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Bernadette Panek

O espa•o isolado da vitrine Ð espa•o de autoria

Tese apresentada ao Programa de P—s-


Gradua•‹o em Artes, çrea de Concentra•‹o
Teoria, Ensino e Aprendizagem, Linha de
Pesquisa Hist—ria da Arte, da Escola de
Comunica•›es e Artes da Universidade de S‹o
Paulo, como exig•ncia parcial para obten•‹o do
T’tulo de Doutor em Artes, sob a orienta•‹o do
Prof. Dr. Domingos Tadeu Chiarelli.

S‹o Paulo
2008
2

O espa•o isolado da vitrine Ð espa•o de autoria

Orientador:__________________________

Membro:____________________________

Membro:____________________________

Membro:____________________________

Membro:____________________________
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4

Ë VIDA
5

Agradecimentos

Agrade•o primeiramente ao trabalho do orientador, Tadeu Chiarelli, nas


horas de decis›es importantes para o andamento da tese, pois sem a sua colabora•‹o e
dedica•‹o essa pesquisa n‹o poderia ser realizada. Ë Banca de Qualifica•‹o: Annateresa
Fabris e Agnaldo Farias, agrade•o pelo cuidado e pela aten•‹o na aprecia•‹o do relat—rio,
pelas indica•›es de leituras, as quais foram de grande ajuda para o desenrolar da pesquisa e
tambŽm pelos problemas apontados, assim como o emprŽstimo de livros por parte de Agnaldo.
Espero, pelo menos em parte, ter correspondido ˆs expectativas. Agrade•o uma vez mais a
Annateresa por ter acreditado em minha capacidade intelectual desde o princ’pio, ainda antes
da entrega do projeto, pelas indica•›es de textos, alguns carinhosamente enviados pelo correio
ou mesmo entregue em m‹os.

Agrade•o aos professores das disciplinas ministradas: Marco Giannotti, pelo


apoio na leitura e conversa sobre o trabalho realizado para finaliza•‹o do curso, o que
contribuiu significativamente para o desenvolvimento do texto da pesquisa; Luiz Renato
Martins, pelas indica•›es de bibliografia durante as discuss›es em classe relacionadas
diretamente ˆ tese.

Diante do fato de ter entrado para o doutorado fora de minha cidade,


agrade•o imensamente aos amigos que com grande carinho me receberam em suas casas,
alŽm das conversas regadas a bons vinhos, as quais deixaram o processo de pesquisa mais
saboroso. Desde o in’cio recebi colabora•‹o tanto emocional como intelectual de amigos em
S‹o Paulo. Foram de fundamental import‰ncia:
. O apoio de Helouise Costa, quando no œltimo momento quase desisti de
entregar o projeto para a sele•‹o, e tambŽm a amizade e recep•‹o em sua casa.
. A recep•‹o de D‡ria Jarentchuk e Luis Ferla, alŽm da bela amizade,
colaborou em meu conhecimento sobre cinema, quando quase todas as noites assist’amos a
filmes em preto e branco. Ali‡s, somente ap—s um coment‡rio meu se deram conta de que
realmente s— estavam vendo cine P/B.
. O apoio carinhoso de D‡ria em v‡rios momentos no percurso da pesquisa e
as conversas e indica•›es sobre cinema com Luis.
. O carinho de M‡rio Ramiro, os di‡logos, a dedica•‹o, Žpoca na qual me
senti uma adolescente, estudando e esperando carona na porta da universidade.
6

Assim tambŽm quando conquistei a bolsa de estudos para permanecer seis


meses na Espanha fui recebida com muito carinho pelos amigos e profissionais da ‡rea. A
amizade de Kontxi Basabe e de toda a sua fam’lia contribuiu a deixar uma estadia longe de
casa mais aconchegante. As comidas e vinhos entre as conversas sobre a tese com Pello
Mitxelena por vezes longas, por vezes r‡pidas, mas sempre com resultados frut’feros, como
tambŽm as indica•›es e os livros presenteados. Agrade•o ˆ Lari Lima Rodrigues que abriu as
portas de sua casa com grande generosidade. E ao carinho de Javier Fernandez, alŽm de sua
gentil contribui•‹o nas pesquisas pela internet. Agrade•o a Ana Arnaiz da Universidade do
Pa’s Vasco, pelas calorosas discuss›es sobre a tese, por sua dedica•‹o profissional e
absolutamente generosa, alŽm das indica•›es de bibliografia fundamentais para o desenrolar
da pesquisa, e tambŽm ˆ coopera•‹o de Marina Pastor da Universidade PolitŽcnica de
Val•ncia.

Agrade•o imensamente a generosidade de Neiva Bonhs durante as poucas


conversas que tivemos, porŽm fundamentais para o desenvolvimento da tese, alŽm das
indica•›es bibliogr‡ficas pontuais.

Durante o processo da pesquisa recebi inœmeras e gentis colabora•›es,


assim agrade•o de cora•‹o a todos aqueles que de uma maneira ou outra participaram desse
percurso longo, dif’cil mas completamente frut’fero: Marcos Campos, Lorenzo Mamm’, Ivo
Mesquita, Ricardo Resende, Carlos Henrique Panek, Raymond Ravel, Ana Paula Santos,
Nelson Leirner, Galeria Brito Cemino, Eliane Prolik, Paulo Bruscky, Arley de Almeida, Kleber
Ferraz Monteiro, Ana Maria Tavares, Caroline Schroeder, Renato e Miriam Kossowski, Maria
da Gra•a Solter, Sonia Deneka, Isabela Sielski, Elaine A. Garcia e Ivone Ceccato.
7

Resumo

Esta pesquisa objetiva apresentar uma an‡lise sobre a utiliza•‹o da vitrine como

espa•o integrante da obra de arte. Problematiza a necessidade do uso do espa•o

isolado e intoc‡vel da vitrine como ‡rea imprescind’vel para determinadas propostas

art’sticas contempor‰neas. Averigua tambŽm as rela•›es entre a ‡rea envidra•ada da

vitrine e o observador. Verifica como a vitrine Ž tematizada n‹o s— no espa•o

arquitet™nico, mas tambŽm na pintura e na fotografia. Examina dessa maneira a

atitude dos artistas em colecionar, selecionar, organizar, classificar, deslocar e exibir

uma sŽrie de objetos reunidos no interior de tal dispositivo. Interroga se a presen•a de

artistas que trabalham com a vitrine ou com o espa•o, apenas delimitado, n‹o estaria

ligada ˆ crise do conceito tradicional de autor.

Palavras-chave: vitrine, arte contempor‰nea, espa•o isolado, espectador, autoria.


8

Abstract

This research aims to present an analysis of the use of the museum!


s display as an integrating

space of the work of art. It gives emphasis on the use of an isolated and untouchable space in

the museum!
s display as an essential area to establish contemporary aesthetic proposals. So, it

also checks how the display case is given thematically not only in the architectural space, but

also in the painting and photograph. It analyses the artists!approach of collecting, selecting,

arranging, assorting, displacing and displaying a series of united objects in the interior of such

device. It is questioned if the presence of the artists who work with the museum display or with

demarked space would not be tied to the crisis of the author!


s traditional concept.

Keywords: display case, contemporary art, isolated space, spectator, authorship.


9

Sum‡rio

Introdu•‹o......................................................................................................................1

Cap’tulo I Ð Olhar o mundo atravŽs de um enquadramento.....................................4

1.1 Ð O espa•o de representa•‹o e o limite da moldura .............................................................5

1.2 Ð Janela Ð ver atravŽs do enquadramento real ......................................................................8

1.3 Ð A problem‡tica do espa•o enquadrado na arte ................................................................12

1.3.1 Ð A rela•‹o espa•o temporal (no interior da vitrine) ..................................................15

1.3.2 Ð O olhar e os sentidos (dentro de um limite) ............................................................23

1.3.3 Ð O sentido de posse (o enquadrar como posse) .....................................................27

1.3.4 Ð O observador nos limites da vitrine ........................................................................29

1.4 Ð Contexto de vitrine ............................................................................................................29

1.5 Ð O Cubo Branco .................................................................................................................32

Cap’tulo II Ð Arquitetura ÒtransparenteÓ...................................................................37

2.1 Ð O interior da catedral e o ambiente da f‡brica.....................................................38

2.2 Ð Arquitetura de ferro e vidro...................................................................................42

2.3 Ð Passagens ou arcadas.........................................................................................47

2.3.1 - Os reflexos na arquitetura de vidro.............................................................52

2.4 Ð Exposi•›es universais..........................................................................................57

2.5 Ð Pris›es..................................................................................................................65

2.6 Ð NecrotŽrio de Paris...............................................................................................71

2.7 Ð Obras pontuais na arquitetura de vidro Ð sŽculo XX............................................73

2.8 Ð Interven•›es no espa•o arquitet™nico..................................................................81


10

Cap’tulo III Ð A trama entre objeto e imagem...........................................................86

3.1 Ð Colecionar/Apropriar-se........................................................................................87

3.2 Ð O objeto transformado em imagem......................................................................92

3.3 Ð Acumular Ð colecionar Ð arquivar Ð apropriar-se Ð citar Ð colar...........................97

3.4 Ð Cr’tica ao espa•o do museu...............................................................................102

3.5 Ð Mercadoria Ð fetiche...........................................................................................105

Cap’tulo IV Ð Os enigmas na autoria Ð quem Ž que fala?.....................................116

4.1 Ð Diferen•as entre criar e apropriar-se..................................................................116

4.2 Ð A rela•‹o entre a obra e o autor.........................................................................122

4.3 Ð A fun•‹o autor....................................................................................................125

4.4 Ð Crise do conceito tradicional de autor................................................................128

4.4.1 Ð Interven•‹o urbana..............................................................................128

4.4.2 Ð A œltima foto.........................................................................................131

4.5 Ð Diferen•as entre criar e organizar......................................................................136

4.6 Ð O autor e o espectador Ð divis‹o autoral............................................................141

Conclus‹o..................................................................................................................148

Refer•ncias Bibliogr‡ficas.......................................................................................155
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1 Introdu•‹o

O assunto principal desta pesquisa parte de um procedimento recorrente no


processo art’stico contempor‰neo Ð a utiliza•‹o da vitrine como componente integrante da
obra. Para a constru•‹o do trabalho apresentamos algumas obras de arte contempor‰nea
visando entender como o dispositivo da vitrine age cr’tica e conceitualmente em determinados
trabalhos de diferentes artistas. A pesquisa n‹o trabalha toda a produ•‹o dos artistas
selecionados, nem suas biografias, e tambŽm n‹o assume um compromisso com a cronologia.
Interessou analisar trabalhos que ampliaram a discuss‹o sobre o espa•o delimitado da vitrine e
a partir deles a problem‡tica da tese.

Em todo o desenvolvimento do trabalho constru’mos uma reflex‹o sobre o


papel do espa•o expositivo da obra de arte no decorrer da hist—ria da arte do sŽculo XX. Assim
como sobre a raz‹o da escolha de alguns artistas em desenvolver a obra nesse espa•o
espec’fico da vitrine. Procuramos questionar por que o ambiente da vitrine Ð esse espa•o
isolado, encerrado em si mesmo Ð estimula um jogo entre sedu•‹o e inacessibilidade
produzindo no observador um forte interesse pelos objetos armazenados em seu interior.
Problematiza-se dessa maneira a atitude dos artistas em colecionar, selecionar, organizar,
classificar, deslocar e exibir uma sŽrie de objetos reunidos no interior de uma vitrine. No
desenrolar da pesquisa h‡ a explora•‹o do confronto existente entre o espa•o isolado desse
dispositivo e o observador, as sensa•›es por ele provocadas, assim como as estratŽgias e
cr’ticas constru’das a partir de tal dispositivo. Dessa forma, verifica-se tambŽm como a vitrine
foi tematizada n‹o s— no espa•o arquitet™nico, mas tambŽm na pintura e na fotografia.

No primeiro cap’tulo, apresentamos o estudo do espa•o de representa•‹o na


arte, a fim de discutir os limites do local no qual a obra acontece. Assim sendo, tomamos como
ponto de partida o espa•o delimitado na arte, devido ao interesse na fixa•‹o dos limites
espaciais da vitrine. As rela•›es poss’veis entre o espa•o interior e o exterior s‹o apresentadas
enquanto h‡ a verifica•‹o da problem‡tica de olhar o mundo atravŽs de um enquadramento.
Analisamos a exist•ncia na esfera art’stica de diferentes qualidades de molduras quando
comparamos os espa•os isolados da cidade (considerando avalia•›es da obra de Richard
Sennett), com o espa•o interno da vitrine. Expomos os diferentes enquadramentos numa
variedade de situa•›es: a rela•‹o espa•o temporal; a rela•‹o com os sentidos de vis‹o, de
audi•‹o, de olfato e de tato. Avaliamos tambŽm o enquadrar como um limite de posse. Partindo
da expans‹o do conceito de vitrine consideramos algumas interven•›es no espa•o
arquitet™nico da galeria, ou algumas esculturas pœblicas como constru•›es singularmente
pr—ximas ˆs fronteiras constru’das por meio do isolamento na extens‹o da vitrine.
12

No segundo cap’tulo, tratamos primeiramente de relacionar o espa•o da


vitrine com os ambientes da arquitetura transparente do sŽculo XIX, momento em que os
c‡lculos da engenharia erguem edif’cios fant‡sticos, como a cobertura transparente para as
passagens parisienses (centros comerciais). Na verdade, foi o primeiro espa•o interno
constru’do para o pœblico, onde toda uma estratŽgia foi edificada para provocar o encanto na
mercadoria exposta. O car‡ter provis—rio e a eleg‰ncia do edif’cio constru’do para a exposi•‹o
universal de Londres (1851), assim como para outros edif’cios, onde se elaboraram tambŽm
grandes t‡ticas na exibi•‹o do objeto. Analisamos ent‹o as rela•›es do indiv’duo com os
espa•os isolados e transparentes da cidade moderna, e a problem‡tica da inexist•ncia de uma
continuidade entre o espa•o interno e o ambiente da cidade. Desse modo, destacamos
algumas constru•›es de vidro essenciais na arquitetura do sŽculo XX pela import‰ncia para o
entendimento de obras art’sticas ligadas diretamente ˆ arquitetura, assim como suas
proximidades com o espa•o isolado da vitrine.

O planejamento arquitet™nico Ž considerado atravŽs das implica•›es entre


poder e saber a partir dos pressupostos de Michel Foucault. Assim ser‹o tomadas suas idŽias
correspondentes ˆs rela•›es do olhar e a conseqŸente explora•‹o deste por parte do poder
institu’do. Nesse caso, ser‡ estudado particularmente o conceito de pan—ptico - ver e n‹o ser
visto.

Por outro lado, a partir de certas quest›es levantadas por Walter Benjamin,
ser‹o analisados alguns pontos sobre o conceito de transpar•ncia ligado ao espet‡culo da vida
moderna, visto que tal espet‡culo tem como proposta expor praticamente tudo ao olhar do
outro, utilizando-se da transpar•ncia na arquitetura. Toma-se como base a simbologia do ver e
do deixar-se ver, considerando a transpar•ncia um s’mbolo.

No terceiro cap’tulo, a partir do processo de deslocamento de um objeto do


cotidiano para o dom’nio da arte, analisamos trabalhos pertinentes ˆs t‡ticas museol—gicas de
exibi•‹o, particularmente, o processo de explora•‹o dos dispositivos de apresenta•‹o de obras
de arte relacionados diretamente ao espa•o da vitrine. Verificamos tambŽm o poss’vel v’nculo
criado pelo objeto, inserido no interior da vitrine, com sua pr—pria imagem. A partir dessas
ordena•›es, expomos as rela•›es de mem—ria inseridas nos objetos e as possibilidades de
mudan•a de sua significa•‹o. Nas quest›es propostas podemos perguntar: qual seria o valor
de uso do objeto inserido na vitrine? Analisando assim, no decorrer de tais constru•›es, a
transforma•‹o do objeto propriamente dito em imagem.

Exemplificamos desde o processo de exposi•‹o nos gabinetes de


curiosidades atŽ cr’ticas mais sarc‡sticas aos procedimentos de trabalho do pr—prio museu,
levamos em conta a associa•‹o concebida pelo objeto com a mercadoria e o consumo, como,
13

por exemplo, no caso da mercadoria, quando removida de qualquer fun•‹o pr‡tica, torna-se um
fetiche. Assim como os mŽtodos explorados nos processos de exibi•‹o ao desafiar a pot•ncia
visual do objeto. Uma vez que instigam o desejo e praticamente paralisam o olhar do
observador.

Analisamos o procedimento do artista a partir de um m’nimo gesto, quando


interfere consideravelmente no espa•o de exposi•‹o, criando rela•›es novas. Verificamos
dessa forma os enigmas da autoria no ato do artista deslocar, colecionador, organizar, arquivar,
citar ou mesmo realizar uma curadoria, sempre relacionando com o local delimitado.

No quarto cap’tulo, dentre as quest›es propostas para a discuss‹o, ser‡


verificado se a presen•a de artistas que trabalham com a vitrine ou com o espa•o apenas
delimitado n‹o estaria ligada ˆ crise do conceito tradicional de autor. Assim discutimos sobre a
problem‡tica entre um gesto criativo e uma apropria•‹o, da mesma forma como as rela•›es
entre o autor e a obra. Para tanto, tratamos do conceito de autor enquanto partimos do discurso
de Michel Foucault sobre O que Ž um autor? TambŽm tomamos como apoio o texto de Giorgio
Agamben O autor como gesto, por ser um ensaio do pr—prio Agamben sobre esse discurso de
Foucault. Para exemplificar as an‡lises realizadas, discutimos uma interven•‹o pœblica de
Paulo Bruscky, a proposta da artista Rosangela Renn—: A œltima foto, pois essa obra apresenta,
alŽm do isolamento do objeto, uma sŽrie de quest›es associadas ˆ cria•‹o, ˆ autoria, ˆ
cole•‹o e ˆ organiza•‹o, e tambŽm quest›es relativas ˆ curadoria. Finalmente, a obra de
Waltercio Caldas, SŽrie Veneza, quando mostra uma proximidade perversa com o espa•o
isolado da vitrine.
14

Cap’tulo I

Olhar o mundo atravŽs de um enquadramento

O per’metro convencional do teatro desempenha, (...), uma fun•‹o an‡loga ˆ das


aspas, que servem para isolar o que estiver entre elas do discurso coloquial normal,
neutralizando seu conteœdo em rela•‹o ˆs atitudes que seriam apropriadas ˆ mesma
frase se ele fosse afirmado em vez de meramente citado. (...) Caracter’sticas
semelhantes encontram-se em todo o campo da arte: as molduras dos quadros ou as
vitrines de uma exposi•‹o s‹o suficientes, como os palcos, para informar as pessoas
familiarizadas com as conven•›es implicadas que elas n‹o devem reagir ao que est‡
delimitado como se fosse a realidade. Os artistas se valem das conven•›es
justamente para esse fim, e se ˆs vezes as transgridem Ž porque desejam provocar
ilus›es ou criar uma sensa•‹o de continuidade entre a arte e a vida.

Arthur Danto1

Qual o motivo do interesse por parte dos artistas pelo espa•o isolado da
vitrine? O ato de isolar, de proibir o acesso ao objeto exposto provoca o observador a pensar, o
que gera o desejo, e assim permanece na sua mem—ria. Por que em uma Žpoca na qual a
escultura se libera de sua base, a pintura se libera da moldura, e a obra come•a a participar do
espa•o expositivo - espa•o do qual a partir de um certo momento da arte do sŽculo XX o
espectador tambŽm faz parte - alguns artistas v•m explorar o espa•o delimitado da vitrine? Por
que nesse momento a vitrine entra para separar e isolar a obra?

Na verdade, o artista segue ainda em busca da potencialidade da moldura


para completar a representa•‹o da obra2. Quer queira quer n‹o o enquadramento serve para
criar um espa•o para a obra de arte, enquanto o trabalho por si pr—prio Ž incapaz de oferecer3.
Mas por que a vitrine? AtŽ onde isso implica uma conex‹o com a arte contempor‰nea, ou com
as estratŽgias da vitrine comercial, entre o objeto e a mercadoria? Ou atŽ que ponto o
enquadrar, a atitude de colocar fronteiras ao entorno de um objeto, pode ser encarado como
uma atitude de posse? Qual a rela•‹o entre realidade e representa•‹o dentro das fronteiras da
vitrine?
Generalizando, podemos dividir o enquadramento em duas situa•›es: o
enquadramento tecnol—gico e o n‹o tecnol—gico. Este œltimo referindo-se ˆ moldura como o

1
DANTO, Arthur. A transfigura•‹o do lugar-comum: uma filosofia da arte. Tradu•‹o: Vera Pereira. S‹o Paulo:
Cosac Naify, 2005. p.61.
2
DURO, Paul (Edited by). The Rhetoric of the Frame: Essays on the Boundaries of the Art Work. Australian
National University/ Cambridge University Press, 1996. p.4. Introduction.
3
Idem, p.1.
15

limite da pintura e a base como o campo protegido da escultura, assim como a vitrine
museogr‡fica. Para o tecnol—gico, a princ’pio, tomamos o enquadrar da c‰mera fotogr‡fica, do
cinema, da TV, do v’deo, enfim o da tela do computador. Para tanto, selecionamos algumas
obras para tentar esclarecer a raz‹o da escolha por parte dos artistas em trabalhar a partir do
espa•o da vitrine, os quais ajudar‹o a elucidar a problem‡tica da rela•‹o entre o espa•o
interior e o exterior.

1.1 Ð O espa•o de representa•‹o e o limite da moldura

Se n‹o invalidamos a lei como vamos saber onde est‹o os limites.

Damien Hirst4

Em seu livro, O espa•o moderno5, Alberto Tassinari toma como fio condutor
de sua reflex‹o a conceitua•‹o do espa•o. Ele analisa as rela•›es entre o espa•o da obra e o
espa•o do mundo. Entre as quest›es propostas pelo autor, uma delas surge a partir da pintura
de Jasper Johns, Tela, de 1956 - ÒSe n‹o Ž mais a moldura, o que rege agora as rela•›es entre
o espa•o da obra e seu exterior?Ó. Se o autor fala da rela•‹o entre espa•o e obra, discute
tambŽm neste contexto a rela•‹o com o espectador, pois ele se encontra no espa•o em
comum com a obra. ConseqŸentemente, existe aqui uma rela•‹o inevit‡vel entre a obra, o
espa•o e o (olhar do) espectador. Tanto o trabalho art’stico quanto o observador necessitam de
um lugar para sua exist•ncia, e a obra necessita de um olhar para o seu pr—prio
reconhecimento.

Historicamente Ž poss’vel perceber, na fase prŽ-renascentista, que a obra de


arte Ž algo colocado no espa•o comum, e seu valor Ž determinado tanto pelo material como no
qual Ž realizada, quanto pela qualidade de sua confec•‹o. J‡ a partir do Renascimento a
moldura e o pedestal tornam-se dispositivos a delimitar o espa•o no qual se encontra a obra.
Ou seja, exercem a fun•‹o de delimitar o espa•o de representa•‹o. O trabalho de arte come•a
um processo de separa•‹o e isolamento do mundo. N‹o podemos deixar de ressaltar, nesse
momento, a reivindica•‹o, por parte dos artistas, pela posi•‹o de intelectuais e n‹o mais
apenas meros artes‹os. Por meio da moldura ou da base, nesse per’odo, acontece uma
passagem do espa•o do mundo ao local da obra, proporcionando tambŽm uma diferencia•‹o
de tempos: a obra de arte acha-se num tempo distinto daquele no qual encontra-se o
espectador.

4
Damien Hirst. No Sense of Absolute Corruption. New York City: Gagosian Gallery, 1996. p.10.
5
TASSINARI, Alberto. O espa•o moderno. S‹o Paulo: Cosac & Naify Edi•›es, 2001.
16

Na pintura de tradi•‹o renascentista, a moldura e a perspectiva direcionam o


olhar do observador para um mundo ilus—rio, assim como a fun•‹o do pedestal no monumento,
tambŽm daquela tradi•‹o Ž direcionar o olhar do espectador a outras dimens›es. O observador
necessita parar e orientar seus sentidos a uma dimens‹o alterada de espa•o.

A transi•‹o proporcionada pela moldura na pintura e pela base na escultura


Ž, na verdade, uma mudan•a de dire•‹o do olhar, que vai da realidade para a ilus‹o. De um
certo ponto de vista, s‹o dois momentos separados: o do cotidiano e o da arte.
ConseqŸentemente, o limite imposto pela moldura e a separa•‹o de planos apresentada pela
base constituem um rito dimensional de passagem.

O papel da perspectiva, na estratŽgia renascentista, Ž direcionar o olhar do


observador para o interior da pintura, n‹o apenas com a finalidade de lev‡-lo ˆ sensa•‹o de
ilus‹o, mas tambŽm de delimitar o campo da arte. A perspectiva, por meio da representa•‹o do
espa•o tridimensional num œnico plano, faz do campo da pintura uma zona ilus—ria, para a qual
Òa moldura funciona como uma gradeÓ6. ƒ uma ‡rea enclausurada por meio do enquadramento
da moldura. Assim fica absolutamente claro qual o campo de a•‹o do artista. Tal grade
praticamente impede a conex‹o entre espa•o interno e externo. ÒQuanto maior a ilus‹o, maior
a atra•‹o para o olho do espectador. O olho Ž abstra’do do corpo est‡tico e projeta-se dentro
do quadro (...).Ó7 A perspectiva renascentista delimita o direcionamento do olhar atravŽs das
fronteiras da janela, ajustando, desse modo, a vis‹o a um determinado enquadramento. O
resultado de tal estratŽgia leva a representa•‹o na pintura a conservar esse confinamento.
Desloca, dessa maneira, o espectador da realidade, conduzindo-o ˆ contempla•‹o, ao
devaneio. A tela, suporte de representa•‹o bidimensional, cuja prote•‹o do mundo comum Ž a
moldura, mantŽm rela•‹o apenas com o olhar do espectador. Essa janela aberta oferece a
sensa•‹o ao observador de estar num mundo de representa•‹o. Tal ilus‹o come•a e acaba,
apenas atravŽs do olhar, no campo da pintura delimitado pela moldura.

No per’odo moderno, aos poucos a pintura come•a a recusar a moldura e,


conseqŸentemente, inicia uma opera•‹o de tomar parte do mesmo espa•o do mundo. Ou seja:
a pintura encontra-se agora no mesmo plano da parede. N‹o funciona mais como uma janela, e
n‹o Ž mais totalmente um suporte passivo, sujeito apenas ˆ contempla•‹o. Enquanto, em
paralelo, a escultura praticamente perde sua base para compartilhar do mesmo plano do
espectador, que muitas vezes se depara com ela sem se dar conta de estar em frente a um
objeto art’stico. Assim, a obra de arte abre um processo, de certa forma, contra si mesma, e

6
OÕDOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espa•o da arte. Tradu•‹o: Carlos S. Mendes Rosa. S‹o Paulo:
Martins Fontes, 2002. p.8.
7
Idem, p.9.
17

come•a a perder a categoria de coisa especial. PorŽm, a partir de ent‹o, surge um processo
de maior envolvimento com o entorno da obra. O local onde Ž exposta passa por modifica•›es,
pois, enquanto a acolhe, precisa ser preparado para receb•-la. Esse Ž o momento no qual o
espa•o da galeria entra em quest‹o e exerce um papel altamente significativo no campo da
arte. Numa propor•‹o bem particular poder‡ ser afirmado que a galeria, como dispositivo,
exerce, no per’odo moderno, o papel da base ou da moldura. Ou seja, o espa•o da galeria
Òfunciona como uma transi•‹o, de forma an‡loga aos tradicionais pedestais e molduras, mas
de maneira n‹o declarada.Ó8 Existe um disfarce desse contexto, tanto por parte do artista
quanto de todo o entorno da institui•‹o arte.

TambŽm o museu Ž visto como um enquadramento, enquanto emoldura a


pr—pria hist—ria, trazendo para seus limites tanto os objetos do mundo como o pr—prio visitante
para v•-los9. S‹o as molduras institucionais e naturalmente Òinvis’veisÓ. No final, a hist—ria
torna-se representa•‹o, pois toda ela foi retirada da continuidade do real e levada para o
interior de uma institui•‹o. Ela encontra-se dentro dos espa•os, dentro das molduras que
delimitam uma certa representa•‹o. Mesmo o espectador, enquanto visitante f’sico do museu,
est‡ inclu’do em tal representa•‹o10. O museu como um Òdispositivo de enquadramentoÓ
emoldura tanto o objeto quanto seu espectador11.

8
MAMMí, Lorenzo. Ë Margem. Ars Revista do Departamento de Artes Pl‡sticas ECA/USP, 2004. p. 81-85.
9
PREZIOSI, Donald. Brain of the Earth«s Body: Museums and the Framing of Modernity. In DURO. Op. Cit., p.
96-110.
10
Idem, ibidem.
11
Idem, p.96.
18

1.2 Ð Janela Ð ver atravŽs do enquadramento real

Quem olha, de fora, atravŽs de uma janela aberta, n‹o v• jamais tantas coisas quanto
quem olha uma janela fechada. N‹o h‡ objeto mais profundo, mais misterioso, mais
fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante do que uma janela iluminada por uma
vela. O que se pode ver ˆ luz do sol Ž sempre menos interessante do que o que se
passa atr‡s de uma vidra•a. Nesse buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a
vida, sofre a vida.
Charles Baudelaire12

Se considerarmos a representa•‹o renascentista, ela inicia seu processo de


vis‹o atravŽs de uma janela. A partir desse enquadramento trabalha a imagem bidimensional
de um espa•o virtualmente infinito. ƒ um ver por meio de uma determinada demarca•‹o, cujo
limite Ž o espa•o da janela, mas a janela sem anteparos, aberta. Se a janela aberta oferece
uma perspectiva, o vidro plano e transparente a retŽm. Os vidros formam planos para proteger,
ou separar o espa•o interior do exterior. Podem exercer tambŽm a fun•‹o de planos divisores
entre diferentes dimens›es. Enquanto refletem, conforme a luminosidade, a imagem de quem
ou do que se aproxima.

RennŽ Magritte. La Condition Humaine, 1933. îleo sobre tela. 100 x 81 cm

12
BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Tradu•‹o: Gilson Maurity. Rio de Janeiro; S‹o Paulo:
Editora Record, 2006. p.211.
19

A dificuldade de separar a realidade da ilus‹o est‡ impl’cita na pintura de


Magritte, La Condition Humaine (A Condi•‹o Humana). O quadro dentro do quadro mostra a
vista da paisagem externa como uma espŽcie de ininterrup•‹o da pr—pria abstra•‹o pict—rica
ou vice versa. Um efeito de blefe, uma vez que joga com a problem‡tica da continuidade entre
interior e exterior, com a incerteza permanente em saber exatamente onde termina a realidade
e quando come•a o campo de representa•‹o. Essa pintura estabelece uma trama entre os
limites da janela Ð perspectiva, a ‡rea de ilus‹o da pintura Ð e a esfera do mundo real. Entre o
cotidiano de uma casa e o espa•o externo, Magritte desloca o exterior para o interior. Tudo
isso, no entanto, ocorre no plano da janela, nesse limite onde se encontra todo o jogo proposto
pelo artista, uma rela•‹o complexa entre os limites reais e ilus—rios forjada no dom’nio da
representa•‹o.

A pintura confunde-se com a natureza, e tal fus‹o Ž interrompida apenas


muito sutilmente pelos grampos para esticar a tela ainda ˆ mostra ˆ direita, e pelo fato da
paisagem pintada estar parcialmente encoberta ˆ esquerda. Tal estratŽgia revela assim o limite
do campo de representa•‹o no ‰mbito da pr—pria representa•‹o. Mas ainda temos tambŽm a
presen•a do cavalete, que mostra a possibilidade da pintura estar em processo, ao mesmo
tempo em que manifesta qual Ž o campo de representa•‹o: a pintura literalmente dentro da
pintura. Verdadeira ironia ˆ representa•‹o pict—rica ilusionista, Magritte mostra nessa obra um
forte sarcasmo ao denomin‡-la A Condi•‹o Humana.

Outra cr’tica aos limites de ilus‹o Ž encontrada em Fresh Widow (viœva


fresca) de Marcel Duchamp. Quando o artista fecha completamente a janela (espa•o do campo
de representa•‹o do Renascimento), acaba com o ilusionismo, pois a janela fechada pode
significar a morte da pintura, da perspectiva.

Em Fresh Widow a janela n‹o possui vidros. No lugar deles foram colocadas
l‰minas de couro negro. Assim, a transpar•ncia foi substitu’da por uma matŽria opaca,
ocorrendo um bloqueio total da vis‹o. A janela que normalmente deixa ver, agora, interrompe o
olhar, n‹o permite um contato visual e impede qualquer encontro entre interior e exterior.
Duchamp faz uso da ironia e, num simples gesto de fechar a janela, d‡ um basta ao campo da
ilus‹o. (PorŽm, n‹o deixa de trabalhar a representa•‹o: na verdade Fresh Widow Ž uma
miniatura de janela, n‹o est‡ na dimens‹o real. Por outro lado, o pr—prio trocadilho impl’cito no
t’tulo da obra traz outros significados ˆ sua proposi•‹o).
20

Milton Machado. Stray Bullets (detalhe) RJ 1996, Londres 1999. fotografia, 36 imagens 115x240cm

Milton Machado, utilizando-se do enquadramento da janela, reproduz a


imagem do efeito de uma bala perdida sobre o vidro em uma de suas fotos da sŽrie Stray
Bullets (Balas Perdidas). AtravŽs de um tiro no vidro transparente, representa a situa•‹o tr‡gica
da cidade do Rio de Janeiro. A partir de um simples, porŽm cruel e fugaz ato Ð justamente na
fronteira simb—lica entre interior e exterior Ð mostra a possibilidade de transgress‹o no limite de
prote•‹o f’sica. Uma proposta mais lœdica, contudo n‹o menos mordaz, Ž a janela de Lawrence
Weiner.

lawrence Weiner. in and out Ð out and in Ð and in and out Ð and out and in, statement n. 237.
Instala•‹o, domaine de beaumanoir. Exposi•‹o, lÕart et son concept, 1996.
21

Enquadrar, na verdade, Ž delimitar o espa•o de vis‹o. Um exemplo claro Ž o


encarcerado, que apenas percebe o espa•o exterior atravŽs da grade/janela. Atualmente, como
vivemos praticamente apenas em locais protegidos, repletos de dispositivos de seguran•a,
tambŽm captamos o exterior quase permanentemente atravŽs de enquadramentos. Uma
janela, ou melhor, a atual muralha envidra•ada, une exterior e interior apenas ilusoriamente,
porque, na verdade, tornou-se uma barreira muito perversa.

Marcel Duchamp. Grande Vidro, 1915-23. 272.5x175.8cm. Philadelphia Museum of Art

A rela•‹o do Grande Vidro, de Duchamp, com a vitrine foi proposta pelo


pr—prio artista: ÒDas exig•ncias da vitrine, da inevit‡vel resposta ˆs vitrines, minha escolha Ž
determinada. Nenhuma teimosia, ab absurdo, em esconder o coito atravŽs do painel de vidro
com um ou v‡rios objetos da vitrine. A pena consiste em cortar o painel e sentir remorso t‹o
logo a possess‹o Ž consumada. C.Q.D."13

Segundo a an‡lise de Juan Antonio Ram’rez, o corte poderia ser uma rela•‹o
com as janelas-guilhotinas, que, na Žpoca, eram muito comuns na arquitetura dos Estados
Unidos. O ret‰ngulo de vidro inferior, montado sobre sua pr—pria moldura, desliza para baixo ou
para cima, conforme se queira mant•-la aberta ou fechada. ÒSe La mariŽe mise ˆ nu par ses

13
In VENåNCIO, Paulo. Marcel Duchamp: a beleza da indiferen•a. S‹o Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p. 22.
22

cŽlibataires, m•me t•m algo disto, a subida do painel dos solteiros implicaria o contato por
sobreposi•‹o visual com o espa•o da noiva.Ó14 Se estamos falando de Marcel Duchamp, todas
as hip—teses podem ser investigadas. Assim, a rela•‹o com a vitrine pode estar diretamente
relacionada com a pr—pria arquitetura do Museu da FiladŽlfia, onde a obra est‡ instalada. Ou
seja, o Grande Vidro encontra-se exatamente em frente ˆ porta que d‡ ao jardim de inverno,
oferecendo a visibilidade da fonte de ‡gua presente no respectivo jardim. Uma grande janela
direcionada ao jardim de inverno do museu, ou melhor, ˆ sua fonte Ð ˆ realiza•‹o do desejo
(por tr‡s da vitrine). Enquanto sua transpar•ncia favorece o contato com o mundo real, sua
posi•‹o no Museu da FiladŽlfia colabora estratŽgica e ironicamente na realiza•‹o da obra.

1.3 Ð a problem‡tica do espa•o enquadrado na arte

ƒ poss’vel considerar o enquadramento como uma barreira espa•o temporal,


um obst‡culo que favorece ou n‹o uma melhor visibilidade do espa•o de representa•‹o. Um
obst‡culo com a pretens‹o de impor uma parada no olhar, proporcionando uma passagem
entre dois espa•os distantes. Ademais, o olhar n‹o se direciona diretamente ˆ escultura sem
antes passar pela presen•a imposta pela base. O mesmo acontece com a pintura ou certas
propostas contempor‰neas.

O espa•o da vitrine como dispositivo de exibi•‹o proporciona, de diferentes


formas, as divis›es propostas anteriormente pela moldura na pintura ou pela base na escultura,
criando igualmente uma separa•‹o e um distanciamento entre espa•os e tempos. Proporciona
tambŽm, com a transpar•ncia do vidro, outros limites caracter’sticos de tal dispositivo, como o
bloqueio sensorial e tambŽm o auditivo.

A vitrine evidentemente explora uma autonomia em rela•‹o ao espa•o


comum. Ela busca o isolamento, a separa•‹o de um entorno. Mas, ao mesmo tempo, por meio
da transpar•ncia, explora um certo envolvimento com o espa•o e, a partir dos reflexos, absorve
a imagem do que se passa ˆ sua volta. Com isso, estrategicamente provoca um tipo especial
de integra•‹o ao encarnar o meio no qual se apresenta. A separa•‹o acontece, porŽm n‹o por
completo. Mostra ˆs claras a exist•ncia de um dentro e um fora, um interior e um exterior.
Apesar de transparente, ela se posiciona como uma barreira a ser notada.

A vitrine, como um limite, pode ser apenas uma cœpula de prote•‹o,


funcionando como um mobili‡rio museogr‡fico, e tendo, por conseguinte, a finalidade de isolar
e proteger as pe•as depositadas em seu interior. Por outro lado, sua constru•‹o pode partir,

14
RAMêREZ, Juan Antonio. Duchamp el amor y la muerte, incluso. Madrid: Ediciones Siruela, 1993. p.182.
23

muitas vezes, de um projeto do pr—prio artista, a exemplo das vitrines de Joseph Beuys. Os
artistas recorrem desde o desenho tradicional das vitrines de museus de hist—ria natural atŽ as
resolu•›es mais radicais, a exemplo da encena•‹o teatral de Vera Sala em uma vitrine-jaula,
na exposi•‹o Ordena•‹o e Vertigem, em 2003.

Tal performance representa a agonia de um animal preso em uma jaula.


Para quem chegou a presenci‡-la, Ž a mesma sensa•‹o de quando se visita um zool—gico, e o
espectador se depara com animais se retorcendo, se debatendo em gestos aflitivos,
angustiantes, contra as grades de sua cela. Ou seja: em seu cen‡rio-vitrine, a artista oferece
um espet‡culo para o conhecimento do pœblico.

Vera Sala. Corpo Instala•‹o, 2003. Centro Cultural Banco do Brasil, S‹o Paulo

Outro limite colocado pela vitrine pode ser a determina•‹o de um campo


isolado de a•‹o. Dessa maneira, o artista provoca a cria•‹o de um mundo aut™nomo, de
car‡ter pr—prio, independente do mundo exterior, delimitando e organizando elementos para
que coexistam e, de certa forma, se relacionem nesse mesmo espa•o. Ele constr—i um
pequeno mundo, cria situa•›es espec’ficas e praticamente nega influ•ncias externas. Prop›e
uma rela•‹o a fim de eternizar certas rela•›es vizinhas apenas no interior dessa ‡rea.

Um exemplo paradigm‡tico Ž a a•‹o de Beuys, em 1974, Coyote: I like


America and America likes me (Coiote: Eu gosto da AmŽrica e a AmŽrica gosta de mim).
Quando o artista constr—i um campo de a•‹o a fim de interagir com o entorno, com o ambiente
externo. Ou por vezes apenas se utiliza da vitrine comercial, como Ž o caso do artista brasileiro
Paulo Bruscky durante uma atua•‹o em Recife, no ano de 1978.15 Muitas vezes o artista se
vale desses limites com inten•‹o de relacionar sua atua•‹o com a problem‡tica da mercadoria.
Na maioria das circunst‰ncias de enquadramento por meio da vitrine, as quais discutimos aqui,
ela Ž empregada como parte integrante da obra, essencial a ela. A obra n‹o acontece sem

15
esses exemplos ser‹o tratados mais tarde.
24

esse dispositivo, sendo parte fundamental da inten•‹o art’stica. Outro exemplo paradigm‡tico Ž
a obra de Damien Hirst, quando coloca um animal dentro de uma vitrine com uma solu•‹o de
formol: sem o anteparo de tal estrutura seria imposs’vel a obra ocorrer.

Um projeto ousado, em termos de dimens‹o, para construir um


enquadramento transparente, Ž a utiliza•‹o da pr—pria arquitetura como uma grande vitrine. Ou
tambŽm propostas mais silenciosas, apenas interfer•ncias em janelas j‡ existentes no projeto
arquitet™nico, a exemplo das fotos do artista mexicano, Gabriel Orozco, Monedas en la ventana
(moedas na janela). Nessa obra, o artista realiza uma interven•‹o muito sutil sobre a
transpar•ncia do vidro, requalificando a arquitetura exterior. AtravŽs da transpar•ncia da janela,
traz a monumentalidade da arquitetura para o pequeno limite de representa•‹o. O pr—prio
Orozco se pronuncia sobre essa quest‹o: ÒA escala Ž importante em minha fotografia (...), na
maneira em que um pequeno gesto, um gesto ef•mero, pode ter monumentalidade e
repercuss‹o, tanto como uma escultura em bronze ou um edif’cio.Ó16

Gabriel Orozco. Monedas en la ventana, 1994. Fotografia

16
Gabriel Orozco. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sof’a, 2005. Conversa com Guillermo Santamarina. p.36.
25

1.3.1 Ð A rela•‹o espa•o temporal (no interior da vitrine)

Enfrentando o fato evidente da hostilidade social que existe na cidade, o impulso do


planejador urbano no mundo real n‹o Ž outro que carimbar as facetas dissonantes em
conflito, quer dizer, construir muralhas internas em vez de limites perme‡veis.

Richard Sennett17

Se partimos de uma rela•‹o espa•o-temporal, podemos nos referir ao


espa•o-tempo no interior da vitrine como sendo de uma durabilidade muito particular. O tempo
nessa ‡rea isolada tem seu pr—prio in’cio e seu pr—prio fim. Nesse interior, ele pode, dentro das
devidas medidas, ser eterno, ou simplesmente fugaz, dependendo do ato criativo. O isolamento
de uma pequena ‡rea Ð caracter’stica pr—pria da vitrine Ð de certa forma apreende o tempo e
colabora na cria•‹o de um campo de representa•‹o. Ele, por assim dizer, eterniza, com suas
particularidades, uma pequena ou ’nfima ‡rea, determinando um tempo distante daquele
externo, real. Nesse limite, trata-se de um momento de representa•‹o, um tempo
intencionalmente imobilizado.

Richard Sennett, em seu livro La conciencia del ojo18 (A consci•ncia do olho),


constr—i uma rela•‹o muito pr—xima da cidade com o isolamento, sobre a grande exig•ncia, em
nossa cultura, de um entorno fechado em vez de um entorno exposto. Escreve como a vida
urbana provoca no ser humano um medo ˆ exposi•‹o, levando-o a construir uma muralha para
separar a vida interior da experi•ncia exterior. O autor discute sobre essa disparidade entre a
experi•ncia interior, subjetiva, e a exterior e f’sica, sobre o conflito entre uma vida espiritual e
uma vida mundana.

O ser humano come•a a distanciar-se do espa•o exterior como dimens‹o da


diversidade, do caos e, por conseq٥ncia, aproxima-se cada vez mais de um lugar organizado,
verificado. Na verdade, ele vai ˆ procura de uma dist‰ncia crescente entre o pœblico e o
privado, o que o leva ao retraimento, a permanecer entre quatro paredes.

Sennett coloca que, para o mundo ocidental, o espa•o da igreja Ž um espa•o


interior, pois desenvolve toda uma ordena•‹o. O espa•o da cidade seria um espa•o exterior,
pois confuso, desordenado.19 Essa compreens‹o do espa•o da igreja, do espa•o sagrado,

17
SENNETT, Richard. La conciencia del ojo. Tradu•‹o: Miguel Mart’nez-Lage. Barcelona: Ediciones Versal, S.A.,
1991. p. 245. (t’tulo original: The Conscience of the Eye, 1990)
18
Idem, p. 295.
19
Idem, p. 36.
26

como espa•o organizado, estabelece uma grande proximidade, em muitos casos, com o
espa•o do interior da vitrine. No momento em que o artista ordena os objetos na vitrine,
classifica-os, estruturando uma demarca•‹o expl’cita, o espa•o isolado da vitrine torna-se
an‡logo ao espa•o sagrado da igreja, ou do museu.

Em outros casos, o artista opera de forma oposta ˆ ordem e ˆ sacraliza•‹o,


com vitrines repletas de objetos unidos de maneira ca—tica, como em algumas vitrines de
Arman, repletas de lixo cotidiano ou as vitrines que guardam lixo hospitalar, de Damien Hirst.
As obras de Arman e Hirst s‹o, na verdade, questionamentos diretamente relacionados com os
restos da cidade, retirados para uma zona fora da vis‹o do cidad‹o, daquele que vive no
interior das ÒmuralhasÓ.

Sennett descreve uma cidade neutralizada, fazendo com que as pessoas


tornem-se desejosas de tolerar um cen‡rio brando, que n‹o oferece resist•ncia ˆ press‹o
alguma. Fala sobre o aspecto das cidades como refletores do medo da exposi•‹o. E
justamente comenta sobre a necessidade, em nossa cultura, de uma Òarte da exposi•‹oÓ, ou
seja, do ser humano expor-se mais. Observa os Òespa•os brandosÓ20 como neutralizadores, o
que vem a colaborar para destruir a possibilidade da amea•a do contato social. Na verdade,
isso confirma o quanto a cidade Ž projetada para o isolamento. Essa carceragem, e tambŽm
um maior controle do sistema, Ž especialmente provocada por meio do projeto de urbaniza•‹o
da quadr’cula, que n‹o deixa de ser a forma moderna de um antigo desenho urbano.

PorŽm, a quadr’cula, em tempos mais recentes, Ž utilizada como um plano


capaz de neutralizar o entorno, ou seja, como uma forma moderna de poder, pois ela suprime a
presen•a do outro.21 Um exemplo muito pr—ximo e visivelmente tr‡gico Ž o caso de Bras’lia e
suas cidades satŽlites. O signo da quadr’cula, uma cruz inscrita num c’rculo, representa os dois
modos de viver do ser humano, amuralhado e separado do mundo. Torna-se assim uma
geometria do poder, na qual a vida interior carece de forma pr—pria22. Sennett v• a quadr’cula
como uma constru•‹o amorfa que produz lugares sem um car‡ter apurado. Com os arranha-
cŽus, o sŽculo XX faz uso dela de forma vertical. Para Sennett, a altura dos altos edif’cios
significa neutralidade, carece do valor simb—lico da casa japonesa ou da igreja medieval.23

Para dissimular esse enclausuramento, utiliza-se o vidro. Nesse sentido, a


muralha para o corpo f’sico segue existindo, mas agora ela deixa ver o outro, e tambŽm se

20
os Òespa•os brandosÓ s‹o, para R. Sennett, os espa•os protegidos, praticamente sem contato verdadeiro com a vida
exterior, a exemplo de um condom’nio residencial fechado, ou um shopping, onde alŽm do controle estŽtico visual,
tem todas as suas portas controladas, permitindo ˆ entrada apenas uma camada social.
21
SENNETT. Op. cit., p. 68-85.
22
Idem, p.92.
23
Idem, p. 82
27

deixa ver. Estamos todos no interior de grandes vitrines sendo expostos, ou mesmo nos
exibindo. Acontece a exposi•‹o, mas Ž um mostrar-se de forma estrategicamente protegida,
pois sempre existe a barreira f’sica, apesar de sua transpar•ncia. A rela•‹o entre interior e
exterior acontece apenas visualmente. O que acontece Ž um expor-se a partir do interior, ou
seja, da ‡rea abrigada, acastelada. Estamos todos de uma maneira ou outra na Òjanela
indiscretaÓ de Hitchcock.

The Queen«s Walk. Londres, 2007

Na verdade, olhar de dentro para fora Ž uma atitude burguesa em rela•‹o a


quem se encontra na parte externa, ou melhor, do lado de fora. O olhar de quem est‡ dentro
intimida o observador externo. Quem olha de fora para dentro quase sempre acaba desviando
o olhar. ƒ uma rela•‹o muito singular entre duas ‡reas opostas. Aquele que se encontra no
interior acha-se num espa•o protegido, espa•o de poder. As cidades est‹o repletas de
muralhas vis’veis alŽm das muitas invis’veis. O isolamento Ž proporcionado n‹o s— por um
simples muro, mas tambŽm por divis—rias n‹o evidentes, n‹o exatamente claras, como, por
exemplo, as grandes avenidas que separam o centro dos bairros perifŽricos. Para Sennett,
somente ao cruzar as fronteiras as pessoas poder‹o ver-se umas as outras. Essa experi•ncia
da expuls‹o, do deslocamento e da resist•ncia encontramos na arte, mas infelizmente n‹o a
encontramos na urbaniza•‹o de uma cidade.24

24
Idem, p. 245.
28

Dan Graham. Two Staggered Two-Way-Mirror Half-Cylinders, 2000

A experi•ncia proposta pela obra de Dan Graham faz com que o sujeito entre
num espa•o amuralhado, porŽm transparente. N‹o deixa de ser uma armadilha para incluir o
espectador em sua obra. A obra Two Staggered Two-Way-Mirror Half-Cylinders Ž um cen‡rio
constru’do a partir de duas paredes semicirculares de vidro reflexivo, cuja forma se adapta ˆ
pr—pria arquitetura do espa•o para o qual foi projetado, o Palais des Beaux-Arts de Bruxelas.
Mostra uma escala ’ntima inspirada nos Òpavilh›es do prazerÓ da Žpoca rococ—25, em que o
espectador Ž conclamado a entrar atravŽs de um pequeno deslocamento realizado para que
n‹o se feche o c’rculo. Tal proposta provoca o observador por meio de sua pr—pria imagem, ou
seja, por meio de seu reflexo nas paredes semi-transparentes da obra. O espectador ora est‡
dentro, ora est‡ fora. Isso faz com que num certo momento ele seja o observador e noutro o
pr—prio objeto que se d‡ a ver, ou Ž dado a ver, a princ’pio sem se dar conta. Nem sempre o
observador Ž ciente que por instantes Ž o pr—prio objeto da obra. Momento no qual o artista
captura o espectador e o faz ser o objeto a ser visto, apreciado. ƒ um jogo de reflexos e
espelhamentos, um ver-se e ver o outro ao mesmo tempo. H‡ momentos em que o observador
de dentro do pavilh‹o de Graham se v• refletido no limite da obra junto ˆ imagem de outro
espectador ou mesmo junto com o outro observador o qual se encontra do lado externo. A
arquitetura da obra prop›e de uma s— vez olhar a si mesmo, ao outro e tambŽm ser visto pelo
outro.

Em alguns trabalhos de Graham existem tambŽm as divis—rias quase


transparentes, porŽm sem reflexo algum, as chapas de metal perfuradas. Podemos ter essa

25
DUVE, Thierry de. Voici, 100 ans d«art contemporain. Bruxelles: Palais de Beaux-Arts; LUDION/Flammarion,
2001. p. 188.
29

experi•ncia em alguns trabalhos de Lucia Koch, como, por exemplo, o da Bienal de S‹o Paulo
de 2006, quando a artista constr—i um local para expor. Como o pr—prio t’tulo da obra diz Sala
de Exposi•‹o, explora a passagem de luz atravŽs da constru•‹o de paredes completa e
igualmente perfuradas. N‹o trabalha o reflexo, mas exp›e o espectador a um estado
introspectivo enquanto se defronta com o vazio. J‡ em outra situa•‹o, na obra pœblica de
Graham, algumas vezes verdadeiros labirintos, faz com que o sujeito se exponha e ao mesmo
tempo tenha a sensa•‹o de estar num espa•o interior, em que ele n‹o estar‡ protegido do
olhar do outro, nem do seu pr—prio olhar. Graham faz uma brincadeira por meio dos olhares, ou
seja, entre ver o outro, ver-se e ser visto. Poder’amos pensar em uma met‡fora dos limites
impostos pela cidade, na verdade, uma tentativa de expor a possibilidade de cruzar as
fronteiras urbanas tanto as vis’veis quanto as invis’veis.

Lucia Koch. Sala de exposi•‹o. Bienal de S‹o Paulo, 2006. Dan Graham. Bienal de S‹o Paulo, 2006

Enquanto joga estrategicamente com os reflexos, elabora um dispositivo para


trabalhar fundamentalmente a presen•a do observador. Seu reflexo, nas grandes superf’cies
reflexivas, lhe devolve sua pr—pria apar•ncia. Mas a imagem refletida lhe devolve um duplo.
Prop›e a experi•ncia de um estranhar-se. Graham literalmente captura o visitante para seu
espa•o de representa•‹o. Como tais superf’cies s‹o vidros espelhados, sem a•o, o reflexo
nem sempre Ž um retrato visivelmente perfeito. Muitas vezes nota-se apenas um leve reflexo,
uma imagem muito fugaz, de apar•ncia enganosa enquanto se mescla com o entorno. Todo o
processo depende muito da luminosidade do lugar, assim como tambŽm da curvatura dos
painŽis transparentes. ƒ a presen•a de uma imagem de ilus‹o, uma falsa apar•ncia. Uma obra
ativa, intrigante; o espectador entra, se isola, se olha, sai, volta a entrar. O pavilh‹o de Graham,
na Bienal de S‹o Paulo, em 2006, encapsula o visitante para o espa•o de representa•‹o. ƒ
dada a ele a liberdade de entrar e encerrar-se no espa•o da obra, basta abrir ou fechar um dos
painŽis de metal perfurado. O pavilh‹o segue a forma de um tri‰ngulo, duas paredes em curva,
30

uma convexa e outra c™ncava, a terceira s‹o as duas l‰minas de metal que servem de porta,
possibilitando uma leve transpar•ncia.

Dan Graham constr—i um pavilh‹o para o espa•o pœblico com a pretens‹o de


enla•ar o pedestre urbano. Interrompe o fluxo normal da vida, enquanto corta a continuidade do
espa•o real. Coloca um obst‡culo no caminho cotidiano, e o indiv’duo, sem perceber, entra no
jogo das apar•ncias, das falsas ilus›es. Encontra-se entre a esfera da realidade e o campo de
encena•‹o. Torna-se objeto e imagem de representa•‹o. Nesse lugar, para estar, para ficar
apenas por alguns momentos, desenrola-se a trama proposta pela obra Ð o jogo entre a
imagem e o indiv’duo, o mundo real e o a da ilus‹o.

Outro ponto colocado por Sennett Ž a rela•‹o entre o tempo e o poder, ou


seja, o tempo como um instrumento de domina•‹o econ™mica, pol’tica e social. O tempo foi
fragmentado como forma de controlar o trabalhador. Para o autor, o tempo moderno
corresponde ao tempo mec‰nico. Quando n‹o importa o olhar, n‹o importa como se olhe, o
tempo segue, ou seja, o p•ndulo do rel—gio balan•a sem cessar.26 Colocar divis—rias, delimitar
o espa•o de uma cidade em fragmentos iguais Ž uma das estratŽgias para controlar e
neutralizar uma sociedade. Com o rel—gio passa algo similar, tambŽm imp›e uma quadr’cula,
divide o tempo em fragmentos. Assim, transforma o tempo cotidiano em uma rotina
aborrecida.27

Nessa atitude de separar e capturar um instante do tempo, mostra-se o


desejo de det•-lo, de apoderar-se de pelo menos uma pequena parte dele. No campo da arte,
em muitas situa•›es, tenta-se manter a presen•a de alguns objetos num instante perdur‡vel,
eterno. Esses objetos perdem sua fun•‹o original, porŽm, ganham um espa•o permanente. E,
assim, as rela•›es a’ criadas permanecem. ƒ uma rela•‹o do artista com algo atemporal, um
tempo e uma atitude pertencentes ao eterno, ao tempo sublime. ƒ o caso das vitrines de
Beuys, quando ele nelas reœne restos de cada uma de suas a•›es.

26
SENNETT. Op. cit., p. 217.
27
Idem, p. 216.
31

Joseph Beuys. S/t’tulo (vitrine),1983. Cinco objetos sem t’tulo na vitrine, 2060x2200x500cm

O tempo tambŽm Ž um enquadramento, pois se divide em anos, meses,


semanas, dias, horas. Na vis‹o sacra, o tempo mostra-se permanente, trata de um espa•o
interno, enquanto aborda a problem‡tica da interioridade. Explora a exatid‹o e mantŽm uma
rela•‹o com o sublime. J‡ na vis‹o laica, o tempo Ž imediato, enquanto trata da exterioridade,
da imperfei•‹o. O artista mostra um desejo de confrontar esse tempo imposto, esse tempo de
poder, e separa um espa•o onde ele mesmo possa controlar o tempo. Onde o tempo
virtualmente n‹o passa. O mecanismo criado por Damien Hirst, em suas vitrines contendo
animais, explora tanto o espa•o sublime como um momento perverso. De certa forma ele,
nesse espa•o, detŽm o tempo. Imortaliza algo, assim como imortaliza uma atitude, um ato
criativo. Embalsama um animal, e o coloca numa solu•‹o de formol, numa a•‹o de conserv‡-
lo. Procede de forma para que se tenha algo eternamente, evocando a problem‡tica da
mem—ria.

Poder’amos encarar essas vitrines do artista como uma representa•‹o da


tumba, que n‹o deixa de ser, como espa•o sublime, um local de passagem. Na tradi•‹o crist‹,
a sepultura Ž vista como um lugar de transi•‹o, o umbral desde o qual, algum dia, se
despertaria.28 E se partimos da seguinte an‡lise, que coloca a sepultura dentro do campo da
escultura, afirmar’amos que Hirst traz a tumba por inteiro ˆ mostra, totalmente presente,
enquanto profana o cad‡ver:

(...) as sepulturas devem ser inclu’das no compartimento da escultura e entender-se


como um dispositivo funcional, o qual atua como um conjunto monumental. Este

28
ARNAIZ, Ana. La Mem—ria Evocada. Vista Alegre, un cementerio para Bilbao. Tesis Doctoral. Universidad del
Pa’s Vasco. p. 105.
32

consta de duas partes bem diferenciadas «o vis’vel« ou parte emergente e a zona


«invis’vel« que continua abaixo da terra e cumpre a fun•‹o higi•nica. Contudo, Ž a
parte emergente a qual se reserva para caracteriz‡-las como monumento
comemorativo que cumpre a outra fun•‹o pr—pria das sepulturas: a de transmitir ˆs
gera•›es vindouras a lembran•a do defunto, deixar marcado no tempo quem foi em
vida e faz•-lo sobreviver atravŽs de uma poŽtica da aus•ncia.29

Damien Hirst. Death Explained, 2007. Vidro, a•o, tubar‹o, acr’lico e solu•‹o de formol. Cada pe•a:
198.4x514.2x122.8 cm

A representa•‹o na obra de Hirst coloca a morte perversamente em


exposi•‹o, p›e em evid•ncia a presen•a da matŽria, enquanto mostra ˆs claras a aus•ncia de
vida. Apesar de, por vezes, o aspecto do animal no interior da vitrine dar a ilus‹o de seguir
flutuando em ‡guas profundas, o que est‡ ali Ž apenas a monumentalidade de seu cad‡ver.
Hirst transforma a tumba em monumento completamente aparente, n‹o esconde o corpo,
colocando-o definitivamente ˆ mostra. A parte higi•nica que permanecia mascarada30 agora
est‡ cruelmente vis’vel. Se a fun•‹o da tumba Ž albergar restos humanos e armazenar
permanentemente a mem—ria coletiva e fundamentalmente a individual,31 Hirst rompe com esse
paradigma quando cumpre a necessidade de perpetuar a lembran•a com o pr—prio corpo do
defunto.

29
Idem, p. 330.
30
Idem, p. 44.
31
Idem, p. 328.
33

1.3.2 Ð O olhar e os sentidos (dentro de um limite)

Ver o que n‹o se pode ouvir, nem tocar, nem sentir, serve para incrementar a
sensa•‹o de que o interior Ž inacess’vel.

Richard Sennett32

A rela•‹o entre o olhar e os sentidos Ž singular no caso dos espa•os isolados


pela transpar•ncia do vidro, guardando, com certeza, as devidas diferen•as, tanto numa
pequena vitrine como na monumentalidade do espa•o arquitet™nico. A vitrine enquadra,
delimita um espa•o e atrai o olhar do espectador, que se direciona a ela enquanto atravessa
um obst‡culo pouco percept’vel. AtravŽs do seu enquadramento, a vitrine atrai o espectador
para um mundo em particular. Imp›e fronteiras numa determinada ‡rea, mas deixa ver atravŽs
de sua barreira transparente. ƒ um limite perme‡vel para o olhar, mas n‹o para o tato. O olhar
atravessa a transpar•ncia do vidro, porŽm os outros sentidos do ser humano s‹o exclu’dos
nessa experi•ncia. O vidro prop›e uma demarca•‹o de territ—rio, um certo distanciamento. A
fronteira imposta n‹o permite o toque, o contato com as m‹os. O observador percebe o que
est‡ no interior da vitrine, porŽm n‹o lhe sente o cheiro, a temperatura. Nem se experimenta a
for•a nem a qualidade das sensa•›es33. Os sons e os odores oferecidos pelo entorno, ou
mesmo pelo interior, n‹o atravessam a transpar•ncia de tal materialidade.

Dan Graham busca a percep•‹o do espectador para provocar-lhe a


experi•ncia consciente de estar sendo visto. A consci•ncia reflexiva34 do observador percebe
sua imagem refletida nos limites, nas paredes da obra, ou seja, o reflexo no vidro, e percebe
tambŽm o olhar do outro. Tem, assim, a sensa•‹o desconfort‡vel de estar como objeto,
enclausurado no espa•o da obra e sendo notado por outro espectador. A experi•ncia na obra
de Graham passa por diferentes n’veis de consci•ncia. Ou seja, encontra-se num jogo entre a
percep•‹o e a sensa•‹o35 Ð consciente de estar sendo visto e tendo a sensa•‹o de como essa
situa•‹o o afeta, a percep•‹o de estar exposto, de ser o objeto de outros olhares e a sensa•‹o
desagrad‡vel provocada pelo espa•o da obra. Nesse momento, com todos esses olhares,
inclusive o direcionado a si pr—prio, pode provocar um ver-se como nunca nos vemos e assim
fazer com que a m‡scara que mantemos possa cair. Os Pavilh›es de Graham jogam sob a
trama entre percep•‹o e sensa•‹o36. O espectador tem a consci•ncia de estar sendo visto
enquanto sente como toda a arquitetura dos espelhamentos dos Pavilh›es o afeta.

32
SENNETT. Op. cit., p.140.
33
STAROBINSKI, Jean. El ojo vivo. Valladolid: cuatro. ediciones, 2002. p.184-187. (t’tulo original: L«oeil vivant).
34
Idem, p. 184-187.
35
Idem, ibidem.
36
Idem, p. 184.
34

Dani Karavan. Memorial a Walter Benjamin, Port Bou, Espanha, 1992.

O monumento a Walter Benjamin, na fronteira entre Espanha e Fran•a,


projeto de Dani Karavan, Ž um exemplo paradigm‡tico nessa rela•‹o dos sentidos entre os
campos interior e exterior, uma proposta um pouco distante do espa•o totalmente fechado,
isolado como a vitrine procedente do modelo museogr‡fico. A obra Ž um monumento pœblico. A
pequena entrada Ž similar ˆ boca de uma esta•‹o de metr™, a qual se sobressai como parte
estranha ˆ paisagem mar’tima e montanhosa da regi‹o. O visitante atravessa uma passagem,
entrando literalmente na obra, ao passar por um tœnel, por meio de uma escadaria descendente.
Ao descer a passo lento e apreensivo, o visitante, de repente, depara-se com uma parede de
vidro que impede a continuidade da passagem. AtravŽs desse vidro, avista-se, abaixo, o
oceano. Ao levantar o olhar, percebe uma pequena montanha ao longe. O visitante apreende o
espa•o da maneira que o local lhe permite, ativando-lhe todos os seus sentidos. Ao lhe
estimular sensa•›es, provoca experi•ncias tanto provindas da natureza quanto da arquitetura
do monumento. Estrategicamente Ž uma passagem em parte fechada e em parte aberta. L‡
35

dentro, sente-se o isolamento arquitet™nico, a sensa•‹o claustrof—bica de um caminho estreito,


a princ’pio tenebroso. Quando o observador encontra-se a cŽu aberto, depara-se com o vidro,
ou seja, com o impedimento de seguir a travessia. ƒ a parte mais perversa da obra, pois o
espectador percebe o espa•o aberto, v• o mar por detr‡s do vidro, mas Ž impedido de
prosseguir. A ele s— Ž dado o direito de ver, olhar o espa•o aberto por detr‡s de uma vitrine.
Enquanto, tanto a arquitetura do local quanto a intensidade das sensa•›es por ele provocadas
lhe oferecem um œnica op•‹o, o que lhe resta Ž retornar.

A primeira parte da passagem Ž coberta, mas a parte final das escadas


praticamente termina no ar, em queda ao mar, um trampolim pronto para o salto mortal. Entre
essas duas situa•›es encontra-se o anteparo de vidro. Poderia ser simplesmente um dispositivo
de seguran•a, mas n‹o no caso de um monumento t‹o particular como este, dedicado ˆ
mem—ria de Benjamin. Nessa fronteira ele tentou salvar-se politicamente, contudo, diante da
tr‡gica impossibilidade de prosseguir, terminou com sua vida. Uma fenda para o olhar, porŽm
um limite para o corpo, deixa ver atravŽs de seu plano de vidro a œnica sa’da que restava a
Walter Benjamin, ou seja, longe, muito longe, em dire•‹o ao mar. PorŽm, infelizmente
permanece enclausurado. Apenas seu desejo ultrapassa as demarca•›es impostas. Esse
obst‡culo simboliza perfeitamente sua situa•‹o, deixa passar a vis‹o mas n‹o o corpo. A
passagem, esse estreito corredor com o anteparo de vidro, quase no final, Ž a pr—pria janela da
c‰mara fotogr‡fica enquadrando um determinado espa•o na paisagem. Enquanto o indiv’duo
que desce e sobe a escadaria tenta focar a imagem ora de seu pr—prio reflexo no vidro, ora da
paisagem mar’tima Ð bela homenagem a Walter Benjamin.

A passagem, na verdade, mantŽm o observador num espa•o entre, nem bem


no interior, nem completamente no espa•o externo. Foi constru’da aparentemente com os
mesmos materiais das passagens parisienses, o ferro e o vidro. A primeira vis‹o cai
diretamente no mar e permanece em seguida entre o mar e as pedras da montanha frontal.
Hoje esse vidro apresenta sinais do tempo. Como a regi‹o Ž de montanha pedregosa e de
fortes ventos, isso faz com que algumas pedras se choquem contra o vidro, o que o deixa em
parte trincado. As linhas desenhadas revelam o aspecto in—spito porŽm m‡gico do local. O
observador, ao descer a escadaria, conforme a luminosidade do dia, com sorte se depara com
sua pr—pria imagem refletida na barreira transparente, cuja imagem permanece flutuante. A
sensa•‹o Ž de a imagem quase tocar o mar, mas ele Ž inacess’vel mesmo para a imagem, a
qual segue na superf’cie de vidro.

O visitante, a princ’pio, sente uma atmosfera claustrof—bica na estreiteza e na


penumbra do tœnel, o qual leva ˆ sensa•‹o de opress‹o. Mas, em seguida, percebe a
luminosidade ao fundo, justo a’ uma barreira transparente. Quando ent‹o sente a for•a do
vento, sente o sabor, o cheiro do mar. O observador v• na arquitetura da passagem um enorme
36

contraste entre clausura e liberdade, enquanto deseja romper o obst‡culo. Ademais, a


passagem encontra-se praticamente dentro da terra, encravada na montanha. O projeto do
memorial exige do observador uma viv•ncia. As v‡rias situa•›es proporcionadas pelo autor
precisam ser percorridas. Somente o percurso do trajeto possibilita sentir sua ess•ncia. O
memorial est‡ completamente adaptado ao seu entorno. Num n’vel muito pequeno, mas
fant‡stico, pela representa•‹o constru’da, o espectador ao atravessar o tœnel sente a angœstia,
aproxima-se da experi•ncia intensa e tr‡gica na qual encontrava-se Walter Benjamin.

Dani Karavan. Memorial a Walter Benjamin, Port Bou, Espanha, 1992

O material utilizado por Karavan, na constru•‹o do memorial, foi o a•o corten,


o qual oxida atŽ um determinado ponto, assim ficando com o aspecto semelhante ao ferro
oxidado, matŽria dura e firme. O ferro foi o material utilizado na constru•‹o das passagens
parisienses, e, anteriormente nos trilhos dos trens. O que Ž muito significativo, Benjamin, como
judeu alem‹o, justamente morre em Port Bou depois de atravessar os Pirineus fugindo do
nazismo. Os trilhos dos trens, o œltimo trajeto da grande maioria das v’timas do nazismo. Uma
frase de Benjamin Ž escolhida para estar gravada no obst‡culo no final da passagem:

ƒ tarefa mais ‡rdua honrar a mem—ria dos seres an™nimos do que as pessoas
cŽlebres. A constru•‹o hist—rica est‡ consagrada ˆ mem—ria dos que n‹o t•m nome.
37

1.3.3 Ð O sentido de posse (o enquadrar como posse)

Fazer as coisas «ficarem mais pr—ximas« Ž uma preocupa•‹o t‹o apaixonada das
massas modernas como sua tend•ncia a superar o car‡ter œnico de todos os fatos
atravŽs da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresist’vel a necessidade de
possuir o objeto, de t‹o perto quanto poss’vel, na imagem, ou antes, na sua c—pia, na
sua reprodu•‹o.

Walter Benjamin37

Walter Benjamin discute Òuma necessidade de apoderar-se do objeto em sua


maior proximidadeÓ38. Dentro desse ponto de vista, verifica-se a possibilidade de encarar o
enquadramento como uma atitude de aproxima•‹o e de posse enquanto tal moldura reœne e
traz para perto os objetos num mesmo local. Ou seja: a ‡rea determinada pelos limites da
vitrine pode significar um apoderar-se de um pequeno territ—rio, assim como as coisas nele
inseridas. A mesma situa•‹o pode ser proposta tambŽm para a demarca•‹o conferida pela
moldura na pintura, assim como a base para a escultura. Dessa maneira, o espa•o de
representa•‹o acontece num campo de dom’nio pr—prio. Enquadrar significa, ent‹o, possuir,
delimitar um territ—rio, manter uma rela•‹o de poder com o objeto enclausurado, uma atitude de
impor fronteiras no espa•o de encena•‹o da arte. O limite da vitrine tem ent‹o uma fun•‹o
art’stica, separar o espa•o de representa•‹o do campo real e proteger este espa•o, enquanto
local de exibi•‹o.

O artista, no Renascimento, come•a a solicitar um reconhecimento como


intelectual e n‹o mais como mero artes‹o. Por conseguinte, exige tambŽm a autoria de suas
idŽias. Para tanto, ele precisa delimitar o campo de a•‹o para que fique claro o que Ž uma obra
de arte e o que n‹o Ž. Ou seja, separar o que faz parte do espa•o do mundo em comum e o
que pertence ˆ esfera da arte. Essa atitude n‹o deixa de ser uma forma de delimitar para
possuir um pequeno espa•o, ou seja, uma forma de determinar a posse n‹o somente do
objeto, mas tambŽm de um pequeno entorno espacial. J‡ o artista do sŽculo XX d‡ in’cio a um
processo distinto. Ele sente a necessidade de dominar o espa•o porque sua rela•‹o com o
objeto estrŽia um processo de distanciamento do ato criativo. Ele j‡ n‹o inventa o objeto, no
sentido atŽ ent‹o adotado, mas cria um mecanismo.

37
BENJAMIN, Walter. Magia e tŽcnica, arte e pol’tica: ensaios sobre literatura e hist—ria da cultura. Tradu•‹o
SŽrgio
Paulo Rouanet. Pref‡cio Jeanne Marie Gagnebin. S‹o Paulo: Brasiliense, 1994. p.170.
38
BENJAMIN, Walter. La obra de arte en la Žpoca de su reproductibilidad tŽcnica. Tradu•‹o: AndrŽs E. Weikert.
Introdu•‹o: Bol’var Echeverr’a. MŽxico: Editorial Itaca, 2003. p.46-7.
38

Diante do enquadramento determinado pela caixa de vidro, o artista


estabelece uma diferencia•‹o atravŽs desse mecanismo. Portanto, ele escolhe o que ir‡ para o
espa•o interior da vitrine, elegendo, separando e isolando objetos uns em rela•‹o aos outros.
Arma toda uma opera•‹o art’stica para preservar o espa•o de representa•‹o. Dessa forma,
trata de dominar, por menor que seja, um campo de a•‹o. Ao demarcar o espa•o, o artista
aposta em revalidar uma ‡rea definida de atua•‹o. Na verdade, utiliza o mecanismo do
dispositivo de exposi•‹o para tratar do dom’nio de territ—rio, enquanto busca autenticar a
autoria de uma estratŽgia circunstancial.

Peter Fleissig parte de uma expans‹o do conceito de vitrine, ao analisar a TV


e a fotografia como vitrines, e o v’deo como a neovitrine da era eletr™nica39. O autor considera a
vitrine como um frame (moldura, enquadramento) e a TV como uma vitrine ilus—ria. O
enquadramento da tela da TV favorece a separa•‹o entre o espa•o interior, o mundo ilus—rio, e
o espa•o exterior, a esfera do mundo comum. Dentro dessas molduras singulares, tanto a TV
quanto a vitrine trabalham o processo de exibi•‹o. A vitrine museogr‡fica exp›e, na maioria
das vezes, objetos f’sicos, j‡ a TV distingue-se pela sua pr—pria natureza e exibe apenas a
imagem. Tanto uma como outra mantŽm um distanciamento e uma descontinuidade espacial e
temporal com a realidade. PorŽm, n‹o restam dœvidas, a TV aproxima e oferece a possibilidade
de posse n‹o s— do objeto como do mundo todo em imagem, ademais em sua completa e
infinita reprodutibilidade.

1.3.4 Ð O observador nos limites da vitrine

O Pavilh‹o Barcelona de Mies van der Rohe, os pavilh›es e labirintos de Dan


Graham, Visiones Sedantes de Ana Maria Tavares40, e o Memorial a Walter Benjamin de Dani
Karavan incluem o visitante praticamente incorporado ˆ obra, refletido em diferentes situa•›es
nas superf’cies transparentes. O espectador olha-se e Ž ao mesmo tempo observado,
enquanto j‡ n‹o Ž mais somente a obra a estar em exposi•‹o. N‹o s— o espectador est‡
presente, como tambŽm sua imagem refletida nas superf’cies da obra. Poder’amos encarar,
nesse caso, o visitante como uma testemunha41 de si pr—prio e do outro. A transpar•ncia
presente nas paredes de vidro de tais trabalhos extrapola os limites da vis‹o e ao mesmo
tempo captura o observador. Qual Ž o valor de exposi•‹o, de experi•ncia do sujeito proposto
pelos trabalhos? O sujeito Ž chamado pela obra a entrar nela, ele v• nesse espa•o a si mesmo,
em imagem, e ao outro, tanto em imagem quanto fisicamente. Ele Ž chamado passivamente ˆ
obra, pela pr—pria obra, para depor sobre si mesmo e sobre o outro.

39
FLEISSIG, Peter. L•che-Vitrine. In Parkett, nœmero 35, 1993. p. 102-113.
40
Discutimos cada uma dessas obras no percorrer da tese.
41
BORDO, Jonathan. The Witness in the Errings of Contemporary Art. In DURO. Op. cit., p.180.
39

1.4 Ð Contexto de vitrine

Esta j‡ n‹o Ž uma arte que se suspende na parede, mas sim que se desenvolve no
espa•o, precipita em conversa•›es ou atos, se consuma em A•›es, e j‡ n‹o est‡
vinculada ao museu.

Joseph Beuys 42

Se os Òcontornos n‹o s‹o mais suficientes para delimitar a obra e se para a


arte contempor‰nea a moldura espacial da obra n‹o a separa mais do mundo cotidianoÓ43,
por que o artista insiste em delimitar o espa•o do objeto por meio de uma vitrine ou de um limite
pr—ximo a ela?

A experi•ncia visual Ž inesquec’vel ao observador quando se depara com o


espa•o arquitet™nico repleto de uma quantidade absolutamente enorme de terra em seu
interior. A monumentalidade da matŽria faz a ‡rea, de dimens‹o consider‡vel, transformar-se
em pequena para abrigar tal desafio. A concep•‹o da obra realizada por Walter De Maria, em
1977, The New York Earth Room, num primeiro momento permite ver uma grande ironia. Em
plena cidade de Nova York, nos deparamos com uma sala inteiramente repleta de terra. A
primeira atitude do visitante pode ser a de riso Ð por que n‹o? Ð quando se p›e a imaginar
como toda aquela terra chegou ao primeiro andar de uma galeria de arte absolutamente
branca, neutra. Outro fator contribuinte para essa rea•‹o seria a exist•ncia de tal matŽria num
local da cidade onde praticamente n‹o existe a possibilidade de contato com ela. O observador
olha toda aquela quantidade de terra e apenas pode visualiz‡-la. A ele Ž negada a entrada. O
plano de vidro, cuja altura d‡ praticamente um pouco abaixo de sua cintura, o isola da
experi•ncia, da viv•ncia. N‹o Ž permitido tocar a terra. O pr—prio trabalho imp›e tal situa•‹o, o
espectador n‹o se atreve a aproximar-se. Òƒ numa vitrine que se v• a terra, como se as for•as
indiscut’veis da natureza precisassem de clausura para ser hoje experimentadas.Ó44

42
Joseph Beuys. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, 1994. Concepto y organizaci—n de la exposici—n y
cat‡logo: Harald Szeemann. p.241.
43
TASSINARI. Op. cit., p.75-91.
44
TASSINARI. Op. cit., p.88.
40

Walter De Maria. The New York earth Room, 1977.


Terra, turfa e cascas de ‡rvores, 56 cm de altura, 335 m2 de ‡rea. Dia Center for the Arts, Nova York.

Outro contexto, ligado de certa forma ˆ vitrine, ocorre na sua maior parte
tambŽm na cidade de Nova York. PorŽm t•m in’cio na Alemanha, I like America and America
likes me, uma a•‹o de Joseph Beuys. O artista sai numa ambul‰ncia de sua casa, em
Dusseldorf, atŽ o aeroporto, envolto em feltro. Praticamente isolado de tudo e de todos, est‡,
na verdade, dessa forma interpretando um ser doente (em 1974, os Estados Unidos estavam
implicados na Guerra do Vietn‹). Entra num avi‹o-ambul‰ncia que o leva atŽ Nova York e em
seguida Ž conduzido em outra ambul‰ncia atŽ a Galeria RennŽ Block. Durante o trajeto n‹o
entra em contato com absolutamente ninguŽm. Como um acontecimento ef•mero, permanece
em uma das salas da galeria durante tr•s dias45, apenas na companhia de um coiote selvagem
Ð recŽm capturado e trazido para o interior do local. ÒO coiote, adorado como uma espŽcie de
deus dos ’ndios americanos, que, antes de ser confinado nas reservas, mantinha uma rela•‹o
de harmonia com a natureza, se converte no expoente de uma perda, no «expoente do
sofrimento« para figurar a Cristo (...).Ó46 Todo o processo de representa•‹o da a•‹o desenvolve
a cura do homem ocidental, enquanto este simboliza o espectador, o qual transforma-se em
chaman envolto em feltro. E assim, com o cajado de pastor, reœne-se ao animal divino, que lhe
traz a cura ao aceitar sua alma e intelig•ncia de animal.47

O ser que se afasta da cidade e a ela regressa, o ser que se abstrai da sociedade ou
que voltar‡ a fazer parte dela, Ž um ser `atenuado« a quem somente convŽm ve’culos

45
existem diferentes dados sobre o tempo que Beuys permanece na galeria, entre 3 ou 5 dias, 1 semana, ou 1 m•s.
46
LEUTGEB, Doris. Cristo (Impulso de). In Joseph Beuys. Op. cit., p.253.
47
GRAEVENOTZ, Antje von. Curar. In Joseph Beuys. Op. cit., p.254.
41

hospitalares. A cultura, a civiliza•‹o tŽcnica produz um inv‡lido, e Beuys, em sua


coberta de feltro, se assimila a um morto em vida. (..) O enfrentamento entre o artista e
o coiote, e seu rec’proco amansamento, simbolizam a reconcilia•‹o da cultura e da
natureza.48

Joseph Beuys. I like America and America likes me. Galeria RennŽ Block, 1974

O lado da sala direcionado para o espa•o interior foi fechado com uma grade,
e o piso, em parte forrado com palha. Nessa jaula-vitrine, o peri—dico americano financeiro Wall
Street Journal, objeto que representa o poder capital e o de propriedade, era entregue
diariamente. Essa a•‹o foi documentada numa sŽrie de fotos enviadas a um detento
condenado ˆ pris‹o perpŽtua em Glasgow. Esse detento realiza uma escultura a partir das
fotos e a oferece a Beuys quando esse o visita. Dessa forma, enfim, o artista encerra a a•‹o
que representa o novo papel conferido por Beuys ao artista: intŽrprete da crise, formulador de
outras temporalidades, agitador, que investe com o dom de reativar a criatividade de todos por
um retorno imagin‡rio aos primeiros tempos, ao pensamento original dos ideais e das fun•›es
primitivas.49 Ou seja, Beuys trabalha o conceito de liberdade.

1.5 Ð O Cubo Branco

O vazio, Òsopro vitalÓ.

Yves Klein

Brian O!
Doherty, em seu livro No interior do cubo branco: a ideologia do
espa•o da arte, analisa a quest‹o do contexto criado pela galeria sobre o objeto de arte, e a
import‰ncia dada ao espa•o de exibi•‹o a partir do per’odo moderno. Analisa o espa•o da

48
LAMARCHE-VADEL, Bernard. Joseph Beuys. Madrid: Ediciones Siruela, 1994. p.35
49
Idem, p.36.
42

galeria, onde a totalidade do mundo exterior n‹o deve interferir. Assim, uma das inten•›es
fundamentais Ž o interior das salas ser constru’do sem janelas, as paredes pintadas de branco
formando, praticamente, um œnico plano, evitando interrup•›es. Nessa forma especial de
espa•o, a arte tem vida pr—pria. Tal circunst‰ncia imp›e um estado atemporal, o que implica
uma condi•‹o de posteridade ˆ arte a’ situada. A semelhan•a a um cubo branco evita qualquer
contato n‹o procedente de seu pr—prio ambiente. A galeria busca, na verdade, apenas as
rela•›es constru’das em seu pr—prio contexto interno. Todas as coisas encontram-se
minuciosamente em seu lugar, Ž a consagra•‹o da tecnologia da estŽtica. O tempo nesse local
Ž paralisado, Òa arte existe numa espŽcie de eternidade de exposi•‹o. O recinto suscita o
pensamento de que, enquanto olhos e mentes s‹o bem-vindos, corpos que ocupam espa•o
n‹o o s‹o.Ó50

Quando a pintura deixa para tr‡s a perspectiva e come•a a trabalhar a


superf’cie, coloca em marcha um processo para desmantelar a moldura e, de forma conceitual,
invadir a parede. Nesse percurso, alastra-se, tambŽm, ao espa•o do espectador. Dom’nio
abstrato, porque, na verdade, a materialidade da pintura continua na superf’cie delimitada da
tela. Uma de suas inten•›es Ž, por meio desse andamento, permanecer mais pr—xima do
observador, ou seja, do campo real. Dessa forma, a pintura solicita um observador com corpo e
olhar. Ela agora est‡ em busca tambŽm de uma rela•‹o f’sica. PorŽm, o cubo branco
paradoxalmente Ž hostil ao visitante. E a partir do mesmo procedimento retira o visitante do
espa•o. Esse local, agora, pertence somente ˆ obra de arte. O visitante entra, mas n‹o faz
parte, n‹o participa. A galeria como um todo n‹o deixa todavia de ser um espa•o confinado ao
olhar. Tal demarca•‹o proporciona o consagrar-se ˆ contempla•‹o e n‹o oferece abertura ˆ
participa•‹o. A separa•‹o entre o espa•o da obra e o do observador continua absolutamente
definida. ConseqŸentemente, a extens‹o do limite do objeto art’stico tambŽm segue bem
determinada. Apesar de invadir seu entorno, a obra de arte realmente estende-se, porŽm
afasta o espectador.

Mesmo a obra de arte conquistando o espa•o do espectador, o modelo do


cubo branco insistentemente retira toda e qualquer possibilidade de um contexto cotidiano.
Assim, nesse local, a arte segue sendo sublimada e contemplada. Apesar de o espectador
estar inserido no mesmo espa•o de representa•‹o da arte, insistentemente ainda desse corpo
s— Ž requerido seu olhar. Se a tela Ž suporte bidimensional, a galeria, mais especificamente o
cubo branco, Ž contexto de representa•‹o na tridimensionalidade do espa•o. O espectador
est‡ ali, mas a rela•‹o desejada e constru’da Ž apenas com a sua dist‰ncia. Esse
procedimento Ž aparente principalmente nas fotos de documenta•‹o de exposi•›es, quando o
visitante nunca est‡ presente. Ele ÒinterfeririaÓ no espa•o expositivo, nesse local absolutamente

50
OÕDOHERTY. Op. cit., p.4.
43

limpo, impec‡vel e branco, onde todas as pe•as possuem um lugar ideal. Na verdade, Òo Olho
Ž o œnico habitante da assŽptica foto da exposi•‹o.Ó51

Arman. Le Plein. Galerie Iris Clert. Paris, 1960.

Numa concep•‹o oposta ao Le Vide (O Vazio) de Yves Klein, realizado em


1958, Arman produz o trabalho Le Plein (O Pleno), em 1960. Ambos acontecem na Galerie Iris
Clert. O Pleno foi uma resposta ao Vazio de Klein, quando Arman transforma radicalmente a
galeria numa vitrine. O artista preenche a galeria com todo e qualquer tipo de coisas, o objeto
toma conta literalmente do espa•o. Ele converte expressamente a galeria numa vitrine de
sucata, em que o visitante apenas observa do lado de fora, atravŽs da janela, atulhada de
objetos, pleno de quinquilharias. O artista exclui o observador e o obriga a contemplar n‹o a
arte mas a galeria52. Na verdade, Arman transforma a galeria numa grande vitrine a ser
observada. Enquanto explora o conceito de vitrine, o observador atinge a obra apenas com o
olhar, seu corpo n‹o entra no espa•o da galeria. ƒ quase um paradoxo. Para Arman, esses
detritos e escombros do cotidiano tornam-se documentos sociol—gicos.53

(...) sua pilha Ž disposta de forma bastante art’stica e, numa concess‹o, sobre os
trechos de paredes livres, com um humor meio rosa, meio negro, reuniu (dentro de
caixas) objetos como dentaduras (La Vie ˆ pleines dents), velhos pares de —culos e
barbeadores elŽtricos, que revelam o verdadeiro tom da empreitada. Trata-se de uma
disserta•‹o humanista, sobre um certo estado de decomposi•‹o (o nosso).54

51
Idem, p.41.
52
OÕDOHERTY. Op. cit. p.111
53
Arman. Paris: Edi•›es do Jeu de Paume rŽunion des musŽes nationaux, 1998. p.36.
54
Idem, p.163. Cronologia: Daniel Abadie.
44

ÒO resultado foi alucinante. Os passantes podiam ver, dentro de uma vitrine de 3.50 m de
altura, um espetacular amontoado de lixo.Ó55 A entrada da galeria fica assim impedida, o
visitante Ž obrigado a passar por uma abertura lateral.

Galerie Iris Clert. Paris,

Klein parte de um paradoxo Ð a possibilidade de uma separa•‹o entre o


espa•o e o universo cotidiano dos objetos, e desenvolve o projeto de esvaziar completamente
o espa•o da galeria. Olha-se o local impecavelmente branco, vazio, pronto para receber algo.
PorŽm, o artista prop›e ao espectador a simples experi•ncia do vazio. Ele retira praticamente
todos os m—veis e objetos palp‡veis da galeria e deixa apenas uma vitrine, mas tambŽm a
esvazia. Yves Klein trabalha o espa•o da vitrine da mesma forma que o da galeria. Faz uma
analogia entre um e outro. Desocupa totalmente os dois espa•os e busca a celebra•‹o de um
ritual do vazio transcendental. N‹o Ž apenas a atitude de esvaziar, ele tambŽm os pinta
inteiramente de branco. Com isso exp›e o visitante ˆ sensibilidade pict—rica, o pr—prio artista
passa dois dias inteiros pintando o branco das paredes. Klein, nessa proposta, acentua o valor
da galeria e da vitrine como espa•o de exibi•‹o, sem deixar de fazer uma cr’tica ao espa•o
expositivo.

Na vitrine, Klein trabalha tambŽm a quest‹o do isolar, separando de certa


forma o vazio. Mostra duplamente apenas o enquadramento, a moldura. Por que deixar a
vitrine? Que rela•‹o podemos encontrar nessa atitude? O visitante passa para dentro do vazio
da galeria, porŽm o vazio da vitrine Ž atingido apenas pelo olhar do espectador. Corpo e olhar
penetram o vazio da galeria, mas apenas a vis‹o transp›e o plano de vidro que isola o interior
da vitrine. Para O!
Doherty, a vitrine esbranqui•ada Ž a s‡tira do conceito de exposi•‹o. Klein

55
Idem, p.162. Depoimento de Iris Clert.
45

trabalha todo um processo de deslocamento do olhar para o espa•o expositivo, para a moldura
espacial e n‹o mais somente ao objeto.

Nessa proposta, Klein, na verdade, desmonta o sistema da arte; com o


branco absoluto, anula algo. Subtrai todos os objetos do interior da galeria, deixa apenas a
vitrine, elimina o mais substancial da arte, o objeto. O artista, quando quer qualificar uma
espŽcie de um referente œltimo da obra de arte, designa o vazio.56 Uma radicalidade que nos
coloca frente a frente com esse v‡cuo. Poder’amos comparar o branco de Klein com a mœsica
de Webern enquanto nos oferece o sil•ncio, ou ˆ poesia de MallarmŽ enquanto nos prop›e a
p‡gina em branco, o espa•o entre, ou seja, assinala uma parada num grande v‹o entre
s’labas, palavras, p‡ginas, tentando dizer aquilo que n‹o pode ser dito, que Ž precisamente o
que fica sugerido pela p‡gina em branco.57 MallarmŽ nos apresenta o branco absoluto,
Malevich escandaliza com o branco sobre branco, enquanto Klein nos introduz de corpo e alma
no espa•o completamente despejado, branco, um v‡cuo transcendental, um vazio intenso e
silencioso.

Os exemplos aqui expostos nos ajudam a entender um pouco a raz‹o pela


qual alguns artistas elegem trabalhar no espa•o isolado da vitrine. De uma maneira ou outra
reafirmam a separa•‹o entre a esfera real e o campo de representa•‹o.

56
TRêAS, Eugenio. La Aventura Filos—fica. Madrid: Mondadori Espa–a, S.A., 1988. p.254.
57
Idem, p.252.
46

Cap’tulo II

Arquitetura ÒtransparenteÓ

(...) ver s— se pensa e s— se experimenta em œltima inst‰ncia numa experi•ncia do


tocar.

Georges Didi-Huberman58

a ‡rvore dos tamancos (L«albero degli zoccoli), de Ermanno Olmi. It‡lia, 1978.

A partir dos v’nculos estabelecidos entre o indiv’duo e o espa•o com o qual


convive, defrontaremos as rela•›es arquitet™nicas entre a ‡rea externa e a interna, entre o
espa•o aberto e o fechado. Diante disso, analisaremos o valor de exposi•‹o e as poss’veis
proximidades com o espet‡culo. Assim, consideraremos a significa•‹o da arquitetura atravŽs do
espa•o utilizado pelo indiv’duo, estabelecendo, ent‹o, o confronto entre as obras a serem aqui
destacadas, sem deixar de simultaneamente relacion‡-las com o espa•o isolado da vitrine, a fim
de conhecer as semelhan•as ou as diferen•as. Dentro desse contexto, observaremos
criticamente a arquitetura transparente.

58
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradu•‹o: Paulo Neves. S‹o Paulo: Editora 34,
1998. p.31.
47

2.1 Ð O interior da catedral e o ambiente da f‡brica

Em 1789, a revolu•‹o profunda est‡ a’, na inven•‹o de um olhar pœblico que se


pretende ci•ncia espont‰nea, uma espŽcie de saber em estado bruto, cada um sendo
para os outros, (...) um investigador benŽvolo ou, melhor ainda, uma G—rgone mortal.

Paul Virilio59

Apenas em alguns pontos essenciais a esta pesquisa comparamos o espa•o


arquitet™nico das catedrais, assim como o espa•o da f‡brica, com o interior da vitrine. N‹o
exatamente em rela•‹o ˆ transpar•ncia, mas no aspecto relativo ao conflito entre o espa•o
fechado e o espa•o aberto, no caso, a cidade. Para tanto, apoiamo-nos nos pressupostos
colocados por Richard Sennett em La conciencia del ojo.

A raz‹o de estabelecer essa rela•‹o entre a vitrine e a arquitetura da catedral


surge a partir das diferen•as sociais entre o interior da catedral e o espa•o urbano. ƒ relevante
analisar quais as rela•›es entre o espa•o sagrado e o ambiente profano e aproximar tais
quest›es ˆs idŽias de Walter Benjamin concernentes ao valor de exibi•‹o e o valor de culto.
Uma das inten•›es Ž verificar a presen•a do sublime n‹o s— no espa•o sacro como tambŽm no
espa•o laico.

Como qualquer outro espa•o arquitet™nico, as catedrais suscitam um


determinado estado de esp’rito em seus visitantes. Provoca uma rela•‹o direta com o corpo
f’sico Ð envolvente, dominante Ð o que pode produzir no indiv’duo um estado reflexivo ou
opressivo. Na verdade, tais sensa•›es partem de todo e qualquer tipo de ambiente. Por
exemplo: a ‡rea fechada do templo grego era constru’da para os deuses, enquanto os ritos
eram realizados ao seu redor. O pœblico n‹o tinha acesso ao interior, este era reservado apenas
ˆs divindades. J‡ no caso das catedrais, todo o interesse encontra-se na entrada e na
explora•‹o do espa•o interno. Uma quest‹o mais pr—xima ˆ problem‡tica sacra Ž a do
indiv’duo, no ambiente da catedral, ser impelido a sentir-se observado e controlado. No interior
desse local, o visitante se sente espionado. A pr—pria arquitetura olha para seu visitante. Sem
dœvida existe um distanciamento de tais espa•os em rela•‹o ao espa•o da vitrine. No entanto,
acontece uma proximidade quando s‹o associadas e lembradas as sensa•›es de sublima•‹o
do lugar, assim como a rela•‹o entre interior e exterior ou tambŽm a possibilidade de acesso ou
mesmo a sua interdi•‹o.

59
VIRILIO, Paul. La m‡quina de visi—n. Tradu•‹o: Mariano Antol’n Rato. Madrid: Ediciones C‡tedra, 1998. p.49.
48

Por outro lado, se analisamos a quest‹o divina da entrada de luz, verificamos


o seguinte: enquanto a janela rom‰nica cumpre fun•›es de v‹o aberto ao exterior, ou seja,
simplesmente um foco de luz, as janelas do g—tico, alŽm de aumentarem suas dimens›es,
possuem fun•›es distintas. A exig•ncia do aumento da dimens‹o das janelas n‹o implica
apenas um aumento de luminosidade em seu interior. A diferen•a fundamental est‡ na
transforma•‹o radical nas rela•›es entre v‹o e parede e a possibilidade de estabelecer um
sistema de ilumina•‹o absolutamente inŽdito.60 Esse v‹o aberto n‹o Ž exatamente um foco de
luz, mas sim uma ÒparedeÓ. Ou seja, Ž a convers‹o da janela em uma muralha translœcida,
quando a abertura converte-se em agente transformador da luz penetrante.61

O g—tico cria assim um ambiente completamente interior; a pr—pria


materialidade compacta das paredes Ž substitu’da por uma materialidade fr‡gil e penetr‡vel,
que deixa apenas passar certa luminosidade, e oferece nesse processo uma luz n‹o natural,
alterando a luminosidade real. AtravŽs do artif’cio da luz n‹o exatamente natural se estrutura
todo um complexo sistema de met‡foras visuais para simbolizar a idŽia de divindade.62

Uma das fun•›es das vidra•as na arquitetura g—tica Ž a configura•‹o


simb—lica do espa•o.63 As paredes desaparecem no sentido arquitet™nico, ou melhor, s‹o
substitu’das e disfar•adas pelas vidra•as coloridas. A idŽia de limite, n‹o como enquadramento
e fechamento de um espa•o, mas como matŽria impenetr‡vel, foi omitida por completo.64 O
interior g—tico permanece completamente isolado e desconectado em matŽria de luminosidade
provinda do exterior.65

No sŽculo XV, a rela•‹o arquitet™nica muda radicalmente. AtŽ ent‹o, com


exce•‹o do templo grego, o indiv’duo era praticamente dominado pelo edif’cio. Agora a
arquitetura j‡ n‹o se exalta por princ’pios religiosos, mas segundo o processo humano. A
Renascen•a traz o controle intelectual do homem sobre o espa•o arquitet™nico e
conseqŸentemente ativa a express‹o individual. No sŽculo XVI, acontece a exclus‹o das for•as
visuais din‰micas. As paredes t•m presen•a corp—rea com componentes decorativos, Ž
presente a oposi•‹o entre espa•o interno e externo. Ap—s longo per’odo de preocupa•›es, por
parte da igreja, com o ambiente interno, aproxima-se o sŽculo XIX para deparar-se com os
problemas do espa•o urbano. AtravŽs da explora•‹o do vidro, a urbe realiza, ˆ sua maneira, o
contato entre o espa•o interno e externo.

60
ALCAIDE, Victor Nieto. La luz, s’mbolo y sistema visual. Editora C‡tedra, 1978. p.21-22.
61
Idem, p.22-23.
62
Idem, p.44.
63
Idem, p.39.
64
Idem, p.37.
65
Idem, p.27.
49

Sennett compara historicamente o espa•o da igreja com um interior ordenado,


e analisa como contraponto o espa•o da cidade, local confuso e desordenado. Verifica a
inexist•ncia de uma continuidade entre o espa•o pertencente ˆ igreja e o ambiente da cidade. A
partir desses princ’pios, o autor trabalha o dualismo entre interior e exterior, discutindo a rela•‹o
do indiv’duo com a sua pr—pria exposi•‹o em rela•‹o ao outro, ou seu recolhimento ao espa•o
interno como local de prote•‹o. Analisa com isso as rela•›es do indiv’duo e as diferen•as
encontradas entre os espa•os de autoridade e os espa•os de liberdade.

Com que finalidade Sennett desenvolve sua an‡lise a partir desse conflito do
indiv’duo entre o ambiente interior e o exterior? Ele justamente questiona a problem‡tica de
uma cidade neutralizada, onde as pessoas encontram-se desejosas de tolerar um cen‡rio
brando. Ou seja, uma aus•ncia de vida nas ruas. Esse vazio visual desperta uma peculiar
sensa•‹o de autoridade.66 A cidade como espa•o ameno, neutralizador, destr—i a amea•a do
contato social. Ela encontra-se vazia, as diferen•as s‹o retiradas para fora dela, mais
exatamente para os seus distantes arredores. No cen‡rio da vida exterior, onde todas as
diferen•as humanas encontram-se expostas, existe uma tentativa constante em anular tais
diversidades. Esse aspecto das cidades reflete um medo ˆ exposi•‹o, um expor-se em meio ˆ
multid‹o, entre desconhecidos. Para Sennett, esse medo surge em parte de nossa vida
religiosa. Na verdade, ele fala da constru•‹o de uma muralha que separa a vida interior da vida
exterior. E desse conflito entre a vida espiritual e a vida mundana o ser humano decide
acomodar-se e proteger-se nessa neutralidade imposta ˆ cidade. Sennett v• justamente nossa
cultura necessitada de uma arte da exposi•‹o, do indiv’duo expor-se, refletir sobre o que v•,
mostrar-se, deixar-se ver, olhar, contemplar o outro, o diferente.

Historicamente, o lugar considerado protegido era o templo, a igreja. Hoje Òo


lar passou a ser a vers‹o profana do refœgio espiritual.Ó67 A dist‰ncia entre o pœblico e o privado
Ž cada vez maior. A preocupa•‹o de Sennett mostra que, na verdade, entre as diferen•as
encontradas na rua ou em outras pessoas, n‹o vemos amea•as sentimentais, e sim vis›es
necess‡rias, as quais nos mostram como proceder perante a vida, tanto no aspecto individual,
como no coletivo.

O dualismo entre interior e exterior, enquanto forma•‹o urbana, foi vis’vel pela
primeira vez na constru•‹o medieval, quando o centro espiritual destacava-se mediante a
cria•‹o de uma descontinuidade68, a qual acontecia na diferen•a entre o espa•o da igreja,
absolutamente ordenado, e o exterior, aos seus arredores, completamente desordenado.
Segundo Sennett, uma vis‹o completamente destrutiva, pois o indiv’duo perde o interesse pelo

66
SENNETT. Op. cit., p.50-54.
67
Idem, p.37.
68
Idem, p.26-34.
50

exterior como dimens‹o da diversidade e do caos enquanto valor moral, em contraste com o
interior, onde tudo se encontra absolutamente definido.69

A estratŽgia de encerrar o sujeito Ž vis’vel no regime da f‡brica. Aqui tambŽm


Ž presente, desde sua origem, rela•›es de poder e dom’nio social. Ou seja, encerrar para
disciplinar e controlar o processo de trabalho. A concentra•‹o do trabalhador num mesmo local
poderia proporcionar o controle e a comercializa•‹o da produ•‹o dos artes‹os, maximizar a
produ•‹o e controlar a inova•‹o tecnol—gica, uma permanente apropria•‹o do saber por parte
n‹o do trabalhador e sim do poder. Nota-se, ent‹o, que a constitui•‹o do sistema de f‡brica
surge muito mais de uma situa•‹o organizativa do que de uma necessidade tŽcnica.70 Na
verdade, Òas tecnologias empregadas constitu’ram-se em elementos de controle e de hierarquia
na produ•‹oÓ71. A no•‹o de tempo œtil est‡ diretamente associada ˆ quest‹o do regime de
f‡brica, e, por conseguinte com o sistema de controle. ÒOs rel—gios nas f‡bricas eram
freqŸentemente adiantados de manh‹ e atrasados ˆ noite; em vez de serem instrumentos para
medir o tempo, eram usados como disfarces para encobrir o engano e a opress‹o.Ó72

O rel—gio tem esta fun•‹o: fragmentar o tempo e transform‡-lo em tempo


mec‰nico e objeto de poder. Como vimos anteriormente, a pr—pria cidade foi fragmentada em
forma de quadr’cula. AlŽm da praticidade impl’cita nesse sistema, a idŽia primeira tinha, na
verdade, a finalidade de aumentar o controle. Enquanto contribuiu para neutralizar a cidade, o
rel—gio dividiu o tempo em fragmentos, uma forma de dominar a rotina e torn‡-la tediosa,
aborrecida. O tempo do rel—gio terminou por ser o tempo de poder numa cidade.73 N‹o deixam
de ser estratŽgias para enquadrar, encerrar e isolar o indiv’duo.

Entre a igreja e a f‡brica o tempo do indiv’duo Ž ocupado e dominado para


que n‹o lhe sobre tempo livre, apenas e somente tempo œtil. O ser ou est‡ encerrado na
f‡brica, sem deixar de considerar as grandes jornadas de trabalho, ou ent‹o no interior da
igreja. A individualidade do cidad‹o Ž praticamente esquecida, ou melhor, evitada. Ele Ž visto
continuamente no sentido coletivo. Durante a semana, na f‡brica e, no domingo, na igreja Ð o
sujeito sem tempo livre. O indiv’duo na f‡brica, assim como na cela da pris‹o, Ž apenas uma
imagem. Nesse espa•o, ele Ž um mero objeto de estudo, est‡ ali sendo avaliado. Nesse local,
ele n‹o age, n‹o tem possibilidades de a•‹o, torna-se simples imagem de observa•‹o, ou seja,
objeto a ser explorado enquanto uma identidade lhe Ž negada.

69
Idem, p.35-36.
70
DECCA, Edgar de. O nascimento das f‡bricas. S‹o Paulo: Editora Brasiliense, 1982. p. 24-26.
71
Idem, p.25.
72
THOMPSON, E.P. Costumes em comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. S‹o Paulo: Companhia
das Letras, 1998. p.294.
73
SENNETT. Op. cit., p.216-217.
51

O sujeito trabalhador Ž submetido a um controle, a uma soberania da


produ•‹o a fim de evitar sua autonomia e uma poss’vel apropria•‹o do saber. Ele n‹o t•m
direito ˆ autoria na finaliza•‹o do produto, lhe Ž concedido apenas fazer parte da elabora•‹o
como um todo. Ele Ž reduzido ˆ obedi•ncia, ˆ depend•ncia sob o dom’nio do conhecimento. O
trabalhador torna-se um alienado, n‹o tem autoridade sobre os produtos, sobre as mercadorias,
nem consci•ncia do sentido de seu pr—prio trabalho, ele n‹o exerce a fiscaliza•‹o das
atividades, porŽm, sem sa’da ou op•›es, submete-se.

2.2 Ð Arquitetura de ferro e vidro

Tudo isso foi eliminado por Scheerbart com seu vidro e pelo Bauhaus com seu a•o:
eles criaram espa•os em que Ž dif’cil deixar rastros. ÒPelo que foi ditoÓ, explicou
Scheerbart h‡ vinte anos, Òpodemos falar de uma cultura de vidro. O novo ambiente de
vidro mudar‡ completamente os homens. Deve-se apenas esperar que a nova cultura
de vidro n‹o encontre muitos advers‡rios.Ó

Walter Benjamin74

Desde o sŽculo XV, o vidro, ainda n‹o completamente sem cor, utilizado para
as janelas, domina tambŽm o espa•o da casa. Todo o desenvolvimento do espa•o interior
segue a determina•‹o: Òmais luz!Ó. No sŽculo XVII, as janelas chegam a dominar grande parte
da superf’cie das paredes. PorŽm, a quantidade de luz assim conseguida praticamente tornou-
se indesej‡vel. A solu•‹o, ent‹o, foram as cortinas, mas prontamente resultaram fatais,
produzindo um ambiente de meia luz, de tristeza e exigindo tambŽm o cuidado necess‡rio para
com os tecidos. O progresso do espa•o diante do vidro e do ferro, a partir de tal perspectiva,
atinge um ponto morto. Mas aparece algo para dar-lhe nova vida, a necessidade de prote•‹o ˆs
plantas. Ent‹o, constroem-lhe uma ÒcasaÓ, ou seja, um jardim de inverno. Na verdade, Òa origem
de toda a arquitetura moderna de ferro e vidro Ž a estufa.Ó75 Os jardins de inverno apresentam
uma verdadeira arte na exposi•‹o das plantas explicitamente para o deleite da contempla•‹o
humana. Ou seja, Ž a pr—pria encena•‹o, a teatraliza•‹o da natureza, a qual fica tocada pela
industrializa•‹o da sociedade, enquanto a tecnologia se disfar•a como algo natural.76

A utiliza•‹o do ferro Ž associada a um entusiasmo pela tecnologia. Material


que oferece resist•ncia, inquebrant‡vel, a conhecida express‹o ÒfŽrrea s‹o as leis da naturezaÓ

74
in: BENJAMIN. Op. cit., 1994, p. 118.
75
BENJAMIN, Walter. Libro de los pasajes. Edici—n de Rolf Tiedemann. Tradu•‹o: Luis Fern‡ndez Casta–eda;
Isidro Herrera; Fernando Guerrero. Madrid: Ediciones Akal, 2005. [F 4, 1] p.181.
76
CANOGAR, Daniel. Ciudades Ef’meras Exposiciones Universales: Espet‡culo y Tecnologia. Madrid: Julio
Ollero Editor, 1992. p.33.
52

explicita tal significado. Em uma das notas do Livro das Passagens, Benjamin exp›e uma
compara•‹o entre a matŽria humana e a matŽria de constru•‹o das passagens, e associa-as
respectivamente ˆ fragilidade assim como ˆ resist•ncia. Faz uma analogia entre o ferro e o
vidro com figuras caracter’sticas das arcadas parisienses. ÒHoje ocorre com o material humano
no interior o que ocorre com o material de constru•‹o das passagens. Os cafet›es s‹o as
naturezas fŽrreas destas ruas, e seus fr‡geis cristais as prostitutas.Ó77 Constr—i tambŽm uma
rela•‹o devido ˆ grande quantidade de vidro na arquitetura de Paris. Relaciona o sagrado e o
profano ˆ produ•‹o e repeti•‹o de imagens e reflexos na cidade. ÒQuando dois espelhos se
olham, Satan‡s faz sua trucagem preferida, e abre aqui, a sua maneira (É), a perspectiva ao
infinito. Seja divina ou satanicamente: Paris tem paix‹o pelas perspectivas especulares.Ó78

No sŽculo XIX, a arquitetura sofre o impacto da engenharia civil. Os c‡lculos


matem‡ticos recentes e o surgimento de materiais como o ferro proporcionam novas
possibilidades na ‡rea da constru•‹o. A arquitetura moderna deve muito ˆs inova•›es da
engenharia. A estrutura de ferro fundido beneficia espa•os amplos, sem colunas no meio da
sala, e necess‡rios devido ao tamanho das novas m‡quinas da indœstria t•xtil. A utiliza•‹o do
ferro e do vidro estava associada ˆs quest›es da funcionalidade e aos avan•os da engenharia,
e n‹o ˆ criatividade da arquitetura. Na verdade, a constru•‹o em ferro come•a com aut•nticos
estabelecimentos de luxo, os jardins de inverno e as passagens. Mas, em seguida, encontra
seu verdadeiro campo tŽcnico e industrial de aplica•‹o, quando surgem constru•›es
inovadoras, sem modelos precedentes, provindas de necessidades completamente novas.79
Essas constru•›es, possibilitadas pelos avan•os da engenharia, ampliavam os espa•os de
concentra•‹o e fluxo de pessoas: pavilh›es de ferro exercem a fun•‹o de dep—sitos, oficinas e
f‡bricas, mercados cobertos, exposi•›es, esta•›es de trem e outras estruturas que
funcionavam como refœgios protetores ou lugares de tr‰nsito para esse pœblico de massa.80

Espa•os diferenciados fazem parte da vida moderna. Em termos de


arquitetura procura-se a luminosidade. As passagens ou galerias come•am a aparecer a partir
do final do sŽculo XVIII, porŽm sua grande repercuss‹o acontece no in’cio do sŽculo seguinte.
Esses locais buscam tanto a luz como a transpar•ncia, ou seja, a sensa•‹o de estar no espa•o
externo, mas sem submeter-se ˆs intempŽries. O ambiente interior Ž procurado, contudo a
rela•‹o com o exterior Ž bem presente e necess‡ria para o momento. A idŽia Ž ampliar os
espa•os muito pequenos, na Žpoca, com a luz e o espelhamento. PorŽm, a partir da segunda
metade do sŽculo XIX, com os bulevares e os parques pœblicos constru’dos por Haussmann,

77
BENJAMIN. Op. cit., 2005. [F 3, 2] p.178; [F 3, 7] p.179; [F 8, 5] p.189; p.865.
78
Idem, p.869.
79
Idem, p.878.
80
BUCK-MORSS, Susan. DialŽtica do olhar: Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Tradu•‹o: Ana Luiza
Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Chapec—/SC: Editora Universit‡ria Argos, 2002. p.166.
53

em Paris, ocorre uma expans‹o para o espa•o comum. Novas institui•›es urbanas tambŽm
surgem nesse per’odo, como a loja de departamentos.

Rouhault. A Estufa do Jardim Bot‰nico de Paris, 1833.

A primeira grande estrutura de cobertura a utilizar ferro e vidro foi o jardim de


inverno franc•s Ð Serre des jardins du MusŽe d!
histoire naturelle, a estufa do Jardim Bot‰nico
de Paris, projeto de Rouhault (1833). O desejo e as idŽias chegam a extremos na rela•‹o com a
descoberta no uso desses materiais. Aqui, caberia, na verdade, um mŽrito muito maior aos
c‡lculos da engenharia do que ao processo criativo. Nesse contexto, em busca do uso desse
material, existia um projeto, praticamente ut—pico, para cobrir inteiramente o Jardim Bot‰nico de
Paris com um imenso teto desmont‡vel de vidro, a ser retirado durante o ver‹o.81 Na Paris de
1847, uma simples estufa envidra•ada foi transformada num local de reuni›es sociais.
Conhecido como jardim de inverno e sal‹o de lazer, tinha a forma de cruzeiro, e dividia-se em
sal‹o de baile, cafŽ, sala de leitura e local para vendas de quadros. Giedion comenta sobre a
possibilidade de Paxton ter se inspirado neste edif’cio para realizar o projeto para o Crystal
Palace.82

81
GIEDION, Sigfried. Espacio, Tiempo y Arquitectura: el futuro de una nueva tradici—n. Barcelona: HOEPLIS,
S.L., 1958. p.182.
82
Idem, p.247.
54

Jardim de inverno e sal‹o de recreios, Paris, 1847.


Henry Labrouste. Biblioteca Nacional, Paris 1858-68

Existe todo um pensamento relativo ˆ transpar•ncia e ˆ busca de


luminosidade no projeto para a Biblioteca Nacional de Paris (1858-68), projetada por Henry
Labrouste. A sala de leitura possui ab—badas esfŽricas, com aberturas circulares no ‡pice, com
a finalidade de todas as mesas receberem a mesma ilumina•‹o. Uma particularidade nessa
obra Ž a parede de vidro que separa o dep—sito de livros e a sala de leitura, da qual pode-se
observar todo o espl•ndido acervo de livros pertencente ˆ biblioteca e vice versa. Nota-se uma
preocupa•‹o com a entrada de luz natural e tambŽm em deixar todo esse local ˆ mostra do
olhar pœblico. Outra inova•‹o desse projeto, associada a um interesse pela funcionalidade,
transpar•ncia e conseqŸentemente o aproveitamento da passagem de luminosidade, Ž o
sistema utilizado para os pisos das estantes do dep—sito de livros, feitos de ferro fundido em
forma de grades. O resultado visual Ž fascinante. Esse sistema permite a entrada da luz do dia
em toda a ‡rea dos quatro andares das estantes. Na verdade, com exce•‹o das estantes de
livros, toda a constru•‹o do dep—sito Ž de ferro.

Segundo o progresso da indœstria, nota-se cada vez mais a necessidade de


superf’cies envidra•adas maiores, como o caso das grandes lojas de departamentos, ˆs quais
substituem as imagens de sonho83 atŽ ent‹o presentes nas passagens. Havia uma necessidade
de tudo estar ˆ vista do homem, de tudo ser mostrado ao olhar. A Bon MarchŽ de Paris,
constru’da por Eiffel e Boileau, em 1876, Ž a primeira loja de departamentos em ferro e vidro,
onde se explora completamente a luz natural. Em nenhum edif’cio precedente poderia penetrar
a luz assim sem achar obst‡culo algum.84 A fantasia com que Eiffel afronta os problemas
tŽcnicos se revela na forma exterior do alto teto de vidro constru’do por cima das clarab—ias dos
p‡tios que, segundo Giedion85, Ž a ‡rea mais audaz do projeto que, infelizmente, o espectador
comum n‹o v• jamais. Apesar de as portas da Bon MarchŽ serem abertas a todos, sua

83
FABRIS, Annateresa. A rua como uma das belas-artes. In: Anais do 8o Encontro do programa de P—s-
Gradua•‹o em Artes Visuais. Rio de Janeiro, EBA/UFRJ, 2001. p.62.
84
GIEDION. Op. cit., p.248.
85
Idem, p.249.
55

verdadeira clientela era a burguesia, pois o sistema adotado era o pagamento ˆ vista. A Bon
MarchŽ produz seus pr—prios cat‡logos com imagens representando adultos e crian•as,
fornecendo uma vers‹o da cultura burguesa e induzindo a classe mŽdia ao modo como ela
deveria viver numa sociedade moderna.86 O projeto da loja de departamentos est‡ direcionado
a facilitar o consumo. ƒ uma institui•‹o moderna que colabora para a mudan•a de
comportamento da vida urbana. Ela trabalha a mercadoria como produ•‹o industrial e de
requinte. Sua pr—pria imagem segue a arquitetura espetacular de ferro e vidro, uma estratŽgia
que com certeza chama a clientela.

Eiffel e Boileau. Bon MarchŽ, Paris, 1876. Clarab—ia, vis‹o externa.


Passarelas de ferro no interior.

2.3 Ð Passagens ou arcadas

N‹o Ž por acaso que o vidro Ž um material t‹o duro e t‹o liso, no qual nada se fixa. ƒ
tambŽm um material frio e s—brio. As coisas de vidro n‹o t•m nenhuma aura. O vidro Ž
em geral o inimigo do mistŽrio. ƒ tambŽm o inimigo da propriedade.

Walter Benjamin87

O Livro das Passagens, de Walter Benjamin, Ž uma montagem de notas sobre


a indœstria cultural do sŽculo XIX, tem como ponto central a cidade de Paris. Essas notas s‹o
cita•›es de fontes hist—ricas, as quais Benjamin arquivou com um m’nimo de coment‡rios.
Exerce grande influ•ncia nessa obra a leitura por parte de Benjamin do romance surrealista de
Louis Aragon, Le Paysan de Paris88 (O campon•s de Paris), sobretudo quando esse autor

86
FRASCINA, Francis...[et alii]. Modernidade e modernismo - Pintura francesa no sŽculo XIX. Tradu•‹o: Tom‡s
Rosa Bueno. S‹o Paulo: Cosac & Naify Edi•›es, 1998. p.97.
87
BENJAMIN. Op. cit., 1994. p.117.
88
ARAGON, Louis. Le paysan de Paris. Paris: ƒditions Gallimard, 2005. (1926, renouvelŽ en 1953).
56

descreve acontecimentos muito particulares sobre a passagem da Opera, onde, em seus bares
e cafŽs, os surrealistas encontravam-se.

Passage l'Opera, Galerie du Barom•tre, c.1870.


Passage de l'Opera, tra la rue druot e la rue Le Peletier, c.1868. fotos de Ch. Marville.

As passagens como centros comerciais cobertos do sŽculo XIX foram a


imagem fundamental para o desenvolvimento do Livro das Passagens por serem a rŽplica
material exata do inconsciente do sonho coletivo.89 O local das passagens exibe toda uma
representa•‹o da sociedade burguesa de Paris. ƒ o primeiro espa•o interno constru’do para o
pœblico. Todos os desvios da consci•ncia burguesa poderiam ser encontrados nesse ambiente
tal como o fetichismo da mercadoria, assim como os seus sonhos mais ut—picos, ou seja, a
moda, a prostitui•‹o, a jogatina.90

As galerias ou passagens, tambŽm chamadas de arcadas, em sua maioria,


surgem entre 1822 e 1837. No entanto, as primeiras s‹o constru’das no final do sŽculo XVIII.
Seu desenvolvimento, segundo Walter Benjamin, acontece devido ˆ expans‹o do comŽrcio
t•xtil e tambŽm da utiliza•‹o do ferro na arquitetura do sŽculo XIX. A planta das galerias
consiste de dois corredores estreitos e longos, ou seja, duas vias em forma de cruz. Na
verdade, s‹o constitu’das da uni‹o de quatro ruas cobertas, transformadas em passagens
praticamente fechadas. Em algumas consta tambŽm um andar superior. Geralmente levam no
piso revestimento de m‡rmore. Esse material antigo, tradicional, faz contraponto com os novos
materiais da engenharia moderna utilizados na cobertura: o vidro para isolamento e passagem

89
BUCK-MORSS. Op. cit., p.66.
90
Idem, ibidem.
57

de luz e o ferro na estrutura. Em termos arquitet™nicos, essa cobertura apresenta-se como


inova•‹o. Entretanto, as fachadas dos edif’cios que davam para o interior das galerias
mantinham um certo conservadorismo na decora•‹o. Enquanto o novo se entrela•a com o
antigo, existe um esfor•o por separar-se do antiquado, ou melhor, do passado mais recente.
Esse impulso pelo novo leva a uma mescla entre constru•›es permanentes e a velocidade de
uma moda fugaz.91

Passage du Grand Cerf. 5, rue Saint-Denis, 1907. foto de Eug•ne Atget.

Os tetos de vidro das arcadas eram sua marca diferencial na dŽcada de 1820.
Isso ocorreu em conseqŸ•ncia dos avan•ados c‡lculos da engenharia na constru•‹o de
clarab—ias, essencialmente no emprego do ferro. Nas arcadas, passa-se toda uma
moderniza•‹o em rela•‹o aos projetos de engenharia. Contudo, como foi mencionado, a
arquitetura n‹o caminhava no mesmo ritmo. As fachadas ornamentais, no interior delas, eram
repletas de colunas neocl‡ssicas, arcos e front›es. Fundindo duas tend•ncias, essas
passagens apresentavam-se como imagens dialŽticas.92 Ë frente desse contexto, Ž claro, o
impacto, no sŽculo XIX, da engenharia sobre a arquitetura. Ou seja, o abalo da tecnologia sobre
a arte, tema central para Benjamin no Projeto das Passagens.

As arcadas constituem-se de um conjunto de pontos de venda cujos


propriet‡rios uniram-se para explorar um comŽrcio elegante e suntuoso. Nesse caso, eram
travessias pœblicas, porŽm de propriedade privada. Suas lojas exibiam toda a variedade de

91
BENJAMIN. Op. cit., 2005. p.91-108.
92
BUCK-MORSS. Op. cit., p.162-163.
58

produtos em belas e apuradas vitrines, empregando certa aud‡cia, mais pontualmente na


maneira de expor os objetos em seu interior.

O espet‡culo da vida moderna prospera no ambiente das passagens. A


transpar•ncia proporcionada pelo uso do vidro, tanto da cobertura quanto da fachada das lojas,
explora a magia e o brilho da luz. Durante o dia resplandece a claridade natural, e ˆ noite a
ilumina•‹o a g‡s - ambiente favor‡vel ˆ explora•‹o da mercadoria. Essa situa•‹o n‹o deixa de
ser uma situa•‹o diferenciada para a Žpoca.

As passagens constituem um lugar muito particular, um espa•o pœblico,


todavia com o aspecto aconchegante de um ambiente interior. As arma•›es das Òpassagens
acolhedoras foram a primeira arquitetura moderna para o pœblico. Mas foram tambŽm as
primeiras «casas de sonho« dos consumidores, colocadas a servi•o da adora•‹o da
mercadoria.Ó93

As mais amplas e as melhores situadas dentre elas (...) estiveram adornadas com
gosto e suntuosamente mobiliadas. Cobriram-se as paredes e os tetos com (...)
m‡rmores raros, dourados (...) espelhos e quadros; cadeiras, poltronas, (...)
oferecendo c™modos acentos aos passantes fatigados; vitrines repletas de
curiosidades ... vasos com flores naturais, aqu‡rios repletos de peixes vivos, gaiolas
povoadas de p‡ssaros raros completaram a decora•‹o das ruas-galerias onde
iluminavam a tarde (...) candelabros dourados e lustres de cristal. O Governo queria
que as ruas pertencentes ao povo de Paris superassem em magnitude os sal›es dos
soberanos mais poderosos (...).94

As opini›es sobre as arcadas divergem de sentido n‹o somente em rela•‹o ˆ


Žpoca, mas tambŽm relacionadas a pontos de vista. Em uma das notas do Livro de Benjamin,
consta o seguinte sobre a passagem do Caire, datada de 1854: ÒAs passagens s‹o tristes,
sombrias, e a cada momento se cruzam de uma maneira desagrad‡vel para a vista (...) raros
s‹o os transeuntes que passam por elas.Ó95 J‡, outra nota, sobre uma representa•‹o teatral
(1827), mostra um ponto de vista ir™nico: ÒNotem que se querem cobrir todas as ruas de Paris
com vidros e isso vai produzir lindos jardins de inverno; viveremos dentro como mel›es.Ó96
TambŽm, um sentido fœnebre aparece em uma das anota•›es indicando a decad•ncia da
compaix‹o: ÒA nova passagem do Caire, perto da rua Saint-Denis, est‡ pavimentada em parte
com pedras de sepulcros das quais nem sequer se apagaram as inscri•›es g—ticas, nem os
emblemasÓ.97

93
Idem, p.183.
94
BENJAMIN. Op. cit., 2005. p.85 [A 9 a, 1].
95
Idem, p.86 [A 10, 1].
96
Idem, p.86 [A 10, 3].
97
Idem, p.87 [A 10, 4].
59

No primeiro andar de algumas passagens, encontravam-se as casas de


prostitui•‹o, onde as mulheres da noite vestiam-se ˆ œltima moda. Um registro selecionado,
seguido de um coment‡rio por Benjamin, diz o seguinte: Ò(...) o primeiro cat‡logo ilustrado de
prostitutas poderia datar-se entre os anos 1835 e 1840. O cat‡logo em quest‹o consiste em
vinte litografias a cores com o endere•o das prostitutas impresso no pŽ de cada l‰minaÓ. ÒEntre
as sete primeiras, figuram cinco passagens como endere•o, e ademais cinco diferentes.Ó98
Outra cita•‹o afirma a presen•a nas arcadas de todo e qualquer tipo de indiv’duo que
praticamente vive na rua ou da rua: ÒFauna feminina das passagens: prostitutas, grisettes,
velhas bruxas vendedoras, vendedoras de quinquilharias, mocinhas Ð este œltimo era o homem
que por 1830 se dava aos piroman’acos vestidos de mulher.Ó99 Outro coment‡rio de Benjamin
afirma a presen•a das prostitutas no piso superior das arcadas, o qual segue a seguinte nota de
1910: ÒAndorinhas-mulher que formam a janela.Ó ÒAs janelas no piso superior das passagens
formam o trif—rio onde aninham anjos que chamam «andorinhas«Ó.100 ÒAndorinhas [-mulheres]
que fazem a janela.Ó101

Galerie Vivienne, 1832. foto de Eug•ne Atget, Paris, 1907.


Galerie Vivienne. Paris, 2007. monumento hist—rico desde 1974, restaurada em 1982.

Outra figura imprescind’vel, nas arcadas, Ž o fl‰neur, n‹o se fala delas sem
comentar sobre a fl‰nerie. ÒEm 1839 resultava elegante passear levando uma tartaruga. Isso d‡
uma idŽia do ritmo do fl‰neur nas passagens.Ó102 As ruas de Paris, no princ’pio do sŽculo XIX,
eram estreitas. Algumas apenas possibilitavam a passagem de duas pessoas: ÒAntes de
Haussmann, eram raras as cal•adas largas; as estreitas ofereciam pouca prote•‹o contra os

98
Idem, p.507 [O 9 a, 3].
99
Idem, p.495 [O 2, 4].
100
Idem, p.493 [O 1 a, 2].
101
Idem, p.869.
102
Idem, p.427 [M 3, 8].
60

ve’culos. Sem as passagens, dificilmente a fl‰nerie poderia ter alcan•ado a sua relev‰ncia.Ó103
As arcadas, num sentido ilus—rio, eram para o fl‰neur o interior de suas casas.

ÒAs galerias s‹o centros comerciais de mercadorias de luxo. Em sua


decora•‹o, a arte p›e-se a servi•o dos comerciantes. Os contempor‰neos n‹o se cansam de
admir‡-las.Ó104 Entretanto, Ž fundamental salientar que as passagens, em parte do sŽculo XIX,
distribu’am suntuosidade, um brilho intenso em diferentes dire•›es, porŽm, no in’cio do sŽculo
XX, essa pompa e esse fulgor s‹o quase totalmente deteriorados. ÒDo esplendor ˆ misŽria Ð o
destino que essa constru•‹o h‡ sofrido durante mais de um sŽculo Ž, aos olhos de Benjamin,
um tra•o das «imagens que produzem o inconsciente coletivo«, os «res’duos de um mundo de
sonho« do sŽculo XIX.Ó105 Foram a morada dos primeiros mundos de sonho de consumo,
aparecem no sŽculo seguinte como cemitŽrios mercadol—gicos, encerrando a recusa de um
passado descartado.106 Durante o tempo em que as l‰mpadas a g‡s ou mesmo as l‰mpadas a
—leo brilharam nas passagens, elas foram pal‡cios do fogo. O decl’nio come•a com a luz
elŽtrica. O brilho interior das passagens dissipou-se quando a luz elŽtrica se acende.107

Aragon, em seu romance surrealista, mostra uma certa agonia relativa ˆ


ilumina•‹o e ao espa•o reservado das arcadas. ÒEla (a luz) reina bizarramente dentro desse
tipo de galeria coberta que s‹o numerosas, em Paris, nos arredores dos grandes bulevares e
que chamamos de um modo perturbador de passagens, como se dentro desses corredores
ocultados do dia, n‹o fosse permitido a ninguŽm ficar mais de um instante.Ó108 Em outro
coment‡rio diz o seguinte: ÒPor instantes os corredores se iluminam, mas a penumbra Ž sua cor
preferida.Ó109 Seguindo a mesma an‡lise de clausura espacial, Benjamin associa as lojas das
galerias com suas vitrines e respectivos anœncios aos letreiros das jaulas dos jardins
zool—gicos, os quais mostram muito menos o habitat dos animais presos do que sua espŽcie e
proced•ncia.110

103
KOTHE, Fl‡vio R.(org.) FERNANDES, Florestan(coord.). Walter Benjamin. S‹o Paulo: Editora çtica, 1985.
p.66.
104
Idem, p.30-31.
105
MEYER, Michel. Le paysan de Paris d«Aragon. Paris: Gallimard, 2001. p.153-154.
106
BUCK-MORSS. Op. cit., p.64.
107
MEYER. Op. cit., p.151.
108
ARAGON. Op. cit., p.20-21.
109
Idem, p.25.
110
BENJAMIN. Op. cit., 2005. p.868.
61

Passage du Grand Cerf. Paris, 2007. Passage Jouffroy, 1845. Paris, 2007.

Segundo Walter Benjamin, acontece uma ambigŸidade no espa•o das


passagens proporcionada pela abund‰ncia de espelhos que ampliam o espa•o como em um
conto de fadas, dificultando a orienta•‹o. ƒ a imprecis‹o no sentido de um mundo especular. O
espa•o se transforma e o faz em meio ao nada, ao vazio, ou seja, atravŽs da perspectiva
ilus—ria dos espelhos. Um murmœrio de olhares preenche as passagens.111 ÒSuper abund‰ncia
de luas e espelhos nos cafŽs para aumentar sua claridade interior e proporcionar uma alegre
amplitude a todos os minœsculos apartados e reservados em que se decomp›em os locais
parisienses.Ó112

2.3.1 Ð Os reflexos na arquitetura de vidro

Desde quando foi costume colocar espelhos em valiosas molduras talhadas, em lugar
de quadros?

Walter Benjamin 113

Benjamin considerava Paris uma Òcidade espelhosÓ. A abund‰ncia do uso do


vidro contribui ˆ semelhante considera•‹o, assim como a presen•a de reflexos nas fachadas de
edif’cios e tambŽm nas vitrines das lojas de mercadorias. A documenta•‹o fotogr‡fica do in’cio

111
Idem, p.869-870.
112
Idem, p.869.
113
Idem, p.552 [R 1, 5].
62

do sŽculo XX mostra exatamente tal realidade, em particular as fotos de Eug•ne Atget. A


arquitetura e as decora•›es provocam no visual urbano um verdadeiro mundo de imagens. Os
reflexos nas vitrines, devido ˆ mudan•a constante da luz natural, s‹o cambiantes, formam
ÒcolagensÓ inusitadas. Causam estranhamentos. Os objetos no interior das vitrines mesclam-se
com as imagens da vida urbana. A vitrine torna-se suporte receptor da vida, das atividades das
ruas. Um receptor da fugacidade, as imagens passageiras apenas caminham conforme a
luminosidade do dia, numa din‰mica cinematogr‡fica. A arquitetura transparente brinca com o
espectador, surpreende-o. O vidro, na verdade, constr—i um jogo entre presen•a e aus•ncia.
ÒSua inescrut‡vel exist•ncia somente se detecta quando reflete seu entorno. O grande paradoxo
do vidro radica em poder dar forma ao que aparentemente n‹o a tem. Estas espectrais
propriedades do vidro o fizeram um material especialmente associado com processos m’sticos,
m‡gicos e de transforma•‹o espiritual.Ó114

Eug•ne Atget. Au Coq Hardi, 18 quai de la MŽgisserie, 1902. SŽrie: Art dans le vieux Paris.
Eug•ne Atget. Boutique Empire, 21 faubourg Saint-Honore!, 1902. Se!rie: Art dans le vieux Paris.

Existe uma falsa apar•ncia na presen•a dos reflexos. N‹o se v• nem bem a
arquitetura, nem bem a mercadoria exposta. Acontece uma falta de clareza entre interior e
exterior. O mesmo se passa nas obras de Dan Graham, onde se misturam o indiv’duo e seu
reflexo, quando o resultado implica o equivoco entre o sujeito e sua pr—pria imagem ou ele
mesmo o pr—prio corpo do observador tornando-se objeto visto. Praticamente o que se passa
nas fotos de Atget, mas aqui quem se mistura com o objeto exposto Ž a vida urbana. A pr—pria

114
CANOGAR. Op. cit., p.27.
63

arquitetura muitas vezes invade e se sobressai no interior da vitrine. Uma forma de colagem
espont‰nea entre o interior e o exterior.115

Os surrealistas tinham uma fascina•‹o pelas fotos de vitrines de Atget,


especialmente devido a seus reflexos,116 e come•am a se apaixonar precisamente no meio da
dŽcada de 20.117 Encantam-se com a presen•a dos manequins no interior da vitrine, enquanto
os reflexos da arquitetura da cidade se mesclam de forma irreal. A estŽtica surrealista Ž
conforme a esses encontros fortuitos que alteram a percep•‹o. Sua atra•‹o Ž plenamente
saciada pelas Òfigura•›es acidentaisÓ, pela ÒestŽtica da surpresaÓ e pelas Òcoincid•ncias
petrificantesÓ presentes na obra de Atget, cujas imagens tornam-se Òrapidamente um objeto
onde se cristaliza toda uma fantasmagoria consagrada pelos surrealistas.Ó118

Eug•ne Atget. Boutique, 63 rue de S•vres, 1912. SŽrie: Paris pittoresque


Eug•ne Atget. Boulevard de Strasbourg (vitrine de coiffeur), 1912 SŽrie: Paris pittoresque

As œltimas vitrines de Atget s‹o muito mais parasit‡rias pelos reflexos por
assegurar corretamente a promo•‹o dos objetos que elas exp›em.119 Apesar de tal
particularidade, a presen•a do reflexo da cidade apresenta-se muitas vezes praticamente com
maior for•a do que os objetos em seu interior. Na verdade, geralmente Atget recusa a imagem
exata da mercadoria por detr‡s da vitrine, essa explora•‹o moderna do desejo do consumidor.

115
CHƒROUX, ClŽment. Le contexte de spŽculation: Sur quelques photographies de vitrines. In Atget une
rŽtrospective. Biblioth•que nationale de France. Paris: Hazan, 2007. p.90.
116
Idem, p.85.
117
Idem, p.88.
118
LE GAL, Guillaume. Visions surrŽalistes. In Atget une rŽtrospective. Op. cit., p.95.
119
CHƒROUX, ClŽment. In Atget une rŽtrospective. Op. cit., p.90.
64

Entretanto, quando a mercadoria est‡ na rua, a’ sim ela Ž absolutamente aparente em suas
fotos. Na foto Boutique, 63 rue de S•vres, 1912, acontecem as duas situa•›es. As bonecas
expostas do lado de fora da loja s‹o perfeitamente vis’veis, porŽm as de dentro da vitrine
mesclam-se com a imagem da cidade refletida no vidros. Imagem de estranhamento, pois n‹o
se v•em nem bem as bonecas assim como n‹o se v• claramente a imagem do edif’cio em
frente refletido nos vidros, sobreposta ˆ vitrine. J‡ em outra situa•‹o a vitrine mostra toda sua
mercadoria, praticamente sem reflexos, mas com um forte sentido de surpresa, como na foto
Boulevard de Strasbourg (vitrine de coiffeur), 1912, ao primeiro olhar, ou seja, ao olhar do
observador do sŽculo XXI, assemelha-se mais a uma obra surrealista. O reflexo Ž parte
integrante, indispens‡vel ˆs fotos, sem o reflexo n‹o estariam inseridos nelas os
estranhamentos, as surpresas, o acidente.

Eug•ne Atget. Magasins du Bon MarchŽ, 1926-27. SŽrie: Paris pittoresque.

Sem contar com as œltimas fotos de vitrine realizadas por Atget, a maioria
delas foi realizada n‹o pelo conteœdo da vitrine e sim pelo seu entorno.120 Na verdade, Atget
n‹o deixa em momento algum de documentar a cidade de Paris. Essa œltima sŽrie do artista Ž
uma produ•‹o ˆ parte, quando Atget mostra talvez um pequeno interesse pela modernidade
urbana e fotografa sinais da arquitetura haussmannianna, mas ainda assim somente atravŽs
dos reflexos nos vidros das vitrines.121 Tais reflexos s‹o praticamente ostensivos, a fun•‹o
publicit‡ria ou documental dessas fotos apresenta-se implicada pela enorme presen•a dos
reflexos.122 As fotos de vitrine de Atget evocam uma cidade transformada pelas muta•›es de um
novo desenvolvimento do comŽrcio, porŽm, se engajam na representa•‹o de um contexto

120
Idem, p.92.
121
Idem, ibidem.
122
Idem, p.92-93.
65

urbano que se constitui contra aquele de Haussmann Ð obra modernista, espetacular,


higienista.123

Efetivamente, Atget faz da cidade uma preocupa•‹o pessoal e pol’tica,124


recusa-se a fotografar a cidade haussmannianna e, nesse processo, torna vis’vel os marginais
da cidade.125 Ele nega ostensivamente fotografar a Òvida modernaÓ parisiense. A modernidade
est‡ inserida em sua fotografia e n‹o no motivo eleito por ele. Segundo Guillaume Le Gall,
existe um certo arca’smo em suas fotos que poder’amos dizer modernista.126

Enquanto Atget explora as riquezas da transpar•ncia nas vitrines de Paris do


in’cio do sŽculo XX, Rosangela Renn—, no final do mesmo sŽculo, nega-a completamente. No
projeto para Tijuana/San Diego, Renn— faz com que a imagem tape a vitrine. Na verdade, ela
realiza o trabalho a partir de fotografias digitais cujos originais s‹o de autoria de Eduardo
Zepeda, quem as realiza em Tijuana, MŽxico, em 1997. Renn— confecciona toda a produ•‹o
deste trabalho intitulado United States (SŽrie Mexicana), 1997-1998, em Tijuana, mas o exp›e
em San Diego, no Children«s Museum.

Rosangela Renn—. United States (Mexican Series), 1998.


17 impress›es digitais, processo Iris. 80x59 cm, edi•‹o de 5.

123
LE GALL, Guillaume. Atget, Paris pittoresque. Paris: Hazan, 1998. p.8-10.
124
Idem, p.11.
125
Idem, p.40.
126
Idem, p.34.
66

Anteriormente, o museu possu’a tr•s entradas, porŽm uma delas foi fechada.
ƒ exatamente nesta onde Rosangela exp›e sua obra. Exibe-a como se fosse um display de
vitrine de uma loja de mercadorias. Entretanto, da forma que a tapa completamente,
transforma-a numa n‹o-vitrine. Renn— recusa a transpar•ncia do vidro, cuja caracter’stica seria
a de conectar o ambiente interior com o espa•o exterior. A artista, atravŽs dessa obra, nega a
transposi•‹o do olhar, enquanto o pr—prio museu nega essa entrada. Ademais, Ž a pr—pria
representa•‹o da transposi•‹o f’sica negada por parte dos Estados Unidos aos mexicanos. Os
personagens fotografados presentes nas imagens realizadas no processo tŽcnico da plotagem,
cada um deles, dessa forma, representa um estado do MŽxico. As imagens s‹o coladas por
dentro da vitrine, pelo menos em imagem, identidades negadas transp›em a fronteira.

2.4 Ð Exposi•›es universais

As exposi•›es universais transfiguram o valor de troca das mercadorias. Criam uma


moldura em que o valor de uso da mercadoria passa para segundo plano. Inauguram
uma fantasmagoria a que o homem se entrega para se distrair. A indœstria de
divers›es facilita isso, elevando-o ao n’vel de mercadoria. O sujeito se entrega ˆs suas
manipula•›es, desfrutando a sua pr—pria aliena•‹o e a dos outros.

Walter Benjamin127

O centro das aten•›es das grandes exposi•›es ocorre em Paris e Londres,


pois as duas capitais encontram-se, no decorrer do sŽculo XIX, em plena expans‹o, em vias de
tornarem-se metr—poles. ƒpoca na qual o •xodo rural Ž grande, a cidade torna-se
progressivamente uma grande e encantada atra•‹o, n‹o apenas visual, mas tambŽm de
sobreviv•ncia, devido ˆs ofertas de emprego possibilitadas pela indœstria.

A proclama•‹o da liberdade de trabalho (Fran•a, 1791) oferece pela primeira


vez a todo cidad‹o o direito de escolher o of’cio ou profiss‹o que desejava. Essa proclama•‹o
concede uma nova forma de liberdade de produ•‹o, que d‡ um apoio oficial ao progresso da
indœstria e das inven•›es. Por conseguinte, as exposi•›es nascem praticamente junto ao
complexo industrial moderno, e tal circunst‰ncia provoca uma mudan•a social relevante, mas
passa praticamente desapercebida. As tecnologias emergentes ocultavam, por meio do
deslumbre visual dado ˆ espetaculariza•‹o do novo, o que estava por acontecer, a substitui•‹o
do trabalho artesanal pelo mec‰nico. AlŽm disso, as exposi•›es, tanto quanto a indœstria, no
decorrer do sŽculo XIX, caminham em paralelo. As primeiras feiras ou exposi•›es tinham como

127
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do sŽculo XIX. In KOTHE. Op. cit., p.35-36.
67

objetivo principal apenas mostrar os novos produtos do progresso, obviamente com a idŽia de
posteriormente serem utilizados. Portanto, nesse caso, estava ˆ mostra nas exposi•›es todo e
qualquer tipo de produto, desde aliment’cios atŽ maquinarias, obras de arte e artes aplicadas.
Tais caracter’sticas se conservam durante a primeira metade do sŽculo XIX.128

A hist—ria das exposi•›es est‡ dividida em dois per’odos: o primeiro deles


inicia-se em Paris com a Premi•re exposition des produits de l!
industrie fran•aise (Primeira
exposi•‹o dos produtos da indœstria francesa), inaugurada em 1798, e permanece, tambŽm em
outras localidades, atŽ o final dos anos 1840, apenas de car‡ter nacional. Esse per’odo termina
com a Exposi•‹o de Paris de 1849. Isso acontece devido ao avan•o da indœstria e ao interesse
de interc‰mbio industrial. Assim, as feiras transformam-se, a partir da segunda metade do
sŽculo XIX, em exposi•›es universais, cujo prop—sito era mostrar e ampliar o conhecimento da
produ•‹o industrial de cada regi‹o, quando as exposi•›es adquirem categoria internacional.
Como conseqŸ•ncia, notamos o aumento da forte rela•‹o entre as exposi•›es, a indœstria e a
engenharia. Esta œltima, relacionava-se diretamente com a arquitetura, na medida em que cada
exposi•‹o exigia a constru•‹o de um local para abrig‡-la, pois esses espa•os tambŽm
deveriam fazer parte do espet‡culo. Assim, tais edif’cios tinham car‡ter ef•mero. Essas
constru•›es provis—rias, ademais, exigiam beleza ’mpar e execu•‹o r‡pida, isso implicava
numa escolha inteligente quanto aos materiais de constru•‹o. Como local de exposi•‹o, todo o
espa•o era preparado para receber os produtos, as mercadorias para as novas possibilidades
do comŽrcio internacional. Por se acreditar que a exposi•‹o da mercadoria devia ser de
natureza espetacular, dedicava-se um enorme valor ˆ exibi•‹o do produto.

O segundo per’odo deve seu vigor particularmente ao princ’pio do livre


c‰mbio, ou seja, ao abrandamento das barreiras alfandeg‡rias. N‹o havia raz‹o para trazer
produtos de todas as partes do mundo se, ao mesmo tempo, n‹o houvesse a possibilidade de
comercializ‡-los. Para mudar tal situa•‹o, as restri•›es de tr‡fico deveriam ser reduzidas ao
m’nimo. Assim ocorre uma nova concep•‹o econ™mica - comŽrcio e comunica•‹o livre e
conseqŸente melhoria na produ•‹o. Junto ao novo conceito na economia, as exposi•›es, a
partir do segundo per’odo, proporcionaram um esp’rito de rivalidade.

Foi esse esp’rito de competi•‹o que levou a perspic‡cia dos ingleses a decidir
pela montagem de uma exposi•‹o internacional, idŽia anteriormente discutida pela Fran•a,
porŽm n‹o realizada. A idŽia dos ingleses era mostrar ao mundo o n’vel alcan•ado pela
indœstria moderna. ConseqŸentemente, acontece em 1851 a primeira exposi•‹o universal em
Londres (Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations), a qual teve o car‡ter de feira
industrial, ou seja, a exibi•‹o e o comŽrcio de produtos.

128
GIEDION. Op. cit., p.251.
68

Para a constru•‹o do edif’cio que abrigaria a Exposi•‹o, criou-se um Comit•


de Constru•‹o, para o qual foram enviados inœmeros projetos. Contudo, todos foram recusados.
O Comit• prop›e, ent‹o, a partir de uma s’ntese de v‡rios projetos, um grande edif’cio de tijolo
e argamassa. Tal projeto recebe duras cr’ticas por parte do pœblico, pois os materiais a serem
utilizados assinalavam a constru•‹o de um grande edif’cio permanente, cujo local escolhido
comprometeria a vida de grandes olmos. Em seguida, Joseph Paxton, engenheiro especializado
na ‡rea de jardins, apresenta um projeto ao Comit•, o qual tarda em responder. Entretanto,
Paxton consegue publicar sua proposta no peri—dico Ilustrated London News de 6 de julho. O
car‡ter provis—rio do edif’cio e a eleg‰ncia de seu desenho alcan•a enorme aprova•‹o pœblica,
alŽm de evidenciar a salva•‹o dos olmos do Hyde Park. No final, este foi o projeto aprovado Ð o
sedutor Crystal Palace, um edif’cio inteiramente transparente, concebido basicamente de ferro e
vidro, poss’vel de ser entendido como uma gigantesca vitrine. Sua apar•ncia era a de um
enorme e encantado jardim de inverno, proporcionando a idŽia de um mundo m‡gico, um reino
de fantasias.

Crystal Palace. Londres, 1851.

O projeto alcan•ou enorme import‰ncia. O Crystal Palace foi um edif’cio


absolutamente avan•ado para a Žpoca. O ponto relevante decorreu do processo adotado na
rapidez da montagem e desmontagem do espa•o, e tambŽm do fato de todo o material da
constru•‹o possibilitar seu reaproveitamento. Isso se deve ao procedimento proporcionado pela
utiliza•‹o de unidades industriais unificadas. O projeto consiste basicamente da produ•‹o em
sŽrie de m—dulos id•nticos. Relevante tambŽm Ž o fato de todos os seus componentes
constitu’rem-se de pe•as padronizadas e prŽ-fabricadas industrialmente. Os materiais utilizados
para a estrutura foram a madeira e o ferro. As paredes procedem do maior tamanho de l‰mina
de vidro que poderia se fabricar na Žpoca (1.20m de comprimento). O Crystal Palace,
69

magistralmente cristalino, transparente, alŽm de sua enorme dimens‹o, foi constru’do em


apenas seis meses, e seu espa•o total compreendia mais ou menos setenta e dois mil metros
quadrados. Em 1855, foi totalmente removido para Sydenham, numa disposi•‹o paisag’stica
idealizada pelo pr—prio Paxton. PorŽm, infelizmente, em 1936/37 foi completamente destru’do
por um inc•ndio.

As exposi•›es abrem ˆ arquitetura, com grande e magistral apoio da


engenharia, um campo amplo e rico para novas cria•›es e experimenta•›es. Portanto, era
relevante, na concep•‹o dos espa•os arquitet™nicos, trabalhar e explorar as novas descobertas
da indœstria. Desde a primeira exposi•‹o internacional, na metade do sŽculo XIX, atŽ a œltima,
nos finais do sŽculo, os projetos edificados para as exposi•›es procuravam fazer algo que n‹o
tinha sido produzido atŽ ent‹o. Era uma busca pela originalidade, pelo ainda n‹o realizado, pela
inova•‹o, algo a proporcionar uma diferen•a em rela•‹o ao j‡ feito.

O Crystal Palace explora o espa•o interior como um verdadeiro campo


protegido, refœgio racionalizado, organizado como o interior do templo, distante das diferen•as
urbanas, ou seja, longe dos conflitos sociais. ÒA magnitude dessa estrutura de cristal
impressionou de forma desmesurada a popula•‹o brit‰nica, provocando rea•›es pr—ximas a um
fervor religioso.Ó129 Tal rea•‹o s— se pode compreender se contrastamos com a degrada•‹o
urbana das principais capitais europŽias. O pœblico entrava pelas portas do Pal‡cio de Cristal e
assim deixava para tr‡s as dificuldades encontradas nas ruas ou mesmo nas lojas da classe
oper‡ria, a insalubridade e pestil•ncia dos bairros mais humildes e a aglomera•‹o sufocante
das massas nas poucas zonas para pedestres que n‹o haviam sido tomadas pelo tr‡fico de
carros. Com a enorme necessidade de criar espa•os pœblicos para as novas massas urbanas, a
Grande Exposi•‹o se converte em peregrina•‹o obrigat—ria. Foram muitas as facilidades que se
deram para que tivesse uma visita•‹o massiva. Os dias de pre•o do ingresso reduzido
conseguiram atrair os setores mais humildes da popula•‹o londrina. E para aqueles que viviam
distantes de Londres foram organizadas viagens oferecendo, alŽm do ingresso gr‡tis, a
passagem de trem atŽ a entrada do Crystal Palace.

O sŽculo XIX trabalha a transpar•ncia do ambiente interior, n‹o s— por uma


maior entrada de luz, mas tambŽm pelo interesse em proporcionar um jogo m‡gico na
visibilidade entre o espa•o externo e interno. Constroem-se estratŽgias a fim de possibilitar uma
maior atra•‹o dos olhares.

O aspecto visual do interior do Pal‡cio de Cristal foi estudado atŽ o mais m’nimo
detalhe. O resultado foi uma paisagem visual artificial na qual o olhar do espectador era
dirigido a cada instante. (...) o pedestre se transfigura num espectador hipnotizado por

129
CANOGAR. Op. cit., p.25.
70

um mundo mais perto da imagina•‹o que da realidade. (...) a exterioriza•‹o da


imagina•‹o do indiv’duo sobre uma paisagem altamente fabricada permitia um maior
controle psicol—gico sobre o potencialmente subversivo escapismo do indiv’duo.130

Os pequenos espa•os organizados para as mercadorias, especialmente as


vitrines, assemelham-se ao espa•o arquitet™nico das grandes exposi•›es. Esse espa•o
proporcionado pelos estudos da engenharia apresenta uma semelhan•a com as pequenas
vitrines em seu interior, onde se encontram as mercadorias dispostas e protegidas do toque das
m‹os. Na verdade, a arquitetura de ferro e vidro, assim como a disposi•‹o das inumer‡veis
vitrines nas exposi•›es universais, explora o vidro como material que isola o toque, mas n‹o o
olhar.

O Crystal Palace apresenta-se triunfante em meio ao Hyde Park. Uma grande


e deslumbrante vitrine, com toda sua transpar•ncia e jogos de reflexos certamente encanta a
popula•‹o da Žpoca. Todas as novidades tecnol—gicas ˆ mostra nessa magn’fica constru•‹o
cristalina. Essa gigantesca estufa n‹o exp›e ˆ contempla•‹o humana a natureza mas sim o
vislumbre e a magia das novas tŽcnicas. A mŽdia de quarenta e tr•s mil visitantes di‡rios Ž
atra’da por este mundo novo que transcende as apar•ncias exteriores da realidade. A estratŽgia
visual Ž absolutamente saliente nas opera•›es das Grandes Exposi•›es. PorŽm, est‡ se
passando uma opera•‹o oportunamente favor‡vel ao poder, entretanto, passa praticamente
desapercebida nesse processo por parte da grande popula•‹o. ƒ a futura situa•‹o, ou seja,
anula•‹o do trabalhador artesanal.

De todas as exposi•›es que alguŽm poderia visitar no Pal‡cio de Cristal, a sala de


m‡quinas em movimento foi, sem dœvidas, a mais popular de todas. A estrondosa
cacofonia de diversas m‡quinas funcionando simultaneamente a pleno rendimento
acrescentava a emo•‹o dos espectadores, ‡vidos por aprender quais eram as œltimas
novidades da Revolu•‹o Industrial. (...) Sublinhando uma tecnologia que na realidade
estava deslocando o trabalhador. A sincronizada orquestra•‹o dos diversos aparatos
trabalhando em un’ssono espetacularizava os processos mec‰nicos da sociedade
industrial. Mas esta espetaculariza•‹o ocultava a agress‹o f’sica e psicol—gica que
realmente significava a submiss‹o do trabalhador ao ritmo mec‰nico dos processos
industriais. A perfeita engrenagem dos diversos componentes da sala de m‡quinas
desafiava os torpes movimentos do ser humano. A admira•‹o do povo pelas salas de
m‡quinas era na realidade uma fascina•‹o than‡tica. J‡ que vinha acompanhada de
um certificado de morte, a morte neste caso do trabalhador artesanal.131

130
Idem, p.29-30.
131
CANOGAR. Op. cit., p.30-31.
71

Exposi•‹o Internacional, Paris, 1855.

A primeira Exposi•‹o Universal dos produtos da industria, em Paris, ocorre


em 1855. Desde ent‹o, no decorrer do sŽculo XIX, todas as exposi•›es de import‰ncia hist—rica
acontecem na Fran•a. Para essa exposi•‹o foi constru’do o Palais de L!
Industrie (Pal‡cio da
Indœstria), cuja cobertura teve uma aud‡cia superior ˆ do Crystal Palace: o teto quase
totalmente transparente, de ferro e vidro, tinha um œnico v‹o de quarenta e oito metros. Para a
Žpoca foi o maior ambiente coberto de ferro sem sustenta•‹o intermedi‡ria, uma vez que o
edif’cio para a exposi•‹o de Londres tinha aproximadamente vinte e dois metros de v‹o livre.
Na verdade, a forma do teto do Crystal Palace adotada por seu construtor recebe a mesma
ondula•‹o empregada em 1837 para a constru•‹o dos jardins de inverno de Chatsworth, cuja
fun•‹o era proteger as plantas tropicais para uma aprecia•‹o contemplativa. As enormes
l‰minas de vidro utilizadas nas ab—badas do Palais de L!
Industrie deslumbraram os
observadores contempor‰neos, que n‹o estavam habituados a perceber tamanha quantidade
de luz num œnico espa•o interno.132

No decorrer dos anos p—s 1850, alŽm das opera•›es pol’ticas por parte do
poder, de seus conseqŸentes interesses, sucede uma grande procura pelos valores estŽticos,
relevantes nesse per’odo. O Òembelezamento estratŽgicoÓ de Paris, realizado sob a
coordena•‹o de Haussmann, tem como objetivo um planejamento desafiador para alcan•ar
uma ampla visibilidade. O centro antigo de Paris Ž praticamente todo destru’do, para dar lugar
ˆs grandes dimens›es dos bulevares e ˆ constru•‹o de ruas mais largas, apropriadas ao
movimento de tropas e tambŽm de mercadorias. ÒO ideal urban’stico de Haussmann eram as
vis›es em perspectiva atravŽs de longas sŽries de ruas que antes de serem inauguradas eram
recobertas por uma lona e depois desencobertas como monumentos.Ó133 A t‡tica era encontrar
solu•›es favor‡veis para a reconstru•‹o de uma cidade cenogr‡fica. AlŽm das longas linhas
retas trabalhadas nas ruas da nova constru•‹o de Paris, Haussmann ansiava tambŽm por
Òpontos de vistaÓ impressionantes.134 Dentro desse esp’rito ele chega a mandar diminuir uma

132
GIEDION. Op. cit., p.264-266.
133
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do sŽculo XIX. In KOTHE. Op. cit., p.41.
134
CLARK, T.J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradu•‹o: JosŽ Geraldo Couto. S‹o
Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.75.
72

colina em seis metros, pois sua altura n‹o lhe parecia correta. Seu objetivo era proporcionar um
olhar ideal, uma vista perfeita da exposi•‹o de Paris de 1867. Transforma assim a altura da
colina num ponto ÒprecisoÓ para a visualiza•‹o panor‰mica da exposi•‹o. Oferece
estrategicamente pontos contemplativos para extasiar e distanciar tanto o corpo quanto o olhar
do observador. Haussmann atinge magistralmente a espetaculariza•‹o da vida urbana nos
espa•os da metr—pole transformada por ele.

O sistema de reconhecimento de categorias adotado nas exposi•›es


universais provŽm de seu car‡ter cient’fico. A proposta Ž a classifica•‹o de toda a produ•‹o
emergente, criativa e intelectual do ser humano. As exposi•›es como um todo possibilitam
representa•›es do mundo, ou pelo menos daquele que se deseja.135 Diante disso, o objetivo
das exposi•›es universais encontra-se na rela•‹o entre o resultado da produ•‹o humana,
focado na import‰ncia do produto novo, original, que Ž visto pela primeira vez; tambŽm na
ordena•‹o dos produtos e das mercadorias para uma melhor visibilidade, e assim chegar ˆ
ordem ideal de organiza•‹o da exposi•‹o, numa busca incessante pela provoca•‹o do desejo
do observador. Outro t—pico relevante Ž a classifica•‹o das cria•›es recentes apresentadas
para serem expostas, ou seja, o que Ž, qual o local e com o que ser‡ exposto; fundamental Ž a
apresenta•‹o da exposi•‹o como um grande e novo espet‡culo, e para isso deve-se saber o
que se deseja representar e para quem a representa•‹o desse enorme show Ž pensada; o
objetivo final seria a pr—pria exposi•‹o apresentada como uma totalidade, a qual abrange o
deslumbre da teatraliza•‹o. Nos pontos enumerados anteriormente existe, sem dœvida, uma
procura por valores comerciais, mas tambŽm um grande interesse vis’vel por valores estŽticos.
A inten•‹o central de todas essas rela•›es quer atingir e provocar o encanto pela mercadoria
exposta. O espet‡culo deve estar presente nos m’nimos detalhes de todo o processo de
exposi•‹o, pois a mercadoria encontra-se ˆ vista como preciosidade, est‡ ali para seduzir o
olhar.

ÒAs exposi•›es universais constroem o universo das mercadorias.Ó136 Nesse


caso, a rela•‹o entre o avan•o da indœstria e as exposi•›es universais Ž muito pr—xima. A
exposi•‹o, para acontecer, precisa de inventos recentes e o progresso da indœstria,
conseqŸentemente, depende das inova•›es. Ali‡s, todo esse processo trabalha em torno de um
œnico objetivo Ð a mercadoria. O seu valor de uso Ž passado estrategicamente para segundo
plano. Diante de tal manipula•‹o, a mercadoria transforma-se em pura imagem, ou melhor, em
imagem de desejo.

J‡ no sŽculo XX, com os acontecimentos passados com a Primeira Guerra


Mundial, as exposi•›es universais perdem o car‡ter estritamente industrial e comercial, mas

135
BARBUY, Heloisa. A exposi•‹o universal de 1889 em Paris. S‹o Paulo: Edi•›es Loyola, 1999. p.38-43.
136
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do sŽculo XIX. In KOTHE. Op. cit., p.36.
73

seguem ocorrendo. PorŽm, j‡ se questiona por quanto tempo. TambŽm, o porqu• de organizar
toda uma parafern‡lia se na verdade esse conhecimento do novo nos Ž exposto praticamente
todos os dias pela telinha da TV ou, ainda mais, atravŽs do sistema digital. Hoje essa tecnologia
abre completamente o recinto, anteriormente fechado dos grandes edif’cios das grandes
exposi•›es, as quais, na verdade, tinham como objetivo mostrar as novas tecnologias num
enorme e m‡gico recinto fechado. Mas s‹o elas pr—prias que ir‹o extinguir-se, pois j‡ n‹o se v•
como necessidade fundamental deslocar-se para ver o que trazem de novidades as exposi•›es
universais, diante disso, a TV nos mostra praticamente todas as informa•›es sobre a nova
tecnologia emergente. Justamente o que as grandes exposi•›es mostram pode chegar a
amea•ar sua exist•ncia, ironias da tecnologia.137 A grande vitrine, que foi o Crystal Palace, hoje
transforma-se numa pequena caixa, numa minœscula vitrine que transmite grande parte das
novidades tecnol—gicas.

Situa•‹o contr‡ria acontece na esfera da arte, quando ainda o espectador


precisa vivenciar a obra. A reprodu•‹o em imagem n‹o Ž suficiente para o respectivo
conhecimento. N‹o Ž apenas a informa•‹o de um produto novo. Por isso o sucesso das
grandes exposi•›es de arte segue acontecendo. Assim como a din‰mica da arquitetura na
constru•‹o de novos e grandes museus.

2.5 Ð Pris›es

(...) Vigiar e punir se abre sobre um Òteatro do terrorÓ, a encena•‹o espetacular que
acompanhava as execu•›es pœblicas atŽ o sŽculo XIX. Esse dŽcor estrepitoso,
carnavalesco no qual a todo-poderosa m‹o da justi•a fazia executar a senten•a sob os
olhos dos espectadores era suposto gravar sua mensagem de modo indelŽvel em suas
mentes. Com freqŸ•ncia, a puni•‹o excedia a gravidade do delito e, deste modo,
ficavam reafirmados a supremacia e o poder absoluto da autoridade. Hoje, o controle Ž
menos severo e mais refinado, sem ser, contudo, menos aterrorizador. Durante todo o
percurso de nossa vida, todos n—s somos capturados em diversos sistemas
autorit‡rios; logo no in’cio da escola, depois em nosso trabalho e atŽ em nosso lazer.
Cada indiv’duo, considerado separadamente, Ž normatizado e transformado em um
caso controlado por um IBM. Em nossa sociedade, estamos chegando a refinamentos
de poder os quais aqueles que manipulam o teatro do terror sequer haviam sonhado.
(...)
O ponto em que chegamos est‡ alŽm de qualquer possibilidade de retifica•‹o, porque
o encadeamento desses sistemas continuou a impor esse esquema, atŽ faz•-lo ser
aceito pela gera•‹o atual como uma forma da normalidade. N‹o obstante, n‹o Ž dito

137
CANOGAR. Op. cit., p.116-118.
74

que isso seja um grande mal. O controle cont’nuo dos indiv’duos conduz a uma
amplia•‹o do saber sobre eles, que produz h‡bitos de vida refinados e superiores. Se
o mundo est‡ a ponto de se tornar uma espŽcie de pris‹o, Ž para satisfazer as
exig•ncias humanas.

Michel Foucault138

Michel Foucault estuda profundamente as modernas institui•›es de


confinamento, o asilo, a cl’nica e a pris‹o, enquanto analisa suas respectivas forma•›es
discursivas, a loucura, a enfermidade e a criminalidade. Para tanto, torna-se meticuloso no
momento de investigar as rela•›es dos espa•os fechados nas institui•›es modernas. Devido a
tal interesse, considera o planejamento arquitet™nico atravŽs das implica•›es entre poder e
saber. Em rela•‹o ao processo criminal, avalia a supress‹o do antigo espet‡culo punitivo e sua
substitui•‹o pelo aprisionamento.

Em seu livro Vigiar e Punir, Foucault exp›e uma vis‹o Òda alma moderna e de
um novo poder de julgarÓ. Estuda Òa metamorfose dos mŽtodos punitivos a partir de uma
tecnologia pol’tica do corpo onde se poderia ler uma hist—ria comum das rela•›es de poder e
das rela•›es de objeto.Ó139 Entende-se obviamente que do lado do poder est‹o os guardas, os
mŽdicos, os capel‹es, os psiquiatras, os psic—logos, os educadores, enquanto o objeto Ž o
corpo do indiv’duo.

A pris‹o torna-se o local de observa•‹o das pessoas punidas. Ou seja, Ž o


local onde se inicia o processo para trabalhar o conceito de isolamento. Para tanto, utiliza-se,
relativo ao projeto arquitet™nico, a concep•‹o da transpar•ncia. Isso significa a necessidade de
manter o indiv’duo num local fechado, mas de alguma forma transparente.

A arquitetura da pris‹o explora tanto a visibilidade quanto a clausura.


Enquanto espa•o de execu•‹o da pena, seu mŽtodo punitivo Ž o isolamento do ser humano.
Torna-se, assim, uma espŽcie de vitrine cujo objeto confinado Ž o indiv’duo transformado dessa
maneira, enquanto tema de estudo, simbolicamente em imagem.

Em se tratando de arquitetura e visibilidade, a pris‹o trabalha a transpar•ncia


da proje•‹o da luz e das grades. A divis‹o dos espa•os acontece por meio de paredes e da
gradaria. Ao contr‡rio da masmorra, que tratava de privar a luz, o projeto da pris‹o vai evitar a
sombra e buscar uma t‡tica para tornar vis’vel o que se passa na cela.

138
FOUCAULT, Michel. EstratŽgia, poder-saber. Organiza•‹o e sele•‹o de textos: Manoel Barros da Motta.
Tradu•‹o: Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universit‡ria, 2003. p.306-307.
139
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da pris‹o. Tradu•‹o: Raquel Ramalhete. Petr—polis: Vozes,
1987. p.23-24.
75

Foucault, em Vigiar e Punir, discute inicialmente a supress‹o do antigo ritual


punitivo realizado em pra•a pœblica como Òatra•‹oÓ aberta e coletiva, e sua conseqŸente
substitui•‹o pelo aprisionamento. A transi•‹o a uma penalidade de deten•‹o acontece no final
do sŽculo XVIII e princ’pio do sŽculo XIX. Assim, o corpo do condenado como espet‡culo n‹o Ž
mais exposto e castigado por meio da encena•‹o da dor f’sica. ÒO condenado n‹o deve mais
ser vistoÓ140 publicamente, diante disso, ele Ž encerrado, Ž transportado para o interior, onde
continua sob olhares, mas agora sob a observa•‹o do poder, n‹o mais como espet‡culo
pœblico.

Em seguida, analisa a pris‹o como um mŽtodo de poder, que consiste em


trancar, isolar e vigiar constantemente o condenado, cuja puni•‹o Ž a priva•‹o da liberdade do
indiv’duo e sua conseqŸente solid‹o. A idŽia Ž isolar para controlar. ÒO isolamento assegura o
encontro do detento a s—s com o poder que se exerce sobre ele, assim a solid‹o torna-se a
condi•‹o primeira da submiss‹o total.Ó141 O isolamento acontece tanto do condenado em
rela•‹o ao mundo exterior, quanto dos detentos uns em rela•‹o aos outros.

ÒO encarceramento penal, desde o in’cio do sŽculo XIX, recobriu ao mesmo


tempo a priva•‹o de liberdade e a transforma•‹o tŽcnica dos indiv’duos.Ó142 Ou seja: o poder se
utiliza de suplementos corretivos, a fim de aplicar processos disciplinares com a inten•‹o de
modificar o indiv’duo. Na verdade, um sistema de classifica•‹o, fixa•‹o, distribui•‹o espacial,
treinamento, codifica•‹o, registro, observa•‹o do indiv’duo com a finalidade de constituir sobre
ele um controle central Ð Ž um mŽtodo que j‡ vinha sendo utilizado h‡ tempos por parte do
poder. A institui•‹o pris‹o foi criada para ser toda uma aparelhagem que pudesse tornar os
indiv’duos d—ceis e œteis, atravŽs de um trabalho preciso sobre seu corpo143. D—ceis, para n‹o
oferecerem problemas referentes ˆ sua deten•‹o, e œteis, por meio do sistema de trabalho
organizado para eles realizarem.

140
Idem, p.16.
141
Idem, p.200.
142
Idem, p.196-197.
143
Idem, p.195.
76

Interior da penitenci‡ria de Stateville, EUA, sŽculo XX.

Foucault coloca o Pan—ptico de Jeremy Bentham como o projeto ideal para


pris›es principalmente por ir ao encontro dos interesses das autoridades do poder pœblico. A
descri•‹o de Bentham de seu projeto do Pan—ptico Ž a seguinte:

Uma casa de penitenci‡ria (...) deveria ser um edif’cio circular, ou melhor dizendo, dois
edif’cios encaixados um no outro. Os quartos dos presos formariam o edif’cio da
circunfer•ncia com seis andares, e podemos imaginar estes quartos como celas
abertas na parte interior do edif’cio (...) Uma torre ocupa o centro, e esta Ž a habita•‹o
dos inspetores (...) a torre de inspe•‹o est‡ tambŽm rodeada de uma galeria coberta
com persianas transparentes que permitem ao inspetor registrar todas as celas sem
que o vejam (...) mas mesmo que esteja ausente, a impress‹o de sua presen•a Ž t‹o
eficaz como sua pr—pria presen•a (...) Entre a torre e as celas deve haver um espa•o
vazio, ou um po•o circular, que tira dos presos qualquer meio de tentar algo contra os
inspetores (...) Este edif’cio Ž como uma colmŽia, cujas celas podem ser vistas todas
desde um ponto central (...).Ó144

Na edifica•‹o do Pan—ptico se projeta tambŽm a dire•‹o da luz solar, para


iluminar as celas e assim facilitar o olhar do vigia. ÒO tema do Pan—ptico Ð ao mesmo tempo
vigil‰ncia e observa•‹o, seguran•a e saber, individualiza•‹o e totaliza•‹o, isolamento e
transpar•ncia Ð encontrou na pris‹o seu local privilegiado de realiza•‹o.Ó145

144
<TŽrminos y Condiciones - Haga Publicidad en Monografias.com>1997 Lucas Morea.
145
FOUCAULT. Op. cit., 1987. p.209.
77

N. Harou-Romain. Projeto de penitenci‡ria, 1840.

A trama arquitet™nica do Pan—ptico Ž perspicaz quando trabalha a


transpar•ncia no espa•o das celas. Explora a rela•‹o entre o olhar e o distanciamento do corpo
que est‡ sempre sendo olhado. Calcula com perfei•‹o a proje•‹o da luz no espa•o
enclausurado pelas grades de ferro. O Pan—ptico desenvolve a for•a do olhar por meio da
transpar•ncia de sua arquitetura e joga permissivamente com o olhar do poder. Sua arquitetura
Ž sufocante, repressora, relativa ˆ sensa•‹o do sujeito estar enclausurado e constantemente
vigiado. O projeto do Pan—ptico oferece a possibilidade de ver absolutamente tudo apenas ao
vigia, ao sujeito encarcerado lhe Ž negada, ele nunca sabe se o guardi‹o est‡ na torre ou n‹o.
Diante disso, o que realmente importa Ž o condenado se sentir vigiado. O pr—prio projeto
arquitet™nico induz essa sensa•‹o no detento.

Foucault v• na arquitetura do Pan—ptico a pot•ncia do olhar sendo totalmente


explorada, colocando-a como local de experi•ncias e Òlaborat—rio de poder devido a seus
mecanismos de observa•‹o. Um local privilegiado para tornar poss’vel a experi•ncia com
homens e para analisar com toda a certeza as transforma•›es que se pode obter neles.Ó146 A
quest‹o carcer‡ria Ž toda uma rela•‹o constru’da entre t‡ticas de poder e domina•‹o. Com isso
podemos nos perguntar, quem, na verdade, tem direito sobre o corpo do outro? Quem e como
escolhe e decide quem vai para a pris‹o? O preso, com certeza, sob o poder e a domina•‹o, de
uma forma ou outra, perde a identidade. A œnica coisa que passa a possuir como detento Ž um
nœmero. Enquanto transforma-se em m’sera imagem, quando muito, de estudos.

146
FOUCAULT. Op. cit., 1987. p.169.
78

Dan graham. Two-way Mirror Cylinder inside Cube and Video Salon. Rooftop Park for Dia Center for
the Arts. 1981-1991. Espelho falso, vidro transparente, a•o, madeira e borracha. 2,4 x 11 x 11 m.
Instala•‹o permanente, Dia Center for the Arts, Nova York.

Relevante Ž a interpreta•‹o art’stica de Dan Graham do conceito de pan—ptico


em seu projeto para o terra•o do edif’cio do Dia Center for the Arts em Nova York:

(...) um pan—ptico que transfere o ‡trio da institui•‹o e oferece vistas de Manhattan e


do rio Hudson. Para Graham, o ‡trio de muitos edif’cios corporativos representa um
mundo dentro de um mundo, um refœgio temporal que introduz o exterior em um interior
de transi•›es. Num giro surpreendente, este pan—ptico devolve ˆ cidade a utopia
prometida pelo refœgio dos bairros residenciais, distantes, porŽm pr—ximos ˆ cidade. O
parque urbano criado por este pavilh‹o proclama sua fun•‹o social. No esp’rito dos
espa•os alternativos dos anos setenta, inclui um cafŽ e um lugar para ver v’deos e
performances. Criando um horizonte de 360 graus, converte a cidade num panorama
cinematogr‡fico.147

Interessante lembrar a obra de Lothar Baumgarten de 1987, uma singela


instala•‹o permanente para a cidade de MŸnster, na Alemanha. Apesar de buc—lica, traz em
evid•ncia a tr‡gica mem—ria do local, enquanto se refere a uma das dram‡ticas fatalidades dos
espet‡culos pœblicos impostos pela igreja.

147
PELZER, Birgit. Dan Graham. In OSBORNE, Peter (ed.). Conceptual Art. London, New York: Phaidon, 2002.
79

Lothar Baumgarten. Drei Irrlichter, 1987. Torre da Lamberti-Kirche. Instala•‹o permanente.


Tr•s l‰mpadas incandescentes nas celas anabaptistas.

Baumgarten intervŽm nas tr•s famosas jaulas, que os cat—licos encarceraram


os corpos executados dos l’deres anabaptistas, exibidos na torre dos sinos para not—ria puni•‹o
pœblica. Enquanto tambŽm faz alus‹o, Òem igual medida, ˆ insolente imposi•‹o da Igreja
cat—lica, que exigiu que as jaulas fossem restauradas e novamente suspendidas em seu lugar
original quando, alguns anos depois da segunda Guerra Mundial, se reconstr—i a igreja.Ó148

O artista insere no interior de cada jaula apenas uma pequena l‰mpada de luz
incandescente, Òque as ilumina pela noite, enquanto a brisa as move suavemente, dando aos
anabaptistas uma surpreendente presen•a na vida da cidade. (...) um efeito quase m‡gico
adquirem estes pequenos far—is na noite onde a acusa•‹o da hist—ria se mantŽm ainda
patenteÓ.149

2.6 Ð NecrotŽrio de Paris

Como foi mencionado, a demonstra•‹o em ‡reas pœblicas da puni•‹o f’sica


desaparece em princ’pios do sŽculo XIX. A partir de ent‹o, o campo de a•‹o incide no espa•o
fechado. A inten•‹o de prender o olhar popular modifica o foco. O espet‡culo de alguma forma
precisa continuar, pois a vida moderna o busca intensamente. Ademais, a sociedade moderna
est‡ sempre ˆ procura de algo para olhar, para distrair-se.

148
MANZANARES, Mar’a Luisa Sobrino. Escultura contempor‡nea en el espacio urbano: transformaciones,
ubicaciones y recpci—n pœblica. Sociedad Editorial Electa Espa–a, 1999. p.64-65. A autora cita W.
Grasskamp.
149
Idem, ibidem.
80

Vanessa Schwartz disserta sobre tr•s locais de prazer na Fran•a do fim do


150
sŽculo XIX . Um desses locais era o NecrotŽrio de Paris. Tal institui•‹o municipal tinha como
um dos objetivos servir de dep—sito para os mortos an™nimos. A localiza•‹o do necrotŽrio era
privilegiada, pois encontrava-se nas cercanias da igreja de Notre Dame. Na parte frontal do
edif’cio, ap—s o hall de entrada, deparava-se com uma enorme parede de vidro, que
possibilitava a visibilidade de seu espa•o interior. A’ encontrava-se a sala de exposi•‹o, onde
os cad‡veres eram dados a conhecer. Com a exibi•‹o dos mortos, o necrotŽrio esperava
reconhecer identidades an™nimas, contando com a colabora•‹o pœblica. A visita•‹o desse
espa•o tornou-se, segundo a imprensa local, gigantesca. O necrotŽrio, constru’do em 1864,
permanecia aberto os sete dias da semana, do amanhecer ao anoitecer. AlŽm disso, como
qualquer espet‡culo bem freqŸentado, em frente ao necrotŽrio encontravam-se v‡rios
vendedores ambulantes.

A fachada de vidro, no hall de entrada do NecrotŽrio de Paris, proporcionava,


se Ž que assim podemos dizer, um espet‡culo para olhares curiosos. ÒA identifica•‹o dos
corpos mortos foi transformada num show.Ó O pœblico tinha acesso ˆs informa•›es sobre os
mortos no jornal. Sua curiosidade era despertada primeiramente via narrativa impressa. Assim,
dirigia-se ap—s a leitura ao necrotŽrio para ver os cad‡veres. O jornal narrava e o necrotŽrio
colocava ˆ mostra a ÒimagemÓ. Na verdade, esse pœblico n‹o estava interessado em identificar
ninguŽm, era apenas o desejo m—rbido de ver, sem necessidade de grandes conhecimentos.

Um exemplo concreto dado por Schwartz, e sem dœvida relevante para


entender a rela•‹o desse espectador e seu pr—prio olhar, e o quanto isso se tornou espet‡culo,
foi o seguinte: em agosto de 1886, a capa do Le Journal illustrŽ exibia o cad‡ver de uma
menina de quatro anos, desconhecida, encontrada na rua. Os jornais informaram sobre a
visita•‹o ao necrotŽrio de 50 mil pessoas em apenas um dia para ver a crian•a morta no interior
das vitrines. Le Matin informou que 150 mil pessoas fizeram fila para ver o corpo. Como o
cad‡ver da crian•a foi exposto durante v‡rios dias, durante a noite, para ser preservado, era
colocado sob refrigera•‹o.

150
CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R.(org.). O cinema e a inven•‹o da vida moderna. Tradu•‹o: Regina Thompson.
S‹o Paulo: Cosac & Naify Edi•›es, 2001. p.411-440. (os outros dois locais eram o MusŽe GrŽvin e os Panoramas).
81

O mistŽrio da rua Vert-Bois. Le Journal illustrŽ, 15 de agosto de 1886.

Para Schwartz, esse local de prazer popular ofereceu para as massas um tipo
de fl‰nerie, que ela identifica com o olhar novo e mobilizado do espectador prŽ-cinematogr‡fico.
Esse olhar interessava-se pela realidade da Žpoca, porŽm, aquela realidade feita apenas para
olhar. N‹o tinha a necessidade de participar ativamente. ƒ desse observador n‹o atuante que
Schwartz fala, aquele que possui a mesma passividade do futuro espectador cinematogr‡fico,
estando interessado apenas na "
pura!imagem. Ou melhor, em ver a realidade por meio de
imagens. A "
vitrine!do necrotŽrio serve como tela e respectiva imagem para o espectador
cinematogr‡fico antes do aparato do cinema. Esse pœblico n‹o estava procurando a realidade e
sim a imagem da realidade. O pœblico se dirigia ao necrotŽrio porque existia um distanciamento
proporcionado pela maneira como a realidade estava sendo exposta. Est‡ se falando aqui,
acredite-se ou n‹o, em entretenimento, espet‡culo. Esse evento trabalhou uma sedu•‹o
m—rbida do olhar, porŽm ˆ dist‰ncia. Existia uma separa•‹o definida entre quem olhava e o que
era visto, eram dois momentos distintos: o tempo do espectador do lado de fora, e outro tempo
distinto do primeiro Ð o do corpo isolado no interior do edif’cio, porŽm ˆ mostra para quem o
observava. Essa situa•‹o ajudou a convers‹o do mundo real em imagem, ademais em imagem
de an™nimos, sem identidade.
82

2.7 Ð Obras pontuais na arquitetura de vidro Ð sŽculo XX

Hoje, n‹o podemos mais conceber a distin•‹o entre um espa•o interno e um espa•o
externo, entre um espa•o apenas meu e um espa•o de todos. Hoje, Ž componente do
espa•o urban’stico qualquer coisa que, na cont’nua muta•‹o da realidade ambiental,
retŽm por um instante nossa aten•‹o, obriga-nos a reconhecer-nos (ainda que para
tomar consci•ncia de nossa nulidade) em um objeto ou em algo que, n‹o sendo objeto
no sentido tradicional do termo, ainda Ž algo que n‹o conhecemos e cuja chave, cujo
c—digo de interpreta•‹o devemos encontrar.

Giulio Carlo Argan151

A quest‹o da transpar•ncia est‡ diretamente associada ˆ tecnologia da


unidade152. PorŽm, em alguns casos, como no da arquitetura, pode causar efeitos contr‡rios, ou
seja, conseqŸ•ncias imprevistas. Como vimos anteriormente, a cidade crist‹ valorizou
sobremaneira o interior. J‡ a cidade Iluminista levou seus cidad‹os ao exterior, mas n‹o ao
espa•o urbano e sim os levou ao campo, aos bosques nos arredores da cidade. N‹o cabem
dœvidas de que os primeiros arquitetos do modernismo desejavam que ocorresse outra
situa•‹o, pois viam na arquitetura a constru•‹o de uma sociedade mais unificada e coerente.
PorŽm, o modo como os materiais modernos passaram a ser utilizados assinalava um resultado
em dire•‹o contr‡ria, a cria•‹o de mais isolamento do que conex‹o. Isso era o efeito inverso ao
desejado numa arquitetura com pretens›es de ser, na verdade, completamente aberta. Diante
disso, as l‰minas de cristal tornaram-se verdadeiras muralhas, enclausuraram completamente
os espa•os. ÒEmpregadas deste modo s‹o o material de constru•‹o perfeito para uma cidade
neutra, dado que desvalorizam a realidade t‡til do que se v•.Ó153 Tais circunst‰ncias tornam o
interior praticamente incomunic‡vel, um espa•o que n‹o oferece acesso, insoci‡vel. A vis‹o
atinge quaisquer perspectivas, mas os sentidos da audi•‹o, do tato, do olfato s‹o
paradoxalmente anulados. A segmenta•‹o dos sentidos e da percep•‹o, iniciada com os jardins
de inverno vitorianos e com enorme propaga•‹o, atualmente, resulta progressivamente
amortecedora. As rela•›es urbanas relacionam-se hoje num jogo perspicaz entre a visibilidade
e o isolamento.154

O vidro, o material emblem‡tico da produ•‹o industrial moderna, que n‹o admite


vest’gios individuais, que Ž o resultado direto do esp’rito, sem os titubeios e inŽrcias
das coisas feitas a m‹o. (...) Ž, para Paul Scheerbart, Bruno Taut e o resto dos jovens

151
ARGAN, Giulio Carlo. Hist—ria da arte como hist—ria da cidade. Tradu•‹o: Pier Luigi Cabra. S‹o Paulo:
Martins Fontes, 1995. Urbanismo, espa•o e ambiente. p.224.
152
SENNETT. Op. cit., p.125.
153
Idem, p.125-141.
154
Idem, ibidem.
83

alem‹es formados no princ’pio do sŽculo, met‡fora do novo mundo. N‹o s— met‡fora,


mas fator de constitui•‹o da nova sociedade (...).155

Bruno Taut. Glashaus, 1914

Bruno Taut projetou e dedicou a Glashaus (Pavilh‹o de Vidro) ao poeta Paul


Scheerbart, que, em seus palpites arquitet™nicos, argumentava com vigor a favor de uma
cultura do vidro. Taut explorou, neste material, as possibilidades oferecidas por suas cores e
transpar•ncia, buscando a forma livre e expressiva. Interessava-se pelas experimenta•›es com
materiais e tŽcnicas modernas, alŽm de tirar partido das cores como elemento alegre na
arquitetura da cidade. A Glashaus foi constru’da para a Exposi•‹o Werkbund de Col™nia, em
1914, e chegou a ser financiada pela indœstria do vidro. Constitu’a-se de um prisma de
quatorze lados de vidro colorido, com degraus de blocos do mesmo material. Sua cœpula tinha
uma cobertura dupla de vidro com prismas coloridos no interior e reflexivo no exterior. No
Pavilh‹o encontravam-se inscri•›es de Scheerbart: ÒA luz quer o cristalÓ, ÒO vidro introduz uma
nova eraÓ, ÒSem um pal‡cio de cristal, a vida se transforma em fardoÓ, ÒO vidro colorido acaba
com o —dioÓ.

Para Taut, qualquer edif’cio n‹o destinado a um œnico indiv’duo, mas sim a
um —rg‹o coletivo, deveria explorar no projeto a utiliza•‹o do vidro com grande intensidade. Na
verdade, Scheerbart e Taut esperavam da Ònova cultura de vidroÓ uma nova moral, o que
permitiria uma consci•ncia mais brilhante, chegando a atribuir ˆs causas estŽticas efeitos
morais.156 As quest›es sociais, para Taut, eram uma parte consistente de seu pensamento. O
vidro seria o material no qual se reconciliariam esp’rito e matŽria. Inclusive, Taut assinava suas
cartas com o pseud™nimo GLAS (vidro). A quest‹o da •nfase na cor era um dos objetivos da
arquitetura expressionista como possibilidade de fazer-se popular. Scheerbart falava da

155
QUETGLAS, Josep. El horror cristalizado: im‡genes del Pabell—n de Alemania de Mies van der Rohe.
Barcelona: Actar Publishers, 2001. p.123.
156
<www.todoarquitectura>
84

necessidade de uma mudan•a na arquitetura, e para tanto era necess‡rio "


abrir!o espa•o, ou
seja, introduzir abundantemente o vidro. Assim entraria nos ambientes, outrora fechados, a luz
do sol, da lua e das estrelas. Ademais, o vidro deveria ser colorido.

Vladimir Tatlin. Monumento ˆ III Internacional, 1920/1983. Maquete

O Monumento ˆ III Internacional de Wladimir Tatlin (Moscou, 1919), por meio


de uma maquete arquitet™nica, prop›e o projeto de uma constru•‹o absolutamente ut—pica.
Certamente n‹o foi realizado. Seu plano consiste de um edif’cio governamental de escrit—rios
cuja concep•‹o era abarcar institui•›es oficiais. A constru•‹o deveria compor-se de tr•s corpos
fechados com vidro transparente e sobrepostos Ð uma sala de reuni›es quadrada, uma
pir‰mide administrativa e um centro de imprensa cil’ndrico. Ou seja: tais corpos
corresponderiam a um cilindro, uma pir‰mide, um cilindro menor e uma semi-esfera como
arremate final. Ela giraria 360o no interior de uma espiral de a•o de 300 metros de altura, e com
uma inclina•‹o de 45o. Essa espiral encontra-se na parte externa, completamente aparente,
envolvendo todo o complexo da constru•‹o, sendo a estrutura onde se ap—iam os tr•s corpos.
O monumento Ž uma s’ntese de arquitetura e escultura, poder’amos falar tambŽm de uma
arquitetura cinŽtica. Os tr•s elementos do edif’cio deveriam girar ao redor de seu pr—prio eixo
com ritmos distintos: anual, mensal e di‡rio. ƒ uma obra revolucion‡ria no que diz respeito em
alojar corpos oficiais numa configura•‹o pl‡stica transparente: o projeto representa a pr—pria
Revolu•‹o. Esse monumento simula o desejo do dar-se a ver, a conhecer, o desejo ut—pico de
85

ver um complexo governamental se colocar ˆ mostra, se apresentar ˆs claras ao olhar da


popula•‹o.

Mies van der Rohe. Barcelona Pabell—n, 1929/1986

Em seus primeiros projetos, Mies van der Rohe manteve uma rela•‹o intensa
com a arquitetura cl‡ssica do sŽculo XIX. PorŽm trabalhou numa linguagem contempor‰nea,
sob sua formula•‹o arquitet™nica Ð less is more (menos Ž mais). O Pavilh‹o alem‹o, constru’do
para a Exposi•‹o de Barcelona, em 1929, n‹o foi um edif’cio constru’do para expor algo, mas
sim a si pr—prio. O Pavilh‹o em si era o objeto a ver. Como os pal‡cios constru’dos para as
exposi•›es universais do sŽculo XIX, teve dura•‹o ef•mera e foi demolido no ano seguinte.
Mas, chegou a ser reconstru’do entre 1983 e 1986 (obra de Fernando Ramos, Ignasi de Sola
Morales e Christian Cirici).

Vazio e futuro Ð duas palavras indispens‡veis que nos toca repeti-las se


desejamos falar do cen‡rio que representou a Alemanha na Exposi•‹o de 1929.157 Na verdade,
tratava-se de oferecer um marco para um ato inaugural, o qual deveria representar a Alemanha,
ou seja, o modelo como a Alemanha gostaria de consagrar de si mesma. Portanto, o projeto
deveria ser de uma economia e pol’tica concreta. Fundado no mito do trabalho, da indœstria,
cuja rela•‹o j‡ n‹o deveria ser mais a do propriet‡rio da f‡brica e sim entre o empres‡rio e o
trabalhador. Diante disso, o Pavilh‹o representaria uma casa, a casa moderna, transparente e
luminosa Ð representa•‹o da luminosidade, da eletricidade.158

Na claridade, a precis‹o, como algo divino, reaparece de forma laica no culto


ao objeto perfeito.159 Para Mies, o Pavilh‹o Barcelona foi um instante luminoso em sua vida160.

157
QUETGLAS. Op. cit., p.23.
158
Idem, p.23-27.
159
SENNETT. Op. cit., p.144.
86

Nessa express‹o Mies revela o grande potencial inserido em sua obra. O Pavilh‹o trabalha a
luz, ele mesmo Ž todo claridade. A luz do templo g—tico foi substitu’da aqui pela total
transpar•ncia, a luminosidade desce agora para a altura do espectador. Ela se dissolve em
todas as superf’cies da arquitetura. Reflete, absorve, Ž a pr—pria representa•‹o da lucidez no
ambiente interior. Os reflexos confundem ordenadamente e engrandecem a no•‹o de espa•o.
O Pavilh‹o Ž de ordem sublime, portanto, se aproxima ao extremo requinte. Os poucos objetos
existentes recebem um lugar exato, com perfeita maestria, nem mais para l‡ nem mais para c‡.
Qualquer mudan•a, e ocorreria uma cat‡strofe.

A horizontalidade evidente na arquitetura de Mies nega qualquer presen•a


das linhas verticais. Essas, de enorme assiduidade no templo sacro, aqui s‹o praticamente
inexistentes. Um lugar completamente vazado, estende-se paralelamente ao horizonte, confere
uma dimens‹o de espa•o ilimitado. Mas, diante disso, existe um paradoxo, pois o espa•o
apresenta-se aberto e fechado ao mesmo tempo. Na verdade, existem limites bem definidos.
Onde as paredes n‹o se encontram como obst‡culos, elas delimitam, contudo n‹o em termos
de fronteira, e sim como um jogo de estar quase ao mesmo tempo dentro e fora do ambiente. O
projeto do Pavilh‹o explora planos de matŽria transparente, n‹o transparente, quase opaca e
tambŽm translœcida. Todos os materiais possuem como caracter’stica evidente superf’cies
reflexivas. Esse efeito espelho multiplica o espa•o, oferece tambŽm maior profundidade,
prolonga assim a perspectiva, oferece continuidade. Tem um valor m‡gico, amplia o espa•o, Òa
«parede« perde seu significado de clausura espacialÓ161. Essa profundidade Ž apenas ilus—ria,
um espet‡culo entre a imagem e a realidade. Um lugar para estar e brincar com os reflexos
provocados pelas diferentes luminosidades decorrentes da luz solar. Os reflexos extrapolam os
limites da matŽria e ao mesmo tempo capturam o espectador.

O observador n‹o apenas entra, visita o espa•o e vai embora. Ele


permanece, entra, sai, volta a entrar e assim sucessivamente. Nesse ambiente, o espectador
n‹o possui a plena consci•ncia de estar dentro ou fora, os reflexos o confundem, o det•m.
Assim como o Pavilh‹o recebe o visitante, enclausura-o por instantes, porŽm n‹o o acolhe.
Mas, para acontecer plenamente, conta com sua presen•a, ali‡s, ele foi projetado para receber
um visitante em particular, Alfonso XIII, rei da Espanha. O espectador v• seu reflexo
praticamente em todas as superf’cies do Pavilh‹o. ƒ aprisionado pelo espa•o. Enquanto ali
permanece, mistura-se atravŽs dos reflexos com a arquitetura e a paisagem que fazem parte do
mesmo fen™meno, s‹o projetadas virtualmente em locais inesperados. Uma brincadeira de
proje•›es entre a arquitetura interior e o ambiente exterior. Nesse jogo o visitante entra e sai
dessa enorme vitrine, desse templo moderno, laico. Brinca consigo mesmo, ou melhor, com sua
imagem, nesse templo onde n‹o Ž necess‡rio fazer rever•ncias sacras. Sua imagem lhe Ž

160
QUETGLAS. Op. cit., p.181.
161
BENJAMIN. Op. cit., 2005. p.555.
87

imposta constantemente, transformado-o em espectador de si mesmo, convertendo-se, na


verdade, em parte da representa•‹o162.

O rey Alfonso XIII em frente ˆ parede de luz. Interior do Pavilh‹o.

O Pavilh‹o funciona como uma cela transparente, reflexiva, onde o


observador se olha, mostra-se, v• o outro, permanece numa eterna transfer•ncia entre ser
sujeito ou objeto no interior dessa gigantesca vitrine. O espa•o captura o visitante e o
transforma em protagonista. Por um momento o visitante Ž apenas um observador do lado
externo, noutro instante, ele Ž o objeto inserido no interior da caixa transparente, ou imagem
projetada nas superf’cies das paredes do Pavilh‹o, quando ent‹o se confunde com a matŽria.
Existe um eterno jogo proposto pela arquitetura, entre ser objeto, permanecer indiv’duo ou
projetar-se como imagem. A situa•‹o transforma-se em trama intrigante para o visitante, estar
no espa•o tanto como espectador quanto objeto exposto jamais o deixa de cativar.

A dimens‹o do vazio da arquitetura de Mies faz parte de uma dimens‹o


sublime. ÒEm um ambiente de Mies, a mais m’nima mudan•a na posi•‹o das cadeiras altera a
sensa•‹o de magnitude do espa•o.Ó163 No sublime n‹o se toca Ð olhe mas n‹o toque. N‹o Ž um
espa•o para ser utilizado e sim para ser admirado. Um espa•o com tais caracter’sticas mostra
um desejo de estar a par com o objeto sagrado, um objeto a ser adorado e n‹o utilizado.164 O
Pavilh‹o Barcelona Ž um local para estar, n‹o para viver. Mas as dimens›es do Pavilh‹o
comparam-se ˆs de uma casa e n‹o ˆs de um templo. Digamos, aproxima-se muito ao templo
grego, como objeto separado do mundo. PorŽm, diferencia-se uma vez que, no templo sacro, o
espectador permanece do lado de fora, s— a poucos escolhidos Ž permitida a entrada. J‡ no

162
QUETGLAS. Op. cit., p.65.
163
SENNETT. Op. cit., p.147.
164
Idem, p.148.
88

Pavilh‹o de Mies todos entram. Entretanto, que paradoxo! Ele foi constru’do especialmente
para receber um convidado seletamente escolhido, o rei de Espanha.

Um Pavilh‹o com aspecto sublime, todavia laico, repleto de imagens, n‹o de


santos, e sim de reflexos fugazes dos visitantes e da pr—pria arquitetura. Um templo para o
pr—prio observador expor-se, projetar-se nas superf’cies matŽricas. A arquitetura deixa o espa•o
livre para o espectador atuar. O vazio, o sil•ncio quase totalmente introspectivo do templo
sacro, agora Ž um sil•ncio e um vazio que trabalha a pr—pria subjetividade. Ele n‹o olha para
algo alŽm da realidade vis’vel, e sim para frente e para os lados, pois a horizontalidade aqui Ž
fator dominante. Ele contempla o seu pr—prio entorno. ƒ um espa•o fluente, d‡ liberdade ao
movimento do visitante. De uma posi•‹o a outra, basta apenas um deslizar, deixar-se ir pelo
pr—prio jogo do espa•o arquitet™nico. Os pr—prios reflexos flutuam no espa•o. Depois do
espectador subir os poucos degraus da entrada do Pavilh‹o, ele se encontra na base que ap—ia
o edif’cio, a qual delimita o projeto de Mies, enquadra-o, enquanto provoca um distanciamento
muito sutil do espa•o comum.

Mies van der Rohe. Neue Nationalgalerie. Berlim, 1965-1968.

Os projetos de Mies t•m esse aspecto de um grande e elegante monumento


descansando sobre uma base. No edif’cio da Neue Nationalgalerie (Berlim, 1965-1968), Mies
desenvolve a tradicional eleg‰ncia cl‡ssica, em que predomina a horizontalidade na utiliza•‹o
do a•o negro e da fachada totalmente envidra•ada.

Outro projeto de Mies, porŽm de car‡ter absolutamente privado, Ž a casa


projetada para Edith Farnsworth em 1946. O projeto foi idealizado a partir de um œnico volume
de v‹o livre, de configura•‹o retangular. A casa fica praticamente suspensa no ar, apoiando-se
sobre colunas de viga, um metro e meio acima do solo. Todas as laterais s‹o unicamente de
vidro. Deve-se ressaltar que a resid•ncia n‹o deixa de aparentar uma enorme vitrine flutuante
no espa•o. Um prisma transparente elevado aos ares. Essa eleva•‹o, na verdade, equivale ao
89

status de um monumento.165 A resid•ncia se encontra praticamente ˆ altura tradicional do


monumento pœblico, ou seja, na posi•‹o um pouco acima do olhar do espectador. Um ambiente
domŽstico colocado totalmente ˆ mostra, feito palco. Uma escultura habit‡vel. A casa de v‹o
livre e completamente branca n‹o deixa de ser um precedente na arquitetura. Mesmo o a•o
aparente foi pintado de branco, ap—s os vest’gios de soldadura serem todos completamente
eliminados, exig•ncias do perfeccionismo de Mies. Apesar do alto custo para a constru•‹o, e o
desentendimento entre o arquiteto e a propriet‡ria, ela ficou, sem dœvidas, com uma casa
assinada, uma arquitetura com autoria.

Mies van der Rohe. Farnsworth House. Fox River, Plano, Illinois, 1946-50

Philip Johnson trabalha, na casa projetada para ele mesmo viver, o purismo
rigoroso de Mies van der Rohe, de quem foi, por um tempo, colaborador. Em seu projeto de
linhas retas prevalece a horizontalidade. AlŽm disso, o jardim e a casa fazem parte do mesmo
plano. A transpar•ncia colabora numa continuidade ainda maior entre o interior da resid•ncia e
o espa•o externo do jardim. Sua resid•ncia funde-se quase por completo com a paisagem. A
total transpar•ncia tem como œnico espa•o fechado o cilindro que encerra o banheiro, enquanto
a estrutura de a•o suporta a constru•‹o. Ali‡s, tal arquitetura proporciona um ambiente de conto
de fadas contempor‰neo.

Philip Johnson. Glauss House, New Canaan, Connecticut, 1949

165
FRAMPTON, Kenneth. Hist—ria cr’tica da arquitetura moderna. Tradu•‹o: Jefferson Luiz Camargo. S‹o Paulo: Martins
Fontes, 2003. p.285.
90

Praticamente nessa mesma rela•‹o de continuidade trabalhada por Philip


Johnson, porŽm destinada a um projeto para um museu, Ž a arquitetura transparente de Lina Bo
Bardi. No edif’cio dedicado ao Museu de Arte Moderna de S‹o Paulo, traz o museu para o n’vel
da rua, mostrando uma tentativa de uma arquitetura democr‡tica.166 Ou seja, as paredes das
salas de exposi•‹o encontram-se no mesmo plano da passarela externa, a qual faz parte de um
complexo de edif’cios dentro do parque da cidade. Ali‡s, suas paredes s‹o painŽis de vidro
transparente, o que oferece uma grande visibilidade de seu interior para o pedestre que vem
passear no parque, o qual se v• entre seu pr—prio reflexo no vidro, misturado tanto ˆs obras de
arte nas salas expositivas quanto ˆ paisagem do entorno do museu. O museu, alŽm de estar no
mesmo plano do espa•o pœblico, coloca indiretamente o pedestre em seu interior.

2.8 Ð Interven•›es no espa•o arquitet™nico

No campo expandido da escultura167, podemos colocar a obra Visiones


Sedantes de Ana Maria Tavares como uma representa•‹o da escultura como lugar,
distanciando-se completamente da escultura como forma ou como estrutura. Desse modo, a
obra relaciona-se com propostas ligadas diretamente ao significado de lugar. Nesse caso, a
escultura ligada ao conceito de lugar significa que o espectador passa por uma experi•ncia no
local da obra. Vamos assim falar na ocupa•‹o de um espa•o. Ë primeira vista, o observador
depara-se com um ambiente perturbador, um vazio deslocado. A apar•ncia Ž de uma sala de
espera de aeroporto, ou seja, um lugar de passagem, onde geralmente o fluxo de pessoas Ž
constante. Na verdade, esse recinto, sem particularidades, impessoal, assim como o projeto
para todos os lugares de espera, um n‹o-lugar168, foi ÒtransferidoÓ para o campo da arte. Ana
Maria o transforma em um ponto de observa•‹o do cotidiano da cidade. O espectador, no
espa•o interior, aprecia o fluxo continuo da realidade externa.

Ana Tavares projeta uma sala de espera aproveitando a pr—pria arquitetura do


local, o qual Ž separado do espa•o da rua apenas por uma parede de vidro transparente. Sua
idŽia Ž especular a rela•‹o entre o espa•o interno e o externo. E assim provocar o espectador a
apreciar as cenas da cidade a partir do interior da sala, enquanto ÒesperaÓ. Ou, quando o
pedestre encontra-se do lado de fora, apreciar os reflexos da cidade nos vidros da fachada
frontal.

166
conversa com Ricardo Resende, junho de 2005.
167
Krauss, Rosalind E. La originalidad de la Vanguardia y otros mitos modernos. Tradu•‹o: Adolfo G—mez
Cedillo. Madrid: Alianza Editorial, 1996. La escultura en el campo expandido. p.289-304.
168
AUGƒ, Marc. N‹o-Lugares: introdu•‹o a uma antropologia da supermodernidade.
91

Ana Maria Tavares - Visiones Sedantes. Havana, 2000. (vis›es externas)

O observador sempre tem ˆ sua frente, na passagem entre os dois espa•os,


a inscri•‹o VISIONES SEDANTES repetidas vezes no sentido linear sobre a divis—ria frontal de
vidro. Se o observador, no interior da sala, direcionar seu olhar para fora, o primeiro plano Ž a
transpar•ncia do vidro com a inscri•‹o VISIONES SEDANTES ao revŽs. Se o observador
encontrar-se no espa•o externo ˆ sala, e olhar para a fachada frontal da referida sala, ver‡ a
inscri•‹o imediatamente leg’vel. O espectador, quando se encontra no interior do lugar proposto
pela artista, tem a possibilidade de ver tambŽm o que se passa do lado de fora, o espa•o
pœblico. Mas quando est‡ no lado externo apenas v• o reflexo do fluxo da rua junto ˆ inscri•‹o
VISIONES SEDANTES. Ao espectador localizado externamente lhe Ž negada a visibilidade do
que se passa dentro, caso contr‡rio acontece para quem est‡ no interior da sala. Para este lhe
Ž permitido ver o movimento incessante da cidade, aderido ˆ inscri•‹o VISIONES SEDANTES.
Os reflexos da cidade s‹o absorvidos pela obra da artista. O espelhamento colabora para que a
obra engula a imagem da cidade para si mesma. Ali‡s, o pedestre, no espa•o pœblico, tambŽm
est‡ inclu’do nos reflexos. A mesma situa•‹o se passa na arquitetura do Museu de Arte de S‹o
Paulo.

Visiones Sedantes. Havana, 2000. (vis‹o interna)


92

Na verdade, o espectador interno e o externo ˆ obra percebem a mesma


imagem Ð o fluxo constante da cidade, porŽm em posi•›es e dimens›es opostas. O observador
do lado de fora percebe a imagem refletida no vidro, na superf’cie bidimensional, ou seja, no
plano da ilus‹o. J‡ o espectador no interior arquitet™nico atinge a dimens‹o real. Enquanto
permanece nesse ambiente, encontra-se numa vitrine arquitet™nica em exibi•‹o ao pœblico.
Assim como a massa urbana encontra-se em plena exibi•‹o ao espectador no interior da sala
de espera.

A express‹o VISIONES SEDANTES posiciona-se praticamente na altura do


olhar do espectador quando sentado. Est‡ ali para ser vista, lida com o corpo em posi•‹o de
descanso, ou melhor, de espera. A inscri•‹o, na superf’cie de vidro, encontra-se na fronteira.
VISIONES SEDANTES seda o observador como tambŽm perturba a sala de espera. Na medida
em que o fluxo de entrada e sa’da Ž completamente controlado pelos espelhos convexos,
utilizados como sinais de tr‰nsito, tanto no espa•o externo ˆ sala de espera quanto no interno.

Em VISIONES SEDANTES II, essas quest›es mudam um pouco, pois uma


das paredes da sala foi revestida inteiramente com espelhos, a qual fica exatamente cara a cara
com a parede frontal transparente, cuja vidra•a pega toda a extens‹o da sala de frente para a
rua. Os espelhos recorrem ao espa•o externo e o trazem para dentro, acontece repentinamente
um entrecruzamento de espa•os.169 O espa•o da urbe vem para o interior, insere-se na obra
feito imagem. O ambiente tambŽm Ž outro, a cidade de S‹o Paulo. O espectador, no interior
planejado pela artista, aprecia, se Ž que podemos utilizar esse termo, o movimento incessante
dos carros e das pessoas na Avenida Paulista. Mas tambŽm v• semelhante agita•‹o numa
dimens‹o ilus—ria na profundidade dos espelhos. Ali‡s, a imagem do observador mistura-se ˆ
inscri•‹o nos vidros, reflete-se nos espelhos, repete-se constantemente. Enquanto o visitante
espera, olha-se nos pr—prios reflexos, percebe a cidade, v• o outro. Um lugar de espera, um
lugar que permanece entre o pœblico e o privado Ð local de passagem. Ana Maria contextualiza
o indiv’duo urbano numa experi•ncia na arquitetura contempor‰nea.

A parede de espelhos reverte a inscri•‹o tornando-a automaticamente leg’vel.


Situa•‹o an‡loga acontece quando o sol atravessa a vidra•a frontal e a sombra das palavras
refletem-se no ch‹o. O texto age como um obst‡culo, cuja sombra levada ao solo permite, ou
seja, oferece a leitura ao espectador. Na verdade, VISIONES SEDANTES cruza-se mutuamente
ˆ arquitetura, nos vidros, nos espelhos, no ch‹o, e por vezes tais inscri•›es s‹o levadas a
flutuar no espa•o. Mesmo a transpar•ncia da vidra•a frontal joga a inscri•‹o, nela aderida, junto
ao movimento da esfera urbana. A luminosidade interfere nos acontecimentos da obra. Ë noite o
interior da sala iluminado se mostra ao pedestre noturno.

169
BENJAMIN. Op. cit., 2005. p.551.
93

Ana Maria Tavares. VISIONES SEDANTES II. S‹o Paulo, 2002. (vis‹o interna)

VISIONES SEDANTES II. S‹o Paulo, 2002. (vis‹o interna, com a parede de espelhos ao fundo)

A presen•a de um piano na sala de espera e um magn’fico arranjo de flores


brancas causa um certo estranhamento, assim como os espelhos convexos, verdadeiros
controladores do fluxo de pessoas. Um olhar que domina o observador inserido ˆ obra. Os
espelhos convexos fazem parte do mobili‡rio urbano, ou melhor, da sinaliza•‹o da urbe, servem
de apoio visual no tr‰nsito, funcionam como sistema de controle em entradas e sa’das de
autom—veis ou pessoas. Mas em VISIONES SEDANTES II os espelhos convexos est‹o apenas
no interior da sala. Enquanto outros objetos aproximam-se mais do cotidiano de uma resid•ncia,
ou do cen‡rio de um teatro. Existe na constru•‹o desse ambiente um ar de tranqŸilidade, mas
ao mesmo instante confunde-se com uma sensa•‹o inquietante de vazio. Um vazio, um n‹o-
94

lugar em meio ˆ imensid‹o urbana da grande S‹o Paulo. A fria espera, o piano fechado, os
espelhos, esse cen‡rio aparentemente desconexo encontra-se entre duas regi›es
imageticamente semelhantes, porŽm de dimens›es distantes, a realidade da rua e a
perspectiva enganosa do espelho. A artista se apropria da pr—pria cidade para finalizar sua
obra.
95

Cap’tulo III

A trama entre objeto e imagem

Nos h‹o retumbado desde o sŽculo XIX, com a morte de Deus, do homem, da arte (...)
N‹o se tratava mais que da progressiva decomposi•‹o de uma fŽ perceptiva fundada
desde a Idade MŽdia e a partir do animismo, na unicidade da cria•‹o divina, a
absoluta intimidade do universo e do homem-Deus do cristianismo agostiniano, esse
mundo de matŽria que se amava e se contemplava em seu Deus œnico.
No Ocidente, a morte de Deus e a morte da arte s‹o indissoci‡veis e o grau zero da
representa•‹o n‹o faz mais que levar a cabo a profecia enunciada mil anos antes por
NicŽforo, patriarca de Constantinopla, durante a querela iconoclasta: ÒSe suprime-se a
imagem, n‹o s— desaparece Cristo, sen‹o o universo inteiroÓ.

Paul Vir’lio170

Neste cap’tulo, analisaremos trabalhos associados ˆs estratŽgias


museol—gicas de apresenta•‹o do objeto. Particularmente a maneira de explorar os
dispositivos de exibi•‹o de obras de arte relacionados diretamente ao espa•o da vitrine.
Partindo do princ’pio de que o pr—prio museu desloca um objeto do mundo real e o leva para
sua cole•‹o, consideraremos assim obras de alguns artistas que de alguma forma mant•m
uma conex‹o com o deslocamento do objeto cotidiano levando-o para a esfera art’stica.
Analisando assim, no decorrer de tais constru•›es, a possibilidade de transforma•‹o do objeto
propriamente dito em imagem. Avaliaremos tambŽm a proximidade de tais propostas ao
processo de trabalho de Marcel Duchamp. No œltimo ponto deste cap’tulo, trataremos da
rela•‹o entre a mercadoria exposta na vitrine comercial e as estratŽgias de apresenta•‹o do
objeto no mundo da arte.

A vitrine exerce diversas fun•›es nas instala•›es de um museu ou de uma


galeria de arte e tambŽm Ž explorada por alguns artistas como parte integrante ou apenas
necess‡ria ˆs suas obras. O espa•o caracter’stico da vitrine Ž um local de exposi•‹o isolado
por vidros em toda sua volta ou apenas numa das partes. O objeto deslocado para o interior do
dispositivo da vitrine torna-se visualmente valioso, situa•‹o provocada principalmente devido
ao seu isolamento. Mesmo um objeto prec‡rio, enclausurado num espa•o transparente,
converte-se em uma preciosidade. O museu, quando decide mostrar parte de sua cole•‹o
dentro de vitrines, est‡ valorizando seus objetos, pois os isola e assim n‹o deixa que o
observador em hip—tese alguma entre em contato f’sico com ele. Esse distanciamento do
objeto instiga um desejo no observador que Ž explorado tanto pelo museu, quanto pelo

170
VIRêLIO. Op. cit., p.29.
96

comŽrcio, e como tambŽm nas experi•ncias desenvolvidas por artistas relacionadas com tal
dispositivo. A natureza de uma obra de arte n‹o Ž a mesma, ela transforma-se quando
apresentada dentro de uma vitrine.

Veja-se o exemplo das performances de Beuys quando reœne os objetos de


suas a•›es em vitrines. Ou seja, ap—s suas a•›es conserva seus vest’gios. As vitrines
funcionam como suporte aos objetos, conserva assim parte da rela•‹o entre os elementos de
cada performance. Um novo entorno no qual habitam. Protegem, mas ao mesmo tempo
negam, n‹o deixam o objeto fazer parte do cotidiano, do campo real. O objeto a’ inserido
definitivamente toma parte do mundo ilus—rio da arte. Beuys conserva assim parte de suas
a•›es, imortaliza-as quando as isola num campo distanciado do campo da realidade. Delimita,
deixa claro qual Ž o espa•o de representa•‹o. N‹o existe ironia no processo de Beuys ao levar
os vest’gios de suas performances para o interior da vitrine, pois n‹o conserva a a•‹o nos
limites da vitrine, isso seria imposs’vel pois seu pr—prio personagem Ž insepar‡vel de sua obra,
ali‡s, com a qual mantŽm uma rela•‹o filos—fica e autobiogr‡fica complexa. Seu trabalho
desenvolve-se num processo intrincado, enredado no qual sua figura, sua produ•‹o verbal,
material e espiritual fazem parte de um conjunto, uma depende da outra, s‹o, na verdade,
insepar‡veis.

3.1 Ð Colecionar / Apropriar-se

O colecionista chega a ser o verdadeiro ocupante do interior. Converte em coisa sua a


idealiza•‹o dos objetos. Sobre ele recai esta tarefa de S’sifo de possuir as coisas para
tirar-lhes seu car‡ter de mercadoria.

Walter Benjamin171

O artista, quando trabalha a partir de uma das pr‡ticas do museu, como a


atitude de colecionar, tambŽm procede na descontextualiza•‹o do objeto. Desencadeia uma
totalidade, quando retira algo de seu contexto natural, segue portanto um processo de busca
museol—gica. Desse modo mata a antiga posi•‹o do objeto perante o entorno do qual fazia
parte. Numa pr‡tica contempor‰nea, confunde sua interven•‹o com o processo institucional,
enquanto o ato museol—gico transforma-se numa inteligente estratŽgia art’stica de
apresenta•‹o. Para entender tal processo explorado pelo do artista, veremos alguns exemplos
a partir da utiliza•‹o da vitrine, um velho e conhecido dispositivo de apresenta•‹o
museogr‡fica.

171
BENJAMIN. Op. cit., 2005. p.55.
97

Do ponto de vista hist—rico, a vitrine como espa•o expositivo tem servido a


prop—sitos diversos. Se tomarmos o caso das vitrines de museus, podemos recuar ao sŽculo
XV. Era na C‰mara dos Objetos Art’sticos e Prodigiosos - tambŽm chamados Gabinetes de
Curiosidades - que os pr’ncipes, eclesi‡sticos ou representantes da burguesia Ð como mŽdicos
e farmac•uticos Ð guardavam objetos colecionados que poderiam contribuir para tornar
compreens’vel a diversidade do mundo. Nessas cole•›es encontrava-se todo tipo de objetos,
como pe•as raras da natureza, conchas, cristais, minerais, animais dissecados. TambŽm havia
um grande interesse em documentar o conhecimento humano e, por isso, eram colecionados
objetos artesanais, aparatos tŽcnicos, moedas e reprodu•›es de obras de arte. Para
armazenar todas essas pe•as, eram utilizados arm‡rios e estantes, locais que poder’amos
considerar como precursores dos arm‡rios-vitrine, das estantes envidra•adas e das vitrines de
museu. Mais tarde, a vitrine que, como corpo material, j‡ se constitu’a em suporte das
primeiras cole•›es privadas, passa a ser explorada como mobili‡rio das exposi•›es pœblicas
por museus e galerias.

Herbert Distel. Museum of Drawers, 1970-77. 183x42x42cm. Kunsthaus Zu"rich

O trabalho do artista su’•o, Herbert Distel, Museum of Drawers, explora


rela•›es com as cole•›es e os desenhos dos Gabinetes de Curiosidades - m—vel repleto de
gavetas, prateleiras, nichos e portas, constru’do com pŽs para facilitar deslocamentos enquanto
sua altura favorece o olhar. Durante o processo do trabalho, convida 500 artistas para cada um
realizar uma obra para as minœsculas salas, ou seja, para os pequenos compartimentos de um
museu fict’cio. Na verdade, um gabinete, onde a parte frontal de cada gaveta Ž toda de vidro. A
98

cole•‹o Ž composta basicamente de obras das dŽcadas de 60 e 70 do sŽculo XX, oferecendo


uma vis‹o geral desse per’odo. Aqui o artista colecionador parte na produ•‹o de seu trabalho
de um princ’pio museol—gico e constr—i um museu pessoal similar ˆs antigas cole•›es dos
gabinetes. Acontece apenas uma montagem de um local projetado pelo artista, a fim de reunir
uma colet‰nea de obras de outros artistas. Mais do que um mŽtodo de colecionar, Ž um
processo de curadoria que se utiliza, como espa•o de exposi•‹o, de pequenas e numerosas
vitrines. Tal processo se confunde propositalmente com a atua•‹o art’stica.

Ainda nas rela•›es com os gabinetes e suas respectivas cole•›es, muitas


vezes os artistas organizam coisas e objetos apenas em prateleiras completamente abertas.
PorŽm com uma rela•‹o direta ˆ problem‡tica da vitrine. Nelson Leirner trabalha muito pr—ximo
ˆ idŽia dos gabinetes de curiosidades. Coleta objetos de tamanha diversidade, uma infinidade
de ready-mades, mas n‹o s‹o aqueles objetos colecionados antigamente pelos pr’ncipes ou
eclesi‡sticos, os quais despertavam curiosidade justamente por sua raridade. Nelson coleta
justamente o que n‹o Ž raro, s‹o elementos absolutamente por n—s conhecidos.

Nelson Leirner. Era uma vez..., 2004

O desafio proposto por Leirner causa impacto ao primeiro olhar quando nos
deparamos, no espa•o central da galeria, com uma enorme prateleira branca, absolutamente
repleta de pequenos objetos, alguns livros e sŽries de cat‡logos que se repetem
indefinidamente. A prateleira pertence ao cotidiano de sua casa, onde reœne as pe•as numa
ordem nada aleat—ria. Esses artefatos, muitas vezes os vemos durante um simples percurso
pelas ruas do centro da cidade. Por meio dessa montagem, Nelson nos descreve hist—rias
99

agrad‡veis e divertidas, porŽm repletas de ironia. Numa prateleira agrupa v‡rios macaquinhos,
onde dois deles se abra•am carinhosamente. J‡, em outra, disp›e tr•s gorilas em cores fortes
e artificiais, de fronte a uma sŽrie de cat‡logos da Sothebys (casa de leil›es londrina), met‡fora
sarc‡stica. Em seguida, dispostos lado a lado, v‡rios santos em frente a um alinhamento
tambŽm de cat‡logos da Sothebys, sobre os quais ele depositou uma sŽrie de mini-bicicletas
em verde e amarelo, tr•s das quais sustentam uma pequena bandeira brasileira. ƒ o deslizar
de uma bicicleta que nos vai levando conforme o santo ajuda. Numa organiza•‹o nada casual,
ali‡s, numa extrema ordem, ele ironiza a quest‹o do mercado da arte. Se nos atemos ˆs
diferentes situa•›es a’ propostas nos deparamos com contos hil‡rios, por vezes dram‡ticos de
Era uma vez...

Com tal experi•ncia, a pergunta vem ao espectador em seguida: Uma


colet‰nea de artefatos industriais, artesanais, suvenir de viagem, simplesmente justapostos,
isso Ž arte? Em seu processo de trabalho poder’amos incluir uma sŽrie de estratŽgias: a
apropria•‹o de objetos realizados e idealizados por terceiros; a cole•‹o e reuni‹o de todos
esses elementos num mesmo local; o deslocamento desses objetos, uma vez que n‹o servem
mais para as situa•›es para as quais foram criados; e a simples justaposi•‹o172, o que
intensifica o grande estranhamento por parte do pœblico. A pr—pria proposta de Leirner carrega
consigo a possibilidade de que qualquer um poderia produzi-la. PorŽm, o grau de artisticidade
encontra-se precisamente na suspens‹o de sentidos provocada pela transfer•ncia f’sica dos
objetos.173 Um gesto m’nimo, porŽm absolutamente perverso.

Podemos acrescentar aqui tambŽm a escolha, a atitude de garimpar


objetos , afinal de contas n‹o Ž uma coleta aleat—ria, existe um pensamento anterior sucedido
174

de uma elei•‹o. Tais estratŽgias n‹o s‹o imediatamente aparentes, pois uma prateleira repleta
de objetos Ž comum em muitas casas, ou qualquer outro local, como uma loja comercial, ou
uma livraria. ƒ o excesso da trivialidade, a abund‰ncia do ready-made. A neutralidade do objeto
levada a um extremo.

Obra ir™nica, inteligente, apesar de propositalmente Nelson Leirner utilizar um


humor por vezes pesado, n‹o Ž carrancuda. O espectador diverte-se com suas montagens.
Mas devemos estar atentos a um detalhe relevante, sua prateleira est‡ aberta, n‹o existe como
fech‡-la. Apesar de a perfeita ordena•‹o dos objetos inibir quase por completo a rela•‹o t‡til,
como se fosse uma verdadeira vitrine, a possibilidade do contato est‡ presente. Os objetos
est‹o todos ali, oferecendo-se tentadoramente ao toque das m‹os, momento em que toda essa
justaposi•‹o poderia tornar-se ef•mera, transit—ria, fugaz. Quando a cole•‹o est‡ no interior de

172
CHIARELLI, Tadeu. Apropria•›es/Cole•›es. Porto Alegre, Santander Cultural, 2002. p.25.
173
Idem, ibidem.
174
Termo utilizado por Agnaldo Farias. N.Leirner 1994+10. Do Desenho ˆ Instala•‹o. Instituto Tomie Ohtake,
2004.
100

vitrines, o espectador fica do lado de fora, externo ao espa•o da obra. PorŽm, assim que o
espectador entra no espa•o de uma cole•‹o, ele encontra-se entre, em meio aos objetos.
Situa•‹o contr‡ria Ž trabalhada na obra Monalisas, 2003.

Nelson Leirner. Monalisas, 1998/1999. Gesso, pl‡stico, metal e madeira. Dimens›es vari‡veis, 30
pe•as.

Em Monalisas, Nelson Leirner supervaloriza o suvenir, entre outras


apropria•›es. Com a t‡tica da justaposi•‹o, ordena astutamente o interior de pequenas vitrines
numa opera•‹o originalmente museogr‡fica. Organiza uma seqŸ•ncia de bibel™s, pratos
pequenos e grandes, bot›es, cinzeiros, ’m‹s de geladeira, todos com a imagem da Gioconda.
Provavelmente adquire toda a se•‹o na pr—pria loja do Louvre, cuja institui•‹o abriga a
respectiva pintura de Da Vinci. Disp›e sua cole•‹o em pequenas vitrines, ou melhor, em caixas
pequenas de madeira, com a parte frontal de vidro, para as quais elege um revestimento
interior de veludo negro ou bord™, conseguindo uma fabrica•‹o admir‡vel na perfei•‹o de seu
design. Ele as exp›e de forma similar ao processo tradicional de exposi•‹o utilizado pelos
museus nos gabinetes de estampas. Coloca-as sobre uma mesa, cuja altura faz o observador
declinar-se. Na verdade, exige do observador uma certa Òrever•nciaÓ, na medida em que
proporciona a este uma visibilidade diferenciada, a partir da leve inclina•‹o das caixas. Visa,
com esse processo de exposi•‹o, alcan•ar uma maior potencialidade dos objetos, ou seja, do
suvenir de Monalisa Ð antes, simples e popular lembran•a de viagem, mera mercadoria. A qual
muitas vezes presta-se a colaborar nas express›es Òestive aquiÓ, Òvi a GiocondaÓ. Prop›e uma
ÒcuradoriaÓ de bibel™s, visualmente perfeita em seu processo de montagem. Dessa forma a
ÒpinturaÓ da Monalisa volta estrategicamente a ser valorizada, entretanto n‹o como pintura
œnica e valiosa e sim como imagem na sua mais cabal reprodutibilidade.
101

AtravŽs da estratŽgia da vitrine, Nelson Leirner supervaloriza a banalidade, a


neutralidade para a qual est‡ constantemente sendo levada uma obra de arte. Releva uma
par—dia, enquanto a pintura da Gioconda Ž transformada em suvenir de viagem. O personagem
de Da Vinci representa, no campo da hist—ria da arte, a valoriza•‹o da idŽia, quando o artista
torna-se um portador de idŽias, n‹o mais apenas um mero artes‹o. Sem a caixa em forma de
uma pequena vitrine, as Monalisas n‹o causariam o mesmo efeito. O ato de encerrar o objeto
em um suporte transparente proporciona, instiga a sensa•‹o de desejo. Deixa ver e impede o
tocar, nega o possuir. Um paradoxo, pois esse objeto Ž poss’vel de ser comprado numa
simples lojinha. Dessa maneira o artista transforma em arte simples mercadorias (do desejo).
Como levar para casa um ÒpedacinhoÓ do museu?

3.2 Ð O objeto transformado em imagem

Jamais teria obtido esse tipo de complexidade com objetos tecnol—gicos cuja
simplicidade condena a mente ˆ monomania: a arte minimalista, o rob™, o computador.

Marcel Broodthaers175

Seguindo o processo de colecionismo, Boltanski desloca para o interior da


vitrine objetos autobiogr‡ficos. Pertences de sua hist—ria pessoal, fotos suas, de fam’lia, e
literalmente as intitula ÒVitrine de refŽrŽnceÓ (Vitrine de refer•ncia). Aproxima-se assim de
estratŽgias museogr‡ficas. Ou seja, coleta, guarda e preserva, com a finalidade de tornar o
objeto intoc‡vel. Barra a tatilidade do objeto, enquanto sua condi•‹o espacial Ž transformada.
Devido a esse fato faz o observador, a partir de agora, se relacionar n‹o mais com as coisas,
mas sim com a imagem delas. Ou seja, nesse processo, o que est‡ dentro da vitrine n‹o Ž
mais objeto, transforma-se, na verdade, em imagem. N‹o Ž mais objeto de uso, tem apenas
valor de exibi•‹o. O pr—prio Boltanski afirma: ÒN—s podemos preservar as coisas somente
interrompendo o curso normal da vida. Se eu coloco meus —culos numa vitrine, eles jamais
quebrar‹o, mas ainda ser‹o considerados —culos? A partir do momento que os —culos fazem
parte da cole•‹o de um museu, eles perdem sua fun•‹o, eles s‹o apenas uma imagem de
—culos.Ó176 ConseqŸentemente, com a perda de toda uma rela•‹o de uso, mem—ria, e a hist—ria
de Boltanski com seu —culos, esse objeto perder‡ tambŽm sua identidade, coisa que o museu

175
BROODTHAERS, Marcel. Ten Thousand Francs Reward. In CRIMP, Douglas. Sobre as ru’nas do museu.
Tradu•‹o: Fernando Santos. S‹o Paulo: Martins Fontes, 2005. p.192/nota de rodapŽ 40.
176
McSHINE, Kynaston. The Museum as Muse: Artists Reflect. New York: The Museum of Modern Art, 1999.
p.91. Christian Boltanski.
102

n‹o pode transmitir.177 A nossa conex‹o com esses —culos tambŽm Ž outra, o enlace proposto
ao espectador est‡ intermediado pela vitrine. Gra•as a isso nos prop›e um certo
distanciamento dos objetos. A rela•‹o torna-se ent‹o uma rela•‹o de an‡lise, n‹o de uso, ao
ver os objetos expostos lado a lado, com etiquetas qualificando cada foto, cada objeto, numa
disposi•‹o sem dœvida alguma museol—gica. O artista eterniza sua biografia atravŽs de um
dispositivo de exposi•‹o, muito pr—ximo ˆs vitrines dos museus de hist—ria natural.

Christian Boltanski. Vitrine de refŽrŽnce (II), 1970.


Vitrine de madeira contendo v‡rios objetos. 70.4x120.6x12.7cm.

Semelhante ˆ pr‡tica de coletar do museu, Rosangela Renn— constr—i uma


correspond•ncia singular na obra Bibliotheca, de 2002. Nessa instala•‹o, a artista mostra 37
vitrines contendo cem ‡lbuns de fam’lia, de viagens e caixas de cole•›es de slides. Pe•as
colecionadas por ela mesma num per’odo de dez anos. Todas elas no interior das vitrines
encontram-se dispostas numa ordem taticamente museol—gica. Idealiza um mecanismo muito
particular em tais vitrines, basicamente com formato de mesa. Na parte superior encontra-se
uma fotografia exatamente do mesmo tamanho da mesa-vitrine. Assim, estrategicamente, a
artista somente possibilita a visibilidade parcial das pe•as em seu interior atravŽs das laterais.
Prop›e ao observador, primeiramente, um direcionamento do olhar ˆ altura das mesas.
Solicita, tambŽm, o movimento corporal do espectador. Imp›e dessa forma ao observador
agachar-se e tentar espiar. Mas, ainda assim, segue impedindo a vis‹o completa dos
dispositivos para armazenar imagens fotogr‡ficas.

A imagem fotogr‡fica na superf’cie superior de cada mesa-vitrine Ž a


reprodu•‹o tal e qual da disposi•‹o das pe•as em seu interior. A fotografia toma por completo

177
Idem, ibidem.
103

essa superf’cie e n‹o deixa ver absolutamente nada da parte inferior da mesa-vitrine. Aqui n‹o
h‡ sequer um pequeno espa•o que deixe a vis‹o ultrapassar o vidro. Pois, a foto na superf’cie
reproduz tambŽm o fundo, suporte e unificador do espa•o para tais dispositivos, o qual Ž
geralmente de cores fortes e presentes, azul, vermelho, laranja. ÒA artista criou um c—digo de
cores para o fundo e a estrutura das mesas, em fun•‹o da origem das imagens e do lugar de
aquisi•‹o do objeto. (...) vermelho para a Europa, verde para a Oceania, marrom para a çsia,
laranja para a çfrica, azul-escuro para a AmŽrica do Norte e Central e azul-claro para a
AmŽrica do Sul.178 Ou seja, a cor da estrutura da vitrine indica o lugar da compra dos ‡lbuns. E
a cor do fundo, onde repousam os ‡lbuns, aponta o continente no qual as fotos foram
realizadas.

Rosangela Renn—. Bibliotheca 2002. Detalhe. Trinta e sete vitrines contendo ‡lbuns de fotografia,
cole•›es de slides e negativos e fotografia digital, laminada sob acr’lico, mapa e arquivo de a•o;
dimens›es vari‡veis.

As mesas-vitrine apresentam rela•›es diretas com a imagem fotogr‡fica, ou


seja, com a imagem tŽcnica. No projeto Bibliotheca, Renn— utiliza o processo tŽcnico para
negar literalmente a presen•a das pe•as deposit‡rias de imagens de mem—ria (ali‡s tambŽm
imagens tŽcnicas), pois o mecanismo constru’do pela artista impede quase totalmente a
visibilidade dos ‡lbuns e caixas de slides. Aqui os ‡lbuns realmente tornam-se inacess’veis.
Eles est‹o todos presentes no interior da vitrine, mas o que se v• na parte superior da mesa-
vitrine Ž apenas a foto de seu aspecto exterior. A artista permite essa vis‹o a partir da

178
Para uma leitura detalhada sobre a montagem da instala•‹o: RENNî, Rosangela. [O arquivo universal e outros
arquivos]. S‹o Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 23-35. Maria AngŽlica Melendi.
104

reprodu•‹o mec‰nica da imagem de cada ‡lbum, caixas ou grupos de fotos. A n—s


observadores permite simplesmente ver a imagem exterior, apenas um sinal de que no interior
de cada ‡lbum existe uma hist—ria. Simultaneamente nos d‡ pistas de uma presen•a, de uma
mem—ria, nos prop›e nesse mesmo ato tambŽm uma aus•ncia, no sentido de sua fun•‹o, o
dispositivo de apresenta•‹o de lembran•as tornou-se intoc‡vel.

Como vimos, a artista desloca da realidade dispositivos para armazenar


imagens fotogr‡ficas, retira-os do mundo cotidiano e encerra-os no interior de vitrines enquanto
perdem sua fun•‹o ligada ˆs quest›es de mem—ria. Mas, nos d‡ a ver, na superf’cie superior
da vitrine, apenas a imagem fotogr‡fica dos dispositivos para armazenar as fotografias. No
interior, permanecem os ‡lbuns com fotografias, pilhas de fotos e caixas com slides. Cada um
recebeu anteriormente um recept‡culo, uma organiza•‹o particular, uma singularidade
organizada por parte de seu ex-propriet‡rio. Renn— os enclausura numa atitude de fazer com
que essas pe•as ligadas ˆ mem—ria permane•am intoc‡veis. Na medida em que deixa uma
documenta•‹o em forma textual, relatando cada ‡lbum, depositada num pequeno arquivo de
a•o. Utiliza para tanto a linguagem fria da cataloga•‹o, o que retira toda a identidade do objeto.
A artista neutraliza esses dispositivos de armazenar mem—ria por meio da reprodu•‹o
fotogr‡fica de seu exterior. Ademais somente repete o aspecto exterior, a apar•ncia dos
‡lbuns. Na verdade, ela s— mostra os dispositivos de apresenta•‹o. Dessa forma, o ‡lbum de
fotografias no interior da mesa-vitrine n‹o Ž mais do que um dispositivo dentro de outro
dispositivo de apresenta•‹o.

A Bibliotheca foi constru’da com fotos descartadas, os ‡lbuns foram


colocados ˆ disposi•‹o por raz›es desconhecidas, ligadas, portanto, ao processo de
esquecimento, ou ˆ recusa de lembran•as contidas nesses pequenos dep—sitos de
recorda•›es. Mem—rias perdidas, descartadas, negadas. Enlaces de afeto distanciados,
tornam-se mera mercadoria de venda. Anteriormente esses ‡lbuns de fotos, por sua pr—pria
natureza, possibilitavam o manusear, tinham uma rela•‹o n‹o s— com o olhar, mas tambŽm
com as m‹os. Agora, encerrados no interior das vitrines e, por conseguinte, deslocados de
seus locais originais, s‹o descontextualizados, est‹o sem seu valor de uso original. Existe a
princ’pio dois impedimentos, ou seja, a artista prop›e duas impossibilidades, tanto o contato
direto com os deposit‡rios de imagens fotogr‡ficas, como o conhecimento visual e detalhado
de seu conteœdo. Com a estratŽgia da clausura, passam a manter uma dist‰ncia do
observador. PorŽm, ainda permanece uma pequena possibilidade, a vis‹o apenas da imagem
exterior de tais dispositivos, contudo encerrados. O deslocamento de um ‡lbum de fotografias
Ž total, ele Ž afastado por completo de sua fun•‹o, ou seja, das lembran•as, as quais as
fotografias levariam a quem antes as possu’a. ƒ uma atitude de desarticular toda uma rela•‹o
de afeto. Rela•‹o j‡ recusada anteriormente pelo antigo propriet‡rio.
105

A instala•‹o Bibliotheca aproxima-se das quest›es propostas por Walter


Benjamin referente ao valor de culto e ao valor de exibi•‹o das imagens.179 Benjamin salienta o
in’cio da produ•‹o art’stica (per’odo prŽ-hist—rico) com as imagens a servi•o da magia, quando
a import‰ncia reca’a na exist•ncia da imagem e n‹o em sua exibi•‹o. Naquela Žpoca ela tinha
utilidade pr‡tica, ritual. No per’odo tecnol—gico, o peso recai sobre o valor de exibi•‹o, ou seja,
a imagem Ž feita para ser exibida, e ademais Ž um per’odo de grande abund‰ncia, de um
excesso delas.

No procedimento de Renn— de praticamente ocultar os ‡lbuns de fotografia,


notamos um forte interesse no valor m‡gico do ritual. Justamente quando a tecnologia com os
diversos mŽtodos de reprodu•‹o tŽcnica favorece a exibi•‹o cada vez maior de imagens, a
artista, atravŽs da t‡tica da vitrine, as oculta. Paradoxalmente, Ž nesse ocultar que se encontra
a verdadeira estratŽgia art’stica. Ali‡s, depara-se com o desejo de seus antigos possuidores,
n‹o a destrui•‹o, mas o dep—sito das imagens no completo esquecimento, num arquivo
intoc‡vel, eterno.

Na verdade, Renn— apenas reproduz a imagem dos contenedores dessas


fotografias, repletas de mem—rias, de momentos a serem relembrados, estimados. Poder’amos
associar tambŽm todo esse mecanismo com a tumba, tanto na rela•‹o quanto ˆ forma assim
como relativo ˆs quest›es de mem—ria. Na parte interior, nesse caso, na parte de baixo, ficam
os corpos, ou seja, os objetos reais, lugar de passagem, de espera, o transit—rio, ‡rea onde se
esconde o que n‹o se deve ver.180 Na parte de cima a reprodu•‹o em imagem Ð imagem
mec‰nica, limpa. De fato, constr—i um jogo entre aus•ncia e presen•a dos objetos. Para Walter
Benjamin, o œltimo refœgio do valor de culto da imagem Ž encontrado nas recorda•›es dos
seres queridos distantes ou j‡ falecidos: ÒCom a fotografia, o valor de exibi•‹o come•a a
vencer em toda linha ao valor ritualÓ181. No entanto, Rosangela Renn— taticamente n‹o permite
a visibilidade das imagens que ainda poderiam conter um certo valor de culto. Ao observador Ž
dado o direito apenas de ver plenamente a imagem dos objetos que guardam as imagens
fotogr‡ficas, e n‹o a fotografia em si. Sendo essa imagem tecnicamente perfeita, intensamente
definida, Ž mais f‡cil de ser captada pelo observador, porque mais limpa. Do mesmo modo a
c‰mera, nesse caso, colabora enquanto aproxima o objeto. Isola um elemento enquanto o
descontextualiza.

Renn— utiliza a reprodu•‹o fotogr‡fica dos ‡lbuns, das caixas de slides ou


pilhas de fotos, expostos na vitrine para depois encerr‡-los n‹o s— com o vidro, mas tambŽm
com a respectiva imagem do conjunto das pe•as em cada mesa-vitrine. Enquanto oculta o

179
BENJAMIN. Op. cit., 2003. p.52-57.
180
ARNAIZ. Op. cit., p.104-105.
181
BENJAMIN. Op. cit., 2003. p.58.
106

grupo dos elementos reais, mostra sua imagem Ð processo paradoxal. Ela realmente trabalha
uma trama entre a imagem do conjunto de dispositivos de armazenagem e os pr—prios
dispositivos reais. Ali‡s, acontece uma rela•‹o muito pr—xima dessas vitrines com o dispositivo
fotogr‡fico. No abrir e fechar da lente, o objeto ÒentraÓ na c‰mera como imagem.

3.3 Ð Acumular Ð colecionar Ð arquivar Ð apropriar-se Ð citar - colar

Colocar, dispor, jogar objetos no interior de uma vitrine, for•osamente nos


leva a uma rela•‹o de an‡lise, de estudo comparativo entre os componentes reunidos. Que
melhor maneira de analisar se n‹o a reuni‹o num mesmo local transparente? Enquanto os
objetos ali permanecem, o olhar examina minuciosamente, inspeciona com vagar. O tempo
paralisado nesse espa•o oferece uma investiga•‹o cuidadosa, comparada. Esse outro
espa•o/tempo, distanciado do real, proporciona, nos d‡ uma oportunidade de observa•‹o parte
a parte. No entanto podemos ou n‹o questionar o processo de classifica•‹o, de cataloga•‹o
utilizado.

Na poŽtica de Arman, existem, na verdade, duas situa•›es particulares, na


medida em que cataloga nossos detritos. Primeiro uma acumula•‹o de restos, lixo mesmo,
jogados em caixas de acr’lico. E depois a acumula•‹o em grande quantidade de objetos iguais,
desprezados pela sociedade, coletados e organizados num mesmo recipiente. Coleciona,
reœne, cataloga os objetos cotidianos j‡ recusados pela sociedade. Faz uma cr’tica burlesca,
interroga sobre o desprop—sito de lixo aglomerado progressivamente pela comunidade. Desse
modo trabalha a estŽtica do detrito e prop›e assim uma sensa•‹o ao observador de
estranhamento. Instaura um di‡logo ir™nico e sarc‡stico com a sociedade de consumo.

Ao primeiro olhar parece um desprop—sito, o observador permanece perplexo


com esse descomunal amontoado de detritos. Sob o olhar de Umberto Eco, acontece uma
cataloga•‹o na atua•‹o de Arman. Catalogar? Soa sistem‡tico, entretanto existe uma l—gica
nessa suposta falta de ordem. Diante disso, Arman abala a coer•ncia de uma teoria do
cat‡logo.182 Ele viola essa regra, mas a est‡ reafirmando quando reœne v‡rios objetos
aparentemente iguais. Nesse jogo acumulativo, cada objeto, em fun•‹o de uma inclina•‹o, um
desequil’brio, uma ’nfima rota•‹o, diferencia-se de seus similares. Ës vezes, para acentuar
uma individualidade, faz um corte no objeto. Mostra claramente em sua poŽtica a possibilidade
em Òfazer um cat‡logo do similar, com a condi•‹o de se compreender que nenhum objeto Ž
id•ntico a sua rŽplicaÓ183. Enquanto alguns cat‡logos afirmam Ð o mundo Ž repetitivo, o sistema

182
ARMAN. Op. cit., p.16. Umberto Eco. Sobre Arman.
183
Idem, ibidem.
107

de cataloga•‹o de Arman nos mostra que o mundo ÒŽ sempre e surpreendentemente


diferenteÓ. 184

Arman. La Poubelle de Roy Lichtenstein, 1970. Acumula•‹o de detritos em caixa de acr’lico.


Arman. Poubelle de Jim Dine, 1961. Acumula•‹o de detritos em caixa de pl‡stico e madeira. 51x 33 x
33cm

Por vezes, recorre ao lixo personalizado, ou seja, o lixo de um personagem


concreto. Nessas acumula•›es, o lixo Ž despejado diretamente numa caixa de acr’lico
transparente, a fim de possibilitar uma vistoria maior por parte do observador. A primeira
impress‹o Ž de um certo asco. Proporcionar a visibilidade do lixo? Um pouco estranho, a n‹o
ser que se trate de quest›es de seguran•a, mas no caso Ž a Lata de lixo de Jim Dine (1961).
Ali‡s, em 1969, utiliza o lixo de sua pr—pria casa. J‡, na Lata de lixo de Roy Lichtenstein
(1970), Arman coleta, acumula e cita ao mesmo tempo e, a prop—sito, tambŽm ÒconservaÓ. ƒ s—
olhar a caixa de acr’lico, e em seguida se notam os detritos do trabalho do artista, as tiras dos
adesivos padr‹o. Arquivar o lixo? Qual Ž a rela•‹o social imposta por Arman, apenas ironia ou
uma cr’tica mordaz? Utiliza a t‡tica de choque, pois o Òimpacto visual da Acumula•‹o, pela
pr—pria virtude da quantidade, muda a qualidade das coisasÓ185.

184
Idem, ibidem.
185
Idem, p.48. Arman em entrevista a Daniel Abadie: ÒA arqueologia do futuroÓ.
108

Arman Condition of a Woman I, 1960. assemblage. 1918 x 464 x 321cm

Em Condition of a Woman I (Condi•‹o de uma mulher), 1960, Arman coloca


a caixa de acr’lico transparente repleta de restos sobre um pedestal. Tradicionalmente Ž a
posi•‹o assumida pelo objeto no campo da escultura. Posiciona sua pequena vitrine
praticamente acima da altura do olhar, o observador deve direcionar seu olhar para cima, ou
seja, na posi•‹o de quem olha um monumento, posi•‹o de rever•ncia, contempla•‹o do
sublime. Dire•‹o estratŽgica, pois os restos sempre s‹o jogados em dire•‹o contr‡ria. A
sociedade nega o lixo, e Arman o coloca na posi•‹o de monumento, e ademais numa vitrine,
para glorificar e eternizar os ind’cios de uma sociedade consumista.

Qual a diferen•a, se Ž que existe uma diferen•a, ou melhor, no que se


assemelha a estŽtica do detrito, do entulho em certas obras de Arman e de Damien Hirst?
Tanto um quanto outro encapsula, encerra uma ÒmontanhaÓ de lixo num recipiente
transparente. Objetos utilizados pelo corpo social, mas prontamente arremessados fora. A
prop—sito, no caso de Hirst, um lixo do qual ninguŽm quer se aproximar, o detrito hospitalar. Em
Arman, o acœmulo de lixo traz na proposta uma ironia relativa ao sistema da arte. J‡ em Hirst,
h‡ um protesto em rela•‹o ˆ vida. Ele provoca o espectador, desmonta valores sociais
estabelecidos. Categoricamente, coloca o sistema de cabe•a para o ar.
109

Damien Hirst. Waste, 1994. vidro, a•o, lixo hospitalar 152.4x213.4x106.7cm.

A dimens‹o das vitrines de Hirst, em rela•‹o ao que cont•m, ao que


mostram, s‹o monstruosas. S‹o praticamente do tamanho ou maior que o espectador. Ele
articula, com a absoluta presen•a, a impon•ncia da obra de frente ao observador, que se
depara com uma abund‰ncia de lixo hospitalar. Explora a repugn‰ncia, trata de forma muito
contundente a vida e a morte. Enfatiza o desprezo, a avers‹o, o horror ao falecimento. Imp›e
sua vis‹o e confronta o espectador na habilidade de chocar. Amedronta, questiona, na medida
em que encerra detritos hospitalares.

Hirst concebe uma estŽtica din‰mica entre a repulsa e o desejo.


Simultaneamente desenvolve rea•›es contr‡rias no espectador, atrai e repele ao mesmo
tempo. Explora sua obra com intensidade paradoxal. Numa ele corta uma vaca ao meio,
coloca-a em uma solu•‹o de formol sem mesmo arrancar as entranhas do animal. Exp›e as
duas metades, cada qual em uma vitrine. Estrategicamente faz o espectador transitar entre as
duas. Deixa ˆ vista seus —rg‹os vitais divididos ao meio, impondo-as por completo nas vitrines,
acovardando o espectador. J‡ em outra proposta ele simplesmente exp›e, em uma caixa de
acr’lico transparente, uma pintura colorida, alegre, em cujo interior flutuam bal›es de borracha.
Um sistema de ar os faz permanecer em plena liberdade de movimento. ƒ como contemplar
p‡ssaros voando no espa•o. Ademais, tem como t’tulo: A Celebration At Least, 1994 (Uma
celebra•‹o pelo menos). Uma obra amedronta, atemoriza enquanto a outra, invoca liberdade,
vida. No entanto, existe uma forte proximidade entre as duas. A Celebration At Least
encapsula, aprisiona o v™o. Ato perverso, enquanto representa•‹o pulsante do desejo.
110

Damien Hirst. The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living, 1991.

Representa o flutuar entre a vida e a morte tanto em A Celebration At Least,


como em The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living, 1991 (a
impossibilidade f’sica da morte na mente de um ser vivo). Nesse flutuar, representa uma pausa,
uma tentativa de suspender algo, a vida, a morte, o temor. Nesse movimento, traz lembran•as
de prazer Ð boiar sobre as ‡guas do mar. Uma vez que n‹o se sente o peso do corpo, da
matŽria. Situa•‹o limite entre afundar-se e sobreviver. Trabalha a quest‹o da morte nessa
atitude de colocar o tubar‹o flutuando num aqu‡rio. O pr—prio Hirst comenta ÒDe uma certa
forma, se entende melhor sobre as pessoas, tratando com pessoas mortas. ƒ lament‡vel, mas
voc• percebe em maior intensidade.Ó186 Transforma o tubar‹o num objeto a ser visto.
Contemplado? Ele mesmo o v• como objeto morto. Comida ambulante. Dinamiza uma poŽtica
pulsante entre vida e morte. Hirst afirma: ÒA absoluta corrup•‹o da vida Ž a pr—pria morteÓ187.

Thomas Hirschorn. Bataille monument, Kassel, 2002.

186
Damien Hirst. Op. cit., p.17. entrevista a Stuart Morgan.
187
Idem, p.11.
111

Pr—ximos ˆ estŽtica do lixo est‹o tambŽm os monumentos criados por


Hirschhorn, ao mesmo tempo em que trabalha um arquivo absolutamente informal. Chama o
espectador para dentro do ambiente. O monumento realizado para a Documenta XI, de Kassel,
oferece uma constru•‹o em boa parte transparente, a partir da utiliza•‹o de pl‡sticos.
Aparentemente Ž um local desorganizado, todo remendado. Uma constru•‹o prec‡ria, feita de
colagens e emendas, um espa•o profano, n‹o contemplativo, contr‡rio ˆ arquitetura sublime.
Se em um espa•o de Mies se contempla, se desliza, na destreza arquitet™nica, no ÒsaborÓ da
arquitetura, nos monumentos de Hirschhorn se trope•a nos m—veis, nos lugares supostamente
para sentar, nos aparatos de TV, nos livros, nas pilhas de textos distribu’dos pelo ch‹o.
Reveste precariamente grande parte do espa•o e dos objetos com fita adesiva para embalar. ƒ
um lugar onde se entra e se sai com a maior liberdade, mas o espectador fica se desejar, ou se
puder suportar. ƒ um local repleto de informa•‹o, apesar de ser um arquivo categoricamente
informal, enquanto comporta um material fragmentado.188 Monumento provocante, tanto como
um monumento em si, como para um arquivo. Na verdade mostra uma postura radical quanto a
um impulso arquivista189.

3.4 Ð Cr’tica ao espa•o do museu

A hist—ria cultural, ˆ qual Benjamin op›e o materialismo hist—rico, Ž exatamente o que


o museu oferece. Ele arranca os objetos de seus contextos hist—ricos originais n‹o
como um ato de celebra•‹o pol’tica, mas com o objetivo de criar a ilus‹o do
conhecimento universal. (...) O museu constr—i uma hist—ria cultural ao tratar seus
objetos independentemente tanto das condi•›es materiais da pr—pria Žpoca desses
objetos quanto das do presente. (...)

Douglas Crimp190

As pr‡ticas apropriacionistas de Fred Wilson imp›em um questionamento,


uma cr’tica ˆ constru•‹o hist—rica criada, exposta por parte do museu. Wilson n‹o coleciona,
nem coleta, mas intervŽm diretamente na cole•‹o de uma institui•‹o cultural. Ou seja, ele se
apropria do museu como um todo e interfere no processo de exibi•‹o, o qual, na verdade, vem
carregado com uma enorme pretens‹o nos objetivos institucionais relacionados ao
conhecimento. O artista interp›e com habilidade, sua Òinterven•‹o trata de examinar o aparato
ideol—gico do museu, explorando como h‡ ignorado a hist—ria da gente de corÓ191.

188
FOSTER, Hal. An Archival Impulse. In OCTOBER 110, Fall, 2004. p.5.
189
Idem, p.3-22.
190
CRIMP, Douglas. Sobre as ru’nas do museu. Tradu•‹o: Fernando Santos. S‹o Paulo: Martins Fontes, 2005. p.181.
191
PRADA, Juan Mart’n. La Apropiaci—n Posmoderna: Arte, pr‡ctica apropiacionista y Teor’a de la Posmodernidad. Madrid:
Editorial Fundamentos, 2001. p.151.
112

A partir de uma perspectiva cr’tica, em 1992, Fred Wilson trabalha sobre a


cole•‹o da Maryland Historical Society. Exp›e, traz ˆ vista, toda uma sŽrie de problemas sobre
a verdade hist—rica das instala•›es realizadas pelo museu. Tal institui•‹o foi extremamente
conservadora em suas exposi•›es, enquanto n‹o fazia refer•ncias ao papel desempenhado,
na hist—ria da cidade, pela comunidade afro-americana de Baltimore. O projeto ÒMining the
MuseumÓ funciona como site-specific, uma vez que interfere diretamente na expografia da
institui•‹o. Em suas reinstala•›es192, o artista quebra toda a constru•‹o das conex›es
realizadas anteriormente por parte da vis‹o tradicionalista da institui•‹o. Ao criar contextos
originais, provocativos, sempre a partir da respectiva cole•‹o, procura fazer uma nova leitura
curatorial e assim interpor em uma mudan•a de significado. Manipulando os objetos da
cole•‹o, constr—i arranjos particulares em rela•‹o ˆs quest›es de identidade cultural. Apropria-
se de mŽtodos e estratŽgias curatoriais para criticar atitudes Žtnicas da expografia da referida
institui•‹o. Em um primeiro momento, n‹o s‹o montagens Òintelig’veisÓ e causam um certo
estranhamento, requerendo do espectador uma aten•‹o ˆs quest›es hist—ricas, de identidade,
racismo, exclus‹o cultural.

Fred Wilson. Mining the Museum, 1992.


Instala•‹o de objetos recolocados da cole•‹o do Museu Hist—rico de Maryland, Baltimore.

O artista interfere sensivelmente em uma vitrine com a seguinte ficha tŽcnica:


Metalwork 1793-1880 (trabalhos em metal). Com inten•›es de obstaculizar o sentido anterior,
organiza, lado a lado, aos objetos ornados de prata, como c‡lices e jarros, j‡ inseridos nesta
vitrine, algemas de ferro, as quais tambŽm s‹o parte constituinte da cole•‹o do museu, porŽm

192
Idem, p.146. Ò...uma das pr‡ticas de questionamento do museu como espa•o ideol—gico que permanece na mais estreita rela•‹o
com a pr‡tica apropriacionista Ž a da «reinstala•‹o«Ó.
113

fazem parte daqueles objetos nunca antes expostos pela respectiva institui•‹o. Apesar da
conviv•ncia tr‡gica, tanto uns como os outros foram objetos do cotidiano daquele per’odo.
Acontece uma separa•‹o de objetos de uma mesma Žpoca, isolados, expostos por parte da
curadoria da institui•‹o. Um isolamento para deter um determinado tempo. O artista intervŽm
nesse tempo. Coloca um elemento ÒintrusoÓ ˆ vis‹o tradicionalista de uma cultura. A institui•‹o
organiza os elementos, todos de um mesmo material e os mesmos servem para uma mesma
ocasi‹o. Por parte do museu existe uma organiza•‹o por ordem de data, matŽria e utiliza•‹o.
As pe•as constituem um servi•o de ch‡, ornamentadas com prataria, utilit‡rios do cotidiano de
uma casa. Um problema de autoridade, a institui•‹o produz uma verdade distante da realidade.
A curadoria anterior, ÒdistraidamenteÓ, havia esquecido de mais um objeto, de metal, cotidiano
ˆ casa, as algemas. Fred Wilson ent‹o, em um gesto m’nimo, porŽm carregado de sarcasmo,
Òdesloca-asÓ para o dispositivo da vitrine, para o espa•o de exposi•‹o do Museu.

A Maryland Historic Society foi concebida como um clube de amigos e se cria depois
da revolu•‹o americana, fundada por historiadores aficionados e naturalistas de
fam’lias distinguidas. A Maryland Historic Society partia, assim, com uma clara
tend•ncia a planejar uma vis‹o muito concreta da hist—ria que tratou cuidadosamente
de perpetuar ao largo do tempo. Nela n‹o aparecem, por exemplo, alus‹o alguma aos
tumultos pelos direitos civis que arrasaram Baltimore entre 1968-69 sendo a œnica
refer•ncia ˆ experi•ncia afro-americana uma vitrine dedicada ao mœsico de jazz Eubie
Blake.193

ÒDe fato, a leitura das instala•›es presentes nesta reinstala•‹o n‹o pode
ocultar um forte fundo autobiogr‡fico.Ó194 Um v’deo ˆ entrada declarava sua vis‹o da Maryland
Historic Society. Wilson afirma ÒNunca sei onde me vai levar o processo, mas geralmente me
conduz de novo a mim mesmo, ˆs minhas pr—prias experi•ncias.Ó195 Essa atitude denota uma
insist•ncia na base autoral.

193
Idem, p.151.
194
Idem, ibidem.
195
Idem, ibidem
114

3.5 Ð Mercadoria Ð fetiche

As exposi•›es universais constroem o universo das mercadorias. (...) A moda


prescreve o ritual com o qual o fetiche mercadoria quer ser adorado.

Walter Benjamin196

O pœblico j‡ n‹o examinava a qualidade dos produtos expostos, nem a nobreza dos
materiais que haviam sido empregados na fabrica•‹o do objeto. Somente apreciava a
imagem visual dos produtos colocados detr‡s de um cristal. O vidro permitia uma
aproxima•‹o visual, enquanto criava uma separa•‹o intang’vel do indiv’duo ao
produto. O distanciamento do produto industrial fora do alcance da m‹o era o que
despertava o instinto possessivo do pœblico.

Daniel Canogar197

A encena•‹o arquitet™nica de uma catedral, ou de um museu, subordina o


olhar do espectador ˆ contempla•‹o. TambŽm suas pinturas e esculturas levam ˆ mesma
atitude. Esses espa•os inquietam, ou mesmo intimidam um simples visitante. Podemos afirmar
que tal dom’nio provoca a sensa•‹o estranha e fict’cia da presen•a de ÒolharesÓ, ou seja, o
visitante encontra-se exposto a um clima transcendental. O mesmo ocorre com a vigil‰ncia
autorit‡ria dirigida ao detento, porŽm em outra dimens‹o, enquanto acontece uma conten•‹o
praticamente total do sujeito no espa•o da pris‹o. Ou seja, pratica-se uma explora•‹o, por
parte do poder, das inven•›es tŽcnicas dos sistemas de ver. As lojas de departamentos
exploram mŽtodos distintos, contudo pr—ximos. A intimida•‹o ocorre de maneira n‹o
semelhante, na medida em que provoca a sedu•‹o do observador, na verdade, do cliente em
potencial. Os processos de exibi•‹o da mercadoria desafiam a pot•ncia visual do objeto.
Instigam o desejo e praticamente paralisam o olhar do observador.

Os fotogramas do filme A ‡rvore dos tamancos Ž um recorte maravilhoso em


termos de imagem do cinema para exemplificar o quanto uma vitrine paralisa o olhar. ƒ uma
cena muito sutil, fugaz, mas magistral. Enquanto o av™ da garota entra na loja para vender os
primeiros tomates de sua horta, ela permanece em frente ˆ vitrine quase a lambendo198.

196
BENJAMIN. Op. cit., 2005. p.42.
197
CANOGAR. Op. cit., p.31.
198
L•che-vitrine(lamber a vitrine) Ž t’tulo do texto de Peter Fleissig. Op. Cit., p.102.
115

A çrvore dos Tamancos (L«Albero degli Zoccoli), de Ermanno Olmi, It‡lia, 1978.

(...) muitos objetos modernos, por sua plasticidade e beleza, s‹o dignos de
admira•‹o, sobretudo quando valorizados pela arte de expor, que os retira da
esfera da materialidade objetiva para infundir-lhes uma ess•ncia estŽtica.199

199
FABRIS. Op. cit., p.60.
116

O aspecto pœblico de ir ˆs compras passa a ser uma atividade agrad‡vel e


respeit‡vel. Essa situa•‹o foi apresentada pelo comŽrcio londrino no in’cio do sŽculo XX, como
um contexto para a auto-realiza•‹o e independ•ncia feminina.200 A inaugura•‹o de uma nova
loja de departamentos, a Selfridge na Oxford Street, em Londres, a 15 de mar•o de 1909, e
outros eventos comerciais foram interpretados como um benef’cio para as mulheres, na
transforma•‹o das compras em uma bela-arte. Um dos poucos e raros momentos no qual foi
espontaneamente permitida a entrada da mulher na vida pœblica, foi quando essa situa•‹o
interessava aos homens do comŽrcio. Nesse per’odo acontece a constru•‹o de uma cultura
pœblica feminina voltada para o consumo, tendo a loja de departamentos como centro, cuja
nova caracter’stica permitia ao comprador, ou seja, ˆ compradora, n‹o apenas olhar, mas tocar
nos produtos. Na verdade, a Selfridge, espa•o privado de car‡ter pœblico, entre outros,
promoveu sua loja como o ponto de encontro feminino, seu pœblico ideal, j‡ que Ògostaria de se
beneficiar das mudan•as limitadas j‡ em andamento nas atividades das mulheresÓ201. As
compras, no in’cio do sŽculo XX, j‡ estavam associadas ˆ idŽia de uma cultura urbana de
massa prazerosa. A Bon MarchŽ, em Paris, e a Marshall Field«s norte-americana j‡ atuavam
nesse campo. Agora as Òimagens de sonho s‹o aquelas oferecidas pelas vitrines das lojas de
departamentos, que rapidamente v‹o tomando o lugar das passagens.Ó202

A vitrine, progressivamente, funciona como um dispositivo extraordin‡rio nas


estratŽgias comerciais. Um grande cen‡rio teatral repleto de mercadorias para saciar o desejo
feminino. A arquitetura da Selfridge surpreende o meio comercial londrino, um edif’cio de vinte
e quatro metros de altura, com 21 vitrines de vidro laminado, fazia frente para a rua. Foi, para a
Žpoca, um verdadeiro espet‡culo visual. ÒOs vitrinistas da Selfridge«s utilizaram tŽcnicas
teatrais para criar cenas que revestiam mercadorias simples de conota•›es culturais e
sociais.Ó203 Um dos anœncios da Selfridge promovia o ato de olhar como um prazer visual,
enquanto a imagem e o texto sugeriam ver vitrines como um entretenimento noturno excitante,
mas respeit‡vel.204

A imprensa que acompanha a Selfridge cria intensamente significados


associados ˆ vitrine e ˆs compras. Ò(...) representou repetidamente o consumo como um
entretenimento feminino, pœblico e sensual.Ó205 Solicitava-se aos clientes considerarem as
compras n‹o como um ato econ™mico, mas como um evento social e cultural. Encarado como
um entretenimento feminino, as compras chamam as consumidoras para tornar-se parte da

200
RAPPAPORT, Erika. ÒUma nova era de comprasÓ: A promo•‹o do prazer feminino no West End londrino. In
CHARNEY; SCHWARTZ. Op. cit., p.188.
201
Idem, p.205.
202
FABRIS. Op. cit., p.62.
203
RAPPAPORT. In CHARNEY; SCHWARTZ. Op. cit., p.192.
204
Idem, p.199.
205
Idem, p.193.
117

multid‹o urbana.206 A mulher Ž inclu’da na esfera pœblica, lhe Ž retirada a sensa•‹o de


isolamento, mas com forte interesse econ™mico-social.

Selfridge, 1909.

Na verdade, todo o interesse econ™mico em promover e reconfigurar o


espa•o de exposi•‹o da mercadoria exige uma grande necessidade de imagens. Diante disso,
agentes respons‡veis pelo trabalho e pela divulga•‹o das novas vitrines solicitam a realiza•‹o
freqŸente de fotografias para assegurar a publicidade.207 Entretanto, os fot—grafos na Žpoca se
deparavam com um enorme problema, a quest‹o dos reflexos presentes no vidro das vitrines.
O que mostra o coment‡rio a seguir presente na revista Parade em 1928: ÒO vidro que separa
o pœblico da mercadoria torna-se um grande obst‡culo: ele reflete a imagem dos transeuntes,
as casas em frente e isso n‹o faz parte de forma alguma do processo de neg—cio, onde a
exposi•‹o de mercadorias Ž toda a publicidadeÓ.208

Situa•‹o contr‡ria acontece nas fotos de Atget, quem num processo muito
singular documenta justamente toda a riqueza dos reflexos mesclados com a mercadoria.

As fotografias de vitrine ocupam um lugar particular na obra de Atget no sentido de


que elas constituem os œnicos documentos da cidade moderna Ð motivo, atŽ ent‹o,
esmeradamente evitado.
As fotografias de vitrines das grandes lojas Ð Òesse monumento da civiliza•‹o
burguesaÓ Ð desenvolvem uma proposta sobre a mercadoria e sobre um novo
consumo de massa. (É) Historicamente, a vitrine das grandes lojas aparece no

206
Idem, p.195.
207
Atget une rŽtrospective. Op. cit., p.85.
208
Idem, p.87.
118

momento em que as mercadorias s‹o apresentadas ˆ multid‹o que visita as grandes


Exposi•›es Universais.
Nas fotografias de Atget as mercadorias parecem desafiar a lei da gravidade e
aparecem agregadas ˆ decora•‹o urbana. Mais precisamente, suas fotografias
revelam conjuntamente —ticas bizarras devido ao reflexo da vitrine e a encena•‹o do
desejo do consumidor. (É) se a vitrine desvela o desejo, o vidro, ao contr‡rio, isola
fisicamente o consumidor que contempla seu p‡lido reflexo confundido ao espet‡culo
da mercadoria.209

Andy Warhol. Instala•‹o de telas Pop-arte na vitrine frontal da Bonwit Teller, Nova York,
abril/1961.

Caminhando pela 5» Avenida, nos anos 60, nos deparar’amos com telas de
Warhol, Dali, Archipemko, mescladas com a moda feminina, nas fachadas das grandes lojas
das ruas de Nova York. Um verdadeiro cen‡rio teatral, onde os atores s‹o agora manequins
trajando a œltima moda. O ambiente no interior das vitrines transforma-se numa composi•‹o
entre mercadorias e obras de arte originais. Esse cen‡rio faz equivaler um objeto originalmente
œtil Ð o vestu‡rio, a um objeto ligado ˆ intelectualidade Ð a pintura. Roupas e acess—rios
aproximam-se do status da obra de arte. Um aut•ntico teatro em fachadas transparentes
apresenta-se a uma audi•ncia externa, da rua. Atua com o transeunte, com suas ilus›es, seus
desejos. Teatro perverso, ele corrompe. Procura valer-se de raz›es poderosas, compele o
espectador a fazer o que prop›e. Na medida em que convence, estimula o desejo em possuir
bens.210 A vitrine de uma loja n‹o induz apenas psicologicamente, mas tambŽm fisicamente211,

209
LE GALL. Op. cit., p.35-38.
210
WHITING, CŽcile. Pop Art, Gender, and Consumer Culture. California: Cambridge University Press, 1997.
p.11-12.
211
Idem, p.12.
119

pois chama o transeunte ao interior da loja, a entrada est‡ ali mesmo, ao lado, junto ˆ vitrine,
aqui est‡ sua perversidade.

A tŽcnica comercial explora o desejo, enquanto incita o observador, o simples


passante, sempre visto como consumidor em potencial. Nesse jogo entre comŽrcio e consumo,
h‡ exemplos sobressalentes, como as vitrines da Bonwit Teller, em Nova York, loja de
departamentos especializada em trajes elegantes e luxuosos para mulheres. Durante a
segunda metade do sŽculo XX, Gene Moore trabalhou no design dessas vitrines, onde
explorava uma estratŽgia estŽtica fundada na indu•‹o do bom gosto entre arte moderna e
moda feminina. O observador objetivado era especialmente a mulher. Eram vitrines que
convidavam o espectador a manejar tanto as habilidades para consumir mercadorias, quanto
acessar obras de arte, julgando exemplos de arte Pop nas vitrines. 212 Uma tentativa de induzir,
provocar a compradora moderna na rela•‹o entre arte pop e bens de consumo.

A vitrine de loja faz papel de teatro, enquanto obras de arte e mercadorias


s‹o os seus personagens. O teatro, assim como os museus proporcionam ao espectador uma
experi•ncia distanciada. ƒ uma posi•‹o perturbadora para o observador, ele pode ver,
aproximar-se, mas n‹o em demasia, n‹o pode tocar no objeto. Essa experi•ncia permanece
suspensa. PorŽm, no comŽrcio, apenas por poucos instantes, Ž s— entrar e a situa•‹o torna-se
perversamente oposta. A potencialidade da tŽcnica comercial Ž depositada justo nesse limite.
O observador passa para o interior da loja, esquece a realidade, entra no mundo dos desejos,
uma vez que praticamente toca todas as mercadorias. E a ador‡vel e demon’aca proposta
comercial o ataca. Agora o que permanece Ž o desejo de posse. Existe nessa arquitetura toda
uma tŽcnica para provocar o prazer em adquirir bens213.

ÒA vitrine de Warhol, mais do que tudo, permite ˆs observadoras da vitrine


projetar-se imaginariamente na cena teatral e identificar-se com os manequins: elas tambŽm
podem aspirar a serem mulheres bem vestidas olhando obras de arte. O espet‡culo as leva
para dentro da cena.Ó214 O desejo da mulher sai de um estado de clausura domiciliar para
aspirar a uma identidade social. O mundo m‡gico do espet‡culo do consumo se d‡ a ver a
todas, leva-as ao mundo dos sonhos, dos desejos. Magia constru’da num cen‡rio transparente,
a œnica barreira Ž f’sica, apenas o olhar atravessa. Muitas entram, mas somente raras
compradoras chegam a sair com o objeto de desejo. S‹o mundos de ilus‹o, o da arte e o da
moda e a presen•a permanente, pulsante do desejo. O mercado mata e satisfaz o desejo,
contudo a oferta Ž enorme, o que fazer com isso?

212
Idem, p.8.
213
Idem, p.12.
214
Idem, p.10.
120

Nesse jogo de sedu•‹o, a foto de Robert Doisneau Ž singular no momento


em que captura o olhar do transeunte por detr‡s da vitrine comercial. No enquadramento
fotogr‡fico acontece uma trama curiosa de olhares, desde o pr—prio olhar de Doisneau atravŽs
da c‰mera, no interior da galeria. Assim como a pintura que se encontra ˆ mostra na vitrine,
exibe a intimidade de um olhar espiando atravŽs da janela, entre os tecidos da cortina.

Robert Doisneau. Le regard oblique, tableau de wagner dans la vitrine de la galerie Romi. Rue de
Seine, Paris VI, 1948.

Contr‡rio ˆ estŽtica do detrito de Arman, Jeff Koons desloca para o campo da


arte um objeto com aspecto de novo, aparentemente recŽm sa’do da loja. Apresenta
aspiradores de p— como pe•as art’sticas, enquanto faz uma alus‹o ao aumento desmesurado
de consumo. Transporta o objeto do cotidiano, absolutamente utilit‡rio para uma posi•‹o
distanciada. Ou seja, retira-o de sua fun•‹o e o valora, coloca-o na posi•‹o de um objeto de
arte. Removendo-o para uma situa•‹o, na qual o pr—prio objeto se mostra, como um fetiche,
apenas a ser admirado, desejado. Nesse gesto retira aquelas mercadorias do ‰mbito do
consumo domŽstico, e lhes oferece uma aura museol—gica, uma vez que os enclausura no
espa•o delimitado da vitrine. Assim o objeto permanece intacto. Iluminado com pequenas
l‰mpadas, num ambiente muito pr—ximo ˆ encena•‹o das fachadas comerciais. Esse espa•o
encontra-se absolutamente limpo, sem um œnico gr‹o de p—, brilhando como se alguŽm
estivesse horas lustrando a mercadoria.
121

Jeff Koons. New-Hoover-Drys-Tripledeckerv, 1981

(...) um dos grandes servi•os que um artista pode oferecer ao mundo nesse momento
Ž precisamente uma descri•‹o (literal ou conceitual) do capitalismo, livre de um
julgamento moral, que nos permita compreender visualmente o sistema no qual n—s
todos funcionamos. ƒ precisamente essa tentativa que corre no ‰mago de Maria
Eichhorn Aktiengesellschaft.Ó215

Maria Eichhorn. Maria Eichhorn Aktiengesellschaft , 2002

(É) o selo, caso extremo do objeto de cole•‹o, e fora de qualquer no•‹o de trabalho,
faz valor de uso e valor de troca se corresponderem entre si (É) se op›e ˆ nota
banc‡ria, embora a neutralidade estŽtica e a cifra impressas em seus papŽis pare•am
aproxim‡-los. (É) o dom’nio da nota Ž a multid‹o e a import‰ncia que ela indica n‹o
basta para tir‡-la do anonimato: a tarifa e a identidade desconhecida da prostituta

215
EICHHORN, Maria. Maria Eichhorn Aktiengesellschaft. Kšln: Verlag der Buchhandlung Walther Kšnig, 2007.
p.21. Charles Esche. Foreword.
122

estabelecem a mesma rela•‹o. (É) Ž dif’cil sair de semelhante aus•ncia no mundo.


Mas um dia a prostituta e a nota banc‡ria ficar‹o t‹o gastas de tanto passarem de
m‹o em m‹o que ir‹o deixar a rua (a prostituta) e sair de circula•‹o (a nota), para se
lan•arem no nada. Pois Ž raro ver a mulher da vida passar da frente envidra•ada,
onde espera atrair o olhar do transeunte, para a vitrine, isto Ž, passar da exposi•‹o
obscena ao rito sagrado. E raro tambŽm Ž ver a nota ser colocada atr‡s de uma vitrine
de museu para ser preciosamente conservada.216

A 22 de mar•o de 2002, reœnem-se um not‡rio, um advogado, um curador,


uma artista americana e a artista alem‹ Maria Eichhorn. A finalidade Ž fundar uma
ÒcooperativaÓ/companhia pœblica limitada sob o nome Maria Eichhorn Aktiengesellschaft,
estabelecida com toda a documenta•‹o legal e necess‡ria no registro comercial (lugar pœblico
onde os documentos de corpora•›es podem ser vistos por qualquer cidad‹o) da cidade de
Berlim. O processo segue inteiramente a realidade da burocracia na funda•‹o de uma
cooperativa. A proposta art’stica de Eichhorn, a princ’pio, toma a forma de uma atividade
coletiva, porŽm, durante o processo, ela a desarma completamente.217 A artista, ao final, Ž o
œnico membro do corpo administrativo.

O resultado estŽtico visual de toda a opera•‹o Ž levado para as salas


expositivas do Museu Fredericianum, em Kassel/Alemanha, por ocasi‹o da Documenta11.
Entramos numa sala ampla, iluminada, tanto artificialmente quanto atravŽs da luz externa de
duas grandes janelas que permitem uma certa visibilidade do espa•o exterior ˆ exposi•‹o,
parte integrante da proposta art’stica. As janelas seguem a estŽtica da transpar•ncia, apontam
para o mundo externo ao campo da arte.218

Em seguida nos detemos numa sŽrie de Òproje•›esÓ de textos em uma das


paredes, ou seja, nessa superf’cie encontra-se a reprodu•‹o de toda a documenta•‹o do
registro da cooperativa (a documenta•‹o original Ð memorando da associa•‹o, minutas dos
encontros do corpo supervisor, texto dos fundadores sobre a forma•‹o da companhia,
pronuncia•‹o pœblica do registro da companhia, a concess‹o da transfer•ncia de todas as
partes para a companhia, etc. Ð permanece nos arquivos do registro comercial). Todos foram
fotografados e integrados, como reprodu•›es, nas paredes da sala de exposi•‹o do museu.

A tŽcnica de montagem, para a documenta•‹o, a partir da constru•‹o de uma


segunda parede paralela ˆ do museu, segue um processo de ilumina•‹o interna por meio de
backlights, n‹o aparente. O resultado proporciona uma vis‹o plana, absolutamente integrada,

216
MISSAC, Pierre. Passagem de Walter Benjamin. Tradu•‹o: Lilian Escorel. S‹o Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
p.64-65.
217
EICHHORN. Op. cit., p.21. Charles Esche.
218
Idem, ibidem.
123

cada um dos papŽis da documenta•‹o permanece perfeitamente encaixado na parede. Ao


primeiro olhar mais parecem proje•›es em sua superf’cie. Entre a documenta•‹o, nos detemos
em uma pequena vitrine perfeitamente incrustada ˆ parede, quando o mesmo processo Ž
utilizado para que a pequena vitrine/cofre encaixe-se com perfei•‹o. Local onde se encontra o
montante do dinheiro da cooperativa Ð 50.000 em notas de 500 Euros. A disposi•‹o dos
documentos, assim como a do cofre, segue a ordem cronol—gica do processo de registro da
cooperativa. O lugar, onde permanecem as notas Ž, sem ingenuidade alguma, o pequeno
espa•o transparente de uma vitrine. A’ eternizado como uma j—ia, uma pŽrola intoc‡vel.
Situa•‹o paradoxal, o objeto capitalista de fluxo absolutamente constante, enquanto passa de
m‹o em m‹o, agora Ž impedido de ser tocado, movido dessa pequena, m’nima vitrine. As
notas de 500 Euros encontram-se vis’veis, intactas, brilhando aos olhares de seus
espectadores. O fato de estar no interior de um pequeno cofre transparente, fechado, onde
transpassa apenas o olhar, Ž absolutamente sedutor ao espectador do mundo da arte ou a
qualquer outro.

TambŽm faz parte da instala•‹o um extenso banco de madeira com um


revestimento de lin—leo verde escuro, onde observamos alguns espectadores sentados, atentos
na leitura dos textos/documentos, ou mesmo descansando do longo percurso pelas salas do
museu. E por fim uma prateleira, onde foram deixadas c—pias dos referidos documentos da
cooperativa a fim de possibilitar sua leitura. No contexto da exposi•‹o, os m—veis apontam para
a realidade cotidiana, pois esses s‹o similares aos encontrados nas salas judiciais e escrit—rios
do governo alem‹o.

Observando o sistema capitalista deleitar num dinamismo de circula•‹o


galopante, a artista decide fundar uma cooperativa e mant•-la financeiramente Òest‡velÓ, ou
seja, tom‡-la financeiramente como Ž, por quanto tempo for poss’vel. Assim, a cooperativa
inicia com um capital de 50.000 Euros, em 2002, e segue atŽ hoje com o mesmo capital. O que,
em realidade, torna-se um verdadeiro desafio inseri-la no sistema real capitalista.219 A proposta
de Eichhorn para a cooperativa determina ao final n‹o produzir, n‹o obter lucro algum, mas
tambŽm prop›e n‹o perder nada. Ou seja, Eichhorn prop›e manter os 50.000 Euros intactos.
Permanecem em sua cooperativa, que na verdade Ž de uma œnica pessoa, ela mesma, sem
serem aplicados. Ou seja, sem serem utilizados em nenhuma negocia•‹o de aplica•‹o
financeira banc‡ria. Ela tenta conservar o que existe sem nenhuma probabilidade, ou melhor,
sem nenhuma permiss‹o de mudan•a.

Nesse processo, nota-se a presen•a silenciosa do ato de colecionar do


museu. A saber, retirar um objeto do cotidiano e conserv‡-lo. Por conseqŸ•ncia, inutiliz‡-lo,

219
Idem, ibidem.
124

enquanto retira seu valor como objeto utilit‡rio. Eichhorn cria a cooperativa na realidade
cotidiana, mas, ao mesmo tempo, tambŽm a introduz no campo da arte. Estrutura uma
cooperativa n‹o-utilit‡ria220 no mundo real, e tambŽm a leva ao mundo da contempla•‹o
estŽtica. Ademais, nos faz estud‡-la por isso, por esse valor n‹o-produtivo. Sua companhia
perde o valor de uso, na medida em que perde valor monet‡rio e ganha o valor de exposi•‹o.

Eichhorn insere tambŽm nesse processo uma quest‹o complexa do conceito


de propriedade. Desenvolve estratŽgias e desaparece com as rela•›es de posse, enquanto o
dinheiro n‹o tem mais nenhuma rela•‹o com os «membros« da cooperativa ou com qualquer
outra pessoa, pois «aqueles« abriram m‹o de suas partes para a pr—pria cooperativa. A
companhia pertence a si pr—pria, fundamentalmente isso significa que ela n‹o pertence a
ninguŽm.221 Eichhorn constr—i uma cr’tica ao acœmulo de capital, enquanto se refere a Marx.
Exp›e de certa forma tanto o sistema capitalista, o acœmulo de capital, de propriedades, quanto
o sistema da arte. Assim como a rela•‹o econ™mica e social, a farsa das leis, e tambŽm os
problemas inseridos nas quest›es de posse e direitos autorais. Forma uma companhia Òcontida
em si mesmaÓ, ademais a mantŽm em seu Òestado originalÓ, e, se utilizamos aqui termos
museol—gicos, preserva-a de qualquer possibilidade de mudan•a de condi•‹o. Guarda-a, ou
melhor, retŽm-na em pleno estado de conserva•‹o. A forma pela qual criou essa cooperativa
se dirige a toda uma farsa existente nas leis da economia pol’tica.

Em 2007, o Van Abbemuseum (Eindhoven) adquire Maria Eichhorn


Aktiengesellschaft para seu acervo. A companhia pœblica limitada faz parte da realidade, assim
como do mundo ilus—rio da arte. Quando Eichhorn a deixa para a cole•‹o do museu de arte,
ela paralisa a cooperativa uma vez mais. Ou seja, Eichhorn paralisa a cooperativa na realidade
capitalista, uma vez que a quantia inicial de 50.000 Euros permanece sempre a mesma. E
paralisa uma segunda vez, enquanto a disp›e para o acervo de um museu de arte. A artista
transforma sua cooperativa numa imagem de cooperativa, ela agora encontra-se conservada,
intacta, porŽm sem lucros, mas tambŽm sem perdas, ou seja, Òsem nenhuma mudan•a para
sua condi•‹oÓ222.

220
Idem, ibidem.
221
Idem, p.23.
222
Idem, p.21.
125

Cap’tulo IV

Enigmas na autoria Ð quem Ž que fala?

(...) Ž a linguagem e n‹o o autor, aquele que fala.

Barthes223

4.1 Ð Diferen•as entre criar e apropriar-se

Picasso tornou vis’vel o nosso sŽculo; Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem
excluir as dos olhos, nascem e terminam em uma zona invis’vel. Ë lucidez do instinto
op™s o instinto da lucidez: o invis’vel n‹o Ž obscuro nem misterioso, Ž transparente ...

Octavio Paz224

Rosalind Krauss inicia seu texto, Marcel Duchamp ou o Campo Imagin‡rio225,


com uma cita•‹o de um ensaio de Octavio Paz, em que o autor comenta sobre os dois artistas
que maior influ•ncia exerceram sobre o sŽculo XX Ð Picasso, por suas obras, e Duchamp, por
uma obra que vem a ser a pr—pria negativa da no•‹o moderna de obra226. Krauss quer mostrar
com isso uma divis‹o do campo estŽtico tra•ada por estratŽgias distantes.

Krauss salienta a contraposi•‹o singular entre Duchamp e Picasso. Alega


n‹o estar entre o desenho e a cor, ou entre esp’rito e corpo, ou mesmo entre idealismo e
sensibilidade. Mas sim na oposi•‹o entre baixo e alto, entre o trivial e a seriedade. Ou seja, no
sŽculo XX, a obra de Picasso mostra uma persist•ncia em situar a arte no terreno do que se
manifesta visualmente. E a proposta de Duchamp, uma Òobra que Ž a nega•‹o da obraÓ,
prop›e uma arte que desconstr—i as pr—prias bases da percep•‹o sens’vel imediata, tornando-
se o porta-voz de uma arte da IdŽia. Assim, quando Duchamp rejeita o cubismo, recusa a auto-
sufici•ncia da pintura e a no•‹o de uma autonomia da obra de arte.

A proposta de Duchamp aborda uma nova atitude perante a arte. P›e por
terra a credibilidade numa arte associada somente ˆs quest›es art’sticas, ligadas diretamente

223
BARTHES, Roland. El susurro del lenguaje: m‡s all‡ de la palabra y la escritura. Tradu•‹o: C. Fern‡ndez
Medrano. Barcelona: Ediciones Paid—s IbŽrica, S.A.,1994. p.66. La muerte del autor.
224
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. Tradu•‹o: Sebasti‹o Uchoa Leite. S‹o Paulo: Editora
Perspectiva, 1997. p.9.
225
KRAUSS, Rosalind. O Fotogr‡fico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002.
226
PAZ. Op. cit., p.7.
126

ˆ depend•ncia da tinta, do quadro, dos procedimentos, da genialidade, do talento do artista. A


figura de um mito, de um artista transcendente, Ž praticamente posta por ‡gua abaixo.
Defini•›es como a que segue n‹o cabem dentro do atual sistema da arte:

O artista Ž um vidente que penetra atŽ os mais ’ntimos fundamentos de todo ente, atŽ
as idŽias criadoras de Deus, e um criador que pode expressar sua vis‹o na obra;
contemplar e criar s‹o nele uma s— coisa. Desta maneira, o artista, apesar de todos os
limites impostos pelo tempo e pela pessoa, se remonta sobre si mesmo, levantando-
se como profeta e glorificador do ser entre os homens; na sua figura genu’na tem algo
de sacerdotal.227

Apesar de a sociedade gostar dessa representa•‹o exagerada, pois n‹o


deixa de ser uma forma na qual o pœblico de alguma maneira aproxima-se do artista ÒcriadorÓ.
Afinal Ž o que muita gente quer, alguŽm com uma aura de algo poss’vel de aproximar-se do
sublime. Ali‡s, tal posi•‹o funciona todavia. Certos artistas planificam um grau de loucura para
fazer-se a imagem do artista sofredor, criador, como se fora o pr—prio Deus. Julian ÒSchnabel
desempenha astutamente o papel de louco porque sabe que lhe d‡ credibilidade como artista
de vanguarda.Ó228 ƒ uma loucura absolutamente programada. Age como o grande artista
criativo, enquanto representa socialmente tal personagem. Dir’amos que Picasso, para muita
gente, est‡ inclu’do nesse exagero incondicional da figura do artista, aquele que cria a partir do
nada. N‹o se concebe mais tal defini•‹o, ali‡s, torna-se burlesco colocar o artista na posi•‹o
do Deus criador. Daquele que cria do nada. Mas Ž uma posi•‹o que ocupou por algum tempo
dentro da hist—ria da arte, dentro de nossa sociedade. Na medida em que a idŽia de cria•‹o foi,
ou ainda Ž, associada ao gesto divino, um ato inventivo originado do nada.

Dois paradigmas na arte do sŽculo XX, enquanto Picasso representa o culto


ˆ genialidade, ˆ cria•‹o, Duchamp torna-se ÒautorÓ de uma apropria•‹o. As pinturas de Picasso
s‹o imagens, na medida em que a obra de Duchamp Ž uma reflex‹o sobre a imagem.229 Aquele
parte de um gesto criativo, este opta por uma escolha e se apropria da mesma. No gesto de
Picasso existe uma materialidade na representa•‹o, as linhas, as pinceladas resultam em
corpos matŽricos. Acusam, comprovam definitivamente a presen•a do tra•o do artista.
TambŽm na constru•‹o das esculturas desvenda-se cada movimento de suas m‹os. J‡
Duchamp, com a apropria•‹o, trabalha o reverso, seu gesto revela-se em uma dimens‹o
distinta. Picasso trabalha a representa•‹o, cria imagens no campo da ilus‹o. Define o campo
de representa•‹o com clareza, ademais este permanece distante do observador, do qual exige,
como participa•‹o, apenas a contempla•‹o. Enfim, o tra•o em Picasso Ž definitivamente a

227
BRUGGER, Walter. Diccionario de filosof’a. Barcelona: Empresa Editorial Herder, 1983/2000. p.70-1.
228
KUSPIT, Donald. El fin del arte. Tradu•‹o: Alfredo Brotons Mu–oz. Madrid: Ediciones Akal, 2006. p.128.
229
PAZ. Op. cit., p.8.
127

materializa•‹o do gesto. Entretanto Duchamp Ž aquele que minimiza o gesto, quando, na


verdade, n‹o acontece uma materializa•‹o dele, o que prevalece Ž a idŽia.

Duchamp faz suas escolhas durante andan•as pelas ruas da cidade, aprecia
as vitrines comerciais, elege objetos industriais aos quais denominar‡ de ready-mades. ƒ
ativado pelo fasc’nio, pelo deslumbre das lojas de mercadoria, assim como o pœblico que
caminha pelas avenidas. Pouco a pouco a concorr•ncia comercial explora e tira vantagens do
objeto, o qual torna-se o elemento central da rua. Come•a-se a valorar sua beleza, enquanto
entra com for•a significativa no mundo dos desejos do cidad‹o moderno. A cidade moderna
atrai o pœblico, chama-o para as ruas, suas vitrines atraem um fl‰neur em particular Ð Marcel
Duchamp, personalidade da cidade moderna, v• nas vitrines algo a transportar para o campo
da arte. O ambiente exaltado na Žpoca colabora para tal, como diz Fernand LŽger, a pr—pria
cidade tornou-se uma das belas artes:

A express‹o econ™mica p™s o vendedor de joelhos diante da mercadoria; f•-lo


descobri-la; apercebe-se de que os objetos t•m uma beleza. Um belo dia, recuando
dois passos, exp™s sapatos ou presuntos na vitrina: o resto, ao cuidado da imagina•‹o
e do gosto. Assim nasceu um estilo, muito atual Ð uma revolu•‹o se fez, sem tambor
nem trombetas. A rua pode, desde ent‹o, ser considerada como uma das belas-artes,
pois encontra-se magistralmente vestida pelas mil m‹os que diariamente armam e
desarmam essas encena•›es que s‹o as lojas modernas.230

Existe todo um ambiente prop’cio para a escolha por parte de Duchamp de


um objeto cotidiano. A mercadoria j‡ vinha desde o princ’pio do sŽculo XIX sendo explorada
como um fetiche, um objeto a ser experimentado esteticamente. E mesmo exigindo uma certa
contempla•‹o. Da’ a passar ao campo da arte foi uma quest‹o de um olhar extremamente
estratŽgico para apropriar-se do objeto e lev‡-lo, ou seja, desloc‡-lo ao campo da arte.

O ato de apropriar-se de um objeto, justamente vem a questionar os


conceitos tradicionais e diretamente ligados ˆ autenticidade da obra de arte. Duchamp impugna
o ato criativo, op›e-se por completo ˆs conven•›es atŽ ent‹o aceitas relativas aos conceitos de
criatividade e inven•‹o, e interroga bases sagradas da arte moderna, como express‹o e
originalidade. Duchamp trabalha o mŽtodo do deslocamento, mas apenas isso, seria muito
simples para tal estrategista. Sua pr‡tica apropriacionista mostra-se de uma intensidade t‡tica,
enquanto nega conceitos atŽ ent‹o valios’ssimos no campo da arte.

Duchamp avista uma institui•‹o na esfera art’stica manifestando-se por meio


de museus, exposi•›es, galerias, publica•›es. Na medida em que v• claramente Òque n‹o h‡

230
Fernand LŽger. In FABRIS. Op. cit., p.59.
128

g•nio, por mais g•nio que seja, berrando aos quatro ventos, cujo trabalho seja arte sem a
san•‹o da institui•‹oÓ231. Portanto, o artista afasta-se do papel de um ser iluminado, deixa de ter
uma ess•ncia, uma subst‰ncia. Assemelha-se a um interruptor232, enquanto aciona um objeto
do mundo utilit‡rio j‡ existente e o transforma em arte. A partir de ent‹o, o artista desempenha
uma fun•‹o dentro de um sistema. Aparentemente dispensa qualquer procedimento art’stico,
uma vez que desloca um objeto da realidade cotidiana e o traz para a esfera da arte.

Duchamp transgride as regras do mundo art’stico, de um sistema j‡ h‡ muito


consagrado, dessa forma coloca em crise o objeto de arte. Na verdade, existe uma ato criativo,
mas em outra dimens‹o, porŽm a princ’pio n‹o fica claro. Inventa o ready-made, o qual vem a
qualificar seus objetos encontrados, cujo significado literal Ž o j‡ feito, ou seja, algo
previamente fabricado. Diante disso, Duchamp abre um horizonte amplo, no meio art’stico, no
que se refere ˆ escolha e deslocamento de um objeto industrial. Um procedimento todavia
vastamente explorado nas obras contempor‰neas. ConseqŸentemente abre tambŽm um
campo enorme de questionamentos referentes ˆ problem‡tica da autoria. AtŽ ent‹o o artista
era autor de um objeto, uma pintura, enfim, algo t‡til. Òƒ depois de Duchamp que o artista se
torna autor de uma defini•‹o.Ó233

Prop›e, a princ’pio, questionar valores estŽticos. Diante de tal proposta traz o


objeto industrial para a esfera da arte. Apropria-se de um objeto cotidiano, retira-o do contexto
utilit‡rio, ou seja, retira seu valor de uso, enquanto o desloca para o campo de representa•‹o,
para o dom’nio da arte. Oferece uma dist‰ncia, a esse objeto, do mundo comum. Particular Ž o
caso da Fontaine, 1917 (Fonte). N‹o trabalha sua criatividade, no sentido atŽ ent‹o
tradicionalmente aceito, mas sim vai em busca de um objeto existente, absolutamente trivial.
Entretanto elimina a princ’pio seu valor estŽtico, t‹o caro aos valores da arte moderna. Ou seja,
sua inten•‹o Ž ÒsuprimirÓ tanto o belo quanto o feio. Com isso pretende atingir a neutralidade
estŽtica na escolha dos ready-mades, ali‡s, para tanto, faz uma declara•‹o de tal atitude: ÒŽ
preciso alcan•ar algo de uma tal indiferen•a que n‹o provoque nenhuma emo•‹o estŽtica. A
escolha dos ready-mades est‡ baseada sempre na indiferen•a visual, ao mesmo tempo que na
aus•ncia total do bom ou do mal gosto.Ó234

PorŽm, existem alguns te—ricos que n‹o compartilham da mesma opini‹o.


Apresenta-se aqui um grande paradoxo, pois, ao mesmo tempo, sob alguns olhares, Duchamp
tambŽm oferece ˆ Fonte, ou a outros ready-mades, um valor estŽtico. Para Juan Antonio
Ram’rez, n‹o Ž bem assim que a coisa acontece: ÒUm urinol elevado ˆ categoria de objeto

231
VENåNCIO. Op. cit., p.64.
232
Idem, ibidem.
233
ARMAN. Op. cit., p.57. Arman em entrevista a Daniel Abadie: ÒA arqueologia do futuroÓ.
234
CABANNE, Pierre. Entretiens avec Marcel Duchamp. In RAMêREZ. Op. cit., p.26.
129

art’stico n‹o pode estar, abaixo de nenhum conceito, como algo «neutro«.Ó235 O referido autor v•
toda uma associa•‹o com o valor estŽtico do objeto industrial por parte de Duchamp: Ò(...) pois
Ž —bvio que se pretende reivindicar o urin‡rio como um objeto belo. Ao selecion‡-lo, deve ter
levado em conta suas ins—litas similitudes com algumas esculturas contempor‰neas como o
m‡rmore de Brancusi, Princesa X (1916), (...).Ó236

Brancusi. Princesse X ,1915-16. Marcel Duchamp. Pasadena Art museum, Los Angeles, 1963.

ƒ importante relevar a obra de Brancusi nesse momento. Para o artista a


base da escultura tornou-se parte da pr—pria obra art’stica. A base anteriormente era apenas
um dispositivo de apresenta•‹o do objeto, ou seja, n‹o era parte integrante da escultura. A
partir do processo de trabalho de Brancusi iniciou-se uma reavalia•‹o do pedestal Ð dispositivo
de exibi•‹o da escultura. ƒ do que Duchamp tambŽm apropria-se, ÒcolocaÓ o ÒurinolÓ sobre um
dispositivo de exposi•‹o, tornando-o parte significante da obra. O que nos leva a relevar o
interesse de artistas contempor‰neos oferecerem grande import‰ncia ao dispositivo de
apresenta•‹o, ou seja, de enquadramento do objeto, entre os quais, o espa•o isolado da
vitrine.

Duchamp, numa proposta contr‡ria ao sistema com o qual convivia, n‹o


trabalha na constru•‹o de algo concreto. Apresenta uma quest‹o curiosa no caso da Fonte.
Assina e data o objeto, indicando um autor, ou pelo menos insinua sua suposta presen•a.
PorŽm, rubrica o objeto n‹o como Marcel Duchamp e sim como R. Mutt., sugerindo a autoria a
um terceiro. Na verdade, acontece um jogo bizarro com tal assinatura: Mutt vem de Mott

235
RAMêREZ. Op. cit., p.54.
236
Idem, p.55.
130

Works. Naqueles tempos, nome de um dos grandes fabricantes de pe•as sanit‡rias.


Entretanto, Duchamp muda para Mutt, caso contr‡rio ficaria demasiado parecido.237 Mas Mutt
vem de August Mutt, cujo personagem, gordo e baixinho, vem de uma tira c™mica norte-
americana muito conhecida na Žpoca (a tira Mutt and Jeff aparece entre 1907 e 1982).
Duchamp oferece (em parte) a autoria a um personagem gr‡fico, enquanto apropria-se de seu
nome. Na verdade, nem Duchamp, nem Mott Works, nem August Mutt s‹o ÒautoresÓ do urinol.
A assinatura presente no objeto n‹o pertence a nenhum dos tr•s, mas ao mesmo tempo
paradoxalmente envolve os tr•s. Abre um leque de possibilidades de interpreta•‹o. Enriquece
suas propostas com uma variedade de matizes. Abre sobretudo um campo enorme para novos
projetos art’sticos. Poder’amos propor, ou pelo menos ter em conta Duchamp como um
instaurador de discursos, na medida em que exerce tal papel proposto por Michel Foucault em
sua confer•ncia ÒO que Ž um autor?Ó238 apresentada ˆ SociŽtŽ Fran•aise de Philosophie, em
1969.

Duchamp com freqŸ•ncia joga com a quest‹o da criatividade: ÒThis is art if


you say soÓ 239
(Isto Ž arte se voc• diz que sim). Nessa proposi•‹o absolutamente radical,
Duchamp exp›e uma grande quebra de barreiras no mundo da arte. Sob a qual trabalhou leal e
constantemente. Nesse gesto, joga uma vez mais com a problem‡tica da assinatura. Aprova
uma autoria a um objeto qualquer, aparentemente sem critŽrios. Numa discuss‹o com Arman,
em 1966 ou 67, este lhe exp›e o seguinte:

Eu estava em sua casa quando trouxeram para assinar uma prova de um mœltiplo
muito mal feito: um perfil de bronze de sua cabe•a com uma m‹o que segurava um
tabuleiro de xadrez. Ele come•ou a assin‡-lo. Era realmente pior do que Dali poderia
fazer nos seus piores dias. Eu lhe disse; ÒMas voc• assina isto?Ó ÒSim, por qu•?Ó
ÒPorque n‹o Ž bom.Ó Ele respondeu: ÒEu n‹o dou a m’nimaÓ, e acrescentou: Òƒ preciso
n‹o perder a causa de vista. Disse que n‹o pintava mais, que para mim tanto fazia. Se
come•o a fazer ju’zo de valor sobre o que me trazem para assinar, eu tomo partido,
come•o a estabelecer um estilo, isto Ž bom, isto n‹o Ž bom; fui eu que decidi assim.
No fundo, eu sou muito coerente comigo mesmo ao assinar. Sei muito bem que Ž feio,
mas n‹o ligo. AlŽm do mais, estou dando um prazer para Arturo e para Teeny.240

Por vezes parece paradoxal, mas se utiliza do ÒnomeÓ, do seu nome! ÒPorque o artista Ž, antes
de mais, isso: um nome.Ó241

237
in: Ram’rez. Op. cit., p.59.
238
FOUCAULT, Michael. O que Ž um autor? Tradu•‹o: Ant—nio Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro. Lisboa:
Vega Passagens, 1992. p.55.
239
in: ARMAN. Op. cit., p.57.
240
ARMAN. Op. cit., p.57-58. Arman/Daniel Abadie. ÒA arqueologia do futuroÓ.
241
DAMISCH, Hubert. Artista. In EnciclopŽdia Einaudi. Volume 3 Artes Ð Tonal/Atonal. Portugal: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1984. p.70.
131

4.2 Ð A rela•‹o entre a obra e o autor

A intertextualidade na qual est‡ inserto todo texto, j‡ que ele mesmo Ž o entretexto de
outro texto, n‹o deve confundir-se com nenhuma origem do texto: buscar as ÒfontesÓ,
as Òinflu•nciasÓ de uma obra Ž satisfazer o mito da filia•‹o; as cita•›es que formam
um texto s‹o an™nimas, ilocaliz‡vel e, n‹o obstante, j‡ lidas antes: s‹o cita•›es sem
entre par•nteses.

Roland Barthes242

Foucault trata da rela•‹o entre obra e autor em sua confer•ncia de 1969.


Segundo ele, Òa no•‹o de autor constitui o momento forte da individualiza•‹o na hist—ria das
idŽias.Ó Para tanto, declara: ÒGostaria, para j‡, de debru•ar-me t‹o s— sobre a rela•‹o do texto
com o autor, a maneira como o texto aponta para essa figura que lhe Ž exterior e anterior, pelo
menos em apar•ncia.Ó Ao analisar tal implica•‹o, pede emprestada primeiramente a cita•‹o de
Samuel Beckett: ÒQue importa quem fala, disse alguŽm, que importa quem falaÓ. Para Foucault,
essa aparente indiferen•a denota que a escrita n‹o est‡ no gesto de escrever, mas sim ÒŽ uma
quest‹o de abertura de um espa•oÓ, um vazio onde o autor Ž substitu’do por um gesto, Òonde o
sujeito de escrita est‡ sempre a desaparecerÓ.243

Giorgio Agamben salienta um forte paradoxo, na cita•‹o de Beckett, por parte


de Foucault, onde, para ele, encontra-se a chave da confer•ncia O que Ž um autor?. ÒQue
importa quem fala, disse alguŽm, que importa quem falaÓ. Enquanto, nessa invoca•‹o
singularmente ir™nica Òexiste, (...) alguŽm que, ainda permanecendo an™nimo e sem rosto,
proferiu o enunciado, alguŽm sem o qual a tese que nega a import‰ncia daquele que fala n‹o
poderia ter sido formulada. O mesmo gesto, que tira toda relev‰ncia ˆ identidade do autor,
afirma sem embargo sua inevit‡vel necessidade.Ó244 Agamben releva a possibilidade de A vida
dos homens infames245 constituir Òem certo modo o paradigma da presen•a-aus•ncia do autor
na obraÓ246. Assinala, nessa pesquisa de Foucault, a exist•ncia de tal dificuldade, na qual Òa
ilegibilidade do sujeito aparece por um instante em todo seu esplendorÓ247.

A vida dos homens infames trata de uma pesquisa realizada por Foucault
sobre as lettres de cachet Ð ordens de pris‹o ou internamento emitidos em nome do rei (foi

242
BARTHES. Op. cit., p.78. De la obra ao texto.
243
FOUCAULT. Op. cit., 1992. p.33-36.
244
AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Tradu•‹o: Edgardo Dobry. Barcelona: Editorial Anagrama, 2005. p.78. El
autor como gesto.
245
FOUCAULT. Op. cit., 1992. p.89-128. A vida dos homens infames.
246
AGAMBEN. Op. cit., p.84-85. El autor como gesto.
247
Idem, p.83.
132

uma institui•‹o confinada a determinado per’odo da hist—ria da Fran•a, mais precisamente


entre 1660-1760).

O que se escrevia nelas, ninguŽm t•m o conhecimento da veracidade dos


fatos. Na maioria das vezes, as lettres de cachet eram requeridas por pessoas pr—ximas,
contra alguŽm, o qual por algum motivo particular n‹o era bem quisto, bem aceito. E por mais
cruel que possa parecer, muitas vezes eram solicitadas pela fam’lia, pelos vizinhos, atŽ mesmo
o pr—prio pai ou a m‹e, ou os filhos. ÒA lettre de cachet, o internamento, a omnipresen•a da
pol’cia, tudo isto n‹o faz habitualmente evocar outra coisa que n‹o o despotismo de um
monarca absoluto. Mas Ž for•oso ver que tal «arbitrariedade« constitu’a uma espŽcie de servi•o
pœblico.Ó 248 Foi, na verdade, um instrumento do Estado posto ao alcance dos sœditos.

Alguns seres humanos foram colocados definitivamente em risco nesses


discursos. Seus destinos terr’vel e astutamente decididos em escassas, porŽm estratŽgicas
palavras. A exist•ncia de homens e mulheres reduzidas exatamente ao que delas foi dito. E foi
somente isso o que delas subsistiu. Esses textos revelam, segundo Foucault, Òna sutileza de
uma frase um esplendor, uma viol•ncia que desmente a pequenez do assunto ou a
mesquinhez bem vergonhosa das inten•›es.Ó249

Denota-se a presen•a, das vidas infames, apenas na refer•ncia que fazem


delas o discurso do poder. Acusando-as ocasionalmente como autores de a•›es perversas.
Nessa inf‰mia existe algo que exige o pr—prio nome. Um gesto apenas, Ž o que decide o
destino de vidas desgra•adas. Um mesmo gesto as faz aparecer, para em seguida
desvanecer-se.250

A partir da an‡lise da confer•ncia de Foucualt, Agamben prop›e O autor


como gesto. Ou seja, o autor surge, se exibe somente na representa•‹o de um gesto. Compara
esse gesto com a aus•ncia, a lacuna de uma express‹o. E afirma que a presen•a do autor Ž
apenas um gesto a instalar um vazio. ÒSe chamamos gesto ˆquilo que fica inexpressado em
cada ato de express‹o poderemos dizer, portanto, que, exatamente como o infame, o autor
est‡ presente no texto somente em um gesto, que torna poss’vel a express‹o na mesma
medida em que instala nela um vazio central.Ó251

Esse gesto tr‡gico, cruel, comparece no campo da arte quando Marcel


Duchamp minimiza o gesto ao deslocar o cotidiano para o meio art’stico. PorŽm esse gesto, a
princ’pio ir™nico, Ž capaz de impregnar a esfera art’stica de uma enorme brecha. Um gesto

248
FOUCAULT. Op. cit., 1992. p.113. A vida dos homens infames.
249
Idem, p.89-109.
250
AGAMBEN. Op. cit., p.83-84. El autor como gesto.
251
Idem, p.84-85.
133

ir™nico, n‹o verdadeiramente cruel, mas dir’amos esteticamente sim. As lettre de cachet tratam
de uma quest‹o, a qual poder’amos qualificar de tr‡gica, b‡rbara. Gestos tr‡gicos zombam da
hist—ria da humanidade. Duchamp, quando minimiza o gesto, quando implanta um vazio na
arte, trata-o com um alto grau de ironia, de sarcasmo. Outros exemplos na esfera das artes
adotam o ÒgestoÓ de Duchamp. Nos anos 80, Jeff Koons tambŽm explora seu processo de
trabalho a partir de um m’nimo gesto, mas com grande pot•ncia representacional, ao levar
bolas de basquete para o interior de vitrines, enquanto simula, com o objeto cotidiano, a
quest‹o da morte, da impossibilidade de alcan•ar, de aceder a um desejo. Na medida em que
demonstra a posi•‹o Òtr‡gicaÓ da bola flutuante, œltimo est‡gio da vida.

Jeff koons. Two Ball Total Equilibrium Tank, 1985.


Vidro, metal, ‡gua destilada, bola de basquete.164.5x78.1x33.7cm.

Koons, em verdade, representa a si mesmo na sŽrie das vitrines ÒEquilibriumÓ


(Equil’brio). Concebe uma situa•‹o totalmente capitalista, na qual ele mesmo se posicionou no
campo da arte. Enquanto sujeito-autor, paradoxalmente aparece mediante sinais de sua pr—pria
aus•ncia252. Simula toda uma representa•‹o fetichista, na qual ele mesmo Ž o ÒgrandeÓ
representado. Encontra-se nessa rela•‹o condicional entre presen•a e aus•ncia. Koons est‡
em todas as entre linhas de sua obra. Em apenas um gesto Ð o deslocamento de um objeto
cotidiano Ð revela toda a sua identidade. N‹o poderia ser um objeto qualquer, mas sim um
objeto de jogo, de risco, uma vez que Ž a representa•‹o de sua pr—pria subjetividade. Jeff
Koons chegou a trabalhar na Bolsa de Valores de Nova York.

252
Idem, p.82.
134

ÒExiste um sujeito-autor e, sem embargo, este aparece somente mediante as


marcas de sua aus•ncia. PorŽm, de que modo pode ser singular uma aus•ncia? O que
significa, para um indiv’duo, ocupar o lugar de um morto, marcar os pr—prios sinais em um lugar
vazio?Ó253. O autor Duchamp aparece como uma aus•ncia dentro de sua obra, mas na verdade
indica uma presen•a imprescind’vel. Ali‡s, s— existe aus•ncia de uma presen•a. ƒ uma rela•‹o
absolutamente condicional.

4.3 Ð A fun•‹o autor

(...) come•amos a ver o que est‡ em jogo na chamada dispers‹o do sujeito. Pois o
que Ž esse sujeito que, amea•ado pela perda, Ž t‹o lamentado? O burgu•s talvez,
mas certamente o sujeito faloc•ntrico e patriarcal. Para alguns, para muitos, isso pode
ser, na verdade, uma grande perda, uma perda que conduz a lamenta•›es narcisistas
e a nega•›es histŽricas do fim da arte, da cultura, do Ocidente. Mas, para outros,
precisamente para Outros, n‹o h‡ nenhuma perda.

Hal Foster254

Segundo a an‡lise de Foucault, o nome de autor tem um conteœdo pr—prio.


Ele exerce um papel classificat—rio. Diante disso, o nome do autor de certa forma caracteriza o
discurso. Sinalizando que tal discurso n‹o Ž um discurso comum. O nome de autor n‹o transita
como o nome pr—prio. Mas sim, de uma forma singular, bordeja os textos, recortando-os,
delimitando-os. Foucault chama a toda essa complexa rela•‹o fun•‹o autor.255

ÒOs textos, os livros, os discursos come•aram efetivamente a ter autores


(outros que n‹o personagens m’ticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em
que o autor se tornou pass’vel de ser punido, isto Ž, na medida em que os discursos se
tornaram transgressores.Ó256 Surge ent‹o a problem‡tica da autoria, na medida em que se
solicita uma identidade aos textos qualificados de infratores. O anonimato n‹o Ž mais toler‡vel,
exige-se uma atribui•‹o. Ou seja, a partir do momento no qual existe uma subjetividade
singular no discurso, na obra, da’ ent‹o Ž quando exige-se uma autoria, quer dizer, exige-se
um ÒpaiÓ ˆ obra.257

253
Idem, ibidem.
254
FOSTER, Hal. Recodifica•‹o: Arte, Espet‡culo, Pol’tica Cultural. Tradu•‹o: Duda Machado. S‹o Paulo: Casa
Editorial Paulista, 1996. Pol•mica (P—s-)Moderna. p.184.
255
FOUCAULT. Op. cit., 1992. p.43-46.
256
Idem, p.47.
257
Idem, p.47-50.
135

Para Foucault, todos os discursos providos da fun•‹o autor comportam uma


pluralidade de eus. Isso significa quando num determinado texto aparece Eu concluo, esse eu
representa um indiv’duo que fez um certo trabalho; ou Eu suponho, aqui o eu se refere a um
momento de demonstra•‹o que qualquer indiv’duo pode ocupar. Foucault acrescenta um
terceiro eu, aquele que fala do significado do trabalho, enquanto situa-se no campo dos
discursos j‡ existentes ou a existir. E salienta que a fun•‹o autor n‹o Ž assegurada por apenas
um desses eus, mas sim quando esses tr•s eus se dispersam simultaneamente no interior do
texto.258

A an‡lise de Foucault sobre as caracter’sticas da fun•‹o autor est‡


relacionada ˆ articula•‹o dos discursos atravŽs do sistema jur’dico e institucional; n‹o se
exerce uniformemente sobre todos os discursos; define-se pela atribui•‹o atravŽs de uma sŽrie
de opera•›es espec’ficas e complexas; e n‹o se reenviam para um indiv’duo real, mas sim d‡
lugar a v‡rias posi•›es sujeitos, que classes de indiv’duos distintos podem ocupar. Foucault
diria ent‹o que o autor de uma disciplina, de uma teoria encontra-se numa posi•‹o
transdiscursiva, na medida em que outros autores fazem uso e se colocam no interior de suas
teorias. Ou seja, ocupam a posi•‹o de fundadores de discursividade. Esses n‹o s‹o autores
apenas de suas obras, na verdade, possibilitam a constru•‹o de outros textos. Exemplifica em
tal posi•‹o Freud e Marx, pois como autores instalam uma possibilidade ilimitada de discursos.
Coloca-os como instauradores de discursividade enquanto abrem espa•o para outros
discursos, conceitos, e hip—teses diferentes deles, mas ao mesmo tempo pertence em parte a
eles. Foucault afirma, Freud e Marx v‹o muito mais alŽm de serem apenas autores da
Interpreta•‹o dos sonhos ou de O Capital, eles estabelecem uma possibilidade indefinida de
discursos.259

A posi•‹o transdiscursiva n‹o confere uma generalidade formal, permite sim


um segmento mœltiplo de aplica•‹o. Ela n‹o faz parte das transforma•›es subseqŸentes, mas
Òpermanece necessariamente retra’da ou em excessoÓ260. Os discursos posteriores Ž que se
relacionam com a obra dos instauradores de discursividade e as tomam como uma primeira
coordenada. Assim, no campo das artes pl‡sticas poder’amos propor Duchamp nessa posi•‹o.
Afinal ele possibilita um sem fim de novos discursos.

Um suposto desaparecimento do escritor, do autor, possibilita descobrir a


trama da fun•‹o autor. Enquanto tenta-se redescobrir uma lacuna, um certo vazio, existe um
Òjogo perpŽtuo que caracteriza os retornos ˆ instaura•‹o discursivaÓ261. Esse retorno dirige-se
ao que est‡ presente no texto, e regressa-se ao que est‡ assinalado em vazio, em aus•ncia. A

258
Idem, p.55-56.
259
Idem, p.56-60.
260
Idem, p.62.
261
Idem, p.65.
136

volta ao texto de autor tenta redescobrir essa lacuna, essa falta. Uma vez que modifica o
discurso incessantemente, da’ o jogo permanente. O reexame da obra de Freud modifica o
campo te—rico da psican‡lise. Por se tratar de um texto de autor, Ž preciso regressar de novo a
ele, simultaneamente atravŽs de tais retornos os campos discursivos mant•m uma rela•‹o
particular com o autor ÒfundamentalÓ.262

Assim sugerimos que o reexame da obra de Duchamp poderia funcionar num


processo similar no ‰mbito da arte. Assim tambŽm, para com sua obra existe um retorno
permanente. Muitos artistas contempor‰neos seguem mantendo rela•›es singulares com seu
discurso.

Quando observamos Jeff Koons levar uma bola de basquete, desloc‡-la da


esfera real para dentro de um aqu‡rio, imediatamente a primeira refer•ncia est‡ no ready-
made. Ou quando nos deparamos com a prateleira ou as caixas-vitrines de Nelson Leirner,
toda a coleta de suvenires nos leva ao gesto minimizado de uma escolha.

ƒ curioso lembrar que, enquanto tais propostas levam os objetos novamente


ao interior da vitrine, Duchamp os ÒretirouÓ dela. TambŽm toda a cole•‹o de ready-mades do
museu de Marcel Broodthaers nos leva ao processo de deslocamento. Seu MusŽe d'Art
Moderne, DŽpartement des Aigles, Section de Figures 263, de 1972, reœne um infind‡vel nœmero
de representa•›es de ‡guias. Grande parte delas, Broodthaers as coloca em vitrines com a
etiqueta: Isto n‹o Ž uma obra de arte, em diferentes idiomas. Sua escolha n‹o Ž gratuita, pois
escolhe a ‡guia, ave que representa o poder. Seu gesto seletivo induz a toda uma rela•‹o com
a for•a e o dom’nio. Existe uma trama, um jogo intrincado em seu processo muito pr—ximo ˆs
estratŽgias duchampianas. AlŽm de toda uma forte refer•ncia ˆ obra de Magritte.

Marcel Broothaers. MusŽe d'Art Moderne, DŽpartement des Aigles, Section de Figures,1972. Detalhe.

262
Idem, p.65-67, 80.
263
Museu de Arte Moderna, Departamento das çguias, Se•‹o de Figuras.
137

Marcel Duchamp mata a a•‹o contemplativa. Na medida em que coloca o


sistema da arte de pernas para o ar e d‡ um xeque-mate na beleza estŽtica. Paradoxalmente,
a partir de uma estratŽgia emaranhada, abre um campo enorme para outras discursividades
art’sticas. Torna-se, dentro das devidas dimens›es, um fundador de discursos. Diante disso,
podemos concluir a quest‹o: n‹o Ž a morte do autor e sim uma trama muito mais complexa que
inclui uma variedade de autorias, de eus. ƒ todo um contexto cultural no qual o escritor vive e
convive. ƒ a somat—ria de toda uma experi•ncia cultural, intelectual que d‡ como resultado,
presente num mesmo texto, numa mesma obra, toda essa pluralidade de eus. E assim,
provoca um suposto distanciamento do autor, do qual j‡ falava Barthes, e n‹o, na verdade, a
sua morte.

4.4 Ð Crise do conceito tradicional de autor

4.4.1 Ð Interven•‹o Urbana

O flaneur Ž o prot—tipo de muitas das interven•›es duchampianas. Os trabalhos


preparat—rios do Grande vidro e os ready-mades surgiram em situa•›es ocasionais e
aleat—rias. (...) os ready-mades apareceram em passeios olhando as vitrines. O
flaneur Ž especialmente fascinado pelas vitrines. Uma das notas de Duchamp diz: "A
quest‹o das vitrines. Submeter-se ˆ interroga•‹o das vitrines. A exig•ncia da vitrine. A
prova da vitrine da exist•ncia do mundo exterior. Quando alguŽm se submete ao
exame da vitrine, este alguŽm pronuncia tambŽm sua pr—pria senten•a. De fato, a
escolha desse alguŽm Ž uma viagem de ida e volta. Das exig•ncias da vitrine, da
inevit‡vel resposta ˆs vitrines, minha escolha Ž determinada. Nenhuma teimosia, ab
absurdo, em esconder o coito atravŽs do painel de vidro com um ou v‡rios objetos da
vitrine. A pena consiste em cortar o painel e sentir remorso t‹o logo a possess‹o Ž
consumada. C.Q.D." 264

Paulo Bruscky, em agosto de 1978, permanece est‡tico cerca de tr•s horas


na vitrine da Livraria Moderna no centro da cidade de Recife. Seu olhar permanece fixo,
olhando ˆ dist‰ncia. Enquanto imagem de representa•‹o, evita olhar diretamente a quem se
aproxima da vitrine, chamado pela curiosidade de ver o que se passa. Esse objeto, esse
alguŽm totalmente estranho ao espa•o da vitrine. O que faz metido num espa•o onde deveriam
estar os objetos ˆ venda? Ademais carrega em seu pesco•o uma placa com a inscri•‹o O que
Ž a arte? Para que serve?. Atua nesse local como se fora um cen‡rio de teatro.

264
VENåNCIO. Op. cit., p.22.
138

Bruscky explora, tira vantagens da vitrine de uma loja de mercadorias. Utiliza-


se de uma das particularidades desse espa•o comercial, cuja vidra•a faz frente para a rua.
Toma posi•‹o nesse espa•o, que oferece uma visibilidade tanto do lado de fora quanto de seu
interior. Cria inevitavelmente uma rela•‹o direta com a mercadoria de consumo, uma vez que
se coloca no interior da vitrine comercial. Exp›e-se nesse pequeno espa•o, com certeza, para
ser observado, como se fosse um objeto pronto a ser adquirido. Provoca silenciosamente o
transeunte, um cliente qualquer, mas a princ’pio com indiferen•a. Encontra-se no lugar no qual
o observador aproxima-se do objeto, mas aqui o objeto Ž o pr—prio artista. N‹o Ž um objeto
para ser adquirido e levado para casa, frustra o comprador em potencial. Exposto como
mercadoria, da qual retira todo seu valor de uso como tambŽm de troca. Apresenta ao
espectador apenas o valor de exibi•‹o. Mas, um objeto de exposi•‹o que imp›e quest›es,
ademais questiona fora de lugar.

Entre os discursos gerados a partir das propostas duchampianas, est‡ o


levantamento de quest›es. Duchamp n‹o parte de um ato criativo e sim de um ato de sele•‹o,
elabora, na verdade, uma especula•‹o. E para tanto se utiliza do ready-made para questionar a
natureza do objeto art’stico. Assim indaga acerca do processamento da obra de arte a partir
das m‹os do artista. Com isso prop›e como trabalho art’stico, no lugar do objeto f’sico, apenas
uma indaga•‹o. Os ready-mades funcionam por vezes como respostas ˆs suas pr—prias
perguntas, enquanto explora o Òato especulativo de formular quest›esÓ265.

Bruscky, em vez de deixar as perguntas ao espectador, inverte os papŽis,


agora o pr—prio artista Ž quem prop›e a quest‹o. PorŽm, de certa forma inverte a situa•‹o, na
medida em que o espectador nesse caso perguntaria isso Ž arte? Bruscky questiona o que Ž a
arte? Para que serve? Com isso conta com o espectador, pois a pergunta lhe Ž dirigida, uma
vez que quem pergunta, pergunta a alguŽm, enquanto aguarda uma contesta•‹o.

No primeiro momento de sua interven•‹o, espera que o observador venha


atŽ ele. ƒ portador de um texto, apenas duas perguntas, que interagem entre si. Mas apenas
isso n‹o Ž suficiente, ele vai atŽ o pœblico, aproxima-se mais. Isso ocorre num segundo
momento quando sai do espa•o de prote•‹o da vitrine, e parte diretamente ao campo da
realidade, ou seja, o mundo do espectador. Ele o faz de certa maneira colaborar, ou melhor,
exige sua participa•‹o. N‹o poderia fazer a mesma interven•‹o sem tal espa•o, sem essa
passagem do privado ao pœblico, do local protegido, amparado, ao espa•o plenamente
descoberto. O artista se coloca ao exame da vitrine. Retira-se da posi•‹o protegida,
distanciada, e leva a mensagem-quest‹o ao espectador. Quer compartilhar uma problem‡tica,

265
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da Escultura Moderna. Tradu•‹o: Julio Fischer. S‹o Paulo: Martins Fontes,
1998. p.91. Formas de ready-made: Duchamp e Brancusi.
139

desde h‡ muito colocada de forma incessante tanto pelo observador quanto pelo pr—prio campo
da arte.

Interven•‹o Urbana-A•‹o-Performance realizada nas ruas do centro de Recife e vitrine da Livraria


Moderna, onde Paulo Brusky passa cerca de tr•s horas. Agosto de 1978.

Bruscky Ž suporte de uma proposi•‹o enquanto se coloca na posi•‹o de


homem-sandu’che, cuja fun•‹o Ž a de um ser humano servir de suporte ambulante para um
anœncio comercial, publicit‡rio. Bruscky anuncia n‹o um espet‡culo, um evento ou uma
mercadoria, mas uma quest‹o. Descontextualiza a fun•‹o do homem-sandu’che. Desloca o
desempenho desse personagem pœblico. De objeto/imagem, no interior da vitrine, passa ao
papel de homem-sandu’che para uma interven•‹o urbana. PorŽm, n‹o Ž o homem-sandu’che
calado, indiferente, o qual apenas carrega a informa•‹o que lhe pagam para levar. Mas, sim,
ele pr—prio dirige uma quest‹o ao pœblico. E a prop›e de maneira como se estivesse fazendo
um anœncio prec‡rio, vulgar, de qualquer mercadoria.

Se o homem-sandu’che leva para passear o pr—prio conceito de estar-ˆ-


venda , o que Bruscky est‡ propondo na representa•‹o deste personagem? O que ele est‡
266

colocando ˆ venda, uma quest‹o, a linguagem, a pr—pria arte, ou seria sua posi•‹o como
artista? Quais s‹o os conceitos que ele questiona? O que poderia estar conectado com
quest›es autorais, ou quest›es de identidade? Para confirmar uma autoria, o pr—prio artista se
coloca no espa•o de representa•‹o. Mas aqui o espa•o de atua•‹o Ž primeiramente privado,
para em seguida operar no espa•o pœblico.

266
BUCK-MORSS. Op. cit, p.363.
140

Homem-sandu’che, Paris, 1936

ÒO verdadeiro fl‰neur assalariado (Henri BŽrand) Ž o homem-anœncio.Ó267

4.4.2 Ð A òltima Foto

(...) hoje em dia sabemos que um texto n‹o est‡ constitu’do por uma fila de palavras,
das quais se desprende um œnico sentido, teol—gico, em certo modo (pois seria a
mensagem do Autor-Deus), sen‹o por um espa•o de mœltiplas dimens›es no qual se
concordam e se contrastam diversas escrituras, nenhuma das quais Ž a original: o
texto Ž um tecido de cita•›es provenientes dos mil focos da cultura.

Roland Barthes268

Rosangela Renn—, no projeto Bibliotheca, impossibilita a entrada ao que


poder’amos chamar de arquivos de mem—rias biogr‡ficas. Na verdade, desenvolve todo um
processo museogr‡fico de cataloga•‹o em sua cole•‹o de ‡lbuns de fotografias. Mas, na
finaliza•‹o do projeto, inventa um dispositivo com a finalidade de representar um bloqueio
visual de acesso aos ‡lbuns. Nessa primeira proposta bloqueia a visibilidade a um objeto, o
qual Ž o resultado material das c‰meras fotogr‡ficas. Num segundo projeto muito similar ao
Bibliotheca, ela impede o uso dos aparelhos fotogr‡ficos, aquele que, em realidade, gera as
imagens. Os quais fazem parte tambŽm de uma cole•‹o sua, de c‰meras anal—gicas. Renn—
est‡ tratando de dois objetos que praticamente est‹o deixando de existir em conseqŸ•ncia do
atual meio digital. S‹o duas cole•›es, cujos elementos, ao final poder’amos qualific‡-los de
objetos em extin•‹o - ‡lbuns de fam’lia e c‰meras anal—gicas.

267
BENJAMIN. Op. cit., 2005. [m 4, 2] p.803.
268
BARTHES. Op. cit., p.69. De la obra al texto.
141

A partir de uma discuss‹o sobre leis de direito de autor, Rosangela Renn—


faz a curadoria de uma exposi•‹o. Parte da pol•mica gerada em torno de uma tentativa de
cobran•a dos direitos autorais das reprodu•›es do Cristo Redentor no Rio de Janeiro. Para
tanto, convida 43 fot—grafos profissionais a fazerem uma foto do monumento. Enquanto lhes
prop›e realizar, na verdade, uma œltima foto, cada qual com uma das c‰meras anal—gicas de
sua cole•‹o particular, a qual vinha coletando h‡ alguns anos. Como resultado final s‹o
apresentados na exposi•‹o 43 d’pticos, compostos pelas c‰meras e a foto registrada por elas.
Apresenta tambŽm, junto ˆ exposi•‹o, uma publica•‹o que documenta o projeto. AlŽm do
registro da exposi•‹o, contŽm alguns textos que questionam a problem‡tica dos direitos
autorais e tambŽm uma discuss‹o sobre a morte anunciada da fotografia anal—gica na atual era
digital269.

Rosangela Renn— sugere aos fot—grafos o tema em torno ˆ imagem do Cristo


Redentor. Nessa proposta, trabalha um impedimento de uso, muito similar ˆ Bibliotheca. Ap—s
a utiliza•‹o das c‰meras por parte dos fot—grafos convidados, as c‰meras s‹o lacradas.
Acontece todo um ritual, preparado por Rosangela, para o lacre dos aparelhos eletr™nicos.
Primeiro a cole•‹o das c‰meras, depois o convite aos fot—grafos para realizar as imagens do
Cristo Redentor, a execu•‹o das fotos, as c—pias dos negativos, a montagem dos dispositivos
de exposi•‹o, a prepara•‹o do espa•o expositivo, a organiza•‹o da publica•‹o, o convite para
o pœblico aceder ao espa•o da galeria, o coquetel de abertura, e assim prossegue. Nesse
processo, que poder’amos chamar em certa medida de Òritual’sticoÓ, primeiramente, cada um
dos profissionais convidados faz uma œltima foto com uma das c‰meras. Ent‹o, em seguida, Ž
retirada a possibilidade de uso desses aparelhos. Existe obviamente uma rela•‹o de poder
nesse processo. Rosangela permite uma œltima foto a um outro profissional, que n‹o ela. Mas
em seguida lacra a c‰mera. Imediatamente impede seu uso. Como se n‹o bastasse a coloca
numa pequena caixa-vitrine. Definitivamente bloqueia a utiliza•‹o do respectivo aparelho
fotogr‡fico, que passa da posi•‹o de pe•a tecnicamente utilit‡ria para uma disposi•‹o
distanciada, ou seja, para uma circunst‰ncia expositiva. Durante esse processo, transforma-se
em imagem, pois, visto anteriormente, como objeto utilit‡rio perde seu valor.

Mas, aqui, poder’amos sugerir tambŽm algo alŽm dessa quest‹o. Segundo
Giorgio Agamben, a impossibilidade de uso t•m como lugar t—pico o Museu. Ademais, salienta
nessa esfera o Museu n‹o como um œnico espa•o f’sico, mas sim de uma capacidade em
coincidir com uma cidade inteira, ou uma regi‹o e atŽ mesmo um grupo de indiv’duos. Destaca
a problem‡tica de que hoje tudo pode tornar-se Museu, Òporque este denomina simplesmente a
exposi•‹o de uma impossibilidade de usar, de habitar, de experimentar.Ó270

269
RENNî, Ros‰ngela. A òltima Foto. S‹o Paulo, 2006.
270
AGAMBEN. Op. cit., p.110. Elogio de la profanaci—n.
142

Rosangela Renn—. A œltima foto, 2006.

Nesse contexto, dir’amos que os objetos que v‹o para o interior da vitrine, ou
seja, as c‰meras da cole•‹o de Renn—, de certa forma s‹o exaltados. Tomam parte da esfera
do sagrado. Anteriormente apenas faziam parte do cotidiano. Mas, se partimos da hip—tese de
que Òprofano (...) se diz em sentido pr—prio daquilo que, uma vez sagrado ou religioso, Ž
restitu’do ao uso e ˆ propriedade dos homensÓ271, ent‹o como poderia esse objeto cotidiano
fazer o caminho inverso, passar do profano ao sagrado?

Rosangela Renn—. A œltima foto, 2006.

Esse acontecimento, na verdade, Ž um processo comum na arte


contempor‰nea. O objeto perde seu valor de uso e ganha valor de exibi•‹o. Contudo n‹o uma

271
Idem, p.96.
143

exibi•‹o pœblica em sentido amplo e sim num local ÒsagradoÓ, nos limites internos do museu.
Ali‡s, existe toda uma institui•‹o para autorizar esse processo. O museu, com todos os seus
dispositivos, captura a possibilidade de uso desses objetos, enquanto lhes oferece todo um
aparato de sublima•‹o. Com esse processo n‹o os deixa mais ser profanados, desabilita
qualquer profana•‹o. O objeto passa apenas para uma posi•‹o de exibi•‹o, na medida em que
seu valor de uso e seu valor de troca lhe foram quitados. O que resulta numa impossibilidade
utilit‡ria, conseqŸentemente seu lugar paradigm‡tico ser‡ o museu.272

Renn— d‡ um ultimato ˆs c‰meras, bloqueia-lhes o uso, aposenta-as. Gera


um processo de impossibilidade de uso, em apenas um gesto determina e autoriza esse
impedimento. Esses aparelhos eletr™nicos n‹o podem mais ser profanados, fazem agora parte
do mundo dos objetos museogr‡ficos. D‡-lhes d‡ valor ainda maior de cole•‹o quando lacra as
c‰meras. Uma atitude muito pr—xima ao conceito de colecionismo de selos.

O fato de muitos colecionadores, como Benjamin indica, s— se interessarem pelos


selos carimbados, n‹o se deve de modo algum ˆ mudan•a de sua fisionomia, que se
diversificou e enriqueceu. Sua raz‹o se encontra no fato de que o correio, ao carimbar
o selo, como se tivesse marcando gado a ferro quente Ð o que poderia ser
interpretado como uma marca de inf‰mia Ð exalta-o, libera-o do encargo e da
vergonha de ser œtil, oferecendo-lhe condi•›es de cumprir uma voca•‹o mais nobre.
(É) Perfurado, carimbado pelo correio, o selo Ž definitivamente franqueado das
mesquinharias da vida cotidiana. 273

ÒA museifica•‹o do mundo Ž hoje um fato consumado, o que resulta numa


perda irrevog‡vel de todo uso, a impossibilidade absoluta de profanar.Ó274 O sagrado Ž um
mundo ˆ parte, no sentido religioso denota a presen•a de um poder superior. Encontra-se em
um mundo distante, separado do cotidiano, do simplesmente humano. O sagrado exige
venera•‹o, adora•‹o e temor ao mesmo tempo. Mas, se n‹o existem deuses nem nada
sobrenatural, o sagrado n‹o Ž mais do que uma palavra que damos a sentimentos arcaicos ou
ilus—rios.275 Planejar um espa•o que passe a sensa•‹o de sagrado n‹o Ž mais do que uma
maneira de voltar ao campo de ilus‹o, ou talvez reafirmar, assegurar-se de que tal espa•o Ž
um espa•o ilus—rio, de representa•‹o, de cria•‹o e conseqŸentemente de autoria, ademais
gesto divino.

Renn—, ao mesmo tempo que eleva as c‰meras para o campo de exposi•‹o


do museu, da galeria, no caso, desenvolve uma trama complexa durante o processo de

272
AGAMBEN. Op. cit., p.110. Elogio de la profanaci—n.
273
MISSAC. Op. cit., p.65-66. Homo scriptor/Coletar.
274
AGAMBEN. Op. cit., p.110-111. Elogio de la profanaci—n.
275
COMTE-SPONVILLE, AndrŽ. Diccionario Filos—fico. Barcelona, Buenos Aires, MŽxico: Paid—s, 2003. p.468.
144

constitui•‹o de seu projeto. Pois as fotos n‹o s‹o suas, Ž um trabalho em certa medida
coletivo, mas quem prop›e Ž ela. Existe a’ um dom’nio de todo o processo. E est‡ centrado na
a•‹o curatorial. Como artista se apropria, em parte, do papel do curador. Existem duas
situa•›es: primeiramente toda uma proposta em torno das c‰meras e outra ao redor das
œltimas fotos realizadas por estas. No caso das fotos do Cristo Redentor, Rosangela est‡
atuando mais como curadora do que como artista. N‹o Ž um caso de uma apropria•‹o direta
de fotos realizadas por terceiros. Poder’amos falar em um gesto, no qual est‡ a presen•a da
autora. Um gesto curatorial que gera uma outra din‰mica entre dois sistemas imbricados um no
outro. Ou seja, o sistema da exposi•‹o da cole•‹o de c‰meras e o sistema da Òapropria•‹oÓ
das fotos, ou melhor, da suposta apropria•‹o. Trata-se, em certa medida, de uma nova ordem
pl‡stica. Poder’amos propor aqui uma desconstru•‹o do autor como personagem œnico,
soberano.

O dispositivo de apresenta•‹o t•m o mesmo perfil, tanto para a foto quanto


para a c‰mera lacrada. Aproximam-se a caixas-vitrines, de cor cinza mŽdio. Exp›e a c‰mera
ao lado, muito pr—xima ˆ imagem realizada pelo profissional convidado. J‡ na publica•‹o, nota-
se, em verdade, um certo saudosismo em rela•‹o ˆs c‰meras anal—gicas por parte de Renn—,
em que ela prop›e uma discuss‹o sobre o prov‡vel fim de uma tŽcnica. Enquanto envia tr•s
perguntas a profissionais da ‡rea das artes. Mostra um certo paradoxo na programa•‹o visual
da publica•‹o, a qual fica muito pr—xima aos cat‡logos comerciais. Consta na parte superior de
cada p‡gina a foto realizada com a presen•a, a partir de diversas interpreta•›es, da imagem
do Cristo Redentor; abaixo o nome do fot—grafo, uma ficha tŽcnica contendo a marca do
aparelho fotogr‡fico, o fabricante, a data aproximada da fabrica•‹o, nœmero de sŽrie, a lente, o
filme, as dimens›es e o peso da c‰mera; a especifica•‹o do local onde a c‰mera foi adquirida;
a foto da c‰mera utilizada para realizar a respectiva imagem.

Definitivamente o resultado gr‡fico se assemelha a um cat‡logo de venda de


aparelhos fotogr‡ficos. Mas Rosangela n‹o est‡ vendendo nada, ou estar‡? Na verdade, est‡
retirando essas c‰meras da trivialidade. Para tanto deixa muito claro a sua n‹o funcionalidade
quando bloqueia as objetivas. Existe, na abrang•ncia da ficha tŽcnica das c‰meras, uma forte
objetividade. Provavelmente, faz refer•ncia ˆ pretendida objetividade museogr‡fica. Renn—
assume o papel de colecionadora, curadora e artista. Comete uma invas‹o a campos pr—ximos
da esfera art’stica.
145

4.5 Ð Diferen•as entre criar e organizar

No caso da Fontaine, porŽm, o ato criativo do artista Ž t‹o obviamente m’nimo e a


transforma•‹o mesma t‹o absolutamente insignificante (ao deixar o mict—rio
exatamente igual a todos os demais exemplares do g•nero), que, em lugar da
impress‹o de termos encontrado uma resposta, devemos nos confrontar com toda
uma nova sŽrie de quest›es estŽticas.

Rosalind Krauss276

Na arte contempor‰nea, a quest‹o de organizar o objeto, preparar o


ambiente, ou seja, a forma como apresentar algo, Ž fundamental. O resultado depende de uma
sŽrie de fatores, os quais se processam no decurso do espa•o e do tempo. N‹o Ž apenas o
artista quem apresenta o objeto. Ocorrem colabora•›es, ou estratŽgias de apresenta•‹o tanto
por parte do artista como de terceiros, sem os quais a obra poderia n‹o acontecer em sua
totalidade, ou mesmo delinearia outros rumos. Tomaria talvez a dire•‹o ao desconhecimento.
Um exemplo absolutamente cŽlebre e paradoxal Ž o caso j‡ conhecido da Fonte de Duchamp.
Sucede todo um processo, posterior ao gesto do artista, para colocar esse objeto no dom’nio
da arte.

Na verdade, Duchamp deixou o urinol exatamente igual, mas o posicionou


inversamente e o assinou. A princ’pio n‹o parece muita coisa, porŽm n‹o Ž bem assim. Na
seqŸ•ncia acontece uma sŽrie de situa•›es que vem mudar os critŽrios para apreciar tal
ÒcoisaÓ277.

Thierry de Duve, em seu texto para a exposi•‹o Voici, 100 ans d'art
contemporain 278
(100 anos de arte contempor‰nea), discute longamente sobre a quest‹o de
como a Fonte passou para a posteridade. E afirma o seguinte: ÒSem Stieglitz, n‹o Ž seguro que
o urinol de Duchamp teria passado a posteridade.Ó279 O que ele pretende com tal afirma•‹o,
colocando o sucesso da Fonte dependente do personagem, do fot—grafo Alfred Stieglitz?

Para justificar tal afirma•‹o, questiona se a Fonte Ž capaz de se apresentar


sozinha e dizer: me voici (aqui estou)280. No caso da referida exposi•‹o, me voici significa a

276
KRAUSS, Rosalind. Op. cit., 1998. Formas de ready-made: Duchamp e Brancusi. p.97.
277
ÒNotar-se-‡ que utiliza, com bastante freqŸ•ncia, as palavras ÒcoisaÓ para designar suas pr—prias cria•›es e
ÒfazerÓ para evocar seus atos criativos.Ó In: CABANNE, Pirre. Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo
Perdido. S‹o Paulo: Editora Perspectiva, 1997. p.12.
278
DUVE, Thierry de. Voici, 100 ans d«art contemporain. Bruxelles: Pallais de Beaux-Arts/LUDION/Flammarion,
2000, 2001.
279
Idem, p.28.
280
Idem, p.24.
146

obra ser capaz de apresentar-se por si mesma, sem molduras, Òquando a obra toma a palavra
e se apresentaÓ281.

Se apresentar, Ž dizer Òme voiciÓ. Dizer Òme voiciÓ, Ž se apresentar. Somente um ser
vivente e dotado de linguagem Ž capaz, as coisas n‹o. J‡ que, as obras de arte s‹o
coisas. N—s lhe emprestamos as propriedades humanas, n—s as declaramos vivas,
n—s as encontramos falantes quando elas t•m •xito, n—s as tratamos com o respeito
devido aos seres humanos, n—s julgamos b‡rbaro as destruir. Mas nada de tudo isto Ž
assim t‹o evidente.282

A Fonte em seu processo no tempo e no espa•o precisou da tradi•‹o do


infal’vel pedestal. E tambŽm de outras situa•›es para apresentar-se e alcan•ar o sucesso que
hoje lhe Ž devido. Ou seja, ela precisou de molduras tanto f’sicas quanto invis’veis. Necessitou
de dispositivos de apresenta•‹o, entre os quais, da base sobre a qual repousa o urinol na foto
realizada por Stieglitz,283 fot—grafo bem conhecido, diretor de uma galeria, militante da arte nos
Estados Unidos. Introduz ao pœblico nova-iorquino, naquele per’odo, CŽzanne, Matisse e
Rodin. TambŽm divulga em sua galeria um grupo de artistas americanos. Na Žpoca,
considerava Duchamp um charlat‹o, enquanto ignorava que por detr‡s de Richard Mutt estava
o pr—prio Duchamp.284

Como Stieglitz entra nesse processo da realiza•‹o de tal foto? Na verdade,


ninguŽm sabe como o urinol chegou atŽ Stieglitz. Mas ele aceitou fazer a foto para protestar
contra a censura do comit• do Sal‹o dos Independentes. Certamente sem deixar de ficar
surpreso com a idŽia de alguŽm ter enviado um urinol ao Sal‹o como se fosse um objeto de
arte.285 Mas como ex’mio fot—grafo, amante da beleza estŽtica, ele adorna, enfeita a
apresenta•‹o do objeto. Iluminando-o com conhecimento, enquanto o deposita delicadamente
sobre uma base, suporte tradicional da escultura, dispondo ao fundo uma pintura de Marsden
Hartley, The Warriors, 1913 (Os guerreiros). Com esse gesto ÒcolaboraÓ na apresenta•‹o da
Fonte. Ali‡s, apresenta-a como imagem. Ajeita-a com detalhes, harmoniza-a, como quem
comp›e uma vitrine. ÒSe a base foi o dispositivo de apresenta•‹o da coisa, Stieglitz foi o
apresentador da coisa com sua base.Ó286

A motiva•‹o de Stieglitz foi somente uma quest‹o de revidar o comit•, o qual


traiu as regras estipuladas. Stieglitz procurou ser fiel com ele mesmo, fazendo a foto para a
publica•‹o. Ou seja, politicamente correto em estar contra o comit• e embelezando o urinol,

281
Idem, p.7.
282
Idem, p.19.
283
Idem, p.24.
284
Idem, ibidem.
285
Idem, ibidem.
286
Idem, p.25.
147

toma uma atitude verdadeira em rela•‹o ao seu pr—prio gosto, ˆ sua pr—pria exig•ncia
estŽtica.287 ÒPobre dele. Ele foi um manipulador manipulado em tal combate...Ó.288

Como j‡ h‡ muito se sabe, o urinol primeiramente Ž enviado ˆ exposi•‹o por


Duchamp, quem, ali‡s, chegou a fazer parte do comit•, porŽm estrategicamente se absteve no
dia da reuni‹o. Quando ent‹o o urinol Ž recusado. Torna-se assim comprovado, como
acabamos de ver, sua estratŽgia Òconta de fato com outro dispositivo de exibi•‹o alŽm da base,
para que a Fonte passe ˆ posteridade: sobre uma foto assinada por Alfred Stieglitz!Ó.289
Contudo, temos atŽ agora dois dispositivos de apresenta•‹o para a Fonte: uma base e uma
fotografia. Mas existe tambŽm uma publica•‹o, o nœmero 2 da revista The Blind Man, que,
alŽm de publicar a fotografia de Stieglitz, publica tambŽm dois artigos explicativos. Um
intitulado Budha of the Bathroom (Buda do banheiro), assinado por Louise Norton, e o texto O
assunto Richard Mutt, o qual n‹o vinha assinado. Mas por seu estilo sem adere•os e pela
incisiva claridade da express‹o, Ž f‡cil atribu’-lo ao pr—prio Marcel Duchamp.290 Ademais, temos
que considerar, ele era um dos respons‡veis da mencionada publica•‹o.

O assunto Richard Mutt

Dizem que qualquer artista que pague seis d—lares pode expor.
O senhor Mutt enviou uma fonte. Sem discuss‹o este artigo desapareceu e nunca foi
exposto.
Eis aqui as raz›es para recusar a fonte do senhor Mutt:
1. Alguns argŸiram que era imoral, vulgar.
2. Outros que era um plagio, uma simples pe•a de encanamento.
Mas a fonte do senhor Mutt, assim como uma banheira, n‹o Ž imoral, isso Ž absurdo.
Se trata de um acess—rio que se v• diariamente nas vitrines de materiais de
constru•‹o. (...) 291

Quando a fotografia de Stieglitz foi publicada em The Blind Man, foi com tr•s
legendas: Fountain by R. Mutt, THE EXHIBIT REFUSED BY THE INDEPENDENTS, e
Photograph by Alfred Stieglitz292. Foram tr•s alus›es de autoria, a primeira a alguŽm que n‹o
fez nada de suas pr—prias m‹os, a segunda ao pr—prio Sal‹o, onde na verdade participam
artistas que se auto proclamam autores. A œnica refer•ncia a alguŽm com status de autor j‡
altamente reconhecido Ž ao fot—grafo Alfred Stieglitz. PorŽm, ele n‹o Ž o autor da Fonte,
apenas de sua fotografia, ou seja, de um dispositivo de apresenta•‹o, que representa a coisa,

287
Idem, ibidem.
288
Idem, p.26.
289
Idem, p.29.
290
RAMêREZ. Op. cit., p.54.
291
in: RAMêREZ. Op. cit. p.54.
292
Fonte de R. Mutt, Objeto recusado pelos Independentes, e Fotografia de Alfred Stieglitz.
148

enquanto Òa apresenta de fato ˆ posteridade dos espectadoresÓ293. Entretanto, Stieglitz, como j‡


comprovamos, n‹o estava completamente convencido de que a Fonte poderia apresentar-se
apenas por ela mesma. Preferiu apelar ˆ autoridade tradicional do pedestal, para com isso
tentar obter possibilidades de •xito para tal objeto. Ou seja, Òquem apresenta a Fonte abrigou-
se por detr‡s da conven•‹o do dispositivo de apresenta•‹o.Ó294

Marcel Duchamp. Fountain, 1917. P‡gina de The Blind Man, 1917. Foto de Alfred Stieglitz.

(...) n‹o compreendemos nada de Duchamp se isolamos o Òcaso Richard MuttÓ da


hist—ria dos Independentes, a partir da qual Ž um fato consumado que qualquer
pessoa poderia ser artista. Bem entendido, Duchamp n‹o Ž qualquer um, nem t‹o
pouco qualquer artista. Ele Ž aquele por quem o esc‰ndalo chegou, e ele merece seu
lugar de artista do sŽculo em par de igualdade com Picasso. Pela segunda metade do
sŽculo Ð quando sua influ•ncia come•ou verdadeiramente a se sentir Ð este lugar foi
interpretado como aquele do demiurgo, do grande apropriador, do rei Midas que
transforma em arte tudo aquilo que toca. (...) N‹o existe mais de um lado o pœblico dos
amadores da arte e do outro a corpora•‹o dos artistas, e por conseqŸ•ncia a divis‹o
do trabalho a priori entre julgar a arte e em fazer. Da’ v•m o ready-made: um objeto
em frente ao qual o artista e o espectador est‹o em pŽ de igualdade, nem um nem o

293
DUVE. Op. cit., p.29.
294
Idem, ibidem.
149

outro o fez de suas m‹os. Nenhum deles tem outra coisa a dizer, a n‹o ser: Òisto Ž
arteÓ, ou Òisto n‹o Ž arteÓ.295

Para que o objeto entre na esfera das artes visuais precisa de uma sŽrie de
dispositivos de apresenta•‹o, na verdade, uma sŽrie de enquadramentos, tanto os f’sicos
quanto os invis’veis. Quando falamos de invis’veis, estamos tratando de outros tipos de
enquadramento, ou seja, sobre o resultado conseqŸente do efeito moldura Ð as molduras
institucionais, ideol—gicas ou perceptuais296. Como vimos h‡ pouco, a Fonte de Duchamp Ž
indissoci‡vel de suas molduras, ou seja, de seus dispositivos de apresenta•‹o. ÒN—s vemos a
obra de arte, mas n‹o vemos a moldura.Ó297 Acontece uma forte tend•ncia em ignor‡-la,
enquanto ela Òserve para criar um espa•o para a obra de arte que o trabalho em si mesmo Ž
incapaz de oferecerÓ298. Duchamp Òdescobre que h‡ uma institui•‹o que se manifesta atravŽs
de museus, exposi•›es, revistas, galerias, e que n‹o h‡ g•nio, por mais g•nio que seja,
berrando aos quatro ventos, cujo trabalho seja arte sem a san•‹o da institui•‹o.Ó299 Para a obra
acontecer, para que ela tenha um autor, Ž necess‡rio, Ž fundamental, a exist•ncia de um
emoldurar em seq٥ncia.

Ò(...) uma das grandes li•›es da arte nos tempos recentes, Ž que isto n‹o Ž poss’vel,
as obras de arte e os objetos reais n‹o se distinguem somente pela inspe•‹o
visual.Ó300

295
DUVE. Op. cit, p.27.
296
DURO. Op. cit., p.5. Paul Duro. Introduction.
297
Idem, p.1. Paul Duro. Introduction.
298
Idem, ibidem.
299
VENåNCIO. Op. cit., p.64.
300
DANTO, Arthur. DespuŽs del fin del arte: El arte contempor‡neo y el linde de la historia. Barcelona: Ediciones
Paid—s IbŽrica, S.A., 1999. p.94.
150

4.6 Ð O autor e o espectador Ð divis‹o autoral (?)

(...) o ato criador n‹o Ž executado pelo artista sozinho; o pœblico estabelece o contato
entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades
intr’nsecas, e desta forma acrescenta sua contribui•‹o ao ato criador.

Marcel Duchamp301

(...), a distin•‹o convencional entre o autor e o pœblico, que a imprensa burguesa


preserva artificialmente, come•a a desaparecer na imprensa soviŽtica. Nela, o leitor
est‡ sempre pronto, igualmente, a escrever, descrever e prescrever. Como
especialista..., ele tem acesso ˆ condi•‹o de autor.

Walter Benjamin302

Os processos de trabalho de HŽlio Oiticica e Ligya Clark surgem como obras


interativas. Provocam, exigem a presen•a do espectador, ou mesmo imp›e uma a•‹o do
observador para o acontecimento da obra. Enquanto o espectador passa da posi•‹o de mero
observador para participador da obra. Nesses casos poder’amos considerar uma divis‹o de
autoria. A obra s— acontece em sua totalidade a partir do momento da interven•‹o do
participador. Qual a preocupa•‹o nesses casos, se Ž que existe, em preservar a autoria? Ou
seria realmente o caso do artista dividir a autoria com o observador? Como poderia o espa•o
da vitrine ter uma rela•‹o com tais posicionamentos?

Thierry de Duve, na exposi•‹o Voici, 100 ans d'art contemporain trabalha a


rela•‹o entre a obra e o observador e para isso exp›e, a princ’pio, tr•s situa•›es: a primeira se
coloca quando a obra de arte tem a palavra e se apresenta me voici (aqui estou), quando
menciona, entre outras, obras de Jeff Koons e Alberto Giacometti; a segunda situa•‹o se
coloca quando a obra dirige-se ˆs pessoas que lhe fazem face vous voici (estais aqui); e a
terceira, quando as obras testemunham o que n—s, os seres humanos, temos em comum nous
voici (aqui estamos).

O que pode ter em comum La Cage de Giacometti e o "aqu‡rio" de Jeff Koons? Nada
alŽm de suas surpreendentes similaridades formais, o que n‹o Ž nada. As duas obras
compartem a quest‹o da apresenta•‹o. Nos dois casos, um cubo virtual Ž colocado
sobre um pedestal fortemente acentuado.

301
Marcel Duchamp. O ato criador. In BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. S‹o Paulo: Editora Perspectiva, 1975.
p.74.
302
BENJAMIN. Op. cit., 1994. p.124. O autor como produtor.
151

Giacometti representa nesse espa•o em miniatura a rela•‹o do espectador com uma


est‡tua que n‹o est‡ na mesma escala. Koons suspende nesse espa•o uma bola de
basquete que flutua como por magia. A figura humana se coloca no lugar do objeto.303

Alberto Giacometti. La Cage, 1950. Bronze, 170x34x32cm. Jeff Koons. One Ball Total Equilibrium
Tank, 1985. Vidro, metal, ‡gua destilada bola de basquete, 164,5x78,1x33,7cm.

No caso de Koons, seu aqu‡rio, visivelmente, Ž, na pr‡tica, uma vitrine. Na


obra de Giacometti, o espa•o Ž similar ao da vitrine, porŽm Ž aberto. A obra dos dois artistas
aproximam-se por meio do dispositivo de apresenta•‹o, mas apresentam diferen•as na
qualidade do gesto. Em Giacometti, seu gesto criativo se materializa assim como o gesto de
Picasso, j‡ o gesto tr‡gico de Koons se aproxima ao gesto minimizado de Duchamp.
Entretanto, o dispositivo de exibi•‹o tem uma import‰ncia relevante tanto num caso como no
outro. Uma vez em que a obra se apresenta por si s— (Òaqui estouÓ), ou seja, n‹o solicita
colabora•‹o alguma do espectador a n‹o ser a contempla•‹o. Seus espa•os mostram-se
absolutamente definidos, enquanto exp›em qual Ž o limite da representa•‹o.

Como vimos anteriormente, os processos de Oiticica e Clark aproximam o


espectador, o qual torna-se, na verdade, participador. Caso contr‡rio, passa-se quando o
artista se utiliza do espa•o isolado da vitrine como parte integrante de sua obra. O
distanciamento provocado pelo dispositivo da vitrine aparta o observador, o qual praticamente

303
Idem, p.68-69.
152

volta a uma atitude contemplativa. Acontece um afastamento f’sico do observador. PorŽm,


gera-se uma curiosidade visual. Ap—s toda aquela divis‹o autoral com o
espectador/participador, acontece um retorno, ou pelo menos uma tentativa ˆ presen•a do
artista como œnico autor. A quest‹o de compartilhar uma autoria nem sempre Ž desejada. O
artista volta, ou pelo menos tenta de alguma maneira, identificar-se como o ins—lito autor.
Enquanto delimita um espa•o, deixa absolutamente claro qual Ž o campo de representa•‹o.
Propor’amos ent‹o a delimita•‹o de um espa•o, ou seja, a utiliza•‹o da vitrine como limite
significante da obra, como uma insist•ncia na preserva•‹o da autoria. Uma vez que acontece
uma volta ˆ exig•ncia do ato contemplativo, porŽm em outra extens‹o.

Um exemplo muito claro Ž o trabalho de Waltercio Caldas. A autoria em sua


obra Ž absolutamente evidente. Seu tra•o criativo Ž vis’vel de imediato. Ë dist‰ncia j‡ se nota Ž
um Waltercio, n‹o h‡ dœvida quanto ao autor. Em rela•‹o ao espa•o singularmente delimitado,
o artista apresenta, na SŽrie Veneza, obra apresentada para a Bienal de Veneza de 1997, um
limite muito semelhante ˆs demarca•›es da vitrine. Coloca, ou melhor, representa a hist—ria da
arte dentro de quatro volumes vazados. Define-os apenas atravŽs de linhas delgadas,
tridimensionais. Acontece um gesto perverso muito singular, quando o limite imposto pelo
artista separa cruelmente o espa•o de representa•‹o. A escultura apresenta uma estrutura de
vitrine, mas n‹o protege totalmente seu espa•o interior. Ademais, suas dimens›es
praticamente encontram-se na escala humana. O espectador quase pode ultrapassar as
fronteiras impostas. PorŽm, como invadir um limite, quando o que est‡ confinado Ž a presen•a
de autores assombrosamente consagrados? Como ultrapassar uma demarca•‹o clara do
campo de representa•‹o, de uma ‡rea sublime, onde se nota perfeitamente o ato criativo. O
espectador n‹o se sente com coragem, n‹o se atreve profan‡-la.

Waltercio congela quatro instantes de uma est—ria da arte304 no interior de


volumes virtuais. Os quais com certeza revelam a habitual eleg‰ncia escult—rica de sua obra. E
nessa carca•a Ž onde deposita, onde faz refer•ncia a praticamente toda a hist—ria da arte. A
estrutura geomŽtrica aberta, na SŽrie Veneza, Ž mais audaz do que se fora a pr—pria vitrine,
enquanto n‹o possui o plano do vidro, porŽm Ž absolutamente clara no limite. Tal perversidade
tem a ver com o conteœdo de seu trabalho. Esses limites pr—ximos ˆ vitrine s‹o parte
significante em sua proposta, s‹o insepar‡veis da obra. Mas existe uma diferen•a vis’vel em
rela•‹o ˆs obras de Koons ou Giacometti. As estruturas, na SŽrie Veneza, est‹o diretamente
no ch‹o, ou seja, no mesmo n’vel do espa•o do observador. Coloca a hist—ria da arte no
mesmo plano do espectador, porŽm estabelece um limite em outra dimens‹o. N‹o existe uma
base, um pedestal para elevar o campo de ilus‹o.

304
Waltercio Caldas. A sŽrie Veneza. Centro Cultural Light, Rio de Janeiro, 1998. Entrevista concedida a Ligia
Canongia. s/p.
153

Na SŽrie Veneza 1 Ð Sem t’tulo acrescenta apenas as palavras Òsenza titoloÓ


nas pequenas e quase impercept’veis placas de acr’lico aderidas ˆ estrutura de a•o. Enquanto
se Òremete ˆ Žpoca em que o homem n‹o tinha linguagemÓ305.

A sŽrie Veneza, 1997. A sŽrie Veneza, 2. Rodin . Brancusi. A sŽrie Veneza, 4. O transparente

Na segunda estrutura, a SŽrie Veneza 2 - Rodin-Brancusi, inclui tais


escultores, os quais romperam regras fortemente estabelecidas no campo da escultura.
Particularmente no que se refere ao modo de apresenta•‹o da escultura, do objeto. Ou seja,
toda uma rela•‹o com o dispositivo de exibi•‹o, a saber, a base escult—rica impondo-se como
limite de ilus‹o. Escolhe essa passagem por ser exemplar, e propiciar Òˆ arte moderna a idŽia
de um rompimento que preserva o fluxoÓ306.

A sŽrie Veneza, 3. A dist‰ncia entreÉ. detalhe.

305
Idem, s/p.
306
Idem, s/p.
154

Na SŽrie Veneza, 3 Ð A Dist‰ncia Entre... acrescenta uma infinidade das


pequenas placas transparentes. As quais carregam em forma de linguagem refer•ncias de
enorme pot•ncia no dom’nio das artes: Giacometti, Bosch, Tintoretto, Monet, Matisse,
Duchamp, Picasso, Arp, Gauguin, Fontana, Schwitters, Tiziano, Caravaggio, Munch... E se
voltamos uma vez mais a associar a vitrine com a tumba, Waltercio, com essas legendas, n‹o
deixa de Òevocar pequenas l‡pidesÓ307. Encapsula na virtualidade das carca•as uma infinidade
de autorias. Cita uma pluralidade de autores no interior do suporte de apresenta•‹o, no volume
virtual. Tal suporte n‹o poderia ser uma vitrine tradicional, fechada, de vidro; ela explodiria. S‹o
demasiadas identidades, um exagero de egos, a matŽria n‹o suportaria. Nesse cub’culo nos d‡
a ver a presen•a extrema da autoridade. Mas apenas em forma de legenda, omite por completo
a imagem. Coloca a representa•‹o de tais autores em n’vel de igualdade com o campo do
espectador. Entretanto exp›e em paridade apenas o texto, apenas a representa•‹o textual do
poder criativo, e n‹o o resultado em imagem.

Na SŽrie Veneza 4, o Transparente, um plano de vidro transparente divide a


estrutura de a•o inoxid‡vel em duas partes, em dois circuitos virtualmente inviol‡veis. No
interior existem duas naturezas mortas Ð um jarro e um copo, desenhadas tridimensionalmente,
uma de cada lado das divis›es. Ali‡s, naturezas mortas est‹o representadas no interior das
quatro estruturas. A superf’cie de vidro, plano a impor limites, por vezes reflete as formas, os
desenhos esculturais inseridos na arma•‹o. Nessa pe•a n‹o cita um nome sequer. Apenas
repete de um lado e do outro, o jarro e o copo depositados sobre uma superf’cie virtual.
Separados pelo plano transparente, enquanto suas imagens muito sutilmente invadem o
plano/fronteira atravŽs de seus reflexos. Existe um retorno muito perspicaz ˆ imagem.
Waltercio insiste, acredita, e deixa evidente seu gesto criativo. Na medida em que ÒdeslocaÓ
para dentro de sua obra a representa•‹o de gestos, identidades autorais. Faz com que esse
espa•o torne-se virtualmente inviol‡vel.

Em rela•‹o ao dispositivo de apresenta•‹o tanto o trabalho de Waltercio,


Giacometti e Koons possuem semelhan•as. Para Koons, o que lhe interessa realmente Ž o
efeito da bola flutuante. Enquanto a preocupa•‹o de Giacometti encontra-se na tens‹o do olhar
da figura em dire•‹o ˆ escultura. Entretanto para ambos existe uma concentra•‹o particular no
modo de apresentar tais situa•›es. O dispositivo de exposi•‹o Ž fundamental, Ž parte
significante. Em Giacometti e Koons o suporte eleva o espa•o de representa•‹o, porŽm em
Waltercio o espa•o de ilus‹o permanece no mesmo n’vel do campo do espectador, ou seja, na
esfera da realidade. S‹o suportes insepar‡veis do objeto, na medida em que oferecem um
significado fundamental para o acontecimento da obra. Sem a presen•a, sem a colabora•‹o de

307
CALDAS, Waltercio. Waltercio Caldas. Texto de Paulo Sergio Duarte. S‹o Paulo: Cosac & Naify Edi•›es, 2001.
p.162.
155

tais dispositivos, nos quais as obras se apresentam ao espectador, tais trabalhos n‹o teriam a
for•a que possuem.

Em rela•‹o ˆ quest‹o autoral, nenhum dos tr•s, na verdade, divide o ato


criativo com o espectador. O campo de representa•‹o encontra-se absolutamente definido.
S‹o obras que se apresentam, se colocam de frente ao observador. S‹o claramente
identific‡veis enquanto se posicionam como obras de arte. Contudo estabelecem um certo grau
de distanciamento, apresentam uma descontinuidade da esfera da realidade. A vitrine
definitivamente estabelece fronteiras. Mas o espectador n‹o pode ser simplesmente
descartado, sem ele a obra n‹o se d‡ a ver. ÒPara que a obra possa dizer ÒMe VoiciÓ, o artista
deve ainda ceder o lugar ao espectador.Ó308 Acontece sem dœvidas uma volta ao ato
contemplativo, mas em outra inst‰ncia.

PorŽm, existe tambŽm uma outra situa•‹o imposta para recuperar a


subjetividade do artista. Juan Mart’n Prada v• o tema autoral muito associado ˆ quest‹o do
mercado, uma vez que o pr—prio sistema da sociedade de consumo evita qualquer
possibilidade de perda de influ•ncia da figura do autor. Uma defesa, uma verdadeira apologia
do personagem do autor se intensifica na dŽcada de 80 do sŽculo XX. Ali‡s, tal tend•ncia n‹o
deixou de refor•ar-se desde o Romantismo. N‹o s— o mercado de arte colabora para tal, mas
todo o sistema institucional e cultural. Exposi•›es retrospectivas muito pontuais nesse per’odo
trazem ˆ tona e ap—iam extremamente o culto ˆ genialidade art’stica. Prada ressalta a
exposi•‹o dedicada a Picasso no Museu de Arte Moderna de Nova York, no in’cio de 80.
Enquanto exp›e cr’ticas contempor‰neas ao grande incentivo dado na ocasi‹o ˆ genialidade
art’stica, Prada salienta uma procura intensa pela autenticidade das obras de arte. As
exposi•›es nessa Žpoca revelam uma forte recusa de toda metodologia de an‡lise hist—rica, na
qual o eixo central n‹o toma como centro o autor. Nesse ambiente de exalta•‹o aos atributos
mais tradicionais do autor, novos artistas, em sua maioria muito jovens, ser‹o consagrados.309

Com os novos des’gnios desta recobrada exalta•‹o da subjetividade radical do


criador, o mercado de arte cobra um atŽ ent‹o desconhecido vigor. Na metade dos
anos 80 se pagar‹o os pre•os mais exorbitantes na compra de obras de autores da
Modernidade estŽtica. Algo que n‹o somente vai evidenciar uma vez mais o fracasso
das expectativas de Benjamin que prometiam o fim do valor aur‡tico da obra de arte,
sen‹o que esta, na transa•‹o econ™mica milion‡ria, se consolida como uma
verdadeira representa•‹o do poder e da l—gica do capitalismo avan•ado. Trata-se de
uma forma de incorpora•‹o dentro do sistema social e econ™mico dominante de todas
aquelas manifesta•›es que trataram de uma forma ou outra de transgredi-lo, j‡ como
um comportamento radical frente a ele (...) como recusa de seus princ’pios de

308
DUVE. Op. cit., p.115.
309
PRADA. Op. cit., p.70-72.
156

interc‰mbio simb—lico e econ™mico (radicalismo formal ou desmaterializa•‹o do objeto


art’stico, por exemplo). Isto acaba n‹o s— na definitiva perda de todo o valor
subversivo dos gestos mais radicais da vanguarda, sen‹o tambŽm em uma exalta•‹o
radical do artista de vanguarda e sua posterior mitifica•‹o (Van Gogh, Warhol, Beuys,
etc.).310

A recupera•‹o do conceito de autonomia da arte, um dos princ’pios mais


importantes da Modernidade estŽtica tardia, assumiu novamente uma relativa import‰ncia.311 A
autoria garante, assegura a posi•‹o da obra de arte como mercadoria de consumo. A quest‹o
de dar um nome ao autor tem toda uma rela•‹o com o mercado: Òna Žpoca da «marchandise«,
aquela precisamente onde a idŽia de «artista« se imp™s, a aus•ncia do nome Ž sempre uma
desvantagem.Ó312 Quando falta uma assinatura a teoria em seguida preocupa-se em encontrar
uma raz‹o social para esse anonimato. Para obras sem nome, os primeiros historiadores das
artes designaram por autor, n‹o um indiv’duo, um sujeito, mas o pr—prio grupo social.313

310
Idem, p.73.
311
Idem, ibidem.
312
DAMISCH, Hubert. Artista. In Enciclopedia Tonal/Atonal. p.71.
313
Idem, ibidem.
157

Conclus‹o

(...) um texto est‡ formado por escrituras mœltiplas, procedentes de v‡rias culturas e
que, umas com as outras, estabelecem um di‡logo, uma par—dia, uma contesta•‹o;
mas existe um lugar no qual se recolhe toda essa multiplicidade, e esse lugar n‹o Ž o
autor, como atŽ hoje se h‡ dito, sen‹o o leitor: o leitor Ž o espa•o mesmo no qual se
inscrevem, sem que se perca nem uma, todas as cita•›es que constituem uma
escritura; a unidade do texto n‹o est‡ em sua origem, sen‹o em seu destino, mas este
destino j‡ n‹o pode seguir sendo pessoal: o leitor Ž um homem sem hist—ria, sem
biografia, sem psicologia; ele Ž t‹o somente esse alguŽm que mantŽm reunidas em
um mesmo campo todas as marcas que constituem o escrito.

Roland Barthes314

Nos cap’tulos anteriores, analisamos direta ou indiretamente a rela•‹o do


dispositivo da vitrine com a problem‡tica da autoria. No primeiro cap’tulo, consideramos a
imposi•‹o, por parte do autor, de um limite para o campo de representa•‹o, enquanto
consideramos o poder das fronteiras impostas pela cidade, na rela•‹o entre o espa•o externo e
o interno. TambŽm avaliamos a depend•ncia de um espectador para o acontecimento da obra
proposta pelo artista (quando a presen•a do espectador se revela atravŽs de seus reflexos em
planos de vidros transparentes), ou seja, quem cria e quem observa est‹o interligados.

No segundo cap’tulo, expusemos o problema do dom’nio e da apropria•‹o do


saber na produ•‹o de mercadorias, enquanto o sujeito encontra-se no espa•o interno sob um
olhar controlador. Assim como o abalo da tecnologia sobre a arte, quando na arquitetura de
ferro e vidro do sŽculo XIX, o autor n‹o Ž mais quem cria e sim quem calcula. Como
contraponto, expusemos exemplos da arquitetura transparente do sŽculo XX, em que a autoria
do arquiteto Ž absolutamente vis’vel. Ou tambŽm o descaso sobre a identidade do sujeito
presente na representa•‹o dos locais de passagem, espa•os transparentes onde a
individualidade praticamente n‹o importa. Na discuss‹o sobre as pris›es, expusemos o
problema do poder e da domina•‹o em rela•‹o ˆ decis‹o de quem, na verdade, tem direito
sobre o corpo do outro e a inevit‡vel perda de identidade no projeto do pan—ptico. Assim como
no caso do necrotŽrio de Paris quando se mostra, em suas vitrines, o corpo de quem n‹o t•m
identidade.

No terceiro cap’tulo, consideramos o deslocamento de um objeto do cotidiano


para a esfera representacional como um gesto art’stico. Assim tratamos da problem‡tica da

314
BARTHES, Op. cit., La muerte del autor. p.71.
158

autoria n‹o como cria•‹o, mas sim o artista como um colecionador, um organizador, ou um
curador. Avaliamos tambŽm a autoria de uma apropria•‹o quando o artista escolhe um objeto
(criado por outro) e o super valoriza. Apreciamos a interven•‹o do artista quando subverte uma
autoria anterior, ou seja, faz uma cr’tica ˆ curadoria do museu deslocando objetos de sua
cole•‹o em suas pr—prias vitrines. Consideramos tambŽm a autoria de uma fot—grafa que n‹o
fotografa, uma vez que seu processo de trabalho Ž deslocar fotografias do cotidiano e
armazen‡-las em vitrines.

Na quarto cap’tulo, tratamos do conceito de autor a partir da rela•‹o entre a


materializa•‹o do gesto criativo e a arte como idŽia quando consideramos a autoria a partir de
um gesto minimizado. O resultado da autoria provŽm de uma pluralidade de discursos.
Colocamos a import‰ncia das propostas apresentadas por Duchamp, no campo das artes
visuais, pr—xima ˆ import‰ncia de Freud na psican‡lise e Marx na filosofia. Consideramos
ent‹o a presen•a de uma divis‹o autoral na obra e a implica•‹o do dispositivo de apresenta•‹o
(no caso a vitrine ou espa•os transparentes pr—ximos ao conceito de vitrine) na valoriza•‹o do
objeto.

Para concluir, escolhemos uma obra de Suchan Kinoshita pela raz‹o de seu
trabalho reunir, com uma certa proximidade, a linha de pensamento estabelecida nos cap’tulos
anteriores, assim como a problem‡tica dos limites impostos pela cidade, na rela•‹o entre o
ambiente interior e o seu exterior ou entre o espa•o sacro e o laico, a quest‹o da continuidade
entre a esfera da realidade e o campo de representa•‹o. Encontra-se relacionada em todas
essas situa•›es ˆ quest‹o do limite perverso imposto pela transpar•ncia do vidro, assim como
o paradoxo existente entre objeto, espectador e imagem. TambŽm encontramos na proposta da
artista o gesto minimizado.

ƒ bem conhecido o paradoxo de Plat‹o: N‹o Žs tu, artista, que nos falas, Ž um deus
que te faz falar. Tu n‹o sabes do que falas, e como falas. ƒs inspirado, louco,
possesso. ƒs como um peda•o de ferro que recebe a sua for•a de atra•‹o duma
pedra magnetizada. Segues os ritmos, achas as palavras. Mas s‹o os outros que,
dispondo da compet•ncia indispens‡vel, s‹o chamados a interpretar a tua mensagem:
(...) todos compreender‹o melhor do que se trata do que o pr—prio autor da obra.

I‹o, habilmente interpelado por S—crates, esbo•a uma tentativa de defesa: (...)
Palavra? Ð ironiza S—crates. Quem sabe como h‡-de falar, se n‹o souber o que deve
dizer numa determinada situa•‹o?

(...) Cada Žpoca, cada cultura, apresentar‡ a sua interpreta•‹o do texto, do quadro ou
do monumento correspondente ao seu conhecimento do mundo, do homem e da
hist—ria. N‹o h‡ intŽrpretes privilegiados, h‡ intŽrpretes mais ou menos competentes.
159

E os mais competentes s‹o talvez os fil—sofos. S—crates n‹o o diz, mas no fundo est‡
convencido disso. Tro•a displicentemente do artista, priva-o n‹o apenas do direito de
compreender o que diz e o que faz, mas ainda do direito de autor. Foi a musa que
inventou a sua inspirada mensagem, Ž a deus que deve atribu’-la.315

(...) Quando canto Ð dizia I‹o a S—crates Ð saio de mim, choro para fazer chorar, tenho
medo para fazer medo aos que me escutam. Mas no fundo sei bem o que estou
fazendo e que depois me vou rir, pois ganhei bem o meu dinheiro.316

ÒQuem Ž, pois, o autor? O que chora, ou o que ri?Ó317 Aquele que chora Ž
aquele que representa, o que ri Ž aquele que vive o cotidiano ap—s a realiza•‹o de seu
trabalho. ƒ o encontro dos dois personagens onde est‡ o mecanismo total da cria•‹o, no jogo,
na trama entre a realidade e a representa•‹o. Para Porebski, o artista Ž um personagem criado
pelo autor, Ž o ser da representa•‹o, o ser m’tico, aquele que desempenha uma fun•‹o, aquele
que materializa a imagem que dele formam, enquanto o autor(autores) Ž o ser Òda mensagem,
reconstitu’da sucessivamente pelos seus receptoresÓ318.

Poder’amos, a partir de ent‹o, iniciar a afirmar: o mecanismo da autoria est‡


no m’nimo no encontro de pelo menos tr•s personagens. Ou seja, na coincid•ncia entre os
papŽis de artista e autor e o espectador. Mas Porebski afirma: ÒA obra de arte Ž uma
mensagemÓ319. O que implica ent‹o a necessidade de um meio, sem o qual seria invi‡vel a
comunica•‹o entre o artista e o receptor da sua mensagem. E ÒŽ por ele que se deve come•ar
para em seguida fazer marcha atr‡s em dire•‹o ao autor a quem a mensagem possa ser
atribu’da.Ó320

Quando nos deparamos com a obra de Suchan Kinoshita, Chinese Whispers,


vemos um divertido jogo infantil, para n—s conhecido como o velho e saudoso Òtelefone sem
fioÓ, (aquele no qual o primeiro participante diz uma palavra ou uma frase no ouvido do segundo
e assim por diante. E no final, a mensagem Ž completamente outra). Durante esse processo
circular acontece uma rela•‹o de emiss‹o e recep•‹o entre interior e exterior. A voz Ž emitida
de dentro para fora e o som recebido inversamente de fora para dentro, e todos os
participantes assumem os dois papŽis, tanto de emissor quanto de receptor.

Kinoshita desenvolve esse processo selecionando frases de revistas


ilustradas e artigos de v‡rios fil—sofos e te—ricos da linguagem. Pede tambŽm a locutores

315
POREBSKI, Mieczyslaw. Atribui•‹o. In EnciclopŽdia Einaudi. Op. cit., p.159.
316
Idem, p.175.
317
Idem, ibidem.
318
Idem, ibidem.
319
Idem, p.174.
320
Idem, p.161.
160

comissionados por ela a inventar suas pr—prias senten•as. Enquanto outros participantes
inclu’dos, chamados de ÒrompedoresÓ, deliberadamente alteram as frases, traduzindo-as a
outros idiomas. Com um sistema tecnol—gico de grava•‹o sens’vel, Kinoshita escuta ˆs
escondidas, espreita os jogadores do telefone sem fio. Quer mostrar com isso quanto a palavra
falada Ž tema de mudan•a cont’nua. Os visitantes poderiam escutar o resultado dessas
grava•›es (em loop) 24 horas por dia sem interrup•‹o, no espa•o dedicado ˆ obra da artista,
durante o tempo da exposi•‹o na cidade de MŸnster em 2007 (skulptur projekte mŸnster 07). 321

O espa•o escolhido pela artista Ž um local j‡ existente na cidade. Este


espa•o arquitet™nico, a C‰mara do ComŽrcio de MŸnster, cuja fachada Ž absolutamente
transparente, faz frente para uma avenida movimentada. J‡ discutimos anteriormente a
arquitetura de Mies, o Pavilh‹o Barcelona, no qual por momentos o espa•o da representa•‹o
praticamente se confunde com o real. No espa•o de Kinoshita n‹o acontece o mesmo (alŽm de
a obra acontecer, como j‡ vimos, na pr—pria arquitetura da cidade), ela fecha a entrada frontal,
o espectador precisa dar a volta no quarteir‹o e entrar pelo p‡tio de v‡rios edif’cios vizinhos,
para ent‹o poder aceder por uma pequena entrada nos fundos da sala. Ademais, exatamente
na frente da fachada do edif’cio encontra-se uma pequena instru•‹o, um mapa indicando a
necessidade de dar uma volta circular para ent‹o entrar ao espa•o expositivo. ƒ quase como
adentrar em uma ÒcavernaÓ, mas pelo lado oposto. Ent‹o o visitante desce uns poucos degraus
e acomoda-se nas poltronas adaptadas ˆ arquitetura, quando encontra-se na nossa j‡
conhecida vitrine, apto a participar da experi•ncia projetada por Kinoshita.

A artista produz toda uma estratŽgia, a qual j‡ inicia desde o acesso ao local.
O espa•o permanece fechado o tempo todo, provoca na verdade uma sensa•‹o de
afastamento no espectador. O pr—prio ambiente proporciona um sil•ncio envolvente, ninguŽm
se atreve a falar nada. Todos os visitantes realmente embarcam na atmosfera proposta. O
observador entra nesse nicho, o qual passa a impress‹o de estar protegido por um campo
aur‡tico. A tranqŸilidade, o sil•ncio e o isolamento proporcionam o efeito de um espa•o sacro.
Existe uma moldura, um enquadramento pelo qual o espectador Ž ÒabsorvidoÓ. Ali‡s, a aura
tambŽm Ž uma moldura.322 Kinoshita tenta produzir essa atmosfera para impor um mecanismo.

321
Skulptur Projekte MŸnster 07. MŸnster, 2007. Frank Frangenberg. p.39.
322
BORDO, Jonathan. The Witness in the Errings of Contemporary Art. In DURO. Op. cit., p.187.
161

Suchan Kinoshita. Chinese Whispers, 2007. skulptur projekte mŸnster 07.

Ap—s adentrar, o visitante senta-se, pega os auriculares colocados ˆ sua


disposi•‹o e automaticamente olha em dire•‹o ˆ luz, ˆ vidra•a, ou seja, para fora. Enquanto
ouve, se lhe apetecer, o resultado do telefone sem fio, a transforma•‹o deliberada ou n‹o das
palavras. Desse modo aprecia a paisagem urbana atravŽs do enquadramento da fachada.
Permanece no espa•o de representa•‹o, enquanto a realidade fica do lado externo. Todos os
seus sentidos s‹o ativados pela ambienta•‹o. Sua experi•ncia Ž imprescind’vel. A obra
necessita de sua presen•a para que a descontinuidade entre realidade e encena•‹o seja
percebida. Portanto, o espectador/participador v• passivamente desse espa•o a cidade,
ademais em movimento. ƒ como se estivesse em uma sala de proje•‹o, enquanto a vida l‡
fora corre cinematograficamente. De certa forma o espectador fica mais pr—ximo da esfera
urbana. Mas, a fronteira causada pelo vidro torna-se, na verdade, um limite perverso. Mostra
uma continuidade imagŽtica, enquanto interrompe a rela•‹o f’sica entre interior e exterior, entre
a realidade e a representa•‹o.

Suchan Kinoshita. Chinese Whispers, 2007. skulptur projekte mŸnster 07.


Dziga Vertov. O Homem e a C‰mera (Chelovek Kinoapparatom). Rœssia, 1929

Ali‡s, na vidra•a frontal existe uma persiana horizontal, fundamental para


criar o clima aur‡tico, a qual abre e fecha em intervalos pausados. ƒ como se estivŽssemos
abrindo e fechando os olhos em c‰mera lenta. Kinoshita interrompe por momentos a conex‹o
entre o ambiente interior e a esfera externa. Esse gesto nos leva a lembrar alguns fotogramas
162

do filme de Dziga Vertov O homem e a c‰mera (Chelovek Kinoapparatom) de 1929. No


momento no qual uma garota se desperta pela manh‹, lava e em seguida seca seu rosto na
medida em que olha para fora atravŽs de uma janela, a qual tambŽm possui uma persiana
horizontal em movimento de abrir e fechar. AlŽm do mais, a garota faz a mesma agita•‹o com
os olhos, uma vez que por alguns instantes fixa o olhar na dire•‹o da persiana. Tenta pegar
uma vis‹o exata da imagem da realidade externa. Entre esses fotogramas, Vertov interp›e
outros da c‰mera, cuja objetiva segue o mesmo processo de abrir e fechar, ao tentar focar e
captar a nitidez da imagem externa. O cineasta prop›e nesse instante uma rela•‹o cont’nua de
imagens estabelecendo um jogo da rela•‹o entre interior e exterior, entre fechar e abrir. Dirige
um cruzamento na a•‹o de ver e n‹o ver a imagem. Sugere cortes na continuidade de uma
mesma cena. Mas ao mesmo tempo procura encadear espa•os opostos. Mostra a realidade do
despertar da cidade numa seqŸ•ncia de cenas anteriores. Faz com que a c‰mera aproxime a
realidade e traga para perto o cotidiano em imagem. Nesse gesto m’nimo, manual ou
tecnol—gico, de abrir e fechar a cortina, a objetiva, os olhos, tanto Kinoshita como Vertov
produzem um mecanismo, enquanto fazem o espectador notar a sutil diferen•a, sentir o limite
perspicaz entre a realidade e o campo de atua•‹o. Tudo acontece aparentemente numa
mesma continuidade.

O artista lan•a um gesto. Mas, isso apenas Ž pouco. Seu gesto desencadeia
toda uma rede, a qual gera uma sŽrie de dispositivos de apresenta•‹o, a exemplo da Fonte de
Duchamp. Ali‡s, como seu gesto ficaria para a posteridade sem matar toda a arte anterior?
N‹o existe aquela autoria no sentido da emana•‹o de um ser criativo. A autoria provŽm de uma
pluralidade de eus. Ela depende de uma multiplicidade de molduras. Acontece, na verdade, um
primeiro gesto minimizado. Mas, este precisa atingir uma sŽrie de enquadramentos para ent‹o
aceder verdadeiramente como obra na esfera da arte.

Dziga Vertov. Fotogramas: O Homem e a C‰mera (Chelovek Kinoapparatom). Rœssia, 1929

ƒ um gesto dentro de outro gesto, dentro de um terceiro gesto e assim


segue, como um telefone sem fio. Vertov coloca o cinema dentro do cinema. O in’cio do filme
mostra justamente a sala de cinema, suas portas se abrindo enquanto o pœblico entra para ver
163

a apresenta•‹o. No final, a platŽia contracena como se fora a pr—pria realidade da sala de


cinema. Ou seja, uma tentativa de aproximar o cotidiano ao campo representacional. Mas o
resultado Ž inevit‡vel - a representa•‹o dentro da pr—pria representa•‹o. ƒ o tempo de
representa•‹o dentro do tempo de representa•‹o, Ž uma janela dentro de outra janela.
Retornamos, nos parece, ao discurso de Magritte, ou seja, ao enquadramento da Condi•‹o
Humana. Num jogo circular entre a realidade e a esfera da representa•‹o. A mesma trama do
complexo autoral Ð um gesto dentro de muitos.

Ser‡ que Ž poss’vel romper esse processo circular? Ser‡ que conseguiremos
romper as barreiras entre o espa•o interior e o seu exterior? Ou continuaremos nos isolando
em castelos de vidro vendo o mundo apenas em imagens transmitidas pelas vitrininhas das
v’deo-cam•ras? Ser‡ que existe a possibilidade de uma identidade sem os enquadramentos
institucionais?

Richard Meier. A Nova Casa para Ara Pacis(sŽculo IX AC). Roma, 2006
164

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