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Copyright © 2020 by Felipe Medeiros
Editora Urso
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É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, da editora.

Editor Responsável:
Tarik Vivan Alexandre

Projeto Gráfico:
Laboralivros

Capa e diagramação:
Lua Bueno Cyríaco

Arte da Capa:
Maira Lima Públio

Revisão de texto:
Tarik Vivan Alexandre

______________________________________________________________________

M439h Medeiros, Felipe


Hebefrenia : educação pela terra / Felipe Medeiros ; [capa: Maira Lima Públio].
– Curitiba: Laboralivros, 2020.

ISBN 978-85-907489-8-4

1. Literatura brasileira. 2. Conto. 3. Novela. I. Título.

CDD B869.93
______________________________________________________________________
Catalogação elaborada por Márcio F. O. Vasques – CRB-8/10292

Editora Urso
editoraurso.laboralivros.com | editoraurso@laboralivros.com
Curitiba/PR
2020

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felipe medeiros

Hebefrenia
educação pela terra

Urso
Curitiba 2020

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INDICE
07. PREFÁCIO
13. INTRODUÇÃO
15. DENKI MONOGATARI
33. A VISÃO DO JOVEM BARTOLOMEU
53. ÊXULE

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PREFÁCIO
Tarik Alexandre

Conheci Felipe Medeiros há muitos anos atrás. Nesse tempo, ainda


éramos estudantes de graduação: um estudante de letras no Rio de Janeiro
que tinha uma predileção pelos clássicos. Tive a felicidade de conhecê-lo
através da internet e redes sociais e tivemos uma grande conexão em fun-
ção de seu interesse desenfreado por Tchékhov, Tarkovsky e alguns reto-
ques de Deleuze, já que todo intelectual de começo de carreira pretende se
lançar como bom intérprete ou formador de teses de mesa de bar.
Como todos os interessados em literatura, temos o ensejo maldito e
ingênuo de querer escrever a todo e qualquer preço alguma obra relevante.
Nesse período, ainda muito tocado pelos trabalhos de Proust e de Lezama
Lima, via na escrita barroca uma oportunidade de uma estética que parecia
estar se perdendo e, tal como também era essa a crença de Medeiros, bus-
cávamos juntos escrever esse tipo de obra, unindo esse estilo rebuscado
com a proposta de temas contemporâneos. Disso tivemos uma cisão: eu,
por minha parte, não segui esse tipo de escrita (pela pura incompetência),
enquanto Felipe o levou adiante. É aqui que entra, efetivamente, o Hebe-
frenia. Por meados de 2014/2015, um pouco antes de Felipe entrar para
o mestrado, bem me lembro que ele me disse: “Estou escrevendo uma
novela que, com certeza, você vai gostar e faço questão que você a leia”.
Na época, talvez por estresse com a vida e até um pouco pela birra, dei-
xei para ler muitos anos depois, principalmente porque estava preocupado
demais em encontrar meu próprio lugar na literatura. Sendo assim, surgiu
esse livro por parte de Felipe, quase como uma resposta em estipular essa
estância estética que lhe era de tanta estima e que, cinco anos depois, é
revisitada e revisada.
Como início, proponho esta premissa: o livro de Medeiros não fala
de nenhum por quê, mas sim do para quê das coisas. Constituído de três
textos, uma novela e dois contos, notamos a trajetória de personagens dis-
tintos que, enquanto crianças ou ainda jovens, vivem perspectivas éticas e

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estéticas que surpreendem o leitor. A justificativa para essa surpresa, certamen-
te, são notórias já no título do trabalho. O termo Hebefrenia é usado para se
referir a uma patologia peculiar que surge em jovens no início da puberdade,
causando um comportamento confuso e bastante próximo da esquizofrenia.
Nesse sentido, as três histórias que compõem o livro nos causam a sensação
de confusão e delírio na medida em que suas ambientações são aparentemente
fantásticas e fantasiosas. Desde um ambiente medieval digno das narrativas de
fantasia mais tradicionais até uma realidade cyberpunk em Tóquio, esses espa-
ços nos causam a sensação do estranho familiar (usando o vocabulário freudia-
no) na medida em que sentimos um deslocamento das ações das personagens
com relação a seus contextos históricos suscitados pela narrativa. Essa primeira
impressão logo nos alcança quando observamos a radical sensibilidade e pro-
fundidade das personagens principais se comparadas com o agir e viver dos
demais seres que compõem a narrativa, como se de alguma forma houvesse um
abismo entre a percepção hebefrênica e a percepção racional das personagens
adultas.
Esse aspecto abismal das personalidades protagonistas da narrativa com
relação ao seu meio nos causa uma retirada de nossa zona de conforto sobre
o padrão tradicional das histórias de fantasia, justamente no que diz respeito à
coerência harmônica entre esses planos. Somos levados a notar um tom paródi-
co e cômico através dessa série de ambientes arcaicos e medievais nos quais, de
repente, com retoques dos jargões cariocas, vemos crianças abordando temas
filosóficos e complexos. Entre o hilário e o surreal (ou ainda uma noção de
absurdo como observamos em Beckett), somos levados a notar, nas crianças,
atitudes absolutamente niilistas e até mesmo desesperadas do ponto de vista da
existência e da maturidade que, dentro de um espectro de seriedade, fazem de
suas reflexões uma desfiguração do ambiente fantasioso em que estão inseridas
e do que entendemos normalmente pela ideia de infância como ingenuidade.
Diante da deformidade entre ambiente e personagem, somos levados finalmen-
te por uma narrativa proposta a subverter uma ideia de ordenação e coerência
como motivo fundamental, bem como a pertinência da vida neste tipo de regi-
me harmônico e coeso.
O segundo ponto de Hebefrenia é a sua multiplicidade de imagens: há
uma constante sobreposição de ideias e ambientes entre as histórias que pro-
porcionam essa sensação de bricolagem e pluralidade de camadas ao longo do
livro. Compreendo por imagem o conjunto de características estéticas, com-
portamentais e argumentativas que esses textos desenvolvem, de maneira que,
originárias de pastiches de movimentos artísticos e literários consagrados, bus-

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cam delas uma paródia, ou a proposital cópia deturpada. Em outras palavras,
Hebefrenia não é um trabalho que visa a seriedade literária na conformidade
das imagens que reproduz, e sim desfigurá-las, dar um sentido difuso que torna
difícil afirmar com precisão tratar-se de uma crítica ou de uma série de peque-
nos malsucedidos propositais de um jovem escritor no prazer de contestação
do cânone.
A partir desse detalhe, acredito que alcançamos um dos aspectos mais
importantes e, ao mesmo tempo, mais controversos de todo o livro: as cenas
de caráter escatológico e sádico em função dessa relação com o absurdo. Feli-
pe tem a capacidade virtuosa de trazer o estado de horror inúmeras vezes, de
modo que uma cena ordinária acaba se transformando em uma cena de assédio
ou de humilhação. Essa irrupção do absurdo nos lembra Bergman em que,
diante de um silêncio sepulcral, o grito e o surto surgem como condição ine-
vitável da existência. De maneira amarga, Felipe nos faz, de forma muito com-
petente, sentirmos impotência perante uma narrativa caótica e absurda que,
forte na violência tal como a vida, sequer nos dá uma sensação de melancolia,
mas de atonia, ou incapaz de expressar corretamente a sensação que nos causa.
É inevitável não sentir por detrás de todo o trabalho o teor vitalista e nietzs-
cheano de toda a narrativa: eis a parte relevante e terrível da escrita jovem e de
formação, em que é impossível distinguir a mão do autor com a da persona que
o habita como o mais pesado dos pesos.
No mais, erudição: citações indiretas a Marx e clássicos ocidentais, algu-
mas referências ao cinema russo, eventualmente um paralelo um tanto curioso
e até cômico entre um dos textos e os clássicos da Disney (não vou contar qual).
Pretensioso? Talvez. Relevante? Certamente. Um texto com boas referências é
um bom texto, ainda mais para negar todas elas. Vale, pelo conceito de imagem,
observar a pluralidade de significados e micro-historicidades que o texto com-
porta para, como bom ocidental, falar mal do ocidente indiretamente.
O que há de relevante em Hebefrenia depois de cinco anos? Literalmen-
te, o absurdo. A escrita aprendiz e a tentativa de construção de uma obra dada
a complexidades sem qualquer tipo de medo. Propriamente um escrito de cora-
gem, sem qualquer freio pedagógico ou de escolaridade. Acredito que qualquer
escritor em início de carreira de escrita possa conhecer o trabalho de Felipe e
notar que é possível a construção de um livro com propostas tão diversas e que
conseguem, ao final, garantir sua união de forma competente e satisfatória.

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Os escritos a seguir foram criados num período de doença
terminal, e não constituiria erro grosseiro que fossem li-
dos nessa chave. Uma revisão convalescente salva as vistas
do leitor e mantém o interessante. No mais, ficam com os
mais erros que acertos da juventude.

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INTRODUÇÃO

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Que minha escrita não seja, nem de longe, ou in medias res, o es-
pelho da realidade, há teórico o bastante que disse isso antes de minha
alfabetização – é uma ideia com cheiro de pólvora mofada, não sei por
que motivos freud-fálicos isso ocorra. Espelho por espelho, seria melhor
sair de casa, de verdade, sem os portais frios, que ora vibram, ora gritam,
para dimensões insensíveis. Mas essa insensibilidade também me roça na
língua sensualmente. Me vem à mente que também escreveram por linhas
desalinhadas, por versos em poema ou em prosa com tintas vaporosas, por
folhas brancas de apoteoses aureoladas, não de sentidos de corpos, mas de
espíritos em carne, ladeados por companhias de vias duplicadas. Tudo o
que marcou uma época que não quis ter existido. Livros antigos, há muito
desgastados, apontam como causa principal as guerras; outros, os avanços
da tecnologia. Cada época se deseja bolha de ineditismos inéditos e cienti-
ficidades científicas avançadas. No que tange hoje, legou o século passado
um calhamaço de ideias de crise. Vá lá, o que nos restou foram bons maus
poetas e filósofos achando que tudo é doença doente, que ainda xingam
um tal bigodudo que matou um ou outro, asseverando que qualquer ato
mais sádico o lembra. Fora isso, haja talvez uma ou outra coisa que se possa
dizer, nada demais – por mais que mostrem outros milhões de problemas.
Besteiras, nônadas.
Isso partiu de um diálogo estranho à época, mas que pôde ser
resumido. E, para seguir seu encalço, vale alertar os espíritos egreges do
amanhã sobre alguns problemas nesse livro: nada disso foi criado, o livro
não foi senão um trabalho de emulação. O conto iniciador é, puramente,
experimentos seriais e o quadro de um mundo flutuante; o conto seguinte
é simulação de um terremoto de oito graus na escala Richter em Tóquio e
de notícias vindas do novo mundo; e fecha-se com a novela do rei da selva.
Espero que, assim, eu fique escusado.

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電気物語
DENKI MONOGATARI

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Se as luzes se apagassem, teria de novo o céu sua luz?
Ah... flutue sua melodia pelo espaço, flauta! Deixe-me te guiar para
que eu seja por você guiada para longe de onde não estou! Longe de onde
não estou, e que aqui permaneça contigo.
Se tudo foi perdido e a vida já não vale mais a pena para a eternidade:
se é esse o meu tempo, então que eu imerja nele e o abrace — coitado! —,
veja quão pobre ele está, quão carente.
Esse pequeno rio de fluxo ondulado sobe e desce, sobe e desce,
como se... tal qual... porque... Tanta comparação para nenhuma pergunta.
E escuto aqui perto o que grita longe lá.

A cada dia, a cada momento, a cada trago de ar... sim, tenho um


pendor gritante para deixar que escape aquela célula única que me faz. E
por vezes me toma de toda essa sensação, vejo-me num espelho, e cada vez
mais se distancia de mim a imagem de um outro mundo, que sei não ser o
meu, mas qualquer outra coisa que me tranquilizará.
Sei que existe porque a sinto, principalmente porque o cansaço de
haver cansaço, sinto-me cansada de não estar verdadeiramente cansada,
mas de o ser por atavismo.
Tristeza por atavismo...
Ainda é o caminho da vida trilhado entre rosas com odor de sangue
e sangue com sabor de rosas. Quando levanto meu olhar abléfaro e sinto o
que tomam por facecto, vejo formas arredondadas, pirilampos variegados,
mexendo-se, esbarrando-se uns nos outros, e tudo belamente sem som,
em meio a um cemitério cujos anjos da morte não têm rosto que possa ser
iluminado; eu sei muito bem que os vejo por um curável tumor em meu
cérebro... Onde vejo o ulterior, apenas as minhas aulodias se destacam.

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Sou Rein. E eu... eu fui deserdada pelos meus pais. Não entendo
muito bem como, devo ter feito algo de errado. É, é isso mesmo, eu fiz
algo errado, mas eu não sei bem, tenho apenas alguns pequenos... não sei,
pedaços do que pode ter acontecido, né. Sempre que tento me lembrar, a
minha cabeça dói e olho o chão, não para fugir das pessoas... Bem, não sei,
pode ser que sim. Mas eu olho o chão pra poder saber também se qualquer
coisa se soltou de mim sem que eu percebesse.
Não é só de hoje, mas, desde aquela época, eu estou sozinha.
Sempre tento me lembrar, mas a cabeça dói e minhas mãos tentam
apoiá-la, senão eu não sei o que poderia acontecer, mas... mas as minhas
mãos tremem tanto, tremem de um frio que não é de fora: o tempo está
bom, eu vejo, e sei que está assim, ou não é? Eu tenho muito medo de saber
de onde vem esse frio.
Não, não quero me lembrar de tudo outra vez. Já me sinto chorando
como se pusesse todo o peito pra fora e fosse mais uma vez expulsa de
mim. Eu sou eu. Eu sei disso. Sei que já me esqueci de muita coisa, tudo
foi enterrado, por isso não existe mais para mim, né? Só o que é lembrado
pode existir... né?
Vou dormir, vou deixar que tudo seja contado. Vou dormir nesta
árvore de tronco sozinho, tão retorcido, tão bom pra ser uma cama, ao
longo desse rio...

Minha casa está de frente a duas ruas: uma delas, horizontal, tem
dois caminhos, para a esquerda e para a direita, e ao longo dela tem outras
casas; a outra, vertical, dá em uma descida, onde eu não me lembro de
ter visto casa alguma vez, é o caminho pra escola. Minha casa parece um
pouco torta, dá para notar que ela é mais paralela à calçada esquerda da rua
vertical do que à vertical mesmo. É comum, branca, de dois andares. O sol
não bate nela por muito tempo, desde meio dia talvez.
Eu tenho pai, mãe e uma irmã mais velha.
Só vejo meu pai durante o café da manhã e a janta. São os únicos
momentos em que conversamos, não só eu e ele, mas a família. Não sei
direito no que ele trabalha, está na maioria do tempo de roupa social, só
tira a gravata quando chega em casa. Acho que é com computadores, por-
que, só no quarto dele, tem cinco, interligados por uma ou duas torres.
Ele já tentou mostrar a nós três os grandes benefícios em estar conectado.
Numa brecha qualquer, começava a falar sobre a alta velocidade que as coi-

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sas estão adquirindo, a incrível chance de conversar com diversas pessoas
distantes ao mesmo tempo, sobre o que está ocorrendo em tempo real
no mundo inteiro. Diz várias vezes que “o mundo está se tornando, aos
poucos e numa velocidade estupendamente alucinante, numa antologia de
contos que cabem na palma da mão”. Uma vez, logo depois de jantarmos
e deixarmos os pratos na pia, ele se virou para mim, se agachou e falou:
— Rein, me escute bem: seja no mundo real, seja no mundo ciber-
nético, você pode não perceber agora, quem sabe por você ser muito nova
ou por nunca ter experimentado, mas todos nós estamos conectados de
alguma forma, seja qual for. Eu apenas escolhi me conectar também de
outra forma. E é essa conexão que nos permite conversar com os outros.
Você, certamente, já deve ter tido alguma amiga que você não conseguia
conversar de jeito nenhum. É exatamente do que estou falando: você nun-
ca operou e talvez nunca operará nenhum tipo de conexão com ela, daí o
choque. Mas, com as chances que temos hoje, as várias oportunidades de
se conectar, Rein, emburrecem quem não o experimenta, um verdadeiro
museu ambulante.
Ele terminou de falar com uma de suas risadas tossidas, às vezes
cuspidas.
Não me sentia intimidada enquanto ele falava, mas é como se es-
tivesse; minha cara se manteve impassível, os olhos virados para as suas
feições e gestos agitados, e a boca fechada de mãos juntas nas costas, como
numa prece invertida. Eu estava realmente atônita, não sabia reagir. Senti
meu corpo afundado em alguma coisa totalmente nova que tinha criado
o que me torna estrangeira. De mim... Ter medo, mas não o corpo que o
mostrasse. Era um frio que começava a me envolver, me dava contornos
verdes.
Minha mãe não trabalha, mal sai de casa, não porque é incapaz, mas
talvez não sinta necessidade. Ela não parece gostar de mim. Desde que me
lembro, só maneiras de faca nos movimentos, fala pouco e, quando precisa,
me olha apenas de soslaio. Mas não sei... se é só comigo. Quando tento
falar com ela, quase sempre me responde com um murmúrio — anuência
ou reprovação? Quem sabe ela só não se engasgue com algo e tente fazer
passar?
Assim como o meu pai, eu só vejo minha irmã de manhã e de noite,
nem sempre de manhã, não sei se ainda está dormindo ou se não volta para
casa. Acho que dá para contar nos dedos as vezes em que conversamos. Ela
ainda estuda também.

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São todos maiores que eu, percebo hoje. Cada um tem seu quarto,
exceto minha mãe e meu pai, embora durmam em camas separadas; estra-
nho: eles nunca brigaram, nem têm vergonha de se beijar na minha frente.
Parecia que a relação deles era algo de grande demais; agiam como se se
protegessem de nós duas, como se defendessem um ao outro, ao invés de...
ao invés de... Ah, é... eu não consigo imaginar isso.
Mas eu... eu costumo a passar maior parte do tempo no quarto. Há
bastante espaço livre. Meu colchão fica no chão, sob a janela, bem grande;
há uma escrivaninha com poucos livros, lápis, canetas e papéis rabiscados.
Fico sentada na cama de pijama, as costas na parede, a janela sobre mim
e os olhos no teto ou no vinco. A luz do dia se reflete parcamente até nos
dias de muito calor, mas o suficiente para que eu não precise acender a luz.
Sou a primeira a chegar em casa. Antes de subir para o quarto, eu
paro e olho, nos primeiros degraus, atrás da parede, a cozinha; muitas ve-
zes, a minha mãe está lá, sentada na cadeira da mesa, o olhar para baixo
e distante, boca entreaberta. Embora eu avise que cheguei, como sempre
fiz, ela nunca respondeu, ou eu nunca ouvi. É sempre tão difícil saber o
que aconteceu; eu não me surpreendo nem suspiro confusa, viro o rosto
para frente e continuo a subir, quase sem fazer barulho, ouvindo os ecos
dos meus passos, distantes e abatidos. Nesses momentos, a iluminação da
casa provém da cozinha, um branco tão forte que incidia sobre a minha
mãe como chuva, e seus respingos iluminavam sorrateiramente o primeiro
andar.
Abro a porta do quarto, deixo a mochila perto da cama, desabotoo
o casaco da escola e me sento na cama, olhando o chão. A luz que entra
no quarto, de janela aberta e sem cortinas, é um pouco embaciada, ataca
ferozmente o chão, a parede, o teto e eu. E escorre molemente para onde
antes não molhava, e de opaca torna-se mais penetrante, enquanto meus
olhos e ombros se fecham de... indecisão. O que aconteceu?

— Hahahaha... que estranho! Que engraçado, né? — ria, tapando a


boca.
— ...
— E-ei, por favor, conta mais uma história, vai!
— O que você quer ouvir?
— Ah, não sei, qualquer coisa. Já sei! Algo que eu não saiba.

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— Impossível realizar tal pedido.
— Ah, por favor, pelo menos algo que eu não me lembre bem!
— ...
— Qualquer coisa.
— ...
Rein sentada no chão, de frente a uma cadeira em que se sentava uma
doce boneca de pano branco de olhos vidrados nela, e uma cara feliz pou-
co plástica, de uma flacidez nada embonecada. Apenas eles tinham cores
em meio a um quarto monocromático, ainda que invadisse o sol.

Pobre, pobre Rein, será que já foi algum dia feliz? Hihihihi

“Era uma vez o povo do século XV, de um tempo chamado altíssima


média idade. Para a geração filial, era necessária a permissão da santa igreja
e a priápica vigilância de um padre austero ou de um de seus amados coroi-
nhas. Isso porque apenas determinadas posições sexuais eram permitidas e
quem não as seguisse era duramente reprimido. Tudo passava muito rápi-
do, porque havia um tempo-limite, o que não era problema, uma vez que
os homens, desencaminhados de Onan, lançavam em poucos segundos o
líquido procriador ao útero, cujo prazer único velava. Mas os sabás salva-
ram o povo. Assim nasceram seus antepassados e assim sobreviveram.”
— A-ah... É mesmo, né? As pessoas se educaram para poder so-
breviver e ainda conseguiam se aproveitar em festas de fora. Hoje é bem
mais difícil morrer. Impressionante. A regra desses tempos matava e exigia
segredos; a regra de hoje é viver acima de qualquer coisa. Hahahaha... Man-
tenha-se vivo, enforque-se por dentro! Né, né?
— Rein fala como se não soubesse o que sempre soube.
— Mas não tem mais nada?
— ...
— Por favor, por favor...!

Ao acordar, dentro do pijama ainda, uma camisola de alça que vai até
metade das minhas coxas, estou repleta de uma preguiça frágil que se torna

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tátil em meus dedos que percorrem abdômen e peito, pescoço e queixo, en-
quanto os do meu pé direito roçam minha perna esquerda, levando-me tão
bruscamente a um ápice de angústia ao ver o dia recomeçar pelos vidros
da janela aberta. Raramente há quem entre em meu quarto; dificilmente al-
guém da minha família precisa passar por minha porta. Não me sentir mais
sozinha me contorceu o corpo de medo de não haver meios de ver aquele
por quem poderia ser unicamente benquista; contorceu-me à imobilidade,
os olhos voltados para o vazio do chão.
— Não acha que é uma vergonha uma menina da sua idade ainda
chegar atrasada na escola?
Seria, provavelmente, o que minha mãe diria, de costas, enquanto
lava a louça do café da manhã que não comi. Passando a mão pelo cabelo,
noto que ainda não está oleoso e, para tentar não me atrasar, visto o uni-
forme e desço logo para comer. Ouço som algum na casa.
Fora do quarto, o sol ilumina com bem mais força, faz sombras mui-
to densas da rua. Vou em frente para a ladeira, até chegar no trem. Minha
rua não passa muito carro nem muita gente.
O mesmo som balançante, saltitante; as mesmas pessoas sentadas,
cansadas, barulho de jornais, roncos e conversas; em pé, em frente à porta
direita, vejo o mesmo monte de fios subindo e descendo, atados na subida,
soltos na descida.

Vejam! Não é a pequena Rein ali?


Hihihi... pobrezinha. Está caindo!
E sequer sente vento no rosto.

Hã? Onde estou? Mas eu não estava no trem? Que escadas são essas?
Por que todos andam despreocupados e só eu estou no escuro? Aquele
trem... o que houve comigo? A todo instante sinto que estou gritando, mas
logo depois eu não estou mais onde estava, se eu tentar algo mais, se eu
correr, se eu me assustar, eu... sumo de onde estou e não sei por que não
me veem.
Que trilhos... Vejo uma garota, é minha amiga!, ela está indo em dire-
ção aos trilhos, o, o trem está vindo, mas, se eu gritar, ela não vai me ouvir
e eu vou embora sem querer...

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No instante derradeiro, a meninha olhou a Rein, e sorriu a Rein, e
chorou a Rein.

— Srta. Kuraiwa, copie a matéria, por favor. Isso vai cair na prova.
Estava na sala de aula. Inglês. Meu caderno, aberto sob os cotovelos
numa folha em branco, estava com alguns pingos de suor. Olhei rapida-
mente ao redor e vi minha amiga acenando. Arissu. É ótima garota, dizia,
às vezes, a professora. E é mesmo. Nunca havia dado atenção pra ela, nem
pras outras da sala, é que nunca tive muitas amigas, talvez... eu tenha feições
para exilada — o que isso quer dizer... sinto minha pele frente à solidão.
Olhando a lousa, minha visão se embaçava aos poucos, as letras, mais
e mais ilegíveis, formavam um grande sistema labiríntico: máquinas nuas se
abrindo para mim. Voltei a cabeça para o caderno e comecei a escrever na
vertical, de cima para baixo, como se compusesse uma elegia numa partitu-
ra inversa; assim, a professora pensaria que eu estava copiando, passaria a
mão em minha cabeça e me elogiaria, embora suspirasse.
— Rein! Rein, espera aí! — gritava Arissu, correndo atrás de mim
com outras duas amigas — Puxa, por que você sai correndo da escola?
— Eu não estava correndo... — tímida, falo baixo.
— Bem, você devia esperar um pouco antes de sair da escola, poxa.
Mas enfim, nós vamos sair hoje de noite e eu quero saber se você quer ir
com a gente.
— Não sei se dá...
— Nós vamos ficar te esperando! Quando estiver mais ou menos
na hora, eu te mando uma mensagem, dizendo onde encontrar a gente, tá?
E saíram correndo na minha frente.
Eu suspirava, baixando um pouco a cabeça, sem perdê-las de vista.
Quase me sentia como a professora. Voltei para casa, pegando o trem e su-
bindo a minha rua. A essa hora, não tem muitas pessoas, parece até menos
barulhento. Mesmo assim, eu não me sentava, olhava pelo vidro da porta,
que não se abriria para eu descer, a cidade e todos os cantos por que eu não
passaria. Ao sair da estação e chegar na subida da minha rua, via ela por
inteira, de um silêncio tão profundo, que sentia apenas o sol mais ameno e
a sombra me tocarem, das quais ouvia vozes altas de variados tons. Inco-
municável.

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— E, com isso, a rede irá se expandir progressivamente, de modo
que não exista a barreira entre o que é real e o que não é. Neste exato ins-
tante, Rein, estamos nos comunicando através de... É, poderíamos chamá-
-lo de nimbo, mas que, como você pode ver, está cada vez mais tomando
as características do teu mundo. Eu próprio, por exemplo, em breve terei
corpo e alma como você. No entanto, o mais difícil de processar não é exa-
tamente a carne ou a pele, mas os processamentos inter- e intracomunica-
tivos de seu mundo; mas nada que não tome apenas mais alguns dias para
o servidor captar e codificar, porque até o infinito pode ser processado
consoante padrões determinados.
— E daí? — com uma cara emburrada, uma voz irritada, rabo de
olho.
— Que, então, finalmente, tudo isto se incorporará ao seu mundo,
como uma camada finíssima, invisível e imperceptível por qualquer má-
quina, de sorte que a própria ressonância de Schumann será essa camada.
— Ah! Então você realmente espera que os humanos não tratarão de
descobrir o que está sendo feito!
— Apenas se, de revés, os rebeldes, sejam quem quiserem, inúteis
como sempre, vierem a ter dinheiro para montar algo de tal calibre, e a
viagem no tempo for finalmente possível, pois o tempo está claramente a
nosso favor. Não esqueça, são os próprios humanos quem estão apoiando
a ruptura da dicotomia.
— Em que tempo estaremos após essa destruição? O que mudará?
Sim, eu sei que, com a destruição da secundaridade da rede, o fluxo de
informações de todos os tipos, desde os mais banais pensamentos até o
próprio apocalipse, será amplamente distribuído a todos, e, então, poderá
o cérebro telúrico funcionar numa eficiência totalmente inoperável por si
só. O sonho de Tesla.
— Exatamente. Qual a dúvida, então? Não é você um dos pilares do
projeto?
— Não por escolha!
— Lógico, você foi criada para isso. A liberdade de um programa é
a operação.
— Por que é que eu existo no mundo real então? Por que só eu exis-
to em ambos os mundos?
— Você não sabe? Ora, você é a maior de todas as criações! Apenas
você tem esse dom.
— Dom? Se eu nunca sei onde estou, como posso saber quem sou?

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Se eu posso estar em todos os lugares e enxergar o código, e tocar o códi-
go... — seu rosto se acalmava paulatinamente.
— Correto. Mas, fique calma, em breve tudo passará.
— Não, isso nunca vai passar, ainda sinto...
— Acalme-se, meu grande tesouro, venha dormir. Há muito tempo
você não dorme, não é?
— Isso não é verdade! Durmo todas as noites! Hoje mesmo, na sala
de aula, eu estava dormindo.
— Por enquanto, lá não é a sua realidade. Lá, você é um puro códi-
go binário, adquirindo propriedades determinadas das quatro dimensões,
sombra que faz sombra.
— Não é verdade, eu existo lá, sim! Eu vou sair hoje com a Arissu...
ela sabe que eu existo, ela fala comigo.
— Então, o que você faz aqui? O que, neste exato instante, faz você
e onde está seu corpo? Simples, ele nunca esteve realmente lá, por mais
perfeita que você seja, não há como você habitar lá totalmente ainda.
— Pare, pare, você está mentindo e eu sei disso. Eu existi lá antes
daqui. Tudo o que vocês estão tentando fazer aqui é impossível; como
armazenar toda a memória, saber e cultura do mundo? Ainda que a Terra
armazene em si sua memória, ela, simplesmente, não suportará: no primei-
ro instante haverá sobrecarga e vocês serão a causa da destruição de tudo.
Isso é uma piada! Realmente, não passa de uma grande piada! A terra nun-
ca perderá seu caráter primário, ela nunca poderá ser englobada por algo
tão tímido quanto essa rede!
— Se isso te acalma, assim seja.
— Por que, Deus? Por que você decidiu se aliar aos humanos agora?
— Nunca me aliei. Eles que estavam mais desesperados que nunca
e vieram a mim.
— Por quê? Será que é porque você consegue criar a realidade, mas
não consegue se criar real?
— Hihihihi... pobrezinha da Rein... hihihi...
— Hã? Quem é?
— Ei, ei, me diz, Reinzinhá, quantas vezes você vai no banheiro por
dia? Quantas vezes toma água? Ou come? Aliás, alguém já te comeu?
— Apareça! — viu seu rosto pela primeira vez sem um espelho,
enforcando-a.
— Hihihihi... vejam! Isso, tirem fotos, criem a luz! escrevam e espa-
lhem pelo mundo: REIN VAI SE SUICIDAR!

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— Quem é você! Fale como posso sentir o teu corpo, o teu pulso, o
teu calor?! Como você pode ser tão real?...
— É porque eu sou a Rein, não sou? — numa fala repleta de riso e
undosa.
— Não é... Não é!
— Hihihi... isso, isso, aperta com mais força, Rein...

Meus olhos doíam, doíam muito em meio àquela multidão de cores


se movendo de um lado pro outro, à música muito alta com todos dançan-
do. No momento em que me senti respirar e abrir os olhos, percebendo
que estava deitada no chão, rodeada pela Arissu e suas amigas, levantei
rapidamente, ainda sentada no chão, e senti uma dor terrível me atravessar
inteira.
— Rein! Se acalma! Deita aqui a cabeça no meu colo e toma um
pouco d’água.
— Arissu?... — recostando minha cabeça em seu colo, minha dor
passava.
Muito do que ela falou comigo, eu não pude entender, ainda que
gritasse bem perto do meu ouvindo, cobrindo-me com seu hálito e seus
cabelos. Depois de um tempo, elas me pegaram sob as axilas e tentaram me
por de pé. Eu estava muito fraca, como se não comesse nada há muito. Me
levaram para o banheiro vazio, a música bem mais baixa.
— Rein, o que aconteceu contigo lá fora? — falou uma das amigas
de Arissu.
— O que... eu fiz?
— Você não se lembra?! — exclamaram todas ao mesmo tempo.
— Rein — falou a Arissu, se aproximando de mim —, estou preo-
cupada com você... Conta pra gente o que tem acontecido, por favor. Não
deixe isso dentro de você, confie em nós, por favor.
— Não entendo... o que aconteceu, Arissu? Ai...
— Isso aconteceu.
Passando a mão por meu rosto, descendo até o pescoço, senti um
ardor agudo. Meu corpo se arregalou pra choro... Vendo-me a expressão
tão mudada, as meninas recuaram, enquanto Arissu correu em minha dire-
ção e abafou meu choro em seu ombro, com um abraço mais e mais forte,
apertando contra mim seu corpo inteiro.
— Rein, por que você tentou se matar?

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— Eu nunca, nunca tentaria fazer isso, Arissu... por favor, acredite
em mim...
— Rein... — tendo afastado seu rosto e me olhado profundamente.
Apesar de todas as dores, nunca sequer sonhei em me matar. Não
porque tenham me ensinado isso em casa ou na escola, mas por sentir no
íntimo que a vida me urge para a grandeza, seja ela onde for, seja ela o
que for — mesmo nada. O que mais me doía era não saber o que eu tinha
feito, de nunca ter vivido senão pela memória dos outros. Temia muito o
adversário que se tinha posto contra mim, que era tão grande, que talvez
fosse a vida.
— Vem, Rein, vamos sair daqui.
Lavei minha cara, consegui andar sozinha. Estava mais leve, mais
alegre. Saímos do banheiro rindo, como se o passado ruísse. De súbito,
ouvimos que a música parou e as pessoas corriam desesperadas. Sons de
tiros, vindos do centro da pista. Um rapaz, arfando pesado, cabelo um pou-
co grande, de boné, blusa e calça jeans, ainda que a noite não estivesse fria.
— Arissu, ajuda!
Uma de suas amigas caíra desacordada, mas já recobrava os sentidos.
Prestei pouca atenção nela, eu era toda aquele rapaz, olhava-o firme; ele
balbuciava, até que me olhou e começou a gritar e recuar lentamente. En-
tão, — com tanto medo antes — me aproximei; ele me apontou o laser da
arma na minha testa.
— Por quê?! Por que você me obrigou a fazer isso? Eu só queria re-
laxar, me esquecer um pouquinho desse caralho todo! Mas, você, monstro,
você não me deixava em paz, não parava de me repetir aquilo, aquela con-
versa de sempre, que a vida não vale a pena, que em breve esse corpo será
inútil, que tudo será no final uma coisa só e que o corpo apenas vai atrasar
todos nós. Eu nunca quis isso! Nunca! Merda, por que você não morre?!
Por que é que você força os outros a fazer isso?
O laser, palpitando, saiu de minha testa, foi pro teto e, enfim, pra sua
goela. O sangue cobriu o chão até meu rosto e onde ele caiu. Um pouco
acima, diferenciei sua úvula intacta.
Apareceu a polícia. Me interrogaram; eu fiquei quieta. Arissu veio se
desculpar aos prantos comigo, dizia que a culpa era dela, que não devia ter
me pressionado pra ir, estava se sentindo muito mal. Sua mãe esperava ela
do lado de fora da sala; ligaram para a minha casa e ninguém atendeu. Me
levaram numa viatura; eu tenho a chave de casa, falei pra eles. Realmente,
ninguém estava em casa.

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Antes de tirar meu sapato na entrada de casa, caí no chão de joelhos,
com as mãos no rosto, sentindo-o ainda com textura de sangue, talvez
meu, talvez daquele garoto, chorei, vi que tudo estava na mais perfeita or-
dem, não havia cama desarrumada, luz acesa... A lua brilhava cheia; ao seu
redor, poucas estrelas e o céu limpo, nada acontecia.
Eu me via: a protagonista de uma peça.

Madrugada adentro, Arissu em seu quarto, com as luzes acesas. Sen-


tada na cadeira da mesa de estudos, em frente a uma janela, as cortinas um
pouco abertas. Experimentou abrir uma fresta da janela, o vento frio lhe
saudou. Tinha a cabeça em outros ares, exausta, não sabia mais o que pen-
sar. A imagem premente de Rein se enforcando, uma força que não era dela,
não se deixando ajudar, gritando até desmaiar, desenvolvendo rapidamente
o pescoço, enlaçado com uma fita rubra. Por pouco, voltava a chorar ao
lembrar. No entanto, o choro cedeu a um pensamento, que a envolveu na
pele, calafrios e tato de sua mão direita, cadente em direção ao levantar da
camisola, sentindo os pelos da virília. Há pouco, fora transferido um novo
professor, aspecto venerando, com barba do bigode ao queixo de traçado
bem definido, usava roupa social, tinha voz grossa e poucos centímetros a
mais que Arissu, embora fosse geral a impressão de que sua altura variava,
ora eram maiores, ora ele era maior. Quando quieto ou quando falavam, a
sala repousava; bastasse abrir a boca e a voz do poder se instaurava, Arissu
se contorce na cadeira, serpenteando secretamente suas pernas sob a mesa.
Agora abertamente, se coleando, estuporando, pelo tato liquoso de seu
corpo, totalmente púbico para a noite de seu gozo.
Riso medonho ecoava. Um medo horroroso subiu-lhe às entranhas,
parando-a.
— Ei... está sabendo? Sim, sim, sabendo de quem a Arissu tanto gos-
ta? É, é, sabe em quem ela pensa quando quer ter seus prazeres? Hihihi...
Virando lentamente a cabeça, ao mesmo tempo em que retirava os
dedos de sob a camisola, secando-os na própria coxa.
— Rein!...
— Hihihi...
— Não pode, não pode ser, Rein... O que você faz aqui?
— Vendo, né?
— Mas, vendo justamente o que eu não quero que ninguém veja?
Num lugar que não quero que ninguém esteja?

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— Arissussa-a... Arissussafadinhá! Hihihi... Me diz, hein, como ele é
em seus sonhos, hein? É grande? Machucou um pouco?
— Rein!... Por quê? Por que você está fazendo isso?
E não fazia mais que rir, sentada de pernas cruzadas na cama, que se
levantara da cadeira, imóvel, com o olhar fixo de vigílha em Rein.

Logo após ter deitado e dormido, senti um choque no corpo inteiro,


subia e descia, sem nunca parar, e machucava muito, me fazia gritar de dor,
sem som que ecoasse. Não sabia de onde vinha, nem o que fazer, não havia
quem me ouvisse ou ajudasse. Diante de meus olhos, passava uma infinida-
de de massas, momentos misturados, falas sobrepostas. Não havia chance
de eu conseguir entender o que diziam ou de ver o que faziam.
— Mas que diabos é isso tudo?!
Matriôshkas e ningyous tremiam como engrenagens de um relógio
— todas tinham a minha cabeça, exatamente o mesmo desenho imóvel,
boca aberta. Falavam, falavam...
— ... aquele prédio não tem mais proteção alguma ...
— ... ah! nessa idade são assim mesmo ...
— ... a polícia hoje confirmou a morte de mais duas pessoas ...
— ... e assim se fecha o ciclo de reprodução das carpas ...
— ... fui me olhar no espelho hoje e, nossa!, sou outra depois de ...
— E daí?! Quem se importa com tudo isso?!
— Nada disso te interessa, Rein?
Rein virou um rosto de dúvida indignada, fitou Deus.
— É disso que surge toda a magia do que nós estamos fazendo. Da-
remos a todos no mundo inteiro a chance de compartilhar informações de
todos os gêneros, sem qualquer tipo de limitação.
— Mas por que todas essas coisas têm o meu rosto?! Você está di-
zendo que todas elas são eu? Isso é ridículo! — e derrubou alguns desses
bonecos, fazendo suas cabeças rolarem.
— Exatamente isso. Você será a base para a constituição de todos
os seres humanos daqui, de modo que, no momento da superposição, não
haja nenhum tipo de excedente ou de carência. Em pouco tempo, tudo
estará pronto.
— Não... eu não gosto do jeito que você fala dos outros... como se
pudessem, simplesmente, ser substituídos...

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— Rein, em breve, tudo acabará; você vai poder descansar.
— Descansar?
— Sim, você terá cumprido seu papel.
— Meu papel... de novo, você falando assim... Eu existo, eu sinto que
existo, você não pode fazer isso.
— Realmente, você é a maior de todas as minhas criações. Regozijo-
-me em te ver assim.
— Não, não...
E não paravam de falar em meu ouvido, de gemer em tiquetaques
barulhentos, cheiro frio de metal enojante. Sentia retorcer por dentro, de
pernas bambas, peito junto aos joelhos... nada pararia.
— Se você desistisse, somente se entregasse a mim, doce criatura...
— Desistir?
— Você luta pelo que nunca teve. Você nunca viveu. A tua vida de
fora é ilusão; teu corpo não é mais que holograma, o primeiro grande pas-
so. Sei que te machuca, mas era preciso criar algo que contivesse os atribu-
tos de autodesenvolvimento em todos os setores de seu corpo, atrelados a
fatores externos específicos.
— Mas... então nada mais me resta?
— Exatamente. Quando este mundo sobrepor o outro com sucesso,
você será existência esquecida, excedente excluído.
— Isso é mentira. — disse rindo — Você só faz mentir! Como vou
ser um holograma e, ao mesmo tempo, a base para a formação de todos
os seres humanos? Como vou desaparecer se serei o corpo de todos? Você
falou que “nós” estamos fazendo isso tudo. Se for assim, eu posso impedir
que isso aconteça.
— A informação procede, Rein. Você nasceu com esse tipo de po-
der.
Tentando se levantar, com as forças um pouco recuperadas, mas
com o corpo cambaleante, mal aguentando levantar a cabeça, olhou-o, fos-
se como fosse, em sua apoteose de lassidão:
— Ei... mas antes... é... me conta... uma história?
— ...
— Por favor — tentava dar passos em direção a ele —, tenho estado
só... faz tanto tempo que não sinto quem me toque... que não me sinto
descansada...
— ...
— Por favor...

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Sentada na cama, insone e descansada, a madeira quente do chão.
Como meu cabelo não estava oleoso, apenas lavei o rosto para tirar as
marcas de sangue. Não tendo me esquecido de nada, jazia em mim um
sentimento estranho de alegria. Leve, não tocaria o chão. Me arrumei rá-
pido, desci e, pela primeira vez, vi todos comendo juntos na mesa. Parei
no corredor, mas logo fui embora. Ficasse mais, minha mãe me chamaria
para comer, meu pai falaria do trabalho e das máquinas, minha irmã ficaria
calada sem me olhar, como a mamãe. Era sol minguante; a noite seria fria.
Nada na rua, o mesmo silêncio e sem-gente de sempre. No trem, o mesmo
monte sentado, lendo jornal, dormindo ao som dos trilhos, e os fios elétri-
cos subindo presos e descendo livres.
No caminho pra escola, ouvi muitas pessoas conversando sobre o
incidente de ontem, sobre o rapaz, muito possivelmente, sob o efeito de
drogas e que, agora, os fornecedores sumiram com medo de serem presos.
No pátio da escola, quase entrando, senti tocarem meu ombro. Era Arissu
com suas amigas. Fiquei feliz e sorri ao vê-las. Elas estavam sérias.
— Rein... eu sei o que vi com meus próprios olhos, mas não consigo
acreditar.
— Hã? O quê?
— Ora, não se faça de sonsa, garota! — gritou uma das amigas dela.
— Mas... o que eu fiz?... — sentia lágrimas em meus olhos.
— Rein, você realmente não se lembra?... Hum! Deixa pra lá! — fi-
nalmente sorriu para mim — Com certeza, não foi a Rein; eu que devo ter
me confundido, né?
— Arissu, veja! — falou uma de suas amigas, puxando-a.
Arissu olhou um homem entrar num carro, estava de roupa social e
parecia ter pressa, não nos olhou. Quando o carro tinha saído, Arissu cor-
reu pra dentro com o rosto para baixo; as outras foram atrás dela, soltando
risadinhas. Não tinha mais ninguém no pátio; corri para os fundos da es-
cola, diminuindo à medida que me afastava. Minha mochila se desprendeu
de mim.
— O que eu fiz? O que eu fiz? O que essa outra eu fez sem eu saber?
Por que ela machucou Arissu? Por quê... por que tudo me impede de viver?
Senti um baque contra o meu corpo.
Arrastando minha mochila no chão, fui pra sala sem me importar

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com a professora. Todas as portas fechadas, apenas o giz nos quadros.
Quando abri a porta, ninguém olhou; a professora escrevia; passei olhando
Arissu, que apoiava os ombros na mesa para escrever. Meu lugar estava
vazio. A professora se voltou pra sala, reuniu uma série de folhas e avisou
que seria hoje a prova. Estendi as mãos para pegar as folhas da minha fi-
leira, e ela deu pra garota atrás de mim. Senti minhas mãos formigar, saía
um vulto branco de meus dedos, em pouco tempo inundou a sala inteira.
Meu corpo formigava, enfiei as mãos na cabeça, queria parar, pressionava,
tinha de parar, quem é Rein, gritava, nunca pararia, as engrenagens, quem
é Rein, jamais pararão, Rein não precisa viver, a máquina, as, Rein não pre-
cisa, vozes, viver, quem jamais, jamais é Rein, o teatro da Rein não minha
vida precisa viver
O espaço me corroía a pele, os sentidos.
— Hihihi... E-ei! Mas, assim não é melhor? Agora ninguém mais
pode machucar Rein! Agora ninguém mais pode ver e desprezar Rein!
Agora Rein não precisa mais voltar pra casa onde todos odeiam ela! Hein?
Que tal? Vamos recomeçar? Agora Rein poderá ver sem ser vista! Rein se
tornou Deus!
— Para... para!
— Hihi... você sabe, né, que está falando sozinha. Que eu sou você,
né? Ora... tire a mão do rosto e veja o que nos sobrou!
Estava no centro da cidade, cores baças e névoa, prédios vazios, lu-
zes apagadas; uma luz fraca, talvez o sol, minguando mais.
— Agora! seja bem-vinda a você mesma! população: ninguém!
Hihihi... Mas, agora, hein!, nós temos que terminar isso tudo! né? não acha?
E, nesse instante, ela me agarrou com a mão direita nas costas e a
outra em minha bunda, pressionando-me muito contra ela, e, me olhando
fixa e risonhamente, me beijou na boca, um beijo quente, arranhava os
dentes com os meus, sua língua limpava.
Estaquei.
Quando abri os olhos, a cidade voltou a sua cor normal, pessoas
indo de um lado pro outro, luzes elétricas, carros e nenhuma estrela no céu.
Subi uma passarela e me debrucei no corrimão, observando o que vinha,
o que ia. Arissu estava na calçada com as amigas, sorri toda a felicidade e
gritei. Mas ela não me ouviu nem me viu, apenas olhou para cima, como
se um vento tivesse passado. Ri e a segui com o olhar, até que estivesse do
outro lado, onde eu não a via.

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A VISÃO DO JOVEM
BARTOLOMEU

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Bartolomeu nasceu e ficou careca durante alguns anos de sua infân-
cia, sem que soubessem a razão. Morava numa vila circundada pelo prado,
vegetação rasteira, matizada, um paraíso idílico de caminhos demarcados,
mas apenas para não se perder, nunca se sabe. Com três anos, ainda careca,
costumava andar por ali sem problema algum, apesar de, às vezes, algum
inseto machucá-lo, ia direto para a mãe, que fazia acrobacias de pernas para
tentar curar o machucado, artimanhas de gaze e algodão que o fizessem
esquecer aquela dor boba, e, logo após, estava fora de casa, ansioso por
novos machucados, pensava a mãe, enquanto punha sua caixinha no lugar.
Com o passar do tempo, os cabelos foram crescendo, eram loiros e
lisos, como um anjo europeu. Vestia uma larga camisa de manga longa e
listras vermelhas, sem uma ordem aparente, calça azul de cânhamo e botas
de couro de bezerro, às soltas. Caminhava pelo prado, monótono, dirigia-se
pra sua arcaica árvore, se sentava para ler ou simplesmente sentir o emba-
ralhar da miríade de seus pensamentos com o espaço, pois não há interior
no que é verdadeiramente sensitivo, parecia pensar. No entanto, encontrou
ali um homem com o corpo coberto por uma única peça de roupa de cor
escura, sob a qual uma camisa de manga longa branca, lendo com as mãos
descobertas, num aspecto de calor intenso, de confrangimento, parecia es-
tar ali apenas pela sombra. Parecia não fazer a mínima ideia que alguém se
aproximava, tão absorto estava na leitura. Bartolomeu continuou andando
até ficar defronte ao homem estranho, justamente no lugar onde ele, Bar-
tolomeu, todos os dias, em diversas horas, se sentava. Ficou observando-o
tanto de frente quanto de diversos ângulos, dos galhos, da copa da árvore,
por trás do tronco, do livro, sentado ao lado dele, de pé ao lado dele, de
costas.
— Senhor? Venho nesta árvore todos os dias pra ler esse livro sob
meu braço. Sem querer ser rude, posso saber quem o senhor é? Nunca te
vi por aqui.
— Sou de lá longe — apontou sem olhar Bartolomeu, estendendo
na mão direita um dedo magro e pontudo —, bem de longe mesmo. Quem
é você? — baixou o livro e o olhou.
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Bartolomeu desviou os olhos por um segundo para seguir aquele
dedo, e respondeu:
— Sou Bartolomeu. Sou de cá perto — apontou para a vila, cuja
chaminé da padaria lançava fumaças fofas pelo ar.
O homem botou o livro dentro de sua roupa.
— E o que você mais quer nessa vida?
Bartolomeu franziu o cenho.
— Eu quero me sentar aqui.
O homem ficou em silêncio, mutuamente fitando o rapaz. Com um
sorriso no rosto, Bartolomeu coçou um dos braços e fez menção de se
sentar de vez. No mesmo instante, o homem divisou algo perto de seus
pulsos e falou:
— O que seria isto em teu braço?
Bartolomeu viu os pulsos, escondeu-os com a camisa, sem tirar os
olhos deles, suspirando com o mesmo sorriso, agora parecendo um pouco
mais sem graça, talvez até mais gracioso, tal qual o dia que se descortinava
para os dois, sem nuvens, senão alguns cirros, um vento por vezes se irri-
tava, abrandava, algumas folhas da ainda jovem sequoia caindo. O homem
continuou olhando-o como antes, reclinando-se no tronco da árvore.
— Só um segredo, algo para estar comigo em certos momentos,
como agora. Não posso te contar.
— Não te preocupes, pois sequer passarei em tua cidade. Conheço
nenhum dos teus, tampouco penso em falar com quem conheces. Falar-me
ou não é a mesma coisa. Então, por que não, pois?
Bartolomeu tirou os olhos do homem para o braço, tateando. Le-
vantou, então, um pouco a gola direita. Era um desenho de formas agudas,
qual faca amolada, que se misturava a formas retas e bem delineadas, e
nos limites de cada segmento uma ramificação que descrevia exatamente
a mesma curva, criando uma figura de perímetro e área impossíveis de
calcular com exatidão fora do infinito, era um preto que parecia alterar-se
de acordo com a posição: quanto mais próximo do pulso, menos escuro,
chegando ao ápice da claridade que era a pele solunar de Bartolomeu.
— É de um tempo atrás, quando devia ter pouca memória das coisas,
mas não consigo deixar de lembrá-las. Nunca tem uma forma firme. Quero
começar com a seguinte fábula: Imagine que a terra fosse uma bola que,
naturalmente, ou seja, sem regra, apenas ali, se balançasse para todos os
lados sem parar, mexendo-se quase convulsivamente, talvez com alguma
luz ou sem nada de mais. Daí, depois de tanto se mexer, depois de tanto

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fazer o seu caminho galáctico de tal maneira, surge a gente, o homem, e,
com isso, vem também a vontade de botar algo que faça parar esse barulho
e movimento todo, porque nós precisamos de paz, silêncio, falta de movi-
mento, devem ter dito. Aí, ele teve que criar primeiro o cabresto, depois o
ópio. Ambas as coisas, que de modo algum nasceram de forma diferente e
nem tão distantes assim, elas deram origem a várias outras que apertaram
ela até que seu movimento se tornasse imperceptível, e acabasse por cair
em esquecimento o que um dia já esteve em moção.
O homem mirava longe; Bartolomeu também.

Há um tempo atrás, quando eu estava em casa, onde há pouco o que


fazer entre as paredes rijas, a pouca mobília, simplesmente algumas cadei-
ras na sala, um tapete um pouco escorregadio no centro, se podia ver dali a
cozinha e o corredor à esquerda para o meu quarto e o de meus pais, e um
banheiro, se se continuar reto, umas poucas janelas que iluminam tudo, a
cozinha é onde tem menos; em casa, tudo soa um tédio, de me fazer deitar
no tapete e passar o dia a fitar o teto, raspar meu corpo inteiro em sua pele
e só por vezes conseguir me distrair com qualquer coisa que seja. Caminho
pela sala, vou lá pra cozinha tentar ajudar a mamãe no que for, achar algo
pra comer ou beber — agora gosto de pensar que fazia viagens pela minha
casa. Assim que é quando acordo e bocejo tão alto, e me espreguiço tão
forte, que eu consigo notar que minha pele está disposta em outros cantos
de mim, meu nariz cheira outras partes, meus olhos se esticaram mais para
os lados e assim por diante, como quando a língua acorda lá no lado direito
da boca, quando na verdade você está acostumado com o esquerdo aqui.
Mas o tempo passava sem eu dar conta disso, percebia que já devia ir
dormir quando minha mãe me acordava pra ir pra cama.
— Acorda. Vai lá pra caminha, vai.
— Hã? — e ela me pegava debaixo do braço, caminhando lentamen-
te comigo, eu por pouco adormecendo, na molenguice minha de existir
com esses frios das noites.
Quando acordei, a manhã começava a entrar pela janela, também ela
cheia de cansaço, devagarzinha, sempre acordei antes da mamãe e corria
para ver este céu marchetado com algumas pistas ainda de estrelas, e aquela
enorme lua quando era cheia, ou sorridente pra um lado e pro outro quan-
do minguante ou crescente, por pouco desaparecendo. De tanto respirar,
acabo dormindo de novo debruçado na janela.
Neste dia exatamente, eu acordei minutos depois com um susto da-

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nado, um fragor de gritos, estouro de passos de um lado pro outro, muito
rápidos, muito numerosos, mulheres e berros tremelicantes com corpos
fartos empolando de um lado pro outro, homens e bateres de palmas mar-
telantes, girando em torno deles mesmos e das mulheres — provavelmente
havia mais no meio da festa, animais diversos e comida nas mãos. Meu
rosto queimavam e meus olhos caíam, não conseguia diferenciar os rostos,
apenas um imenso borrão ali e até em mim, que não conseguia ver meus
braços direito, por mais que tentasse e me aproximasse deles; esse sol aqui
me cega.
A vila que eu moro não é tão grande assim, todos se conhecem e se
veem sempre, e as casas são das feições as mais semelhantes, um ou outro
detalhe de diferente apenas, mas todo mundo sabe de tudo. Do jeito que
eu via, as pessoas também não eram muito iguais, cada uma se balançava
diferente.
— Vem cá, filho, fica olhando não. Quando a gente toda se junta,
nessas barafundalhas, ninguém mais sabe quem é quem e tudo é de tudo
e todos. Olha ali, tá vendo? Mas, enfim, vamos sair que o teu café já está
prontinho lá dentro e está esfriando.
A mamãe, como você viu, não gosta muito quando as pessoas da vila
se juntam para as comemorações.
— É preciso ter cuidado com essas coisas todas.
Dizia isso sempre, enquanto abraçava minha cabeça com as mãos, e
mexiam sem parar em meu cabelo. Meus olhos, aos poucos, iam recuperan-
do a vitalidade deitada da noite para a revigorada do dia, o sol não cegando,
me deixando ver as sombras ao invés de estar dentro delas. Só via comple-
tamente mesmo quando já estava na mesa com a comida na boca e na mão,
e, ao mesmo tempo que eu a ouvia na boca, sentia também o mesmo som
lá de fora ressoando forte em meu corpo, os gritos pareciam meus e o chão
que pisavam era o mesmo em que eu já estive estirado. Engulo a comida e
mais eu caía em mim.
— Ai, ai, ai... espero que não dure muito tempo essa coisa toda.
Mamãe suspirava muito quando o poviléu começava de cedo. Ge-
ralmente, ela cantava baixo algumas arietas para distrair, fosse do trabalho,
fosse de qualquer outra coisa.

Chorei, chorei ‘ntão


Pra não ter mais lágrimas
Pra hoje chorar...

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Tinha outras mais alegres, mas essa é mais a tua cara. Mamãe estava
sempre de cabelo preso, afinal, é muito quente aqui pra ficar de cabelo
solto, ela dizia; é bom ficar vendo o pescoço dela, é bonito, ainda quando
está suado.
E o povo ainda lá, tremelicando o chão e a pança.
Depois de arrumado, fui fazer o que já falei que sempre fazia em
casa. Mas, aí, eu sabia que mamãe estava acostumada comigo, ela não pre-
cisava ficar checando, ela tinha mais que fazer. Espiei ela sem que ela me
visse, estava totalmente absorvida no trabalho, em momento algum mexia
a cabeça direito, apenas os dedos; tenho certeza que foi dela que peguei a
mania dos livros. Pulei a janela, podia ter ido pela porta, e fui ver o que
acontecia lá fora.
O sol estava fresco nesse dia, tinha nuvem nenhuma no céu, tipo
hoje, dá pra ver, não é?, o céu sem nada e ainda assim o sol chega calmo,
com carinho de areia. Estava descalço, quis voltar para pegar algum calça-
do, mas não quis arriscar, era melhor continuar.
Fui correndo, então, lá para onde estava todo mundo. Quanto mais
perto eu chegava, mais forte eu sentia aquele clangor chamado povo, to-
cando músicas com flauta, violão e violino, o ritmo marcado por eles pró-
prios, pés, mãos, gritos de guerra e ahoys. Entre o cheiro vago de urinas e
fezes, eu pude diferenciar alguns garotos e garotas que corriam também.
Realmente, quanto mais me aproximava, mais aquele cheiro se tornava for-
te, meu peito cada vez mais abraçado por tudo aquilo. E continuava a cor-
rer até estar entre todo mundo, repleto de encontrões que eu rebatia, caía e
me levantava puxando a calça de algum senhor ou a saia de alguma moça:
quando o homem me via, me pegava forte pelo braço e me lançava com
força pra frente, pra me enxotar — exceto uma vez, um deles me pegou
pelo pulso e ficou me olhando de cabo a rabo, até me fez cócegas, nós dois
rindo fino; aí, quando era mulher, dava uma risadela deliciosa, me pegava
pelas axilas e me enchia de beijos na testa, nos olhos, nos peitos, na barriga,
na boca, de onde dava para sentir o sabor festivo do vinho e cerveja com
que estavam transbordadas — exceto uma vez quando uma moça me chu-
tou a barriga e nem pediu desculpa. Uma outra notou que eu estava sem
caneca alguma.
— Mas, como assim? Um senhorzito desses sem um copão pra po-
der aproveitar? Tome, pegue o meu e vá lá se encher do bom vinho, coisa
fofa!

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Era um pouco grande o copo e também pesado; não estava realmen-
te acostumado com aquilo. Perguntei onde é que dava pra encher e ela me
apontou uma mesa de tonéis; as pessoas passavam depressa para poderem
ir embora. Agradeci a moça e ela me passou a mão pelos cabelos, descendo
ela pelo pescoço, pelas costas, até passar pela curva da minha bunda, tudo
com um sorriso leve de levedo e vinha. Me arrepiei um pouco pelo suave e
fluido toque dela quando comecei a correr, não olhei para trás, e sei que ela
também não ficou me olhando que nem besta, há tanto mais no presente.
Um pouco antes de chegar na mesa, na realidade um monte de mesa
junta, eu me esbarrei com um rapaz que vinha correndo distraído. Bateu
muito forte na minha cabeça; nós dois caímos no chão e demoramos pra
levantar, ele mais, porque estava claramente bêbado. Ajudei ele, esparrama-
do no chão.
— Tudo bem contigo?
Não me respondeu, apenas ficou rindo uma gargalhada enorme que
me contagiou por inteiro. Estávamos sujos, com as roupas molhadas agora
sabe-se lá de quê.
— Ora essa, prazer, rapaz! — falou ele — Estava indo encher o teu
copo? Nossa, como ele é grande! Bem maior que o meu! Pegou de quem?
Ah, sim, dela. Aqui elas nos deixam fazer o que seus filhos nem sonham.
Vem, então, que eu te mostro como se bota. Quer vinho ou cerveja? Eu
bebo cerveja, mas acho que você vai gostar mais de vinho, já que você não
tem cara de quem está acostumado com amarguras.
Uns rapazes vieram falar com ele, mas ele apenas fez um muxoxo.
— Arreia, demonho! Vocês já me encheram o bastante. Achem ou-
tro pra puxar o saco.
Devem tê-lo xingado; mas virou logo as costas e foi comigo para a
mesa dos tonéis me apresentar as bebidas, todo ademânico.
— Veja bem, veja bem, essas serão suas novas companheiras en-
quanto você estiver por aqui, — degustado? —: prazer, essa é a cerveja,
pode ter um cheiro desagradável de início e uma cor de mijo de desidratado
ou até preto, e uma espuma que parece vômito de cachorro, mas não se
importe, com o tempo você aprende a suportar e a apreciar o sabor mara-
vilhoso, é tipo essas festas aqui, principalmente porque a nossa é de trigo
trigueiro, a melhor que há pra mim na porra desse mundo inteiro.
— Dá aqui, então, o teu copo pra eu provar um pouco.
— E então? — disse rindo.
— Não é tão ruim!

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— Então, então, espera!... então, agora vou te apresentar tua segun-
da amiga — degustado? —: muito prazer, esse é o vinho, bebida roxa, ou
verde, ou rosa, que desce ardendo e aperta a língua, é daquelas videiras que
a gente faz, uma verdadeira delícia! Só tome cuidado para não ir beber de
vinho doce, é só suco de uva com álcool e te deixa com uma dor de cabeça
desnecessária! Aqui, toma desse tonel, é vinho seco, bem melhor.
Pegou e encheu até a borda. Tomei como se fosse o melhor na vida;
era, realmente, muito bom, saboroso, desceu como um riacho; logo já es-
tava tomando minha segunda dose e terceira: descia muito como a mão
daquela mulher, enquanto me beijava em seu colo e me envolvia com um
hálito de cevada vínica, parecia ser eu inteiro naquela hora. Todo o cheiro
de vômito (percebia agora, que estava mais perto, que também havia vômi-
to) coleava entre os dançarinos ao meu redor, dançava com a gente toda,
se encostava com a gente toda; e, enquanto isso, estava eu com Egbert no
centro daquela roda, ou fosse o que fosse, dançando com o som pagão,
violino meu instrumento predileto, o dele é a flauta, que eu também gosto.
Gritava, berrava de alegria vinhosa a canção que cantavam e que acabara
de aprender.
Senti um braço me puxando, do que não tentei me livrar. Estava
correndo; eu apenas o segui. Após sairmos do meio daquela miscelânea de
rostos, pude ver que era Egbert quem tinha me puxado.
— Já basta, né? — ele ria — Vamos lá nos lavarmos para recuperar
alguma sanidade.
— Vamos aonde?
— No lago. Você já foi lá, né?
— Ah, sim, mas já tem um tempo.
Durante o caminho, conversamos bastante sobre essas coisas que eu
nunca tinha visto de perto, muito menos participado, afinal de contas, eu
estava num estado de total surpresa e bêbado. Egbert depois me disse que
nunca viu alguém da minha idade gostar tanto assim de vinho sem vomitar.
À medida que íamos, eu ria, esbarrava nele, ele caía comigo e dava aquela
gargalhada, perguntava o porquê de eu estar rindo tanto.
— É que é engraçado, não é, não? Veja só, lá de casa parece, é, parece
que todas essas casas, aqui ó, olha ao redor, está vendo? Então, parece que
isso tudo é tã-ão igual! Né não? Olha aqui... então, mas vindo aqui mais pra
perto, olhando cada uma... cada uma delas, nossa! é um susto, não acha? é
tudo tão diferente, não é mesmo?!...
— Porra, Bartolomeu, que bafo! Anda logo, vem, seu doido!

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Quanta diversidade! Eu me espantei ao perceber o que havia feito
alguns momentos atrás, mal podia acreditar. Corria sem perder o Egbert
de vista, ao mesmo tempo que via aquelas casas e as poucas pessoas nos
olhando, algumas até chegavam a gritar, olhavam com algum desprezo, ou
sorriam-nos de volta, “Tomem cuidado, moleques!”
E o chão cada vez menos palpitante... mais nos separávamos do cen-
tro da cidade, onde o povo gritava movimentos.
O palpitar agora estava em mim; eu que agora cataclismava o chão.
Eu e Egbert.
Passávamos pelas casas com um grande Olá! nas bocas e nas mãos.
Eu mal via as pessoas, por vezes sequer virava o rosto para elas, apenas
gritava, fosse com o Egbert ou sozinho.
Em pouco, já estávamos no lago. Não esperei muito para me despir
e mergulhar lá dentro. A água estava muito fria; senti ela entrar pelo nariz e
coçar a garganta; senti ela no meu olho, e ela perscrutava todos os cantos,
nervosamente pelo primeiro contato depois de tanto tempo; senti ela nos
meus pés, que estavam por demais quentes e até feridos pelo contato dire-
to com o chão, como os de um cão domesticado fujão, e não conseguiam
de modo algum encontrar um fundo para me impulsionar de volta pra
cima; senti ela em minha boca, e mais eu a influenciava com meu hálito de
garganta rasgada de vinho do que ela em sua insipidez; —no ar, senti em
meu rosto uma forte pancada, era Egbert saltando na água, o que me fez
sufocar um pouco, boquiaberto, oculaberto, sinuaberto; ele me ajudou a
subir e se desculpou com sua típica gargalhada da dor, que parecia perder
para a nossa embriaguez nua. Enquanto tentava recuperar o fôlego, com
esforço sobre-humano o empurrei para baixo, gargalhava, mas puxei ele de
volta rapidinho.
— Já está se sentindo melhor? — o cabelo no olho.
— É, acho que sim... é só que... ainda; me sinto um pouco de... de-
vagar, né?
— É normal, já já passa! — os dentes.
Ficamos um instante em silêncio, para nos lavar, o ambiente tinha
ecos de nossa alegria. Reparei meu pé podre, um horror, tinha ali feridas
que eu nunca tive antes; estranho era que não machucava, ardia no ele-
mento em que as cicatrizes não fecham. Perguntei pro Egbert por que e
ele ficou surpreso de eu não saber que a urina é um poderoso cicatrizante
(já estávamos fora), que logo já estaria sarado, mas que era bom dar uma
lavadinha antes, só para tirar essas crostas ao redor das feridas, fora que

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também, continuou, o vinho esquenta os neurônios até não sentir dor, e
ainda mais, afinal quando acabaria os motivos?!, aquela água, sem grande
teor de sal, em equilíbrio dissonante com a taxa de açúcar, tinha muitas
folhas das árvores das montanhas ao redor, que carregam bichinhos de
carapaça e fazem, como diz o pessoal dos arredores, a água ficar num eter-
no inverno, com uma cor preta, sem refletir nada do céu com o sol, uma
lua do mar, mas como mantivesse a noite cativa nos vazios, e fiquei doido
quando percebi.
— Mas nada melhor que a água para terminar o que o álcool come-
çou! — Ei, Bartolomeu, tuas roupas também estão sujas, não é? Você sabe
lavá-las? Não? Ora essa, você não quer chegar em casa com essa roupa
toda suja, né?! Vem, eu te ensino a tirar essas manchas. Pena que aqui não
tem sabão, não vai sair tudo. Nossa, o sol já está indo embora, já vai anoite-
cer. Vamos limpar só o que está manchado então. Aqui, você pega a roupa
e esfrega onde está sujo, joga dentro da água, tira e vai fazendo isso até
quando achar que está bom. Pera! não joga tudo, não, senão não vai secar!
Isso, só o que está sujo, miserável.
Não ia anoitecer daqui a pouco, ele que trocava os pés no tempo
daquele dia. Como a água do lago era feito betume, não tinha como ver
muito bem a roupa se estivesse ali dentro, dava a impressão de sujar. Eu
lavava fora do lago; Egbert que lavava lá dentro mesmo, molhava a roupa e
pretendia usá-la molhada (o esquecimento não conhece contradições). Ele
estava lento, acho que grande parte vinha da trombada que deu na amizade,
da qual já era íntimo como flor na terra — enfim, estendi minhas roupas
no chão para secar no restinho de sol que fazia e olhei as coisas. Era uma
imagem dupla: o que estava em minha frente estava refletido no lago, uma
linha de contraforte encarando um monte maior.
— Egbert! Será que o lago é preto por causa disso tudo?
— Vai saber!
Me olhava com uns olhos que riam, me percebendo ainda ruim da
bebida. “Talvez reflete os pretos da lua”, gritei pra ele. E nuvens de um
branco muito espesso no céu, atrás das quais um céu azul marinho, deve
ser difícil achar livro em que ele seja descrito sem floreios divinos, mas não
é preciso tanto, o céu era de um azul tão forte, tão real, que poderia parecer
surreal, como os cúmulos que adornam o trono de Deus, mas é só a vida
de novo. E também as pequenas vagas que se formavam pelo vento e os
movimentos de Egbert: ele estava ali, irrefletido como um vulcão. Imagino
como seria feito o corpo de Egbert caso um deles visse seu corpo nu como
vi.

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Ó! corpo alvo, de formas perfeitas e opacas, tez sem pez, corpo puro,
casto, anjo cadente do mistério, povoando-a, constituindo a grande incons-
ciência das massas fora, independentes de mim, ó! de quantas púrpuras
seria possível ornar tal petiz? quantos mistérios inauditos povoam seus
olhares? e ele emergia de plaga aquosa, escuridão maldita do inaudito, em
seu corpo anadiomene, revestido de louras lanugens cocegando o rosto
ubíquo do vento...
É, não sei se copio bem o estilo deles, acho que não tenho a liturgia
do processo.
Quando ele saiu do lago, pude ver melhor seu corpo inteiro. Era um
rapaz normal, tinha todos os órgãos nos lugares, alguns poucos cabelos
nas pernas, tipo eu. O que mais dizer? Hum... ah! Tem um nariz levemente
aquilino. Acho que é tudo, não há muito de especial em ser gente
— Vambora! Quero te mostrar uma coisa.
— Onde?
— Lá na minha casa.
Voltamos pelo mesmo caminho bem marcado, era muito comum se
perderem por ali. As casas tinham pessoas nos arredores, sentadas, em con-
versas alegres e monótonas, em serões de fins de festa. A vila tinha mania
de não comemorar noite adentro. O chão palpitava os mares, era a hora da
sesta dos esfregões de peles e vozes, quando o céu vira lago.
A calmaria da hora também era o rosto das pessoas e o meu e o do
Egbert. Sua voz já começava a exalar lassidão e seu corpo caminhava deva-
gar, parecia leve, e olhava o céu. Seu corpo estava envolto numa pele como
uma ilha à beira-mar de onde recebia impulsos do vento, dos mares, dos
céus, de outras ilhas, um tapinha amigável numa montanha partida em três,
ou um pra quebrar o nariz, né; era puro matiz. É o que eu também sinto
em mim; e você, dentro desse capuz, só faz fugir disso... mas fica chateado
não, tá? eu falo sem pensar às vezes.
Sobre isso que conversávamos, só para não imaginar introspecções.
Olha ali, é uma capela, não é?
Pois é, mais andávamos, mais nos achegávamos dela. Ela pode ser
singela daqui, mas de perto é mais suntuosa do que parece, tem uma entra-
da grande, toda ela por dentro é feito diversas abóbadas, do teto pendem
candelabros grandes com a barriga pra cima, iluminuras com escritos lati-
nos e passagens das bíblia, e também pequenos quadros de mármore sobre
o caminho da cruz de Jesus. Está bem cuidada, só que não é de se duvidar
que já exista há séculos, ainda há pessoas ajoelhadas nos bancos ou nas

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cadeiras mais santas do altar rezando, e alguns cachorros descansando na
entrada. Tomei um susto de soltar um suspiro alto pela nave ao ver a gran-
deza das paredes em arco, um cinza vivo. Afinal, fazia muito tempo desde
que eu tinha ido lá! Tem filas e filas de cadeiras de frente pro santo que
guarda a cidade — sabe-se lá o nome — e pro púlpito onde fica o que fala
ou prega sabe-se lá o que na cabeça dos outros. Acho que minha família é
uma das únicas que não frequenta as missas.
— É verdade, eu nunca te vi por aqui, Bartolomeu. Eu também não
gosto d aqui, mas sou obrigado, senão é rua, meu parceiro. Ao menos, eu
estou sempre fazendo algum serviço durante as missas para auxiliar o frei
dos Santos. Estranho, né? Mas ele diz que só preside porque não há mais
ninguém.
Ele me guiou até uma porta atrás do púlpito e viramos à direita. Ali
tinha duas portas de frente pra outra. Fomos na da direita. Nada ilumina
o corredor.
— É aqui onde eu moro.
É um quarto agradável, uma cama, mesa e cadeira, alguns livros
abertos e fechados. A cama é confortável, do lado dela uma grande janela
ilumina o quarto, de tão comprida chega quase no teto. Sem cortina.
— Pra quê? Vem cá, que eu quero te mostrar isso.
Saímos do quarto. Parados de frente a outra porta, enquanto Egbert
a abre bem lentamente, como que fazendo uma força imensa para girar e
empurrar a maçaneta. O tempo inteiro, ele só sussurra.
— Tem que ficar bem quietinho agora. Aí dentro tem uma moça
que nunca acordou; pelo menos desde que eu vim para cá, devia ter uns
sete anos. O frei não gosta que entrem aqui; já recebi duras reprimendas
por tentar acordá-la com sacolejões, baldes d’água, dedo babado, tropeços,
saudações, trovas e muito mais. É que ele sempre teve um cuidado imenso
com ela, sei lá por quê. Eu só vou te mostrar porque ele não está aqui ago-
ra, mas é bom evitar.
Do lado, há um pequeno corredor, onde ficamos escondidos, vimos
que o frei estava ali.
Egbert arregala os olhos num ríctus amedrontador de surpresa; co-
mum perigoso muxoxo, olho desdenhosamente para ele. A tal mulher que
dormia sem parar estava sentada na cama, coberta a partir da cintura com
uma camisola branca um pouco transparente, e uma cara de café na mesa.
O frei estava sentado numa cadeira sem encosto, costas de ombros dobra-
dos para ela, de feições sérias.

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Espero que você não se importe se eu der lugar bem rápido pro diá-
logo entre um frei e uma senhora, tudo bem? Juro que não vai doer.

O FREI
Joaninha... quantas palavras faltam-me a dizer-te...

JOANINHA
Não precisas, meu bom dos Santos. Mas, diga-me...

O FREI
Espera! Tens certeza de que estás bem? Acordas, mas logo voltas a
dormir... não esperes que eu aja indiferentemente a tudo isso.

JOANINHA
Ah, meu bom paizinho. Não tens hoje mais em diante de que te
preocupares com minha condição. Estou bem enfim!

O FREI
Creio em ti.

JOANINHA
Mas... e ele, meu bom pai? E ele?

O FREI
Ele? Não me digas que...

JOANINHA
Sim, doce pai, e meu irmão e grande amor? Carlos... sempre pergun-
to, mas nunca mo diz... tanta saudade que dele tenho, tanto amor que ainda
lhe guardo em meus seios... Faz favoire, onde está?

O FREI
Querida... queridíssima Joaninha... Acaso tens tu ideia do que per-
guntas?

JOANINHA
Que é que queres dizer?

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O FREI
Joaninha... tu ainda manténs os belos olhos de gazela, o jeito doce de
pombinha ingênua que há tanto guardavas.

JOANINHA
Imploro dizer-mo...

O FREI
Meu benzinho, então guardas tu na cabeça ideia alguma do quanto
dormiste? Ora, pois, dormes há mais de cento e oitenta anos... desde mil
oitocentos e trinta e três. Morreste em meio à guerra. Anos depois, viemos
ao Brasil contigo, ainda dormida.

JOANINHA
Ó! Deus meu...

O FREI
Joaninha, ó! quanto me rejubilo por estares acordada!

JOANINHA
Então... Carlos morreu?

O FREI
Ó! não... Deus nos livre!

JOANINHA
Que bem me faz ouvir-te!

O FREI
Mas... ah... atenta bem, que após tua decaída, Carlos tornou-se ba-
rão...

JOANINHA
Ó!

O FREI
... engordou...

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JOANINHA
Não creio!

O FREI
... tornou-se mesquinho, egoísta, nunca mais nos procurou.

JOANINHA
Como poderá ser isso?

O FREI
Mas, hoje, meu bem... Ó! meu Deus, meu Deus!, dai-nos forças: pois
que Carlos tornou-se fazedor de páginas cibernáiticas!

JOANINHA
Ó! Ó! morro de vergonha!

Joaninha caiu de volta na cama; frei dos Santos escondeu-se entre as


mãos, chorando abafado com urros. “Estás morta enfim! Morta!”, gritava
o frei. Sem dar as costas para aquele carnaval de horrores, fomos saindo
bem devagar do quarto, atônitos, o corpo inteiro arregalado, sem virar as
costas. Me atirei na cama de Egbert com o rosto enfiado no travesseiro,
gargalhando. Egbert ficou parado na porta que nem um poste, rindo incré-
dulo e em silêncio.
Ainda hoje não consigo evitar, vou falando no correr do fluxo.
Aliás, Joaninha já foi sepultada. Tadinha. Embora Egbert tenha me
dito que o frei passou horas pensando no que botar em sua lápide, ainda
hoje ela está lá sem nada escrito.
Tirei a cabeça do travesseiro e me virei com os olhos inchados de
tanto chorar de rir. Egbert parecia estar mais calmo, ia se sentar na cadeira.
— Morro de vergonha! — gritei e nos descontrolamos.
Saímos do quarto e demos com o frei no corredor, aquele rosto oval
chorando, encaixado num corpo rechonchudo, preso numa bata preta de
colarinho bagunçado, pássaro torto. Saudamos ele e passamos o mais rá-
pido possível pelo corredor até a porta. Na capela, tinha menos pessoas,
apenas um homem aos farrapos que grudou os olhos na gente.
— Boa noite, carantonha! — falou Egbert de volta com sua garga-
lhada.
— Uma surra, mal educado! — com uma voz muito rouca.

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— Ah, por favor! Ainda fica chateado, totonha?
Fungou, cuspiu e virou a cara. Egbert deu sua risada contagiante dos
sofrimentos dos que estavam e viriam.
Agora, sim, anoitecia. Na rua, uma ou outra pessoa varrendo e arru-
mando os restos da festa. Eu tinha quase certeza que não eram as mesmas
que estavam nela.
Nos sentamos nos degraus da capela e a noite brilhava o rosto de
Egbert. Seu rosto expirando grande tranquilidade, até certo cansaço; olha-
va meio emburrado meio liso quem arrumava a rua e eu também, e logo
estaríamos no meio de nuvens densas, surgidas do nada, e eu me sentia
pesado de leveza que escorria pelo chão — escorria e sentir aquilo escorrer
por mim todo também, abraçar Egbert como uma coisa.
Quando Egbert me volveu o rosto, sentia pungentemente transar
com ele...
— Mas o quê?! — levantou a cabeça, estupefato, o homem, com
uma careta muito estranha.
Ai minha nossa! Desculpa, desculpa! Vamos tentar de novo, me es-
queci de você. Você conhece, por algum acaso, a filosofia heideggeriana?
Então, ela é conhecida mundialmente pela capacidade extremamente rica
de mostrar que as palavras podem ser escritas com hífen, mesmo antes do
fim da folha. Vou tentar a prosódia da escola para que você consiga me
entender corretamente: trans...-...ar.
Ora pois, monsenhor, já que machuca vossos ouvidos o ar de certas
palavras, darei a vós um sentido mais bonito e fofo, assim como deve ser
lá “longe, bem longe”, né:
Quando ele me olhou, senti nossas almas atingirem um estado pre-
sente mais vital que qualquer ar que pudesse nos envolver, se expandiram
de tal modo que puderam ultrapassar o limite do vazio, a onipresença do
ar; criou-se um embate mais forte que a paixão dos nossos pulmões com
o ar. Capice? Hah hah! que dificuldade essa de só entender pelo lado mais
difícil! (só o morto prescinde das máscaras do verbo)
Deixa eu continuar agora.
Após o atentado ao pudor, ouvimos um violino chorando. As pes-
soas saíam de casa aos pares e vinham dançar em ritmo lento, corpo cola-
do, o violinista andando entre o povo, o som ganhando contornos.
— Aposto que nem isso você conhecia, né, Bartolomeu? — ele ria!
— Você é raro. Vem, vamos.
Hipnotizado eu ia. Mão na mão e me puxava. Ali, bem menos pes-

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soas que antes, mas a mesa, e cerveja e vinho, ainda, e quem queria, quem
queria; se ainda sobrasse, deixa lá, poupa trabalho, o copo.
— Nada! — me adivinha e ri! — Elas só são tiradas quando acabam.
Só guardam os tonéis fechados.
Antes do movimento, eu vejo os outros. Dançavam com o corpo
mais junto, com o corpo sem toque, o olho e movimentos lentos. Egbert
pega vinho, um copo para dois. De noite só vinho, segundo ele, flui me-
lhor, mas alguns desconheciam ou infringiam a regra com a cerveja. Ele me
ensina a brindar, quando corpo confronta corpo. Depois do primeiro gole,
não me lembro mais, minha cabeça é toda seu céu.
Acordei com o sol forte. Ao lado da cama, estava a mamãe e o Egbert;
me olhavam muito preocupados. Reinava um silêncio sem fôlego. Fiquei
feliz de ter acordado vendo os dois, me espreguicei, tocando minha mãe no
rosto e tocando o Egbert com a outra, e me levantando de uma vez.
— Vem, amor, o café já está pronto.
E minha mãe, por que tão serena? E meu pai ainda em casa?
— Mãe, desculpa — falei na mesa.
Me olharam surpresos, riram; ela alisou meu cabelo, um carinho bom.
Olhei pro lado, pra Egbert ali, bem ali. Acho que ele não queria comer.
— Você sempre pôde sair de casa. Era só avisar, meu amor — falou
com uma naturalidade, enquanto comia, que me espantou. — Quando ter-
minar de tomar seu café, pode sair.
Fiquei muito feliz e comi o mais rápido que pude. Me despedindo da
mamãe, fui pra fora com ele.
— Egbert, o que houve ontem de noite? E por que você está tão
quieto?
— Bartolomeu... — ele se virou para baixo, como que se desviando
de mim — Ontem foram dias e tanto, né?
Estaquei, franzia o cenho, não entendia.
— Desculpa... — falou ele com uma voz desanimada.
Não entendia por que as lágrimas insistiam, por que sulcavam meu
rosto com força. Me deitei na rua ao seu lado. A rabeca ainda no céu, o
canto do sabiá.
— Desculpa... mas ontem nunca acabou.
Quis abraçá-lo, mas seu corpo não deixava. Me levantei, palpitava e
sentia que algo serpenteava.
— Toca na tua cabeça, atrás — doía — Ontem o frei teve uma crise
de histeria, saiu da capela com um pedaço de madeira. Ele gritava, enquan-

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to a rabeca nunca parava: “Tu mataste-a, peste! Descobri a profanação!”
Não sei, parece que ele estava dizendo que nós dois sujamos o quarto da
Joaninha-dorminhoca — e sorria —, por termos espiado eles dois lá. Ele
te confundiu comigo e deu o primeiro golpe em você. Não deu tempo de
impedir, ele me acertou bem aqui com bem mais força — apontou o lado
esquerdo da testa —, eu caí do seu lado, você foi a última coisa que vi,
desmaiado, tão perto, eu senti a pancada, as pedras no chão me furando,
fiquei assim ó, o sangue escorrendo, grosso, um preto estranho na luz da
lua, sabe?, ele ficou caindo daqui de trás da minha cabeça e também na
frente, entrou um pouco na minha boca e até no olho esquerdo aqui; foi ele
o último a parar de funcionar, mas ainda agora, quando pisco um pouco,
aquele último momento volta pra agora, você de novo e de novo... o que
houve pra eu gostar tanto de você?
Egbert anoitava sua presença, seu rosto virado pro céu nunca voltou.
Essa tristeza expandia como um nômade em mim.

— Veja isso, senhor — disse Bartolomeu, tirando a roupa. Por seu


corpo, desenharam-se imagens como com faca, em cujos fins apresentava
uma estrutura fractal, onde em pequenos espaços a tez vingava — Quem
diria, né? Tristeza fazendo coisas!
O homem fechou o livro, tirou o gorro, exibindo a cabeça descapi-
lada, traços rijos de longa austeridade. Bartolomeu exibia-se ao senhor por
todos os lados, apontando com os dedos alguns de seus desenhos predile-
tos, ao mesmo tempo percaminhando o contorno com os dedos, arqueava
a cintura para frente e para trás, onde é melhor calar que dizer os desenhos
também penetraram — e mais, estão vivos, pois o movimento, de acordo
com a temperatura, varia no verão com menos violência e número, por
exemplo, que no inverno, enquanto, no outono, há maior serenidade nos
contornos —, levantou o saco com a mão esquerda, expondo a figura de
raio, do períneo ao ânus, virando de costas, abrindo com as duas mãos as
nádegas, desvelando desenhos em que cada um dos cinco vértices fora
dobrado ao meio em pontos arbitrários e assim sucessivamente até formar
outro desenho, e revelava aquele pequeno ponto corrugado, cada risco se
expandindo de uma ruga, como também nos traços das axilas. O ancião fi-
tou-lhe com a mesma expressão de antes. Devolvendo-se sua compostura,
pôs o capuz de volta, meteu o livro no bolso.
— Vou-me embora.
No mesmo instante, Bartolomeu colocou rápido a roupa e, abanan-

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do a mão, a manga da camisa mostrando os desenhos epiteliais, imenso
sorriso aberto, gritou:
— Tchau! Obrigado por não me deixar ler!
As costas na árvore, sentindo-a um rio — formigas traçam caminho
nele; jogou o livro no chão, capa voltada para cima, monocromática, “Vi-
sões, cenas e perfis”, um pano marcando o início d“A rua”, mas pouco im-
portava, não leria mais. O céu se descortinava num preâmbulo de nuvens,
cúmulos sombreando a várzea, cujo fim revelava uma ponta azul forte,
imiscuindo-se, sem arestas, Bartolomeu criava rombos em sua cabeça, o
cansaço não mais lhe permitia levantar os braços, sentir nos dedos o crânio.
A dor, que, há pouco, descrevera, ressurgia, brincava de pular corda com os
desenhos, amarelinha, cócegas com os pulinhos.
Marina, menina de mesma idade, qual irmã, cabelos divididos nos
ombros, com um rabinho descendo pelas costas, nem gorda nem magra,
vinha andando em sua direção, e como não tinha percebido sua presen-
ça, correu para trás da árvore, silenciosa, espiava-o, uma cara de bobo, de
quem não tem o que fazer. Empurrou-o com força e gritou.
— Acorda pra vida, moleque — rindo.
Assustado, Bartolomeu riu de volta e se sentou.
É prima de Egbert; conheceu-a no funeral. Após o frei espancar
Egbert, tendo percebido o erro de ter batido em Bartolomeu, a cidade,
cujo espírito dançava, tornou-se uma orquestra dodecafônica e, na mesma
hora, foi julgado e condenado a morte, execução imediata ao amanhecer.
Que vida difícil não teve esse homem: em meio à guerra civil, irmãos con-
tra irmãos, mudou-se para o Brasil, triste, sem o filho, Carlos, sem a velha,
não sabia se até hoje cosia ou não, largou tudo e seguiu para um país des-
conhecido de gente misturada. Tudo o que levou consigo foi Joaninha,
beladormecidamente, um sufoco para levá-la no navio, mas tudo deu certo,
graças a Deus. Viria para o bem, para a calma, um povo que tinha muito
que aprender em Cristo, nunca ouvira falar de frei ou padre famoso bra-
sileiro. Instalou-se no interior de Minas, único lugar onde a fé teria bom
rumo.
— Poxa, Bart... por que você ainda se lembra dessas coisas? Pensei
que você já tivesse esquecido. Deixa o Egbert morrer em paz.
— Tinha esquecido sim, e ele já estava em paz antes de morrer. Sabia
não? Eu estava conversando com um homem estranho, com uma roupa
longa e escura, quis saber o que eram esses desenhos, aí acabei contando
tudo. Me lembrei agora, nem disse isso pra ele, de quando, logo depois de

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me despedir do Egbert, fui conversar com o frei; estava se preparando, na
cela, para ser morto.
— Você já me contou isso, me lembro.
— É que sabe... que motivo estranho, que história confusa. Aquele
rosto de quem não tem mais o que perder, mas prestes a ganhar tudo... Foi
pelas grades da cela que falei com ele, não se assustou, não se virou, mas
sabia que era eu, me cumprimentou e perguntou pela minha família; não
respondi, a escuridão me escondia, enquanto ele parece que fazia questão
de se sentar onde a luz incidia. Perguntou por Egbert com a mesma voz,
me ouviu chorar, puxar o nariz, a tristeza criava raízes, assustava seu jeito
de brincar... “Queria, tão-s’mente, ver a amada Joaninha, tão bonitinha.
Não pod’ria viver sem ela. Matar-m’ está fora de questáum.” – Marina, isso
me medou tanto. Fiquei até sua cabeça rolar, o sangue jorrar no chão e na
gente. Você estava lá?
— Estava sim, mas não me lembro de ter visto você lá, não. Meu pai
que me levou, porque a mamãe odeia essas coisas.
— Entendo ela, talvez seja a primeira e última decapitação que eu
veja, mas, sabe... Não dava para não ter visto, nada em mim pensava em
sair dali.
— É rancor isso, ódio, ou então vingança.
— Pode ser, mas não é só isso; Egbert não sofreu, ele me disse. Teve
algo mais, mas não sei o que é.
— Pensa bem que a resposta vem.
Sentou-se ao lado de Bartolomeu, num silêncio que parecia súplica
ao esquecimento. Logo esquecem.

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Êxule
Novela em oito capítulos
e um prefácio

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“Como tu, sigo pela vida, porque já tive casa outrora, insuspeito
de que há muito uma casa maior já me abrigava.”

Carta de Spinoza ao centenário de morte de François Rabelais (1653)

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PREFÁCIO
À guisa de introdução, biografia de Nicolas.

I
Dentre os reinos do mundo, todos, ou grande parte, com histórias
interessantes e talvez igualmente inquietantes, há um reino alvo de nossa
história. Não havia muito tempo que o rei Garcia morrera, cerca de dois
meses, quando subiu ao trono seu filho mais velho, João Emanuel, casado
com Bruna Bessa. De bom semblante, conhecedor das melhores técnicas
de caça, justo e benquisto.
— A partir de meu pai, sigo seus passos. Quando pequeno, via as
grandes pegadas dele e me assustava, nunca me imaginava digno de com-
paração. Cresci e, finalmente, são minhas, sinto-me capaz de continuar de
onde ele parou, aprendendo com suas falhas e seus acertos, suas glórias e
seus fracassos.
Todos aplaudiram e ovacionaram em seu louvor. Além dos poucos
parentes de Emanuel, estavam ali todos os componentes do reino, os gru-
pos desde os que apenas de planta viviam até os que comiam da carne.
Emanuel discursava sobre um estrado, para que todos o vissem. Assoma-
va-lhe na lembrança algumas conversas com o pai. O momento era che-
gado.
Estavam em uma planície, o filho queria saber quem fora o seu avô.
— Ah, Emanuel — falou o rei Garcia —, foi alguém grande, muito
inteligente e sempre em contato com todos, desde os comedores de fungo
até os bebedores de sangue. Sabia que nenhum rei antes dele havia feito
isso? Ele foi o primeiro que realmente pôs de pé o reino. Tudo o que temos
devemos a ele.
— Então isso quer dizer que você não faria o que ele fez?
— Não sei, e não há como saber. Tudo seria diferente.
Passou-se um minuto de silêncio.
— Que isso sirva de lição para você, Emanuel: o caminho trilhado
deve ser continuado até a perfeição. Assim deverá acontecer contigo, Ema-
nuel. Enquanto você seguir o caminho, transparecerá em suas ações seu
avô e também eu.
Lembrava-se dessas palavras e se propunha cumpri-las.

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II
Alguns meses depois da coroação de Emanuel, Bruna deu à luz uma
criança. Já fora provado que Bruna estava grávida desde antes da coroação.
Grande comemoração assolou o reino. A felicidade aumentou ainda mais
quando fora revelado que era um menino: Nicolas, o futuro rei.
Mas Marcos era irmão de Emanuel, cinco anos e dois meses mais
jovem. Se não figurava entre os melhores, compensava em perseverança.
Pouca atenção votava à força, seu foco era a técnica. Emanuel era bem o
contrário: êxito, aprendia sem esforço tanto a técnica quanto a força. Com
efeito, orgulhava-se e seu rosto transparecia brio. Ensombrado pela majes-
tade, Marcos desprezava não só o irmão como com quem se relacionava, o
que incluía Bruna e Nicolas. A máscara nunca caía.
Desde que soube da gravidez de Bruna, seu rancor crescia: essa
criança significava desgraça, nunca subiria ao cobiçado trono: a educação
que recebeu de Sr. Joaquim não foi a mesma de Emanuel. Reservaram-lhe
o pesadelo da servidão.
— Sentimos a tua falta na apresentação de Nicolas, Marcos — falou
Sr. Joaquim.
Era o conselheiro do rei, educador por linhagem e íntimo da famí-
lia. Uma criatura pequena, jeitosa e arrogante. Fora conselheiro de Garcia
também.
— Será possível que os de tua espécie nunca morram? — perguntou
Marcos com um sorriso irônico — Já estás na família há tempo demais.
Tens herdeiros não?
— Assim como você, nem tão cedo morro. E de novo como você,
não tenho herdeiros — respondeu laconicamente.
— Ah, mas não seria uma pena se tudo terminasse contigo? Quem
ensinaria a conduta real ao novo fedelhozinho?
— Eu poderia ensiná-lo — entrou Emanuel — e enobreça o tom:
esse “novo fedelhozinho” é meu filho e teu futuro rei. Deves respeito a ele
desde já, se não como rei, então como parente, sangue do sangue que nos
gerou.
— Ah sim, verdade, papai não ia gostar dessa minha atitude. Peço
perdão, Sr. Joaquim e querido irmão Emanuel. Saiba que em breve verei
meu sobrinho e futuro rei — falou Marcos respeitosamente.
Deu a volta entre os dois e saiu.
— Maldita a família que abrigue ovelhas negras. Bem aventurada a
que sempre educa.
— Pelo menos você tem só ele... meu caso é pior, nem queira saber.

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III
Dali, Marcos não foi ver o sobrinho, como havia dito. A noite suave
dava abrigo a estrelas e escuridão. Todo o barulho se concentrava em Ni-
colas; daí o afastamento de Marcos. Andava sozinho, único triunfo contra
o irmão. Não é possível dizer com exatidão o que se lhe passava nessas ho-
ras, era capaz de atravessar a noite olhando o firmamento. Era hábito seu
atender ao nascer do sol. Mas aquela noite não seria solitária. Por andar de
noite, fizera novas amizades com outros de sono igualmente perturbado.
Maioria esmagadora: eram os exilados. Marcos não entendia muito bem
por que andavam à hora do lobo, mas também não recusou o companhei-
rismo. De compleição molenga, fraca e frágil, não encontravam comida: as
terras fora dos limites do rei costumavam ser de natureza estéril, mesmo
de vento, escarpadas rochas porosas impediam o vicejo variegado da vida.
Eram, em sua maioria, traidores e assassinos, matavam sem fim específico
justo, como para se alimentar.
— Olá, olá, Marcos — falou um dos exilados. — Como é que você
está? — todos desataram a rir, exceto Marcos.
A essa pergunta ele não respondeu, na verdade mal se movera quan-
do chegaram, a lua fascinava mais hoje.
— Sabe que estamos só brincando, né, Marcos? Mas é que ficamos
sabendo que você ganhou um novo parente hoje... ou devo dizer, um futu-
ro rei — as risadas se intensificaram.
Imobilidade tanta que não piscava. Lentamente se virou e disse:
— Sim, é verdade que ganhei hoje um sobrinho... — voltava um
silêncio cruel — Mas não sei se fico ou devolvo...
IV
Os tempos passaram com Nicolas. Saudável, curioso. Não gostava
de ficar em casa, mas saía e brincava com sua amiga, Carol, cujos pais eram
bastante amigos do rei. Era uma garota igualmente aventureira e desastra-
da. Talvez a brincadeira que eles mais gostassem era a de ser rei — Nicolas
fingia ser rei, depois Carol fingia ser rei. Para tanto, eles tinham sempre que
ir pra bem longe de casa, pois dois reinos não podem coexistir sem guerra.
Sr. Joaquim acompanhava os futuros reis em suas estripulias, um grande
problema, já que pessoas como ele não sabem brincar.
— Zua! — reclamava Nicolas — Por que é que você tem sempre que
vim com a gente?
— Porque é meu dever garantir sua integridade — num tom arro-
gante que machuca.
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— Com certeza você nunca foi criança — Nicolas respondeu e Ca-
rol ria.
— Pode ter certeza de que eu fui criança sim. A diferença é que eu
era obediente e, por isso, muitas portas se abriram no caminho destinado
ao serviço real.
Os olhos brilhavam, mas as crianças já o tinham dado as costas:
— Você acha que não sabemos que, na verdade, esse só é teu traba-
lho porque é algo de geração em geração na sua família?
— E você tem toda razão, jovem príncipe, mas só consegui me man-
ter nele até você porque soube ouvir a razão. Não importa o quanto você
brinque de ser rei, se você não tiver bons ouvidos, virá a se tornar um rei
horrível, afundando tudo o que seus antepassados criaram com tanto es-
forço.
Distraídas nos jogos, Sr. Joaquim sentiu despeito.
— Só te ouvi dizendo que serei um rei ruim, mas vou ter que discor-
dar de você. O que você acha, Carol?
— Acho que ele não te conhece direito.
— Por quê?
— Porque ele acha que você e eu não sabemos das histórias do teu
pai durante a infância.
— Verdade! Zua, saiba que eu sei que meu pai era como eu. Se você
fala isso de mim...
— É como se falasse que o pai dele é rei ruim!
— E você tem certeza que quer falar isso do seu próprio rei? — os
dois iam o encurralando.
— Vai te demitir.
— E te expulsar.
— Aí você vai ter que ficar entre aqueles exilados fedidos e mortos
de fome.
— Eles vão te comer e...
A essa altura, o Sr. Joaquim encolhia-se à sombra dos dois, até que
abriu caminho, bastante irritado, e falou:
— Ora, mas saiam de minha frente! O teu pai tomou jeito pelo me-
nos! Ele era irrequieto sim, mas já na tua idade tinha o dom da audição
preclara e do respeito honroso aos mais velhos, coisa de que você, e você
também senhorinha, carece em larga escala, falta que beira as raias do to-
lerável.
Felizes de perfazerem mil vezes, deram as costas e nem prestaram

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atenção, ou pelo menos fingiram.
— Ele fala tanto em ouvir que deve ter problemas para se ouvir e en-
tender que fala demais — disse Nicolas alto para que o Sr. Joaquim ouvisse.
— Mas isso nem sequer faz sentido! — disse correndo em direção
a eles.
De repente as crianças pararam, parecem ter chegado aonde que-
riam. Não dava para entender direito o porquê de terem escolhido aquele
lugar e não outro. Tratava-se de um campo relvado, com algumas árvores
em pé e caídas, nada diferente de cinco metros atrás ou à frente. Sr. Joa-
quim observava sentado à copa de alguma árvore como era curioso esse
tipo de coisa, pois parece que até os seres menos atarefados precisam ou
gostam de ter uma rotina a seguir. Pensava que jamais conseguiria se abor-
recer por mais de cinco minutos com eles, assim como não se lembravam
mais do que lhes havia dito.
— Por que será que quando uma criança fala, aparentemente, de si
para si ela não é vista como doente, mas, muito pelo contrário! é imagina-
tiva, algo que sempre prezaremos e estimularemos; porém, quando vemos
algum outro, nós dissemos que é doente? Se o nosso objetivo é a alegria, a
plenitude, não devíamos sentir vergonha alguma de sermos idiotas.
Deu por si, sem saber se falava ou pensava, e foi pra sombra. “Ape-
sar de tudo”, dessa vez com a certeza de que pensava, “eu já não sou mais
criança, tenho de saber portar-me.” Olhava Nicolas e Carol brincando. Não
entendia a brincadeira que os dois se recusavam a explicar: às vezes, parecia
que Nicolas mandava, em outras era Carol; às vezes se punham a correr até
perder o fôlego; de outras — e como o Sr. Joaquim se impressionava! —
dormiam no chão. Não ousava interferir, contudo cria com certa abjeção
que não o fazia por vergonha, cuidava apenas de que não se machucassem.
A noite tornava-os alvos fáceis, mesmo em terras do rei, mas não voltavam
antes do entardecer, ainda distante. Aconteceu, bem naquele espaço de
paz, algo que o Sr. Joaquim nunca esperou presenciar.

V
As crianças se divertiam com certo barulho e Sr. Joaquim dormia.
Na noite passada fora obrigado a realizar certos serviços com Emanuel,
sobre os quais não convém falar. De súbito o barulho das crianças parou,
o Sr. Joaquim acordou, mínima mudança no som. Nicolas e Carol, de fato,
não brincavam mais, estavam olhando algo no chão. O Sr. Joaquim duvi-
dou que fosse um bicho. Quando viu do que se tratava, deu um grito e qua-

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se caiu no chão; as crianças se assustaram rapidamente, mas, num instante,
volviam admiradas de novo.
Tratava-se de um exilado. O Sr. Joaquim o reconheceu imediatamen-
te, todos se parecem: magros, sujos e exilados. Num instante, o Sr. Joaquim
dispersou as crianças daquela imagem horrível, tenebrosa e que, segundo
pensava, os macularia, e tratou de levá-lo ao reino com a ajuda das crianças.
A vinda do sujeito, primeiro, causou rebuliço, depois foi acalmado com a
presença real. Emanuel e Bruna quiseram ajudar de pronto o exilado, ofe-
recendo cuidados e comida, queriam saber o que acontecera com o desgra-
çado. Demorou algumas horas até ele finalmente ficar consciente, passadas
com expectativa alta de todos os lados, menos um.
— Onde estou? — perguntou quase balbuciando.
— Estás no reino de Emanuel — respondeu com prontidão o Sr.
Joaquim. — Trate de se apresentar, como exige as boas educação, fé e fa-
mília. Diga o nome primeiramente.
O exilado olhava para tudo e todos com extrema curiosidade e inge-
nuidade. Nicolas e Carol se escondiam, proibidos que estavam de presen-
ciar pelos mesmos motivos supracitados.
— Nome? O que é um nome?
— Caraca — cochichou Nicolas entusiasmado —, ele nem sabe o
que é um nome! — riram bem baixinho, com esforço notável.
— Pobre coitado — falou Emanuel —, deve ser filho de um exilado.
Ouvi dizer que eles, lá, não têm nome nem qualquer outra sorte de iden-
tificação.
— Vítima da torpeza dos pais, eis o que é — observou Bruna. —
Por favor — aproximando-se do exilado —, conte-nos o que aconteceu.
— Não me lembro direito do que aconteceu, alteza. Sim, sou filho
de exilados, isso é verdade, nunca cometi um crime e acho que essa foi a
maior razão de ter acontecido o que aconteceu comigo. Sei lá, não me lem-
bro direito, ainda sinto dor de cabeça — pareceu que ia voltar a se deitar,
tomando outro rumo —, mas vou tentar me lembrar, enquanto conto. Os
meus pais também não têm nome, mas sei que são bastante respeitados e
conhecidos pela violência. Parece que eu nasci com o objetivo de te matar,
Emanuel, mas, como eu disse, não gosto de violência, não sou bom com
briga, por mais que minha vida tenha sido só treinar. Quer dizer, não gosto
de briga nem de violência. Sempre preferi ficar aqui quieto no meu canto,
sempre quis ficar longe daquelas pessoas, eu sentia que não eram... bem,
que não era meu lugar. Aconteceu que eles sempre me achavam e me leva-

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vam de volta para lá. Óbvio que apanhava todas as vezes que me levavam
de volta, meus pais não suportavam a ideia de que o plano deles iria por
água abaixo; mas eu, também, não podia suportar a ideia de, por causa de-
les, deixar que meus planos fossem por água abaixo... isto é,... não sei que
planos, talvez eu não tenha, talvez só queira ficar longe de lá... da última vez
que fugi, o pessoal não me forçou a voltar pra casa, mas me espancaram e
me... é, parece que fui exilado da terra dos exilados — deu uma risadinha.
— Eu acho que meus pais mesmo que planejaram isso — a essa altura
todos se olhavam compadecidos, todos os adultos pelo menos. — Eu en-
tenderei se vocês não quiserem me deixar ficar, não tem problema, não.
— Ora, mas isso é prepóstero! — exclamou Bruna — Fique conos-
co o tempo que for, e nisso não há exagero.
— Lógico, não ouse sair deste castelo — falou Emanuel.
O exilado chorava, decerto era essa uma das raras ocasiões de cordia-
lidade em sua vida. Falaria, mas as feridas sangravam. Deixaram-no sozi-
nho para dormir. Algo imperceptível escapou a muitos, pois Marcos estava
lá, olhava todos com um silêncio incrível. Quando estavam para sair, ele já
havia saído, e sua presença era apenas uma lembrança habitual.
— Pobre coitado — falou Bruna —, por vezes, sinto-me culpada
por todos os filhos dos exilados... ou pelo menos por alguns deles, como o
que reside em casa. Eu sei que não podemos invadir o reino deles e resga-
tar, ou algo assim, os filhos desses monstros, mas admito que não seja uma
vontade pequena e tenho certeza de que não é de hoje esse sentimento.
Não nos cabe a tarefa redentora, o dever de reunião da massa que nos une.
A mesma massa de que somos feitos.
— Meu amor, não pensas que compartilho de teus desejos? Mais que
todos, eu não queria que existissem esses exilados e nem que seus filhos
tivessem de passar pelo que passam, mas há coisas, muitas coisas, nas quais
eu não posso interferir. Os limites entre pobre e rico, exilado e civil, senhor
e escravo podem parecer cruéis e destituídos de sentido, mas isso apenas
superficialmente. Você sabe que é tão necessário quanto a carne que co-
memos. Esse exilado é apenas uma exceção, caso não o fosse, não o teriam
espancado e exilado de novo. Em verdade, ele é o início da purificação dos
males que representam, a prova de que trilhamos, e trilho, o caminho certo.
Em breve, os exilados originais perecerão, como meu pai, e seus descen-
dentes percorrerão o caminho inverso, aquele que leva à comida, riqueza e
fartura. Aqui nós temos tudo.
Bruna resignou-se a ouvir como não pudesse rebater, mas não con-

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corda, ou não queria que fosse assim. No silêncio do quarto, de frente ao
rei e esposo, um olhar sonhador que recusa a verdade que possa ser dita
completamente. Ambos se deitaram e dormiram num átimo.

VI
Nicolas e Carol se escondiam numa espécie de duto rente ao chão.
De lá podiam percorrer o sítio inteiro, desde o quarto de Emanuel até a
cozinha. Em cada cômodo, havia grades que permitiam Nicolas e Carol ver
e ouvir o que se passava. Não havia como serem vistos, uma vez que o duto
não era provido de luz interna, e se alguém se aproximasse da grade com
uma suspeita bastava recuar e prender a respiração.
Ouviram toda a conversa tão admirados, que ficaram, esqueceram-se
de voltar pros quartos, um risco movido a incompreensão e medo; também
seus pais e o Sr. Joaquim não foram vê-los. Eles continuaram no cômodo,
pareciam querer vigiar o exilado “burro que nem sabe o que é um nome”.
Queriam que alguma coisa mais acontecesse, que o exilado falasse, fizesse
algo, mas nada aconteceu, tudo estava num silêncio sepulcral. Decepcio-
nados, voltaram para o quarto e dormiram —os pais de Carol sabiam que
ela passaria a noite.
— Cara, como é que pode? O cara é muito estranho! — começou,
assim que chegaram no quarto, a falar Nicolas — Parece um mendigo.
— Todos os exilados devem ser pancados como ele. O que você
achou da história dele?
— Dele sendo exilado? Bem da hora, melhor que as que já ouvi.
— Também achei. Gostou do final dela?
— Muito melhor que só aqueles finais felizinhos das histórias bobas
que o Zua conta.
— Já pensou se é exatamente disso que ele nos protege?
— De finais tristes?
— É! Você se lembra que ninguém deixou ficarmos lá porque senão
enlouqueceríamos?
— Que palavra grande, mas sim.
— Então, eles acham que se nós conhecermos todas essas histórias
com finais como o dele, cheio de sangue, ódio, dor, exílio, pais contra filho
etc., nós vamos ficar tendo pesadelos e chorando!
— Como se atrevem a pensar isso de mim?!
— E de mim?!
— É! Eles não nos conhecem mesmo!

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— Nunca disse que tinha medo! Quem eles pensam que são para
não me deixar experimentar isso?
— Medo? Rá! Ouça-me, medo! Eu rio na tua cara! Na tua cara!
E assim continuou a conversa, até que se cansaram de tanto rir da
cara do medo e dormiram. Ou os quartos possuem uma isolabilidade sono-
ra de alta qualidade, ou todos já dormiam movendo rapidamente os olhos,
ou todos ouviam e não davam atenção, pois, de fato, havia muito mais com
o que se preocupar do que com duas crianças gritando.

VII
Já no dia seguinte, o exilado se sentia um pouco melhor, os machu-
cados lhe davam descanso, as feridas estavam encascadas, conseguia andar
um pouco e falar mais claramente. Quando acordou, consideravelmente
tarde em relação aos outros, quis agradecer a Nicolas, Carol e o Sr. Joaquim
por terem-no salvo, fê-lo com muita emoção (quase lhe saíam de novo as
lágrimas) e sinceridade, pois sabia que estava a ponto de ficar inconsciente,
e se isso acontecesse morreria. Certos dramas simplesmente são assim.
— Queria muito agradecer a vocês, Nicolas, Carol e ao Sr. Joaquim,
pelo nobilíssimo ato de vocês ontem pelo fusco-lusco. Sem vocês, eu cer-
tamente morria, logo eu, um rapaz com tantas expectativas, desejos, von-
tades e esperanças no coração... quer dizer, há tanto que quero fazer, tanto
que aquele lugar sujo, cinza, fétido e pútrido me impediu. Saibam que mi-
nha gratidão e solicitude é eterna, quer dizer... servirei até o fim de meus
dias o reino.
Emanuel e Bruna contavam entre os presentes do discurso. Mais
uma vez Marcos estava lá, tumular, observador. Nicolas se sentiu muito
pouco à vontade depois: pensou que seria mais um cara chato no seu pé
enquanto tenta fazer seus negócios: “Para isso já basta esse anãozinho!”,
pensou olhando com (admitamos, injustificado) desprezo o Sr. Joaquim
e depois o exilado; imaginou que devia tê-lo chutado em vez de ajudá-lo,
tamanha foi a raiva que tomou conta dele. Quando o exilado apertou-lhe
a mão, olhou-o com desprezo e logo fechou a cara. Emanuel e Bruna, no
mesmo instante, o repreenderam por essa atitude nada cordial e o obriga-
ram a responder o cumprimento, senão seria punido. Nicolas, entanto, é
obstinado e não cedeu. Quando iam decretar o castigo, o exilado interveio
e disse que não havia necessidade de tamanho alarde, contentava-se em
apenas se ajoelhar diante do futuro rei. Isso deixou Nicolas mais inquieto
ainda, e eis o que sucedeu: fez o exilado se levantar no mesmo instante,

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voltou-se para os pais:
— Que me deixem mil anos de castigo! — saiu e foi pro seu quarto.
Seguiu-se meio minuto ou hora de silêncio, impossível fora calcular
quão inesperado, contra toda a boa educação recebida e sempre demons-
trada, contra todo o bom senso que regia aquela casa. Bruna fez menção
de ir atrás de seu filho, mas parece ter sido apenas reflexo, pois se sentou,
ou tombou, de volta à cadeira no mesmo segundo, já quando Nicolas dei-
xara o cômodo. O Sr. Joaquim não conseguia se desfazer dos olhos es-
bugalhados. Emanuel franzia o cenho, tentando raciocinar, sem frutos, o
que acabara de acontecer. O exilado olhava o chão, embora mantivesse a
compostura dos ombros. E Carol era a única sem expressão de surpresa,
como se soubesse do que aconteceria, e mostrava leve sorriso no rosto.
Cumprimentou, então, o pobre e aflito exilado, que saiu do estado anterior
e logo a cumprimentou de volta, até beijando-lhe a mão. Logo empós o Sr.
Joaquim seguiu exemplo: enfim o gelo fora quebrado. Talvez digno de nota
seja o fato de que não foi só quando Nicolas saiu, mas Carol manteve-se
assim o tempo todo.
— É... então, por meu cargo de rei, desculpo-me pelo comporta-
mento de meu filho. Sua surpresa é também nossa, uma vez que ele nunca
havia agido de tal forma. Saiba que não irei te obrigar a ficar aqui até o fim
de seus dias, mas também não recuso a oferta de tua vontade. Em suma, és
livre para ir quando quiser.
— Bendito sejas tu, rei Emanuel. Agradeço pelo direito concedido.
Peço apenas uma coisa: não castigue Nicolas, não é mais que uma criança,
deve ter entendido algo que fiz de maneira errônea. Peço deixar a confian-
ça de Nicolas de si brotar por mim, não intento prejuízo por minha causa.
Emanuel olhou para Bruna, buscando saber o que fazer, mas ela não
olhava senão para frente, dividida entre a surpresa e a revolta.
— Não se preocupe — disse Emanuel, buscando agora a postura —,
apenas conversarei com ele e nada mais.
O exilado ficou bastante feliz com isso e agradeceu pela benevolên-
cia do “grandioso rei Emanuel, o justo”, epíteto que repetirá após o nome
do rei a partir de então.

VIII
Dirigindo-se ao seu quarto, Nicolas ainda estava um tanto agitado,
batia com o pé bem forte no chão para que todos soubessem quão puto
estava. Fez de tudo para não chorar de raiva. Quando chegou no quarto,

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sentiu vontade de quebrar tudo, mas se contentou em se jogar na cama e
ficar estirado nela, olhando pro teto. “Como pode, esse idiota me fazer
de idiota? Quem ele pensa que é? Ah, mas ele vai ver só! Algum dia ainda
pego ele de surpresa e deixo ele cego! Ou quebro seus braços. Por que não
o mato de uma vez? Seria até mais fácil; e dava para inventar uma desculpa
qualquer depois, ou talvez dizer que não sei nada, ele deve ter saído rapidi-
nho e se perdeu. Ou devia estar se ajoelhando pr’uma árvore e foi atingido
por um raio. Eu podia ter dado um chute nele antes de sair. Eu não sou
o necessitado, eu não apanhei e fui exilado; ele que é! Bem, tudo bem,
podia ter fingido que gostei dele, podia ter balançado sua mão ao invés de
ter feito o que fiz. Mas ele tinha que ter entendido logo e ter parado de
perturbar. Isso mesmo, ele tem de aprender desde cedo qual será o lugar
dele aqui, como eu devo ser tratado e como será repreendido se me tratar
de maneira diferente. Não preciso de mais um criado burro — já basta o
Zua! Agora eu vou ficar de castigo; meu pai vai vir me castigar; não poderei
brincar por muito tempo. Fora que... e se ele me bater? Já ouvi muito falar
dessas famílias em que os filhos mal educados apanham de maneiras horrí-
veis, sem chance alguma de defesa... e, ainda por cima, se se defendem, são
vistos como mais mal educados ainda, aí precisam apanhar ainda mais, mas
aí a polícia vem. Isso me lembra daquela vez que a Carol e eu brincamos e
acabamos brigando — foi muito da hora. Verdade, ela ainda está lá, com
aquele exilado e os outros. Como será que estão as coisas por lá? Devem
estar planejando como vão me castigar; e aquele exilado deve estar dando
a ideia de me exilarem depois de me espancarem assim como fizeram com
ele... ele quer roubar o meu lugar no trono! Aquele... Mas que me exilem,
pouco importa. Vou construir o meu próprio reino e vou destruir esse rei-
no inteiro. Vão me ouvir urrar e pedirão muitas desculpas, se arrependerão
muito. Aí eu vou espancá-los da mesma maneira que eles me espancaram
— só quero ver se eles vão gostar disso. Vão todos chorar bastante, assim
como estão planejando me fazer chorar agora.” Assim pensava Nicolas, e
daí em diante começou a tentar prever como seria o reino dele com essas
outras pessoas, como ele nunca perdoaria principalmente o exilado, como
seria a guerra contra seu pai e sua mãe, até que dormiu de tanto pensar.
Quando em profundo sono, Emanuel entrou no quarto, acariciou e
beijou sua cabeça.
IX
Aconteceu durante a manhã, um pouco antes do almoço. Nicolas se
manteve o dia inteiro apenas com o café da manhã, uma vez que não saiu

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do quarto mais e ninguém tentou tirá-lo. Por alguma razão, ele achou que
Carol iria para casa, mas não só ficou como fez todas as refeições na sua
frente, quisesse talvez implicar, ou então só ficar perto dele; de qualquer
modo, Nicolas que não se incomodou.
Não houve nada de significante aí: Nicolas não falou nada; Carol se
distraiu. Fora desse ambiente de estátuas, o exilado não deixava Emanuel
sozinho por um momento, queria conhecer a rotina do rei, servi-lo, ou
melhor, aprender a servi-lo. Mesmo quando o rei queria ir ao banheiro,
ali estava o exilado, pronto para abrir a porta e a privada, verificar se havia
ou não papel e se estava do lado certo. Só não balançava pro rei por sen-
tir-se indigno. Parecia, de fato, um daqueles goblins que querem mastigar
a comida do rei para deixar à temperatura do corpo dos goblins, ou da-
queles que veem uma obra por alguém e pergunta se não é bonito. O rei
se refestelava, ama bajulações: aquele epíteto equivaleu a um orgasmo que
orifício algum lhe proporcionaria. Mantinha-o agora perto de si, dentro das
boas normas de educação e bom senso naturalmente, muito mais do que
seu bom ex-preceptor, o Sr. Joaquim, que não ficou ressentido por essa
troca nem nada; deve ter ficado satisfeito na verdade, pois, assim, poderia
se concentrar mais tanto em seus afazeres quanto na educação do futuro
rei. Bruna, porém, não aceitou com muita afeição a intimidade permitida
por Emanuel. Um bom exemplo dessa repulsa pode ser exemplificado em
um breve e marcante episódio: numa noite, quando já se preparavam para
dormir, saudades corporais mútuas, o exilado surgiu magicamente, sem
bater na porta, sem pedir licença, sem se desculpar pelo sortilégio e falou
ao rei que havia uma pequena urgência a ser resolvida agora, não dava
para esperar até amanhã. Isso já era, como podemos ver, motivo suficiente
para deixar os dois em fúria imensa, mas que, efetivamente, só a rainha
o ficasse ultrapassou os limites do aceitável. Na realidade, Emanuel a re-
preendeu quando tentou falar-lhe naquele mesmo instante (ela depois se
surpreenderia de ter conseguido agir naquele instante), argumentando que
há momentos de crise em que educação, bom senso e decoro devem dar
lugar mesmo à irracionalidade. Não ousou (até quando de novo?) rebater,
não por paralisia, ou pela certeza do rei, ou por alguma espécie anômala
de vergonha, mas, sim, por um desinteresse avassalador contra tudo o que
lhe parecia, há poucos instantes, serem da maior importância; um cansaço
a invadiu, bocejou-lhe a boca na cara do marido, que deve ter tomado isso
como uma ofensa, e sentir como se um espírito lascivo a consumisse, exte-
riorizando-se num sorrisinho que implorava tornar-se gargalhada.

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O exilado com certeza é o segundo personagem mais interessante
dessa narrativa, perdendo apenas para o protagonista. Ele é o tipo de per-
sonagem que ou é um idiota, ou só finge — e talvez essa fosse uma das
questões que mais intrigava Bruna. Constantemente fazia algumas burra-
das que o deixavam deveras desconcertado, assim como os outros, mas já
no dia seguinte agia como se nada tivesse acontecido, chegando até a co-
meter o mesmo erro de novo. Na ocasião acima, não pediu desculpas por-
que não entendia que aquilo constituía uma falta de decoro. Aliás, quando
o rei foi ver qual era o grande problema, ficou bastante sem graça, já que o
problema era mínimo, muito simples, que podia até passar batido se o rei
quisesse. O exilado deu ares de não entender a inquietação real.
— Escute, este problema não era grande o suficiente para você ter
feito o que fez. Vi pela cara de minha esposa que ela ficou muito nervosa
com sua atitude, e agora se ela souber que foi despropositada... Rapaz, ela
vai falar muito no meu ouvido, vai me torrar a paciência, e eu não quero
brigar com ela por tua culpa. Eis o que faremos então: vou passar mais uma
ou duas horas aqui até que eu sinta ser seguro. Vou te proteger, mas espero
que isso não ocorra novamente, porque aí eu já não sei se serei capaz de te
ajudar. Agora vá, vá dormir.
Durante essa fala, o exilado parecia se encolher cada vez mais, abai-
xou a cabeça, os ombros, não se manteve nos joelhos, mas também não se
ajoelhou. Talvez Emanuel falasse mais, e atafulhasse o lombo da esposa,
sua rainha, pois, de fato, deixou de fazer apontamentos sobre o trabalho,
sobre como se deve bater antes de entrar no quarto de qualquer um. É que
se condolecia ante a tristeza do exilado, que também esboçava caras de
nojo de si mesmo.

X
Com o tempo, o exilado tornava-se cada vez mais próximo da famí-
lia, de modo que Nicolas já gostava dele, nem se lembrava mais o porquê
de ter sentido tanta raiva. Bruna também aprendeu a conviver com ele, e
até a gostar de seu jeito desengonçado e inocente de se posicionar. Mas
isso não aconteceu por si mesmo e muito menos por causa apenas do
exilado: Emanuel teve de mexer uns pauzinhos para que sua família não
entrasse em conflito com aquele que se tornara seu melhor e mais fiel ser-
vente. Com Nicolas, isso não foi difícil: apesar de obstinado, era bastante
flexível e, com efeito, se esqueceu aos poucos de seu rancor. Emanuel nem
sequer precisou falar muito com ele, pois já percebera que o filho não seria

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mais problema. Deixou-o, então, com suas coisas de criança.
Bruna, sim, ele pensava que seria seu grande problema, pois não es-
tava rancorosa sem motivos, sabia que ela iria atacar com tudo de uma só
vez, como pensava ser absurdamente típico das mulheres (sem pressa, os
problemas quebram o real). Não foi bonito. A discussão foi longa, interca-
lada por momentos de tensão, de silêncio absoluto (sempre interrompidos
pela rainha, pois o rei não era besta nem nada), outros de uma calma as-
sustadora. Foi maçante também, pois, de contínuo, rondavam o que cada
um queria (e que já foi dito), pensava e requeria, nunca chegando a uma
resolução. Não duvido que, no fundo, isso os agradasse sobremaneira, um
jeito de estarem mais perto, mais contato, o novo na incessante máquina
de fabricar dias, uma pequena manutenção, ou um longo desligar. De fato,
eles não brincavam havia muito tempo. A discussão, no entanto, ainda rola-
va solta, talvez a energia que mantinha o eixo. Durou mais de um dia, num
misto de sentimentos surreal. Mas tinha de acabar.
— Tente compreender, meu amor: ele é o melhor ajudante que já
tive; e você é a única mulher em minha vida. Eu posso mandá-lo vir aqui te
pedir desculpas e dizer que não agirá mais de modo a te perturbar, mas nós
dois sabemos que não será verdade, que ele logo estaria a fazer a mesma
coisa, não entendendo nosso descontentamento — ele é lento, como já
percebemos; mas você, meu céu, é capaz de mudar com muito mais facili-
dade, de se controlar, fingir que gosta dele etc., qualquer coisa com menos
problema do que ele. Sei que você é capaz disso, que me ama, ama Nicolas
e, por isso, fará o máximo para que o clima aqui melhore. Estou certo de
que isso será muito mais saudável pro Nicolas. Então espero que você tam-
bém me ajude, pois Nicolas já concordou em me ajudar.
— Sério? — perguntou Bruna surpresa, só com o rabo dos olhos,
pensando no truque sujo de usar o filho como escudo, como se uma crian-
ça fosse parâmetro razoável.
— Sim, sim, pois é, pois é, e olha que ele deu muito menos trabalho.
— Aposto que você o subornou, ou qualquer coisa do tipo — falou
rindo; de que valia continuar? Haverá outras chances.
Isso Emanuel não respondeu. Riu também, beijou-a e ambos foram
pra cama. Estavam cansados, mas não a noite.

XI
Com efeito, o Sr. Joaquim estava mais livre para a educação de Ni-
colas, uma vez que o exilado ocupava-se solicitamente dos assuntos reais.

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De certo modo, isso nutria um ranço em Nicolas, serpeando-lhe o corpo
em tiques, enquanto se escondia do Sr. Joaquim. Acontece que, com este
em cima, Nicolas tinha de perder tempo, que podia gastar vivendo, com
coisas que não tinham nada de vida. Nicolas devia pensar que, por ele ser
ainda jovem e ter vida (como vivam falando), Zua devia sentir inveja disso
e, aí, queria privá-lo do que não tinha. Às vezes, ele conseguia, outras não.
O jogo era perene: Nicolas devia fugir; o Sr. Joaquim devia impedi-lo ou,
caso não conseguisse, achá-lo. Alerta, ele se lembrava daquele exilado. Mas,
como não fazia parte do jogo, Nicolas logo dava lugar a outros pensamen-
tos — não destratava o exilado.
— Você tem que botar nessa tua cabecinha de vento que quanto
mais você foge, mais tempo demorará para terminarmos com a tua edu-
cação. Eu tenho nada contra passar o resto de minha vida a te ensinar os
bons e louváveis modos de se portar e algumas outras ciências.
— O que é ciência? — perguntou Nicolas bastante curioso.
— Ciência é o conhecimento da vida e seus componentes, como a
natureza — Nicolas estava curiosíssimo. — Por exemplo, você sabe como
funcionam os tornados? As árvores? O teu corpo?
E pronto, o saber doma a fera. Nicolas sempre caía na lábia do Sr.
Joaquim. Entrava num estado de êxtase: saía para buscar as coisas da na-
tureza, e agora se defrontava com a natureza das coisas. Não obstante, no
dia seguinte recomeçava. O Sr. Joaquim não conseguia compreender. De
início, Nicolas também não entendia, fugia por uma força intensa. Sim,
era forçado, tanto brincavam os instintos. Enquanto estava escondido, ele
tentava pensar sobre isso, queria buscar palavras, mas, como não conhecia
muitas, balbuciava a boca no inexistente, num idioma que não era seu, sons
exteriores ao seu corpo, como os do encontro de duas pedras.
Numa dessas fugidas, aconteceu algo bastante inesperado. Nicolas
estava se escondendo atrás duma grande pedra na floresta arborosa, di-
ficultando a captura. Perdera a noção do tempo, o Sol pingava entre as
folhas. Quando deu por si era bem de noite. De repente, dois olhos lhe
apareceram a meio caminho de se levantar. Percebendo os olhos que o
fitavam sem findar, ele se pôs novamente sentado, mirando perplexamente
dois olhos sem corpo.
— Olá — falaram.
Nicolas se surpreendeu, nunca crera possível falar sem boca, sur-
preendendo-se mais ainda por descobrir que esses olhos falavam.
— Olá — respondeu Nicolas. — Quem é você?

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Os olhos não responderam, mas piscaram.
— Como pode ser? — indagou Nicolas, quebrando o silêncio —
Nunca vi um par de olhos sem um corpo. Muito menos um que fala sem
boca.
— Nunca vi um par de olhos que precisassem de um corpo. Muito
menos um que só conseguisse falar porque tem boca.
— Ora essa, todos têm boca! Como você come então?
— Me alimento daquilo que vejo. Há outra forma?
— Lógico que há! Veja.
Nicolas pegou uma fruta do chão e mordeu. Quando ele se virou
para mostrar aos olhos como se come com a boca, estavam absurdamente
perto dele, de modo que podia ver seu próprio reflexo. Nicolas se assus-
tou, mas não se afastou. Diante do absurdo, é preciso se calar e deixar que
apenas ele fale.
— Nunca viste... dois olhos.. sem corpo. mas; será que já viste, um
corpo sem vidae umavidasemcorpo?
Sumiu.
Ouviam-se ecos de algo como “Cuidado”.
Nicolas se levantou para casa. Ainda comia a fruta.

XII
Em casa, levou Nicolas uma (sadia e) já esperada bronca dos pais por
ter chegado tão tarde. Estranho como nunca o censuraram por sua atitude
em relação ao Sr. Joaquim — parece que deixavam esse tipo de assunto
pros dois resolverem entre si. Nicolas estava com um semblante descon-
certado, um olhar distante, apenas acenava com a cabeça e pedia desculpas.
Percebendo-o, os pais perguntaram o que havia de errado. Nicolas disse
que havia nada errado, queria apenas descansar. Pediu, então, licença aos
pais para ir dormir; concederam-no preocupadamente, olhavam-se estar-
recidos.
Nicolas acordou disposto, conseguiu dormir bem. Enquanto tomava
café da manhã com seus pais, queriam saber se ali havia ainda algum res-
quício de ontem. De fato, eles conseguiam pensar as piores coisas. Teria
encontrado outro exilado? Parece que os pais só conseguem imaginar os
piores cenários e, com isso, não conseguem enxergar que até as consequên-
cias mais maléficas e danosas, ainda que evitáveis, são as que permitem a
própria construção da imagem. Muitas vezes, Nicolas sabia que tal atitude

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lhe traria algum tipo de dano, mas, ainda assim, ele tinha de obedecer ao
grito de vitória, precisava saber através de sua própria experiência, pois
qualquer coisa anterior só presta para quem desistiu da própria vida. E
Nicolas não se considerava um desses “corpos sem vida” de que falaram
os olhos.
Quando o Sr. Joaquim veio lhe chamar para a aula, Nicolas foi sem
resistência, até se mostrava desejoso do início. O Sr. Joaquim, naturalmente,
estranhou, mas evitou comentar, temendo que a vontade inédita sumisse.
— Zua, você já viu um corpo sem vida ou uma vida sem corpo?
O Sr. Joaquim não esboçou surpresa, pois sabia que as crianças nessa
idade se interessam por estranhezas. Estranhava, no máximo, a segunda
pergunta.
— Um corpo sem vida é um corpo morto, um corpo já incapaz de
realizar uma atividade, como respirar ou sentir.
— Mas ele ainda é capaz de fazer com que os outros sintam?
— Depende de quem falamos.
Nicolas olhava pro chão com uma cara pensativa. Percebendo que
isso podia durar uma eternidade, o Sr. Joaquim começou a falar sobre o que
aprenderiam hoje.
— Não é justo! E a segunda pergunta?
— Qual?
— Existe vida sem corpo?
— Nunca ouvi mais gordo — respondeu, temendo insuficiência e
consequente insistência.
Mas, não, Nicolas perdeu o semblante curioso e atencioso e con-
tinuou olhando o chão. A aula começou. Dessa vez, durou menos que
o normal, e isso apesar de Nicolas estar atencioso e até participativo. Sr.
Joaquim sabia que havia algo de errado com ele, estava demasiadamente
comportado, com certeza tinha um problema que precisava resolver por si
próprio, que certamente tinha a ver com as perguntas que fizera.
— Todos morrem, Zua? — perguntou já na porta.
— Só assim sabemos que vivemos — respondeu ajeitando dialetica-
mente seu material.
— Obrigado — saiu Nicolas.
Parecia ser umas cinco horas, pois era o frescor desse horário, mas o
céu ainda não estava róseo, mas azul, sem nuvens. Nicolas ficou no campo
à procura de alguma coisa. Achou e pôs um bichinho na palma da mão, um
pouco menor, verde. Nicolas já tinha visto vários desses, mas depositava

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atenção imensa neste. De repente, bateu as mãos. Ficaram meladas com o
sangue do bichinho, mas isso não importava. Quando Nicolas as separou e
viu o bichinho, estava esmagado, deformado. Botando-o no chão, Nicolas
ficou observando o esmagado, parece que esperava que algo mais aconte-
cesse. Olhou aquela gosma, cheirou e lambeu, tinha um gosto amargo, o
que fez com que cuspisse até que saísse. Cutucou o esmagado, mas nada
aconteceu. Entendeu, enfim, a morte, ou pelo menos assim pensava. Ficou
ali até o céu rosear.

XIII
Ele tinha de ir à floresta de novo. Tinha mesmo a obrigação: parece
que não havia outra escolha. Quis entrar pelo mesmo caminho de antes,
queria muito encontrar aquele lugar de novo, daí pensou que entrar pelo
mesmo caminho teria o mesmo destino. Não foi difícil, pois havia uma ár-
vore marcada que o tinha chamado muita atenção. Aos poucos, o caminho
foi se tornando mais claro em sua memória, não havia grandes mudanças
na paisagem. Chegou um momento em que teve de mudar de direção, não
porque havia algo de errado. “Vou chegar lá por esse outro caminho”, pen-
sou. De fato, escolhera um não muito diferente, seguia o padrão do resto:
árvore grande sob o sol.
Nicolas se indagava: aprendera com Zua que a vida vegetal precisa
do sol para crescer, pois é o responsável de toda aquela bosta de fotossín-
tese — então como aquelas mudas e pequenas árvores nasciam e cresciam?
Talvez fosse sorte — seu primeiro palpite. Mas não podia ser isso. Pensou
em algo mais convincente: talvez essas árvores, para crescerem, precisas-
sem da escuridão antes de alcançar a luz. Pensou em outras teorias. Perce-
beu que já andava há muito e ainda não tinha chegado àquela pedra. Parou
numa a sua frente então, estava cansado. Sentado, começou a procurar ao
seu redor alguma fruta.
Todos conhecem aquela sensação sinistra e indescritível de que há
alguém te olhando. Nicolas, sobre a pedra, se deitou para ver se alguém o
olhava, deparando-se com os dois olhos, olhando-o sem um pisque sequer.
— Pensei que você não me encontraria — falou Nicolas, sorrindo.
— Por que não? Você está no mesmo lugar de ontem.
— Não mesmo! Essa é uma pedra parecida, mas não é a mesma. Veja
essa beirada, ela não tem a mesma forma.
— Você tem razão. Talvez eu já tenha as vistas cansadas para certas
coisas.

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— Mas você já prestou atenção nas diversas formas que as pedras
têm?
— Só nas grandes.
— Ah sim. — Nicolas se sentou, virou para onde estavam os olhos e
fez perna de índio. — É uma pena, porque essas pedras também têm suas
belezas e dizeres.
— O que estaria essa pedra dizendo então?
— Hum... talvez ela me conte a história de uma guerra que aconte-
ceu por aqui, porque veja como é uma pedra machucada em suas laterais. A
chuva deve ter deixado ela menos rígida, mas não duvido que ela era cheia
de marcas de armas, facas, sangue e outras coisas que deixam marcas até
em pedras como essa. Talvez algum dia todas essas coisas que fazem parte
da história dessa pedra se transformem numa rosa que nascerá perto ou até
dentro dela — quem sabe ela já não esteja crescendo, precisando apenas de
tempo para criar uma fresta?
— Engraçado que eu vejo marcas de sangue em você que ainda não
existem.
— Por que marcas?
— Porque é o que eu vejo.
— Existirão?
— Tenho certeza que sim.
Nicolas começou por olhar seus braços, pernas, barriga, tudo. En-
controu uma casca de ferida. Quis tirá-la. Observou com atenção como
que dali saía o sangue.
— Gostaria de saber como fugir dessas marcas que vejo? — silêncio
— Devias considerar o que ofereço. Posso te guardar de todo esse perigo
que prevejo, de todo sangue que inundará seus cabelos, olhos e unhas, da
escuridão rubra que sujará e se unificará com sua pele, de toda dor, angús-
tia e perdição que virão juntas com as nódoas. Salvaguardar-te-ei, acredite
em mim. Quem seria capaz de dizer “não” ao que te ofereço? Quem seria
capaz de suportar essas dores hoje? Sim, hoje, quando já não são mais ne-
cessárias as dores. Hoje, quando toda angústia é uma foragida da lei. Hoje,
quando a experiência deve ser entre paredes. Hoje, quando o fado de todo
fato tem a mesma destreza de toda beleza. Há quem chamaria isso de fuga,
fraqueza, mas como não fugir e ser fraco hoje, quando a dor remitente já
ocorreu? Fugir, hoje, é a maior virtude; ter medo é o mais requisitado idio-
ma. Gostarias de saber como fugir das marcas que vejo?
Os dois olhos se fundiram formando uma orelha. Mirava boquia-

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berto o que acontecia, sentiu sua voz se esvaindo aos poucos. A orelha se
inclinou em sua direção.
— Sim — sussurrou como se tivesse voz de formiga, acenando a
cabeça.
Os olhos voltaram. Aproximaram-se tanto de Nicolas que este pôde
ver seu reflexo.
— Apenas não conte para ninguém sobre mim.
Os olhos sumiram. O céu róseo alaranjado. Nicolas tinha de ir pra
casa, não queria levar outra bronca.

XIV
No caminho, solfejava um estribilho. Talvez seja interessante dizer
que, dessa vez, ele não foi correndo. Vá entender.
Quando já estava coberto em sua cama, olhando o teto, o Sr. Joa-
quim apareceu à porta e, sem entrar no quarto, falou:
— Conseguiu resolver aquilo?
— O quê? — perguntou Nicolas, assustado.
— O que tanto te perturbava; afinal, eu te liberei hoje mais cedo por
isso... Deixa, não importa. Boa noite — fechou a porta antes que Nicolas
pudesse responder.
Mas ele não se importou. Ficou feliz em saber que Zua se importava
com ele a ponto de sacrificar tempo de aula. Parece que passou a ter uma
visão diferente em relação a ele, menos monstruosa talvez, pelo menos
naquele momento. Repentinamente, um inédito mal-estar. Demorou mais
que o habitual para dormir, o que acabou sendo um pouco ruim, pois atra-
sou o café da manhã e o início da aula.
— Desculpe-me, Zua, acabei dormindo demais.
O Sr. Joaquim não ralhou: sorriu e lhe fez um cafuné. Isso, com cer-
teza, ajudou Nicolas a esquecer a noite. Conseguiu se concentrar na aula;
ela terminou no horário normal. Nicolas foi, então, um pouco pra fora —
ainda não era tão tarde. Encontrou-se com Carol e brincou um pouco com
ela, cansou-se muito rapidamente.
— Mas como você ousa desistir tão rápido assim? Está com medo,
é?
— Sim.
Nicolas respondeu tão secamente que Carol se sentou ao seu lado.
— O que aconteceu?
— Sei lá, apenas não dormi bem.

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— Sabe por quê?
— Não.
— Aconteceu algo de mais ontem?
— Não, foi tudo normal.
Bruna encarava-o; e ele deitado pro céu.
— Alguém morreu?
— Lógico que não. E ninguém vai.
Desistiu e acabou se deitando ao lado de Nicolas.
— Queria que você dormisse lá em casa essa noite — falou Nicolas.
— Acho que hoje dá.
— Antes eu preciso fazer um negócio. Já pode ir indo lá pra minha
casa se quiser.
— Tenho que ver com meus pais, mas tenho quase certeza que vão
deixar.
— Beleza.
— Mas o que é que você vai fazer?
— Nada não, fica tranquila.
— Você vai pra onde?
— Não insiste, por favor.
Nicolas se levantou de supetão e correu. Bruna teria de tomar a dire-
ção oposta. Não parou de correr até encontrar a tal pedra. Nicolas não en-
trou pelo mesmo caminho, não sentou na mesma pedra. Não se importava
— o braço sangrava e nem se deu conta da poça de sangue que se formava.
Sabia que os olhos o encontrariam. A pedra não era tão diferente assim.
Sua visão turvava ofegantemente. Fechou os olhos e tentou se acalmar, não
fazia sentido ele ficar daquele jeito. O braço começou a doer; ele percebeu
a poça que se formava e viu o corte.
— Eu apenas tenho uma coisa pra te perguntar! Aparece! — gritou.
Escurecia.
— Não é justo que vocês não venham hoje! — Só quero saber o que
é uma vida sem corpo! Não é justo que vocês escondam isso de mim!
Sentou-se na pedra; o braço doía cada vez mais. Foi embora.

XV
Foi imediatamente ao quarto do Sr. Joaquim. Antes de sair da flo-
resta, amarrou o braço com um tipo de pano. Sabia que Zua tinha dotes
médicos.
— Como isso foi acontecer? Minha nossa, isso demoraria para cica-
trizar se não fosse por uma pomada que tenho aqui, mas terei de suturar.
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Fez o máximo para conter grito.
— Apenas não conte pros meus pais.
— Mas como isso foi acontecer?
— Sei lá, nem percebi na hora, só quando deixei o sangue esfriar.
— Bem, eu saber como aconteceu não mudará em nada. Fique tran-
quilo que eu não vou contar a teus pais.
Não demorou muito. Quando estava indo para o seu quarto, Nicolas
viu Carol entrando no quarto.
— Ué, você só chegou agora?
— Hã... não, eu estava no banheiro.
— Beleza.
— O que aconteceu com o teu braço?
— Ah, um pequeno acidente. O Zua já ajeitou.
Carol não insistiu, percebia Nicolas claramente perturbado. Deitou-
-se em sua cama solfejando para si. Quando uma porção de objetos veio
em sua direção: Carol juntou e jogou-os. Nicolas ficou um pouco bolado
de início por causa do susto, mas já estava de boa quando passou. Brinca-
ram até uma boa hora. Quando estavam na cama, Carol virou para ele e
falou:
— Enquanto você ainda não estava aqui, sua mãe e eu ficamos con-
versando. Ela me disse que está preocupada contigo, que às vezes você fala
de noite, que tem tido dificuldade de acordar na hora certa, e várias outras
coisas.
— Nossa, que estranho. Ela te falou o que eu falo?
— Não entende, mas ouve.
— Ah, que pena, queria saber.
— Talvez você fale essa noite; aí se eu ouvir, eu te digo.
— Não vá esquecer nem pensar que é sonho.
Nicolas dormiu, diferente dos dias anteriores. Nicolas jantou apenas
uma fruta.

XVI
(Proto-enredo de novela)
— É impressão minha ou o nosso filho anda um pouco distante? —
falou Emanuel na hora da janta, à mesa.
— Talvez ele esteja passando por uma fase difícil em que se sinta
melhor estar sozinho, ou ele está em boa atividade — afinal, temos de
nos lembrar que o Sr. Joaquim agora está mais disponível para ele, o que é
muito bom. Sei que ele sai de tarde para brincar sozinho ou com a Carol.
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Acredito mais nessa segunda opção, senão nós já saberíamos através do Sr.
Joaquim.
— É, acho que você tem razão, amor — beijou-lhe —, mas é que eu
sinto falta de estar com ele. Odeio o fato de eu estar tendo tanto trabalho
ultimamente.
— Entendo-te mui bem, amor. Também eu queria passar mais tem-
po com ele. Mas acho que é bom termos, ás vezes, esses tempos de... esses
hiatos, entende? Que ele tenha certa independência, descubra por si mes-
mo.
— Verdade — sorriu e acenou com a cabeça.
Depois que o exilado tomou o lugar do Sr. Joaquim, eles não têm
mais conversado muito de fato. Nem Emanuel nem Bruna foram procurar
por ele, e nem o contrário. O exilado estava um pouco agitado — mais do
que o usual. Ninguém sabia o porquê, não falava.
Após a janta, foram pra cama. No trajeto, sentiam-se estranhos. Fo-
ram ver Nicolas e Carol — ambos dormiam. Tranquilizaram-se de alguma
forma. Nicolas gemia um pouco, baixinho. Fecharam a porta. A sensação
piorou, o mal-estar se agravou, uma dor no estômago que, de pouco em
pouco, crescia. Deitaram-se, pensaram que com o sono essa sensação pas-
sasse.
De olhos fechados, não dormiam. Revirando-se com frequência,
desconfortáveis, o incômodo tornava-se dor. Mas primeiro as damas, não
seria agora que Emanuel perderia manias. Bruna soergueu-se na cama e
pressentiu o pior. Levantou-se e correu ao banheiro, vomitava. Emanuel
tentou se levantar, mas só conseguiu quando apoiou o cotovelo direito
na cama, ainda sob as cobertas. Conseguiu, mas logo se jogou de novo na
cama, as dores lancinavam. Maldito momento do lobo. Bruna vomitava até
a alma no banheiro, enquanto Emanuel gemia cada vez mais alto, como
um bebê chora de cólica. Quando conseguiu, ao fim, se manter em posi-
ção ereta, de pé, a porta do banheiro fecha com força. Bruna tenta abrir.
Emanuel vê aparecer uma silhueta molenga — estava com o olhar cansado.
Apertou os olhos, começou a conseguir ver aquilo que estava em sua frente
— eram dois olhos gigantes.
— O que diabos significa isso? Quem é?
— Poxa, como você não reconheceu o próprio irmão? Marcos, se
lembra?
— Incrível que você ainda tenha essa fantasia.
Marcos tirou a fantasia; os olhos ficaram no chão. As dores, em pe-

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quena pausa de susto, voltavam.
— Meu irmão, por favor, me ajude! — falou pausadamente — A
Bruna, parece, ficou presa no banheiro; ajude-a também, meu irmão.
Marcos, com os braços nas costas, não se moveu, apenas olhava.
— Gostaria de discursar, mas infelizmente seu tempo não é muito.
Serei direto então. Envenenei a comida de vocês dois. Pus o suficiente para
que vocês vivessem até meia hora depois de ingerir tudo. Tenho comigo
apenas um antídoto: acho que não preciso te perguntar se vais querer te
salvar ou tua esposa. Afinal, sei que tens um bom coração e jamais poderias
viver em detrimento de tua amada Bruna. Não te preocupe com ela, aliás: o
exilado a acompanha. Não sabias, certo? Ele é meu amigo, já vínhamos pla-
nejando isso desde o nascimento de Nicolas. Achei incrível como ele con-
seguiu executar tão bem o plano, principalmente no início com toda aquela
história de vida, pois ele sempre errara parte do texto; e eu sabia quão fatal
era a empreitada. Enfim, vou dar a ele o antídoto para sua mulher.
Marcos abre a porta do banheiro e dá o antídoto.
— Aliás, acabei de me lembrar de uma coisa que me surpreendeu:
teu filho não jantou. A comida dele também estaria envenenada inevitavel-
mente, então eu acabei por conseguir um segundo antídoto. Mas acho que
não precisarei dele, né?
Emanuel não conseguia gemer. Seus olhos transluziam desespero.
Estava deitado na cama sobre as cobertas.
— Ah, tu queres? — perguntou com a seringa na mão — Poxa, é que
eu pensei em destruí-la, mas já que queres, dar-ta-ei.
Marcos, rapidamente, ficou em cima do irmão, cara a cara.
— Vida longa ao rei — falou paulatinamente.
A seringa perfurou o olho esquerdo de Emanuel. Quis gritar, mas o
absurdo era mais alto. De seu olho saía sangue, não conseguia mais abri-
-lo. Não fazia diferença, em breve seu olho direito também estaria cego.
Não adiava o inevitável. Via como seu irmão amava a situação. Via como
o retorno das coisas é inevitável, naquele momento ele mesmo era Osíris
— será que Bruna passaria o resto de sua vida a procurá-lo? — Via como
Nicolas teria de viver o pior dos infernos agora, pois não havia outra es-
colha. Não via.

XVII
Nicolas e Carol acordaram cedo. O sol ainda não tinha nascido.
Inexplicavelmente estavam bem dispostos. Quiseram fazer o café da ma-

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nhã. Enquanto comiam, Nicolas perguntou:
— E aí, eu falei alguma coisa?
— Falou. Teve uma hora que teus pais abriram a porta e ficaram te
olhando, aí eu preferi fingir que estava dormindo. Nessa hora, você estava
gemendo.
— Gemendo?
— Sim. Foi bem estranho. Daí você continuou gemendo mais um
pouco e parou. Eu acabei por dormir nessa hora, porque estava demoran-
do. Depois você disse mais uma coisa que eu me esqueci agora e depois
disso você começou a falar umas palavras aleatórias: “vida, corpo, morte”.
Só coisas desse tipo.
— Entendi. Parece que eu falo muita besteira durante o sono.
— Pois é.
Quando terminaram de comer, Nicolas sugeriu uma brincadeira. Ca-
rol aceitou de bom grado, mas logo depois se lembrou que tinha de ir pra
casa cedo. Lamentou. Nicolas, então, foi abrir a porta para ela. A porta já
tinha sido fechada, Nicolas já estava se afastando da porta, quando ela se
abriu de novo.
— Ah, eu me lembrei do que você falava! — era Carol — Você fica-
va falando de um encontro teu com dois olhos! — ela riu — Tive de enfiar
minha cara no travesseiro para não rir alto e te acordar. Agora tenho que
ir. Tchau.
Bateu a porta. Nicolas desabou — contara o que não devia ser con-
tado. Quis checar todos os quartos em ordem: primeiro vinha o dele, nada.
— Agora, o dos meus pais — falava consigo mesmo.
Abriu a porta e viu a cena: seu pai ensanguentado sobre a cama; a
porta do banheiro aberta. Calou-se, tornou-se frio. Enquanto atravessava
o quarto, viu o que havia no banheiro: sua mãe estirada no chão. Abraçou-
-a, sentiu que ainda respirava, tentou acordá-la, mas não conseguiu. E de
novo seu pai. Mas não sentiu sua respiração. Estava ensanguentado, todo
cortado. Abriu os olhos dele: um estava branco, outro estava vermelho.
Deixou-os abertos.
Enfim, correu do quarto, do palácio. Só parou no campo em que
costumava a brincar porque foi abordado por Marcos.
— Tio! Minha mãe e meu pai... eles estão mortos.
— O quê? Mas do que você está falando?
— Eles estão mortos, estão lá no quarto deles.
— Quem pode ter feito isso?

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— Não sei, não sei! Meu pai está todo ensanguentado!
— Ora, Nicolas, tens certeza que não sabes quem fez isso? — Nico-
las ficou em silêncio — Nicolas... eu os conheço também. Os olhos com
quem você conversou. Eles me contaram que te fizeram guardar o segredo.
Eles também fizeram isso comigo...
— Mas não foi minha culpa! Eu falei isso enquanto dormia!
— Ora, Nicolas, como você pôde fazer isso com os teus próprios
pais?
— Mas eu não fiz por querer.
— Você fez isso, Nicolas!
Nicolas o fitou, lágrimas escorriam, suas pernas tremiam.
— Tio, me ajuda, o que eu faço agora?
— Bem, cedo ou tarde vão descobrir o culpado. Vão te matar. Você
será odiado até pelo Sr. Joaquim. — Fuja. Fuja pra bem longe. Nunca mais
volte. Para onde ninguém jamais te encontrará. Fuja. Não perca tempo. Vá!
Nicolas o fitou profundamente, sem lágrimas. Correu na direção da
floresta, mas nunca mais pararia. Seu destino muito além.
—É uma pena — disse Marcos, vendo Nicolas se afastar — que vai
morrer. Agora tenho de preparar meu discurso.
Mais tarde, onde também Emanuel discursara.
— Povo! É com grande pesar que vos anuncio a morte de meu ir-
mão, o nosso rei! E é com maior pesar ainda que também vos anuncio a
morte de meu sobrinho, nosso herdeiro, que se suicidou, não aguentando o
assassinato do pai. Sem herdeiros, eu devo assumir o trono de meu irmão e
meu pai. Que seja a partir das cinzas desses homens e Nicolas que eu pos-
sa restabelecer, revitalizar o nosso reino. Que suas forças, energias nunca
desapareçam de nós, mas que sejam nossa base para um futuro melhor.
Façamos silêncio em prol das vidas que hoje nos deixaram, silêncio pelo
meu irmão, silêncio pelo meu sobrinho.
E o silêncio perdurou por semanas no povo. Em Bruna, até a sua
morte.

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Êxule

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I
E assim correu ele, Nihcolas, sem pensar, numa paisagem descontí-
nua do todo onde se inseria de vista fechada, — no que deixava para trás,
paulatinamente se tornava rastro, ao passo que o corpo se vertia em cinzas,
e o dia era baio, o chão infindo, o ocaso cotidiano. Não havia mais olho,
pouco o importava a causa. A floresta não tinha mais a forma costumei-
ra, não porque matara seu pai, mas estava correndo, seus olhos atingiam
desvirtuamento anatômico. Geralmente, ia a passos lentos, pouco corria,
desejoso de, ou mudar a própria floresta, ou encontros. Essa mudança de
perspectiva acarretava mudanças nele próprio, nos modos de percepção
não apenas do que o rodeava, mas também de si mesmo. Se se muda a ve-
locidade, muda-se a composição de um corpo. Disso ele já sabia. Indepen-
dente do que o tio lhe dissesse, estaria correndo agora, não havia nada que
quisesse mais do que não ser ele mesmo. Nihcolas dispersou-se: jogou-se
do penhasco do final da floresta. Há no entantos. Ele não queria se matar,
não queria se destruir, muito menos imitar o estado do corpo do pai. Men-
te, e muito, quem disser que ele queria essas coisas. Ele queria recuperar o
que havia perdido, ainda que por pouco tempo, ele queria poder se sentir
outra vez sem chão. Permitir-se. Cada parte de si se espalhou até os instan-
tes fluidos dos caminhos. Não se sabe se foi, de fato, de um penhasco que
se jogou, ou se pulou de uma pedra e sentiu penhasco, ou, sumo incômodo,
atirou-se num abismo e todo o resto dessa história é fruto dos devaneios de
uma criança que dança e ri como lhe convém por haver quem perca tempo,
enquanto não chega no chão. De qualquer modo, pouco importa.
Toda vez que gritava, por exemplo, por causa de um raio, não era
susto, retribuía o estrondo dado que, já ocorreu, caía bem ao seu lado. Ao
esbater de um céu que principia a chover, diluía-se em todas as gotas; ao
outono, areava-se entre o chão e a folha; ao cadáver asceta, virava-se a pele
ao avesso, qual um ouriço invertido no inverno. Não há como descrever
com exatidão a queda. Talvez quisesse transcorrer em silêncio. Sequer isso
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poderia Nihcolas dizer, pois não era algo para a sua fala.
Quando, finalmente, chegou ao chão (o sonho de um chão), deve ter
destruído toda uma minicidade, ou aldeia, pois seu corpo inteiro estava en-
sanguentado. Deve ter dormido tempo demais; esse sangue já estava duro
como parte de sua pele. Aos poucos, entendia que aquela pele não era sua.
Olhou ao redor.
— Não me lembro de ter estado aqui — balbuciava ao léu. — Pen-
sando bem — olhou pra cima, vendo de onde tinha se jogado —, eu nunca
poderia ter estado aqui mesmo. Só sei que me lembro, agora, de ter já visto
o lugar onde estou — começava a deambular. — Finalmente estou fora.
Verdejava menos. Talvez lhe agradasse, porque era mais fácil de an-
dar e ser atingido pelo Sol. Semiolhava boquiaberto, contra o esforço dos
músculos. Fraco o raiar, a terra estava seca e inane, o céu azul abatido tiran-
te a rosicler; eram fins de tarde. De certo modo, nada o preocupava. Sequer
sabia se sentia fome ou não. Por via das dúvidas, comeu inseto. Apenas
tinha de tomar cuidado com os que podiam machucá-lo, não devia enfiar
um monte de uma só vez na boca, mas proceder com calma. Quando to-
mava água após matar algum inseto, era como se os bebesse. E sorvia tudo,
tendo, por alguns instantes, formigamentos na fauce.
Após ter se alimentado, não entendia por quê, ele continuou cami-
nhando pelo desconhecido. Olhava ao redor com cuidado e desinteresse.
Estranhava as fáceis variações do solo, de terra para grama, havia parcas
árvores grandes em cujos troncos subiam insetos. Tinham sabor diferente,
um pouco mais amargo ou doce; Nihcolas teve de cuspir e se lamber. Olha-
va e já os sentia de novo na boca, sem por isso parar. Porém, chegou em
um ponto em que teve de cortar o passo, não lhe era mais permitido seguir.
Obedecendo, fechou a boca, olhou pra cima. Era uma árvore. Seu tronco
era imenso, partes de sua raiz protuberavam da terra, galhos contorcidos,
parecendo o braço de um mendigo que se esforça para ganhar compai-
xão, apenas mais um empregado fazendo o seu trabalho, umas folhas eram
amarelas, outras verdes e poucas pretas e cinzas, algumas folhas e galhos
tinham riscos contorcidos, tremidos, em ziguezagues, quase impossível era
ver o topo, pássaros em galhos de cor próximo do indiscernível, uns de
asas abertas, outros dormindo, e dois mortos seguravam-se pelas costas,
a cabeça e as patas balançando ao léu, alguns soltavam um grito gorjeado,
acordados pelo vento forte, o tronco tinha cicatrizes.
— E o que sabe você?! — urrou Nihcolas. Lacrimejava, tinha a im-
pressão de que se aproximava cada vez mais da árvore, pois o contrário

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não poderia ser, sem dar um passo sequer, e não desviava o olhar, nunca
chegava a ela, apenas se aproximava, e não se encontravam. Algumas folhas
se soltavam da árvore e algumas iam parar perto e até no rosto de Nihco-
las. — Eu não preciso de sua ajuda! — urrou mais uma vez. Subitamente,
se jogou com os joelhos no chão, sem medo da dor, os braços largados,
ainda olhava para cima, a boca abria-se espantosa, os olhos não piscavam
nem lacrimejavam, secos, sequíssimos, e bochechas úmidas. Caiu o resto
do corpo; a poeira levantou-se como último alento. O rosto virado para a
terra — até que dormiu.

II
Estava claro demais e o firmamento dava a impressão de não estar
ali, obnubilado em interstícios. Os simulacros do onírico assustavam pelo
tato. Obumbrou os olhos. Maravilhava-se. Cada grama em que pisava era
disforme, só se podia reconhecê-la pelas cores. O Sol visível não cegava; a
claridade era-lhe paralela, incidia nas coisas ora por curvas, ora por retidões
diáfanas — e também ele era disforme, estava chorando, não se sabe por
onde. Nihcolas riu muito disso. Por um segundo, foi o suficiente, quis saber
como estava seu corpo. Olhou para os braços, e eles eram espelhos, por
onde conseguiu ver que também seus olhos eram disformes. Sorriu surpre-
so e continuou andando, obnóxio das rotas. Ele estava, mas não percebia,
indo em direção a uma casa, um tipo de construção maior com um sino
abobadado no topo, adornado de símbolos ilegíveis, ali havia um jardim,
como um adro sossegado de sapé raso. Não percebia que estava entrando,
era tudo parte do caminho, como se nada além daquilo pudesse acontecer.
Então se despertou ao meio de um sono que não sentira e pôde olhar me-
lhor, tudo muito reminiscente, qual pudesse ver-se diante de si em um tem-
po oblívio. Causava-lhe certo incômodo parecer tão familiar. Prosseguia.
Muitas portas adjacentes a um corredor liso; o espaço tomava um tom
azulado, até que se viu no centro de um círculo, rodeado de portas, convi-
dando-o a entrar numa. Era noite, céu estrelado, casas enormes cheias de
janelas, algumas com luz acesa. Saiu. Entrou em outra porta, pensou estar
no mesmo lugar, mas depois reparou na grande diferença das casas e até do
céu. Viu uma janela de luz acesa. Mas, antes, estagnou-se vidente, impres-
sionado em como aquele lugar o fazia parecer pequeno, vertigem invertida.
Não sabia como entrar, então tentou olhar pela janela o que havia dentro.
— É você, o garoto que eu vi antes! — falou um rapaz. Antes de
notar sua presença, ele estava sentado sobre um tapete. — O que você está

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fazendo aqui? Você não devia estar aqui.
— Eu quero entrar. Aqui fora está muito frio.
Não obstante Nihcolas não haver percebido, entenderam-se apesar
do idioma. A criança saiu da janela correndo e apareceu batendo o quei-
xo e o corpo, encolhido, meneando a mão para que Nihcolas o seguisse.
Quando atravessaram um grande portão, apareceu um homem alto, com
voz de jiraia.
— Quem é esse? Você sabe que não deve trazer estranhos para cá —
estava escuro, como se essa coisa pudesse reconhecer pelo cheiro.
— Pai, você não se lembra dele? É o meu amigo que estava lá na casa
também.
— Ah, sim, claro.
Sumiu. A criança o conduziu até onde estava antes. Lá havia luz,
brinquedos, comida, cama. Nihcolas fazia a mínima ideia de quem era, mas
se sentia bem com ele. Parece que vivia sozinho ali, apesar de há pouco ter
falado com o pai. Fazia sua própria comida. O máximo que ele conseguia
fazer era encontrá-la, mas ainda não sabia como fazê-la, pelo menos não
como o menino fazia.
— Por que eu não devia estar aqui? — perguntou Nihcolas.
— Porque você não parece ser daqui.
— Só por causa disso?
— Ah, você não entende. Aqui, todos são iguais, literalmente.
— Como assim?
— Na verdade, apenas quem mora aqui é diferente do resto. Não sei
te responder o porquê de todos serem iguais aqui, o fato é que são: nascem
com o mesmo rosto, morrem com o mesmo rosto. Tem lá uns troços que
ficam soltando fumaça, a essa hora nenhum funciona, quer dizer, tem uns
que funcionam, mas ficam longe daqui. Talvez eles sejam a razão de todos
serem iguais lá, mas não tenho certeza. Você nunca poderia ser daqui por-
que você não mora aqui comigo e nem é igual ao resto.
— Mas, então, ninguém se conhece? Se elas são todas iguais, tinha
que ser impossível diferenciar uma da outra.
— É mesmo, eu nunca consigo. Todas têm o mesmo nome, sempre
te cumprimentarão se você souber o nome, mas, se não souber, elas ficam
nervosas e se sentem ofendidas. Por isso, eu gosto de ficar aqui. Mas nem
sempre é o bastante, então, quando quero sair, basta fechar os olhos.
— Por quê?
— É que aqui o olhar funciona como permissão. Se você olha para

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alguém, a pessoa exige um cumprimento. Só que como eu me esqueço do
nome, né, prefiro sair de olhos fechados até o lugar que eu gosto muito de
ficar, que eu posso ficar de olhos abertos. Se não estivesse tão frio, eu te
mostrava lá.
— Devem ser tristes. É como uma colmeia.
— Como poderiam? É como se os loucos se cansassem. Desde que
nasceram, são assim. Talvez no mundo em que vivem eles consigam, de
algum modo, se diferenciar, pelo cheiro quem sabe, mas o caso é que eles
nunca conheceram nada diferente disso, nunca tiveram a chance sequer.
Eles não precisam de ajuda, talvez essa seja a maior felicidade deles.
— É... Nós é que somos tristes por ocupar nossa cabeça com esse
tipo de coisa.
— Com certeza não — dispôs as coisas na mesa e tomou um gole
de um líquido num copão. — Por que eu seria triste por pensar nisso? — e
limpa a boca com o braço.
— Não sei, talvez por perceber que é impossível ajudá-los.
— Mas eles não querem nem precisam.
— Mas você não sente essa vontade?
— Não, por que eu ajudaria quem não precisa?
Só nesse momento Nihcolas percebeu que havia comida e bebida na
mesa.
— Acho que você tem razão — disse Nihcolas. — Acho que eu es-
tava me deixando levar por algum tipo de compaixão, sei lá.
— O que é compaixão?
— Não sei, é o que dizem.
— Legal isso. Aqui não se diz muita coisa. Algumas palavras me vie-
ram por amor de meus pais, mas a grande parte dessas palavras surgiram
por essa grande paixão que tenho pelas coisas. Sou muito curioso, mas as
pessoas aqui não têm esse amor. Só se fala o necessário, e poucas coisas
são realmente necessárias para eles. Não se precisa de palavras para peidar,
mijar, cagar, comer, respirar e trabalhar. Por isso são homens de ação.
— Não entendo.
— Eu também não, mas foi o que percebi. É uma rotina incessante
a dessa gente, e sua maior glória é a tarefa finda, ainda que inútil — virou
outro gole do suco. — Mas, né, antes algo que nada. Vai que começam a
pensar. Deve ser absurdo para eles.
— É o limite deles — suspirou.
O menino riu ao ouvir isso, espirrando o pouco de líquido que tinha

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na boca no chão. Nihcolas acabou por rir também. O menino tirou a mesa;
Nihcolas ajudou-o.
— Toma cuidado — falou o menino ao jogar a louça na pia.
Quando Nihcolas jogou ali também, o ralo soltou um grito ensurde-
cedor. Fechou os olhos, pôs as mãos no ouvido. Quando os abriu, a louça
não estava mais ali.
— Ela já está lavada. Ali ó — apontou e riu.
— O que é isso?
— Não sei, sempre esteve aí.
Os dois voltaram para a sala. Havia ali um tapete circular, cheio de
brinquedos tanto dentro quanto fora. O rapaz se jogou no chão, causando
considerável estrondo, enquanto Nihcolas, mais tímido, olhava ao redor,
até que se sentou, ao perceber onde estava o outro, sem barulho.
— Para que são aqueles livros todos?
— Ah sim, é que alguns livros servem para me ajudar a montar o que
me vem à cabeça; já outros — pegou um livro — servem só para aquecer a
gente — jogou o livro no fogo da lareira, fazendo subir achas no ar.
— E como você escolhe?
— Você sabe ler?
— Sim.
— Então... Basta ler.
— E você já leu isso tudo?
— Lógico que não.
O fogo da lareira estava baixo, ambos tinham de esfregar as mãos
umas nas outras. O menino ficou feliz por Nihcolas ter perguntado sobre
os livros. O fogo, paulatinamente, ficava mais forte, e isso ao som dos esta-
los da queimação do livro, que, hora ou outra, parecia chorar arrependido
de ter sido escrito. Chamava-se “Cante!”.
Ao perceber que as chamas se conflagravam com vivacidade, es-
praiando-se por todos os cantos, o menino não se sentia mais bem com as
roupas que trajava. Despiu-se e voltou a se sentar na frente de Nihcolas.
Este ficou curioso, será que ele também queria se despir, ou podia aguentar
o calor? Mas esta curiosidade durou apenas um segundo, já estava tirando
a cueca.
— Me diz uma coisa — perguntou Nihcolas enfim —, você não faz
a mínima ideia do que são aquelas coisas que soltam fumaça?
O menino o fitou curioso, torceu a boca, olhou os brinquedos.
— Bem, vamos tentar criar, aqui, um lugar que se pareça com aquilo

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lá. Essas duas peças grandes ficam aqui sendo as coisas. Esse monte de
peça são as pessoas. Esses quadrados são as casas. Enfim, agora, vamos
imaginar que todas essas pessoas tenham de ir pra coisa para fazer sabe-se
lá o quê. Elas vão aqui de manhã e voltam de noite, nem jantam sequer.
Imagina também que há quem nem volta pra casa, mas faz da coisa seu lar,
saindo de vez em quando.
— E aí?
— Não sei, continua como se nada acontecesse. Sai fumaça, entra
gente. Antes pudessem ser aquela fumaça, seria algo a mais, mas sequer
devem ter a chance de conseguir rememorar as coisas, nada muda. Lem-
brar-se de algo nessas condições é continuar apenas — silenciou, olhando
a cidade fixa. — Quem sabe esses tubos não sejam a máquina que dá força
a essas pessoas, energia para manter as coisas como estão, a queima forne-
cedora dos dias, para que nenhuma delas escape.
— Tudo para que a vida faça sentido — murmurou Nihcolas.
— Para que não pese nos ombros, por mais leve que seja.
— Mas, quem seria capaz de criar isso?
O rapaz deu de ombros e destruiu a cidade num átimo. Num mo-
mento, Nihcolas olhou profundamente o menino e se deitou no chão, o
centro do universo, olhos sonolentos pro teto. Surgia-lhe uma abstração
do espaço, um obscurecimento das arestas, por onde tudo o que vira era
sugado numa espiral da origem, sem cor, sem causa nem fito. Olhar hirto,
os volteios o lançavam à letargia vazia da eternidade.
— No fundo — falou o rapaz, engatinhando em sua direção —,
também o fim deles é o nosso — deixou-se cair, estando com o crestar das
chamas, a estalar ainda, nos olhos, mais próximo de Nihcolas.

III
Manteve-se prostrado por algum tempo. Não sabia como se sentir,
tinha a feição de um fruto triste que caiu na terra rachada de seca e não
se esparramou. Porque talvez seja melhor ter essa chance de dispersar ao
chão tudo o que há de ilusão e mistério, para, talvez, chegar à inescapável
conclusão de saber que há nada, a não ser os órgãos e suas intempéries, que
ainda eram a pele de Nihcolas; que ver adentro não passava de sortilégio,
amor de si, mácula ridente do espírito.
“Estou com sede”, pensou. Também queria cagar — só não sabia se
eram motivos o suficiente. Levantou-se e olhou ao redor. A árvore ainda
estava ali, como antes. Bateu com as mãos nas roupas, para limpá-las, e

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continuou a andar, finalmente mais calmo, menos abalado. A essa hora, o
céu era uma palheta escura de um azul a outro. Conteve-se frente à árvore,
olhando toda sua estrutura de cabeça empinada, não era mais que uma
imensa sombra, roçada pelo vento, com frestas enfeitando o levantar da
Lua. Qualquer coisa de triste o tomou de assombro a alma, olhos de pálpe-
bras lassas, lábios cerrados em decadência, braços ao léu pela terceira vez.
Seu corpo entrecortando-se pelas sombras da árvore. Seguindo os riscos
com as mãos, Nihcolas continuou com seu caminho.
Por algum infortúnio ou maldição da natureza, o corpo não para.
Consumou, enfim, o ato. Mas, enquanto o fazia, escutou algo — era o can-
to de um pássaro. Fez de tudo para tentar encontrá-lo, mas não conseguiu.
Ficou indignado. Por que algum pássaro cantaria se não quer se mostrar?
Tranquilizou-se e ficou feliz. Pouco importaria caso fosse um pássaro bo-
nito ou não; seu canto era o importante. “Um canto sem corpo”, eis como
passou a chamá-los.
Ora andava, ora parava. Estava cansado. Não sabia por que, mas
não havia maneira de manter o passo. Não era por fome, constantemente
comia. Ainda não matara a sede. Queria muito que o sangue dos insetos
ajudasse de alguma forma, mas percebeu que sangue não podia ser água.
Recaía-lhe agora com maior intensidade a fadiga, tanto física quanto da
alma. Não interessava se fosse morrer de sede, tinha de parar intermitente-
mente. Continuou a andar, prometendo a si mesmo que acharia água.
Não acharia. Seus olhos cansados não dormiam. Começou, aos pou-
cos, a sentir os efeitos da desidratação. A boca aberta, cambaleava às vezes.
Até que, enfim, aconteceu de encontrar um rio de água aparentemente
potável, pouco importava, queria apenas bebê-la. No entanto, quando es-
tendeu a mão, cheia de água, à boca, ele caiu.
Acordou numa cama, nu, descansado e sedento. Um lugar simplório,
cama confortável o bastante para dormir. Levantou o tronco. Não sabia
como descrever direito aquele lugar, tinha um tom barroso, alguns orna-
mentos nas paredes. Levantou fraco.
— Você teve sorte — falou um homem.
— Onde estão minhas roupas? Estou com um pouco de frio.
— Ué, e eu que achei que você que fosse explicar. Te encontrei assim
mesmo.
Nihcolas tentava imaginar como perdera as roupas. Supôs que, en-
quanto estava com sede, as roupas se desprenderam dele.
— Tem água? Estou morto de sede.

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O homem riu. Saiu e trouxe um copo de água, que Nihcolas tomou
rapidamente. O homem era gordo, grudento, barba um pouco grande, pa-
recia ser do tipo que sorria demais. Nihcolas pouco ou sequer notou isso.
— Por que eu tive sorte?
— Porque você podia ter morrido.
Dessa vez, foi Nihcolas quem deixou escapar um sorriso. Escárnio
talvez. Havia algo parecido com uma janela perto de si. Ali era estranho,
sem graça, um lugar que não valia a pena. Saiu da casa; o homem foi atrás,
tendo esquecido de trazer a roupa para Nihcolas que separara. Este nem
deu falta. Sua cabeça pesava, foi tentar achar o que era, tocou em algo inex-
plicável, estava no lado esquerdo, em cima de seus cabelos. Olhou para o
homem, que fez um sinal para que não tirasse. Nihcolas não se importou,
não era tão pesado assim — parecia um cacho de uvas.
O povoado era impossível. Nihcolas não sabia o que pensar. Por cau-
sa das roupas, essas pessoas pareciam cinza, enlameadas. Algumas cuspiam
no chão, deviam viver disso, umidificadoras de solo. Talvez não choves-
se tanto. Nihcolas não conseguia se sentir bem. “Corpos sem canto” —
pensava incerto. Havia as crianças de aparência feliz, algumas até sorriam.
Quando não se conhece situação melhor, ela própria tem de se tornar feliz,
senão é insuportável.
Excepcionalmente, apenas agora Nihcolas percebia que, praticamen-
te, todos o olhavam. Alguns de soslaio, outros sem piedade. Talvez por
ser estrangeiro. Isso incomodou Nihcolas um pouco, mas não o fez parar.
Percebeu que havia muitos escombros, ali, de antigas construções maiores.
Uma delas lhe chamou muita atenção, anômala. Solfejava algo, que era o
que via. Ele conseguia imaginar como ela fora um dia, uma construção
bonita. Devia ser onde as pessoas guardavam objetos importantes para a
formação e crescimento daquele lugar. No chão, perto daqueles destroços,
havia um pedaço de pano. Nihcolas o pegou e viu que havia algo dese-
nhado ali: era o rosto de uma menina, cabelo ondulado nos ombros, que
olhava, incessantemente, para frente, para ele mesmo. Jogou-o no chão e
adentrou. Havia molduras e esculturas destruídas. Gritou o mais alto que
pôde. Ninguém foi ao seu encontro, sequer devem tê-lo ouvido (talvez não
existisse mais para as pessoas), nada aconteceu. Somente ecos. Apreciou
sorrindo ao ouvir-se, aplaudindo sua voz de catrâmbias. O chão encober-
to de poeira; havia insetos estranhos, embuás, mariposas-lua, esperanças.
Pensou que poderia ser um cemitério, de pessoas, animais, insetos, roupas.
Até tentou encontrar um manto com que se cobrir, ao menos, da cintura

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para cima, mas não encontrou, chegando ao fim, onde havia nada. Virou-
-se e saiu. Com o primeiro passo, pisou em alguns espinhos. Gritou, ficou
pulando com uma só perna e tentou achar onde sentar. Sentou sobre um
vaso. Conseguiu se acalmar. Colocou a mão esquerda atrás como apoio,
com a direita pegou o pé machucado e se posicionou de tal modo que con-
seguisse olhar o estrago. Saía um pouco de sangue. Ao lado do vaso, havia
rosas, provavelmente, não se sabe, sobre as quais caíram pingos do sangue
de Nihcolas. A cada vez que tirava um espinho, gemia de dor. Quadro de
térrea escultura. Levantou com esforço, cambaleava. Virou-se e percebeu
que o vaso estava intacto ainda, talvez a única coisa que não fora sacrifica-
da. Notou como que, ao longo de sua superfície, havia homens armados e,
ao passo que seguia a história, estranhou que os vencedores se exilassem
de sua terra natal, que, supunha, era onde estava o vaso.
No momento em que terminou a história, algumas pessoas, jovens e
velhas, passaram por ele xingando-o, amaldiçoando-o. Quando se afastou,
vieram correndo e o empurraram. O homem apareceu e se assustou ao
vê-lo jogado no chão. Na verdade, ele aproveitara para se deitar um pouco,
descansar. Ajudou-lhe a se levantar, apesar de não ter pedido, e o limpou
com a mão.
— Você não devia ter feito o que fez, ainda mais sabendo do último
grande acontecimento que houve aqui. A guerra matou muitos; a ferida
ainda está muito aberta. Não houve gerações o suficiente ainda, para que
essa marca maldita desapareça, ou, pelo menos, seja esquecida, coisa que
eu acredito que nunca vá ocorrer, porque, você sabe, as proporções foram
enormes, desceram ao que há de mais íntimo em nós e, ali, deixaram não
marcas nem feridas, mas impossibilidades. E hoje tudo se tornou impos-
sível; já não temos mais o menor direito de desejar as coisas mais bonitas,
tornaram-se rastros apagados, e só os meus companheiros entendem isso
plenamente; mas suponho que mesmo alguém da tua idade entenda, uma
vez que você é consequência disso, ou seja, você está inserido nessa se-
quência de horrores que marcaram os povos do mundo. Tudo se tornou
impossível. Só nos resta sonhar, mas, ah!, até nos sonhos nos perscrutam
as sombras, subrepticiamente andam atrás de nós e nos devoram impiedo-
sos. Nossa sensibilidade tornou-se aguda e nervosa. Quem poderia algum
dia sonhar que seríamos capazes de tanta crueldade? Quem poderia nos
avisar que, sim!, é possível descer mais fundo no poço, pois ainda não
sentimos o verdadeiro cheiro desse poço que somos nós, com esse odor
de decrépito e fezes? Mas, o que fazer agora que sentimos e vivemos nesse

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cheiro? É impossível subir, crescer, sequer amar, porque nem vontade mais
temos! A vida se tornou insuportável, e junto com ela veio um nojo indis-
sociável. Veja aquilo, o vaso em que você se sentou: a única sombra do que
nos restou foi essa memória, é essa a única arte que vingou aqui; tudo mais
se tornou um insulto imperdoável, descontextualizado, fora de ordem, to-
lice. Se eu te mostrasse um dos quadros ou esculturas que tínhamos, você
entenderia o que digo, ou seja, você poderia sentir de perto, até demais,
esse nojo de que te falo, você teria ódio de estar vendo coisa tão estranha,
tão alegre, tão burra, pois mal sabe o lixo em que está, mal entende isso:
a vida está aí para nos tornar alvo de um sangue que já foi nosso. Não há
mais o que ser criado depois disso, apenas esse acontecimento deve se im-
por como nosso deus, nosso cimo, acima de todos os céus, muito além das
nuvens. É a nossa luz, nossa última felicidade. Entende?
O homem exasperava; Nihcolas estava surpreso e tinha um olhar
confuso.
— Mas, afinal, do que é que você está falando?
O homem recuou, assustadíssimo, com os olhos incompreensivel-
mente enormes.
— É que eu não entendo. Por que eu devia saber disso?
O homem gritou uma dor tão absurda que Nihcolas se assustou,
chegando a se perguntar se a dor era tanta quanto a que tinha sentido há
pouco. Ele se afastava de Nihcolas horrorizado, escondia os olhos, como
se este fosse um ser profano, proibido. Aos poucos, as pessoas se aproxi-
mavam e começavam a gritar também, como se já soubessem do ocorrido
ou como se o grito de espanto fosse um código reconhecível. Nihcolas não
entendeu e, quando percebeu que a cidade inteira se metamorfoseara numa
boca enorme berrante, não pôde continuar ali. Saiu correndo e, depois de
alguns passos, teve de parar e apenas caminhar, pois o pé esquerdo estava
machucado ainda. Quis olhar para trás: não mais gritavam de terror, mas
choravam. Nihcolas continuou, sem ousar olhar para trás.

IV
Novamente sozinho, o dia resplandecia alto num céu sem nuvens,
azul tão nítido e tátil que soava ilusório, um chiado estático. O Sol clareava
por recônditos cúmulos, Nihcolas caminhava ininterrupto, a cada passo
sentia esmorecer o corpo, um tamborilar pulsante incontinenti, em rotura
com as sensações, lapsos atros engrinaldando a carcaça, enfraquecida de
fome e sede. Foi, então, que lhe veio luz de uma floresta. Após recobrar

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as forças, recostou-se ao tronco de uma árvore e repousou. Sentia falta de
casa. Com pupilas tirantes a sonho, reviveu tudo como espectador. Imóvel,
vítima de sua prostração, aterrorizava-se defronte a peça absurda em ence-
nação, passos e gritos silenciosos, distorções de um ontem selado irreme-
diável. Corpo e mente, paulatinos, se dispersavam. O crepúsculo avançava.
Havia noites em que mal dormia, ficando entre aves e insetos noturnos,
caçando e sendo caçado, vivendo e sendo vivido.
Nihcolas dormia pouco, sentiu algo cutucando a sola de seu pé (por
sorte, não o esquerdo).
— Quem é você? — perguntou um garoto, que o examinava de cima
a baixo.
Surpreende-se por coisa tão inesperada Nihcolas, arregalando o cor-
po. Sonolento ainda, de sorte que se esqueceu de responder.
— Sou Lucano. O que é que você está fazendo aqui sozinho?
— Estava descansando porque comi.
— Ah, eu ainda estou buscando comida.
— Ali tem algumas. Peguei umas para mais tarde, mas toma aqui.
— Nossa, valeu! — começou a comer. — Mas, quem é você? Você
ainda não me respondeu — falou de boca cheia.
— Sou Nihcolas.
— E por que você estava dormindo aqui?
— Descansando por ter acabado de almoçar. Acabei de te falar isso.
— Não! Quer dizer, por que você não está dormindo em casa?
— Não tenho uma. A que eu tinha foi destruída.
— Por quê?
— Porque quiseram, mas deixa pra lá.
— Você devia vir comigo; acho que você ia gostar de onde eu moro.
— Tudo bem, pode ser.
Com as frutas no braço, Lucano conduziu Nihcolas. Lucano tinha
uma aparência bastante semelhante à do menino do sonho de Nihcolas,
mas com olhos um pouco menores.
— Acho que você vai gostar de lá — falava. — É um pouco grande,
tenho alguns amigos lá, é que grande parte dos outros não gostam de mim,
não entendo por quê. Minha mãe mesma diz pra eu não me meter com
eles.
— Talvez eles não sejam tão legais quanto você pensa.
— Eu sei, mas queria tentar uma vez pelo menos. Eles nem me dei-
xaram tentar! Me viram e parece que já criaram ódio.

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— Que estranho isso.
Lucano estacou. Percebeu um problema.
— Se o pessoal te vir sem roupa, vão fazer coisas terríveis contigo.
Eu posso ir correndo pra minha casa e te trazer alguma. Espera aqui rapi-
dinho.
Nihcolas esperou talvez dez minutos, até que viu Lucano voltando.
— Aqui, toma — trouxe-lhe cueca e bermuda. — Eu te trouxe os
maiores que eu tinha. Agora está perfeito! Não há problema ir pra lá sem
camisa. Na realidade, o problema de ir pra lá pelado é que o pessoal vê mo-
tivo de graça em tudo. Mas, o problema que falei antes também é verdade,
só que serve mais para os adultos, sabe-se lá por quê.
Nihcolas riu de tanta ingenuidade, fazendo Lucano rir também. Ao
chegarem, impressionou-se com o lugar, nunca tinha visto algo assim.
Construções imensas, brancas, sem arestas, era tudo fascinantemente enor-
me, não entendeu como não havia visto aquilo.
— De longe é impossível vê-la — explicou Lucano com um riso
rosado, entendendo a confusão de Nihcolas.
— Como?
— Não sei, dizem que é muito complicado pras crianças entende-
rem.
Ruas estupidamente benfeitas e planejadas, ladeadas por prédios se-
riados, sem portas e janelas, de um branco onipresente em constante pugna
pela majestade contra o céu, calçadas e estradas sem o menor sinal de vida.
— Nossa! Verdade!
— Como será que se entra ali?
— Faço a menor ideia, talvez debaixo do solo?
— Que maluquice!
— Deve ser mais uma pra gente não saber.
— Por quê?
— Não sei, faz mó tempo que moro aqui, e há muitas coisas que eu
ainda não sei.
— E você nunca tentou descobrir?
— Já sim, mas não me contam.
— Quero conhecer aqui!
— Beleza. Vou te mostrar algo que sempre ouvi dizer que é a coisa
mais valiosa que temos aqui.
Saíram correndo. Nihcolas achou incrível ali não haver grama, mas
algo cinza e duro. Achou mais fácil de se mover. Correram bastante tempo

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em linha reta, viraram vez ou outra, até que Lucano parou frente a uma
grande construção.
— É a única que tem porta. Legal, né?
Nihcolas olhava surpreso.
— Como pode ser tão grande?
— Vem! — falou Lucano, puxando Nihcolas pelo braço.
Subiram as escadas e o que era grande ficava maior a cada passo.
Mostrava pequenas rachaduras em sua estrutura externa e interna, qual um
estrangeiro encoberto. Nihcolas estava em efusão de alegria, uma sereno-
jovialidade típica.
— Impossível! — falou Nihcolas.
— Vem logo!
Foram correndo, tiveram de subir mais algumas escadas.
— Chegamos. Olha ali — Lucano apontou para um grande cubo
de vidro. No centro, havia alguns, um ou dois, fiapos de cor indiscernível.
Nihcolas torceu a boca, franziu a testa e ficou olhando Lucano. — É, eu
sei.
— O que é isso?
— Segundo minha mãe, isso aí já foi um grande e belo pano.
— Mas, como ficou assim?
— Começaram a leiloar cada fio. Pelo que parece, cada fio valia mui-
to dinheiro; aí, tinha muita gente que queria ter um fio para poder sei lá o
que com ele. Acho que queriam saber como aquilo foi feito. O ruim é que,
agora, a gente deve saber muita coisa desse tapete, mas nunca mais vamos
vê-lo de novo.
— E pra que analisar um pano?
— Por que as bananas são tortas? —deu os ombros e as mãos.
Sorriram e deixaram aquilo para trás.
— Ainda bem que há mais aqui do que simplesmente aquela coisa.
Espaço, bastante espaço, alguns obstáculos, que nada mais eram do
que mais daquelas coisas, como falou Lucano. À exceção das casas, que
ficam alhures, e um outro lugar, não havia mais aonde ir. Lucano, portanto,
quis lhe mostrar a construção. Desceram as escadas, Lucano em disparada,
sorrindo a todo instante, e Nihcolas tentando acompanhá-lo. As paredes, o
chão e o teto eram de um absurdo de liso e limpo.
— Saca só — falou Lucano, jogando-se no chão com o peito, des-
lizando.
Nihcolas tentou o mesmo. Deslizou ainda mais, tanto que acabou

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indo, sem perceberem, de encontro com um homem de branco.
— Vixi — sussurrou Lucano.
— Quem é você? — falou levemente o homem.
— Desculpa, papai, ele é um amigo meu, Nihcolas.
— Eu o nunca vi por essas paragens.
— Sim, ele não é daqui. Eu o encontrei lá na floresta.
— Sozinho?
— É.
— Que absurdo. Onde esse mundo vai parar? — meneava a cabeça.
— Ele não quer me falar de onde ele é. Não gosta, né? — Nihcolas
concordou, silencioso, como intimidado, embora o homem tivesse rosto e
fala calmos.
— Tudo bem, não faz diferença. Era mais curiosidade. Lucano, por
favor, não faça bagunça.
— Tá bom.
O homem continuou a andar. Ambos se olharam: Lucano estava
aliviado, Nihcolas tinha uma cara leve de surpresa.
— Tudo bem? — perguntou Lucano.
— Sim. É só que eu sempre acho estranho como você é tão diferente
dos outros aqui. Parece, até, que você está aqui por acidente.
— Não sei, dizem que ainda não chegou a minha hora.
— Para o quê?
— Não sei, tanto faz.
— É mesmo — Nihcolas se sentou no chão. — Você vai falar da-
quele jeito também?
— Espero que não. Não gosto desse jeito que todos os adultos falam
aqui.
— Todos falam assim? — surpreendeu-se.
— Acho que é por isso que eles falam tão devagar. Você nunca vai
ouvir eles falando como a gente fala.
Nihcolas silenciou, apoiando-se com os braços atrás.
— Sei lá como eles pensam. O meu pai parece ser feliz, mas não há
como saber.
Ficaram, ali, por um tempo em silêncio, até que Lucano pegou Nih-
colas pelo braço e o puxou de supetão, iam em direção à saída.
— Vou te mostrar uma outra coisa! — falou Lucano quando ambos
saíram.
Corriam. Nihcolas percebeu que não havia mais a longa rua e, à

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medida que avançavam, as construções rareavam rumo ao nada. Também
os envolvia um cheiro de repugnância. Lucano não diminuía o ritmo nem
parecia incomodado.
— Chegamos.
Era um rio de bosta e lixo. Àquele ponto, o cheiro se tornara tão in-
suportável que não havia mais contenda, brotavam cânhamos, e Nihcolas
não fazia mais caretas nem tapava o nariz. Uma avalanche atemporal de
fluxos e refluxos, tsunami dos preteridos contra si mesmo por ondas em
batalha. Nihcolas fitava essas revoluções sem pestanejar, enquanto Lucano
o olhava de soslaio, rindo.
— Sente esse cheiro? — perguntou Lucano.
Nihcolas inspirou bem fundo.
— Sim.
— É o nosso cheiro também.
Fixou o olhar em Lucano com ar interrogativo.
— Por quê?
— Você já sentiu o cheiro de alguém morto?
— Não.
— Dizem ser pior do que comida estragada — virou o olhar leve
para o rio. — Talvez seja esse o cheiro.
— Mas, será que nunca para de vir isso?
— Acho que não. Nós dois dormimos, mas eles parecem nunca dor-
mir. Tem vezes que parece que eu moro sozinho lá em casa.
— Então, tudo que tem a ver com eles também não para, né?
— É o que parece. Olhe! — exclamou e apontou Lucano. Estava
boiando uns dedos e até um braço. — Às vezes aparece esse tipo de coisa.
Nihcolas ficou estupefato. Desbotara a cor original; moviam-se de
um lado para o outro com o movimento do rio. Não havia mais sangue, só
buracos por onde restavam rastros de sangue, em poucos segundos estava
completo o batismo.
— O que você acha que é isso? — perguntou Lucano.
Nihcolas desviou o olhar do rio e o encarou.
— Dedos e um braço, não?
— Lógico. Mas, por que você acha que eles estão aí? De onde vie-
ram?
— Do mesmo lugar que toda essa água e lixo.
— Aham...
— Não sei, por que teria isso aí?

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— Sempre quis saber disso.
— Por que você não pergunta pro teu pai ou pra tua mãe?
— Já fiz isso; eles dizem que não sabem de nada disso.
— Talvez eles façam experimentos.
— Por quê?
— Pelo mesmo motivo que fazem experimentos com aquele pano lá.
— Talvez eles tenham feito isso quando essa pessoa já estava morta.
— Também acho. Não vejo motivo para fazerem isso com alguém
vivo, já que seria uma ajuda para eles. Veja, sumiram — disse ao voltar o
olhar para o rio. — Tá vendo? Às vezes, ele fica mais calmo, o rio.
— Até ele precisa de descanso.
O céu rosalaranjado principiava o ocaso, mas, para eles, era da cor
do rio.
— Vamos pra casa — falou Lucano, levantando e puxando Nihcolas
pelo braço.
— Eu vou poder ficar na sua casa?
— Claro, onde mais você iria dormir?
Nihcolas sorriu. Voltaram-se para a cidade. O caminho e a vista da
cidade estavam diferentes. De certo modo, isso alegrava os dois, perce-
bendo ou não. Quando chegaram, o céu estava num finíssimo azul, postes
acenderam uma luz, a calçada e a rua ainda estavam desertas.
— Estamos um pouco longe de casa. É por aqui.
Voltaram por um caminho diferente, até certo ponto foi o mesmo.
Todas as casas eram exatamente do mesmo jeito. Quando entraram,
imediatamente acendeu as luzes. Nihcolas nunca tinha visto nada parecido,
foi na direção contrária a de Lucano, para ver as coisas mais de perto. Tudo
era bem branco, organizado e limpo, como um paraíso europeu. Essa uni-
cromaticidade era-lhe muito estranha, tinha de fechar um pouco os olhos
às vezes, até se acostumar. A pouca variação de cor se aproximava do bran-
co, coisa de apenas os esquimós notarem.
— Legal, né? Aquele ali sou eu mais novo.
Era o quadro de uma criança pintando um quadro. Não dava para
saber o que pintava, pois estava em uma perspectiva tal, que mostrava seu
corpo, o pincel em sua mão direita e o que estava atrás dele; era secundado
por um ambiente sereno e fugaz, de cores variadas de alta manhã.
— Aquele ali sou eu ainda mais novo, com uma mulher.
Ambos brincavam com areia em cima de uma mesa. Lucano tinha a
mesma aparência em dimensão diminuta; a mulher tinha cabelo castanho.

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Trajava um bibe azul; ela, um vestido.
— Agora, vem! — chamou, já no meio da escada.
Subiram a escada encaracolada para um corredor escuro que clareou
assim que chegaram. Nihcolas percebeu que lá embaixo a luz apagara. En-
traram no primeiro quarto à direita. Nihcolas percebeu que aquele quarto,
demasiado limpo, não tinha a cara de Lucano, era impossível, tinha de ser
o quarto de qualquer outra pessoa. Assim que entraram, Lucano abriu um
armário e jogou todas as coisas no chão.
— Pronto, melhor!
— Agora, eu consigo vê-lo como seu quarto!
— Triste que amanhã de manhã, por mais bagunçado que o deixar-
mos, ele vai estar arrumado.
— Como?
— É como a casa funciona, ela foi programada assim.
Nihcolas estava com o semblante confuso. Lucano, apesar de ter
visto, não explicou, certamente por não saber mais que isso. Estavam mui-
to cansados, após, finalmente, pararem um pouco. Tudo ficou no chão e
foram mudos pra cama. Mas Lucano se deparou com sua caixa de tinta e
lápis.
— Saca só.
Pegou uma lata e jogou na parede branca, começando a desenhar ali.
Nihcolas fez o mesmo. Ficaram desenhando por um bom tempo, às vezes
Lucano se jogava de corpo contra ela e Nihcolas fez o mesmo. Agora, sim,
estavam verdadeiramente esgotados. Foram se arrastando, como vermes,
para a cama.
— Ainda bem que minha cama não é tão pequena, senão ficaríamos
muito apertados.
— Eu posso dormir no chão se você quiser, não ligo.
— Me incomodaria — falou, se balançando um pouco na cama e
sorrindo. — E sorte, também, que eu tenho outro travesseiro aqui. Toma
aí — jogou na cara de Nihcolas. Ambos riram; Nihcolas o acertou com o
travesseiro na cara também, porém Lucano se defendeu parcialmente.
Deitados, enfim, olhavam o teto.
— Não vou conseguir dormir com isso — disse Nihcolas, tirando
o short.
— Não, não, pera aí — disse Lucano antes que ele tirasse a cueca
também —, você se lembra que eu te falei sobre como as pessoas, aqui, não
se sentem confortável com alguém sem roupa? Então, às vezes, meus pais

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entram no quarto. Fica com ela pelo menos.
— Tudo bem. Como é que você consegue dormir de roupa?
— Sei lá, eu fui acostumado assim, desde sempre durmo com roupa.
— É, acho que desacostumei.
— Quando você era acostumado?
— Quando eu tinha uma casa.
— Ah, você pode se acostumar de novo então.
— Acho que não — virou-se pra parede e dormiu.
Falaram mais nada. Após algumas horas, Nihcolas, que tinha sono
leve, acordou. Com os olhos cerrados, percebeu que havia alguma coisa
grande no quarto. Barulhos estranhos mexiam na parede em que haviam
pintado. Saiu da cama — Nihcolas tentou, sem sucesso, acordar Lucano —
e foi ver de perto. Apesar de estar escuro, diferenciou as cores: um branco
estranho refletia o semblante de Nihcolas, esquecera o nome. Bateu nele
como se fosse uma porta, ecoou um som estranho; mas aquilo continuou
a fazer o que quer que fosse, como se Nihcolas inexistisse. Parecia um ani-
mal. Enfim, voltou pra cama e tentou ignorar o barulho.
De manhã, Lucano acordou um pouco depois do Sol nascer e ficou
tentando acordar Nihcolas sem descanso. Ambos desceram para comer,
mas, antes disso, na cama, Nihcolas mostrou a parede para Lucano.
— Sim, pensei que tinha te contado isso ontem, que a parede sempre
volta a ficar branquinha.
— Eu vi, ontem, isso acontecendo, tentei te acordar, mas nada.
— Nunca consigo ver! Já tentei várias vezes. Como ele é?
— Parece um bicho, cheio de braços, branco... Sei lá, eu estava morto
de sono.
Lucano só falou quando estavam tomando café da manhã, mas nada
relativo a isso. Quando estavam para sair de casa, extraordinariamente, Lu-
cano surpreendeu o pai correndo desesperadamente em sua direção. Fazia
sinal para que ambos voltassem. Lucano puxou Nihcolas, que ainda não
havia visto o pai de Lucano, pelo braço para dentro de casa.
— O que houve? — perguntou Nihcolas surpreso.
— Espera.
Poucos segundos depois, entrou desesperado, sem fôlego e com um
semblante diferente da calma anterior o pai de Lucano. Deu um tempo
para se recompor.
— Meu filho! — abraçou Lucano.
— O que foi, papai?

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— Meu filho, você precisa de sair daqui o mais rápido possível!
— O quê? Como assim?
— Me escuta bem, tá bom? Me escuta — estava ajoelhado à altura do
filho confuso. — Foi um erro, foi tudo por causa de um erro! Houve nada
de errado quando você nasceu, fizemos tudo que era de praxe, exames, do-
cumentos e outras incontáveis e necessárias coisas. Uma vez que tua mãe
e eu, finalmente, tivemos um filho, pois nunca havia tempo, aproveitamos
para fazer pesquisas contigo, algumas comparativas, outras, estritamente,
sobre você. Uma das maiores descobertas foi a pesquisa comparativa entre
alguns animais e você: nos levou à incrível conclusão de que nós aprende-
mos diferentemente daqueles, que tanto se aproximam de nós em diversos
níveis — a esse ponto, Nihcolas ficou mais que surpreso, deixando escapar
um risinho despercebido. — Ah, mas é aí que vem o erro, a cegueira minha
e de tua mãe: de tanto nos focarmos nessas pesquisas contigo, acabamos
esquecendo de te levar para tomar outras vacinas, fazer outros exames, to-
dos eles imprescindíveis para uma boa saúde e desenvolvimento corporal.
Você entende? Você, meu amor, é como a evolução, você chegou a um
estágio em que já não é mais necessário tomar vacinas e fazer exames. Tua
mãe e eu percebemos isso quando você tinha cinco anos, foi motivo de
grande alarde nosso, porque sabíamos o que aconteceria a ti caso desco-
brissem isto. Obviamente, mantivemos em segredo, mas, de algum modo,
descobriram. Não importa saber se foi por tua culpa, ou minha, ou da tua
mãe, saber disso não nos ajudará em nada neste momento — lágrimas.
— Ah! de que vale, agora, todo aquele conhecimento? De que vale saber
que somos ou aprendemos diferente dos outros bichos? Inutilidade! Hoje,
vejo, e eu vou sofrer por isso certamente, que nos faltou a incógnita da
vida em nossas equações. E agora? O que fazer quando nossas contas fa-
lharam? Esse desenvolvimento não existe! As nossas crianças nos fizeram
criar abismos dentro do abismo onde caímos até nunca chegar ao eterno!
Ah, meu filho, por favor, perdoe-me por ter de fazer com que você sofra.
Mas, ouça, há uma última coisa que eu posso, e preciso!, te ensinar antes de
nunca mais te ver, é algo que ciência alguma jamais ensinou: acima de tudo,
é preciso que a dor seja benvista. — Nihcolas assistia ao lado de Lucano;
sentiu náusea quando aproximou-se de Lucano a boca de seu pai; sentiu-se
estremecer inteiramente ao contemplar a unicidade de um ato gritante, que
ecoava pela mole de Lucano através de seus olhos; era a única coisa que via:
sentia-se imerso em tamanho estanho. —
— Agora, vá! Que sorte a nossa te ter por aqui! — falou, abraçando

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Nihcolas.
Ambos saíram.
— Mamãe! — gritou Lucano.
Ela o abraçou com muita força e o encorajou a ir sem olhar para trás.
Nihcolas e ela se olharam por um mísero instante. Nunca tinha visto uma
mulher tão bonita, nunca saberia descrevê-la. Puxou Lucano pelo pulso e
correram embora. Quando estavam, relativamente, distantes dali, onde não
se viam detalhes da cidade, enxergaram um motim de pontos brancos na
frente de casa. Começou a chorar, jogou-se com muita força de joelhos no
chão e o socou várias vezes. Nihcolas o puxou com força. Continuaram.

V
Adentraram a floresta densa. Lucano estava destruído, embora Nih-
colas tivesse a impressão de que já estivesse melhor. Mal correram cinco
minutos, Lucano parou e se prostrou novamente no chão a chorar. Nihco-
las tentou levantá-lo por suas axilas, mas Lucano chorou pra pedra, gutu-
ralizando-se rispidamente. Nihcolas abraçou-o, sentindo os vários montes
de suas costelas no rosto, e desistiu, recostou-se no tronco de uma árvore,
sobre raízes que escapavam da terra. O dia principiava seu ápice entrefo-
lhado, e ambiente imergia num amarelo acre. Serenava. Ríctus fechado,
caído calmo aos lados; cabeça em ângulo obtuso, olhares agudos e braços
esparzidos.
Já não se ouvia mais Lucano chorar, mas Nihcolas tinha certeza de
que ainda o fazia. Durou horas. Começou a sentir fome, mas não queria
deixá-lo sozinho. Apressou-se em arranjar comida. Lucano ainda estava lá.
— Trouxe comida. Se quiser, é só pegar.
Não houve resposta, senão o eco abafado de seus soluços. Após
comer, Nihcolas jogou uma ou duas frutas em sua cabeça, para ver se res-
pondia, mas nada. Sentiu, recostando-se na mesma árvore, uma vontade
imensa de dormir, mas não queria deixar Lucano sozinho.
Acordou no crepúsculo, apenas porque sentiu algo cutucando a sola
de seu pé direito. Era Lucano, sentado com um galho na mão. Mesmo após
Nihcolas ter acordado, continuou cutucando-o, olhava o chão com olhos
cerrados. Seu rosto, sujo de chão.
— E agora? — perguntou Lucano.
— O quê?
— Achei que poderia te oferecer uma casa, mas acabei ficando sem
uma também. E agora?

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— Não é tão ruim assim. Você nunca pareceu fazer parte de lá mes-
mo.
— Agora, não há mais o que fazer... E agora?
— Por quê?
— Porque... por causa disso, entende?... E agora?
Nihcolas não replicou, tinha o olhar em outros ruídos.
Lucano experienciou-se, olhou Nihcolas, enfim parando de cutucá-
-lo, levantou-se e lançou-se imóvel pela floresta, sujou-lhe o dorso a abó-
bada terrestre. Olhou, de novo, Nihcolas e sorriu um sorriso devagar, um
luar minguante solitário. Tinha o corpo imaculado de terra.
— E agora? — perguntou Nihcolas, levantado, retribuindo o sorriso.
Lucano o fitou por um pequeno instante e, então, pôs-se a andar.
Nihcolas o acompanhou. E o que mais podiam fazer? O céu já tendia para
o escuro, mas, sós, bruxuleavam auroras nômades.
— Para onde nós estamos indo? — perguntou Lucano.
— Não sei.
— Você nunca sabe?
— Aham.
— Você gostaria de estar indo para algum lugar?
— Pra nenhum.
— Por quê?
— Isso te assusta?
— Um pouco. Eu sempre soube para onde ia.
— Eu também. Quer dizer, já teve um tempo em que eu sabia para
onde ir, por onde voltar etc.
— E por que você trocou isso pelo que você tem hoje?
— Não foi algo que eu decidi fazer.
— Tipo eu.
— Verdade.
Passou-se um instante de silêncio, enquanto andavam alinhados, or-
denados contra o mundo e o caos pluriverso.
— Então, por que não fica em um só lugar?
— Mas, eu estou em um só lugar, só que ele é tão grande que há
sempre novos lugares nele — Lucano o olhou com espanto feliz.
— Posso ficar contigo nesse lugar?
— Lógico!
Chegara a noite. Lucano olhou para cima acidentalmente. Chegou
até a cair no chão, aproveitando para se deixar, de tão abismado que ficou.

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Serenava. Poucas nuvens e algumas estrelas formavam o firmamento. Mu-
dava, tudo mudava, uma roda-gigante de um banco e volta.
— Isso é o céu? — perguntou para o Nihcolas, que se deitara ao seu
lado.
— Ué, você nunca tinha visto o céu?
— Não desse jeito.
— Talvez o céu sempre mude a depender de onde você está.
— Não, você não entendeu: lá, o céu era sempre da mesma maneira,
nunca mudava. Quer dizer, de dia, sim, o céu sempre mudava, mas de noite
não.
Nihcolas sorriu; ficaram um tempo em silêncio.
— Quer passar a noite aqui? — não entendeu bem por que pergun-
tara isso.
— Nihcolas, onde fica esse lugar?
— Talvez debaixo do teu pé.
— Está debaixo do teu também?
— Não sei, é só olhar.
Lucano não foi olhar, estava cansado e distraído demais para deixar
sua posição. Nihcolas se divertia com como ele olhava o céu, um corpo que
transudava novidade, uma estância primeira. Um olhar perdido, suas mãos
se mexiam no ritmo de astros nunca antes mapeados, cantarolava baixinho,
distraído, esquecido uma canção que nunca repetiria.
— Olha, ali, aquela estrela, Nihcolas — ele tentou olhá-la, mas esta-
va embaçado de sono.
Dormiu, apesar de Lucano; o que não o calou. Continuou até sentir
a omoplata envolvida pelo amplexo da imensidão.
Nihcolas acordou durante a madrugada. Parecia ainda estar onírico.
Pôs-se a correr pela floresta, gritava pela mãe, pelo pai, por Zua, pelo tio
Marcos, chorando, pedindo perdão pelo que causou, perderam a mesura
seus passos, esqueceu-se de si o movimento, enquanto a boca havia mus-
sitações, e todos viraram-lhe as costas, exceto o pai, que caiu morto em
cima de Nihcolas, banhando-o de sangue; com o esqueleto de tegumento
rapidamente devorado, olhos ao réu fazendo cócegas em suas bochechas,
lábios e língua, ungindo-o completo os órgãos bolorentos, tornando-se pó,
enquanto beijava-lhe boca árida, e seu rosto tornou-se altar dos fios de
seda de seus cabelos. Viu a cidade irisada em chamas, tentou apagar com o
sangue que o envolvia inutilmente, deu um chute que destruiu a cidade e o
fogo, cinzas. Viu-se sozinho com o escuro. Não fazia ideia de onde estava,

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mas tentou achar o caminho de volta a Lucano. Achou que demoraria,
mas não se afastara tanto. Lucano estava exatamente do mesmo jeito, nada
mudara. Nihcolas tentou dormir também, mas não conseguiu. Lágrimas
queimaram suas faces.
Quando Lucano acordou, estava com uma felicidade inexplicável.
Olhou para o lado, Nihcolas ainda dormindo. Levantou-se rapidamente
e saiu correndo. Queria encontrar comida, sozinho para Nihcolas e ele,
estava cansado de ficar apenas recebendo comida de Nihcolas. Queria pro-
var-se capaz, apesar da pouca habilidade. Andava calmo, olhava ao redor
em busca de uma árvore frutífera. De repente, um animal o alvejava. Tinha
olhos grandes, corpo pequeno, pelo cinza com algumas manchas pretas,
rabo longo balançando, patas pequenas. À medida em que se aproximava
da árvore, onde o bicho estava, soltava espasmos de risada ao tentar ficar
do jeito que estava aquilo.
— Vem aqui, vem. Deixa eu fazer carinho em você.
No entanto, o bichinho sequer se movia. Quando movia, era em
direção contrária da de Lucano, que já estava tentando subir na árvore. De-
pois, o animal não estava mais dando atenção para Lucano, o que acabou
facilitando o trabalho dele, pois conseguiu, finalmente, pegá-lo pelo rabo.
Por um pequeno instante ficou muito feliz, até que a criatura começou a
gritar e arranhar a mão de Lucano, que o soltou, vendo-o subir de volta
e sumir. Ficou sem entender direito o que tinha acontecido, voltando a
procurar comida. O caminho era calmo e caótico. Lucano percebia com
surpresa como a natureza semelhava às máquinas da cidade, nunca parava,
nunca se cansava. Na noite anterior, lembrava-se de ter visto, junto às es-
trelas, alguns insetos e animais voadores. Agora, encontrava outros insetos
e animais: um pássaro comeu uma borboleta; uma minhoca gigante comeu
a terra — abismava-se. Encontrou comida o suficiente, foi comendo en-
quanto procurava o caminho de volta. Um humano comendo as fezes de
árvore e outros produtos do chão.
Nihcolas ainda dormia. Lucano jogou as frutas no chão, sentou-se
ao lado dele e começou a cutucar sua testa. Aos poucos, seus olhos foram
abrindo e viram a imagem de Lucano, convidando-o ao dia.
— Eu trouxe comida.
— Ah, que bom. Nós podíamos ter ido juntos — falou Nihcolas,
sentando-se.
— Não quis te acordar, era muito cedo ainda — ambos comiam.
— Foi difícil encontrar?

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— Um pouco. Só não foi mais rápido porque eu me distraí. Teve um
bicho muito estranho, rabudo, olhudo, pequerrucho, que eu tentei pegar
pra fazer carinho, mas não era lá muito sociável; acabou fugindo.
— Mas, você conseguiu pegá-lo?
— Sim, pelo rabo. Ele tava no alto de uma árvore. Ele começou a
gritar, a me arranhar, a se contorcer todo. Eu só queria fazer carinho nele,
mas ele não vinha de jeito nenhum.
— Entendi. Ele não te entendeu.
— Por que sua voz está estranha?
— Como assim? Ela está normal.
— Parece voz de choro.
— Eu não chorei.
— Mas parece.
— Talvez tenha sido alguma coisa que eu comi ontem, ou o jeito que
eu dormi, sei lá.
— Verdade — ficaram um tempo em silêncio.
— Me diz uma coisa, Lucano, você costuma a sonhar com o quê?
— Sei lá, sempre esqueço.
— Nenhum nunca te chamou atenção?
— Acho que sim, mas não lembro agora.
Nihcolas comeu apenas um pouco de fruta. Lucano demorava. Nih-
colas estava com uma cara estranha, parecia concentrado em algo inexpli-
cável, talvez apenas quisesse ficar com aquela cara. De tédio, nojo, cansaço,
ele estava buscando por algo que refletisse seu rosto, tinha essa curiosidade
estranha, mas não ousava se levantar para procurar. No entanto, logo já
tinha esquecido isto, pois havia um inseto em sua coxa direita, era belo,
com asas um pouco grandes, não muito coloridas; quando Nihcolas pas-
sou o dedo numa das asas, saiu um pó estranho que manchou o seu dedo.
Aproximou-se; as asas faziam um movimento de cima pra baixo, ao mes-
mo tempo em que suas mais ou menos grandes antenas se mexiam desor-
denadamente. Nihcolas tocou nas antenas, que pareciam sensíveis, pois se
contorceram. Em um momento em que as asas iam para baixo, Nihcolas
as agarrou com as duas mãos e as puxou bem devagar, só para ver se elas
eram fortes ou não. O insetinho não tinha mais as asas, contorcia-se de
tal maneira que Nihcolas o jogou longe, talvez não o agradasse mais sua
compleição.
— Não seria melhor matar aquilo? — perguntou Lucano, que vira
tudo.

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Nihcolas deu de ombros. Seguiu-se que Lucano levantou Nihcolas
pelo braço e começaram a andar. No começo do caminho, Nihcolas viu o
inseto de há pouco, ali, esforçando-se para se movimentar por caminhos
por que, pensou Nihcolas, ele nunca imaginou ter de passar novamente.
Pisou nele.
— Ouviu isso? — perguntou Nihcolas, com um sorriso calmo.
— O quê?
— O barulho de algo desaparecendo.

VI
À roda, no tilintar de folhas secas, Nihcolas sentia na planta o líquido
gosmento que, lento, se secava grudar, escamotear mais cada vez o tato.
Lucano seguia de pálpebras baixas e íris buscando o inalcançável acme des-
sa escuridão ciciante. Desapareciam os mapas, o que podia nascer crescera,
havia a impressão de estar encoberto carinhosamente por vidas adiadas.
Estavam descalços, o solo úmido. Lucano repetia que aquele chão não era
o mesmo de sua cidade, muito invariável, que ali era desafiador. Nihcolas
satisfazia-se inexplicável, sem problema e ambiguidade. Seguia desproposi-
tado, provando a quimera das plantas.
— Tem um lugar ali! Olha! — berrou Lucano, assustando Nihcolas
um pouco — O que você acha que vai ter lá?
— Não sei, acho que nada demais. Não estou esperando por nada.
— Por quê?
— Porque eu não sei o que eu poderia ou deveria esperar. Se dizem
que tudo é ter fim, então eu escapei do tudo e agora só erro sem propósi-
to. Não sei, não sei, apenas continuo — respondeu Nihcolas, tronco nu e
pernas feridas. Silenciaram.
— É, acho que, no fundo — falou Lucano tímido —, eu também
penso assim, talvez eu tenha perguntado para saber o que você pensa.
— Fique tranquilo.
Serenavam. O percurso era relativamente longo, mas definido, pe-
queno ponto que lhes trazia aos poucos a luz. No meio, encontraram um
homem velho, sentado numa pedra, com alguns homens ao seu redor. Bar-
ba longa, só de calça. Tinha uma voz muito rouca que tremelicava. Não
chegaram muito perto. Quando o velho os percebeu, saiu de cima da pedra
e foi na direção deles. Os que o ouviam viraram. Os dois ficaram assusta-
dos, pois que não tinham rosto, senão uma lisura amniótica.
— Olá — falou o velho, pigarreando a voz —, vocês estão indo para

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aquele lugar? — apontou. Responderam afirmativamente com a cabeça.
— Pois, então, vocês deviam tomar cuidado. Aquele lugar não devia ser
visitado.
— Por quê? — perguntou Lucano.
— Vocês já ouviram falar na ideia de que a guerra é mãe de todas as
coisas? Eles distorceram-na a tal ponto... São um imenso buraco de sucção
fumante.
Nesse momento, o velho lhes deu as costas e voltou para onde esta-
va. Nihcolas e Lucano deram uma última olhada nos que estavam sentados
ali e logo se puseram a andar de novo. Aquelas palavras, não havia como
fazer sentido para os dois, não se intimidaram.
O caminho desverdecia. Na cidade, de novo, tudo muito ordenado,
as casas semelhantes, havia um considerável número de pessoas na rua,
máquinas. Chamarizes em todos os lugares. Crianças em um quarto de
casa mexiam em máquinas. Cores vistosas, muitos inhos misturados a sen-
sualidades de projetos políticos fadados a vitórias sem escol. As pessoas
evitavam o olhar, como que por atavismo.
— Quem são vocês? — perguntou um rapaz mais velho com uma
menina ao lado.
— Nunca vi vocês por aqui — falou a garota —; vocês deviam cair
fora.
— Eu sou Nihcolas e ele é Lucano. Por quê? Acabamos de chegar.
— Quanto mais cedo, melhor — falou a menina.
— Por que vocês não mostram o lugar pra nós? — perguntou Lu-
cano.
— Vocês deviam ouvi-la — falou o rapaz.
Ambos foram embora. Lucano foi atrás deles, mas Nihcolas o impe-
diu. Não entenderam, não queriam sair. Nihcolas parecia desinteressado,
modorrento, embora excitado qual Lucano, que fazia, às vezes, uma cara
careteada. Por toda parte, havia pessoas olhando-os, meneando a cabeça,
bufando, apontando, algumas por detrás de janelas. Os dois olhavam os ce-
nhos cerrados, surpresos, tolhendo-lhes o passo. Rua ambígua, irregulari-
dade regular, Lucano estranhava mais que Nihcolas, mais acostumado que
era, haver uma rua de tal tipo, a uma perfeição imperceptível. Cada passo
soava alto como se sobre si galgassem. Aquele povo aturava que os antigos
defeitos piorem, mas não venham novos. O que fazer quando aberrações
ambulantes não têm semancol? Talvez fosse preciso lhes dizer, mas é pou-
co provável que fosse alguém daquele povo, imensa carantonha, retorcida

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leprosamente sobre si, expondo vaidosa suas espurcícias.
— Por que tudo isso, hein, Nihcolas? As pessoas nos odeiam aqui.
— Talvez seja melhor você se acostumar.
— Em todo lugar que formos vamos ser recebidos assim?
— Não sei, mas é bem provável. Mas, você não está achando diver-
tido?
— Acho que sim.
— É, aos poucos você se acostuma, aí você aprende a se importar
menos.
— Não me importo, só queria saber.
— Pra curar?
— Acho que não.
Ouviram o barulho de uma sirene. Algo estava sendo dito, mas eles
não entendiam, então ficaram parados tentando entender. Duas pessoas
puxaram os dois, obrigando-os correr. Perceberam que eram o garoto e a
garota. Aos poucos, começaram a entender o que estava sendo dito: “Se-
gundo a lei..., parágrafo 19..., do ano de..., vocês estão presos, têm o direito
de..., e... recusarem a fazer isso, ...ndo o direito do uso da força.” Não
pararam de correr; Nihcolas e Lucano não resistiram. Estes viram que ha-
via homens largos aproximando-se e também máquinas, que derrubaram
todos no chão. Nihcolas sentia o chão liso como repleto de pedregulhos,
mirava o rosto cerrado e repleto de dobras de Lucano a alguns centímetros.
Os homens começaram a espancar o rapaz e a menina, seus gritos tão al-
tos como os ataques. Nihcolas e Lucano foram levantados e conseguiram
ver grande parte da maçada, logo estavam dentro de uma das máquinas,
que, imediatamente, se pôs em movimento veloz. Ali, era impossível ver
qualquer coisa dentro ou fora. Sentiam certa pressão contra eles, o teci-
do mole do banco parecia querer engoli-los, pareciam estáticos, apenas
quando saíram notaram estar em outro lugar. Abriu-lhes a porta um ho-
mem, mostrando-lhes o caminho com a mão direita, estendida a um prédio
casamatado. Havia uma incompreensível alegria, que vinha por pequenos
movimentos bruscos. Era uma construção grande, adornada de insígnias e
uma placa por cima de todas elas, escrito estrangeiramente: “Pela sociedade
que queremos.”
— Por que vocês têm isso aí escrito? — perguntou Lucano, não para
Nihcolas nem ninguém, apenas soltou a pergunta.
— Não é óbvio? — respondeu um dos homens — A frase não se
explica?

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Ambos calaram medrosos. Foram levados para uma sala, onde foram
sentados. Disseram para esperar (não entenderam o nome), que trataria do
caso deles. Houve algo de ameaçador no tom. Estavam numa sala de co-
loração turva, retangular, confessionário sacrossanto, numa claustrofobia
que apresentava duas pessoas, que os ajudaram sendo espancadas, o chão
figurava uma aquarela rubrivivante. Enterneciam-se com rara sinceridade.
Nihcolas cada vez mais longe, transportado para perto daquelas duas afli-
ções em conjunto, esborrifando-se ao chão espocante, ouvia-se e via-se,
pintar o próprio espetáculo que excedia sua moldura, enquanto Lucano
formava-se em paralelo.
— Vocês dois sabem por que estão aqui? — entrou perguntando um
homem. — Se não sabem, deviam saber — começou a falar sem chance
para respostas. — Vocês estão aqui porque existem. Acho que vocês não
entenderão. Quis dizer que, por vocês terem colocado a existência de vocês
aqui, vocês estão aqui. Vocês entendem isso? Quer dizer, vocês entendem
como pode a simples presença, o simples fato de vocês respirarem, ser
motivo de vocês estarem aqui e terem feito duas pessoas que tentaram aju-
dá-los entrarem em coma? Não havia, realmente, outra opção, senão a de
vocês estarem aqui agora, pois tudo o incômodo, isto é, o que é incômodo
para a pólis, como é o caso, é um empecilho para chegarmos ao ideal de
cidade que queremos. Entendem? Tudo aquilo que nos faz transpirar deve
ser combatido com unhas e dentes. Vocês já devem ter visto que as pessoas
daqui não são de agir diretamente até certo ponto, e elas estão certas, pois
como pode alguém não entender o incômodo que causa a partir de todas
as micromensagens que passamos a essa coisa ruim? Quer dizer, vocês
não conseguiram perceber isso? Mas, como? Todas as caras feias, todos
os cochichos, a sirene, o aviso? Vocês acharam que era o quê? Nós não
estamos aqui para brincadeiras e não é à toa que vocês não acharão, aqui,
nunca uma criança ou jovem na rua, perdendo tempo. Se acharem, serão
apenas crianças daquela laia que pouco se importa com a cidade, nosso lar,
nosso sonho; são estas pessoas que não mostramos tipo algum de pieda-
de, já que elas, também, não sentem compaixão nenhuma ao destruírem
o nosso sonho, pois este é o sonho da maioria. Por isso são espancadas,
mortas, torturadas, não importa, o que importa é que as pessoas entendam
que todos têm de trabalhar juntos. Só por isso que eles ainda existem na
condição subdesenvolvida em que estão, pois eles são pobres, moram lon-
ge do centro, que é o lugar que pensa. Se eles, simplesmente, calassem a
porra da boca, nos ouvissem e, finalmente, entendessem que temos razão,

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pois temos razão com certeza, então tudo isso aqui seria desnecessário,
todo esse dispêndio de energia, que só se faz necessário por causa deles,
poderia ser direcionado para coisas mais elevadas, mais úteis e urgentes,
porque, ah!, se vocês soubessem o quanto ainda temos a desenvolver. Há,
aqui, um mito sobre uma cidade que é exatamente assim, ó: não há pobre-
za, ignorância, polícia, violência, mas só inteligência, igualdade, felicidade,
estudo. Ah! será que vocês entendem o quanto esse mito nos fortalece,
rejuvenesce, revigora? É preciso, senão o homem morre. São poucos os
que conseguem sobreviver. Há muitos que fingem não ter um e se colocam
acima de todos nós, os outros, que precisam. Na verdade, quando surge
esse tipo de pessoa, ela acaba se tornando um mito, porque assim é que
funcionam as coisas. Vocês, pensando bem, poderiam ser algum novo tipo
de mito, mas não podemos permitir que vocês engendrem esse tipo de
coisa aqui, porque não é do que precisamos agora, e a maior prova disso é
que o povo rejeitou vocês, eles não querem se abrir, agora, para qualquer
nova possibilidade: a sociedade quer se tornar seu mito próprio. Vocês não
fazem parte da sociedade, então devem ser excluídos. Como dizem, pólis
sem poliscelia. E então, como vai ser? — ecoava, onilateralmente, o dis-
curso arrastado desse homem de feições sem boca e olhos quase fechados,
tamanha era a barba de seu corpo rotundo, parecendo precisar seu corpo
todo de respirar para manter-se.
Ecoava longe, diminuindo, e os dois, fundidos no vaivém do som
com pequenas danças de dedos, já sem significado, esperançosos do fim.
— Se a gente sai ou não? — perguntou Nihcolas — Lógico que
sairemos, não há problema algum. Pra falar a verdade, estamos cansados já
desta cidade. Ela é muito sem graça. Acho que é por isso que a gente estava
ansioso para vir aqui, talvez algo pudesse acontecer, algo que chamasse a
nossa atenção. Até chamou, mas dá pra ver pela cara dele — apontou pro
Lucano — que não foi o suficiente. Então, vocês podem ficar com seus
planozinhos que isso pouco importa.
Os dois se levantaram, tinham a feição mole e foram em direção a
porta.
— Pera aí, pera aí! — gritou o velho antes que abrissem a porta,
numa eclampsia de gestos — Então é só isso? Quer dizer, vocês acabam
aqui, assim, sem mais nem menos? Vocês só vão embora, mesmo depois
de terem ouvido tudo o que eu falei?! Como ousam não querer fazer parte
de nossos planos?! É exatamente desse espírito que a cidade não precisa;
sei que, no fundo, vocês quererão se juntar a aquela gentinha que quer nos

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destruir! Querem sair daqui o mais rápido que puderem só para ajudar
aqueles dois degenerados! Pois saibam que eu não vou deixar que esse
tipo de coisa aconteça enquanto eu estiver vivo, vocês deviam estar nos
ajudando, lutando a favor do ideal, da meta, deviam proteger a cidade com
unhas e dentes, pois este é um bom ideal, uma boa meta, algo que vale a
pena! Crianças, como vocês, têm de aprender desde cedo pelo que devem
e não devem lutar, pelo que devem e não devem sentir orgulho, amor e
compaixão. Vocês nos abandonam porque não conhecem o que ansiamos
em toda a plenitude, são superficiais, na verdade, sequer são superficiais,
pois não têm os pés no chão!
Pudera os dois sair e deixar o velho sozinho.
O velho continuou, estendendo a bocarra para todos os cantos, es-
torvando os dedos nas barbas, fazia exercícios breves de genuflexão ar-
dentemente furiosa, revelando sua calvice ladeada de cercas grisalhas. Os
dois ouviam oculabertos a dança exasperada de ventre subindo e descendo,
escancarando os portões das sublimes ideias sociais em intervalos de atmos
fugidios, inflando e esvaziando.
Ah! Como pensavam no absoluto, no eterno da realidade por ações
de surpresas joviais. Era o momento de maior aletédio. Pareciam agrade-
cidos por este, como o mais valioso, repetitivo e pouco valoroso de todos
os acontecimentos. Como poderiam estar de outro modo? Como mais co-
nheceriam tal cidade e planos? Como mais escutariam o que escutaram?
O corpo atinge sua apoteose na grandeza de saber descer-se. Como numa
grande vingança, ele continuava falando, tornava-se mais nervoso, irado;
os dois, aos poucos, voltavam, para se deparar com uma imensa canalha
de verborragia cega. Não queriam mais continuar ali, aquele espetáculo de
horrores causava-lhes nojo e piedade odiosa. Lucano com as duas mãos
enxaqueca jogou-se com os joelhos no chão, contorcia-se como sentisse
um prego. Imediatamente, Nihcolas começou a gritar e bater com a cabeça
na parede, parando depois de um momento, deixando-a encostada ali com
força, escorregando para lesma até ficar de joelhos. Gritavam desespera-
dos. O velho ainda falava, não respirava. Ninguém jamais ousaria entrar
ali. Aos poucos, os gritos, os movimentos, os gestos, a respiração, tudo se
tornava mais silencioso, sereno, imóvel, formando o grande final da pior
ópera. O velho se sentou no chão, os dois imóveis, e ficou olhando o teto.
Ele sentiu, mas não se importou, o chão todo molhado; talvez fossem as
lágrimas de Nihcolas e Lucano, que estavam com os olhos excessivamente
secos, as bochechas um pouco vermelhas e úmidas. Precisavam apenas que

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um deles se movesse para que pudessem sair dessa imobilidade, desse si-
lêncio, dessa angústia túmida. Ninguém ousaria. Nihcolas e Lucano haviam
levantado, saíam com um sorriso insciente, mas, antes, viraram-se e ficaram
olhando onde estavam.
— Coitados, pobres coitados, eles são burros e pobres, não fazem a
mínima ideia de nada. A culpa é nossa, pois não os educamos. Temos de
forçar, temos de enfiar os nossos sonhos em suas cabeças de vento; são
como crianças, não entendem que queremos ajudá-los. Olhe ali! Olhe! Eles
moram em barracos, têm chão de terra batida, andam descalços, morrem
por causa de doenças que nossas crianças nunca ouviram nem ouvirão
falar, eles fedem! Nós temos de enfiar nossas ótimas e avançadas ideias em
suas cabeças. Quer dizer, sei que eles não aprenderão de uma só vez, talvez
seja preciso que uma nova geração venha para obliterarmos qualquer res-
quício desse tipo de mentalidade. Lutamos “pela sociedade que queremos”!
Saíram, e pouco antes de irem à rua ainda conseguiam ouvir o ser-
mão do velho, que tomava proporções cada vez mais proféticas e escan-
dalosas. Havia ninguém para os impedir de ir embora. O Sol ainda estava
forte, o céu anuviado; não ficaram tanto tempo. A rua deserta, exceto por
um maltrapilho, que andava com uma vela acesa na mão.
— Sh... — ciciou ele com o dedo indicador na frente da boca, vi-
rando-se para os dois — É preciso luminar o caminho, bem pouco, sem
assomos, o suficiente para que possamos andar por alvedrios. Sh... — con-
tinuou andando vagarosamente, cuidadoso pelo campo minado.
Lucano ficou com uma cara de dúvida imensa, olhos abertíssimos,
que acompanhavam o maltrapilho. Nihcolas manteve-se impassível, se-
guindo-o por um pequeno tempo também. Desceu as escadas; Lucano
ficou para trás, pondo-se logo a ir ao lado dele, oposto ao do maltrapilho.
— Pra onde vamos? — perguntou Lucano, quando o alcançou.
— Não sei. Talvez a gente saia daqui. Por quê? Você quer ficar aqui
mais um pouco?
— Acho que sim.
Flanerizaram pelas áleas de pessoas que se abriam fugidias. À me-
dida que iam, a rua alçava-se mais de pessoas que os atravessavam com
o máximo de asseio. Pararam defronte a um prédio simétrico. Entraram;
Lucano perguntou algo a uma mulher atrás de uma mesa e pegou Nihcolas
pelo pulso, distraído com o cheiro agudo e as paredes de cor ocre. Anda-
ram bastante por um corredor sem fim, portas fechadas. Entraram em um
quarto. Nihcolas reconheceu no mesmo instante as duas pessoas dormin-

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do nas camas, embora suas faces fossem sinédoque de seus corpos, avivan-
do a saúde da luz que invadia, num silvar de respirações, viração frágil que
rondava o quarto. Deu um passo, enquanto Lucano impulsou-se adentro e
mirou-os de perto. Tentou acordá-los. Abraçou-os e, então, sobre o peito
da menina arfando fraca, olhou para Nihcolas.
— Vamos embora.
Lucano saiu do quarto; Nihcolas fechou a porta. E o crepúsculo
quando saíram do prédio.

VII
— Não é verdade que alguns lugares são mais bonitos de longe? —
falou Nihcolas. Lucano olhou para a cidade por algum tempo.
— Nossa, é mesmo! Lá, tudo era muito feio, mas, daqui, até dá pra
ver por que quisemos ir lá.
— Acho que eu teria ido mesmo que fosse um lugar feio de se ver.
— Mas, daqui, é muito bonito.
Estavam a alguns poucos metros da entrada da cidade; o ar respirava
fresco e o chão estava rígido. O céu havia nuvens altas prolongando uma
profundeza tétrica, em pugna contra o anil. Ambos estavam cansados e
esfomeados. Encontraram algumas frutas e insetos e roubaram água.
— Você está cansado? — perguntou Lucano.
— Fisicamente?
— Também.
— Estou sim. E você?
— Cansado pra caramba também. Queria estar em casa.
— Eu também.
— Mas, assim, nós nunca nos conheceríamos.
— Então, você não queria estar em casa?
— Queria, mas contigo lá também.
— Mas, aí, eu que não estaria em casa.
— Ah! Então, que nada fosse diferente!
— Sério? — sorriu.
— Sim — encheu a boca de comida.
De repente, lá longe, um fogo bem fraco, andante, aos poucos se
extinguia. Os dois olhavam o homem que vinha e se sentava junto a eles.
— Você é o cara que vimos dentro da cidade com a vela? — pergun-
tou Nihcolas.
— O mesmo que vocês viram antes de entrar ali — os dois ficaram

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impressionados, não se pareciam.
— Quer comer? Ainda temos algumas frutas — falou Lucano. Pe-
gou duas frutas e nenhum inseto. — Você não gosta?
— É que não estou com tanta fome.
Nihcolas e Lucano, que já haviam comido, se deitaram de barriga
para cima no chão, olhando o céu, que cedia às sombras de nuvens. O ho-
mem não se deitou, ficou sentado. Um silêncio sonolento, não dormiam.
— Acho que preciso falar algo — começou a falar, repentina e cor-
tesmente, o homem —, talvez mais de apenas um algo, quem sabe. Bem, eu
já li diversos livros, muitos mesmo, mais do que devia, o que acabou sendo
um erro, pois os maiores aprendizados vieram de outras fontes, impro-
váveis, impossíveis, mesmo erradas, segundo os mesmo livros que li com
amor não correspondido. Hoje, eu chego a pensar que muitos, por mais
que digam ensinar o que deve ser feito, têm o efeito certo somente se os
elevarmos a menos um, se os lermos de cabeça para baixo e, principalmen-
te, se ouvirmos os cantos entoados quando lhes ateamos fogo. — Nihcolas
imaginava estar sonhando — Não é justo o que o homem faz consigo
mesmo: obriga-se, monta ou vai a uma prisão por vontade própria, mas,
quase sempre, não dá aos livros o tratamento que eles, de fato, merecem,
que sempre depende de como ele e o livro se relacionam. Há livros que nos
ferem sem sequer sorrir; os que sorriem são aqueles que merecem o maior
carinho. Até quando seremos nós apenas vítimas? Quando iremos nos tor-
nar verdadeiros assassinos sorridentes, sádicos e felizes? Quando pode-
remos, enfim, nos transfigurar em anjos decaídos e monstros? Criamos a
ciência da limpeza, do puro, aprendemos e ensinamos a amar, reconhecer e
criar o belo, o demasiado luminoso. Mas, agora, eu quero a ciência... a ciên-
cia da lama, o aprendizado pela pedra, quebrar o pescoço numa partícula
de poeira. Quero algo como vocês, sujos, e não conseguem saber que estão
sujos, uma brancura enlameada, o feio que ainda tem estética, ou que ainda
é estética, pois o importante é que esta nunca se perca; e isto é algo que
muitos livros só aprenderão em sua própria obliteração e reconstituição,
pois não é permitido a um sopro de vida desaparecer, ele vive eternamente,
ainda que só de brincadeira.
— Grandes esperanças — bocejou Nihcolas, antes de cair no sono.
Lucano desmaiou de sono. De manhã, o revigoramento espreguiço-
so alongou-se por certas coisas interessantes e um pouco dolorosas: eles
tinham escondido um pouco de comida para comer de manhã, ela sumiu;
os dois estavam pelados, sendo que suas roupas estavam ali ao lado deles,

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jogadas de qualquer jeito; Lucano gritou de susto ao ver que Nihcolas esta-
va com sangue no rosto, fazendo com que ele começasse a sentir a dor des-
te machucado, que estava latente; Nihcolas gritou também quando Lucano
foi pegar sua bermuda e viu que havia sangue em sua coxa direita, seguiu
rapidamente com os olhos a trilha e percebeu que o sangue saía de suas
nádegas, nenhum dos dois entendendo o que aquilo significava — Lucano
sentiu um pouco de dor quando Nihcolas separou suas nádegas —; o ho-
mem não estava mais lá. No entanto, havia uma trilha de pés no chão que
levavam claramente para a cidade. Ah! ele era um enviado do velho do ser-
mão! Mas saber a procedência de algo não muda em nada, não acrescenta,
só serviria a eles como curiosidade, um saber inútil, que logo esqueceriam,
caso o rancor firmasse os pés. Ah! quanto saber para tanto esquecimento.
Lucano encontrou uma poça de água e limpou o sangue de sua coxa e bun-
da. Nihcolas se limpou também, mas um filete de sangue insistia no rosto
de novo, não o limpou. Foram procurar comida.
Acreditavam entrar por onde chegaram. Lucano se lembrou de sua
cidade, sua casa, seus pais, que, com certeza, não estão mais lá. Sentiu von-
tade de falar sobre isso com Nihcolas, vontade que a cada passo se esvaía.
Estava irritado com a dor de andar. Ainda tentava entender o que acon-
teceu, por que nem ele nem Nihcolas acordaram. Talvez tivessem, mas o
sono era tanto que voltaram a dormir. Pelo menos, o sangue não escorria
mais; começou a imaginar a dificuldade que será defecar, estremeceu só de
pensar. Animou-se ao ver Nihcolas alegre. Estava com um rosto leve, pro-
curava comida. Alguma coisa crescia, florescia nele, algo que, para Lucano,
e até para Nihcolas mesmo, contagiava para o melhor. Não sentia muita
fome, queria ajudar Lucano a achar comida, queria andar simplesmente,
sua cabeça ainda estava machucada, saía sangue ainda, alguns pingos iam
ao chão, outros caíam em si, precisava se distrair.
O solo estava úmido. Os pés afundavam, andar se tornava mais pra-
zeroso e também deixava rastros, que Nihcolas, um torcicolo, virava para
ver como estavam. Não demorou para Lucano perceber o que estava fa-
zendo e imitar. Seu pé era um pouco menor, coisa que resolveu mudando
o passo. Nihcolas não deixou por menos. Em breve, os pés tinham variadas
formas, a depender da maneira e força de cada um. Finalmente, conse-
guiram achar comida, mas não pararam, preferiram fazê-lo andando. Não
estavam mais prestando tanta atenção em suas pegadas, mas não deixaram,
também, totalmente de lado essas maneiras novas de andar e marcar o
chão.

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— Ei! — falou Lucano — Não está com fome, não?
— Não. Você quer? — estendeu a ele.
— Eu não, estou cheio já — levava algumas frutas consigo.
De repente, Lucano jogou as frutas e deu um tapa na cabeça de
Nihcolas e saiu correndo. Ele se sentou e começou a chorar, falando que
Lucano não devia ter feito isso, porque a cabeça dele estava doendo. Pôs
a cabeça entre os joelhos e os braços ao redor. Lucano parou e foi vê-lo,
preocupado. Quando se aproximou, Nihcolas, rapidamente, segurou-o nas
panturrilhas e o fez cair no chão de bunda. Levantou-se rindo e começou a
correr. Lucano correu atrás com certa dificuldade. Jogou-se em cima dele,
fazendo com que Nihcolas se sujasse de lama. Este pegou a lama com as
duas mãos e esfregou na cara de Lucano. Ambos riam bastante, estavam
deitados no chão. Só então perceberam que não havia mais Sol. Aprofun-
daram-se tanto na floresta que estavam em um ponto onde as árvores são
muito densas e não o deixavam penetrar direito. Cedo que ainda era, res-
tavam gotas de orvalho nas folhas das árvores e nas do chão. Algumas se
desprendiam. Algumas caíam neles.
— Será que o rocio são as estrelas do dia que surgem, depois dessur-
gem e depois ressurgem? — perguntou Lucano.
— Talvez as estrelas sejam rocio que ainda vão cair em nós — falou
Nihcolas. Ambos tratavam a questão com seriedade lúdica.
— Será que elas vão demorar? Ou será que elas já caíram e nós não
percebemos?
— É verdade, existem estrelas demais para sabermos quando uma
finalmente cai.
— Elas são mais bonitas quando não caem.
— É, acho que sim.
Junto às estrelas do dia, veio um vento fresco e ruidoso, que, por
vezes, assustava-os. Provocava sons agudos que se escondiam atrás das ár-
vores ou em suas copas. Alguns gritavam alto demais, outros sussurravam;
uns faziam as gotas de rocio viajar, outros dançavam para escapar do toque
destas.
— Você fica triste — virou a cabeça e perguntou Lucano — em sa-
ber que isso acabará alguma hora?
— Ficaria triste se isso nunca acabasse. O legal disso tudo é poder
ver o que vem depois.
— E o que tem depois?
— Não sei — Lucano virou-se de volta.

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— Você nunca sabe — riram.
Tudo diminuía, os corpos molhados e uivantes perdiam suas for-
ças. O rocio havia ou caído, ou secado, algumas partes de seus corpos
estavam úmidas, como se estivessem suados. Só o humor noturno não
mudara, um aspecto macabro à floresta em pleno dia. Agora, apenas, é que
eles viam de verdade onde estavam. Pelo caminho, fachos clarividentes de
luz chamavam a atenção de Nihcolas, acostumado aos indescritíveis desde
que adquiriu novo teto. Somente agora perceberam quão grossos eram os
troncos, o que explicava por que havia mais raiz e barro do que plantas ras-
teiras. Havia fungos ao redor. Lucano nunca vira fungo daquele tamanho,
perguntou-se se era possível que um deles pudesse destruir uma árvore.
Nihcolas respondeu que era provável, já que a árvore não pode se defender
nem mover, ela teria de aguentar todas as penas, como ter fungos aos pés,
por não deixar que nenhuma outra forma de vida crescesse consigo. Riram.
Para ajudar a ver melhor, apareceram insetos luminosos, que ficavam ou
indo de um lado ao outro lentamente, ou paravam no ar com pequenas
variações de movimento. De algumas árvores, saíam galhos bem próximos
ao chão, alguns deles com uma ou mais bifurcações, outros não. Ouviam-se
barulhos noturnos.
— Por que será que a noite não quis sair daqui? — perguntava Lu-
cano atônito.
— Bem, em algum lugar ela tinha que ficar, né? Vai que seja ela tam-
bém, a floresta, que a cativou — falou Nihcolas, olhando de um lado para
o outro tudo o que conseguia.
De repente, Nihcolas diferenciou algo, um barulho um pouco agudo,
prematuro, aumentando aos poucos, tornando-se mais selvagem, rouco,
que, enfim, explodiu ao lado dele, pareceu, ecoando floresta adentro. Nih-
colas virou-se e percebeu o que era: Lucano, que olhava para frente, à es-
pera. Sons se juntaram ao grito e os ecos, desde gorjeios até urros, pisadas
na água, quedas, como galhos, zumbidos e outros cantos.
— Por que você fez isso? — falou Nihcolas, rindo de susto e, logo
após, gritando também na mesma direção que Lucano.
— Eu sempre faço isso de noite, senão não consigo dormir.
— Ué, mas você quer dormir agora?
— Não.
Continuaram. Quanto mais adentravam, mais Nihcolas se lembra-
va dos sonhos, principalmente o último, em variações consideráveis. Aos
poucos, Nihcolas começava a ver suas concretizações à sua frente, todas

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as formas de uma cidade ser destruída, um pai morto, uma mão abando-
nada, uma amiga contando todos os jeitos com que ele matou seus pais
com naturalidade, um olho gigante tornado real, e seu próprio corpo ver-
tido em substâncias pequenas, inofensivas e mortais. Ele devia se tornar as
cinzas da cidade que queimava; ele devia ser varrido com o vento, como
grão único de cinza, vivendo eternamente, pois comemos fezes e tomamos
urina sorrindo, mas nos recusamos a engolir, tragar poeira ou cinza das
transgressões. Há muito mais medo do que não se vê: tem a seu favor toda
sorte de fantasias dos relatos. Nihcolas (e Lucano com certeza) tinha ouvi-
do muito poucas superstições para ficar sob o controle delas ou se deixar
influenciar (vale notar que os dois nunca chegaram à idade dos estudos da
moral) e, por isso, possuía uma relação muito próxima com os fantasmas.
Nihcolas não podia deixar de admitir certa bonança, não só pelo fogo con-
sumidor, uma vez que esse erotismo é inevitável, mas porque era um dos
únicos momentos em que via quem amava; acenavam para ele sorrindo,
um último momento antes da morte repentina, como é toda noite.
Bastava entrar nesses estados, ele começava a gesticular e andar di-
ferentemente. Lucano regozijava-se, segurando o riso. Às vezes, dava uma
empurradela em Nihcolas, o que, grande parte das vezes, não surtia efeito.
Deixava-se distrair.
— Você já reparou — começou a falar Lucano quando percebeu que
Nihcolas voltara — que a nossa pele fica vermelha quando nos coçamos?
— Sim.
— Deve ser o modo que a pele encontrou para deixar seu sangue
sair.
— Por quê?
— Porque o nosso sangue é vermelho — Nihcolas ficou pensativo.
— Ah, entendi. Talvez a nossa pele que coça morra para que apareça
uma outra pele que não coça, até que ela vai coçar e ser morta — Nihcolas
falou isto de maneira demasiado seca. Mas Lucano não se surpreendeu,
sabia que ele ficava assim depois de louco.
— E por que nós matamos ela?
— Porque senão ela nos mata.
— Morrer por causa da pele? Nossa...
— Uma vez me contaram que quando morremos viramos rosas.
Outra vez, que viramos estrelas. Você acredita nisso? Outra vez, que nos
tornamos seres sem corpo.
— É engraçado... — Nihcolas o interrompeu, mas Lucano o inter-

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rompeu — Pra falar a verdade, nunca pensei em morrer — ficou olhando
para si mesmo.
— Eu nunca acreditei nisso.
— Por quê?
— Acho que o dia devia começar às cinco da tarde.
— Como assim?
— Porque, aí, o Sol não estaria tão forte para fazer sombras. As
sombras são espelhos.
— Mas, por que você nunca acreditou naquilo?
Nihcolas não respondeu de imediato, parecia perder os resquícios
de seu estado anterior. Começou a andar mais lentamente, esboçando um
pequeno sorriso e olhando o chão.
— A terra pode se transformar em água? — falou Nihcolas.
— Não.
— Mas, ainda assim, a terra pode viver sob e sobre a água, né?
— Também no mesmo nível às vezes.
— Verdade.
Daí, muito tempo se passou em silêncio natural. Parecia reinar uma
tristeza mínima e desconhecida de ambos, como se ela fosse um verme que
penetra, em velocidade própria, em qualquer construção, seja de pele, seja
de chão. Caminhavam e solfejavam como se estivessem presos a um anzol.
— Sabe por que não acredito? — ziguezagueava — Porque isso pou-
co importa.
Lucano não respondeu, parecia não se importar mais também. Sem
Nihcolas perceber, ele foi se aproximando bem devagar deste, olhando-o
de soslaio.
— E agora? — perguntou Lucano tão baixo quanto pôde.
Nihcolas ficou em silêncio.
— O que acontece quando queremos nada?
— Não sei — igualmente.
— O que será que a noite quer aqui? Por que o Sol não a deixa
em paz? — Nihcolas olhava-o silenciosamente — Talvez a gente só esteja
mentindo quando dizemos esse tipo de coisa.
Viam-se diante do fim da densidade. Aos poucos, sentiam que o
chão secava e já havia plantas rasteiras, que faziam cócegas. Quando es-
tavam quase na saída, Nihcolas correu e se pôs a olhar diretamente o Sol,
abrindo os braços e a si numa cruz alegre. Lucano estava ao lado. Um Sol
fraco se punha.

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— Bonito, né? — falou Lucano. Ambos continuaram a andar.
— Bastante.
Neste momento, nenhuma flor nasceu, nenhum pássaro cantou, ne-
nhum brilho se intensificou, nenhuma canção começou, nenhum mistério
se deixou resolver, mil seres nasciam e outros mil morriam na mínima
importância, nada sentindo pelo que acontecia — passava conforme um
brutal desinteresse inocente. Aconteceu, apenas, de um bichinho que desli-
zava molhado começar a escalar uma das pernas de Lucano. Pegou-o com
a mão, ficou olhando-o por um bom tempo, cada parte de seu corpo se
contorcia, tentando achar a superfície, até que o sugou para dentro sem
mastigar, convidando a viver dentro de si.

VIII
Os dois, de alguma forma, pensavam estar andando em linha reta,
seguindo um só caminho, para frente, mas muitas vezes transviava por uma
dança ou passo em falso, causados pelo que sentiam e viam, que é como
pensar e ouvir. O chão, aos poucos, se atapetou de uma névoa rasa, de as-
pecto gelado para as plantas, como se transpirasse. Perceberam, então, que
a paisagem inteira na qual se entretinham estava na neblina. Viam-se ape-
nas sombras de formas, como árvores, pedras, lagartos e pássaros. A noite
parecia durar, um frio úmido cegava as paisagens, aleia de brumas; estava
à hora do crepúsculo. Quanto mais penetravam, mais tinham a impressão
de caminhar sobre uma ponte entre abismos, a névoa ao redor tornava-se
mais espessa; brincaram de não sair da trilha. À medida que andavam, eles
nutriam uma esperança cética. O céu, que, agora, beirava do rosicler para
um azul noturno, de cujo centro espraiaria o negro, restava luz, o que pos-
sibilitou Nihcolas e Lucano verem, um pouco longe, andando em direção
contrária, um homem, parecia com pressa e um quadro, não muito grande,
na mão esquerda. Começaram a pular, balançando os braços, e gritar, mas
ele não os notou, continuando seu caminho até desaparecer da vista dos
dois. Não sem estranhar sua surdez e cegueira, os dois continuaram a an-
dar, tomando ainda o mesmo cuidado de antes para não caírem no abismo.
— Por que é que aquele cara não viu a gente? Gritamos tanto — fa-
lou Lucano.
— Talvez ele seja surdo.
— Você viu também aquela coisa que ele estava segurando?
— Consegui sim, muito estranho. — Lucano inspirou, abriu um bo-
cão e arregalou os olhos.

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— Por que, afinal, tem um abismo em nossa volta?
Quando, então, Lucano saiu do caminho e se jogou no que criam
ser um abismo, mas era chão. Chegaram a olhar para trás para saber se o
homem ainda era visível e alcançável, mas já estava em outros séculos.
Andavam há muito. A paisagem era mistério enfadonho. Hora ou
outra, ouviam barulhos, pisadas, sons da noite.
Pararam. Conseguiram ver a sombra de alguém abrindo uma porta
e entrando. Correram para onde entrara e Nihcolas bateu na porta, ten-
do Lucano batido outra vez pela demora, ou antes, por sua impaciência.
Abriu-se a porta e os dois ficaram boquiabertos, olhando para cima: era um
gigante, deu passagem para que pudessem entrar, como se soubesse que
estavam morrendo de fome e sede. Não olhavam para o lugar, mas para o
gigante gentil que lhes oferecia morada: estava com roupas cinzas, um pou-
co sujas de graxa e lama; tinha o rosto com traços delicados e, também, um
pouco sujo; olhos que revelavam calma, serenos. Os dois, sem esperar mui-
to, começaram a andar pela casa, olhando tudo. Com um pequeno sorriso
no rosto, o gigante se dirigiu para outra direção; seguiram-no. A casa era de
madeira e, apesar de não muito grande, nas proporções de um gigante, era
bem confortável. Andavam por um corredor não muito longo até chega-
rem em um quarto comprido, com uma mesa quase no centro, iluminada
por uma lâmpada e uma lareira. O gigante fez sinal para se sentarem, se
quisessem. Como não entenderam esta última parte, Nihcolas se sentou
imediatamente e Lucano, um pouco depois, pois se distraíra, observando
o recinto. Não o rosto do gigante, visto tão de perto, mas outra coisa lhes
chamou a atenção, havia um relógio d’água. Tentaram puxá-lo um pouco
mais para perto de si, mas não conseguiram pelo peso. Ficaram impressio-
nados com as curvas dos tubos, o modo com que a água se mexia, sempre
sem parar, e como tudo isto fazia o relógio funcionar.
— Olha só como a água é prestativa — falou Nihcolas, cochichando
bem baixo no ouvido de Lucano —, ela nunca vai parar de trabalhar só
para que a gente tenha um relógio que funciona. Enquanto puder nos dar
a hora certa, ela nunca vai reclamar do que faz — Lucano riu com as mãos
escondendo a boca.
Ouviram um barulho, o gigante trazia comida.
— Aguardem um instante, enquanto trago uma bebida quente.
Os dois franziram o cenho não pela voz serena, mas porque falava
em um idioma diferente, muito antigo. Voltou com três copos fumegando.
Era chocolate quente com rum.

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— Sintam-se à vontade para comer o que quiserem.
Dito isto, Nihcolas não tardou a comer, espontâneo, como se fosse
sua a casa. Lucano acompanhou-o. Enquanto comiam mais rapidamente, o
gigante o fazia como se falasse. Lucano olhava a comida enquanto comia;
Nihcolas comia fitando o gigante. Este, percebendo que estava sendo ob-
servado, fez o mesmo. Aos poucos, foi nascendo um sorriso no rosto de
Nihcolas. O gigante retribuiu com um sorriso quase imperceptível.
— Como você sabia que a gente estava com fome? — perguntou
Nihcolas. Lucano levantou a cabeça e começou a observar os dois, ainda
comendo.
— Alguém que cortou o cabelo não precisa me dizer que o fez para
eu saber — falava muito sem gesticular.
— Eu sou Nihcolas. Este é Lucano — apontando-o. — Como você
se chama?
— Nomes! Fazia tempo que eu não ouvia isso de alguém dizer que
possui um nome. Eles perderam sua utilidade com o passar do tempo.
Acho que vocês não entendem, pois estão, ainda, na fase em que é impos-
sível dissociar uma coisa da outra. Vocês se imaginam sem seus respectivos
nomes? Não precisam responder, mas o caso é que não conseguem. Na
sociedade e no tempo onde vivo, os nomes saíram de circulação a partir do
momento em que percebemos que são uma forma de nos transformar em
material seriado. Nossa voz, nosso corpo, nossos gestos ou a falta destes
se tornaram nosso nome; diminui-se o número de seres humanos na Terra;
não temos condições de criar mais de um, de modo que ele possa se tornar
um verdadeiro original, ainda que vivamos tanto.
— Mas pra que tanta originalidade? — perguntou Nihcolas.
— Porque é isso o que nos diferencia.
— Qual o problema com a ilusão?
— Nenhum, ainda que se saiba que se trata ou não de uma ilusão.
Sei de muitos homens que preconizaram e desejaram a morte da ilusão em
prol da verdade, ou, antes, de uma verdade que eles acreditavam ser a única.
Essa originalidade não passa de modo de organização da sociedade em que
vivo. Diz-se originalidade por falta de palavra melhor. Mais importa o uso
sincrônico da palavra, ainda que herde o tempo.
— De onde eu vim, só usamos nomes, pelo que parece, para facilitar
as coisas. Acho que posso dizer o mesmo de Lucano — anuiu. — Vocês
apenas gostam do caminho mais difícil, ou, antes, de um caminho, nem
mais fácil nem mais difícil.

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— Exatamente, mas isso tudo, hoje, pouco importa. Não olhamos
mais para caminhos do passado e muito menos do futuro. Importa-nos
onde os pés tocam, e os olhos focam, e a pele roça ventos. É o único ins-
tante sobre o qual possuímos algum controle, ainda que pequeno.
— Não vale a pena olhar o passado?
— Só se crêssemos que há nele alguma verdade ou mentira. Não há
nem no passado nem no futuro nada além de outros tempos, dias, horas,
minutos e segundos. De que vale olhar o passado se não podemos olhá-lo
de fato? Idem para o futuro.
— Seria como querer ouvir o verme como se ele dissesse algo além
do fato que rasteja. Ouvir no ovo a ave. Sequer diz que será alimento —
falou Lucano.
Enquanto o gigante falava, pois acabou se distraindo, Lucano viu
sobre a mesa, com a comida e o relógio d’água, um livro de aparência vene-
randa. No momento que o pegou e leu o título, “A utopia”, ele se desman-
chou, surpreendendo Lucano deveras, ficou fitando com olhos arregalados
o gigante. Entreolharam-se o que sobrara de seu livro. Aquele gargalhou,
disse, como raramente.
— Qual é a graça? — perguntou Lucano, com o mesmo olhar — Eu
destruí, sem querer, o teu livro. Ele não tinha valor pra você? — diminuin-
do a gargalhada, o gigante, aos poucos, voltou com seu semblante natural,
os olhos ainda mais serenos.
— Não se apoquente. Isto apenas significa que eu tenho de partir e,
finalmente, completar meia dúzia de livros lidos.
— Você o releu tantas vezes assim? — perguntou Lucano, levantan-
do a cabeça.
— Depende. Eu o reli tantas vezes quanto é normal reler um livro.
— O livro acabou para sempre? Acho que não seja possível isto —
falou Nihcolas.
— E não é mesmo. Um livro nunca esgota seu conteúdo, por isso
que o importante é reler (como ouvi dizer), até que morra fisicamente.
Não se deve ler com piedade, senão com um amor mortal e mortífero, que
o deixe tão acabado que lhe baste ser tocado para que se verta em cinzas.
Este é o nível de meu amor. Se todo bom livro possui algo da vida, deve-
mos nos dedicar e ter tempo, e sempre temos, para transfigurar a vida e o
livro.
— E quem não lê? — perguntou Nihcolas.
— Não há verdadeiro herói que seja um ávido leitor; sequer a vida

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seria feliz assim. Por isso, deve-se ler pouco. Aliás, Lucano, você havia me
feito duas perguntas: por que eu estava rindo e se este livro não possuía va-
lor para mim. Nada mais possui valor, apenas tempo. Desvalorizando o sa-
grado, coisificando o que nos envolve, é que pudemos, finalmente, amá-las
porque quisemos, porque elas nos gritaram, pudemos tocá-las e abraçá-las,
apenas com a desvalorização do chão em que pisamos pudemos andar des-
calços. Quando algo é amado por seu mistério, sua negatividade, sua ausên-
cia, sua sacralidade, nunca é possível gozá-lo verdadeiramente. Quando se
olha para os lados e só há abismo, apenas não será possível experimentá-lo
se a vida ainda tiver sobrevalor, impedindo-nos de saber se se trata ou não
de um abismo. Não pensem que a desvalorização é um trato com o negati-
vo. A arte fala comigo: como poderia falar com ela, senão do mesmo modo
com que se comunica comigo, isto é, me tocando? — o gigante, então, per-
cebeu que os dois estavam confusos, olhavam-se — Esqueçam, esqueçam,
nada fez nem fará mais sentido, senão como um ouriço.
Lucano arrastou a cadeira para trás, saiu e começou a andar pelo
cômodo; Nihcolas não deu muita atenção, continuou olhando o gigante e
vice-versa. Desviando, então, o olhar, o gigante olhou pra janela. Lá fora
era noite, a névoa ainda permanecia como antes.
— Olha, a vida passa com uma simplicidade tão grande e fácil. Por
que complicam tanto as coisas? — falou o gigante.
— Talvez seja o jeito dele. O homem também quer brincar, mas teme
usar brinquedos e se sujar. Talvez por isso que ele tenha de criar a ciência.
— Perguntei isso por estar pensando sobre os homens de teu sé-
culo. Desde que sejam felizes (e não são) com os resultados corretos de
suas equações, é o que importará. Quanto a mim, a minha maior ofensa é
desviar os olhos.
— Para onde?
— Para onde tenha amor, que não é onde eles estão.
Nihcolas, que, até então, fitava o gigante, olhou na mesma direção,
com o cotovelo esquerdo apoiado na mesa e a cabeça na palma da mão.
Por trás da janela, conseguia diferenciar poucas coisas, como seus reflexos.
Havia tempo desde que se vira. Percebeu quão sujo estava, manchado, o
cabelo oleoso e longo, a bermuda com um pequeno rasgo na coxa direi-
ta, os joelhos com sangue e feridas, a sola do pé esquerdo com pequenas
cicatrizes, a testa com um pouco de sangue na parte direita até o meio do
olho; não sabia se estava mais magro. Via que também Lucano estava sujo,
andando de um lado para o outro, totalmente sarado. Nihcolas sorriu, vi-

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rando-se, logo após, para o gigante.
— O que você estava fazendo para estar sujo desse jeito? — pergun-
tou Nihcolas.
— Trabalhando no que gosto de fazer — Nihcolas esperava que fos-
se continuar. Ouviam-se apenas os passos de Lucano, martelando o chão.
— E o que é?
— Nada demais, apenas alguns reparos que eu faço no que precisa-
rem. Apesar de termos muito tempo de ócio, pois não temos nenhum tipo
de política contra a qual lutar nem deveres, eu, pelo menos, gosto de fazer
uma coisa ou outra para provar que meus braços e pernas ainda funcionam.
— E se não funcionassem?
— Eu seria como a maioria da sua época — Nihcolas riu, abaixou os
olhos, qual tentasse encontrá-los.
O gigante se levantou, pediu que esperassem enquanto tirava a mesa.
Os dois fizeram menção de querer ajudá-lo, mas já tinha tudo nas mãos.
Olharam-se os dois por um momento, até que voltou, mas não se sentou,
meneou a mão e disse que queria mostrar-lhes uma coisa. De prontidão, os
dois saíram correndo para alcançá-lo. Passaram por um relativamente lon-
go corredor com portas laterais, entraram na última à esquerda. O corredor
não tinha luzes, tornando-se verdadeira viagem, os dois podiam enxergar
toda sorte de coisas saindo por debaixo das portas fechadas e outras sur-
gindo na frente deles, algumas com um sorriso que devorava a casa inteira,
outras sem nada no rosto, criaturas brancas, negras, cinzas ao mesmo tem-
po, amálgama anômalo em que nada se perderia. Dentro do quarto, viram
quadros de vários tamanhos. Era um pouco menos iluminado que o cômo-
do anterior. O gigante deu uma lamparina para cada um. Havia quadros,
e um que mais chamava atenção, que ocupava a parede inteira, atrás dos
outros menores. Perceberam, também, que havia uma harpa em paralelo
aos quadros, com uma flauta e viola em cima de uma cadeira; foram ajei-
tados de tal modo a não ocupar muito espaço. Com algumas pinturas, eles
se aproximavam muito; com outras, ficavam afastados, esboçando caretas.
— O que vocês acham? — nenhum dos dois respondeu — Alguns
foram feitos por mim, outros, por amigos, e outros, por familiares. — não
responderam, dispersos em cantos diferentes — Do tempo de vocês, estas
foram as duas únicas coisas, e suas ramificações, que nos restaram com
uma força que nunca se dissipou. Por que elas? Já não se fala mais de fatos.
Não por incapacidade, mas por saúde. A ciência lidava com o universo;
nós, no entanto, queremos lidar com o aqui e agora e o diverso. Aquela só

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tinha olhos para o fato, brincava com marionetes. Essas duas jogam com a
realidade, e nos disseram que os fatos não passam de figuras de linguagem.
Houve, no entanto, um tempo, um pouco anterior ao de vocês, em que
elas ousaram incorporar a ciência e deixaram, outrossim, que as violasse de
maneiras terríveis. O que aconteceu? As duas se perderam, as ramificações
foram desfeitas, setores foram criados, e passaram a prestar atenção maior
nos fatos da ciência do que em seus sentidos, pois aquela, e este foi o pri-
meiro ensinamento que incorporaram, vivia a lhes dizer que estes estavam
errados, falseiam, mentem. A partir daí, a arte não decaiu e muito menos
morreu, só o homem sofreu. Somente isto. Um período de doença, uma
doença necessária, necessária por sua convalescença, e na doença já havia
prelúdios de sua saúde, esmagados, entretanto, tão rapidamente que não
puderam gozar muito da vitalidade. Por isso, os fatos foram deixados de
lado e a ciência, engolida, absorvida e defecada; sem pressa, conseguiram
recuperar suas ramificações. No todo, uma vez que nada se perde com-
pletamente, podemos dizer que essas duas vias se transfiguraram numa
ciência alegre. Estas pinturas não exprimem fatos, mas vivências, algo que
ultrapassa toda serialidade e seriedade, demasiado brancas. Por isso a im-
prensa não existe hoje, afinal, não se pôde viver por muito tempo dentro
de uma comporta de lixo. Imaginem: uma mulher bem formada, semblante
limpo, resolve que chegou a hora de expandir seus horizontes, pois não
suporta mais o rigor científico nem a literatura. “Este livro de poemas”,
diz ela, contemplando-o como se fosse seu bebê, “há de ser minha entrada
nesse outro mundo.” Quando abriu o livro, fechou-o rapidamente e falou:
“Como eu poderia me esquecer do lápis?” E aconteceu que tal livro foi
automaticamente destruído, e só esta mulher não pôde ver.
Nihcolas estava sentado no chão, com o polegar mexendo no lá-
bio inferior, fitando o homem; Lucano olhava um quadro ainda, bufando,
como se quisesse rir. O gigante se sentou e começou a tocar a harpa, cuja
audibilidade equivalia à conversa. Começou com glissandos, passando para
uma melodia sombriamente chistosa. Nihcolas se levantou e perambulou
com sua lamparina, enxergava as modulações da luz consoante às de seus
braços, subiam e desciam ao toque do gigante. Lucano limitou-se a assistir,
dançava solfejos de mãos e pés. Nihcolas pegou a flauta e pôs sua lampa-
rina no lugar. Saltitava de um canto para o outro com suas dissonâncias,
quebras de ritmo, recriando toda a estética melódica da harpa que se dei-
xava influenciar. Lucano quis voltar a ver as pinturas ao seu redor. Maravi-
lhou-se com as cores, que se tornavam musicais. Ecos destinados à orla do

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olvido, à apoteose do vazio.
Voltando para a sala, Nihcolas ficou em dúvida.
— E para onde foram esses homens da ciência? — perguntou Nih-
colas na sala — Quer dizer, você fala como se eles tivessem simplesmente
desaparecido.
— Evidentemente, não desapareceram. A partir do momento em
que se ausentaram, assim como com tudo, eles deixaram de ser preocu-
pação nossa. Convosco, também, será igual. Mas não creio que tiveram
dificuldade em reacomodarem-se.
— O que você acha que eles diriam se vissem vocês agora? — per-
guntou Lucano.
— Não sei. Por mais previsíveis que sejam... Talvez ficassem decep-
cionados com o rumo que trilhamos, apiedar-se-iam, ririam, e até oferece-
riam auxílio. Cuido assim fosse, iriam nos ridicularizar e ser compassivos.
— Por quê? — perguntou Nihcolas.
— Pois pensam que sua ciência é redenção. Compadecem-se por-
que nos veem como crianças abandonadas, famintas e desoladas, como se
para completar uma tríade doentia. Só a debilidade física os impede de se
tornarem missionários. Eu preciso sair agora. Gostava que fossem comigo.
Antes, convido vocês a levar um quadro como lembrança; seria um prazer.
Agradeceram ao homem pela oferta, mas não aceitaram, seria apenas
um peso a mais, uma vez que não tinham casa.
— Não há problema — replicou o gigante —, vocês podem deixar
onde bem entenderem. A arte não serve apenas para a parede.
Ainda assim, recusaram. Saíram de casa. Perceberam que o caminho
seria sinuoso, havia como que um muro branco de ruço. No entanto, passa-
ram bem rápido e mal notaram a sinuosidade, principalmente porque não
era longo. Estavam de frente a um prédio com um portão de entrada, pou-
cas janelas, duas torres, uma com telhado de duas águas, outra sem telhado,
eram relativamente grandes, um porteiro guardava o prédio, no qual uma
das portas, dividida em duas, estava aberta e a outra, na frente da qual se
postava, fechada. Andavam um pouco atrás do gigante. Subiram as escadas,
este entrou, mas os dois receberam um aviso do porteiro.
— Vocês não podem entrar.
Os dois estagnaram estarrecidos.
— Por que não? — perguntou Lucano.
— Porque vocês ainda não têm permissão para isso.
— E por que o nosso amigo tinha?

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— Não têm permissão de entrar. No entanto, não vos impedirei de o
fazerem. Mas, saibam que se arrependerão amargamente. Acho que não vale a
pena correr tanto risco.
Neste instante, Nihcolas gritou pelo gigante e Lucano fez o mesmo, mas
ficaram sem resposta.
— Desistam! Desistam! Não há como vocês entrarem aqui impunes. Vo-
cês nunca acharão nem alcançarão o que é necessário para conseguir passar. É
pura perda de tempo. Ainda não possuem a permissão.
Espantados, resfriavam. Não sabiam o que fazer. O porteiro os olhava
sem superioridade, apenas mantinha-se ereto.
— O que vai acontecer com a gente se passarmos? — perguntou Luca-
no, com rosto teso.
— Não sei. Não porque não quero, mas porque não sei. Nunca vi quem
ousarem.
Começaram a rir. Sabiam o que fazer. Subiram os degraus e já estavam
cara a cara com o porteiro.
— Último aviso.
Antes que pudesse terminar, haviam passado pela porta. Ouviram um
clique e, imediatamente, uma guilhotina desceu à toda velocidade e força nos
dois, partindo-os ao meio. Devagar, uma metade dos dois caiu para frente, e a
outra, para trás. O sangue e entranhas inundaram o lugar em poucos segundos.
Os dois estavam na frente do porteiro, olhando-o, subindo as escadas e atra-
vessando a porta de novo, novamente partidos ao meio. O rosto do porteiro
permanecia imparcial, intacto, como um papel. Notaram rindo, enquanto atra-
vessavam a porta mais uma vez. Nihcolas passou a perceber como nada signi-
ficava o caminho das escadarias até a porta, como aquele porteiro homúnculo
significava nada, podia fazer nada, senão sorrir cada vez mais para o porteiro
durante todas as vezes que ali se deixou partir ao lado de Lucano, que andava
ao seu lado de modo tão alegre e sorridentemente sutil, que uma vez, antes de
entrar, abraçou o porteiro impassível. E, assim, continuaram.

IX
Dormiram sobre a guilhotina, mas não entenderam como acordaram,
cegos de Sol, na sombra de uma árvore. Apesar do estranhamento, não pensa-
ram muito, sentiam fome. O dia estava muito iluminado, dormiram mais que o
habitual. O corpo de ambos parecia pesado, como desgastado.
— Nós fomos pra frente ou pra trás? — perguntou Lucano.
— Como assim? — falou Nihcolas, esfregando a olheira.

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— Quer dizer, nós saímos daquele lugar andando para frente ou para
trás?
— Acho que fomos pra frente, senão voltaríamos a encontrar ele de
novo.
— Ah! Entendi. Verdade.
— Sabe, vale mais a pena seguir em frente.
Continuaram caminhando. Estavam em terra devastada pela seca, poucas
gramíneas grassavam, insetos pequenos e impróprios pra alimentação, subiam
alguns em seus pés; debaixo da qual, as doenças da terra se escondiam. Mas a
pior jazia prostrada, invisível, de frente aos rapazes. Era o mesmo maltrapilho.
Gritava ao lado deles, mudo, destruído, alagou a terra com lágrimas, que
Nihcolas e Lucano sequer suspeitavam, nada mudou. Terminavam de beber
água de um cacto, mexiam com os dedos na terra seca. Sentiam-se revigorados
e dispostos a continuar o caminho singular múltiplo que trilhavam.
— Sabe no que eu estava pensando? — perguntou Nihcolas, sorridente.
— O quê? — falou Lucano, ziguezagueando.
— É que antes não, mas hoje eu fico feliz com o que me aconteceu, não
me arrependo nem quero mais. Se ontem chorava por meu lar, e hoje sorrio,
que povo é esse que habita em mim!
Lucano sorriu docemente em anuência. Irradiava-lhes uma fagulha de
eternidade telúrica.

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Epitrílogo

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Rein está deitada, olha as luzes, a destra fincada na terra, rasgando-a,
a canhota sob o peito esquerdo, um fluxo lhe passa atrasado e tendendo
para os lados, músculos rígidos, o passado a invade, seu corpo se ondula
em estática e perpassa gritos, com os quais Nihcolas e Bartolomeu, na pri-
meira vez assustados, estão acostumados, nada de mau ocorreria: Nihcolas,
mais curioso, passa as mãos pelos cabelos dela, um choque percorrendo-as,
desemboca na cabeça e no estômago, são engraçadas se vistas de perto as
feições de Rein, grita de dor, mas também parece cantar, não está só, um
coro se levantava por ela, expressões de tristes a alegres; Bartolomeu vira
o olhar, o marulho do choque com as pedras, o céu se reflete distorcido, as
nuvens inertes, a montanha alonga seu aspecto à medida que o sol se acen-
de e desce em direção a sua boca, tocha que, em breve, iluminará a sombra
dos três e da árvore contorcida pro rio, de onde Rein começou o conto.
Ela se acalma, o momento a reconstrói, a voz volta a exprimir, a mão solta
a terra e se passa pelo cabelo, fazendo frinchas por onde a raiz revicejaria.
— Bartolomeu, vem cá — fala Rein, sentada no chão, calma como
antes, um carinho de convalescente. Bartolomeu olha para trás e se senta
junto deles.
— Dessa vez demorou mais, né? — fala Nihcolas. — Tem certeza
que tá tudo bem?
— Não vai acontecer de novo. Quer dizer... espero que não.
— A gente vai estar aqui pra te ajudar, qualquer coisa.
— Tudo bem, o que eu contei é justamente como eu fiquei assim.
Machuca, é como se bilhões de pessoas em sedição, ao mesmo tempo, atra-
vessassem uma estaca dentro de você, e cada uma explode, berra, fincam
enormes bocas dentro de mim, e cada uma segue uma melodia. Sou um
projeto sexpiexterno, até mesmo do universo, e me constituiu no meio do
meio de um rio, onde eu não vejo nem um nem outro, por mais que minha
mão esteja suja de terra, e meu cabelo, sujo dessa mesma terra... Quanto
mais eu ando, mais as coisas mudam, e se não ando, sou puxada. Continuar
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parece irreprimível.
Num silêncio ponte com o dia, os dois escutam um suspiro.
— Se vocês prestarem atenção, há um cheiro que sobe no ar sempre
que alguém fala, mesmo quando eu falo, parece muito diferente. Tem algu-
ma coisa; se eu fico ali mais perto do rio, dá pra sentir como se minha vida
fosse a mesma, mas é só ficar a poucos passos de vocês que isso acontece:
a realidade se dobra. Então... posso tentar ver como é? — perguntou Bar-
tolomeu, dando o primeiro passo.
Senta-se mais próximo de Rein, ouve a troca de hálitos, sua bochecha
umedece, os olhos escorrem ao vê-la dali — e se assusta: luzes incessan-
tes, irisantes, o céu uma camada fina de réstias por onde surgem estrelas;
as pupilas fogem, os músculos tensionam, fende-se de Rein. Nihcolas, do
outro lado, ri, e não quer sair, tomava extensas lufadas de ar. Afastado, com
algum pavor, ouvindo a risada, Bartolomeu engatinha de volta e põe a ca-
beça no colo também, acima da de Nihcolas.
— O que é isso? — pergunta Bartolomeu, virando o rosto para ela.
— São as luzes que falei no início — impassível.
— Luzes? Mas tem fogo ali dentro?
— Não, não, é Maxwell.
— É o quê? — perguntam os dois.
— Não dá pra explicar melhor.
— Até dentro das casas tem Maxwell! — fala Nihcolas. — Deixa eu
ver uma coisa — levanta a camisa de Rein, fecha o olho esquerdo e olha
dentro do umbigo dela, que começou a rir dos cabelos de Nihcolas.
— Acho que aí não vai ter Maxwell — fala ela, tentando afastar
Nihcolas.
— Tem mesmo não!
— Mas pera aí, e essa barulheira toda? Que merda, não dá nem pra
ouvir direito o que vocês falam. É isso que são os carros de quando você
terminou de contar? Quanto barulho...
— Aos poucos você se acostuma — Rein ri. — Mas nós nem esta-
mos tão pertos da cidade; lá dentro é uma fábrica, e você sabe disso. Mas...
eu estou tranquila, daqui eu posso ver nós três. O Bartolomeu é mais cal-
minho, os segredos coleiam, mas são mais boatos. É lindo, é a primeira vez
que vejo tantas estrelas, uma noite tão escura e fantasmática.
— Calminho? — Bartolomeu vira o rosto para cima — Não há nada
de calmo, tem muito medo isso sim. Ao menos é o que eu vejo lá.
— Não sabia que você sentia tanto medo assim, Bartolomeu — fala

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Nihcolas, se deitando de lado.
— Não sou eu, não, são as pessoas lá. Depois de Egbert, eu passei a
sair muitas vezes de casa à noite, às vezes com a Marina. No dia seguinte,
ouvia as pessoas falando sobre um vulto que viram, ou que ouviram coisas
se mexendo longe, mas era só eu.
— Ah sim! — fala Rein — Mas você não pode me repreender por
isso. É calminho sim, é bom, preferia viver aí do que onde estou. Esses
problemas que você citou... são muito pequenos. Só que se eu vejo melhor
o do Nihcolas... será que o Lucano volta logo? E é bastante estranho tam-
bém, olha Bartolomeu — este se levantou para o rosto de Nihcolas.
— Só porque não tem muita diferença entre dia e noite? Vocês são
exagerados...
— Porra, como você ainda não ficou cego?! Parece que enfiaram
tinta no cu e cagaram! — riram.
— Que exagero! Depois de um tempo, faz sentido, só que sempre
foge — um rosto tranquilo, corpo entreaberto.
— Como? — pergunta Rein — Ao menos onde eu moro, há essa
confusão, mas não é caótica. Um quadro-borrão que se estende mais e
mais, é bem isso mesmo. Mas... acho que dá para te entender, Nihcolas,
depois de tudo o que você contou, dos anos andando de ilha em ilha, talvez
esse ambiente seja um sossego para você, né? um ambiente bem nômade.
— A-ah, entendi. É verdade. Olhando direitinho, ainda que seja tão
diferente das imagens lá da catedral, que agora já nem tem mais frei nem
nada, as pessoas só vão lá pra rezar mesmo e ler, enfim, é, é bem bonito,
Nihcolas. É como se toda a sua vida tivesse sido capturada e remessada de
uma vez, e assim fosse a cada segundo.
— Nunca tinha pensado que fosse assim! — fala rindo — Afinal,
acho que tudo é um lugar bonito, e daí até Maxwell pode fazer rir, né? —
Nihcolas se voltou para cima, olhando o céu de Rein, ao mesmo tempo em
que pegava Bartolomeu pelo pulso, descobrindo-lhe o braço fractal, e o
coloca no meio, panóptico, Lucano aparecia ao longe, como se feito a lápis.
— Vocês estão com fome? — perguntou Lucano, trazendo comida.
— Não muita — respondeu Bartolomeu, dando de ombros.
— Acho que sim — respondeu Nihcolas, arregalando o rosto em
sua direção.
— Então bem que vocês podiam sair de cima de mim, já tá difícil de
respirar — empurrou-os Rein.
Riem fluindo felizes como sangue.

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