sistema de suporte que possibilite ao paciente uma vida tão ativa quanto possível
até sua morte, o que significa não poupar esforços para promover o bem-estar, somente recorrendo à
sedação pesada quando forem esgotados todos os recursos para o controle do quadro.
 Oferecer um sistema de suporte à família para que se sintam amparados durante o processo
da doença. Quando os familiares compreendem todo o processo de evolução da doença e participam
ativamente do cuidado sentem-se mais seguros e amparados. Algumas complicações no período do
luto podem ser prevenidas. É preciso ter a mesma delicadeza da comunicação com o doente, aguardar
as mesmas reações diante da perda e manter a atitude de conforto após a morte.

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 Iniciar os Cuidados Paliativos o mais precocemente possível incluindo todas as investigações
necessárias para melhor compreender e manejar os sintomas. A integração do paliativista com a equipe
que promove o
 tratamento curativo possibilita a elaboração de um plano integral de cuidados, que perpasse
todo o tratamento, desde o diagnóstico até amorte e o período após a morte do doente.
OMS, (2002) acrescenta que é recomendado considerar que a fase final da vida pode propiciar
momentos de reconciliação e crescimento pessoal, sendo fundamental o respeito à autonomia e a
valorização do sujeito, de forma a favorecer uma morte digna, respeitando o local de escolha do
paciente.
Ressaltam também a importância de que haja o reconhecimento e a aceitação dos valores e
prioridades do sujeito. Neste sentido, cabe lembrar a proposta da PNH como qualificação da atenção
em saúde.
No âmbito das diretrizes reforçadas pela PNH, destaca-se a proposta de Clínica Ampliada, que
oferece importantes orientações que devem ser aplicadas à atenção em Cuidados Paliativos, pois esta
proposta supõe um compromisso com o sujeito doente visto de modo singular e coloca comoexigência
aos profissionais de saúde “um exame permanente dos próprios valores e dos valores em jogo na
sociedade. O que pode ser ótimo e correto para o profissional pode estar contribuindo para o
adoecimento de um usuário”.
O acompanhamento dos sintomas a que se refere a prática dos Cuidados Paliativos implica a
avaliação periódica e o registro acessível a todos os integrantes da equipe, a individualização do
tratamento e a atenção a possíveis mudanças no quadro clínico. Com a abordagem paliativa iniciada
precocemente é possível prevenir e antecipar sintomas. Cada sintoma deve ser minuciosamente
estudado e valorizado, sendo que para aliviar os sintomas, a abordagem deve seguir o princípio da
hierarquização e da não-maleficência. Asmedidas terapêuticas não devem limitar-se a recursos
farmacológicos, mas incluir psicoterapia, acupuntura, massagens, terapia ocupacional, entre outros,
desde que confortáveis e aceitos pelo paciente.
Rego & Palácios (2006) também apontam a inadequação do sistema de saúde brasileiro na oferta
de Cuidados Paliativos, afirmando que a maioria das unidades hospitalares no país não possuem
diretrizes sobre como cuidar de pacientes com doenças que ameaçam a continuidade da vida e também
não possuem informações sistematizadas sobre a maneira como pacientes e seus familiares vivem os
últimos momentos. O campo da Saúde Coletiva/Saúde Pública deve, então, “contribuir para o
planejamento de serviços e sistemas de saúde que contemplem a questão do cuidado no fim da vida,
assim como formular e contribuir na implementação de políticas setoriais específicas, inclusive na
formação de recursos humanos em saúde. Neste sentido, a PNH, com sua proposta de valorização dos
sujeitos e fomento a sua autonomia eprotagonismo, pode ser mencionada como forma de promover a
atenção integral aos sujeitos no fim da vida.
Além da falta de diretrizes claras em Cuidados Paliativos para que os serviços de saúde
contemplem esta modalidade de atenção, deve-se destacar a dificuldade dos profissionais na atuação
nesta área. “Um dos aspectos que mais tem chamado a atenção, quando da avaliação dos serviços, é o
despreparo dos profissionais e demais trabalhadores para lidar com a dimensão subjetiva que toda
prática de saúde supõe”.
A dificuldade em lidar com a subjetividade e com os problemas levantados no cotidiano do
trabalho em saúde muitas vezes gera nos profissionais o sentimento de impotência, frustração e revolta.

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A dor e a morte estão presentes no cotidiano dos profissionais da saúde, o que se torna difícil
especialmente porque a morte, atualmente, é vista como interdita, vergonhosa, oculta, como um
fracasso do corpo e do sistema de saúde. Surge, então, um impasse para o profissional da saúde: o
conflito entre salvar o paciente, evitando ou adiando a morte a todo custo, e cuidar, priorizando a
qualidade de vida. Além disso, devese considerar que a impossibilidade de evitar a morte ou aliviar o
sofrimento do paciente pode ser extremamente dolorosa para o profissional da saúde por defrontá-lo
com sua própria morte ou finitude.
Pinheiro, Benedetto & Blasco (2011) abordam a falta de preparo dos profissionais para lidar com
pacientes no fim da vida. Ressaltam que a reflexão acerca de temas como sofrimento e morte, inerentes
à vida humana, é de extrema importância para qualquer pessoa, independentemente de sua profissão,
e destacam a atuação do médico apontando que para este profissional, refletir sobre tais temas é
condição imprescindível para sua prática. Os autores indicam: O que melhor prepara para a morte é
uma postura realista, profunda, “transcendente”, para usar a linguagem filosófica, em relação à própria
vida.
Quer dizer: é necessário balizar a vida em termos objetivos, contando com a limitação do tempo e
da própria existência. Isso implica que, para enfrentar a morte com coragem, sem medo, enfim, para
saber morrer com dignidade, é preciso aprender a viver pautado em valores perenes, que estruturem
um alicerce sólido. Saber morrer é, antes de tudo, saber viver, pois a morte é um passo a mais – o
último – no caminho da vida.
Diante de dilemas ou problemas morais, os responsáveis pela assistência à saúde em geral
acabam por recorrer à racionalização, buscando aumentar o grau de certeza e ancorar-se em bases
científicas. Assim, o atendimento às necessidades dos pacientes no final da vida passa a ser visto como
uma questão econômica, de quantos recursos estão envolvidos em sua assistência, uma abordagem
utilitarista que desconsidera o sofrimento dos pacientes e seus familiares.
Kübler-Ross (2008) ressalta que o foco em recursos e procedimentos acarretam em mais
sofrimento para o paciente, senão física, emocionalmente e questiona: A capacidade de defesa será a
razão desta abordagem cada vez mais mecânica e despersonalizada? E será esta abordagem o meio
de reprimirmos e lidarmos com as necessidades que um paciente em fase terminal ou gravemente
doente desperta em nós? O fato de ser focado em equipamentos e em pressão sanguínea não será
uma tentativa desesperada de rejeitar a morte
iminente, tão apavorante e incômoda, que nos faz concentrar nossas atenções nas máquinas, já
que elas estão menos próximas de nós do que o rosto amargurado de outro ser humano a nos lembrar,
uma vez mais, nossa falta de onipotência, nossas limitações, nossas falhas e, por último, mas não
menos importante, nossa própria mortalidade?
O profissional de saúde em contato com esses diversos aspectos vividos pelos pacientes e pelos
familiares no momento de aproximação da morte tem conflitos sobre como se posicionar diante do
sofrimento e dor, que nem sempre pode aliviar, tendo também que elaborar perdas de pacientes,
principalmente daqueles com quem forma vínculos mais intensos. Esse convívio com dor, perda e morte
traz ao profissional de saúde a vivência de seus próprios processos internos, de sua fragilidade, sua
vulnerabilidade, seus medos e suas incertezas que nem sempre têm um espaço de compartilhamento.
Outro aspecto fundamental a ser considerado, é a dificuldade de comunicação, um aspecto
fundamental para uma assistência adequada em Cuidados Paliativos. Pinheiro, Benedetto & Blasco
(2011) apontam por não terem recebido nenhuma forma de treinamento formal em Cuidados Paliativos

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ou para o desenvolvimento de habilidades de comunicação, muitos médicos têm dificuldades em
comunicar más notícias adequadamente e tratar de temas relacionados à dor, sofrimento e morte.
Assim, sentem-se desconfortáveis em atuar em contextos em que esses temas são predominantes.
Estudantes também se queixam de que não lhes é ensinado nenhum meio que os auxilie a lidar com os
sentimentos que emergem em cenários de cuidados aos pacientes terminais. Ao contrário, costumam
receber conselhos para não se envolverem e, sim, manterem uma distância confortável de pacientes e
familiares.
O modo como são comunicadas as más notícias determina a forma como o paciente irá reagir,
apontando que esta questão é subestimada e que a formação profissional deveria dar mais atenção a
este fator. É imprescindível que, ao comunicar más notícias, o profissional ofereça conforto ao paciente,
deixando claro que será feito tudo que for possível, senão para prolongar sua vida, para aliviar seu
sofrimento. A autora salienta ainda que, para que o profissional seja capaz de falar sobre assuntos
como doenças graves e morte,
deve antes examinar sua atitude pessoal frente a estes temas.

Diante das dificuldades encontradas para que o sistema de saúde ofereça uma atenção em
Cuidados Paliativos adequada às necessidades dos pacientes e seus familiares, a PNH pode
representar uma importante contribuição para avançar no debate acerca da importância do investimento
em políticas, práticas e serviços de saúde capacitados a oferecer esta modalidade de atenção,
fundamental para que se concretize o ideal de integralidade da assistência, com um atendimento
humanizado.
A humanização na atenção à saúde passou a ser tema de proposições políticas governamentais
de forma mais ampla no final da década de 1990. Em 2001 é lançado o Programa Nacional de
Humanização da assistência Hospitalar (PNHAH) que tem como foco a necessidade de transformação
cultural no ambiente hospitalar, modificando os padrões de assistência aos usuários. Este programa
expressa a necessidade de agregar à eficiência técnica e científica a dimensão ética que possibilite o
respeito à singularidadedas necessidades de usuários e profissionais, o acolhimento do desconhecido e
imprevisível.
A PNHAH além da preocupação com os direitos dos usuários, a valorização dos trabalhadores da
área da saúde, buscando capacitá-los para lidar com a dimensão psicossocial de usuários e suas
famílias. O programa destaca ainda a importância do trabalho em equipes multiprofissionais, bem como
o papel dogestor, para a eficácia do processo de humanização da assistência. Com o intuito de expandir
a humanização para além do ambiente hospitalar, o Ministério da Saúde, em 2003, a Política Nacional
de Humanização da Atenção e da Gestão do SUS – HumanizaSUS (PNH), visando atingir todos os
níveis de atenção à saúde.

Os direitos dos pacientes embora variem conforme os contextos culturais e sociopolíticos, o


crescente consenso internacional considera como direitos fundamentais a privacidade, a
confidencialidade de informações médicas, o direito de consentir ou recusar tratamento e à informação
sobre os riscos relevantes dos procedimentos médicos.
A PNH foi proposta diante de um duplo problema a banalização da humanização e a
fragmentação das práticas nos programas de humanização da saúde. Orientando para a construção de
novas formas de produção de saúde e de sujeitos, a política impõe mudanças no modelo de atenção e
de gestão na saúde, se apresentando como um meio de qualificação das práticas de saúde.

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Para facilitar a humanização da gestão e da atenção, destaca-se ainda a proposta de Equipe de
Referência e Apoio Matricial. Com esta proposta, facilita-se o vínculo entre profissionais e usuários,
possibilitando que a gestão esteja mais centrada nos fins do que nos meios. Assim, além da
responsabilização da equipe sobre a assistência aos usuários, esta proposta se refere à divisão de
poder gerencial, propondo um maior equilíbrio de poderes nas relações estabelecidas entre os
trabalhadores e com os usuários, evitando alimentar conflitos corporativos, de maneira a colocar o
usuário no centro do processo gerencial e da atenção.
Ao invés de uma atuação segmentada, o trabalho realizado pelas Equipes de Referência e Apoio
Matricial propõe o resgate do compromisso com o sujeito, não mais recortado em partes ou patologias,
mas reconhecido na complexidade de seu adoecer e de seu projeto terapêutico. Esta proposta
apresenta grande potencial resolutivo e de satisfação para usuários e trabalhadores. Para concretizá-
la, são exigidas novas competências, um aprendizado coletivo para que gestores e trabalhadores
adquiram novas capacidades técnicas e pedagógicas.
À equipe cabe exercitar uma abertura para o imprevisível e para o novo e lidar com a possível
ansiedade que essa proposta traz. Nas situações em que só seenxergava certezas, podem-se ver
possibilidades. “Nas situações em que se enxergava apenas igualdades, podem-se encontrar, a partir
dos esforços do PTS, grandes diferenças. Nas situações em que se imaginava haver pouco o que fazer,
pode-se encontrar muito trabalho”.
A saúde o adoecer são formas pelas quais a vida se manifesta. Correspondem a experiências
singulares e subjetivas, impossíveis de serem reconhecidas e significadas integralmente pela palavra.
Quando se trata de um tema tão sensível e complexo quanto a morte, os aspectos subjetivos não
podem ser desconsiderados. Por isso, é fundamental que os profissionais da saúde sejam capazes de
oferecer, além de seus conhecimentos técnicos, o apoio e um olhar atento à singularidade, respeitando
o processo de morrer de cada paciente como uma experiência única, subjetiva e singular.
Adquirir familiaridade com o mundo do paciente e buscar conhecer o contexto em que vive e suas
crenças foram consideradas ferramentas essenciais para um bom cuidado. Tal atitude permitiu que
fossem feitos diagnósticos em muitos níveis e detectadas questões cruciais que não teriam sido
evidenciadas em uma abordagem superficial.
Para que os profissionais da saúde estejam capacitados a atuar em Cuidados Paliativos, a
formação profissional deve promover o desenvolvimento de competências e habilidades específicas que
o cuidado em fim da vida requer. Isso implica abordar a morte como evento da vida, não como um
fracasso,
incapacidade ou incompetência, como é vista por muitos profissionais da saúde, que a
consideram, então, como algo a ser combatido a qualquer custo. A morte tem sido compreendida como
algo que deve ser absolutamente afastado. Nesse sentido, introduzir a morte e o processo de morrer
como temática para a formação dos profissionais de saúde pode parecer indevido, já que não atenderia
à lógica imposta por esse entendimento do processo de trabalho em saúde.
Entretanto, temas como o sofrimento, morte e processo de morrer não podem ser negligenciados
para que seja possível oferecer um cuidado humanizado e pautado na integralidade. Ressalta:
Há inúmeras possibilidades de oferecimento de espaços para a reflexão e discussão sobre o tema
da morte na graduação, pósgraduação, especialização e aperfeiçoamento, envolvendo temas como:
atitudes e mentalidades frente à morte, morte no processo do desenvolvimento humano, perdas e

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processo de luto, comportamentos autodestrutivos e suicídio, pacientes gravemente enfermos e a
proximidade da morte, os profissionais de saúde e a morte, e Bioética nos cuidados no fim da vida.
A PNH se constitui como uma possibilidade de pensar sobre os modelos de atuação em Cuidados
Paliativos. Em especial, o PTS pode se caracterizar como um dispositivo de grande importância para o
trabalho da equipe de saúde em Cuidados Paliativos. É importante lembrar que quando ainda existem
possibilidades de tratamento para uma doença, não é muito difícil provar que o investimento da equipe
de saúde faz diferença no resultado. No entanto, não se costuma investir em usuários que se acreditam
“condenados”, seja por si mesmos, como no caso de um alcoolista, seja pela estatística, como no caso
de uma patologia grave. Se esta participação do usuário é importante, é necessário persegui-la com um
mínimo de técnica e organização. Não bastam o diagnóstico e a conduta padronizados.
Nos casos de “prognóstico fechado”, ou seja, de usuários em que existem poucas opções
terapêuticas, como no caso dos usuários sem possibilidade de cura ou controle da doença, é mais fácil
ainda para uma equipe eximir-se de dedicar-se a eles, embora, mesmo nesses casos, seja bastante
evidente que é
possível morrer com mais ou menos sofrimento, dependendo de como o usuário e a família
entendem, sentem e lidam com a morte. O PTS nesses casos pode ser importante como ferramenta
gerencial, uma vez em que constitui um espaço coletivo em que se pode falar do sofrimento dos
trabalhadores em lidar com determinada situação.
A presunção de “não envolvimento” compromete as ações de cuidado e adoece trabalhadores de
saúde e usuários, porque, como se sabe, é um mecanismo de negação simples, que tem eficiência
precária. O melhor é aprender a lidar com o sofrimento inerente ao trabalho em saúde de forma
solidária na equipe.
É imprescindível que a formação dos profissionais da saúde seja com enfoque no trabalho em
equipes, pensando na complexidade da abordagem em Cuidados Paliativos e também em
conformidade com a proposta da PNH.
Assim, os Cuidados Paliativos devem englobar a educação continuada, levando em consideração
habilidades individuais e do grupo, capacitando os profissionais a atuar com a interação em cinco
aspectos do cotidiano da prática paliativa: com o paciente, a família, a equipe de saúde, a sociedade e o
sistema de saúde discutem essa ideia.
Para a atenção em Cuidados Paliativos, a ênfase no trabalho em equipe é de extrema
importância, pois com sua proposta cooperativa, possibilita que os profissionais da saúde tenham um
suporte para lidar com as inúmeras dificuldades e com a sobrecarga emocional já mencionada
anteriormente.Como aponta Kovács (2008), as equipes, ao possibilitarem a discussão dos
procedimentos, ampliam a possibilidade de compartilhamento dos sentimentos que surgem no cotidiano
de trabalho.
Deve ser ressaltada a importância do compartilhamento e da troca de saberes no trabalho em
saúde, entre as diferentes áreas e com os usuários, valorizando as contribuições que podem ser feitas
por diferentes disciplinas, inclusive aquelas de outros campos que não o da saúde.
Certamente, o ensino das Humanidades (Literatura e Artes em geral), o qualvem sendo
introduzido em muitas escolas de saúde com o objetivo de proporcionar um maior conhecimento do ser
humano e preparar estudantes e jovens médicos a lidar melhor com as questões que emergem, por
exemplo, em um cenário de Cuidados Paliativos, tem se mostrado, de alguma forma, benéfico. No

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entanto, esse ensinamento somente é útil quando realizado paralelamente à prática e proporcionado
por profissionais que consigam transitar livremente pelos dois mundos – o das artes e o da vida real.
Cabe lembrar ainda os apontamentos de Czeresnia (2003), que aborda a aproximação entre a
filosofia, a literatura e a medicina, afirmando a exigência de revalorizar a aproximação complementar –
na ação – entre formas de linguagem essencialmente diferentes entre si. Trata-se de relativizar o valor
de verdade dos conceitos científicos; utilizá-los, mas não acreditar totalmente neles, abrindo canais para
valorizar a interação de sensibilidade e pensamento.

5. CONCLUSÃO
Conclui-se diante da revisão de literatura que é necessário, então, o investimento na discussão
sobre os Cuidados Paliativos, incluindo esta abordagem nas políticas de saúde e na formação
profissional, afim de resgatar na humanização a ferramenta para o desenvolvimento da melhor
assistência de cuidados a pacientes oncológicos. Evidencia-se, assim, uma situação paradoxal, pois o
sofrimento e a morte são inerentes à vida humana, mas acabam sendo temas negligenciados por
aqueles que lidam com a vida, isto é, os profissionais da saúde em ênfase enfermeiros (as).

6. REFERÊNCIAS
1. OMS. Organização mundial da saúde. Disponível em: http://www.who.int/about/es/ Acesso em: 14
janeiro 2016.
2. Floriani CA, Schramm FR. Cuidados paliativos: interfaces, conflitos e necessidades. Cien Saude
Colet 2008;13(Supl. 2):2123-2132.
3. Menezes, R. A. Em busca da “boa morte”: uma investigação sócioantropológica sobre Cuidados
Paliativos. Tese (IMS-UFRJ). Rio de Janeiro: 2004.

5. A PSICOLOGIA EM CUIDADOS PALIATIVOS: UM CASO CLÍNICO

Arcebispo Desmond Tutu (Prémio Nobel da Paz, 1984)

Nesta obra dedicada à Psicologia em Cuidados Paliativos, juntamo-nos a um conjunto de autores


que têm vindo a desenvolver nas mais diferentes áreas profissionais um trabalho de excelência na
divulgação e implementação dos Cuidados Paliativos em Portugal.
Pode considerar-se Alfred Worcester como o pioneiro moderno dos Cuidados Paliativos e que, em
1935, escreveu o clássico The Care of the Aged, the Dying and the Dead, onde assinala a necessidade
de adotar uma atitude mais humanitária face àmorte e aos moribundos.
Nas décadas de 50 e 60 do século XX, com o surgimento dos citostáticos, criaram-se numerosas
expectativas de cura para a maioria dos tumores. Todavia este facto não se verificou, levando a que no
Reino Unido tivesse origem um movimento destinado a melhorar o apoio dos doentes em fase terminal
e a ajudá-los a morrer bem.
Em 1967, esse movimento torna-se realidade com a abertura do St. Christopher’s Hospice, em
Londres, dirigido pela Dame Cicely Saunders, enfermeira, assistente social e médica em simultâneo. Foi
possível organizar um ambiente no qual as pessoas doentes e suas famílias podiam adaptar-se melhor
emocional e espiritualmente à situação de doença terminal. Cicely Saunders é a pioneira na criação de

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um novo conceito: “dor total”. Por outras palavras, a dor é um sintoma subjetivo que expressa uma
multiplicidade de fatores físicos, psicológicos e espirituais.
Para intervir ativamente no sofrimento gerado pela dor, não se pode fazê-lo apenas pela
manipulação de fármacos, mas também pela intervenção psicológica.
O seu trabalho demonstrou igualmente como se poderia conseguir uma significante melhoria da
qualidade de vida, quando se prestava uma atenção apropriada a todos os sintomas, incluindo os
psicológicos, sociais e espirituais da pessoa doente.
O êxito do St. Christopher’s Hospice e do trabalho interdisciplinar nele realizado permitiu à filosofia
paliativa expandir-se posteriormente a outros hospícios e hospitais, com o aparecimento de centros de
referência, cuidados ao domicílio e diversos programas de investigação.
O movimento dos hospícios continuou a estimular e a acolher iniciativas inovadoras de
investigação de tratamento de diversos sintomas e do sofrimento, alargando-se a outros hospícios e
hospitais nos Estados Unidos da América, no Canadá e, só mais tarde, no resto da Europa. No ano de
1988, foi criada a Associação Europeia de Cuidados Paliativos (European Association for Palliative
Care – EAPC).
Os Cuidados Paliativos são uma causa que se vive na primeira pessoa e que se torna uma
missão para a vida, ultrapassando de longe os cuidados de fim de vida. São entendidos, tal como a
Organização Mundial de Saúde (OMS) os definiu em 2002, como uma abordagem que melhora a
qualidade de vida dos doentes e das suas famílias confrontados com os problemas associados a uma
doença ameaçadora da vida, através da prevenção e do alívio do sofrimento, a identificação precoce, a
avaliação holística e o tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais. Para
a sua implementação temos de ter diferentes tipologias de serviços, equipas multidisciplinares, com
uma liderança de excelência, com formação e treino de qualidade, onde é fulcral a arte de comunicar,
assim como a avaliação e o controlo de sintomas.
A equipa vocacionada para este tipo de trabalho necessita de uma contínua atenção ao seu
funcionamento, estimulando a diminuição das tensões e conflitos interpessoais, por vezes, inevitáveis.
Uma boa coesão e a aproximação do grupo constituem bons suportes. Qualquer membro da equipa,
independentemente da sua categoria profissional,
responsabilidade ou competência técnica, não está preparado para o trabalho de equipa, a não
ser que tenha formação para isso. Este tipo de equipa deve funcionar como um grupo de profissionais
distintos que trabalham com uma metodologia comum, partilhando um projeto assistencial e objetivos
comuns.
A eficácia requer uma dinâmica que permita a reorganização e integração de conhecimentos de
cada profissional, em cada momento, segundo as necessidades das situações, tendo como diretivas a
qualidade de vida e bem-estar da pessoa doente, o apoio dos familiares e/ou cuidadores, bem como o
funcionamento da equipe.
Por todos estes motivos, estas equipas têm na sua constituição nuclear um médico, um
enfermeiro e um psicólogo, regulamentado na Lei de Bases dos Cuidados Paliativos.
Esta Lei – n.º 52 de 2012 – foi aprovada com o objetivo de conferir maior dignidade neste nível de
cuidados, vinculando o Estado ao cumprimento de um conjunto de obrigações. A Lei centra-se na
obrigatoriedade que o Estado tem de criar condições para a prevenção e alívio do sofrimento físico,
psicológico, social e espiritual da pessoa

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doente. O doente tem, pois, o direito de usufruir de todos os cuidados que sejam adequados à sua
situação, e a responsabilidade da prestação desse serviço é do Estado, através do Serviço Nacional de
Saúde (SNS) ou, em caso de resposta insuficiente, através de instituições do sector privado ou social.
Face ao exposto, nada como ilustrar a realidade dos Cuidados Paliativos através de um caso real,
em que a equipa e as suas competências contribuíram para o mitigar do sofrimento. Demos-lhe o nome
de “Ver o mar... dia 19”.
E., 51 anos, mestre em Filosofia e professora numa escola secundária há 25 anos.
Tinha diagnóstico de carcinoma do colo do útero, uma lesão oncológica grave. Recidivas e
metastizações recentes agravaram a sua condição clínica. Tinha uma fístula retovaginal e depressão
reativa ao diagnóstico. Recebia apoio dos pais.
Observámos uma doente inquieta e assustada que fez perguntas práticas acerca da dor, olhando
todos, procurando responder prontamente às pessoas que mal conhecia e às exigências do momento.
E. sentia um grande constrangimento com o seu estado atual, marcado pela existência da fístula
retovaginal. Considerava a sua condição degradante e os cheiros associados ao seu estado
insuportáveis aos outros. Em conferência familiar (Guarda, Galvão, & Gonçalves, 2010), a mãe de E.
apresentou como elemento de preocupação central “A Fístula”, pelo grande desconforto e sério
obstáculo à socialização da doente.
Os familiares vivenciavam choque e consternação com toda a problemática associada à fisiologia
de eliminação de E..
Pensou-se não ser facilitador no estabelecimento da relação a intervenção de um psicólogo
homem, por razões de género, atendendo ao quadro ginecológico tão confrangedor, com eventuais
afetações nas esferas do simbólico e do cultural. Porém, um episódio depressivo em que E. chorava
determinou que interviesse o psicólogo disponível.
Pensámos, antes de entrar, no que dizer, e como dizer... Sabia-se já que E. poderia ser distante
ou mesmo recusar o contato.
Encontrámo-la deitada, emagrecida, pálida e séria. Notavam-se muito os olhos grandes que
olhavam... perscrutantes, sentindo... Tinha cabelo curto, “pente 2”. Apresentámo- nos e sentimos,
imediatamente, o seu desconforto. Abeirámo-nos da cama e dissemos-lhe, com os olhos naqueles
olhos, pausadamente e próximos: “Conhecemos a sua situação clínica... o seu estado físico... em
pormenor... ao ínfimo detalhe... e há em nós um desejo muito grande de a conhecer, e não há nada que
possa aplacar esta nossa vontade... a não ser uma rude e insensível declaração de rejeição...” E. sorriu,
mantendo os olhos nos nossos, em silêncio. Puxámos uma cadeira devagar e, olhando- a sempre,
sentámo-nos à cabeceira. Falámos dos filósofos “pessimistas”, de Nietzsche e o eterno retorno, de
Schopenhauer e seus contributos para o interessante mundo da Filosofia que quase ignoramos, por
“limitações de intelecto”, dissemos-lhe, em jeito de piada. Nessa sessão, com um retorno pessoal que
não esqueceremos, soubemos da professora, dos seus amados alunos, do Clube da Filosofia que
fundou, das aulas que
prepara com esmero... do seu curso, o feito maior da sua existência, e o mestrado, a confirmação
da sua paixão pelo saber.
Nas sessões que se seguiram, E. falou do seu penoso percurso desde o diagnóstico e dos pais
idosos, fragilizados com o fatalismo que a envolve. Suportam mal o momento, temem o futuro. E. chora,
quando está só, e não aceita o fim da vida, parece duvidar: “Diz-se que ninguém concebe
verdadeiramente a sua própria morte...” Sentimo- la procurar no psicólogo a certeza, o esclarecimento,

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a frase dita sem rodeios... no entanto: “Não se sabe, Sr. Dr., se a minha mãe ou o meu pai virão a
falecer antes de mim...” E. esteve por algum tempo em negação, uma das fases do processo de
integração de uma perda ou de uma má notícia (Kübler-Ross, 1969), em adaptação à doença,
ajustando o seu mundo interior à realidade factual. Num episódio delirante, ansiava pela sua colocação
na escola onde leciona. E. é muito valorizada intelectualmente e o seu intelecto é o foco do orgulho dos
pais. A escola e o ato de ensinar são peças substanciais na sua identidade, ligam-se à sua existência e
ao sentido da sua vida, são a sua temática dominante no discurso orientado ou na dissociação.
O Psicólogo na Equipe de Cuidados Paliativos

Para se definir a prática dos cuidados paliativos é fundamental que se tenha uma abordagem
multidisciplinar que produza uma assistência harmônica, onde o foco é amenizar e controlar os
sintomas de ordem física, psicológica, social e espiritual e não de buscar a cura de determinada
doença. Trata-se de oferecer ao paciente qualidade de vida, enquanto vida houver (Oliveira & Silva,
2010).
É responsabilidade de uma equipe multidisciplinar composta por médicos, enfermeiros,
psicólogos, entre outros profissionais da área de saúde proporcionar esse cuidado; capacitados para
lidar com os medos, angústias e sofrimentos do paciente e da família, agindo com respeito frente à
realidade da finitude humana e às necessidades do doente (Machado, Pessini & Hossne 2007).
A equipe multiprofissional deve unir esforços para oferecer um cuidado o mais abrangente
possível, utilizando todos os recursos diagnósticos necessários para a melhor compreensão e manejo
dos sintomas e tendo sempre em foco que a melhora da qualidade de vida pode influenciar
positivamente no modo como o paciente lida com as questões relacionadas ao processo de adoecer
(Academia Nacional de Cuidados Paliativos, 2007; Juver, 2007; Souza & Carpigiani, 2010).
Como parte dessa equipe que atua na área de Cuidados Paliativos, a contribuição do profissional
de Psicologia se define a partir de uma visão da doença como pertencente ao campo da mente e das
vivências e expressões da mesma, pelo corpo. Atuando nessa área, o psicólogo também necessita
manter o equilíbrio nas suas relações com os outros profissionais e encontrar vias de comunicação que
permitam a troca e o conhecimento, a partir de diferentes saberes (Conselho Regional de Medicina do
Estado de São Paulo, 2008).
Tomando como referência os princípios que regem a filosofia dos Cuidados Paliativos, poderiam
ser considerados mais diretamente como norteadores da prática do psicólogo: a promoção do controle
da dor e de outros sintomas estressantes; o trabalhar a questão da morte como um processo natural; o
oferecimento de um sistema de suporte à família, que possibilite a exata compreensão do processo da
doença em todas as fases; oferecer um sistema de suporte que permita ao paciente viver tão
ativamente quanto possível, na busca constante para manter sua autonomia; integrar o aspecto clínico
com os aspectos psicológico, familiar, social e espiritual ao trabalho; unir esforços de uma equipe
multidisciplinar para oferecer o cuidado mais abrangente possível; ter sempre em foco que a melhora da
qualidade de vida pode influenciar positivamente no tempo que resta ao doente e que o cuidado deve
ser iniciado precocemente (Academia Nacional de Cuidados Paliativos, 2007; Conselho Regional de
Medicina do Estado de São Paulo, 2008; Juver, 2007).
O psicólogo deve estar atento em detectar os conteúdos envolvidos na queixa, no sintoma e na
patologia, permitindo assim uma atenção integral e a identificação de desordens psíquicas que geram
sofrimento, estresse e também aos mecanismos de defesa negativos que costumam surgir; isso

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favorece a reorganização da vivência de doença e o uso de recursos adaptativos no sentido de manter
o paciente participativo no processo de tratamento (Othero & Costa, 2007).
Trabalhar a questão da morte como um processo natural, requer que se tenha estabelecido entre
o paciente e o psicólogo um vínculo de confiança, pois as fantasias acerca deste tema e do desejo de
imortalidade é o ponto primordial para a ressignificação da intensa experiência que é o processo de
terminalidade da vida, que a partir do diagnóstico da doença se torna ainda mais presente; por isso o
fazer psicológico na perspectiva dos cuidados paliativos solicita do profissional especial atenção a
linguagem simbólica e ao não dito (Incontri & Santos, 2007; Kovács, 2008b).
Além da intervenção técnica, também devem estar presentes no trabalho do psicólogo a empatia
e a escuta acolhedora verbal e não-verbal, permitindo que o paciente possa confrontar com seus
conteúdos internos, suas angústias e sentimentos em geral, para que a partir daí inicie o processo de
aceitação, elaboração e superação no que diz respeito ao adoecimento. A escuta permite ao psicólogo
identificar as reais demandas do paciente (Othero & Costa, 2007).
A questão da boa comunicação, ou seja, a comunicação interpessoal envolve compreensão,
percepção e transmissão de mensagens, por meio da linguagem verbal e não-verbal. O psicólogo neste
contexto atua para alargar o canal de comunicação entre o paciente, seus familiares e a equipe
multidisciplinar, para que se permita: identificar as necessidades do paciente e da família, visando
aumentar seu bem-estar; conhecer os temores e anseios do paciente, buscando oferecer medidas de
apoio pautadas em seus valores culturais e espirituais; mediar oportunidades para que sejam tratados
assuntos pendentes como despedidas, agradecimentos e reconciliações; facilitar a relação entre
profissional de saúde, paciente e familiares (Academia Nacional de Cuidados Paliativos, 2009).
O oferecimento de um sistema de suporte à família que facilite a compreensão do processo da
doença em todas as fases visa diminuir o impacto que os sintomas psicológicos do doente causam a
mesma (Menezes, Passareli, Santos & Valle, 2007). Uma boa comunicação com a equipe de saúde e o
máximo de informações sobre o tratamento e os cuidados específicos ao paciente, são aspectos
inclusos nesse sistema de suporte à família oferecido pelo psicólogo, visto que a falta de informações
sobre a condição do paciente é um dos fatores que causa maior estresse e desencadeia a ansiedade
familiar (Kohlsdorf, 2010; Rezende et al, 2010; Rodrigues & Zago, 2009).
A autonomia individual é um dos valores centrais na fundamentação dos cuidados paliativos na
busca de um modelo bioético. Por conseguinte, é fundamental que nos cuidados destinados ao paciente
oncológico, o psicólogo promova junto à equipe e aos familiares o respeito aos direitos desse paciente
de fazer suas próprias escolhas, oferecendo informações claras sobre a doença e sua evolução e
respeitando seus limites de compreensão e tolerância emocional; o que favorece a competência do
mesmo para o exercício de sua autonomia para fazer as escolhas necessárias a sua vida e ao seu
tratamento, mantendo assim sua dignidade. Portanto, decisões fundamentais devem ser discutidas com
o doente ou seu representante legal, sendo respeitada sua vontade (Araújo & Linch, 2011; Oliveira &
Silva, 2010). O princípio da autonomia evita os abusos potenciais de um julgamento unilateral, por isso
trabalha-se com o desejo do paciente em primeiro lugar, não com a vontade do médico, deixando para
traz o modelo médico paternalista (Morais, 2010).
Considerações Finais

O psicólogo que integra uma equipe de Cuidados Paliativos precisa de formação profissional na
área, na busca de estratégias para ajudar o paciente no enfrentamento e elaboração das experiências

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emocionais intensas vivenciadas na fase de terminalidade da vida. Tendo cuidado para não ocupar o
lugar de mais um elemento invasivo no processo de tratamento, mas de facilitador no processo de
integração do paciente, da família e da equipe multidisciplinar, mantendo como foco o doente (não a
doença) e a melhora na qualidade de vida do paciente (não o prolongamento infrutífero do seu
sofrimento).
Um dos objetivos primordiais do atendimento psicológico é mostrar ao paciente que o momento
vivido pode ser compartilhado, estimulando e buscando seus recursos internos, para assim atenuar
sentimentos como de solidão e derrota, e trabalhar com ele o sofrimento psíquico (que inclui ansiedade,
depressão, perda da dignidade e seus medos), num compartilhar de cumplicidade e favorecendo a
ressignificação desta experiência que é o adoecer.
Referências
Academia Nacional de Cuidados Paliativos (2007). Critérios de qualidade para os cuidados
paliativos no Brasil. Rio de Janeiro: Diagraphic.
______. Manual de cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Diagraphic, 2009.
Amorim, W. W.; Oliveira, M. (2010). Cuidados no final da vida. Revista saúde Coletiva, 43 (7), 198.
Araújo, D.; Linch, G. F. C. (2011). Cuidados paliativos oncológicos: tendências da produção
científica. Revista de Enfermagem, UFSM, 1(2), 238-245, Mai/Ago.
Avanci, B. S.; Goés, F. G. B.; Carolindo, F. M.; Cruz Netto, N. P.(2009). Cuidados paliativos à
criança oncológica na situação do viver/morrer: A ótica do cuidar em enfermagem. Esc Anna Nery
Revista de Enfermagem, 13 (4), 708-16, Out./Dez.
Barbosa, K. A.; Freitas, M. H. (2009). Religiosidade e atitude diante da morte em idosos sob
cuidados paliativos. Revista Kairós, 12(1), 113-134, São Paulo, Jan.
Bertan, F. C.; Castro, E. K. (2009). Qualidade de vida e câncer: revisão sistemática de artigos
brasileiros. PSICO, PUCRS, 40 (3), 366-372, Porto Alegre, Jul./Set.
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (2008). Cuidado Paliativo. São Paulo:
CREMESP.

6. A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO TRATAMENTO DE PACIENTES TERMINAIS E SEUS


FAMILIARES

Glaucia Regina Domingues1;


Karina de Oliveira Alves2;
Paulo Henrique Silva do Carmo3
; Simone da Silva Galvão4;
Solmar dos Santos Teixeira5;
Eduardo Ferreira Baldoino6

O termo “paliativo” deriva do latim pallium, que significa manto, capote. Dando a ideia de prover
um manto para aquecer aquele que passa frio (Pessini&Bertachini, 2005). Essa é a essência de
cuidados paliativos: aliviar dores e sintomas ecobrir de cuidados aqueles pacientes para quem a
medicina já não oferece recursos curativos.
Conforme asseveramBifulco e Iochida (2009), os Cuidados Paliativos são procedimentos feitos
por todos os integrantes de uma equipe multiprofissional, que oferecem uma opção de tratamento

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adequado a pacientes fora dos recursos terapêuticos de cura. Nessa perspectiva, a Organização
Mundial da Saúde (OMS), em conceito definido em 1990 e atualizado em 2002, afirma que:
Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que
objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que
ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação
impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais (Inca, 2013).
Portanto, em Cuidados Paliativos, não há uma busca pela cura, mas sim, um acolhimento daquele
que, diante da irreversibilidade de sua patologia, receberá um tratamento que preserve sua dignidade,
mesmo diante da morte.
Para os doentes fora dos recursos terapêuticos de cura, a evolução natural é a morte. No entanto,
nossa cultura ocidental, materialista, nega a existência da morte, ela é temida e lamentada e,
frequentemente, adiada, valendo-se de métodos artificiais para a manutenção das chamadas “funções
vitais”, quando, na realidade, o indivíduo já deixou de viver. A vida, ao contrário, é celebrada
(Figueiredo, 2006).
Somos a civilização cuja vaidade afastou a morte, afirma Karnal (2013), numa bela reflexão sobre
a vaidade humana. Numa sociedade onde a vida é tão exaltada, não há espaço para temas
relacionados à morte e o morrer, embora issoseja parte doprocesso de existir. Profissionais da saúde
são formados para salvar vidas e nas escolas de medicina e enfermagem nada se ensina sobre a
morte, observa Figueiredo (2006).
Para um profissional da saúde formado para curar doenças e salvar vidas, a morte de um paciente
pode ser interpretada como uma derrota profissional. Ao perder um paciente, inconscientemente, o
profissional da saúde se depara com a própria finitude (Bifulco&Iochida, 2009).
No entanto, a morte existe e,apesar de todo avanço tecnológico, o homem não se tornou imortal.
Todos são pacientes terminais, posto que a morte fará parte do cotidiano de cada um, em algum
momento. Entender a morte e os sentimentos que a norteiam é fundamental para compreender as
angústias daqueles que vivem seus momentos finais. Como auxiliá-los, sem que se compreenda isso?
Quando a cura se torna impossível, todavia, há de existir recursos disponíveis nos seres humanos para
realizar um trabalho, não de cura, porém, de cuidado, como observou Bifulco(2006).
Dizer que “não há mais nada o que fazer” é, no mínimo, uma frase infeliz, proferida por alguém
que, certamente, desconhece a dimensão humana e sua subjetividade. Tratar o ser humano como
“algo” que por “não ter mais conserto” deva ser “descartado”, desconsiderando as implicações que tal
condição impõe sobre a sua vida e a dos seus familiares é desumano. Aquele que não viverá por muito
mais tempo merece ser cuidado e ter uma “boa morte”, entendida aqui como uma morte digna,
assistida, ondeseus sintomas físicos sejam tratados e esse ser humano seja considerado em seus
aspectos sociais, psicológicos e espirituais.

A atuação da equipe multidisciplinar


Cuidados Paliativos compreendem alívio da dor e controle dos sintomas, que devem começar
desde o diagnóstico até a fase avançada da doença (Bifulco&Iochida, 2009). Para essas mesmas
autoras, atender às necessidades desses pacientes é humanizar o tratamento.
Mas como garantir humanização àquele ser fragilizado que se encontra ali numa situação limite, diante
do inexorável da vida, a morte? Um ser que, além das dores físicas e das fragilidades orgânicas, traz

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dores na alma, resultante das diversas experiências vividas e, até mesmo, daquelas que deixou de viver
e para as quais já não há mais tempo.
Muitos são os profissionais necessários aos cuidados com pacientes terminais, por esta razão, há
que se pensar na formação de uma equipe multidisciplinar. Bifulco e Iochida (2009) citam uma equipe
formada pelos seguintes profissionais: médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais,
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e o serviço administrativo (recepção, triagem, segurança e
transporte). No entanto, muitos outros profissionais podem fazer parte da equipe, inclusive religiosos,
uma vez que OMS prevê cuidado espiritual.
Em Aitken (2006) há referência ao trabalho de um capelão e sua equipe de capelania, a quem ela
denomina assistentes espirituais. Para a autora, o apoio espiritualbeneficiará o enfermo, bem como sua
família e a equipe de saúde, que conviverá com situações de estresse tanto pessoal, quantodecorrentes
das perdas de seus pacientes. Um atendimento espiritual diário e individual a todos, oportunidades de
reflexão sobre as questões existenciais, perdão, vida eterna, qualidade e utilidade de vida.
Vale ressaltar que a espiritualidade não necessariamente está vinculada a uma religião instituída,
portanto, caberá aos profissionais de Cuidados Paliativos atentarem para as demandas dos pacientes e
seus familiares, respeitando as diferenças de credo e possibilitando sua livre expressão, caso haja
desejo de assim procederem.
A família também terá papel importante, não apenas na questão da espiritualidade, mas em todas
as demais questões relacionadas aos pacientes e seu tratamento. Se nessas unidades de Cuidados
Paliativos, mais do que tratar de uma doença, trata-se da pessoa, como definiu Hennezel (2004), a
família também deve ser tratada, uma vez que ela costuma adoecer nesse processo.
A partir do diagnóstico de uma doença potencialmente mortal, paciente e família se deparam com
situações de rupturas, limitações e privações (Genezini, 2009), ademais, viver uma situação de luto
antecipado gera angústias e ambivalências de sentimentos, tanto do enfermo quanto da família.
Podemos dizer que a morte lança uma sombra assustadora sobre nós porque somos completamente
impotentes diante dela (Soavinsky, 2009).
É nesse cenário de dores e angústias que atua a equipe multidisciplinar. A essa equipe, formada
por profissionais das mais diversas especialidades, não basta apenas o conhecimento técnico ou
científico, é necessário sintonia, um ajudando o outro e todos ajudando os enfermos, seja ele o
paciente, o seu familiar ou ainda, o seu cuidador.
É necessário lembrar que os cuidados paliativos não ocorrem somente no ambiente hospitalar.
Muitas vezes pode ser possível, e até recomendável, que o paciente seja levado para o seu lar, não
obstante, familiares e cuidadores devem ser preparados para isso.
Em casa, o paciente poderá ter uma qualidade de vida melhor. Cercado de carinho e atenção, terá
tempo de se despedir dos seus queridos, longe da assepsia fria de um hospital, onde experimentaria a
solidão: um dos medos primitivos do ser humano (Soavinsky, 2009). Mas, mesmo em domicílio, o
paciente deverá estarvinculado a uma equipe multidisciplinar, que lhe dispensará atenção na medida de
suas necessidades.
Numa equipe multidisciplinar, o psicólogo poderá atuar como mediador tanto nas relações entre os
profissionais da equipe, quanto nas relações da equipe com os pacientes - relações estas que nem
sempre serão harmoniosas num primeiro momento, dada toda a carga emocional presente na revelação
de um diagnóstico trágico. A presença desse profissional poderá ser decisiva na resolução de conflitos
existenciaisque, possivelmente, eclodirão nessa situação de terminalidade imposta pela doença.

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A importância de uma equipe multidisciplinar apoia-se no desejo de que a pessoa tenha uma
morte natural e humanizada, sem que o paciente fique sozinho ou, ainda, ligado a uma parafernália de
equipamentos que atrapalhem a sua morte (Soavinsky, 2009).
A compreensão de que a vida é finita e que a morte é parte desse processo poderá ser uma
experiência libertadora, tanto para pacientes quanto para profissionais da saúde. A certeza da finitude
da vida talvez traga a consciência de que nem toda doença pode ser curada. Não obstante, todo ser
humano pode ser cuidado, até a morte, por outro ser humano.

Revelação do diagnóstico

As dificuldades que os profissionais encontram na hora de informar o diagnóstico da doença ao


paciente são muitas. O médico muitas vezes não sabe como proceder, fica preocupado e inseguro
perante o paciente. Certamente a pessoa encarregada de dar a notícia deverá ter muita cautela, pois
dependendo da forma como a notícia chegará a este paciente, poderá ter grandes alterações no
suposto tratamento.
Na maioria das vezes, o paciente finge não saber de sua doença, mas percebe, observando ao
seu redor, algo que não está normal, como: mudanças nas pessoas da família, no médico, pois todos à
sua volta começam a falar baixo, mudam a maneira de olhar para o doente, percebe que as pessoas
próximas estão muito emotivas, demonstrando certa piedade para com ele.
De acordo com Kübler-Ross, (1996), quando o médico esclarece sobre o diagnóstico da doença
terminal, o paciente se sente mais seguro, verá que não está sozinho, que seu médico está ali para
ajudá-lo, que vão juntos enfrentar o que vier pela frente, que não é um diagnóstico que vai travar o
tratamento que pretendem realizar com ele e com a família.
De acordo com Stedeford (1986), não devemos desacreditar na capacidade que o paciente
terminal tem em realizar e organizar tarefas importantes antes de partir. Deixar resolvidos assuntos
sobre finanças, preferência na hora do sepultamento, como se sentiria se soubesse que o seu cônjuge
se casaria novamente e como o seu parceiro sobreviverá após a sua morte são questões cruciais para
que o paciente sinta-se aliviado e menos culpado, tornando seu sofrimento menos angustiante.
No entanto, para que tal capacidade seja despertada, é necessário contar com o apoio de um
profissional da psicologia. É ele quem poderá usar de seus conhecimentos e habilidades profissionais e
intervir, junto ao paciente e sua família, buscando a reestruturação emocional, diante de uma situação
de perdas e luto iminente.

Estágios psicológicos diante da morte iminente

Segundo Kübler-Ross(1969), a negação em geral é o primeiro estágio de um processo psíquico


que ocorre em doentes terminais, uma forma de mecanismo de defesa temporário do ego contra a dor
psíquica diante da morte. A intensidade e duração dessa fase dependem de como o paciente e as
outras pessoas ao seu redor são capazes de lidar com a dor, pois esse período não dura por muito
tempo.
A raiva segue no segundo estágio (frustração), pelo motivo do ego não manter a negação e o
isolamento, os relacionamentos se tornam hostis pela consciência da morte iminente. Nesse estágio é
necessária a compreensão dos demais para apoio e auxílio na transição dessa fase, entendendo que a

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angústia do doente se converte em raiva, pois a pessoa se sente interrompida em suas atividades
cotidianas.
Devem-se evitar os julgamentos em relação ao comportamento do paciente, mesmo que isso
dificulte o tratamento, pois sempre há duas facetas, isto é, dois lados. Atrás de uma atitude negativa do
paciente, sempre há um motivo ou razão positiva que justifique o ato. Pelo simples fato do doente
expressar uma exteriorização de seus sentimentos, isso funciona como uma válvula de escape
emocional, produzindo uma sensação de alívio para o mesmo.
Havendo deixado de lado a Negação e o Isolamento, “percebendo” que a raiva também não
resolveu, a pessoa entra no terceiro estágio, “a barganha”. A maioria dessas barganhas é feita com
Deus e, normalmente, mantidas em segredo. A pessoa implora, geralmente a Deus, para que aceite sua
“oferta” em troca da vida, como por exemplo, sua promessa de uma vida dedicada ao dogma, aos
pobres, à caridade. Na realidade, a barganha é uma tentativa de adiamento. Nessa fase o paciente se
mantém sereno, reflexivo e dócil. A fase da depressão ocorre quando o doente toma consciência de seu
estado frágil e debilitado e já não tem mais como negar sua condição de doente terminal. Surge um
sentimento de grande perda, a dor e o sofrimento psíquico são quem vai assumindo o quadro clínico
mais típico com características depressivas.
Tristeza, choro e a sensação de inutilidade dominam o paciente e o ambiente que o envolve.
Quando há uma consciência e uma estabilidade emocional do doente, considera-se que ele está na
fase da aceitação. Paz e dignidade são priorizadas nesse estágio, pois o doente encara a realidade com
mais serenidade e enfrentamento, que tem como característica a alternância da postura de luta para o
luto em relação à doença.
As fases psicológicas na doença terminal não seguem uma ordem pré-estabelecida, considera-se
a individualidade subjetiva. É normal que o doente mantenha a esperança em qualquer das situações,
mesmo quando racionalmente ela não exista, ele a inventará.
Discutir sobre a morte é tão urgente quanto viver. Faz-se necessário criar espaços nos quais se
possa encontrar solidariedade e a ajuda para enfrentar a própria morte ou a de uma pessoa
significativa.

Despersonalização do paciente

No ambiente hospitalar o paciente torna-se a doença e deixa de ter seu próprio nome, passa a ser
alguém portador de uma determinada patologia, criando assim, o estigma do doente-paciente, até no
mesmo sentido de sua própria passividade perante novos fatos e perspectivas existenciais, o simples
fato da pessoa se tornar “hospitalizada” faz com que adquira os signos que irão enquadrá-la em uma
nova performance de existência.Tudo e qualquer procedimento ou intervenção para o seu tratamento
pode ser visto como invasivo e afrontando a sua dignidade (Trucharte, Knijnik,Sebastiani&Camon,
2010).
Hennezel (2004), relatando sua experiência com pacientes terminais, narrou que um deles se
queixou do atendimento em hospitais onde eram tratados pelo número do leito, seguido pelo nome da
sua patologia. Considerava insuportável quando médicos chegavam em seus quartos, discutindo sobre
o tratamento como se o paciente ali não estivesse. O que queriam saber, perguntavam às enfermeiras,
sem demonstrar um único gesto de humanidade, como por exemplo, sentar-se ao lado do paciente e
perguntar: “como você estava vivendo?”.

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Um paciente, ao chegar numa unidade de tratamentos paliativos, muito mais do que tratar uma
doença, deseja ser tratado como pessoa. Já não espera muito da medicina, espera muito mais das
pessoas e nos seus cuidados atenciosos (Hennezel, 2004).

O papel do psicólogo no atendimento a pacientes terminais

Diante de tantos fatores que envolvem a experiência de um paciente em quadro terminal, faz-se
necessária a atuação de um profissional junto à clínica médica, capaz de facilitar superação e alívio de
ordem psicológica e emocional. O trabalho de um psicólogo tornou-se imprescindível nos hospitais,
dada sua sensibilidade e capacidade em lidar com questões tão desconsideradas por outros
profissionais da saúde.
Para tanto, o psicólogo não pode,e nem conseguiria sozinho, desempenhar bem seu papel de
facilitador e promotor de saúde mental. Conforme salienta Londero (2006), o tratamento em Cuidados
Paliativos deve contar com uma equipe multiprofissional que trabalhará com o foco de promover um
equilíbrio geral para o doente, sem buscar pela cura, no entanto, oferecendo-lhe uma melhor qualidade
dessa vida.
Como integrante de uma equipe multiprofissional, o psicólogo terá diversas e minuciosas formas
de atuar, especialmente em casos de pacientes em situação de luto iminente. Seu trabalho deve levar
em conta vários aspectos, como: a instituição, a equipe multiprofissional, o paciente e sua doença, bem
como a família deste. Esses aspectos nortearão e delimitarão suas ações enquanto profissional.
Segundo Simonetti (2011), a psicologia hospitalar é o campo de atendimento e tratamento dos
aspectos psicológicos em torno do adoecimento, onde seu objetivo é a subjetividade. Ele explica que
diante de todas as implicações oriundas do estado patológico de um paciente, sua subjetividade é
sacudida. É neste momento que o psicólogo hospitalar entra em cena oferecendo algo que os outros
profissionais da saúde não puderam dar: atenção e escuta a suas aflições. A psicologia se interessa em
dar voz à subjetividade do paciente, restituindo-lhe o lugar de sujeito que a medicina lhe afasta (Moretto,
2001,citado porSimonetti, 2011).
O campo de trabalho do psicólogo são as palavras e a observação. Ele fala, escuta e observa.
Escuta ainda mais do que fala. Não é algo tão simples, pois o ato de escutar, falar e também captar
signos com valor de palavras pode levar o paciente a mudanças em seu quadro de bem estar. Como
assevera Simonetti (2011), a psicologia hospitalar trata do adoecimento no registro do simbólico, pois a
medicina já trata no registro do real.
No que concerne à liberdade e ao dever de exercer seu papel frente ao doente e as fronteiras
estabelecidas pelas instituições de saúde, o psicólogo, ao entrar em contato com o paciente, há de levar
em consideração duas situações bem colocadas por Simonetti (2011): se houve uma solicitação de
atendimento ou uma demanda de atendimento. Uma solicitação é feita por qualquer pessoa (inclusive o
paciente) diante do quadro apresentado pelo paciente. Já a demanda se trata mais de um estado de
incômodo ou questionamento acerca de como está vivenciando sua situação. Esta demanda só pode
partir do doente, como questionamento acerca de suas atitudes. Sendo assim, o essencial é que haja
demanda para que o tratamento flua, mas isso não quer dizer que o psicólogo não possa iniciar o
trabalho apenas com a solicitação de atendimento, pois com o tempo poderá surgir a demanda.
O primeiro dos trabalhos do psicólogo no atendimento hospitalar é entender que é necessário uma
boa identificação entre ele e seus pacientes. Não é demais conferir bem o nome com o número do leito

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no início da consulta e depois buscar mais dados que o levem a conhecer melhor o paciente. Cabe ao
psicólogo também apresentar-se ao doente a cada novo dia, a fim de evitar confusões.
Quanto ao agir do psicólogo no setting terapêutico, Simonetti (2011) salienta que como a
estratégia terapêutica da psicologia hospitalar é levar o paciente rumo à palavra, este profissional deve
buscar seguir algumas estratégias e técnicas, propiciadas por um jeito de pensar que orienta o agir
terapêutico, apontando a direção do tratamento. Essas estratégias e técnicas não devem ser
compreendidas como uma receita rígida, mas que devem ser adequadas a cada situação clínica.
Com o paciente fora de recursos terapêuticos de cura, que é o caso que estamos analisando, o
que deve orientar o trabalho do psicólogo é o desejo do paciente e não a possibilidade de vida. Tratar
do desejo, e não do prognóstico.
A medicina paliativa diz que há muito o que fazer pelo paciente, quando já não há mais nada a
fazer pela cura. Aqui a participação do psicólogo hospitalar é imprescindível. Esse profissional deve
ajudar o paciente na busca de mecanismos de enfrentamento que o ajudarão a manter sua autoestima
e estabilidade diante do quadro patológico, jamais se esquecendo de que religião e espiritualidade são
aspectos importantes para o paciente e seus familiares (Simonetti, 2011).
Não raro, há casos em que o psicólogo atua no atendimento a muitos profissionais da saúde que
lidam com a medicina paliativa. Por isso faz-se necessário que o terapeuta busque conhecer sobre as
tarefas desempenhadas por esses profissionais para o trato com o paciente terminal.
Tanto quanto para o paciente terminal, é importante direcionar, como num trabalho conjunto, o
trabalho terapêutico para a família desse paciente. Como afirma Simonetti (2011, p. 141):
Quando o paciente entra na fase terminal, a família inteira se torna o foco mais adequado para os
cuidados dos profissionais de saúde, seja porque as dificuldades psicológicas surgirão não apenas no
paciente, mas em vários membros da família, seja porque é da família que brotarão as forças
necessárias à superação dessa situação.
Tanto antes como no momento da morte do paciente o trabalho do psicólogo é voltado para ele e
também para a família, porém, quando o paciente morre, os trabalhos serão voltados para a família, em
prol do restabelecimento do equilíbrio familiar, agora sem um integrante.
Com vista nos vários momentos em que tanto o paciente terminal quanto sua família vivenciam
um quadro terminal é que apresentaremos sucintamente algumas práticas do trabalho de intervenção
do psicólogo juntamente com a família em algumas instâncias.

Fases de intervenção

Como retratam Oliveira,Luginger, Bernado e Brito (2004), é importante ter em mente organizar o
processo de intervenção em três momentos: antes, no momento e após a morte do paciente.
Quanto à intervenção antes da morte, é relevante comunicar e informar ao paciente sobre sua
doença e atuação de medicações e tratamento, para que transtornos físicos e emocionais sejam
evitados. É desejável que o terapeuta tenha conhecimento da forma de comunicabilidade da família
para com o paciente em relação ao seu estado e sua doença.
O terapeuta deve ainda instruir a família a ser moderada ao expressar seus conteúdos, dentro do
padrão de recepção usual da família. O terapeuta também deve trabalhar para estimular a empatia
entre a família para que a expressão de sentimentos e pensamentos possa possibilitar a resolução de

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problemas não resolvidos, bem como uma despedida mais confortante do paciente (Oliveira et al.,
2004).
Faz-se necessária a antecipação de sofrimentos e negócios não terminados, nestecasoo
profissional psicólogo deve encorajar o processo de sofrimento antecipatório no intuito de promover
respostas que possam amenizá-lo.
Destaca-se ainda a intervenção da terapia clínica e da educação clínica e apoio – é preciso que o
profissional tenha conhecimento de processo de sofrimento antecipatório, experiência da morte de um
familiar, teoria dos sistemas relativos à família, reações das crianças à morte e problemas da doença
em geral e em particular neste familiar.
Todas essas ações, entre muitas outras, visam proporcionar saúde mental para os envolvidos
neste processo que demarca tanto desgaste, dor e sofrimento.
Na intervenção no momento da morte, é necessário considerar que o contexto de um paciente
com doença terminal traz, em certa altura, um cansaço e desgaste muito acentuado, tanto para os
familiares quanto para o próprio paciente. A proximidade da morte é um momento que envolve muito
receio de ambas as partes. Nesta hora, o terapeuta terá de trabalhar em prol de ajudar a família,
promovendo discussões sobre os desejos do paciente para depois de sua morte.
O psicólogo também desempenhará a função de orientar a família sobre a importância de sua
presença nos momentos finais do paciente, mesmo em caso de coma. Como ressalvam
Oliveira etal. (2004), pode ser relevante para alguns familiares estarem presentes num momento tão
crucial, dada a possibilidade de sentimentos de culpa. É importante também dar liberdade para a família
estar sozinha junto ao corpo e poder tocar, falar e sofrer a morte do familiar querido, pois isso
proporciona um sofrimento adequado e sadio, sem a perspectiva de transtornos psicológicos futuros. É
interessante que o psicólogo esteja com a família nesses momentos difíceis, assistindo a família no ato
da notificação da morte e oferecendo auxílio nas questões funerais e cerimoniais. Como salientam
Oliveira et al. (2004), as ações do psicólogo serão para viabilizar a expressão de sentimentos e a
vivência perante o luto.
Para os familiares do paciente que acaba de falecer, os momentos que sucedem ao período de
sepultamento são tomados geralmente por sentimentos de dor, perda, solidão, culpa, entre outros. Este
é o momento, como afirmam Oliveira et al. (2004), em que o profissional deve comparecer oferecendo
apoio e trabalhando para promoção de saúde mental.
Golderf(1932, citado porOliveira et al., 2004) coloca que são tarefas imprescindíveis à família
permitir o luto, abdicar da memória do falecido, reorganizar papéis intra e interfamiliares. Para o
cumprimento dessas tarefas designadas à família, é de suma importância o acompanhamento e
intervenção do terapeuta, que fornecerá orientações em cada momento. A família encontrará
dificuldades diante da tarefa de realinhamento estrutural familiar e recolocação de papéis, por isso é
necessário o trabalho do psicólogo, para ajudá-la na busca pelo equilíbrio.

O local de atendimento e horário de atendimento

Um psicólogo não precisa de um ambiente determinado e separado para operar sua profissão
dentro de um ambiente hospitalar, até mesmo porque se trata de um tipo de ambiente que dificilmente
favorece a atividade psicoterapêutica em termos de espaço físico. Como ressalva Moretto (2001,citado
por Simonetti, 2011), o settingnão pode ser tratado como um espaço real, porque ele é virtual e

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psíquico, sendo ainda um artifício, uma construção para que a análise se dê. O que mais importa é que
o psicólogo esteja disposto a prestar atendimento àquele que necessita e queira falar.
Neste espaço, por vezes, haverá necessidade de se atender a um paciente em horários
tumultuados do dia, o ideal é que o psicólogo opte pelo atendimento no final da tarde. Isso porque,
como diz Simonetti (2011), na rotina hospitalar é o momento mais tranquilo do dia.Não há como se
delimitar um tempo para cada atendimento psicológico hospitalar. Cada encontro acontece em tempo
irregular. Isso porque existem variáveis que podem interferir no momento da consulta como, por
exemplo, as condições clínicas do paciente e também procedimentos médicos que são realizados
durante o encontro (Simonetti, 2011).

CONCLUSÃO
O paciente que se encontra fora dos recursos terapêuticos de cura tem diante de si uma situação
de medo, angústia e muita insegurança. Há uma nova situação imposta, com a qual terá que lidar, a
despeito de tudo.
Nos achados desta pesquisa desenvolvida em torno de um assunto tão relevante, que permeia a
vida de todos, uma vez que o morrer faz parte do processo da existência, constatamos que o psicólogo
desempenha papel fundamental no amparo àqueles que se encontram numa situação de perda
importante em suas vidas, bem como vivem a expectativa de um luto próximo e inevitável.
Ao psicólogo cabem vários papéis que serão importantes na vida do paciente, da sua família, bem
como da equipe na qual trabalha. Utilizando-se dos recursos mais importante de que dispõe - a escuta,
ele poderá dar vez e voz aos pacientes e seus familiares fazendo com que se sintam amparados e
compreendidos. Agindo como mediador entre a família e o paciente, o psicólogo poderá orientá-los na
reorganização de suas vidas, que apesar da proximidade com a morte, poderá ser desfrutada revendo
amigos, reatando laços esquecidos, perdoando e pedindo perdão. Isso pode ser libertador, tanto para
quem vai partir, quanto para quem ainda vai ficar.
O psicólogo é o profissional mais indicado para captar desejos, inibições, ouvir a voz da alma,
mesmo quando a pessoa está em silêncio. Muitas vezes é preciso decifrar perguntas e respostas do
paciente à família ou a qualquer outra pessoa, inclusive a membros da equipe.
Orientar a família a respeito dos altos e baixos que serão vividos pelo paciente, bem como
oferecer a ela um suporte necessário para que se fortaleça e possa manter-se ao lado do seu ente
querido facilitará na conciliação de sentimentos intensos e comuns nesse tipo de situação.
A certeza de estar amparado, durante suas crises de angústias, bem como o fato de contar com
alguém que, estando ao seu lado, o escuta e compreende, não emitindo nenhum juízo de valor, mas
que, ao contrário disso, considera importante todas as suas queixas e dores, e ainda consegue fazer
com que a pessoa dê a tudo aquilo que expressa um significado para a sua existência, certamente
contribui para que, uma vez tratadas suas demandas, ela consiga, com mais tranquilidade, aceitar a
morte. Podendo, a partir disso, debater e discutir sobre o que gostaria que fosse feito após a sua
partida, em relação à sua família e também sobre o que gostaria de decidir sobre suas preferências
sobre tipo e local para sua morte e sepultamento. Discutir sobre a morte nos conduz ao valor da vida,
ainda que seja, apenas, a um pedacinho dela.
Concluímos que este é o papel do psicólogo, fazer com que alguém que, num momento de perda
e dores intensas, imagina que já não encontrará razões para existir, encontre essas razões e as
encontre dentro de si mesmo, expressando as dores do seu corpo e de sua alma, reatando laços e

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desfazendo nós. Sentindo que, para além de um corpo doente e que já não responde aos tratamentos,
há um ser que ainda existe em sua subjetividade e continuará existindo no coração daqueles que o
amam. Morrerá em paz aquele que conseguiu se reconciliar com a vida.

REFERÊNCIAS

Aitken, E. V. P. (2006). Entre a vida e a morte. In: Figueiredo, M. T. A. (Org.). Coletânea de textos
sobre cuidados paliativos e tanatologia. São Paulo, p.21-23. Acesso em: 12 out. 2012:
http://www.ufpel.tche. br/medicina/bioetica/cuidadospaliativosetanatologia.
Bifulco, V. A.; Iochida, L. C. (2009). A formação na graduação dos profissionais de saúde e a
educação para o cuidado de pacientes fora de recursos terapêuticos de cura. Revista Brasileira de
Educação Médica (online). São Paulo, v. 33, n. 1, p. 92-200. Acesso em 24 out. 2012:
Kovács, M. J. (2008). Desenvolvimento da Tanatologia: estudos sobre a morte e o morrer. Paidéia,
Ribeirão Preto, v.18, n. 41, set/dez/2008. Acesso em 26 nov. 2012: http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0103863X2008000300004&Ing=en&nrm=iso.
Kübler-Ross, E. (1985). Sobre a morte e o morrer. (2a ed.) São Paulo. Martins Fontes.

7. A COMUNICAÇÃO EM CUIDADOS PALIATIVOS: UMA ESTRATÉGIA FUNDAMENTAL

Helena Salazar e José Duarte

J. de 62 anos tem diagnóstico de neoplasia do pâncreas, uma lesão oncológica grave, com
múltiplas metástases. Está deitado em decúbito lateral, ictericiado e emagrecido. Responde, sem nunca
abrir os olhos, a um cumprimento inicial com intenção de conhecer a sua condição, dizendo: “Sou só
uma criança... de 62 anos...”
Não responderá a mais nenhuma tentativa de comunicação. A esposa, frágil e numa crise
emocional manifesta, pede ao técnico que se sente com ela ao lado da cama e deixa fluir a expressão
sofrida dos seus sentimentos recentes.
Caso “Não te autorizo a que fales de assuntos particulares com outras pessoas...”, disse J., sem
nunca abrir os olhos.

1.1 Aspetos Introdutórios

A comunicação é um ato de grande complexidade. Entre os humanos, é a qualidade da


comunicação que, em grande medida, determina o desenvolvimento das sociedades, o apuramento da
sua ciência, o seu grau de civilidade ou, em circunstâncias mais pessimistas, a tensão, a estagnação ou
o retrocesso.
Intervenção Psicológica em Cuidados Paliativos Há um compósito intrincado de elementos
informativos num qualquer ato de comunicação e a sua legibilidade depende de um grande número de
fatores. Sabe-se que o entendimento entre as pessoas é muito interferido pelas características dos
intervenientes.

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O que ouvimos do outro atravessa em nós todo um sistema pessoal de representações,
interpretações e preconceitos que operam transformações. As alterações decorrentes deste
“atravessamento” e processamento tornam a mensagem que ouvimos como mais nossa, do que
propriamente de quem no-la transmitiu.
São muito frequentes, sabe-se, os erros de interpretação ou os mal-entendidos. Vejamos alguns
entraves, dos mais óbvios, à boa comunicação. A condição sensorial dos intervenientes, por exemplo:
ƒ. Se ouvem e veem bem;
ƒ. A qualidade do pensamento, que se relaciona com o esclarecimento que temos acerca do que
queremos transmitir por palavras e gestos;
ƒ. A quantidade de palavras que conhecemos e que podemos pôr ao serviço na transmissão da
nossa ideia;
ƒ. A capacidade de entoar adequadamente as frases, reforçando ou amenizando o seu sentido;
ƒ. A cadência do discurso e a sua clareza, que devem estar num equilíbrio tal que facilite ao outro
a compreensão;
ƒ. As expressões faciais ou corporais, que devem estar consonantes com o que é dito;
ƒ. O volume da voz, que deve estar ajustado ao “ouvir” do interlocutor;
ƒ. O tipo de discurso, que deve estar adequado à compreensão do ouvinte, conforme a sua idade,
condição social, escolaridade, cultura ou estado de saúde;
ƒ. Ser capaz de comunicar motivando o ouvinte para a importância do que está a ser dito;
ƒ. Falar de modo a poder suscitar o diálogo, criando as condições de desejabilidade para uma
necessária interação;
ƒ. Modular a emotividade, conferindo à comunicação a importância que se pretende, ou modular
ajustando a comunicação às possibilidades de acomodação do recetor.
Muito mais se poderá dizer acerca do ato comum que é o da comunicação no quotidiano.

A comunicação em cuidados paliativos: uma estratégia fundamental

Há ainda outros registos próprios da comunicação – o discurso formal, por exemplo, que se opõe
ao registo que pretendemos aqui estudar, e pode constituir, pelo contrário, uma ajuda à compreensão
do nosso assunto. Neste modo discursivo, público, estarão apostos todos os preceitos formais de uma
comunicação pública, com afastamento
poucos gestos, expressão corporal ou facial reduzida, emotividade contida e vocalizações pouco
moduladas.
Esta comunicabilidade é adequada a públicos ou a momentos formais e não perpassam na
mensagem aspetos relativos ao comunicador. No ato, não relevam características ou sentimentos, nem
se ensaiam movimentos empáticos dirigidos a alguém em particular. Nesta comunicação difusa e
ampla, o comunicador não estabelece ligação com outra pessoa em particular, nem recebe do seu
auditório sinais finos que permitam ajustamentos dedicados ou de grande sensibilidade. Não há
proximidade, nem intimidade, nem a possibilidade de contacto físico, o comunicador não tem a noção
exata do impacto das suas palavras numa dada pessoa. Será um discurso genérico,
como uma média do entendível, capaz de ser compreendido por todos aqueles a quem ele se
dirige.

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1.2 Aspetos de Um Ato de Comunicação Especial

A vida das pessoas é pontuada por recordações indeléveis em que lhes foram comunicadas
notícias emocionalmente fortes. Recordamos sempre muitos elementos episódicos associados à notícia
de uma gravidez ou do nascimento de um filho, do início de uma relação muito desejada ou à
comunicação do desaparecimento de alguém com grande significado pessoal. Nestes momentos de
elevado gradiente emocional, o ato de comunicar torna-se um procedimento de grande delicadeza.
Todas as palavras são tomadas gravemente no sentido em que são compreendidas e ecoam sempre
nos intervenientes de modo especial. Geram memórias de longo prazo que podem
ser condicionadoras do funcionamento psicológico do indivíduo, podendo até determinar um estilo
de reação aos acontecimentos no futuro. As palavras geram estados psicológicos (Goleman, 2015).
Nos momentos de grande tensão emocional, os potenciais de leitura da mensagem estão
aumentados, estão ativadas todas as capacidades de detetar informação, estabelecer comparação
diferencial entre o que é dito e o que se expressa no não verbal, Intervenção Psicológica em Cuidados
Paliativos ou a possibilidade de inferir o particular a partir de uma apresentação de elementos genérica,
desorganizada ou pouco convincente.
Estão em campo competências filogenéticas próprias de estruturas nervosas ancestrais, que
permitem a interpretação das expressões e sinais, e reagem a gestos e atitudes pertencentes a um
modo de funcionamento mais primitivo. Também se consideram as aquisições nervosas mais modernas,
que possibilitam transmitir a ideia, através da composição das palavras adequadas, permitindo emitir
uma comunicação progressiva, sensível ao contexto, adequada à diversidade dos interlocutores e à
peculiaridade do caso.
Uma grande parte da comunicação feita em momentos de tensão não é assistida por processos
conscientes.

1.3 Comunicação em Cuidados Paliativos

“Vou morrer, não vou?”, pergunta subitamente L., durante o banho, a um assistente operacional.
O medo é sempre a entidade de fundo, presente em muitos dos momentos de comunicação com
a pessoa doente que chega para cuidados paliativos. Especialmente nas primeiras horas, no primeiro
contacto com as equipas, a ansiedade e a incerteza perturbam muito a qualidade de uma abordagem
explicativa ou clarificadora. A situação vivida em Cuidados Paliativos, seja em contexto de internamento
ou no domicílio, é ansiogénica e está associada a representações muito ligadas ao sofrimento, à
doença e à morte.
Muitas vezes, a pessoa chega ao contacto com a equipa depois de um longo caminho de
sofrimento, com um historial exaustivo de exames, de instrumentações invasivas, de técnicas
terapêuticas estranhas, sendo o seu corpo agora um desconhecido que já não controla.
Vêm com défices sérios no controlo de sintomas, emagrecidos, castigados pelas constantes más
notícias ou pelos sinais, atormentados por maus pressentimentos que não compreendem muito bem.

Caso Clínico
8. A PSICOLOGIA EM CUIDADOS PALIATIVOS PEDIÁTRICOS

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Maria de Jesus de Moura

A B. é uma menina de 6 anos, filha de um casal jovem: mãe de 34 anos, médica; pai de 34 anos,
engenheiro informático; e irmão de 3 anos de idade, a frequentar o jardim de infância. Trata-se de uma
família com bom suporte social e familiar. Em maio de 2013 foi diagnosticado à B. um tumor do sistema
nervoso central – glioblastoma. Pela gravidade da doença e pelo prognóstico reservado (esperança de
vida entre 6 meses e 12 meses), a família foi referenciada à consulta de Psicologia.
Numa fase inicial, a intervenção psicológica centrou-se junto dos pais e da criança, com o objetivo
de promover estratégias de adaptação à doença. A B. iniciou quimioterapia e radioterapia. No início de
2014 apresentou quadro de hidrocefalia e foi submetida a neurocirurgia. Na sequência da necessidade
de intervenção cirúrgica de urgência, retomou a consulta de Psicologia com o objetivo de a ajudar a
lidar com o novo acontecimento de vida.
Ao longo do processo da doença e ciente da gravidade da mesma, a família optou por suspender
a atividade laboral para acompanhar a B. nesta etapa de vida.
A B. é uma criança alegre, muito comunicativa e demonstra muito interesse em realizar diversos
trabalhos manuais. Os pais e outros elementos da família com um papel ativo no processo de
adaptação à doença (avó, tios e primos) fomentam e participam nestas tarefas.
Ainda em 2014 há agravamento da doença e a B. inicia um novo tratamento de quimioterapia e
radioterapia. Nesta etapa, a família está centrada na qualidade de vida da B., bem como na pesquisa e
discussão do caso sobre as medidas terapêuticas que possam ser mais eficazes para aumentar a
esperança de vida. No início de 2015, há progressão da doença com metastização. A família recorre de
novo à consulta de Psicologia para lidar com esta nova etapa, bem como para iniciar a intervenção com
o irmão que, nesta altura, se encontra com 5 anos e necessita de
compreender melhor o que está a ocorrer com a doença da irmã. A família continua centrada na
qualidade de vida da B., planeia e executa passeios e inúmeras atividades.
Em meados de outubro, a B. apresenta muita sintomatologia e alterações motoras e inicia controlo
de sintomas. A família mantém o apoio da equipa do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa e
recebe também apoio domiciliário pela equipa de Cuidados Paliativos do Hospital Garcia de Orta. No
final de novembro, já com 8 anos, B. faleceu, em casa, tal como a família tinha desejado. A família
manteve acompanhamento psicológico na fase terminal da B.. A intervenção teve como objetivo
primordial ajudar o irmão a lidar com a despedida.
Na atualidade, pais e irmão encontram-se a ser acompanhados em terapia de luto.
Na última década, a Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica (SIOP) dedicou-se a
elaborar linhas orientadoras de intervenção psicossocial em Oncologia Pediátrica.
As linhas orientadoras têm como objetivo definir um conjunto de pontosrelevantes para a
intervenção nas diferentes áreas da Oncologia Pediátrica.
A análise da abordagem aos pais, às crianças e adolescentes tem como objetivo conciliar as
linhas orientadoras da SIOP com os eixos de intervenção em CuidadosPaliativos: Controlo de Sintomas,
Comunicação, Família e Equipe.
A reflexão elaborada neste capítulo integra uma análise sistematizada sobre a intervenção
psicossocial em crianças com doença crónica complexa, bem como a
A Psicologia em Cuidados Paliativos Pediátricos experiência clínica junto de famílias de crianças
em Cuidados Paliativos Pediátricos.

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Pretende-se, assim, que este capítulo possa contribuir para uma melhor intervenção psicossocial
em Cuidados Paliativos Pediátricos.
Para intervir nesta área, é necessário compreender a essência deste tipo de intervenções.
Tal como nos modelos de intervenção da Psicologia da Saúde, este tem como pressuposto a
adaptação do sujeito e da família à doença. Em Cuidados Paliativos Pediátricos, as necessidades de
adaptação da criança e família à doença são inúmeras, desde o momento de diagnóstico à fase
terminal. Neste sentido, os tipos de intervenção têm objetivos distintos em função: da fase de
desenvolvimento em que a criança se encontra (primeira infância; idade pré-escolar; idade escolar e
adolescência), do tipo de doença e da fase de evolução da doença (fase aguda; fase crónica e fase
terminal)1, bem como o modo como a criança e a família estão a elaborar as perdas nas diferentes
etapas da doença (luto antecipatório e o processo de luto nos diversos elementos da família).
A intervenção psicológica, neste contexto, necessita de ser mais abrangente e preocupar-se com
os cuidados psicossociais que visam os cuidados centrados no bem-estar psicológico e emocional do
paciente e da família. A intervenção psicossocial dirige-se à criança/adolescente, à família e à
comunidade e tem como objetivo dar resposta às necessidades relacionais da criança e família;
compreender o seu funcionamento social e a relação com a rede social de apoio; promover a adaptação
dos mesmos à doença crónica complexa nas fases aguda, crónica e terminal; facilitar a comunicação
entre a equipa de saúde e a família, ajudar a criança e a família a partilharem emoções, bem como
promover a comunicação entre a família, com especial atenção para a comunicação do casal e a
comunicação das figuras parentais com os filhos menores.
A evolução da doença é constituída por diversas fases, cada uma é caracterizada por inúmeros
desafios e tarefas de adaptação específicas. A terminologia – fase aguda, crónica e terminal – é
frequentemente utilizada em contextos de saúde. Nesta análise sobre intervenção psicológica em
Cuidados Paliativos Pediátricos, segue-se o modelo de Paul Alexander que descreve as tarefas de vida
perante a doença crónica complexa, descrito por Doka, em Children Mourning, Mourning Children.

1 Adaptação à Doença na Fase Aguda

Para qualquer família, receber um diagnóstico de doença crónica complexa é um acontecimento


de vida traumático. No momento do diagnóstico, a família encontra- -se em choque, decorrente da
elevada intensidade emocional que é vivida num curto espaço de tempo, o que perturba a emergência
de recursos adaptativos que, normalmente, surgem no quotidiano sempre que a pessoa lida com
situações de sofrimento.
A emergência da resposta adaptativa só surge quando o indivíduo consegue integrar a vivência
deste novo acontecimento de vida. No entanto, nos primeiros dias após ter recebido a confirmação do
diagnóstico, a família necessita de informação clara e concisa que tem como objetivo dar resposta à
necessidade que esta tem de proteção e segurança. Neste sentido, é importante definir linhas
orientadoras para intervir junto da criança/adolescente e das famílias.

1.2 Intervenção junto das Crianças

Numa primeira fase, é importante estabelecer a relacao com a crianca e a familia e ajudá-la a
compreender a doenca, assim como a lidar com a doenca e os tratamentos.

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Para tal, é importante identificar a etapa de desenvolvimento em que a criança se encontra, dado
que a sua capacidade para compreender a doença depende do seu desenvolvimento cognitivo, da
maturidade e da sua experiência de vida. O desenvolvimento cognitivo da criança determina a
construção dos fenómenos de saúde, doença e morte, e este obedece aos mesmos princípios de
desenvolvimento da compreensão dos fenómenos do mundo físico e social, definidos por Piaget.
A compreensão da doença e o impacto da mesma no dia a dia da criança é algo que deve ser
discutido com esta, para facilitar o seu processo de adesao aos tratamentos.
Mesmo em crianças mais novas, é importante que elas compreendam que estão juntas com a
equipa e com a família a combater a doença, e o melhor modo de o fazer é através da sua colaboração
nos procedimentos terapêuticos. Assim, a criança sente-se incluída no processo de tratamento.
Um outro foco de intervenção incide sobre a ventilacao de sentimentos e a fomentacao da
autorregulacao emocional.

9. ESPIRITUALIDADE EM CUIDADOS PALIATIVOS

Luis Alberto Saporetti


Introdução

“Só existem duas formas de viver a vida. A primeira é pensandoque o milagre não existe; a outra
é pensando que tudo é milagre. Albert Einstein

O tema espiritualidade começou a receber atenção da medicina na última década.


Ao revisar a literatura percebemos o grande aumento do número de publicações a respeito do
tema, a maior parte dessas em revistas especializadas em Cuidados Paliativos1. Não há mais dúvida
sobre a importância dos aspectos religiosos e espirituais no cuidado dos pacientes, embora ainda haja
muitos questionamentos a respeito de como acessar a dimensão espiritual do ser humano e no que
consiste o bom “cuidado espiritual”1, 2. Noventa e cinco por cento dos americanos crêem em alguma
força superior3, 4 e 93% gostariam que seus médicos abordassem essas questões se ficassem
gravemente enfermos5, 6. Estudos com pacientes internados demonstram que 77% gostariam que seus
valores espirituais fossem considerados pelos seus médicos e 48% gostariam, inclusive, que seus
médicos rezassem com eles.
Contraditoriamente, a maioria dos pacientes disse que jamais seus médicos abordaram o tema7.
Parece que o envolvimento religioso positivo e espiritual está associado a uma vida mais longa e
saudável8 e a um sistema imunológico mais eficaz. Outros estudos também demonstram que o
estresse religioso negativo pode piorar estado de saúde10. A atenção aos aspectos espirituais em
Cuidados Paliativos tem tanta relevância que alguns autores ousam colocá-la como o maior indicador
de boa assistência ao paciente no fim da vida.
Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), os Cuidados Paliativos são uma
abordagem que visa melhorar a qualidade de vida dos pacientes e familiares que enfrentam doenças
incuráveis e que ameaçam à vida, através da prevenção e do alívio do sofrimento físico, psicológico e
espiritual12. Muito tem se falado das questões físicas, familiares e psicológicas dos pacientes nessa
fase. Avançamos muito no combate aos sintomas desagradáveis, na avaliação criteriosa do prognóstico

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e nas questões éticas do fim da vida. Contudo, permanecemos atolados na questão mais importante:
Qual o sentido da vida?
A resposta a essa grande pergunta, que poetas, cientistas, profetas e avatares buscam desde o
início dos tempos, permanece ainda no mais profundo abismo da consciência humana e talvez por
muito tempo, nem mesmo a ciência ou a religião poderãodesvendar.
A espiritualidade busca a resposta para essa pergunta. Mais que uma simples resposta ela
procura a experiência interior, capaz de revelar a resposta: transcendência.

Conceituando a Espiritualidade

“O que se pretende com a experiência religiosa final é uma intensa percepção do mistério.”
Joseph Campbell

Espírito, do latim “spiritus”, significa sopro e se refere a algo que dá ao corpo sua força vital, e
demonstra a relação do plano material com a dimensão imaterial, oculta, divina ou sobrenatural que
anima a matéria13. O espírito conecta o ser humano à sua dimensão divina ou transcendente.
Espiritualidade denomina uma qualidade do indivíduo cuja vida interior é orientada para Deus, o
sobrenatural ou o sagrado. Muito embora alguns autores vejam a distinção entre religiosidade e
espiritualidade como desnecessária15, a espiritualidade move-se para além da ciência e da religião
instituída.Ela é considerada mais primordial, mais pura e mais diretamente relacionada com a alma em
sua relação com o divino. Já a religião é uma forma secundária, dogmática e freqüentemente distorcida
por forças socioeconômicas, culturais e políticas
Assim, poderemos notar que alguns indivíduos são portadores de um alto grau
deespiritualidade sem pertencerem a uma religião instituída. Outros, ao contrário, terão sua
espiritualidade fundamentada na religião.
A percepção espiritual da realidade dá ao individuo uma dimensão mais ampla de significados
para os eventos da vida diária e reorganiza essas experiências. Segundo Victor Frankl e Graf
Dürckheim16, a percepção de sentido/significado transcendente na experiência cotidiana é a força
motriz da existência humana. Tal percepção pode ser atingida através de rituais religiosos, prece,
meditação, arte, contato com a natureza, sofrimento e até mesmo de relacionamento amoroso.

Transcendência, Física Quântica e Neurociências

“ É quase impossível para um médico ter uma verdadeira experiência religiosa, há muito orgulho
no seu intelecto.” George Eliot Até bem pouco tempo atrás não havia nenhuma ponte que ligasse as
questões espirituais à ciência moderna, em especial, à medicina. Os fenômenos religiosos eram
geralmente vistos como distúrbios psiquiátricos e seus efeitos mal interpretados. Teriam as percepções
“espirituais” ou “transcendentes” alguma explicação científica razoável?
Haveria alguma conexão neurobiológica entre os diferentes cultos e êxtases religiosos Pesquisas
de Andrew Newberg e Eugene D’Aquili da Universidade da Pensilvânia mostram que o metabolismo
cerebral durante diferentes formas de êxtases religiosos são semelhantes. Através do SPECT (Single
Photon Emission Computed Tomography),

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um tipo de tomografia que mede o fluxo sangüíneo no cérebro, os autores avaliaram monges
budistas e freiras franciscanas durante o ápice de sua conexão com o transcendente.
Espantosamente, os padrões cerebrais foram idênticos, assim como as descrições desse estado
de união transcendente. Nota-se uma diminuição do fluxo cerebral nas áreas que controlam a
orientação de tempo e espaço, a qual é responsável pela sensação de dissolução do eu e
atemporalidade. Os relatos das pessoas estudadas se assemelham àqueles encontrados na literatura
mística e religiosa, sejam eles chamados de Tao, Unio Mystica, Deus, Olorum, Samadhi ou Nirvana.
Para denominar esse estado sem conotações religiosas os autores o chamaram de Absolute Unitary
Being (Ser Unitário e Absoluto).
Por que teria o cérebro a capacidade de gerar estados transcendentes? Estaria ele utilizando um
artifício adaptativo para melhorar a sobrevivência do homem ou estaria realmente percebendo uma
realidade última?
Através de uma extensa revisão bibliográfica, os autores verificaram a importância desse estado
transcendente como gerador de união entre indivíduos de uma mesma etnia ou grupo. Notaram também
que praticantes das diferentes religiões apresentam saúde mental e física melhor do que a população
geral. Tais fatos sinalizam uma grande ferramenta evolutiva para a sobrevivência da espécie. Mas seria
essa percepção apenas uma ferramenta evolutiva? Ou estaria nosso cérebro percebendo uma
realidade transcendente, das quais todas as outras percepções seriam originárias?
Paralelamente a isso a física moderna vem demonstrando o estranho comportamento de
partículas subatômicas que reforçam a possibilidade de uma realidade transcendente.
Em “O Universo Auto Consciente”18 Amit Goswani, professor titular de física da Universidade de
Oregon, propõe uma ponte entre a física quântica e a espiritualidade. O comportamento de um elétron é
definido pela presença de um observador. Antes de ser observado o elétron comporta-se como uma
onda e pode estar simultaneamente em diferentes posições, tudo é probabilidade. Ao se definir um
observador externo seu comportamento é de partícula e passa a ser realidade. O comportamento do
elétron, enquanto onda, gera uma seqüência de possibilidades, a qual os físicos chamam de onda de
probabilidades. A onda de probabilidade colapsa em partícula pela simples presença de um observador.
Aquilo que é totipotente, uma
probabilidade, se realiza. Uma vez que o universo existe em realidade quem causou o colapso
das probabilidades subatômicas? Estaríamos finalmente próximos de uma fusão ciência e
espiritualidade? Seriam as sensações de atemporalidade e dissolução espacial uma percepção desse
universo transcendente subatômico?
Fato é que essa percepção, ou função transcendente, é hoje uma realidade neurológica, assim
como o comportamento onda-partícula dos elétrons e a interferência da consciência no colapso de
probabilidades.

Espiritualidade em Cuidados Paliativos

“Ao permanecermos atentos aos problemas do final da vida, ignoramos o mistério do final da vida”
19.
Quando buscamos o alívio do sofrimento humano diante da morte necessitamos expandir nossa
compreensão do ser humano para além de sua dimensão biológica. A dimensão espiritual engloba a
relação do indivíduo com o transcendente, sendo necessário diferenciá-la das questões existenciais e

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2019/2 47
religiosas. O sofrimento religioso se caracteriza pela dor moral, conduzida pela quebra de dogmas e
preceitos daquela religião20. O sofrimento espiritual se alicerça na violação da essência do eu, o que se
caracteriza freqüentemente pela perda de sentido e identidade, assim como o desejo de abreviar a
vida2, 13, 20. Os pacientes desejam estar em paz com Deus e com seus familiares, serem capazes de
rezar e sentirem que sua vida foi completa6, 20, 21. Segundo Ira Byock23, a grande síntese da
espiritualidade no fim da vida é dada pela reconciliação com tudo e todos, o que se resume em cinco
frases:
● Perdoe-me!
● Eu perdôo você!
● Obrigado!
● Eu te amo!
● Adeus!
Entre as dificuldades para abordar a questão espiritual no final da vida está o próprio
desconhecimento da equipe a respeito da sua espiritualidade e a ignorância do paciente em relação à
sua finitude. Apesar de a maioria dos pacientes querer saber respeito da gravidade de seus
prognóstico23 a maioria dos médicos é favorável a não contar isso aos seus pacientes23. Não é
possível abordar as questões espirituais sem uma real percepção da morte20, 22. A morte é a ultima
crise a ser enfrentada e a última oportunidade para o crescimento espiritual, sendo seu grande desafio o
de anter integra a identidade da pessoa diante da desintegração total20.
Ao avaliar a história espiritual deve-se identificar a importância disso na vida do paciente e de sua
família, assim como, avaliar a forma com que isso pode ser incluído nos cuidados do paciente.
Puchalski22 e Maugans24 sugerem uma abordagem inicial através das siglas FICA e SPIRIT:

FICA – Puchalski
SPIRIT – Maugans

Faith Você se considera uma pessoa religiosa ou espiritualizada?


(Fé) Tem alguma fé? Se não, o que dá sentido a sua vida?
Importance A fé é importante em sua vida? Quanto?
(Importância)
Community Você participa de alguma Igreja ou comunidade espiritual?
(Comunidade)
Address Como nós (equipe) podemos abordar e incluir essa questão no seu atendimento?
(Abordagem)
Spiritual belief system Qual é sua religião?
(Afiliação religiosa)
Personal spirituality Descreva as crenças e práticas de sua religião ou sistema (Espiritualidade
pessoal) espiritual que você aceita ou não.
Integration within Você pertence a alguma igreja, templo, ou outra
spiritual community forma de comunidade espiritual?
(Integração em comunidades Qual é a importância que você dá a isso?
espirituais ou religiosas)

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Ritualized practices Quais são as práticas específicas de sua religião ou and restrictions comunidade
espiritual (ex: meditação ou reza)?
(Rituais e restrições) Quais os significados e restrições dessas práticas?
Implications for medical care Quais desses aspectos espirituais/religiosos você gostaria (Implicações
médicas) que eu estivesse atento?
Terminal events planning No planejamento do final da sua vida, como sua vontade (Planejamento do
fim) interfere nas suas decisões?
Devemos observar que ambos os questionários atentam para sistemas espirituais e religiosos
instituídos e não para a experiência individual de transcendência e significado.
Uma das formas de aprimorar essa avaliação é a criação de uma autobiografia que enfatize as
experiências espirituais legítimas ou assim chamadas “numinosas”16.
Essas experiências se caracterizam por um encontro com o “ser unitário e absoluto”, ou, como
dizia Dürckheim16, o “ser essencial”. Mais do que uma mera percepção transcendente, a experiência
espiritual legítima deve levar a uma mudança de comportamento ou entendimento da realidade. Tal
evento poderá ocorrer dentro de um templo,
no contato com a natureza, durante uma cena familiar ou ouvindo uma ópera.
Diversos autores descrevem os efeitos do bem-estar espiritual nas questões do final de vida2, 6,
13, 25 e demonstram o efeito de terapias direcionadas à questão espiritual em pacientes e equipe13,
26, 27. O bem-estar espiritual parece estar associado a menores índices de depressão, ideação suicida,
desejo de morte e desesperança em pacientes terminais(2). Programas baseados na Logoterapia de
Viktor Frankl e desenvolvidos por Greenstein e Breibart27, 28 apresentam resultados positivos em
pacientes com câncer avançado. A abordagem denominada Care for the dying: wisdow and
compassion, descrita por Longaker13, apresenta resultados duradouros em escalas de bem-estar
espiritual e transcendência em profissionais de Cuidados Paliativos.

Violência e Abuso Religioso/Espiritual

Ao lidar com as questões espirituais de nossos pacientes devemos estar atentos às diversas
formas de violência espiritual que podem ser cometidas por profissionais, familiares e sacerdotes.
Segundo Purcell29, 30, o abuso espiritual é caracterizado pelo ato de fazer alguém acreditar numa
punição de Deus ou na condenação eterna por ter falhado em alcançar uma vida adequada aos olhos
de Deus. Existem diferentes intensidades e formas de abuso espiritual, algumas tão sutis que se
encontram nos alicerces de nossa cultura judaico-cristã. A maioria de nós provavelmente já sofreu
algum grau dessa forma de violência, o que pode ser verificado pela necessidade de 60% da
populaçãoamericana ter a preocupação de “morrer sem o perdão de Deus”20, 29, 30.
Impedir o paciente de expressar suas necessidades espirituais assim como o proselitismo são
formas comuns de violência contra o paciente terminal. Num país como o Brasil com tantas religiões e
crenças é freqüente uma dissonância de convicções religiosas entre paciente, familiares e equipe
médica. A falta de conhecimento médico a respeito do tema banaliza a experiência legítima daqueles
que morrem e impede um atendimento adequado.
Apesar de mais da metade dos médicos residentes acreditarem na importância do seu
envolvimento nas questões espirituais de seus pacientes(31), não há uma discussão adequada à

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respeito do tema. Nem mesmo os próprios pacientes acreditam na capacitação de seus médicos em
discutirem temas espirituais.
O conhecimento das diferentes tradições espirituais, assim como a clareza com.relação as suas
próprias questões espirituais auxiliará muito no cuidado do paciente.nessa fase da vida20. É impossível
auxiliar alguém em questões espirituais sem antes.conhecer a sua própria espiritualidade20, 22. A
equipe deverá trabalhar com as crenças.e a fé do paciente sem, em nenhum momento, pregar a sua
verdade. Os cuidadores.deverão ser orientados com relação ao respeito à individualidade do paciente,
sendo.que o cuidado espiritual cabe a todos os envolvidos14. Já o atendimento religioso, com seus ritos
e sacramentos, deve ser incentivado pela equipe e ministrado pelo sacerdote habilitado.

A Morte e a Espiritualidade

“A morte tem o poder de colocar tudo em seu devido lugar. Longe do seu olhar, somos
prisioneiros do olhar dos outros e caímos na armadilha dos seus desejos.”
Rubem Alves

“De todas as pegadas a do elefante é a maior.


De todas as meditações da mente, a da morte é a maior”
Buddha Shakyamuni
A morte é sem dúvida o maior impulso ao desenvolvimento humano, seja ele na medicina, nas
artes, na filosofia ou na ciência. Dentro do campo da espiritualidade, não é diferente. É somente através
dela que o homem se defronta com a realidade da vida: tudo termina, tudo finda. Qual é então o sentido
disso? A finitude leva o espírito humano à sua essência: transcender.
O ser humano deseja transcender. Transcender os limites do seu corpo, os limites de sua alma,
conhecer a Deus, Alá, Olorum, o Criador, seja lá quem ele for. Transcender a morte foi, no último século,
um desejo concreto. Graças a esse desejo a medicina evoluiu vertiginosamente para então perceber
que transcender a morte não é eliminá-la, mas dar a ela sua dignidade merecida. Nasce, então, o
movimento Hospice,
bem como, os Cuidados Paliativos, que têm como objetivo a integração do ser humano diante de
sua desintegração final. Falar sobre Cuidados Paliativos é encarar de frente nossa finitude e ir além. A
essência dos Cuidados Paliativos é espiritual, pois ousa transcender o sofrimento humano e a morte
dando a ela um significado.
Enquanto houver significado na experiência humana há esperança.

Conclusões

A dimensão espiritual é considerada o fator que integra e une os aspectos físicos, psicológicos e
sociais do ser humano33. As experiências espirituais apresentam hoje explicações científicas que
sugerem seus mecanismos neurofisiológicos e físicos.
Diversos estudos demonstram os benefícios do envolvimento religioso/espiritual, não podendo
mais este tema ser negligenciado pela medicina. Os Cuidados Paliativos devem abordar o ser humano
em sua totalidade, incluindo o cuidado espiritual. Existem evidências sugerindo ser esse tipo de cuidado
eficaz no controle das questões existenciais e sintomas depressivos no final da vida. A equipe de

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Cuidados Paliativos deve estar atenta às necessidades espirituais dos pacientes, sem, no entanto,
impor qualquer tipo de atendimento nessa área. O respeito às crenças e à fé de cada indivíduo deve ser
prioritário. O ensino e pesquisa nessa área precisam ser incentivados para atingirmos um melhor
cuidado no final da vida.

Referências Bibliográficas:

Referencia na integra está no texto original.

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Supportive Care 2006; 4:407–17.
2. McClain CS, Rosenfeld B, Breitbart W. Effect of spiritual well-being on end-of-life despair
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18. Goswani A. Universo auto consciente. São Paulo: Ed Aleph 2007.
19. Bevins M, Cole T. Ethics and spirituality: strangers at the end of life? In: Lawton MP, ed.
29. Boyd C. Purcell. Spiritual abuse. Am J Hosp Palliat Care 1998; 15:227
30. Boyd C. Purcell. Spiritual terrorism. Am J Hosp Palliat Care 1998; 15:167
31. Luckhaupt SE, Yi MS, Mueller CV, Mrus JM, Peterman AH, Puchalski CM, Tsevat J. Beliefs
of primary care residents regarding spirituality and religion in clinical encounters with

10. ESPIRITUALIDADE E O PACIENTE TERMINAL

Eleny Vassão de Paula Aitken


Introdução

— “Doutor, o senhor tem me acompanhado há mais de dez anos nesta doença, com todo o
carinho e franqueza, e agora não tem coragem de olhar nos meus olhos e me dizer que estou
morrendo?”
— “Doutor, eu estou morrendo? Fale comigo sobre a morte! Converse comigo francamente, como
o senhor sempre fez em relação às minhas doenças oportunistasna Aids. Diga-me francamente o que
ainda posso esperar da Medicina! Como será omeu fim? Terei muita dor?”
Delicadamente, o médico tomou a mão de D. Maria entre as suas e, olhando-acom profunda
ternura, disse: “É verdade, minha amiga. Você está caminhando para o fim de seus dias. Agora, a
Medicina não tem muito a lhe oferecer para a cura de suas doenças, mas eu lhe prometo estar ao seu
lado até o fim, aliviando suas dores, conversando com você e dando todo o apoio aos seus filhos.”
Aquela franqueza sosseou D. Maria, que repentinamente ficou mais alegre, brincou com o doutor
e logo voltou à sua sonolência, como que aliviando a dor da verdade e prolongando um pouquinho mais
os seus dias. A revolta de ter sido infectadapelo marido há muito já se fora, e agora ficava a saudade
dos seus filhos e netos, como se, viajando para uma terra muito distante e sem volta, não tivesse
abraços e palavras suficientes para consolar e para despedir-se daqueles a quem tanto amava.

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Todos os profissionais que se aproximavam de d. Maria percebiam que, apesarde toda a sua
tristeza, havia no ar uma nota de vitória, que nem mesmo a sombra da morte pudera derrotar. A paz que
inundava seu semblante dolorido trazia como que um doce perfume àquele quarto, atraindo a
curiosidade de alguns profissionais da saúde antes endurecidos por já terem contemplado tantas
perdas.
Mas aquela paciente era diferente. Seu corpo definhava dia-a-dia, mas seu espírito
estava mais vivo, maduro, e parecia sustentá-la, apesar de nem mesmo o mais leve cheiro de
esperança existir no ar.
O que fazia com que aquela senhora enfrentasse a morte com tal calma e dignidade?
Haveria alguma relação benéfica entre suas crenças e sua reação diante da morte?

A Fragilidade do Adoecer
“A minha vida está desaparecendo como fumaça, e o meu corpo queima como se estivesse no fogo.
Estou acabado como a grama que foi cortada e pisada;
não tenho vontade de comer.
Fico gemendo alto; sou apenas pele e osso.
Sou como um pássaro em lugares desertos,
como uma coruja numa casa abandonada.
Não consigo dormir;
sou como um pássaro solitário em cima do telhado1.”
Salmo 102:3-7

D. Maria nunca pensara em ficar num hospital no fim de seus dias. Ser vencida pela doença não
estava em seus planos.
O adoecer é o evento da vida que nos faz questionar a nós mesmos, nossos propósitos, alores e
o sentido da vida. Ele interrompe as nossas carreiras, abala a nossa vida familiar, tira a nossa paz, e
nos faz sentir um forte temor do desconhecido e da possibilidade de virmos a perder o controle sobre as
circunstâncias da nossa vida.
Um outro paciente, que viveu muitos séculos atrás, era um grande rei: Ezequias, o rei de Israel.
Ele ficou muito doente, às portas da morte. O profeta Isaías foi visitá-lo e disse:
“O Senhor Deus disse assim:
Ponha as suas coisas em ordem,
porque você não vai sarar.
Apronte-se para morrer.”
A doença não escolhe classe social, raça, credo ou nível cultural. Diante da doença e da morte,
somos colocados todos na mesma terrível situação.
Como qualquer outro ser, Ezequias também se sentiu tomado de surpresa, cheio de medo e
disposto a barganhar com Deus e com os homens para ser poupado. Se possível, queria ganhar mais
alguns anos, meses, ou até mesmo dias de vida.
É interessante como, diante da morte, tomamos consciência de que realmente somos pequenos e
frágeis. Do alto de nossos saltos de orgulho pelas nossas conquistas, títulos e realizações, raramente
paramos para pensar que mesmo que possamos ter domínio sobre a ciência, de curar ou atuarmos na

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área da saúde, isto não nos torna imunes aos mesmos sofrimentos daqueles pacientes a quem
tratamos e acompanhamos até a morte.
Se estivéssemos sempre sendo lembrados deste fato, talvez tratássemos os nossos pacientes
com maior humildade e humanidade, pois veríamos refletido em seu corpo caquético o nosso próprio
retrato, relembrando-nos de que a nossa hora também chegará.
Ezequias, um rei diante do Rei dos reis, lembra-se que, por baixo de suas vestes reais, ainda tem
um corpo humano, e chora amargamente diante do Deus a quem conhecia e com o qual tinha um
relacionamento aberto e íntimo. Deus responde às suas orações prolongando sua vida por mais quinze
anos. Ao responder-lhe afirmativamente, dá-lhe um sinal, fazendo com que a sombra retroceda dez
graus (os astrônomos confirmam este mistério), e então ele escreve um hino de louvor, do qual citamos
apenas parte, onde ele filosofa sobre a fragilidade de sua vida, ao mesmo tempo em que revela sua
espiritualidade:
“ A minha vida foi cortada e terminada
como uma barraca de pastores
que é desmontada e levada para longe como um pedaço de pano que o tecelão corta de uma
peça de tecido.
Dia e noite eu pensava que Deus já ia acabar comigo.
A noite inteira, eu gritava de dor,
Como se um leão estivesse
Quebrando os meus ossos.
Dia e noite eu pensava que
Deus já ia acabar comigo.
Eu soltava fracos gemidos de dor como uma andorinha
e gemia como uma pomba.
Os meus olhos se cansaram de olhar para o céu.
Ó Senhor, estou sofrendo! Salva-me!
Isaías 38:12-14

Espiritualidade, Fé e Religiosidade

O tema espiritualidade reemerge em meio à alta tecnologia, ao materialismo de nossa época,


como um desafio a pensar em algo mais alto e além de nossa própria capacidade, de nosso próprio
domínio e controle. Digo reemerge, pois a separação entre ciência e espiritualidade, ou religiosidade,
não existia, como cita Almananza-Munõz e Holland, no artigo “Espiritualidad y Detección de ‘Distress’en
Psico-Oncologia”2:
“Tradicionalmente a religião tem oferecido ao ser humano um marco de devoção estruturante, que
proporciona alívio e consolo. Isto se soma a consideração de vínculo antigo entre espiritualidade e
saúde e a alguns achados recentes no campo clínico e na área de investigação, que nos levam a refletir
em torno da importante função da espiritualidade no contexto do cuidado médico. De fato, o vínculo
histórico entre medicina e religião se reporta muito além da era industrial, sendo relevante que no início
do cristianismo os médicos eram, em sua maioria, membros da

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igreja, cuja orientação à coletividade incluía um interesse genuíno na totalidade da pessoa... A
relevância da espiritualidade tem sido ressaltada, em distintas perspectivas, por médicos célebres como
William Osler (1910), Benjamim Rush (1911),Freud (1930); Fromm (1930).
Há tantos conceitos sobre espiritualidade quanto os livros escritos, sejam eles explícitos ou não.
Dentre tantos, destacamos estes :Espiritualidade vem do latim Espíritu, vocábulo relacionado com
respiração, como um ato inquestionavelmente vital. Tal conceito leva à percepção da espiritualidade
como um processo de interação entre a nossa consciência e a relação com Deus ou com um Poder
Superior, em função do que chamamos de Fé. A fé implica a certeza de algo sem evidência material do
mesmo. Religião alude a uma instituição cultural ou grupal, em torno de um culto específico, que tem
lugar e tempo particulares oferecendo consolo nas privações, favorecendo a auto-aceitação e
diminuindo os
sentimentos de culpa .
Cristina Puchalski e o Reverendo Carlos Sandoval citam o artigo da Associação Americana de
Escolas Médicas, onde a espiritualidade é expressa pela busca de uma pessoa pelo sentido último,
através da participação na religião e/ou crença em Deus, família, naturalismo, humanismo e artes.
Todos estes fatores podem influenciar na forma como os pacientes e os profissionais da saúde
percebem a saúde e a doença e como interagem com uma e outra.
Eles citam, também, que segundo pesquisas do Gallup (1997), os pacientes disseram que
queriam que suas necessidades espirituais fossem consideradas quando eles estivessem próximos da
morte. Pacientes com câncer avançado que tinham crenças espirituais, mostraram-se mais satisfeitos
com suas vidas, eram mais felizes, e sentiam menos dor, comparados àqueles sem crenças
espirituais4. Uma pesquisa feita pela American Pain Society mostrou que a oração era o segundo
método mais usado no manejo da dor, depois de medicações orais para dor, e o método não-ligado à
droga mais comum, no manejo da dor.
A espiritualidade está associada a menores índices de mortalidade, menor depressão, menor risco
de cirrose, enfisema, suicídio e morte por isquemia cardíaca, assim como menor uso de serviços
hospitalares, e inclusive menor tendência de fumar.
Harold Koenig, Diretor do Centro de Estudos sobre Religião/Espiritualidade e Saúde da
Universidade de Duke, tem sido um dos maiores expoentes nas pesquisas que buscam mostrar o
impacto da fé sobre a saúde física e mental. Ele tem dezenas de livros e mais de duzentos artigos
publicados sobre o tema, em diversas modalidades médicas.
Koenig foi despertado para o tema quando, ao atender uma paciente de seu colega que havia
saido em férias, defrontou-se com um caso sem explicação clínica.
Aquela senhora havia perdido seu único filho em terrível acidente. Seis meses depois, eu marido
também faleceu. No funeral de seu querido, o chão do cemitério estava muito liso e escorregadio,
devido a uma nevasca na noite anterior, o que a fez escorregar e fraturar o fêmur.
Quando o Dr. Koenig foi atendê-la, ela estava hospitalizada há cerca de quatro meses, pois tivera
uma séria infecção depois da cirurgia. Cabisbaixo, enquanto andava pelos corredores em direção ao
quarto da paciente, pensava em como ele próprioficaria, se tivesse que enfrentar todas estas perdas.
Preparou-se para encontrar uma mulher amarga, rancorosa e deprimida, com quem seria difícil se
relacionar.

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Para sua surpresa, defrontou-se com uma senhora de rosto meigo e tranqüilo, que, sentada em
seu leito, calmamente lia sua Bíblia. Ao ver o olhar perplexo do médico, perguntou-lhe: “Posso ajudá-lo
em alguma coisa, doutor?”
Entre tantos temas que tem pesquisado, Koenig, citando o psicólogo social Gordon Alport, em
uma série de estudos pioneiros datando de 1950, faz uma clara distinção entre pessoas que vivem uma
religiosidade extrínseca de outras que têm uma religiosidade intrínseca.
Ele define como “extrínseca” a religiosidade de uma pessoa que usa a religião para alcançar algo
‘não espiritual’, como encontrar amigos, alcançar estatus social, prestígio ou poder.
A religiosidade “intrínseca” pode ser ilustrada como aquela pessoa que tem uma profunda e forte
fé interior como principal força motivadora de sua vida, afetando suas decisões e comportamentos
diários, e é caracterizada por um íntimo relacionamento pessoal com Deus, que inclui também:
frequência à comunidade religiosa, definição de suas crenças religiosas, importância da oração,
conhecimento da literatura religiosa, o uso da religião para lidar com o stress, e o suporte social
oferecido pela comunidade religiosa.
Com base nas afirmações de Allport, foram criadas as escalas que visam medir a atitude religiosa
de pacientes, enfocando a religiosidade intrínseca, pois esta resulta em satisfação, segurança e bem-
estar.
Quanto ao papel das crenças religiosas na terminalidade, Koenig diz:
“As crenças religiosas podem ter um papel em ajudar os pacientes a construírem o sentido de um
sofrimento inerente à doença, o que pode, por sua vez, facilitar a aceitação de sua situação8.”
Tratando do tema ‘Depressão’, ele diz:
“Eu não digo que pessoas religiosas nunca sofrem de depressão... Mas pequisas têm
demonstrado que elas têm a habilidade de se recuperar de estados mentais negativos mais
rapidamente e mais efetivamente do que aqueles que não têm fé. Elas vivem em um universo que é
dirigido por um benevolente e onipotente Deus, que cuida de toda a sua criação, responde suas
orações, faz milagres, e oferece ilimitada graça para quem crer. Neste mundo, cada evento da vida tem
um propósito e significado, mesmo que seja algo negativo, como uma doença ou um problema
financeiro.
A pessoa religiosa é capaz de transformar a pior situação em experiência positiva .
Reed, em 1986, comparou pacientes terminais com adultos saudáveis, em termos
de ‘religiosidade e senso de bem-estar’. Os resultados apontaram, entre 300 participantes, que
um significativo número de adultos em fase terminal demostrou uma crescente espiritualidade sobre
outros pacientes não terminais ou adultos saudáveis. Pacientes terminais adultos também mostraram
mais altas perspectivas espirituais do que os outros mencionados. Há também uma baixa, mas
significante,
correlação positiva entre espiritualidade e bem-estar para os pacientes terminais adultos do grupo.
Em pesquisas que estudavam as respostas psicológicas e fisiológicas de pacientes com câncer,
Greer, Morris e Pettingale descobriram que mulheres que haviam sido diagnosticadas com câncer de
mama e se recusaram a perder a esperança tiveram
um melhor prognóstico do que aquelas que aceitaram passivamente sua doença.O tema “fé e
espiritualidade” tem se tornado tão importante no meio que o ensino e a prática da medicina estão
mudando. Hoje, mais de 60 escolas de medicina nos EUA têm cursos eletivos em religião,

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espiritualidade e medicina, incluindo Harvard, John Hopkins, Brown, Case-Western, University of
Chicago, University of Pennsylvania, Washington University of St. Louis e outras.
Puchalski e Romer (2000) têm defendido o valor da incorporação de um histórico espiritual aos
registros médicos de rotina, pois este ofereceria aos médicos elementos contextuais, para que não
apenas compreendam melhor seus pacientes como também comecem a atender a algumas das suas
necessidades espirituais.

O Papel do Capelão na Equipe Multidisciplinar

Tendo mencionado a importância da espiritualidade/religiosidade no atendimento integral ao


paciente terminal, torna-se vital definirmos o papel do capelão e as atividades de uma capelania
hospitalar, pois caberá principalmente a estes o atendimento religioso/espiritual diário ao enfermo de
Cuidados Paliativos.
Nos últimos anos, o capelão tem alcançado um lugar de crescente importância na equipe de
saúde. Antes, seu papel seria somente o de dirigir algumas preces junto ao paciente aflito, mas hoje sua
função tem maior alcance: ele é visto como uma pessoa capacitada para este ministério específico, e
que demonstra a compaixão de Deus pela pessoa humana, indo ao seu encontro para oferecer-lhe
conforto e esperança, fortalecendo sua fé e ajudando-a a encontrar, no relacionamento íntimo e pessoal
com Deus, o significado da vida e os Seus propósitos em meio ao sofrimento.
Missas e cultos são parte do serviço de capelania, tendo em vista a liberdade de culto que há no
país. Se a pessoa não pode ir à celebração religiosa em sua comunidade, esta virá até ela, sendo
realizada dentro do ambiente hospitalar, obedecidas suas limitações.
O capelão, ou capelã, nem sempre é um clérigo, mas deve ter um perfil bem especial: dom da
misericórdia, boa estabilidade emocional, conhecimento de sua fé, equilíbrio doutrinário, e
conhecimento da rotina de um hospital, tendo habilidade para relacionar-se e integrar-se aos
profissionais da saúde.
Ele é tido como fonte de suporte espiritual para o paciente, sua família e também para o
profissional da saúde, mas nunca deverá se esquecer de que é um eterno aluno de seus pacientes,
principalmente, daqueles que estão próximos à morte.
Deve sempre iniciar o contato com o paciente dando ouvidos, com toda a atenção, à sua
linguagem verbal e também não-verbal. A partir do ouvir, poderá identificar a crença deste paciente, em
que esta tem afetado sua vida, como ele vê a enfermidade diante do retrato que faz deste seu Deus.
Somente então saberá como abordá-lo adequadamente.
Mesmo para o paciente não-religioso, poderá usar outros sentidos da espiritualidade, como a arte
e a música, para dar-lhe suporte durante a doença, ajudando o a encontrar um sentido em sua vida.
Para os religiosos, a partir das necessidades abordagem levantadas por este, oferecer-lhe conforto e ao
mesmo tempo ajudar a solucionar conflitos de relacionamento existentes, sejam eles com Deus ou com
pessoas de sua intimidade.
O capelão experiente organizará uma capelania hospitalar, composta de outros capelães e
também de visitadores voluntários, que atuarão em sistema de rodízio, mantendo o serviço por 24 horas
e estendendo-o a todo o hospital. Religiosos externos de quaisquer credos poderão oferecer
atendimento aos membros de suas comunidades, que estejam hospitalizados. Para tal, deverão ser
triados e orientados sobre a rotina hospitalar e os limites na visitação e ritos, pela capelania local. Isto

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trará tranquilidade para o serviço de segurança, para a portaria, para o serviço social e principalmente
para
a diretoria do hospital, pois garantirá o cuidado espiritual especializado ao paciente, ao mesmo
tempo em que protegerá o hospital de extremismos religiosos.
O capelão do hospital ficará responsável pelo contato com religiosos de outros credos, a pedido
dos pacientes.
As atividades da capelania, a princípio, serão de caráter espiritual e emocional, mas, conforme as
necessidades percebidas em cada hospital, poderão estender-se também às áreas social, recreacional
e educacional, através de pessoas preparadas para desenvolverem estas funções, sem perder os
propósitos espirituais.

As Necessidades e Oportunidades Espirituais em Cuidados Paliativos

A morte traz consigo uma sombra e um cheiro específico, que se antecipam à própria, trazendo
insegurança, medos, confusão, urgência na resolução de algumas questões práticas, outras
relacionadas à culpa e ao perdão e ainda outras, de cunho profundamente teológico e verticalmente
relacional.
Tudo que nos é desconhecido, e foge ao nosso controle, nos causa pavor. Entre os motivos de
medo nestes pacientes, salientamos alguns: medo da dor e de outros sintomas; medo do abandono;
medo da não-existência; medo da perda da dignidade; medo da dependência e da perda de controle
físico, social e financeiro e medo de que os profissionais da saúde não saibam ou não tenham como
ajudá-lo .
Entre as necessidades captadas através de muitas pequisas entre pacientes em fim de vida,
alguns dos pontos comuns foram:

1. Necessidade de ser considerado como pessoa: Participando de todas as decisões quanto


ao tratamento, e também tomando conhecimento e participando das decisões nas questões familiares.
Ele teme perder seu nome e identidade; ser mais um doente, com mais um diagnóstico de uma doença;
dependente de outros e totalmente inútil.
2. Necessidade de reler sua vida:
O enfermo de Cuidados Paliativos tem muita necessidade de falar sobre sua vida, voltar ao seu
passado e reavaliá-lo diante de novos valores, buscando um sentido para o seu sofrimento, para que
possa viver o presente de uma forma diferente. A enfermidade grave busca, com urgência, palavras
verdadeiras e respostas a profundas crises existenciais.
3. Necessidade da busca do sentido:
Uma nova hierarquia de valores é organizada. Existe a busca de algo que é mais forte e maior do
que a morte. A proximidade da morte coloca a pessoa diante do essencial, da extrema necessidade de
encontrar um sentido para a sua própria existência.
O problema da finitude se impõe ao seu sofrimento em um ensaio de compreensão de sua própria
vida. A grande prova é perceber que é um ser limitado e acabado, e mesmo assim, encontrar forças e
sentido para viver com intensidade os dias que lhe restam, deixando com que o seu espírito cresça,
embora o corpo definhe.

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Viktor Frankl, psiquiatra e neurologista que viveu como prisioneiro em campo de concentração da
Alemanha, diz que todo homem pode encontrar um sentido em sua vida, inclusive no sofrimento. O
sentido de ter feito algo durante sua vida. Este sentimento pode expressar-se através de uma
verdadeira fé religiosa, renovada em um verdadeiro relacionamento com Deus, muito além dos ritos.
Este sentido encontradona morte volta a dar sentido à vida.
4. A necessidade de se livrar da culpa:
A crença religiosa seguida pelo enfermo influenciará seu modo de ver seu sofrimento. Se a sua
visão de Deus é de alguém punitivo, poderá sentir-se pagando por algo que cometeu, e não terá sequer
condições de pedir por clemência, ou encontrar paz no refazer o relacionamento quebrado com o seu
Deus. Questões como: “Porque eu?” “Por que comigo?” “ Por que agora?” “O que fiz para merecer
isso?”
A maneira como vivemos pode influenciar o momento e as condições de nossa morte.
O cristianismo apresenta, através dos Evangelhos, o Deus Criador, Soberano e Misericordioso,
que, não importando o passado da pessoa, vem ao encontro deste na pessoa de Jesus, Deus
Encarnado, oferecendo àqueles que Nele crêem o perdão completo, o livre acesso a Deus, num
relacionamento de amor, promessas e esperança eternos.
Ao saber-se perdoado por Deus, seu coração torna-se mais sensível e pronto a perdoar e a pedir
perdão a outros de seu relacionamento.
5. Necessidade de se reconciliar:
Todos nós levamos conosco questões não resolvidas. Alguns gestos de ódio, de ruptura, de
repreensão sobre outros e sobre si mesmo. A enfermidade é, muitas vezes, o momento em que estes
gestos brotam de forma viva na memória. O enfermo em fim de vida, já frágil e sem forças, precisará
despender de muita energia para ir ao encontro de pessoas a quem feriu, pedir-lhe perdão, e procurar
formas para tentar endireitar o mal que cometeu. Permitir que o enfermo tenha contato com a sua
realidade, possa
acertar as coisas e dizer adeus, é muito importante. Muitos destes pacientes revelaram que suas
maiores preocupações eram: Não ser perdoado por Deus; não se reconciliar com outras pessoas ou de
morrer afastados de Deus ou de uma força espiritual, ou rompido com eles15.
“Põe a tua casa em ordem...” Para enfrentar a morte de uma maneira serena, é necessário
perdoar e receber perdão de outros, de perdoar-se a si mesmo, de estar em harmonia com Deus.
6. Necessidade de abrir-se à transparência:
O enfermo de Cuidados Paliativos não tem mais tempo a perder com conversas fúteis e verdades
escondidas. Em sua busca de alguém que o ouça e o ajude a “colocar a sua casa em ordem”, ele abre
com facilidade seu coração, expressando suas
apreensões, medos e dificuldades. Em pesquisa realizada pelo Gallup, em 1997, nos EUA, as
necessidades apontadas por pacientes terminais foram: 51% vencer o medo; 41% encontrar esperança;
40% descobrir um sentido na vida; 43% descobrir paz de espírito; 39% descobrir recursos espirituais.
7. De descobrir algo além de sua própria existência:
Esta necessidade manifesta-se de duas formas: 1. abertura à transcendência (o relacionamento
com Deus, com a arte, com a natureza, no reencontro, no culto) ;
necessidade de reencontrar o sentido à solidariedade. Pacientes que, mesmo com grande
dificuldade, ainda conseguem levantar de seus leitos para oferecer ajuda à alguém que está no leito ao
seu lado, em pior condições, sentem-se úteis e solidários ao sofrimento humano.

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Visitamos um Hospice no Uruguai, estrategicamente colocado em um lugar com vasta natureza à
mostra, cercado de belas praças e jardins, para onde muitos destes pacientes eram levados
diariamente para passeio por voluntários e religiosos. Os pacientes em fase terminal distinguem-se das
outras pessoas que passeiam pelo parque pela maneira com que elas contemplam a natureza, as
árvores, os pássaros.
Olham-nas atentamente, detalhadamente, como se nunca antes tivessem visto aquele encanto à
sua frente. Contemplam as obras do Criador com admiração e reverente temor, pois talvez poucas
vezes tenham tido tempo em suas rotinas de vida para valorizar a natureza. Em seu estágio final, eles
também demonstram não ter necessidade de companhia e não dão valor a uma TV, a notícias recentes
ou a algo passageiro.
Estão usando todas as suas energias em preparar-se para a partida. Para estes quando têm
ainda oportunidade de assitir a um culto, ou em seu próprio quarto de hospital, ou em uma comunidade
religiosa, o fazem com adoração e reverência, expressando gratidão aos fiéis reunidos e à abertura do
tempo à presença de Deus. A adoração dá sentido à vida, ao mesmo tempo em que os leva à
contemplação de um mundo que os transcende.
8. Necessidade de ser amado, apesar de seu aspecto:
Poucas pessoas se dispõem a ficar com o paciente até o fim. Seu aspecto cadavérico, sua cor,
sua respiração, sua alteração de humor, suas dúvidas e franqueza aos expressá-las, tudo isso faz com
que poucos, e somente os muito íntimos, disponhamse a estar presentes até o final.
Ele tem grande necessidade de sentir-se amado, apesar de tudo, e que este amor seja expresso
de maneira carinhosa através de toques e palavras de conforto e esperança, dizendo-lhe como sua vida
tem sido preciosa e útil, lembrando-o de tantas coisas boas que realizou, e as marcas que está
deixando na vida de outros.
9. Necessidade de uma nova relação com o tempo:
É o tempo irreal, ou a ausência de tempo. O enfermo intensificará sua relação com o passado,
para apropriar-se de sua vida; com o presente, com uma nova hierarquia de valores, dando maior peso
e valor ao tempo, aos detalhes, às pessoas.
Ele precisará aprender a viver cada dia, tendo ainda projetos a curto prazo. Com o futuro: o tempo
limitado pode ser vivido como uma frustração, uma angústia, o inconcebível, mas também pode ser uma
abertura para o transcendente.
10. Necessidade de continuidade:
A Bíblia comenta sobre um rei que morreu, sem deixar de si saudades. Todos nós temos a
necessidade de deixar alguma coisa maior, em prol de outros, como valores de fraternidade, de justiça,
de respeito, no sentido de que deixamos marcas a serem seguidas, de que a nossa vida foi um
monumento para alguém ou alguma causa. Esta continuidade pode ser vivida por seus descendentes,
quando as relações familiares são boas, ou por uma empresa, uma obra, uma mensagem, uma palavra.
Este é o fruto de uma vida toda, que ele recolheu depois de ter pesado o que teria diante da morte.
Existe também um sentido de continuidade depois da morte. Há uma noção de imortalidade da
alma, lembrando também a ressurreição. Aqueles que são cristãos, por possuírem um relacionamento
com o Deus vivo, encaram a morte como um sono, uma passagem para a eternidade, onde terão
muitas recompensas: não enfrentarão mais o sofrimento, receberão corpos novos e perfeitos, e viverão
para sempre na presença de Deus.

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“O próprio Deus estará com eles e será o Deus deles. Ele enxugará dos olhos deles todas as
lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor.
As coisas velhas já passaram. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tem sede darei, de
graça, da fonte da água da vida.”
O paciente e seus familiares que recebem de boa vontade o atendimento espiritual, e engajam-se
a ele, recebem benefícios inestimáveis. Tomar consciência de um prognóstico ruim é extremamente
doloroso, mas ao mesmo tempo é um privilégio ter o domínio sobre um tempo especial de preparo para
a partida, podendo despedir-se dos seus queridos, colocando a casa em ordem diante de Deus e dos
homens.
Em Cuidados Paliativos, a palavra “cura” pode ter um aspecto bem diferente: pode significar a
oportunidade de ver a vida de modo diferente, encontrando nela e em seus queridos tesouros nunca
antes percebidos. Significa, também, aprender a aceitar suas limitações e humildemente aceitar o
cuidado amoroso de seus queridos.
Mais ainda, significa aprender a olhar para trás e ser grato a Deus por detalhes de sua vida, antes
sem sentido, mas que agora, olhados no conjunto, demonstram o cuidado e o livramento de Deus de
situações perigosas.
O paciente que tem o privilégio de ganhar tudo isso terá como resultado uma compreensão muito
mais profunda da vida e a certeza de um relacionamento maravilhoso com Deus, somente iniciado aqui,
mas que continuará eternamente.

Conclusão

Lúcia, nossa capelã em Cuidados Paliativos no Hospital do Servidor Público, foi chamada pela
jovem médica que não sabia como lidar com o pedido de eutanásia feito por uma paciente. O medo da
dor que poderia sofrer no processo do morrer fizera com que ela perdesse o desejo de viver, clamando
por medicações que a fizessem dormir até o momento final.
Algo mais foi acrescentado às respostas às profundas questões teológicas, relacionais e
existenciais. Agora havia não uma nova religiosidade, mas um novorelacionamento com Deus, o qual
lhe deu forças para enfrentar o medo e a dor.
Através das palavras de consolo e também ao carinhoso desafio ao enfrentamento da situação, a
paciente voltou a aceitar o alimento e a medicação. Havia disposição em viver até o fim. O medo fora
vencido pela certeza da presença confortadora da capelã, mas ainda mais do Deus que a amava e em
quem podia confiar que estaria presente para levá-la para o seu eterno lar.
Mais animada, atendeu ao desafio de confeccionar, com suas próprias mãos, uma linda caixinha
enfeitada com papel de seda e um delicado buquê de flores de papel.
Ao olhar o modelo que deveria imitar para fazer o artesanato, sentia-se incapaz, inútil e frágil
demais para fazer algo. Incentivada pelas capelãs, trabalhando devagar e com grande persistência,
parava de pouco em pouco para descansar, cochilando por minutos, mas sempre mostrando desejo em
concluir o trabalho começado.
Depois de quase uma hora e muitas interrupções, seu semblante estava mudado:
sorria com doçura ao ver que fora capaz de fazer algo bonito. A delicada peça em suas mãos
fazia-na perceber que sua vida ainda era útil, tinha sentido, e podia acrescentar algo à vida de sua
família.

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Estava deixando um pequeno monumento que simbolizava uma vida digna, de amor à família, e
que ao mesmo tempo os consolava: ela agora estava tão tranqüila por saber que viveria eternamente,
que pudera gastar suas últimas energias em produzir algo mais.
Feliz, ofereceu a caixinha à filha.
Morreu de mãos dadas com a capelã, que a acompanhou, orou e bem baixinho cantou para ela,
até seu último suspiro. A filha ficou ao seu lado, e nos momentos mais difíceis, pôde deixar a mãe por
momentos, recuperando-se no corredor, pois sabia que havia alguém cuidando dela.
O texto acima foi elaborado a partir das opiniões pessoais da autora, com base em sua
experiência profissional como capelã.
Referências Bibliográficas:
1. Almanza-Munõz J, Holland JC. Espiritualidad y Detección de ‘Distress en Psico-Oncologia, em
Oncologia Clínica; 4 (3): 246-9.
2. Association of American Medical Colleges. Report III, Contemporary issues in medicine:
communication in medicine. Washington, DC: Association of American Colleges, Medical School
Objectives Project (MSOP); 1999. p. 25-26.
3. Bautista M. Cuidados espirituales em los cuidados paliativos. O Mundo da Saúde 2003 jan/mar;
27(1).
4. Cortés JM, Recio CG, Cortés CC. El sacerdote em el acompañamento al final de la vida. Medicina
Paliativa em la Cultura Latina. Valladolid: Junta de Castilla y Leon; 1999. …

11. A MORTE NO CONTEXTO DOS CUIDADOS PALIATIVOS

Maria Julia Kovács


Philippe Ariès em suas obras (1977) aponta diferentes mentalidades sobre a morte.
Uma das predominantes é a que considera a morte como tema interdito e tabu, trazendo a idéia
de que esta deve ser combatida a todo custo, considerada como fracasso e vergonha. Nesta
mentalidade podem ocorrer sérios entraves na comunicação entre pacientes, familiares e a equipe de
cuidados, principalmente quando ocorre o agravamento da doença. É também nesta forma de encarar e
combater a morte é que podem ocorrer algumas das mortes indignas de nosso tempo, prolongadas,
com grande sofrimento e muitas vezes solitárias, configurando a distanásia. (Pessini, 2001)
A morte interdita é um ocultamento da morte para proteger a vida hospitalar, oferecendo
estratégias defensivas para a equipe e a instituição. Nesta modalidade pode ocorrer a morte social,
tratando-se o doente como se fosse um cadáver. A morte interdita oferece um poder ilusório àquele
profissional que acredita que pode combater a morte, mas, na verdade, escancara a sua fragilidade.
Na década de 1950 observa-se uma contestação a esta abordagem tão refratária à morte, a partir
dos trabalhos de duas autoras: Elisabeth Kübler-Ross e Cicely Saunders.
Chamei esta processo de rehumanização do processo de morrer. (Kovács, 2003) É fundamental o
acompanhamento do processo da doença, cuidar dos sintomas e do sofrimento na esfera psicossocial e
espiritual, trazendo o doente para o centro doscuidados, incluindo a família no tratamento. Esta
mentalidade permitiu o grande desenvolvimento dos cuidados no fim da vida, parte fundamental dos
programas de cuidados paliativos. (Saunders, 1991,1996)
O desenvolvimento da tecnologia médica, dos diagnósticos e tratamentos cada vez mais
sofisticados levou ao prolongamento da vida, embora nem sempre tenhamos garantia da qualidade

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desta, principalmente no caso de pacientes gravemente enfermos. Atualmente se observa uma
cronificação das doenças. Entretanto, mesmo com a sofisticação dos tratamentos, freqüentemente os
pacientes se queixam de intenso sofrimento, configurando processos distanásicos. (Pessini, 2001).
Segundo este autor, existem dois paradigmas vinculados à ação de saúde: o curar e o cuidar. No
paradigma do curar o investimento é na vida a qualquer preço, na qual a medicina de alta tecnologia
tem um papel preponderante, e as práticas mais humanistas ficam em segundo plano, em detrimento da
qualidade de vida. No paradigma do cuidar há uma aceitação da morte como parte da condição
humana, levando-se em conta a pessoa doente e não somente a doença, enfatiza-se aspectos
multidimensionais da doença, a dor total, como preconiza Saunders (1991). A qualidade de vida em
suas várias dimensões é a preocupação principal dos profissionais afinados com este paradigma.
Freqüentemente pessoas portadoras de uma doença grave nos dias de hoje sentem medo ao
imaginarem o fim de sua vida. Dizemos genericamente que as pessoas têm medo da morte. Mas de
que morte elas têm medo? O que se tornou tão assustador que as pessoas ficaram com muito mais
medo do processo de morrer do que da própria morte?
Observam-se alterações significativas nas formas de morrer nos últimos anos, principalmente no
que concerne a sua extensão. Há uma predominância de doenças crônicas, incluindo-se aí as
cardiopatias, neoplasias, doenças sexualmente transmissíveis, enfermidades neurológicas e os quadros
demenciais. Um grande número de pacientes com Aids terá dor e, por medo de que se tornem adictos
às drogas
analgésicas, muitos não receberão cuidados adequados. Os grandes medos nestes casos são o
sub-tratamento da dor e o supertratamento nas UTIs – configurando um grande paradoxo. Talvez este
seja o motivo para um debate crescente sobre eutanásia e suicídio assistido. (Pessini, 2001)
Pesquisas indicam que 90% dos pacientes gostariam de morrer em casa, 70% esperam que o
médico os acompanhe até o fim da vida. Os maiores temores são em relação à doença crônica, dor e
obstinação terapêutica, prolongando o processo de morrer. (Chochinov et all., 1995).
Surge no século XX um conceito que tem sido profundamente questionado nos dias de hoje.
Trata-se do conceito de “paciente terminal”, colocado aqui entre aspas, pois ainda é utilizado apesar de
todos os problemas que provoca. É um conceito com contornos indefinidos, conduzindo à
estigmatização. Qual é o critério a ser levado em conta, o fato de ser uma doença letal ou a proximidade
da morte? Observa-se esta confusão em pacientes com câncer, que hoje têm amplas possibilidades de
tratamento e recuperação. Muitos pacientes oncológicos têm aumentado o seu tempo de vida.
Então nos perguntamos: quando é que se tornam “terminais”? Do ponto de vista psicossocial, o
atributo terminal pode condenar o paciente ao abandono, por se ter a idéia de que “não há mais nada a
fazer”, a uma naturalização da dor e do sofrimento, já que a morte está próxima. Sabemos que falar de
“pacientes terminais” traz tantos problemas, entretanto, ainda não surgiu outro termo mais adequado.
Outro termo que tem surgido é “paciente fora de possibilidade terapêutica” ou “FTP”, o que também
conduz a uma compreensão errônea, em que o termo terapêutico só é associado à cura: toda a
gama de cuidados para garantir qualidade de vida é desconsiderada.
Pacientes com doença avançada podem ter vários sofrimentos, constituindo o que Saunders
(1991) denominou de “dor total”. O agravamento da doença traz vários sintomas físicos que, em
conjunto, tornam a vida difícil. Acompanhando o declínio físico surgem sintomas de sofrimento em
várias esferas, tais como: medo de ficarsozinho, tristeza pelo abandono dos planos da vida, perda das
pessoas próximas, dependência, e o medo da morte.

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As principais necessidades de pacientes gravemente enfermos são:
● Ter alívio e controle da dor e de outros sintomas;
● Assumir o controle sobre a própria vida;
● Não ter o seu sofrimento prolongado com medidas que visam apenas preservar
a vida e adiar a morte;
● Não ser sobrecarga para a família;
● Estreitar laços familiares e com pessoas significativas.

O prolongamento artificial da vida é um terror para muitas pessoas que buscam uma morte
natural. Muitos pacientes relatam medo da aparelhagem para manutenção da vida, querem dignidade,
planejar a própria morte e tomar decisões sobre a sua vida. Pacientes esperam que seu médico não os
abandone, esteja presente acompanhando a sua situação. Para os familiares e para a equipe de saúde
é muito difícil ver alguém sofrendo, sentirem-se impotentes.
Alguns pacientes gravemente enfermos pedem para morrer, sendo muito importante saber o que
motiva estes pedidos. Entre os maiores problemas relatados pelos pacientesbestão: sensação de
desamparo, falta de apoio, percepção de não ter controle, o que pode causar mais sofrimento do que
sintomas físicos. Não ter a família presente é uma das causa mais freqüentes para o pedido de morte.
(Chochinov et all, 1995)
Muitas vezes, se associa a depressão com os pedidos para morrer. É muito difícil fazer o
diagnóstico diferencial de depressão e outros sintomas presentes quando do agravamento da doença.
Existe uma naturalização do sofrimento e da dor no câncer que pode isentar profissionais da equipe de
saúde da preocupação de cuidar destes sintomas.
Doenças como o câncer provocam alterações no apetite, sono e na disposição física, o que pode
gerar confusão entre os sintomas da doença e a presença da depressão.
Verificamos as seguintes preocupações em pacientes gravemente enfermos (Kovács, 1998a) ●
Não poder se despedir dos familiares;

● Estresses em relação à continuação da vida das pessoas próximas;


● Não ser perdoado;
● Não poder se reconciliar com pessoas significativas;
● Não poder falar com o seu médico;
● Ter dúvidas e questionamentos religiosos;
● Apresentar sofrimento emocional intenso.

A “perda de si” é vivida quando ocorre o adoecimento, e propicia que se trabalhe o luto
antecipatório, o luto que ocorre antes da morte (Fonseca, 2004). Esta antecipação vai permitindo a
elaboração das perdas durante o processo de vida, trazendo significado para a existência. Muitas
pessoas vão perdendo os papéis que desempenharam ao longo da vida: de profissional, de genitor que
tinha uma série de responsabilidades e atividades em relação às crianças, do cônjuge, entre outros.
(Parkes & Markus, 1998).
É fundamental saber o que significam, o que representam, a dor e outros sentimentos que podem
estar presentes na situação de doença grave e aproximação da morte (Kovács, 1998b). Um dos
aspectos importantes para fazer o trabalho do luto é reconhecer os sentimentos que estão lá na sua

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qualidade e intensidade, para que possa haver a elaboração. Na época atual, na sociedade ocidental,
muitas pessoas
não têm autorização para se emocionar, não podem expressar a sua dor. Este fato acaba levando
ao adoecimento e ao aumento dos casos de depressão. (Parkes & Markus, 1998; Franco, 2002).
O processo de luto antecipatório envolve as perdas do adoecimento: da saúde, do corpo perfeito,
dos papéis profissionais, conjugais, parentais, perdas de outras pessoas, perdas de si. Trabalhar a dor,
elaborar um sentido, conversar sobre isso com familiares e profissionais, têm um caráter preventivo. É
muito importante trabalhar o luto antecipatório nas instituições hospitalares e nos programas de
Cuidados Paliativos.
Não é prerrogativa somente de psicólogos: os profissionais da área médica e de enfermagem
podem colaborar neste processo.
Kübler-Ross (1969, 1975) se refere ao estágio da depressão, que, no caso da aproximação da
morte, não tem um conteúdo patológico. Observa-se um processo de interiorização, uma preparação
para a própria morte, um direcionamento da energia para dentro de si. O paciente está, muitas vezes,
debilitado, distancia-se dos entes queridos e este fato não deve ser compreendido como uma rejeição
às pessoas, e sim como preparação para o processo final da morte.
A autora fala sobre o silêncio, a calma e, principalmente, sobre a presença acolhedora. Muitas
vezes, as pessoas perguntam: o que devem conversar ou fazer? Não há necessidade de falar ou fazer.
O que se propõe é muito semelhante à mãe ou o pai que velam uma criança pequena, que estão lá
olhando, vendo se está tudo bem. Essa presença confortadora é importante. Infelizmente, a rotina
hospitalar, como está configurada, dificulta este tipo de silêncio e recolhimento. Nos programas de
Cuidados Paliativos há uma facilitação para este tipo de acompanhamento no final da vida,
principalmente por permitir que a família esteja presente por mais tempo.
Há duas trajetórias possíveis para a morte. Uma chamada de mais fácil, em que há um lento
apagar das funções do corpo até a morte. Uma outra mais difícil, que vem acompanhada de intensos
sintomas entre os quais: delírio, confusão mental, agitação, dor intensa.
Uma boa morte pode envolver os seguintes aspectos:
● Ter consciência de sua aproximação;
● Ter condições de manter o controle da situação;
● Manter a dignidade e a privacidade;
● Obter alívio, controle de sintomas e cuidado especializado;
● Escolher o local da morte, por exemplo, na residência;
● Ter acesso à informação e esclarecimento;
● Receber suporte emocional, social e espiritual;
● Ter pessoas significativas por perto;
● Ter os direitos preservados;
● Poder se despedir;
● Não ter a vida prolongada indefinidamente.
A percepção do que seja boa morte pode diferir entre pacientes, profissionais e familiares.
Algumas pessoas gostariam de manter a lucidez, a identidade pessoal na hora da morte, não ter a sua
consciência rebaixada, preservando a autonomia, identidade, singularidade. Outros preferem que tudo
se passe rapidamente sem consciência ou sofrimento.

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Morte difícil é aquela que não é aceita, em que se observa revolta e conflito com os familiares, e,
principalmente, quando há o sentimento de estar abandonado ou solitário.
Se há um preparo para nascer por que não deveria ter haver um preparo para a morte,
envolvendo despedidas, absolvição, distribuição dos bens e término dos assuntos inacabados? Esta é
uma questão que demanda amplas reflexões. (César, 2001)
As pessoas querem morrer com dignidade. Mas, nos perguntamos, o que seria morrer com
dignidade? O que se busca? Por que as pessoas pedem para morrer? Na verdade a morte é um
processo natural da vida. Quando as pessoas pedem para morrer, supomos que alguma coisa não
esteja bem, talvez o sofrimento esteja muito intenso (Hennezel, 1996, 2001). Não se deve desqualificar
esse pedido, e sim com-
preende-lo. Às vezes, o sofrimento é intolerável. Em alguns casos, a morte pode ser a finalização
de uma existência, envolvendo o desejo de planejar a própria morte, ou de evitar uma morte prolongada
e com sofrimento, algo, infelizmente, presente nos dias de hoje.
Familiares podem pedir para que se apresse o processo da morte de seu ente querido por não
suportar ver o sofrimento muito intenso, sentindo-se impotentes e sobrecarregados. Observa-se a
diminuição do número de cuidadores, as famílias são cada vez menores e estão espalhadas em vários
locais, o que sobrecarrega o cuidador principal, sobre o qual estão depositadas as responsabilidades e
as providências. O aumento do tempo da doença e a presença de vários sintomas incapacitantes
tornam
o cuidado do paciente gravemente enfermo uma tarefa muito complicada, o que pode impedir que
permaneça em domicilio, gerando culpa nos familiares pela percepção de não estarem fazendo “o
melhor” para o doente.
Muitas vezes, o paciente gostaria de pedir que as pessoas queridas ficassem próximas, pois
querem falar do seu medo e da sua dor. Estes pedidos, em muitos casos, podem ser atendidos. Quando
o paciente fala sobre a morte talvez esteja falando do medo de sofrer ou de sobrecarregar as pessoas
próximas. E o fato de escutarmos este pedido não significa obrigatoriamente que vamos atende-lo, e
sim que estamos ouvindo que aquela existência está chegando ao final, que alguma coisa muito
importante precisa ser comunicada, ou que o sofrimento está intolerável. Não se está propondo
eutanásia, ou suicídio. Oferecer logo um calmante quando se ouve este pedido pode impedir que o
paciente diga o que tem para nos dizer.
Pedir para morrer é diferente de pedir para matar (Hennezel, 2001). Nem sempre um pedido para
morrer é um pedido de eutanásia. Há uma diferença grande entre o pedido de ajuda no processo de
morte, buscando-se a qualidade e dignidade, e a eutanásia, que envolve um ato para provocar a morte.
Esta diferenciação é fundamental para que mal-entendidos possam ser esclarecidos.
Os familiares ficam muito assustados quando ouvem do doente que “quer morrer”. Podem se
sentir rejeitados ou acham que têm que tomar uma atitude rápida. Há diminuição do número de
cuidadores e o aumento do tempo da doença, o que representa ter que cuidar de pessoas em grande
sofrimento, com alta dependência, por muito tempo, às vezes, por anos. É realmente uma situação que
sobrecarrega os familiares, que não conseguem tratar em casa, tendo que internar várias vezes, o que
também pode implicar em dificuldades financeiras. O cuidado com os familiares é extremamente
importante, porque há um processo de luto a ser trabalhado com a pessoa viva. Às vezes, os familiares
pedem a morte do ente querido porque não agüentam ver tanto sofrimento, sentem-se impotentes.
(Rolland, 1991)

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O sofrimento pela percepção de não estar fazendo o “melhor possível” persegue o familiar. O
cuidador principal pode estar sob grande risco de colapso, porque, muitas vezes, se esquece da sua
própria vida, não se cuidando. A energia psíquica fica vinculada inteiramente nos cuidados ao doente.
Pode surgir a ambivalência entre o desejo de sobrevivência da pessoa querida e o desejo de que morra,
para o
alívio de sofrimento de todas as partes.
Com a proximidade da morte torna-se muito urgente buscar uma comunicação efetiva, lidar com
assuntos inacabados, com as prioridades, com as escolhas e com aquilo que as pessoas precisam. As
relações significativas podem ser reatadas durante todo o processo da vida, mas, na proximidade da
morte, estas questões se tornam urgentes.
É fundamental resgatar o desejo, a vida, o prazer, os valores de toda a existência. O agravamento
da doença e a proximidade da morte podem perturbar seriamente a comunicação entre o paciente,
familiares e a equipe de saúde, levando ao que se conhece como conspiração do silêncio. É uma
tentativa de mútua proteção, mas que denuncia várias fragilidades. A doença e seu agravamento, por
vezes, apartam a pessoa de sua humanidade, podendo ocorrer infantilização, superproteção,
diminuição
do seu poder decisão e ecolha; um ataque à autonomia e à dignidade. Observa-se que:
● Não se fala o que está acontecendo, ocultam-se sentimentos, há um esforço para que a
verdade não seja dita;
● A energia gasta para evitar a expressão da verdade é retirada da comunicação, que pode se
tornar superficial, já que falar de si pode denunciar algo sobre o que não se pode falar.
● Há um distanciamento para não se confrontar com a situação vivida, torna-se impossível olhar
nos olhos que denunciam o que está acontecendo;
● Desenvolve-se um sentimento de solidão e incerteza. O que se propõe é um espaço para uma
comunicação efetiva, enfatizando a expressão dos sentimentos, que mesmo que apontem para
questões dolorosas, não as aumentam, e sim permitem o compartilhamento. A comunicação aberta
favorece um sentimento de pertença, coesão, familiaridade, promovendo qualidade devida. (Silva, 2004)
A bioética traz reflexões importantes sobre os valores e a questão da morte como fenômeno
significativo no final da existência. A autonomia é um valor, a possibilidade de escolha deve ser mantida
até onde ela for possível, com os conflitos que possam surgir, envolvendo a aproximação da morte e a
busca da dignidade. Devem ser preservados o sentido da vida, da existência, a história e o seu lugar no
mundo, a qualidade de vida e no processo de morrer, último ato humano. (Kovács, 1998a) Dignidade
significa a possibilidade do existir com o menor sofrimento possível até os últimos momentos da vida,
uma busca competente dos profissionais envolvidos no cuidado a pacientes gravemente enfermos
numa abordagem multidimensional.
Para que a dignidade seja preservada é preciso se garantir a competência, a possibilidade de se
oferecer ao doente o esclarecimento sobre o que está acontecendo: diagnóstico, opções de tratamento,
prognóstico, e tudo mais que desejar saber. É fundamental que se estimule uma comunicação aberta e
clara. A autonomia é o outro requisito fundamental para que se garanta a dignidade, constituindo-se no
direito de assumir o controle sobre sua vida, tomando decisões sobre si, em conjunto com a família e a
equipe de saúde, no que se refere ao seu tratamento, curso da vida, local onde deseja permanecer até
o fim da vida e o planejamento da sua morte. A autonomia tão importante em todas as fases da vida
pode

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ficar prejudicada com o agravamento da doença. O estímulo do livre-arbítrio e da liberdade de
escolha está relacionado com a forma como as pessoas gostariam de viver os últimos momentos da
vida. (Kovács, 1998a, 2003a).
Tendo em vista o que se discutiu neste capítulo, será a ortotanásia um novo conceito?
Significa a morte no momento certo, nem apressada como no caso da eutanásia e nem
prolongada como no caso da distanásia. A ortotanásia é a grande e importante tarefa dos programas de
Cuidados Paliativos.
Segundo Menezes (2004) os programas de Cuidados Paliativos criam uma nova representação
social do morrer, permitindo a administração do final da vida. Os profissionais paliativistas, como
passam a ser conhecidos aqueles que elegem os serviços de Cuidados Paliativos, mantêm uma nova
relação com processo de morrer.
A morte deixa de ser um evento puramente biológico e passa a ser um evento construído
socialmente. Nos programas de Cuidados Paliativos a morte deixa de ser oculta para se tornar visível,
sendo mais aceita pelos profissionais. São importantes as habilidades para administrar as contingências
da morte. É uma tarefa difícil para o paliativista transformar a morte negada e interdita em um evento
social aceito.
Ajuda no processo de morrer não significa cometer o ato da eutanásia. Tratase de diminuir ao
máximo o sofrimento, os sintomas incapacitantes e permitir a expressão de sentimentos, as despedidas,
o término de assuntos inacabados, o alívio e o controle de sintomas, principalmente, da dor e do
desconforto respiratório.
É muito importante ao se tomar decisões envolver pacientes, familiares e a equipe de saúde.De
maneira geral a morte com dignidade envolve o significado final da existência.
Por isto é importante que se possa garantir o que são fatos importantes na vida do paciente,
principalmente, as pessoas importantes, para que as despedidas possam ser efetuadas, ressignificadas
as relações e tudo mais que se sabe que o paciente gostariapara si – e que pode ser providenciado.
(Breibart, 2004)
Quando não se sabe quais são os principais valores e desejos da pessoa à morte é fundamental
que, numa sociedade que considera o tema tabu, se possa conversar a respeito, lidar com os
preconceitos, e dar a possibilidade do exercício de uma comunicação efetiva.
Os Cuidados Paliativos são uma forma de educação para a morte, para o paciente e familiares e
profissionais de saúde, já que propõem o convívio diário com as perdas trazidas pelo adoecimento e
pela proximidade da morte. O luto antecipatório é uma forma de compartilhar os sentimentos e o
sofrimento, em relação a estas perdas.
Mas, a principal tarefa dos profissionais e gestores é evitar os processos distanásicos, informando
e esclarecendo pacientes, familiares e demais profissionais de saúde. (Kovács, 2003).

Referências Bibliográficas:

Breitbart, W. (2004). Espiritualidade e sentido nos cuidados paliativos. In: Pessini, L. &
Bertanchini, L. (2004) (Orgs.). Humanização e cuidados paliativos. São Paulo, Edições
Desire for death in the terminally ill. American Journal of Psychiatry, 152: 1185-1191.
Fonseca, J.P. (2004). Luto antecipatório. Campinas, Livro Pleno.
Franco, M.H.P. (2002). Estudos avançados sobre o luto. Campinas, Editorial Livro Pleno.

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Hennezel, M. (1996). La muerte intima Barcelona, Plaza e Janes.
Hennezel, M. (2001). Nós não nos despedimos. Lisboa, Editorial Notícias
Kovács, M.J. (2003). Bioética nas questões de vida e morte. Boletim de Psicologia, 14 (2): 95-167.
Kovács, M.J. (2003). Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo, Casa do Psicólogo.
Kovács, M.J. (1998). Autonomia e o direito de morrer com dignidade. Bioética, 6: 61-69.
….

12. LUTO EM CUIDADOS PALIATIVOS

Maria Helena Pereira Franco

As primeiras visões sobre luto mostram um fenômeno entendido como causa potencial de doença
física ou mental. É interessante observar como se deu a evolução desse conceito até os dias atuais,
quando definimos o luto como um processo normal e esperado em conseqüência do rompimento de um
vínculo.
Parkes (2001), ao fazer uma revisão histórica sobre o estudo do luto, nos conta que, em 1621,
Robert Burton publicou The Anatomy of Melancholie, obra na qual apresenta o pesar como sintoma e
causa principal da melancolia ou daquilo que, modernamente, chamamos de depressão clínica. Nos
séculos 17 e 18, o luto era considerado causa de morte e prescreviam-se medicações para o chamado
luto patológico.
Em 1835, Benjamin Rush, médico americano, receitava ópio para enlutados e considerava que
aqueles que morriam de problemas cardíacos tinham como causa o que ele chamara de “coração
partido”. Parkes (idem) chama ainda a atenção para outros estudos que apontaram importantes
diferenças, entre os quais destaca a publicação datada de 1872, de Charles Darwin, The Expression of
Emotions in Man and Animals. Nessa obra, Darwin apresenta a evidência de que muitas espécies de
animais choram quando separadas daqueles aos quais estão vinculadas. Seres humanos enlutados
tentam inibir esse choro, mas os músculos do choro são os de mais difícil controle do que os demais
músculos faciais, daí a aparência característica.
Freud (1917/1953) publicou Luto e Melancolia a partir de suas observações clínicas e
considerações durante a I Guerra Mundial. Apontou diferenças e semelhanças entre pesar e melancolia
e considerou que o luto, como causa de depressão, tende a aparecer em relações ambivalentes. Ele
cunhou o termo “trabalho de luto”, entendendo que luto requer uma elaboração psicológica. Como suas
observações foram feitas em época de guerra, havia muitas razões para identificar sintomas
psiquiátricos ou distúrbios pós-traumáticos.
A II Guerra Mundial trouxe um outro cenário. Em 1941, Kardiner publica Traumatic Neuroses of
War, obra que traz ao conhecimento as peculiaridades do sofrimento daqueles expostos a situações
contínuas de risco de morte, com conseqüências para a saúde, como um todo. Em 1944, Lindemann
descreve uma situação de luto agudo, após incêndio em discoteca. Nesse artigo, ele define o que
considerava normal, com destaque para efeitos indesejáveis da repressão do luto. Não reconheceu a
importância do luto crônico, mas foi quem primeiro falou sobre luto antecipatório, exatamente a partir da
experiência das esposas dos soldados convocados para o campo de batalha.
Em 1949, Anderson fala do luto crônico, definido por ele como o distúrbio psiquiátrico mais
freqüente, além de estados ansiosos e depressão maníaca.

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Parkes (1965) estudou pacientes psiquiátricos adultos internados entre 1949 e 1951 e confirmou
os padrões de morbidade identificados por Anderson, assim como verificou que o índice de morte do
cônjuge nos seis meses anteriores à internação era seis vezes maior do que o encontrado em
população não enlutada. Sem dúvida, esses estudos trouxeram uma nova luz às considerações sobre
as conseqüências do luto em populações específicas.
Com esse cenário, ter o luto no foco dos interesses significa abordar uma ou várias das questões
a seguir. A definição de luto normal e luto complicado requer uma revisão de posicionamentos
tradicionais que estabeleceram fases pelas quais o luto deveria passar, paralelamente à idéia de que o
luto implica transformação radical do vínculo com o morto, de maneira a promover o desligamento do
mesmo e a possibilidade de envolver-se em novos vínculos (Bowlby, 1999).
Tradicionalmente, o processo de luto foi entendido a partir de suas fases e/ou de suas tarefas. As
fases eram:
● entorpecimento
● busca e saudade
● desorganização e desespero
● reorganização
As tarefas eram:
● aceitar a realidade da morte
● vivenciar o pesar
● ajustar-se a um meio no qual o falecido não mais se encontra
● retirar energia emocional e reinvesti-la em outra relação

Por se tratar de um fenômeno complexo, identificamos cinco dimensões nas reações


freqüentemente encontradas no luto:
1 - Dimensão Intelectual do Luto, marcada por confusão, desorganização, falta de concentração,
intelectualização, desorientação, negação.
2 - Dimensão Emocional do Luto: choque, entorpecimento, raiva, culpa, alívio, depressão, irritabilidade,
solidão, saudade, descrença, tristeza, negação, ansiedade, confusão, medo.
3 - Dimensão Física do Luto: alterações no apetite, visão borrada, alterações no sono, inquietação,
dispnéia, palpitações cardíacas, exaustão, boca seca, perda do nteresse sexual, alterações no peso,
dor de cabeça, mudanças no funcionamento intestinal, choro.
4 - Dimensão Espiritual do Luto: sonhos, impressões, perda da fé, aumento da fé, raiva de Deus, dor
espiritual, questionamento de valores, sentir-se traído por Deus, desapontamento com membros da
igreja.
5 - Dimensão Social do Luto: perda da identidade, isolamento, afastamento, falta de interação, perda da
habilidade para se relacionar socialmente.
Assim sendo, pode-se estudar o luto a partir de uma distinção entre luto considerado normal e luto
complicado. Pode-se trabalhar com predição de risco à saúde mental, em conseqüência de condições
complicadoras do luto. O tipo de atenção oferecida a pessoas enlutadas em diferentes condições e
situações (em Cuidados Paliativos, comparação entre grupos, auto-ajuda, rituais, arteterapia e outras
técnicas de intervenção).
O estudo de outras culturas nos leva a uma mudança de paradigma, desde que as diferenças
culturais possam ser entendidas e explicadas em suas múltiplas facetas. As diferenças de gênero, bem

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como as de idade ou o luto ao longo do ciclo vital oferecem rico campo de estudo e abrem importantes
perspectivas de intervenção.
O que vemos é que estudar o luto não é prerrogativa de um único campo do saber. O fenômeno
se presta a diversos olhares, como os da psiquiatria, da psicanálise, da psicologia, da sociologia, da
antropologia, da etologia, por exemplo.
Cabe ressaltar um outro lado da questão a ser considerado. Como apontado acima, a partir da
experiência das duas guerras mundiais, estimulados pelas perdas em massa, pesquisadores
consideraram o tema do luto bastante atraente. As repercussões emocionais e fisiológicas do luto
tornaram-se objeto de pesquisa. De muitas maneiras, a ‘descoberta’ que a emoção do luto poderia ser
semelhante a uma doença representava um nítido exemplo do futuro da moderna psicologia. No
entanto, a natureza social do luto foi ignorada. Por outro lado, na década de 80 surgiram vários modelos
psicológicos de estresse, luto e depressão.
A visão antropológica da morte e da perda como fenômenos essencialmente sociais contrastava
fortemente com osmodelos psicológicos de luto, visto como uma experiência individual aberta para a
possibilidade de um desenvolvimento patológico. Sendo assim, nós não só morremos de acordo com o
modelo médico de doença e morte, como também ficamos enlutados segundo esse mesmo modelo.
Fala-se em resultados, sejam eles saudáveis ou patológicos, e os “sintomas” associados ao luto nos
deixam com a clara impressão de que o luto é mais uma doença do que uma experiência universal. A
patologização do luto é sintoma de sua individualização. Ao colocarmos o pesar associado ao luto no
âmbito da mente e do corpo do indivíduo, podemos, com maior ênfase, acusá-lo por sua própria
desgraça pessoal.
A partir dessa descrição do luto como uma doença, com sintomatologia facilmente identificável, os
profissionais da saúde rapidamente passaram a adotar esse modelo.
Até mesmo entre os leigos disseminou-se a postura de que havia o objetivo de se obter a
recuperação do luto. À medida que esse campo de estudo se ampliou, foram desenvolvidos novos
modelos de luto, como aquele que procura encontrar a existência de fases para sua experiência.
Mesmo que se busque identificar meios mais humanos de entender o luto, esse modelo de fases ainda
tem respaldo na aceitação da idéia de que existem modos bons e maus de viver o luto. É possível
argumentar que, quando buscamos entender por que as pessoas têm diferentes resultados em seu
processo de luto, estamos colocando em dúvida o modelo individualizado do luto.
Os chamados “fatores de risco” que colocam a pessoa em um enquadramento em torno de cada
um, poderiam ser melhor percebidos pela lente da cultura na qual essa pessoa vive. Uma apreciação da
relatividade cultural da emoção também ajuda a explicar as sutis diferenças transculturais na expressão
e na experiência da perda e do luto. Portanto, modelos do luto refletem nossas representações sociais
correntes sobre vida e morte e podem, por esse motivo, ser efêmeros.
Quando alguém que amamos morre, não é somente a perda do outro que leva ao sofrimento
psicológico e fisiológico que foi meticulosamente estudado por psicólogos e psiquiatras nos últimos 50
anos, mas a perda do self. Reconstruir o novo self leva tempo, à medida que a perda do amado é
incorporada a este novo self, pós-luto.
Assim, uma parte do self inclui espaço para uma relação contínua com o morto. Trata-se de fazer
a transição entre amar as pessoas que estão presentes para amá-las em sua ausência.

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Como conseqüência dessa visão, o que se verifica é que o luto pode ser entendido e trabalhado a
partir de múltiplas referências. Dentre elas, destacamos as experiências de transição psicossocial,
crescimento, doença, crise, fim, experiência simbólica, parte inerente da vida moderna.
Dessa maneira, viver o luto significa:

● aceitar a realidade da perda


● enfrentar as emoções do pesar
● adaptar-se à vida sem a pessoa
● encontrar maneiras adequadas para lembrar o falecido
● reconstruir a fé e os sistemas filosóficos abalados pela perda
● reconstruir a identidade e a vida
Ainda nessa vertente, porém com um olhar mais voltado para o lugar que o luto ocupa nos Cuidados
Paliativos, podemos entender os diversos fatores que compõemo fenômeno.

Fatores psicológicos
● A natureza e o significado, únicos relacionados à perda específica
● As qualidades individuais da relação que se finda
● O papel que a pessoa à morte ocupa no sistema familiar ou social
● Os recursos de enfrentamento do enlutado, junto com sua personalidade e condições de saúde
mental
● Experiências prévias com morte e perdas
● Os fundamentos sociais, culturais, éticos, religiosos e espirituais do enlutado
● Idade do enlutado e da pessoa à morte
● Questões não resolvidas entre a pessoa à morte e o enlutado
● A percepção individual sobre quanto foi realizado em vida
● Circunstâncias da terminalidade
● Percepção de senso de controle
● Perdas secundárias

Fatores sociais
● Isolamento
● Dificuldade de estabelecer e manter relações significativas
● Nova identidade social
Fatores fisiológicos
● Controle de sintomas
● Alimentação
● Descanso e sono
● Autonomia
● Qualidade de vida geral

Fatores espirituais
● Relação espiritualidade e luto

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● Questionamento do sistema de crenças prévio: parte do processo do luto Uma forte tendência atual,
diante dessa diversidade, busca a postura de reaprender o mundo, por meio de construir e encontrar
significados para o luto. Isso representa, sem dúvida, uma mudança de paradigma: de um padrão
genérico, normativo(medicalização); para a subjetividade (experiência psicológica). Não se levam em
conta fases previstas para o processo de luto que, embora continue sendo um processo, é vivido como
algo único, assim como foi única a relação rompida que o precedeu.
É um processo que permite revisões na identidade, nas relações sociais, nas relações com a morte e no
sistema de crenças.

13. LUTO EM CUIDADOS PALIATIVOS

Cabe agora trazer para o cenário a experiência da família com o luto, em especial, para que se
possa abordar a riqueza de possibilidades contidas no processo de construção de significado, pela
família.
Significado é aqui definido como as representações cognitivas, mantidas na mente de cada
membro familiar, mas construídas interativamente dentro da família, ao mesmo tempo em que são
influenciadas pela sociedade, pela cultura e pelo período histórico.
A família faz uso de fatores estimuladores e inibidores nesse processo de construção de
significado. Os fatores estimuladores são aqueles que promovem a construção de significado da família,
incluem rituais familiares, efeitos na família estendida, tolerância pelas diferenças, qualidade e
freqüência das interações. Os fatores inibidores, por sua vez, impedem o processo, incluem regras
familiares que proíbem conversar sobre assuntos delicados, proteção e aspectos da dinâmica familiar,
como exclusão
de membros.
As famílias fazem uso de estratégias, que são os meios ou métodos pelos quais elas constroem o
significado da perda, incluindo comparações, caracterizações,questionamentos, referências e
discordâncias. Entre os possíveis significados, têm destaque a possibilidade de nem todos eles serem
positivos: a morte pode ser entendida como um “teste”, modelo para outros; veio para unir a família;
teve causa genética (a família entende-se impotente diante do fato); o morto não está em lugar algum
ou está no céu, cuidando dos outros; o morto queria morrer. O significado mais difícil se dá para “a
morte poderia ter sido evitada”. Há famílias que o procuram naquilo que a “morte não foi”.

Algumas outras categorias de significados são:


● O que a morte “não foi”
● “Não faz sentido”, ou seja: o significado não leva a uma compreensão
● Morte injusta (coisas ruins acontecendo às pessoas boas; morreu a pessoa errada; muito cedo/tarde)
● Significados filosóficos (fatalidade, propósito da morte)
● Vida após a morte (existe/não existe)
● Significados religiosos (revelação; reunião; recompensa; um teste; causada por Deus)
● Natureza da morte (evitável pelo morto/família/sistema de saúde; causa biológica; momento da morte;
morte antes da morte)

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● Atitude do morto em relação à morte (não queria morrer, estava pronto para morrer, desejava, sabia,
foi como queria)
● Como a morte mudou a família
● Lições aprendidas, verdades vividas (não ter certeza, estabelecer prioridades, viver a vida/momento)

Folkman (1997) considera que o processo de enfrentamento, associado a estados psicológicos


positivos durante o luto, têm raízes no mesmo tema: busca – e encontro significativo – de uma mudança
de vida. Desta forma, ter uma crença não “protege” do processo do luto e sim traz a coragem para a
pessoa se permitir entrar nesse processo. A busca de significado implica na reavaliação da vida,
juntamente com proximidade ou afastamento do divino ou espiritual.
Quanto ao aspecto da espiritualidade no luto, cabe destacar que as crenças espirituais influem
na maneira de enfrentar adversidades e podem mesmo ser fortalecidas, porque não há outra fonte de
controle ou resposta racional.

Existem outras maneiras de identificar o processo:


● família que compartilha: desejo dos membros em conversar entre si sobre a morte. Significa
desejo/relutância em compartilhar e condições necessárias para o compartilhamento.
● família que compartilha significados: necessidade de que outros queiram ouvir e que tenham o que
compartilhar; desejo de que não seja necessário falar sobre coisas muito perturbadoras; sentem-se
melhor falando (bem) de quem morreu – e não da morte
● consenso familiar: consenso puro (100%) raramente é encontrado; membros da família pressionam
os demais para que pensem como eles; diferenças de significado afetam consistentemente a família
Considerando-se que o luto coloca o indivíduo em situação de vulnerabilidade e estendendo-se
esse risco para o funcionamento familiar é possível delinear-se quais são os objetivos para cuidar da
família enlutada.
● obter e compartilhar o reconhecimento da realidade da morte
● compartilhar a perda e colocá-la em contexto
● reorganizar o sistema familiar
Essas considerações trazem uma preocupação, no que diz respeito aos cuidados na formação
do profissional que trabalha com luto. Como luto não é doença, nem todo enlutado precisa de
psicoterapia. Menos ainda de medicação... Conseqüentemente, é preciso desenvolver critérios
adequados para esse exame e há a necessidade de uma avaliação cuidadosa sobre a melhor
intervenção psicológica formal.
Se pensarmos em um protocolo com as pessoas enlutadas, o primeiro passo seria avaliar a
necessidade, a partir da demanda da pessoa ou do grupo enlutado. Em seguida, essa necessidade
seria colocada lado a lado com os recursos disponíveis da pessoa enlutada, sejam psicológicos,
espirituais, socioculturais, religiosos, econômicos.
Tecnicamente falando, utiliza-se psicoterapia breve, com foco no luto e possibilidade de mudança de
abordagem, de acordo com o andamento do processo. Ainda assim, aspectos específicos, por se
tratarem de luto, são imperativos.
Para finalizar, destaca-se a necessidade de uma compreensão do luto que reconheça a revisão
fundamental de nosso mundo presumido, de nosso sistema de crenças, de nossas narrativas de vida.
Paralelamente, tanto para o profissional como para a pessoa enlutada, é necessário colocar esforço

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para entender o luto e idiossincraticamente reconstruir o mundo com significado, restaurando a
coerência à narrativa de nossa vida. Luto antecipatório é entendido também como um processo de
construção de significado. O seu conceito apresenta a possibilidade de elaboração do luto, a partir do
processo de adoecimento.

Alguns autores o definem e descrevem, como a seguir:


● Fulton e Fulton (1971): depressão, preocupação acentuada com a pessoa doente, ‘ensaio’ da morte,
tentativa de se ajustar às conseqüências da morte
● Rando (1997): permite também absorver a realidade da perda gradualmente, ao longo do tempo;
resolver questões pendentes com a pessoa doente (expressar sentimentos, perdoar e ser perdoado);
iniciar mudanças de concepção sobre vida e identidade; fazer planos para o futuro, de maneira que não
sejam sentidos como traição ao doente
O processo de luto tem início, portanto, a partir do momento em que é recebido o diagnóstico de
uma doença fatal ou potencialmente fatal, pelas perdas, concretas ou simbólicas, que esse diagnóstico
possa trazer para a pessoa e sua família. As perdas decorrentes estão relacionadas à: segurança,
funções físicas, imagem corporal, força e poder, independência, auto-estima, respeito dos outros,
perspectiva de futuro.
A família do paciente também se envolve nesse processo, vivenciando-o de maneira específica.
Numa tentativa de organização dessa experiência, podemos localizar as seguintes fases, do ponto de
vista da família: crise, crônica e final.
A fase de “crise” inicia-se antes do diagnóstico, quando a família tem alguma percepção ou
interpreta sintomas como risco, e une-se para lidar com os sintomas e sistemas médicos. Naturalmente,
as interpretações que a família faz sobre sintomas e sinais estão fundamentadas em seu sistema de
crenças e modo de funcionamento.
A fase “crônica” traz o desafio de viver uma vida normal, em condições anormais. Surgem crises
agudas, que levam paciente e família a aceitar mudanças decorrentes de exacerbações e crises
agudas. Lamentam a perda da identidade pré-doença e a família mais informada tenta equilibrar
necessidades de cuidados com outras necessidades da família.
Na fase final da doença, quando a inevitabilidade da morte está clara, o que se
encontra (ou que se quer) é:
● Para a família: dificuldade em lidar com a separação e o luto
● Ter mais oportunidade para resolver questões não resolvidas
● Ajudar o paciente a expressar preocupações e desejos
● Despedir-se
O ajustamento emocional da família à doença faz uso de algumas estratégias de controle, como:
● confiança em controle preditivo (expectativas positivas)
● controle vicariante (atribuir poder ao setting médico)
● controle ilusório (sorte e desejo)
● controle interpretativo (adquirir conhecimento)
A existência de um cuidador na família chama a atenção para suas necessidades específicas,
relativas a:
● saúde desse cuidador
● questões de gênero na predição de vulnerabilidade a sofrimento psicológico

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● vínculo conjugal, sexualidade: programas educativos e terapêuticos
No enfrentamento da doença e do luto antecipatório pela família, há fatores facilitadores e
fatores complicadores.
Os fatores facilitadores são:
● Estrutura familiar flexível que permita reajuste de papéis
● Boa comunicação com a equipe profissional e entre os membros da família
● Conhecimento dos sintomas e ciclo da doença
● Participação nas diferentes fases, para obter senso de controle
● Sistemas de apoio informal e formal disponíveis
Os fatores complicadores são:
● Padrões disfuncionais de relacionamento, interação, comunicação e solução
de problemas
● Sistemas de suporte formal e informal não existentes ou ineficientes
● Outras crises familiares simultâneas à doença
● Falta de recursos econômicos e sociais. Cuidados médicos de pouca qualidade e dificuldades na
comunicação com a equipe médica
● Doenças estigmatizantes, pouca assistência
Alguns fatores são preponderantes na fase próxima à morte:
● Compreender o processo da morte
● Lidar com cuidadores e instituições
● Reestruturar emocionalmente as relações com a pessoa à morte
● Utilizar eficazmente os recursos disponíveis
● Lidar com as próprias emoções e o luto
● Compreender as necessidades da pessoa à morte
● Continuar se relacionando com a pessoa à morte, mantendo-a incorporada ao
sistema familiar
● Planejar-se para a continuidade da vida familiar
● Buscar significado na morte
O profissional que trabalha com pacientes à morte apresenta suas necessidades
também, principalmente quanto à sensibilidade:
● pela pessoa total
● para problemas de dor e desconforto
● para buscar comunicação honesta e aberta
● pela autonomia e necessidades do indivíduo
● pelas diferenças culturais
● pelos objetivos
● pelas famílias
● pelos diferentes grupos etários e étnicos
● pelo próprio self
Portanto, nunca será demais ressaltar que discursos sobre a morte e o luto refletem nossa
ideologia que, por sua vez, busca expressão para os valores da cultura. O pesquisador e o clínico não
devem subestimar o que colocam de subjetivo em sua pretensão de desenvolver uma posição objetiva.
Este é um ponto altamente significativo: as representações de boa ou má morte não são questões

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exclusivamente psicológicas, expressas e compartilhadas por indivíduos. São maneiras de ver a morte
culturalmente prescritas, que servem para delinear a ordem social. Geralmente a morte, seja boa ou
má, é associada a uma vida anterior e, ainda, à vida pós-morte, que também é avaliada como boa ou
como má.

Referência Bibliográfica:
1. Anderson C. Aspects of pathological grief and mourning. International Journal of
Psychoanalysis 1949; 38:48-55.
2. Freud S. Mourning and melancholia: the standard edition of the complete psychological
works of Sigmund Freud. Londres: Hogard; 1953. (original publicado em 1917).
3. Kardiner A. The traumatic neuroses of war. Nova Iorque: Hoeber; 1941.
4. Lindemann E. The symptomatology and management of acute grief. American Journal of
6. Parkes CM. A Historical Overview of the Scientific Study of Bereavement. In: Strobe M,
Hansson RH, Stroebe W, Schut H. Handbook of bereavement research: consequences,coping
and care. Washington, D C: American Psychological Association; 2001.

14. BIOÉTICA: REFLETINDO SOBRE OS CUIDADOS

Reinaldo Ayer de Oliveira


Ricardo Tavares de Carvalho

As relações entre a filosofia moral (teoria) e a ética aplicada (prática) correspondem a um tema
contemporâneo. As questões relacionadas com os fundamentos da autonomia do indivíduo geraram
significativos avanços na posse de um poder que foi e ainda é, muitas vezes, delegado. Na área da
saúde, a partir dos anos 70 surge um campo de reflexão chamado Bioética.
Segundo Leone et al (Dicionário de Bioética, 2001), a Bioética surgiu como um fenômeno cultural:
“Emergiu da exigência, cada vez mais presente no seio da sociedade contemporânea, de melhorar a
posição das suas estruturas ou reformular determinados aspectos delas, na esteira das genuínas
indicações éticas”. Isto significa, em certa medida, uma ética prática. A forte presença de desafios éticos
gerados pelos avanços técnicos e científicos, na área da saúde, atingiu seu auge com a divulgação
ampla (diretamente relacionada ao desenvolvimento dos meios de comunicação) da possibilidade do
homem de interferir de modo eficaz nos processos de nascimento e morte. (Atienza apud Vázquez,
1999)2.
O termo Bioética foi criado e posto em circulação em 1971, no livro do norteamericano Van
Rensselaer Potter, Bioethics: Bridge to the Future.
Potter referia: “O propósito deste livro é contribuir com o futuro da espécie humana promovendo a
formação de uma nova disciplina, a disciplina da Bioética”. Insistia Potter: “Se existem duas culturas que
parecem incapazes de falar uma com a outra, essas são: ciências e humanidades – e, se isto faz parte
das razões para que o futuro se mostre tão incerto, então possivelmente nós teríamos de estender uma
ponte para o futuro, construindo a disciplina de Bioética como ponte entre as duas culturas”.
Como responder a este desafio?

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Como estabelecer a ponte entre o conhecimento (ciência e cientistas) e a sabedoria
(humanismo)?
Na raiz destas questões, encontra-se a emergência de uma ética aplicada, sobretudo, no campo
da saúde, mais especificamente no campo da medicina.
A possibilidade de inseminação artificial por meio de reprodução assistida, a experimentação com
seres humanos, o transplante de órgãos, a psicofarmacologia e outros passos do desenvolvimento
científico e tecnológico, que ocorreram até meados do século XX, promoveram uma verdadeira
revolução no enfrentamento dos problemas morais que se apresentavam à medicina e que, em geral,
podiam ser resolvidos por um código de deontologia profissional e uma ética de inspiração hipocrática,
de caráter, essencialmente, paternalista do médico com relação ao doente (paciente). Hipócrates,
nascido na Grécia no ano 460 a.C., plasmou uma mentalidade médica paternalista, em todo mundo
ocidental, por muitos séculos. Entretanto, nos anos 50/ 60 as normas (códigos profissionais) relativas às
práticas de saúde tornaram-se insuficientes para a definição ética quanto às condutas com os
pacientes, sobretudo, quando valores morais estavam envolvidos nas condutas.
Um exemplo marcante destes conflitos éticos, ocorreu quando, em 1960, Belding Screibner
inventou e criou o primeiro centro de hemodiálise. Como não havia equipamento suficiente para o
tratamento de todos os pacientes com indicação para essa terapia surgiram problemas para definir
critérios de prioridades. Nesta ocasião, foram constituídos os primeiros comitês de ética médica para
deliberação coletiva sobre prioridades e competências. Na ocasião ficou muito claro que a aplicação
dos conhecimentos e os avanços científicos e tecnológicos desencadeavam questões e desafios éticos.
Assim também ocorreu quando da possibilidade de manter vivo recémnascido com múltiplas e graves
afecções; prolongar a vida de pacientes com doenças graves; utilizar tecnologias que permitiam o
transplante de órgãos, a reprodução assistida (o nascimento da primeira criança por fertilização in vitro
ocorreu em 1978), o diagnóstico pré-natal, a terapia gênica e outros.
Como bem destaca Mainetti, junto ao progresso técnico-científico e seus problemas normativos,
se desenvolveu, nos anos 60, um movimento político e social orientado para defesa dos direitos civis e
dos consumidores, questionador de toda autoridade, defensor das minorias e marginalizados – negros,
mulheres, homossexuais, estudantes... e doentes (pacientes). O primeiro choque entre estas forças –
progresso biomédico e “public interest movement” como expressão de uma moral civil e instrumento
de mudança política – apareceu com a controvérsia pública, acadêmica e política sobre os
episódios de abuso na experimentação humana nos campos de concentração na Segunda Grande
Guerra5.
Os autores passaram a discutir o interesse por uma ética substancial que tinha como causa direta,
de um lado, as mudanças sociais que se multiplicavam tanto no plano da vida privada (a liberação
sexual, o materialismo, a contestação das formasde autoridades etc.) quanto no plano da vida pública (a
afirmação dos direitos indivi duais e coletivos, a descolonização etc). Por outro lado, esse interesse
visava particularmente ao desenvolvimento das técnicas e das ciências, que apresentavam uma dupla
face: uma associada ao progresso (melhora das condições de vida, da saúde, habitat etc), a outra
apresentando perigos (degradação do meio ambiente, manipulação técnica do ser humano etc). Assim
os debates no plano da filosofia moral voltaram-se progressivamente para as questões de justiça
(coletivo) e qualidade de vida (indivíduo). Uma parte dessas discussões é aquilo que se identifica
atualmente e que diz respeito a situações próprias da vida cotidiana e consiste em análises de casos
práticos tais como se apresentam, por exemplo, nos hospitais. O caso da pessoa, do indivíduo, passa a

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ser considerado em todas a suas particularidades, provocando e exigindo posicionamentos particulares
e específicos. Essa abordagem ética diretamente ligada a situações concretas é o exercício de uma
ética aplicada.
A expressão ética aplicada, ao referir-se a uma análise ética de situações precisas, põe o acento
sobre a resolução prática. Aqui a importância é dada ao contexto, à análise das conseqüências, à
tomada de decisão. Esse propósito, mais descritivo que reflexivo, exerce-se sobretudo nos setores das
práticas sociais e profissionais.
A Bioética – como categoria da ética prática – apresenta-se como um novo campo de indagações
e reflexões sobre o conhecimento científico e os avanços tecnológicos em saúde – vinculado à pessoa
humana.
Lucien Séve cita um interessante texto de Marx:
“É somente pela relação com o homem Paulo, seu semelhante, que o homem Pedro se refere a si
próprio enquanto homem. Mas, ao fazê-lo, o referido Paulo, com toda a sua corporeidade pauliniana de
carne e osso, toma igualmente para ele valor de forma fenomenológica do gênero humano”, Karl Marx,
O Capital.
Portanto, nada mais elementar, à primeira vista, do que a idéia da Bioética voltada para a pessoa
humana.
Mainetti ensina: “Do ponto de vista etimológico stricto sensu o vocábulo Bioética’ seria objetável,
pelo menos redundante, quando é traduzido literalmente como ética da vida, já que ‘bios’ em grego
significa vida humana e só a esta se refere à conduta moral. Neste sentido toda ética é – e sempre tem
sido – Bioética”.
A novidade da terminologia traz, entretanto, outra conceituação: a qual bio e a qual ethos se refere
a bioética? Por definição trata-se da biologia ou biomedicina e da ética aplicada a conduta humana
neste campo do saber.
Assim, para nos aproximarmos do conceito de Bioética é preciso discutir ética, valor e moral.
Cohen e Segre nos ensinam que não se nasce com os conceitos de valor, de moral e de ética;
eles vão sendo introjetados a partir da experiência de vida. Vão sendo construídos na interação com a
realidade. Claude Lévi-Strauss alega ser o homem um ser biológico (isto é, produto da natureza) e, ao
mesmo tempo, um ser social (isto é, produto da cultura)...é um ser de ambigüidade: produto da natureza
(leis da natureza) e da cultura (leis da cultura).
O conceito de valor está vinculado com a noção de preferência ou de seleção aquilo que vale para
um determinado momento num determinado grupo. E moral é entendida como um sistema de valores,
do qual resultam normas que são consideradas corretas por uma determinada sociedade (ou grupo). É
um sistema de regras definidas fora do íntimo do ser humano, que cada indivíduo deve seguir para que
possa ser aceito na sociedade em que vive (ou no grupo do qual faz parte).
A moral está contida nos códigos, regulamentando o agir das pessoas numa sociedade.
A lei moral ou seus códigos caracterizam-se por serem normas, que usualmente têm por
finalidade definir um conjunto de direitos ou deveres do indivíduo e da sociedade.
Ética e moral são preceitos básicos que regem os atos e as decisões de um indivíduo no decorrer
de sua vida, mas, ao contrário da moral, a ética não estabelece regras.
A elaboração ética implica indagação, análise e reflexão crítica sobre os valores. É uma ação de
dentro para fora; nasce a partir de valores intrínsecos de cada indivíduo, que o ajuda a definir o que é
certo ou errado, o que é justo ou injusto em uma ação humana.

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Tudo que diz respeito ao ser humano e a sua vocação como pessoa envolve a ética. A elaboração
ética qualifica o ser humano.
Em seu sentido mais profundo, ética é o modo de cada indivíduo viver na sociedade, a forma
como interpreta a vida e dá respostas a ela. Vivendo, o homem vai construindo sua própria dimensão
ética: definindo e fortalecendo seus valores, desenhando o seu caráter.
É a elaboração ética de um homem que determina a consciência dos seus atos, a vivência dos
conflitos ao tomar decisões, a coerência ou não da sua atitude e, sobretudo, a forma como assume a
responsabilidade sobre eles. Por isso, a ética não está dada. Precisa ser construída a cada dia, de
acordo com o aprendizado humano, por meio de experiências, tomada de decisões e discussão sobre
as conseqüências dessas decisões. E, como todo aprendizado humano, é pelo conflito e pela
consciência do
conflito (que envolve o agir humano numa sociedade) que o pensamento ético de uma pessoa vai
se desenvolvendo.
Reich (1978) define Bioética como “estudo sistemático da conduta humana, na área das ciências
da vida e dos cuidados de saúde, quando se examina esse comportamento à luz dos valores e dos
princípios morais”. Esta definição que consta da Encyclopedia of Bioethics traz o caráter de Bioética
aplicada, não significando, entretanto, uma nova moralidade ou sistema ético, mas sim: um sistema de
reflexão8.
Sgreccia define como “Filosofia da investigação e da prática biomédica” . Leone, como “parte da
ética que estuda os problemas inerentes à tutela da vida física e, em particular, às implicações éticas
das ciências biomédicas”.
Segre (1995) define como “a parte da Ética, ramo da filosofia, que enfoca as questões referentes
à vida (e, portanto, à saúde)” e acrescenta: “Tendo a vida como.
objeto de estudo, trata também da morte (inerente à vida)”
Considerando que a Bioética se fundamenta como prática de reflexão ética, ela se estrutura de
modo profundamente interdisciplinar, em diálogo contínuo com as diversas disciplinas interessadas no
problema da vida, como um novo modo de operar a reflexão científica sobre problemas morais. Desta
maneira, ela se distingue da ética médica, com seu campo deontológico específico.
Outro aspecto a ser ressaltado é a dimensão social da Bioética. No passado a medicina era
fundamentalmente uma arte, e a ética médica preocupava-se sobretudo com a relação médico-paciente
e com as relações entre os médicos. As normas estabelecidas, por meio de códigos, diziam respeito
apenas aos profissionais médicos.
A partir do século XIX, a medicina passa a ser uma ciência experimental e, a artir da segunda
metade do século XX, tornou-se uma ciência com fortes traços de tecnologia. Nessa medida, a
biomedicina (termo cunhado para dar amplitude à ciência e à arte médica) passou a fazer parte das
ciências experimentais com forte impacto social. Se por um lado há o direto à liberdade de investigação,
de outro lado, esse direito não é absoluto e tem de ser considerado em articulação com o bem público e
a vontade de uma sociedade livre, sobretudo, quando essa investigação envolve seres humanos. Em
grande parte, as novas tecnologias incorporadas pela biomedicina tiveram, e continuam tendo,
repercussões que ultrapassaram em muito às relações médico-paciente. Além disso, houve reflexos em
áreas sociais que têm a ver com a família, a economia, o direito, a psicologia, a filosofia, a teologia e
outras. Os conflitos que surgem já não podem ser assumidos apenas pela categoria dos profissionais
médicos, mas passam a exigir a participação de toda sociedade.

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A Bioética tornou-se o espaço de reflexão ética e de diálogo entre as diversas especialidades do
conhecimento científico examinado “à luz dos valores e dos princípios morais”.
A introdução dessa dimensão social faz com que a Bioética situe-se na interface de vários
saberes, notadamente: da biomedicina (biologia e medicina), das humanidades (filosofia, ética, teologia,
psicologia, antropologia), das ciências sociais (economia, sociologia) e do direito.
O discurso a ser utilizado nessa nova disciplina não pode ser dogmático nem persuasivo, mas,
antes, criativo. Baseado num diálogo inter e transdisciplinar, pluralista, que deverá aprofundar as
relações de raízes históricas, culturais e religiosas dos diferentes articuladores de posições.
Como se pode ver, a Bioética surgiu a cerca de um quarto de século, como um conjunto de
preocupações éticas levantadas por cientistas, a partir do desenvolvimento científico e da divulgação
desse conhecimento.
Impulsionada pela necessidade de responder aos problemas morais decorrentes das novas
tecnologias médicas, a Bioética estendeu a sua preocupação aos problemas da biologia, da
interferência dos seres vivos numa visão a longo prazo, assim como da sobrevivência do homem no
nosso planeta. Passou a caracterizar-se por incorporar uma dimensão social, de natureza
transdisciplinar e pluralista.
Por fim, defini-se Bioética como o saber transdisciplinar que projeta as atitudes éticas que a
humanidade deve tomar ao interferir com o nascer, o morrer, a qualidade de vida, e a interdependência
de todos os seres humanos. Archer ensina que a Bioética é a expressão da consciência pública da
humanidade. (Archer, apud Archer et al 1996).
Para efeito deste texto é imprescindível algo sobre o humanismo. Entende-se por humanidade –
humanitas – “a forma acabada, ideal do espírito do homem”. Era nesse sentido que os gregos usavam a
palavra humanitas, da qual derivou o substantivo humanismo e seu conceito.
Pode-se entender, também, a humanidade como a natureza racional do homem, datada de
dignidade e, portanto, fim para si mesmo.
Esse é o significado que a palavra assume no imperativo categórico de Kant: “Age de tal maneira
que trates a Humanidade tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre também
como fim e não somente como meio”.
Ainda de Kant é a definição: “Humanismo significa, por um lado, o sentimento universal de
simpatia e, por outro, a faculdade de poder comunicar pessoal e universalmente; essas são duas
propriedades que, juntas, constituem a sociabilidade própria da humanidade, graças à qual ela se
diferencia do isolamento animal”.
Nesta medida, Protágoras afirmava que o humanismo toma o homem como “medida das coisas”
(Abbagnano, N. 2000).
Atualmente ao se pensar em humanidades e na “medida das coisas” é preciso considerar que
violência no comportamento e nas relações entre as pessoas é um problema da sociedade, resultado
de fatores sociais e culturais e históricos, entre os quais, o esmaecimento dos valores humanísticos. Na
área da saúde, o resgate desses valores e o desenvolvimento de práticas que agreguem à competência
técnica o
OLHAR HUMANO sobre a totalidade dos conhecimentos.
A prática médica fundamenta-se na relação entre duas pessoas – é sempre uma interação. No
caso entre o médico e o doente, como em qualquer relacionamento afetivo entre duas pessoas, há um
conflito, pois nele são observadas todas as emoções características do ser humano.

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Temos certo que: “O encontro com outra pessoa sempre provoca estado de turbulência
emocional, pois significa sair de um estado afetivo para adaptar-se a presença do outro, e que será
sentido das mais diferentes formas. Entretanto, será essa percepção emocional que nos permitirá
avaliar a presença do outro, podendo como ele se relacionar”
Isto posto, pergunta-se como a Bioética relaciona-se com Cuidados Paliativos.
O termo “paliativo” deriva do latim pallium que significa “manto”, capote. Também significa: que ou
quem tem a qualidade de acalmar, abrandar temporariamente um mal.
O termo “cuidado” deriva do latim que significa cura.
Essencialmente, Cuidado Paliativo significa aliviar os sintomas, a dor e o sofrimento em pacientes
portadores de doenças crônicas, progressivas, avançadas, degenerativas, incuráveis ou doenças em
estágio final. O cuidado visa ao paciente em sua globalidade de pessoa humana, na tentativa de
oferecer foco e significado na qualidade de vida. Não por acaso, os cuidados paliativos surgem nos
anos 60 e Cicely Saunders, médica britânica, expressa: “Cuidados paliativos se iniciam a partir do
entendimento de que cada paciente tem sua própria história, relacionamentos, cultura e que merecem
respeito, como um ser único e original. Este respeito inclui, proporcionar o melhor cuidado médico
disponível (...) de forma que todos tenham a melhor chance de viver bem o seu tempo”.
É dessa maneira que a Bioética relaciona-se com os Cuidados Paliativos, ou seja, assumindo a
definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2002 “Cuidado Paliativo é a abordagem que
promove
qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade
da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento,
o que requer a identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas
de natureza física, psicossocial e espiritual.” OMS, 2002.

Referências Bibliográficas:

1. Canto-Sperber M. Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo, RS: Unisinos; 2003.
v. 1, p. 595-600.
2. Leone S, Privitera S, Cunha JT da, coords. Dicionário de bioética. Aparecida, SP: Ed.
Santuário; 2001.
3. Potter VR. Bioethics: bridge to the future. New Jersey: Prentice-Hall, Englehood Clifs;
1971.
4. Potter VR. Bioethics, the science of survival. Perspectives in Biology and Medicine 1970;
14:127-153.
5. Mainetti JA. Compêndio bioético. La Plata. ES: Editorial Quiron; 2000.
6. Seve L. Para uma crítica da razão bioética. Lisboa, PT: Instituto Piaget; 1994.
7. Segre M, Cohen C, orgs. Bioética. 3. ed. São Paulo: EDUSP; 2002. Cap. 1: Definição de
valores, moral, eticidade e ética. p. 17-26.
8. Reich WT. The word “bioethics”: its birth and the legacies of those who shaped it. Kennedy
Institute of Ethics Journal 1994; 4(4):319-33.

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15. BIOÉTICA EM CUIDADOS PALIATIVOS

Ricardo Tavares de Carvalho


Reinaldo Ayer de Oliveira
Introdução
“Houve um tempo em que nosso poder perante a morte era muito pequeno. E, por isso, os homens e as
mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, nosso poder
aumentou. A morte foi definida como inimiga a ser derrotada. Fomos possuídos pela fantasia onipotente
de nos livrarmos de seu toque. Com isso, nos tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar.”
Rubem Alves

A medicina surgiu envolta num contexto prioritariamente humanístico e só depoisde muito tempo
assumiu o enfoque científico. Com seu avanço, surgiu a preocupação com o tratamento das doenças
que colocavam em risco vidas humanas e, para isso, criou-se um arsenal cada vez maior de recursos
técnicos. Entretanto, houve uma perda do equilíbrio entre a disponibilidade dos recursos e a forma mais
apropriada de empregá-los. Surgiu a necessidade de uma padronização de normas de condutas
voltadas para o bem-estar do paciente, de forma não mecanicista, mas que também não tivessem um
caráter simplesmente subjetivo1. Com isso, nasceu a Bioética.
A Bioética vem sendo encarada e discutida de diversas formas (ética de princípios, ética do
cuidado, ética das virtudes, ética do cotidiano etc) mas, de qualquer maneira, trata-se da abordagem
para uma interpretação moral, visando auxiliar o indivíduo diante de dilemas. Trata-se de uma
interpretação dos princípios fundamentais da assistência: fazer o bem e não causar o mal, respeitando
as deliberações das pessoas, de modo justo2.
A tarefa da ética é a procura e o estabelecimento das razões que justificam o que “deve ser feito”.
Fala de motivação, resultados, ações, ideais, valores, princípios e objetivos. A ética pode ser
considerada como uma questão de indagação e não de normatização do que é errado. Assim, “a ética é
um dos mecanismos de regulação das relações sociais do homem, que visa garantir a coesão social, e
harmonizar interesses individuais e coletivos.
Hoje, “a abordagem ética contemporânea é fruto de uma sociedade secular e democrática; afasta-
se das conotações das morais religiosas apesar de ser um campo de estudo e reflexão de inúmeros
grupos; constitui-se em uma ética pluralista que aceita a diversidade de enfoques, posturas e valores. A
abordagem é interdisciplinar, servindose da colaboração e interação da diversidade das ciências
biológicas e humanas”.
Nesse sentido, a Bioética, como a filosofia de Cuidados Paliativos, por sua perspectiva,é
humanista e tende a ver a pessoa em sua globalidade sempre contextualizando cada situação em
busca da melhor solução sem definir, a priori, o que é certo e errado.
Os profissionais de saúde e a sociedade precisam refletir sobre esses assuntos com muito
cuidado. Para isso, é de fundamental importância não só aspectos técnico-
científicos mas também valores pessoais. Nossa cultura está tão fortemente baseada no
materialismo, motivada pela prioridade do bem-estar material, que experimentamos uma necessidade
coletiva de preservar a aparência de felicidade. Dor, sofrimento e morte são sentimentos abafados pela
consciência pública coletiva.

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Independente desses fatos, qualquer médico sabe por experiência própria que uma doença
raramente é orgânica ou psíquica ou social ou familiar. O profissional sabe que ela é orgânica, psíquica,
social e familiar.
Quando um paciente procura atendimento médico, invariavelmente está buscando cuidados que
não se limitam simplesmente a livrá-lo do mal-estar físico.
A relação médico-paciente nunca deixará de ser uma interação baseada na empatia e confiança.
Por mais assimétrica que seja, somente será eficaz se for conduzida com acolhimento, escuta ativa,
esperança embasada em fatos e garantia de cuidado integral para o enfermo.
Nesse sentido, deve-se ter a clareza de que os sintomas são mensagens a serem decodificadas.
Fica cada vez mais evidente que os seres humanos constituem uma realidade complexa de integração
entre sensação, percepção e representação.
O modelo reducionista adotado pela medicina cartesiana tornou linear a relação entre sintoma,
sinal clínico e doença. Entretanto, a realidade impõe dificuldades adicionais ao atendimento. Como
estabelecer uma relação que poderia ser considerada padrão” diante do precário preparo dos
profissionais para essa questão relativa à comunicação?
Induz-se naturalmente à formação de um sistema massificado. Assim, como cita José Eduardo
Siqueira: “A assistência médica hoje praticada aponta para a cruel realidade que pode ser assim
resumida: atender o paciente em cinco minutos, prescrever qualquer droga e desfazer-se o mais rápido
possível desse incômodo e mal-pago compromisso. Médico e paciente fisicamente tão próximos e
afetivamente tão distantes sequer se olham ou se tocam. Em verdade sequer se respeitam.”
“Pratica-se desse modo o mais perverso modelo de medicina: a medicina cega e surda. Cega,
porque se limitando a compreender a doença apenas como pobres variáveis anatômicas ou
bioquímicas, não enxerga o ser humano como ele verdadeiramente é. Surda, porque o paciente, não
sendo acolhido como sujeito, é impedido de manifestar-se como tal”4.
Uma filosofia de atendimento voltada para Cuidados Paliativos representa um movimento
totalmente antagônico a esse modelo por considerar o paciente em seus aspectos biográficos, inserido
em seu contexto familiar e de vida.

Qualidade e Sacralidade de Vida: Razões para Tratar?

Richard McCormink, bioeticista católico, reflete de forma muito pertinente sobre a questão do
entendimento da vida humana na sua caracterização sacral e qualitativa.
O autor descreve o conceito de vida como condição para outros valores e conquistas.
É claro que antes de qualquer experiência humana, resposta, ou conquistaser possível, deve
existir vida. Neste sentido, a vida é uma condição para todos os outros valores e experiências. A vida
pode significar duas coisas: um estado de funcionamento humano (capacidade), e, portanto, um bem
útil, ou a existência de processos vitais e metabólicos com nenhuma capacidade ou funcionamento
humano.
Argumenta-se que a expressão “qualidade de vida” implica em que nem todas as vidas sejam
igualmente boas ou mereçam igual proteção. Desta forma, é essencialmente discriminatória. Por outro
lado, falar em termos de que “toda vida” possui “igual valor” revelaria uma preocupação legítima (que o
tratamento médico não possa ser negado ou descontinuado de forma que viole os direitos das

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pessoas). Para McCormick esta não é a questão. Na verdade, “toda pessoa” é de “igual valor”, mas não
“toda vida”.
McCormick propõe que enquanto todas as pessoas são de igual valor, a vida física tem valor para
uma pessoa somente na medida em que ela a capacita a atingir o bem maior, Deus, através do amor
pelos outros. Ele propõe então a “potencialidade relacional” como um critério discriminativo para permitir
a ocorrência da morte. A vida é um bem relativo, não absoluto, e não precisa ser preservada se ela se
caracteriza por inconsciência permanente ou sofrimento tão extremo que compromete seriamente
a própria habilidade de amar as outras pessoas.
Historicamente, esse princípio foi distorcido e incorporado de forma errada, sob a influência da
promessa do poder médico e do progresso.
Ao assumir para si o princípio da santidade da vida como sua responsabilidade e vendo-se a si
própria como o único agente eficaz para fazer valer esse princípio, contra as devastações da natureza,
a medicina atribuiu-se um papel sagrado, que foi sancionado pela sociedade.
É importante entender essa servidão entre a medicina científica e o princípio da santidade da vida
como um equívoco. Não é sempre verdade que a Medicina aperfeiçoa a vida; ela poderá ou não fazê-la,
dependendo de como for utilizada.

Considerações sobre Futilidade

‘ Políticas institucionais sobre o uso de medidas de suporte de vida e ressuscitação cardiopulmonar


(RCP) deram ao conceito de futilidade um papel importante no processo clínico de tomada de decisão.
Recentemente, entretanto, há uma tendência de afastar-se a discussão do termo “futilidade” porque,
embora os profissionais de saúde e familiares estejam familiarizados com a idéia de não oferecer
tratamentos fúteis, definir futilidade é muito difícil.

a) O conceito e aplicação do termo “futilidade”

“confundir um tratamento fútil com a futilidade da vida é uma séria ofensa à dignidade humana...”
Edmund Pellegrino
Poucas décadas atrás, a prática médica era caracterizada pelo paternalismo. Os médicos
determinavam sozinhos ou em conjunto com os seus colegas a utilidade e indicação dos diversos
tratamentos.
A mudança radical em direção aos direitos do paciente tem sido cada vez mais presente como
oposição ao paternalismo. Além disso, discussões políticas e filosóficas sobre os direitos da pessoa
humana elevaram o princípio da autonomia a uma posição nunca antes alcançada. Tamanha tem sido a
importância da autonomia que este conceito passou a definir um padrão de obrigações morais dos
médicos para com seus pacientes. Assim, em respeito à ética e à lei, o tratamento considerado fútil,
pelo médico, não seria obrigatório.
Uma ação fútil é aquela através da qual não se pode atingir os objetivos por mais que se repita o
processo. A probabilidade de falha pode ser previsível porque é inerente à natureza da ação proposta.
Entretanto, isso pode se tornar imediatamente óbvio ou apenas depois de múltiplas tentativas
frustradas.

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O simples conceito de futilidade não deve, entretanto, ser auto-suficiente. Uma série de questões
necessita discussão adicional. Em primeiro lugar, julgamentos sobre futilidade podem ser entendidos
apenas relativamente a objetivos particulares e, desta forma, uma intervenção pode ser fútil em relação
a um objetivo, por exemplo, a cura, mas efetiva em relação a outro, o cuidado paliativo. Dessa forma,
uma ação é fútil ou não, dependendo do seu propósito. Além disso, a futilidade tem que ser entendida
em termos de probabilidade. Tratamentos fúteis são aqueles em que se têm certeza de falha ou
pequena probabilidade de sucesso.

b) É importante não confundir “futilidade” com “dano”

Às vezes, um tratamento não é oferecido por ser danoso, suas desvantagens superam os
benefícios. Às vezes, um tratamento é interrompido por ser fútil, ele simplesmente não funciona.
Naturalmente, alguns tratamentos são danosos e fúteis, embora essas características sejam razões
diferentes para que os mesmos sejam evitados.
Não oferecer tratamento danoso conta com uma justificativa ética, o princípio da não-maleficência.
Entretanto, as razões para não receber um tratamento fútil não apresentam princípios tão claros9.
Deve-se também fazer distinção entre os termos futilidade fisiológica e normativa.
O tratamento é definido como fisiologicamente fútil se for extremamente improvável que se atinja o
seu objetivo clínico. Entretanto, é considerado normativamente fútil se provavelmente não beneficiar o
paciente. Em muitos casos futilidade fisiológica também será futilidade normativa porque se o
tratamento não funciona é improvável que beneficie o paciente. Esta distinção é importante porque um
tratamento é considerado normativamente fútil quando envolve julgamentos sobre os interesses dos
pacientes.
A futilidade fisiológica não envolve tais julgamentos. Por exemplo: por mais que seja claramente
fútil (fisiologicamente) dialisar um indivíduo séptico não- responsivo a toda terapêutica já instituída, em
falência múltipla de órgãos e com câncer metastático (a medida não fará qualquer diferença na
evolução final do paciente), pode ser que, normativamente, represente a última possibilidade de que,
aliviado da uremia e com nível de consciência apropriado, o paciente possa resolver pendências
pessoais e se despedir de seus familiares que chegam de longe.
Não há consenso sobre o quão improvável deva ser o sucesso de uma intervenção para que ela
seja considerada fútil. Alguns pesquisadores sugerem que um tratamento seja considerado fútil se não
houve eficácia nos últimos cem casos em que foi aplicado ou se um médico tiver 95% de certeza de que
uma intervenção não será bem-sucedida em pelo menos 3% dos casos10. Entretanto, essas definições
são obviamente arbitrárias. A ressuscitação cardiopulmonar (RCP) é a única intervenção médica
rotineiramente administrada na ausência de consentimento do paciente ou representante.
Entretanto, em alguns casos a probabilidade de benefícios é tão pequena que pode se considerar
a RCP e outros procedimentos sustentadores de vida como sendo fúteis em termos médicos. Por
exemplo, demonstrou-se em pacientes com câncer metastático uma resposta inicial à RCP com
sobrevida de horas ou dias, mas nenhum dos pacientes sobreviveu para alta hospitalar11. Alguns
estudos sugerem que a condição do paciente antes do evento de PCR seja preditivo de sobrevivência e
recuperação após a parada cardíaca12,13. O mesmo raciocínio pode ser usado para outras condutas
como uso de drogas e procedimentos invasivos como ventilação mecânica e diálise.

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A tomada de decisão com base no conceito de futilidade normativa é simples quando médicos e
pacientes estão em acordo. Futilidade normativa envolve preferências e valores do paciente sobre os
quais só ele pode arbitrar.
Qual deve ser a atitude quando um paciente quiser um tratamento considerado normativamente
fútil, por seu médico? O direito do paciente em requerer um tratamento fútil é limitado pelo dever médico
em promover terapêutica de acordo com padrões clínicos científicos e éticos. Os médicos só podem se
arriscar a causar dano ao paciente quando houver uma chance, pelo menos, razoável de benefício;
coagir médicos a instituir procedimentos danosos fazem deles “promotores de dano ou lesão, não
benefício”
.
b) A futilidade é realmente um motivo para não tratar?

Existem barreiras filosóficas para a justificativa de não tratar, baseadas no conceito de futilidade.
Considere a seguinte situação: um indivíduo não aposta em loteria regularmente porque acredita
que sua chance de ganhar é tão pequena que sua ação possa ser considerada fútil. Entretanto ele não
tem nenhuma objeção ética ao ato de jogar. Se este indivíduo ganhar, gratuitamente, um bilhete de
loteria, ele provavelmente o aceitará, apesar de sua crença de que jogar em loteria seja fútil, porque,
sem custo adicional algum, ele está recebendo a chance de ganhar alguma coisa. Este exemplo ilustra
o conceito de que, removendo-se o custo e o dano, não há razões para não fazer algo considerado
“fútil”, já que existe um potencial de benefício. Portanto, classificar uma ação como fútil não é por si a
razão que leva a não realizá-la. Dizer que algo é fútil é o mesmo que dizer que não há razões em favor
da realização desta ação.
Para justificar a opção de não tratar, os médicos precisam considerar elementos relativos ao bem-
estar do paciente e ao custo-efetividade. A baixa probabilidade de sucesso, isoladamente, não é
suficiente para justificar o ato de não tratar, porque alguma chance de sucesso, mesmo que pequena, é
sempre melhor do que nenhuma chance.
As diretrizes mais recentes advogam a discussão explícita sobre as condutas no final da vida com
todos os pacientes competentes e familiares, exceto se houver uma razão clara para que tal discussão
não seja do interesse do próprio paciente14. Essa discussão, porém, não significa necessariamente que
se tome uma decisão imediata. A discussão envolve a compreensão pelo paciente, familiares e equipe
que assiste o doente de que o paciente está morrendo. Deve-se explicar que podem haver mudanças
de objetivo no tratamento, incluindo a decisão de não-ressuscitar. Com a “popularização da medicina”
pelos meios de comunicação, distorceu-se muito a percepção do paciente e familiares sobre essas
questões.

Percepções do Paciente/Família e Influências Externas/Mídia

Médicos e pacientes freqüentemente compreendem diferentemente o quanto osdiversos


procedimentos médicos, de fato, funcionam ou trazem benefícios.
Estudos demonstram que os médicos têm dificuldades em discutir as taxas de sucesso de RCP e
de outros procedimentos com seus pacientes e não são capazes de estimar sobrevida de forma
apropriada.

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Os pacientes costumam superestimar a probabilidade de sucesso, e, em geral, não compreendem
o que significa, do ponto de vista fisiológico, uma parada cardíaca e os diversos procedimentos
médicos. Além disso, são muito influenciados por programas de televisão e revistas leigas, que
fornecem dados irreais e, muitas vezes, arbitrários, sobre as taxas de sucesso e riscos.
Por exemplo, a sobrevida e o prognóstico pós parada cardiorespiratória (PCR) em programas de
televisão são significativamente maiores do que as taxas mais altas relatadas na literatura médica. Em
estudo que levantou dados referentes a programas de TV com enfoque em atendimento de
emergência, a taxa de retorno à circulação espontânea foi de 75%, comparado a de 40% relatadas na
literatura. Além disso, a sobrevida a longo prazo foi de 67%, comparada a de 30%, relatadas na
literatura médica15. Comparar essas taxas com aquelas relatadas na literatura médica é problemático,
uma vez que o perfil dos pacientes atendidos nos programas de TV difere dramaticamente daquele
descrito na literatura em respeito a idade, doenças de base e causa da PCR.
Dessa forma, para auxiliar familiares e pacientes em sua tomada de decisão, os médicos devem
estimulá-los a discutir suas impressões pessoais e suas expectativas de sucesso. Deve-se assim
esclarecer percepções inapropriadas, fornecer dados reais sobre prognóstico e discutir especificamente
as diferenças entre a medicina vista em programas de televisão e aquela que é praticada na vida real.

Bioética Social. Base para a Filosofia de Trabalho em Cuidados Paliativos

“Não pode haver justiça se não houver compadecimento com o sofrimento.” Adela Cortina – VII
Cong. Brasileiro de Bioética 2007
Atualmente existe uma forte tendência que procura desvincular a Bioética da forma de pensar
baseada em princípios (ou seja, da chamada Bioética principialista, notabilizada por Beuachamps e
Childress16). Deste modo, tenta-se abrir a discussão para um aspecto mais cotidiano e aplicado,
voltado para um contexto social em que o homem seja valorizado e encarado como um cidadão, um ser
único.
Com o avanço do conhecimento médico, das técnicas de suporte de vida e transplantes, tem-se
procurado olhar mais criticamente até que ponto o homem pode ser beneficiado, de fato, por essa
evolução. Tenta-se estabelecer fronteiras mais claras (ou, pelo menos, individualizadas) entre prolongar
a vida e prolongar o processo de morte. O aspecto fundamental dessa questão é cuidar da saúde do
homem de forma que seu sentido de dignidade não seja maculado em nenhuma circunstância.
Entretanto, em uma sociedade desigual não só com relação à distribuição de renda, mas também
ao valor diferenciado por interesses políticos, impõe-se a necessidade de se pensar de forma mais
ampla em justiça social, mas uma justiça que envolva o acesso a cuidados médicos pelos indivíduos,
suas necessidades como cidadão, de forma particularizada, biográfica. Nesse contexto, em se tratando
de aspectos de cuidado a saúde, é que se insere a filosofia Hospice, a partir da qual se estabeleceu em
1975, no Canadá, o conceito de Cuidados Paliativos.
O ato médico consiste de ações dirigidas ao bem-estar físico, psíquico, social e espiritual, de
acordo com a definição de saúde da OMS. Nesse sentido a discussão do tema deve se basear na
efetividade de cada uma das condutas, ou seja, seu efeito benéfico frente aos custos e aplicabilidade
prática a cada contexto social e individual.
Não se deve pensar em uma medicina puramente eficaz, com procedimentos que tenham ação
terapêutica comprovada, se esses não forem compatíveis com asituação clínica, com a realidade

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econômica e social de cada país e comunidade e, portanto, não possam ser aplicados a eles. Os
indivíduos, e portanto as condutas médicas, não são estanques. Existem possibilidades diversas de
atuação em cada caso particular frente a um mesmo problema.
É claro que os princípios de respeito e, portanto, à autonomia individual são imperativos. Porém,
se não forem acompanhados por conceitos fundamentais como garantia de dignidade, privacidade e
integridade física e moral, não podem ser aplicados de forma adequada.
No final da vida existe uma condição particular que torna o contexto especial: a vulnerabilidade.
A partir dela, toda equipe multiprofissional volta-se para o núcleo paciente-família. Procura-se
prestar atenção a detalhes e à individualização. Todos devem falar a mesma linguagem envolvendo as
questões que norteiam o cuidado.
O ato de cuidar, por sua natureza integral, depende de planejamento adequado.
Não se trata apenas de excelência técnica, mas, sim, da prudência com que se aborda o paciente
e a sua família, precavendo-os e orientando-os sobre dificuldades futuras e oferecendo elementos para
prevenção e proteção frente ao sofrimento. Vale insistir que não se trata de paternalismo, mas de um
diálogo constante, baseado na coerência e consenso entre a equipe, o cuidador e o paciente. Isso
depende da clareza de comunicação e uma excelência na capacidade de argumentação e “escuta ativa”
para poder tomar a melhor decisão naquele caso, para aquela questão.
Feita a comunicação efetiva entre a equipe e o paciente-família estabelece-se confiança e vínculo,
pilares de estruturação na assistência em Cuidados Paliativos.
Como atuar de forma a priorizar essa visão e destinar a ela os recursos necessários?
A questão de priorizar recursos de forma justa constitui-se eixo central de discussão bioética no
século XXI. Como sustentar um modelo de assistência integral ao indivíduo portador de doenças
crônicas, ameaçadoras à vida e também à sua família se não se reconhece oficialmente como área de
atuação médica essa necessidade?
Como estruturar um sistema de ressarcimento dos serviços prestados, em esfera pública, para
essa necessidade emergente? Como trabalhar de forma digna e coerente com a competência técnico-
científica e humanística necessária para a boa prática de Cuidados Paliativos num país onde ainda não
se abriu os olhos para a sua existência?
Existe, nesse momento, esforços voltados para a regulamentação de Cuidados Paliativos como
área de atuação. Resultam não só da necessidade de equilíbrio e limites a todo desenvolvimento
científico e tecnológico mas também a uma conscientização da sociedade frente à realidade: a medicina
moderna ocupa-se do controle e combate a doenças. O indivíduo doente foi deixado à margem.
O resgate dessa valorização do homem alinhada com a dignidade social não pode mais ser vista
como dependente de iniciativas isoladas da medicina. Exige a presença consciente e uma abordagem
transdisciplinar, na qual as diversas áreas do conhecimento em saúde não apenas se somem, mas
façam parte da criação de um novo conhecimento, integrado, e que permita uma análise mais ampla do
indivíduo inserido numa situação de doença ameaçadora à vida.
Sem dúvida, mais que uma discussão acalorada entre especialistas em esferas governamentais e
a portas fechadas, o tema das atitudes tomadas e das decisões frente ao processo de morrer necessita
de um envolvimento de toda a sociedade. Esse é o “gigante adormecido” que temos que acordar... e
ouvir.
O indivíduo, não uma autonomia vazia.

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2019/2 88
Pouco valem as políticas sociais de atuação em saúde se não houver o reconhecimento da
responsabilidade de todos em orientar e formar indivíduos com plenitude para arbitrar sobre suas
próprias questões, inclusive sua própria morte, de maneira consciente e verdadeiramente autônoma.
Vivemos num país onde há limites à informação e ao acesso dos cidadãos ao conhecimento. Será
possível crer que, num contexto social economicamente desfavorável com cifras elevadas de
analfabetos funcionais (que não compreendem o que lêem), possa-se exercer escolhas autônomas,
baseadas em consentimento informado?
Mesmo sendo esse conceito de informar e obter consentimento de forma esclarecida uma prática
estabelecida em ética de pesquisa e de assistência, a condição de fragilidade do indivíduo em
sofrimento faz evidente, sempre, a necessidade de contextualizar.
Não podemos continuar presos à expectativa de manifestação clara de autonomia, numa situação
de extrema fragilidade e frente à necessidade de consentir formalmente, até por escrito, uma ação
médica. A manifestação legítima da inteligência e a sapiência de cada um são o que importa. São
capacidades integrativas, capazes de transformar em benefício próprio e que não dependem das
“letras”. Basta que o médico registre (em prontuário) o que for decidido de forma completa e fiel à
realidade.
A expressão espontânea da vontade individual não pode ser superada pela obrigatoriedade do
preenchimento de uma diretriz avançada padronizando condutas no fim da vida. As decisões são
dinâmicas. Dessa forma, a análise de situações particulares,
em cada momento, permite a abordagem mais acertada, baseada em uma conjugação de critérios
técnicos e valorativos.
Mas só podemos considerar que a assistência de saúde ao fim da vida seja de fato apropriada no
momento em que houver uma conscientização e ações práticas das esferas administrativas e gestoras
de recursos, buscando o bem social como caminho para o bem-estar individual.
O “bem viver” – a concretização da felicidade em vida e ao longo dela – é condição necessária e
fundamental para que de fato se consiga o “bem morrer”.

Referências Bibliográficas:

1. Lederberg MS. Disentangling ethical and psychological issues: a guide for oncologists.Acta Oncol
1999; 38:771-9.
2. Souza MTM, Lemonica L. Paciente terminal e médico capacitado: parceria pela qualidade
de vida. Bioética 2003; 11(1):83-100. 3. Fortes PAC. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e
legais, tomada de decisão,
autonomia e direitos do paciente: estudo de casos. São Paulo: EPU; 1998.
4. Siqueira JE. A arte perdida do cuidar. Bioética 2002; 10(2):89-106.
5. Referencia nos artigos originais.

16. EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA.

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2019/2 89
Aline Gabriel Tedesco
Daniel Angheben

A valorização da autonomia da vontade tem ganhado espaço no campo da bioética,


principalmente no tocante à a autonomia individual, remodelando a relação médico paciente, onde o
último deixa de ser submetido ao primeiro. Antes de adentrar na questão jurídica e filosófica
acerca da eutanásia e, em conseqüência disso, a dignidade da morte, cabe distinguir três
figuras nominativas, que tem significados semânticos, filosóficos e práticos bastante distintos.
Trata-se de conceituar e contextualizar no campo prático e jurídico as diferentes ações:
Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia.
A palavra “eutanásia” é de origem grega e seu significado etimológico remete à “boa
morte”. Ao longo da história da humanidade pode-se contextualizar a prática da eutanásia em
três tipos:
A Eutanásia Ritualizada, onde a ritualização da morte, que é característica inerente ao ser
humano, objetiva provocar uma morte menos sofrida e em paz, tornando o evento “morte” o mais
tolerável possível. O mais célebre representante desse momento histórico foi o imperador
César Augusto, no século II d. C, que sempre quando lhe reportavam que alguém havia falecido de
morte natural e sem sofrimento atroz, rogava aos Deuses que também tivesse uma “eutanásia”.
Já a Eutanásia Medicalizada seria a eutanásia defendida por Platão, imposta pelo Estado
às pessoas que não mereciam viver ou quando a dor e o sofrimento não mais justificavam a
existência terrena. De modo simples, seria tentar observar o exato momento da morte, assim
como que os médicos prestassem mais atenção no doente do que na doença de fato e que
pudessem agir sem medo na administração das medicações que aliviassem o sofrimento do enfermo.
Por fim, a Eutanásia Autônoma, baseada no direito do paciente dispor de sua própria vida
é alicerçada nas questões atinentes à bioética e à autonomia da vontade. Esta não se
confunde com a eutanásia voluntária, em que o médico, por sua conta e risco, leva a termo a
vida do paciente, mas relaciona-se com o desejo (ou não) do moribundo de morrer em paz. Entendida
como forma de abreviar o sofrimento humano e respeitar a dignidade da morte, entendida
como etapa a vida, a Eutanásia, pode assim ser classificada5 quanto ao tipo de ação, como eutanásia
ativa que resulta no ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento do paciente, por
fins misericordiosos; eutanásia passiva ou indireta onde a morte do paciente ocorre, dentro de
uma situação de terminalidade, ou porque não se inicia uma ação médica ou pela interrupção de uma
medida extraordinária, com o objetivo de minorar o sofrimento e, a eutanásia de duplo efeito que
se dá quando a morte é acelerada como uma consequência indireta das ações médicas que
são executadas visando o alívio do sofrimento de um paciente terminal.
Quanto ao consentimento do paciente destaca-se a eutanásia voluntáriaque ocorre quando a
morte é provocada atendendo a uma vontade do paciente, podendo ser comparada a um
suicídio assistido; a eutanásia involuntária que se dá quando a morte é provocada contra a
vontade do paciente, situação essa que afronta todos os preceitos legais, éticos e morais e, por
fim, a eutanásia não voluntária que opera quando a morte é provocada sem que o paciente tivesse
manifestado sua posição em relação a ela.

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Discorrido acerca da perspectiva da Eutanásia, a Distanásia é entendida como o prolongamento
artificial da vida. É inegável que o avanço tecnológico, bem como o aperfeiçoamento de técnicas de
suporte vital tenham aumentado consideravelmente a sobrevida dos pacientes terminais.
Maria Berenice Diniz6 na sua obra “O Estado Atual do Biodireito” muito bem conceitua a
distanásia, assim como problematiza as situações que a cercam. Nesse ínterim, “Pela
distanásia, também designada obstinação terapêutica,ou futilidade médica, tudo deve ser
feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente. Isso porque a distanásia é a morte lenta
e com muito sofrimento.” (pag. 373).
Paira a questão no ar: até que ponto o médico ou os avanços da medicina estão aptos,
sem infringir a dignidade do enfermo, de levar adiante um tratamento sem utilidade? Ou ainda,
manter um enfermo “artificialmente” vivo de forma ad eternun é bom para quem?
Parafraseando o que o Dr. Jairo Othero, médico intensivista descreve no texto Desafios Éticos – A
terminalidade humana em ambientes Intensivos, há um consenso geral que a medicina intensiva
não deve prolongar um “morrer” sem sentido, ressaltando que a tecnologia é uma oportunidade
e não uma obrigação. Assim, prolongar tratamentos em pacientes comprovadamente terminais
nada mais se revela como um acúmulo desumano de sofrimento. É sabido que em
determinadas situações a dor se torna inconsciente, ou seja, não há a dor física, neurológica, mas
e a dor emocional?
Nesses casos, o médico assume posição de enfrentamento à morte, considerada sua
maior adversária, daí pode decorrer uma luta desenfreada pela manutenção da vida a qualquer
preço, indiferente à vontade do doente e de seus familiares.
Nesse sentido, a fim de ponderar o extremo entre o termo da vida e o seu prolongamento
indefinido, surge o conceito da ortotanásia, como maneira mais digna de se proceder à
terminalidade.
A etimologia do termo “orto” significa correto, reto, direito, justo, daí a definição de que a
ortotanásia é a morte natural, normal. Num sentido figurado, ortotanásia significa ainda uma boa
morte, supostamente sem sofrimento. O termo da vida significa morte natural em paciente que já está
nesse processo. Na situação em que ocorre a ortotanásia, o doente já se encontra em processo
natural de morte, e o médico contribui apenas para que esse estado se desenvolva em seu curso
natural.
O Código de Ética Médica, no seu Art. 41, veda ao médico que abrevie a vida do paciente em
estado terminal, mas também impõe que este deva oferecer todos os cuidados paliativas
disponíveis, sem prolongar de forma absurdamente cruel e indiscriminada a vida do paciente, através
da adoção de ações diagnósticas ou condutas inúteis.
Esse preceito ético foi acolhido em função da Resolução nº 1805/2006 do CFM9, que nos seus
artigos 1º e 2º regulamenta a prática da ortotanásia no Brasil, in verbis:
(...)Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou
suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os
cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma
assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.

RESOLVE:

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Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que
prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável,
respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de
esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada
situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda
opinião médica.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os
sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico,
social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.
Nesse ínterim, cabe destacar alguns pontos importantes acerca da ortotanásia, que a
diferencia, de forma substancial da eutanásia e também da distanásia. Em primeiro lugar é
necessário explanar acerca do conceito de “fase terminal de enfermidades graves e incuráveis”.
Entende-se como tal as patologias que não mais tem condições de serem curadas, nas quais,
sendo realizadas intervenções terapêuticas, estas somente prolongariam o desconforto e o
sofrimento do paciente. Assim as medidas paliativas seriam manter a analgesia para evitar o
sofrimento causado pela dor, alimentação e hidratação, sem, contudo, administrar fármacos
ou intervenções que prolonguem a sobrevida e o sofrimento.
Outro ponto a ser salientado é que o procedimento só se dá com a anuência expressa
da família ou representante legal, sendo facultada a oitiva de nova opinião médica e todo
procedimento deve ser documentado via prontuário médico. Dessa forma, descarta-se qualquer
intervenção arbitrária, que desvirtue o caráter humanitário e atente contra a dignidade da
pessoa humana.
Assevera-se ainda que a possibilidade de alta hospitalar prevista no Art. 2º da resolução supra
denota a preocupação com o bem estar do paciente e a possibilidade de uma morte digna, junto ao
acolhimento da família e longe da frieza e do isolamento proporcionados pelo ambiente hospitalar.
Destarte, a morte não é abreviada e nem o sofrimento prolongado deixando que a doença
evolua naturalmente.

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