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Editor Responsável:
Tarik Vivan Alexandre
Projeto Gráfico:
Laboralivros
Capa e diagramação:
Lua Bueno Cyríaco
Arte da Capa:
Maira Lima Públio
Revisão de texto:
Tarik Vivan Alexandre
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ISBN 978-85-907489-8-4
CDD B869.93
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Catalogação elaborada por Márcio F. O. Vasques – CRB-8/10292
Editora Urso
editoraurso.laboralivros.com | editoraurso@laboralivros.com
Curitiba/PR
2020
Hebefrenia
educação pela terra
Urso
Curitiba 2020
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Minha casa está de frente a duas ruas: uma delas, horizontal, tem
dois caminhos, para a esquerda e para a direita, e ao longo dela tem outras
casas; a outra, vertical, dá em uma descida, onde eu não me lembro de
ter visto casa alguma vez, é o caminho pra escola. Minha casa parece um
pouco torta, dá para notar que ela é mais paralela à calçada esquerda da rua
vertical do que à vertical mesmo. É comum, branca, de dois andares. O sol
não bate nela por muito tempo, desde meio dia talvez.
Eu tenho pai, mãe e uma irmã mais velha.
Só vejo meu pai durante o café da manhã e a janta. São os únicos
momentos em que conversamos, não só eu e ele, mas a família. Não sei
direito no que ele trabalha, está na maioria do tempo de roupa social, só
tira a gravata quando chega em casa. Acho que é com computadores, por-
que, só no quarto dele, tem cinco, interligados por uma ou duas torres.
Ele já tentou mostrar a nós três os grandes benefícios em estar conectado.
Numa brecha qualquer, começava a falar sobre a alta velocidade que as coi-
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Pobre, pobre Rein, será que já foi algum dia feliz? Hihihihi
Ao acordar, dentro do pijama ainda, uma camisola de alça que vai até
metade das minhas coxas, estou repleta de uma preguiça frágil que se torna
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Hã? Onde estou? Mas eu não estava no trem? Que escadas são essas?
Por que todos andam despreocupados e só eu estou no escuro? Aquele
trem... o que houve comigo? A todo instante sinto que estou gritando, mas
logo depois eu não estou mais onde estava, se eu tentar algo mais, se eu
correr, se eu me assustar, eu... sumo de onde estou e não sei por que não
me veem.
Que trilhos... Vejo uma garota, é minha amiga!, ela está indo em dire-
ção aos trilhos, o, o trem está vindo, mas, se eu gritar, ela não vai me ouvir
e eu vou embora sem querer...
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— Srta. Kuraiwa, copie a matéria, por favor. Isso vai cair na prova.
Estava na sala de aula. Inglês. Meu caderno, aberto sob os cotovelos
numa folha em branco, estava com alguns pingos de suor. Olhei rapida-
mente ao redor e vi minha amiga acenando. Arissu. É ótima garota, dizia,
às vezes, a professora. E é mesmo. Nunca havia dado atenção pra ela, nem
pras outras da sala, é que nunca tive muitas amigas, talvez... eu tenha feições
para exilada — o que isso quer dizer... sinto minha pele frente à solidão.
Olhando a lousa, minha visão se embaçava aos poucos, as letras, mais
e mais ilegíveis, formavam um grande sistema labiríntico: máquinas nuas se
abrindo para mim. Voltei a cabeça para o caderno e comecei a escrever na
vertical, de cima para baixo, como se compusesse uma elegia numa partitu-
ra inversa; assim, a professora pensaria que eu estava copiando, passaria a
mão em minha cabeça e me elogiaria, embora suspirasse.
— Rein! Rein, espera aí! — gritava Arissu, correndo atrás de mim
com outras duas amigas — Puxa, por que você sai correndo da escola?
— Eu não estava correndo... — tímida, falo baixo.
— Bem, você devia esperar um pouco antes de sair da escola, poxa.
Mas enfim, nós vamos sair hoje de noite e eu quero saber se você quer ir
com a gente.
— Não sei se dá...
— Nós vamos ficar te esperando! Quando estiver mais ou menos
na hora, eu te mando uma mensagem, dizendo onde encontrar a gente, tá?
E saíram correndo na minha frente.
Eu suspirava, baixando um pouco a cabeça, sem perdê-las de vista.
Quase me sentia como a professora. Voltei para casa, pegando o trem e su-
bindo a minha rua. A essa hora, não tem muitas pessoas, parece até menos
barulhento. Mesmo assim, eu não me sentava, olhava pelo vidro da porta,
que não se abriria para eu descer, a cidade e todos os cantos por que eu não
passaria. Ao sair da estação e chegar na subida da minha rua, via ela por
inteira, de um silêncio tão profundo, que sentia apenas o sol mais ameno e
a sombra me tocarem, das quais ouvia vozes altas de variados tons. Inco-
municável.
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O FREI
Joaninha... quantas palavras faltam-me a dizer-te...
JOANINHA
Não precisas, meu bom dos Santos. Mas, diga-me...
O FREI
Espera! Tens certeza de que estás bem? Acordas, mas logo voltas a
dormir... não esperes que eu aja indiferentemente a tudo isso.
JOANINHA
Ah, meu bom paizinho. Não tens hoje mais em diante de que te
preocupares com minha condição. Estou bem enfim!
O FREI
Creio em ti.
JOANINHA
Mas... e ele, meu bom pai? E ele?
O FREI
Ele? Não me digas que...
JOANINHA
Sim, doce pai, e meu irmão e grande amor? Carlos... sempre pergun-
to, mas nunca mo diz... tanta saudade que dele tenho, tanto amor que ainda
lhe guardo em meus seios... Faz favoire, onde está?
O FREI
Querida... queridíssima Joaninha... Acaso tens tu ideia do que per-
guntas?
JOANINHA
Que é que queres dizer?
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JOANINHA
Imploro dizer-mo...
O FREI
Meu benzinho, então guardas tu na cabeça ideia alguma do quanto
dormiste? Ora, pois, dormes há mais de cento e oitenta anos... desde mil
oitocentos e trinta e três. Morreste em meio à guerra. Anos depois, viemos
ao Brasil contigo, ainda dormida.
JOANINHA
Ó! Deus meu...
O FREI
Joaninha, ó! quanto me rejubilo por estares acordada!
JOANINHA
Então... Carlos morreu?
O FREI
Ó! não... Deus nos livre!
JOANINHA
Que bem me faz ouvir-te!
O FREI
Mas... ah... atenta bem, que após tua decaída, Carlos tornou-se ba-
rão...
JOANINHA
Ó!
O FREI
... engordou...
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O FREI
... tornou-se mesquinho, egoísta, nunca mais nos procurou.
JOANINHA
Como poderá ser isso?
O FREI
Mas, hoje, meu bem... Ó! meu Deus, meu Deus!, dai-nos forças: pois
que Carlos tornou-se fazedor de páginas cibernáiticas!
JOANINHA
Ó! Ó! morro de vergonha!
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I
Dentre os reinos do mundo, todos, ou grande parte, com histórias
interessantes e talvez igualmente inquietantes, há um reino alvo de nossa
história. Não havia muito tempo que o rei Garcia morrera, cerca de dois
meses, quando subiu ao trono seu filho mais velho, João Emanuel, casado
com Bruna Bessa. De bom semblante, conhecedor das melhores técnicas
de caça, justo e benquisto.
— A partir de meu pai, sigo seus passos. Quando pequeno, via as
grandes pegadas dele e me assustava, nunca me imaginava digno de com-
paração. Cresci e, finalmente, são minhas, sinto-me capaz de continuar de
onde ele parou, aprendendo com suas falhas e seus acertos, suas glórias e
seus fracassos.
Todos aplaudiram e ovacionaram em seu louvor. Além dos poucos
parentes de Emanuel, estavam ali todos os componentes do reino, os gru-
pos desde os que apenas de planta viviam até os que comiam da carne.
Emanuel discursava sobre um estrado, para que todos o vissem. Assoma-
va-lhe na lembrança algumas conversas com o pai. O momento era che-
gado.
Estavam em uma planície, o filho queria saber quem fora o seu avô.
— Ah, Emanuel — falou o rei Garcia —, foi alguém grande, muito
inteligente e sempre em contato com todos, desde os comedores de fungo
até os bebedores de sangue. Sabia que nenhum rei antes dele havia feito
isso? Ele foi o primeiro que realmente pôs de pé o reino. Tudo o que temos
devemos a ele.
— Então isso quer dizer que você não faria o que ele fez?
— Não sei, e não há como saber. Tudo seria diferente.
Passou-se um minuto de silêncio.
— Que isso sirva de lição para você, Emanuel: o caminho trilhado
deve ser continuado até a perfeição. Assim deverá acontecer contigo, Ema-
nuel. Enquanto você seguir o caminho, transparecerá em suas ações seu
avô e também eu.
Lembrava-se dessas palavras e se propunha cumpri-las.
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V
As crianças se divertiam com certo barulho e Sr. Joaquim dormia.
Na noite passada fora obrigado a realizar certos serviços com Emanuel,
sobre os quais não convém falar. De súbito o barulho das crianças parou,
o Sr. Joaquim acordou, mínima mudança no som. Nicolas e Carol, de fato,
não brincavam mais, estavam olhando algo no chão. O Sr. Joaquim duvi-
dou que fosse um bicho. Quando viu do que se tratava, deu um grito e qua-
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VI
Nicolas e Carol se escondiam numa espécie de duto rente ao chão.
De lá podiam percorrer o sítio inteiro, desde o quarto de Emanuel até a
cozinha. Em cada cômodo, havia grades que permitiam Nicolas e Carol ver
e ouvir o que se passava. Não havia como serem vistos, uma vez que o duto
não era provido de luz interna, e se alguém se aproximasse da grade com
uma suspeita bastava recuar e prender a respiração.
Ouviram toda a conversa tão admirados, que ficaram, esqueceram-se
de voltar pros quartos, um risco movido a incompreensão e medo; também
seus pais e o Sr. Joaquim não foram vê-los. Eles continuaram no cômodo,
pareciam querer vigiar o exilado “burro que nem sabe o que é um nome”.
Queriam que alguma coisa mais acontecesse, que o exilado falasse, fizesse
algo, mas nada aconteceu, tudo estava num silêncio sepulcral. Decepcio-
nados, voltaram para o quarto e dormiram —os pais de Carol sabiam que
ela passaria a noite.
— Cara, como é que pode? O cara é muito estranho! — começou,
assim que chegaram no quarto, a falar Nicolas — Parece um mendigo.
— Todos os exilados devem ser pancados como ele. O que você
achou da história dele?
— Dele sendo exilado? Bem da hora, melhor que as que já ouvi.
— Também achei. Gostou do final dela?
— Muito melhor que só aqueles finais felizinhos das histórias bobas
que o Zua conta.
— Já pensou se é exatamente disso que ele nos protege?
— De finais tristes?
— É! Você se lembra que ninguém deixou ficarmos lá porque senão
enlouqueceríamos?
— Que palavra grande, mas sim.
— Então, eles acham que se nós conhecermos todas essas histórias
com finais como o dele, cheio de sangue, ódio, dor, exílio, pais contra filho
etc., nós vamos ficar tendo pesadelos e chorando!
— Como se atrevem a pensar isso de mim?!
— E de mim?!
— É! Eles não nos conhecem mesmo!
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VII
Já no dia seguinte, o exilado se sentia um pouco melhor, os machu-
cados lhe davam descanso, as feridas estavam encascadas, conseguia andar
um pouco e falar mais claramente. Quando acordou, consideravelmente
tarde em relação aos outros, quis agradecer a Nicolas, Carol e o Sr. Joaquim
por terem-no salvo, fê-lo com muita emoção (quase lhe saíam de novo as
lágrimas) e sinceridade, pois sabia que estava a ponto de ficar inconsciente,
e se isso acontecesse morreria. Certos dramas simplesmente são assim.
— Queria muito agradecer a vocês, Nicolas, Carol e ao Sr. Joaquim,
pelo nobilíssimo ato de vocês ontem pelo fusco-lusco. Sem vocês, eu cer-
tamente morria, logo eu, um rapaz com tantas expectativas, desejos, von-
tades e esperanças no coração... quer dizer, há tanto que quero fazer, tanto
que aquele lugar sujo, cinza, fétido e pútrido me impediu. Saibam que mi-
nha gratidão e solicitude é eterna, quer dizer... servirei até o fim de meus
dias o reino.
Emanuel e Bruna contavam entre os presentes do discurso. Mais
uma vez Marcos estava lá, tumular, observador. Nicolas se sentiu muito
pouco à vontade depois: pensou que seria mais um cara chato no seu pé
enquanto tenta fazer seus negócios: “Para isso já basta esse anãozinho!”,
pensou olhando com (admitamos, injustificado) desprezo o Sr. Joaquim
e depois o exilado; imaginou que devia tê-lo chutado em vez de ajudá-lo,
tamanha foi a raiva que tomou conta dele. Quando o exilado apertou-lhe
a mão, olhou-o com desprezo e logo fechou a cara. Emanuel e Bruna, no
mesmo instante, o repreenderam por essa atitude nada cordial e o obriga-
ram a responder o cumprimento, senão seria punido. Nicolas, entanto, é
obstinado e não cedeu. Quando iam decretar o castigo, o exilado interveio
e disse que não havia necessidade de tamanho alarde, contentava-se em
apenas se ajoelhar diante do futuro rei. Isso deixou Nicolas mais inquieto
ainda, e eis o que sucedeu: fez o exilado se levantar no mesmo instante,
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VIII
Dirigindo-se ao seu quarto, Nicolas ainda estava um tanto agitado,
batia com o pé bem forte no chão para que todos soubessem quão puto
estava. Fez de tudo para não chorar de raiva. Quando chegou no quarto,
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X
Com o tempo, o exilado tornava-se cada vez mais próximo da famí-
lia, de modo que Nicolas já gostava dele, nem se lembrava mais o porquê
de ter sentido tanta raiva. Bruna também aprendeu a conviver com ele, e
até a gostar de seu jeito desengonçado e inocente de se posicionar. Mas
isso não aconteceu por si mesmo e muito menos por causa apenas do
exilado: Emanuel teve de mexer uns pauzinhos para que sua família não
entrasse em conflito com aquele que se tornara seu melhor e mais fiel ser-
vente. Com Nicolas, isso não foi difícil: apesar de obstinado, era bastante
flexível e, com efeito, se esqueceu aos poucos de seu rancor. Emanuel nem
sequer precisou falar muito com ele, pois já percebera que o filho não seria
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XI
Com efeito, o Sr. Joaquim estava mais livre para a educação de Ni-
colas, uma vez que o exilado ocupava-se solicitamente dos assuntos reais.
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XII
Em casa, levou Nicolas uma (sadia e) já esperada bronca dos pais por
ter chegado tão tarde. Estranho como nunca o censuraram por sua atitude
em relação ao Sr. Joaquim — parece que deixavam esse tipo de assunto
pros dois resolverem entre si. Nicolas estava com um semblante descon-
certado, um olhar distante, apenas acenava com a cabeça e pedia desculpas.
Percebendo-o, os pais perguntaram o que havia de errado. Nicolas disse
que havia nada errado, queria apenas descansar. Pediu, então, licença aos
pais para ir dormir; concederam-no preocupadamente, olhavam-se estar-
recidos.
Nicolas acordou disposto, conseguiu dormir bem. Enquanto tomava
café da manhã com seus pais, queriam saber se ali havia ainda algum res-
quício de ontem. De fato, eles conseguiam pensar as piores coisas. Teria
encontrado outro exilado? Parece que os pais só conseguem imaginar os
piores cenários e, com isso, não conseguem enxergar que até as consequên-
cias mais maléficas e danosas, ainda que evitáveis, são as que permitem a
própria construção da imagem. Muitas vezes, Nicolas sabia que tal atitude
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XIII
Ele tinha de ir à floresta de novo. Tinha mesmo a obrigação: parece
que não havia outra escolha. Quis entrar pelo mesmo caminho de antes,
queria muito encontrar aquele lugar de novo, daí pensou que entrar pelo
mesmo caminho teria o mesmo destino. Não foi difícil, pois havia uma ár-
vore marcada que o tinha chamado muita atenção. Aos poucos, o caminho
foi se tornando mais claro em sua memória, não havia grandes mudanças
na paisagem. Chegou um momento em que teve de mudar de direção, não
porque havia algo de errado. “Vou chegar lá por esse outro caminho”, pen-
sou. De fato, escolhera um não muito diferente, seguia o padrão do resto:
árvore grande sob o sol.
Nicolas se indagava: aprendera com Zua que a vida vegetal precisa
do sol para crescer, pois é o responsável de toda aquela bosta de fotossín-
tese — então como aquelas mudas e pequenas árvores nasciam e cresciam?
Talvez fosse sorte — seu primeiro palpite. Mas não podia ser isso. Pensou
em algo mais convincente: talvez essas árvores, para crescerem, precisas-
sem da escuridão antes de alcançar a luz. Pensou em outras teorias. Perce-
beu que já andava há muito e ainda não tinha chegado àquela pedra. Parou
numa a sua frente então, estava cansado. Sentado, começou a procurar ao
seu redor alguma fruta.
Todos conhecem aquela sensação sinistra e indescritível de que há
alguém te olhando. Nicolas, sobre a pedra, se deitou para ver se alguém o
olhava, deparando-se com os dois olhos, olhando-o sem um pisque sequer.
— Pensei que você não me encontraria — falou Nicolas, sorrindo.
— Por que não? Você está no mesmo lugar de ontem.
— Não mesmo! Essa é uma pedra parecida, mas não é a mesma. Veja
essa beirada, ela não tem a mesma forma.
— Você tem razão. Talvez eu já tenha as vistas cansadas para certas
coisas.
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XIV
No caminho, solfejava um estribilho. Talvez seja interessante dizer
que, dessa vez, ele não foi correndo. Vá entender.
Quando já estava coberto em sua cama, olhando o teto, o Sr. Joa-
quim apareceu à porta e, sem entrar no quarto, falou:
— Conseguiu resolver aquilo?
— O quê? — perguntou Nicolas, assustado.
— O que tanto te perturbava; afinal, eu te liberei hoje mais cedo por
isso... Deixa, não importa. Boa noite — fechou a porta antes que Nicolas
pudesse responder.
Mas ele não se importou. Ficou feliz em saber que Zua se importava
com ele a ponto de sacrificar tempo de aula. Parece que passou a ter uma
visão diferente em relação a ele, menos monstruosa talvez, pelo menos
naquele momento. Repentinamente, um inédito mal-estar. Demorou mais
que o habitual para dormir, o que acabou sendo um pouco ruim, pois atra-
sou o café da manhã e o início da aula.
— Desculpe-me, Zua, acabei dormindo demais.
O Sr. Joaquim não ralhou: sorriu e lhe fez um cafuné. Isso, com cer-
teza, ajudou Nicolas a esquecer a noite. Conseguiu se concentrar na aula;
ela terminou no horário normal. Nicolas foi, então, um pouco pra fora —
ainda não era tão tarde. Encontrou-se com Carol e brincou um pouco com
ela, cansou-se muito rapidamente.
— Mas como você ousa desistir tão rápido assim? Está com medo,
é?
— Sim.
Nicolas respondeu tão secamente que Carol se sentou ao seu lado.
— O que aconteceu?
— Sei lá, apenas não dormi bem.
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XV
Foi imediatamente ao quarto do Sr. Joaquim. Antes de sair da flo-
resta, amarrou o braço com um tipo de pano. Sabia que Zua tinha dotes
médicos.
— Como isso foi acontecer? Minha nossa, isso demoraria para cica-
trizar se não fosse por uma pomada que tenho aqui, mas terei de suturar.
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XVI
(Proto-enredo de novela)
— É impressão minha ou o nosso filho anda um pouco distante? —
falou Emanuel na hora da janta, à mesa.
— Talvez ele esteja passando por uma fase difícil em que se sinta
melhor estar sozinho, ou ele está em boa atividade — afinal, temos de
nos lembrar que o Sr. Joaquim agora está mais disponível para ele, o que é
muito bom. Sei que ele sai de tarde para brincar sozinho ou com a Carol.
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XVII
Nicolas e Carol acordaram cedo. O sol ainda não tinha nascido.
Inexplicavelmente estavam bem dispostos. Quiseram fazer o café da ma-
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II
Estava claro demais e o firmamento dava a impressão de não estar
ali, obnubilado em interstícios. Os simulacros do onírico assustavam pelo
tato. Obumbrou os olhos. Maravilhava-se. Cada grama em que pisava era
disforme, só se podia reconhecê-la pelas cores. O Sol visível não cegava; a
claridade era-lhe paralela, incidia nas coisas ora por curvas, ora por retidões
diáfanas — e também ele era disforme, estava chorando, não se sabe por
onde. Nihcolas riu muito disso. Por um segundo, foi o suficiente, quis saber
como estava seu corpo. Olhou para os braços, e eles eram espelhos, por
onde conseguiu ver que também seus olhos eram disformes. Sorriu surpre-
so e continuou andando, obnóxio das rotas. Ele estava, mas não percebia,
indo em direção a uma casa, um tipo de construção maior com um sino
abobadado no topo, adornado de símbolos ilegíveis, ali havia um jardim,
como um adro sossegado de sapé raso. Não percebia que estava entrando,
era tudo parte do caminho, como se nada além daquilo pudesse acontecer.
Então se despertou ao meio de um sono que não sentira e pôde olhar me-
lhor, tudo muito reminiscente, qual pudesse ver-se diante de si em um tem-
po oblívio. Causava-lhe certo incômodo parecer tão familiar. Prosseguia.
Muitas portas adjacentes a um corredor liso; o espaço tomava um tom
azulado, até que se viu no centro de um círculo, rodeado de portas, convi-
dando-o a entrar numa. Era noite, céu estrelado, casas enormes cheias de
janelas, algumas com luz acesa. Saiu. Entrou em outra porta, pensou estar
no mesmo lugar, mas depois reparou na grande diferença das casas e até do
céu. Viu uma janela de luz acesa. Mas, antes, estagnou-se vidente, impres-
sionado em como aquele lugar o fazia parecer pequeno, vertigem invertida.
Não sabia como entrar, então tentou olhar pela janela o que havia dentro.
— É você, o garoto que eu vi antes! — falou um rapaz. Antes de
notar sua presença, ele estava sentado sobre um tapete. — O que você está
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III
Manteve-se prostrado por algum tempo. Não sabia como se sentir,
tinha a feição de um fruto triste que caiu na terra rachada de seca e não
se esparramou. Porque talvez seja melhor ter essa chance de dispersar ao
chão tudo o que há de ilusão e mistério, para, talvez, chegar à inescapável
conclusão de saber que há nada, a não ser os órgãos e suas intempéries, que
ainda eram a pele de Nihcolas; que ver adentro não passava de sortilégio,
amor de si, mácula ridente do espírito.
“Estou com sede”, pensou. Também queria cagar — só não sabia se
eram motivos o suficiente. Levantou-se e olhou ao redor. A árvore ainda
estava ali, como antes. Bateu com as mãos nas roupas, para limpá-las, e
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IV
Novamente sozinho, o dia resplandecia alto num céu sem nuvens,
azul tão nítido e tátil que soava ilusório, um chiado estático. O Sol clareava
por recônditos cúmulos, Nihcolas caminhava ininterrupto, a cada passo
sentia esmorecer o corpo, um tamborilar pulsante incontinenti, em rotura
com as sensações, lapsos atros engrinaldando a carcaça, enfraquecida de
fome e sede. Foi, então, que lhe veio luz de uma floresta. Após recobrar
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V
Adentraram a floresta densa. Lucano estava destruído, embora Nih-
colas tivesse a impressão de que já estivesse melhor. Mal correram cinco
minutos, Lucano parou e se prostrou novamente no chão a chorar. Nihco-
las tentou levantá-lo por suas axilas, mas Lucano chorou pra pedra, gutu-
ralizando-se rispidamente. Nihcolas abraçou-o, sentindo os vários montes
de suas costelas no rosto, e desistiu, recostou-se no tronco de uma árvore,
sobre raízes que escapavam da terra. O dia principiava seu ápice entrefo-
lhado, e ambiente imergia num amarelo acre. Serenava. Ríctus fechado,
caído calmo aos lados; cabeça em ângulo obtuso, olhares agudos e braços
esparzidos.
Já não se ouvia mais Lucano chorar, mas Nihcolas tinha certeza de
que ainda o fazia. Durou horas. Começou a sentir fome, mas não queria
deixá-lo sozinho. Apressou-se em arranjar comida. Lucano ainda estava lá.
— Trouxe comida. Se quiser, é só pegar.
Não houve resposta, senão o eco abafado de seus soluços. Após
comer, Nihcolas jogou uma ou duas frutas em sua cabeça, para ver se res-
pondia, mas nada. Sentiu, recostando-se na mesma árvore, uma vontade
imensa de dormir, mas não queria deixar Lucano sozinho.
Acordou no crepúsculo, apenas porque sentiu algo cutucando a sola
de seu pé direito. Era Lucano, sentado com um galho na mão. Mesmo após
Nihcolas ter acordado, continuou cutucando-o, olhava o chão com olhos
cerrados. Seu rosto, sujo de chão.
— E agora? — perguntou Lucano.
— O quê?
— Achei que poderia te oferecer uma casa, mas acabei ficando sem
uma também. E agora?
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VI
À roda, no tilintar de folhas secas, Nihcolas sentia na planta o líquido
gosmento que, lento, se secava grudar, escamotear mais cada vez o tato.
Lucano seguia de pálpebras baixas e íris buscando o inalcançável acme des-
sa escuridão ciciante. Desapareciam os mapas, o que podia nascer crescera,
havia a impressão de estar encoberto carinhosamente por vidas adiadas.
Estavam descalços, o solo úmido. Lucano repetia que aquele chão não era
o mesmo de sua cidade, muito invariável, que ali era desafiador. Nihcolas
satisfazia-se inexplicável, sem problema e ambiguidade. Seguia desproposi-
tado, provando a quimera das plantas.
— Tem um lugar ali! Olha! — berrou Lucano, assustando Nihcolas
um pouco — O que você acha que vai ter lá?
— Não sei, acho que nada demais. Não estou esperando por nada.
— Por quê?
— Porque eu não sei o que eu poderia ou deveria esperar. Se dizem
que tudo é ter fim, então eu escapei do tudo e agora só erro sem propósi-
to. Não sei, não sei, apenas continuo — respondeu Nihcolas, tronco nu e
pernas feridas. Silenciaram.
— É, acho que, no fundo — falou Lucano tímido —, eu também
penso assim, talvez eu tenha perguntado para saber o que você pensa.
— Fique tranquilo.
Serenavam. O percurso era relativamente longo, mas definido, pe-
queno ponto que lhes trazia aos poucos a luz. No meio, encontraram um
homem velho, sentado numa pedra, com alguns homens ao seu redor. Bar-
ba longa, só de calça. Tinha uma voz muito rouca que tremelicava. Não
chegaram muito perto. Quando o velho os percebeu, saiu de cima da pedra
e foi na direção deles. Os que o ouviam viraram. Os dois ficaram assusta-
dos, pois que não tinham rosto, senão uma lisura amniótica.
— Olá — falou o velho, pigarreando a voz —, vocês estão indo para
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VII
— Não é verdade que alguns lugares são mais bonitos de longe? —
falou Nihcolas. Lucano olhou para a cidade por algum tempo.
— Nossa, é mesmo! Lá, tudo era muito feio, mas, daqui, até dá pra
ver por que quisemos ir lá.
— Acho que eu teria ido mesmo que fosse um lugar feio de se ver.
— Mas, daqui, é muito bonito.
Estavam a alguns poucos metros da entrada da cidade; o ar respirava
fresco e o chão estava rígido. O céu havia nuvens altas prolongando uma
profundeza tétrica, em pugna contra o anil. Ambos estavam cansados e
esfomeados. Encontraram algumas frutas e insetos e roubaram água.
— Você está cansado? — perguntou Lucano.
— Fisicamente?
— Também.
— Estou sim. E você?
— Cansado pra caramba também. Queria estar em casa.
— Eu também.
— Mas, assim, nós nunca nos conheceríamos.
— Então, você não queria estar em casa?
— Queria, mas contigo lá também.
— Mas, aí, eu que não estaria em casa.
— Ah! Então, que nada fosse diferente!
— Sério? — sorriu.
— Sim — encheu a boca de comida.
De repente, lá longe, um fogo bem fraco, andante, aos poucos se
extinguia. Os dois olhavam o homem que vinha e se sentava junto a eles.
— Você é o cara que vimos dentro da cidade com a vela? — pergun-
tou Nihcolas.
— O mesmo que vocês viram antes de entrar ali — os dois ficaram
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VIII
Os dois, de alguma forma, pensavam estar andando em linha reta,
seguindo um só caminho, para frente, mas muitas vezes transviava por uma
dança ou passo em falso, causados pelo que sentiam e viam, que é como
pensar e ouvir. O chão, aos poucos, se atapetou de uma névoa rasa, de as-
pecto gelado para as plantas, como se transpirasse. Perceberam, então, que
a paisagem inteira na qual se entretinham estava na neblina. Viam-se ape-
nas sombras de formas, como árvores, pedras, lagartos e pássaros. A noite
parecia durar, um frio úmido cegava as paisagens, aleia de brumas; estava
à hora do crepúsculo. Quanto mais penetravam, mais tinham a impressão
de caminhar sobre uma ponte entre abismos, a névoa ao redor tornava-se
mais espessa; brincaram de não sair da trilha. À medida que andavam, eles
nutriam uma esperança cética. O céu, que, agora, beirava do rosicler para
um azul noturno, de cujo centro espraiaria o negro, restava luz, o que pos-
sibilitou Nihcolas e Lucano verem, um pouco longe, andando em direção
contrária, um homem, parecia com pressa e um quadro, não muito grande,
na mão esquerda. Começaram a pular, balançando os braços, e gritar, mas
ele não os notou, continuando seu caminho até desaparecer da vista dos
dois. Não sem estranhar sua surdez e cegueira, os dois continuaram a an-
dar, tomando ainda o mesmo cuidado de antes para não caírem no abismo.
— Por que é que aquele cara não viu a gente? Gritamos tanto — fa-
lou Lucano.
— Talvez ele seja surdo.
— Você viu também aquela coisa que ele estava segurando?
— Consegui sim, muito estranho. — Lucano inspirou, abriu um bo-
cão e arregalou os olhos.
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IX
Dormiram sobre a guilhotina, mas não entenderam como acordaram,
cegos de Sol, na sombra de uma árvore. Apesar do estranhamento, não pensa-
ram muito, sentiam fome. O dia estava muito iluminado, dormiram mais que o
habitual. O corpo de ambos parecia pesado, como desgastado.
— Nós fomos pra frente ou pra trás? — perguntou Lucano.
— Como assim? — falou Nihcolas, esfregando a olheira.
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