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Expediente

#9
Direção
Fernando Martinho
fernando@leiacorner.com.br

Editor
Mauro Beting
maurobeting@leiacorner.com.br

Colaboradores
Carina Itaborahy
Clayton Fagundes
Fabio Felice
Felipe Rolim
Guilherme Jungstedt
Guilherme Mendes
Joshua Law
Luã Reis
Lucas Sposito
Matheus Steinmetz
Miguel Lourenço Pereira

Projeto gráfico
Éric Chinaglia
@eric.chinaglia

Capa
Fotografia: Fernando Martinho

Agradecimentos
especiais
Djalminha
e Ariel Palacios,

© Revista Corner Ltda.


www.leiacorner.com.br
info@leiacorner.com.br

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Corner #9

Editorial
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orner é canto. E no cantinho do editor não é só Como então fazer em Amsterdã? A capital sem derby.
levantar a bola para a área. Ainda mais neste Conheça as ovelhas negras do futebol holandês que dei-
canto privilegiado da imprensa esportiva que xaram a cidade do rio Amstel sem rival. Aproveite nossa
me convidou para editar. O que não é chefiar. viagem, desça até a Itália e, sob o sol da Toscana, conheça
É “escolher” na acepção do latim “Mister” básico do o guardião das grandes relíquias do Calcio.
ofício de jornalista. “Mister” com a última sílaba tônica.
Faça o nosso giro europeu e conquiste a Espanha como
Trabalhar com futebol é prazer de ofício.
o Super Depor, o rival impensável de Real e Barça, noa
Essa paixão que exerço há 29 anos por aprender a ler com anos 1990. Djalminha, filho da arte, elevou o Super Depor
revistas de futebol e aprender a história do jogo com o a “Euro Depor” com lambretas e outras confusões que
futebol de botão da minha infância que perdura. Se eu ele mesmo conta, sem camisa, do seu jeito, simples e
fosse menos velho talvez minhas horas em 2001/02 se- autêntico, na entrevista de capa.
riam com os saudosos Tó Madeira e Maxym Tsigalko do
Craque também daquele Palmeiras de 1996, uma aula de
inesquecível Championship Manager. Lendas que a gente
futebol da Academia 3.0, que foi eterno enquanto durou
traz de volta a campo aqui neste Corner #9 como a velha
um só semestre no Paulistão que, então, era tão forte que
canção [anterior ao meu tempo!]: “Love Potion #9”.
até o Flamengo de Romário quis jogar!
Temas de amor que parecem histórias de mentirinha como
Estadual onde Pelé marcou 467 gols pelo Santos dos 767
as de personagens que parecem reais como nossos heróis
oficiais “Dele”, numa carreira com 1.282 gols. Isso você
de CM. Realidades que parecem da “Copa do Mundo da
já sabe. Mas você conhece Josef Bican, o homem dos mais
Irlanda de 1968”. Você não conhece? Tudo que não acon-
de cinco mil gols?
teceu no futebol ocorreu na Copa do Mundo na Irlanda de
1968. Meu colega Marcon Beraldo criou esse inesquecível Prazer, Mauro Beting. Quem assina com prazer esta apre-
torneio para que todas as histórias do futebol pudessem sentação de uma edição feita por uma seleção que respei-
ter um local e uma data para que fossem menos lorotas. ta o esporte. Não é ser saudosista contar a melancólica
passagem de Garrincha pelo Olaria. É fato.
Até porque contra fatos existem argumentos no jogo.
Um país na Costa da Guiné formado por escravos libertos Quem vive de passado é quem tem história. Como o
e que teve um craque foi o melhor do mundo e acabou Atlético de Madrid, campeão mundial sem Champions!
presidente do país, parece até Sessão da Tarde. Mas é E o Figueirense campeão da Mercosul! Como assim?
tudo verdade na Libéria de George Weah.
Histórias que parecem de ficção e são coisa de cinema
Se você quiser também uma “turma da pesada que apronta como um time de uma fábrica de cimento na Argentina
mil confusões” — como se fosse chamada global pra que tirou a invencibilidade da poderosa União Soviética
sessão de cinema na telinha —, a gente tem a solução: do início dos anos 1980.
Beijoca! Artilheiro do Bahia da época de Sapatão que
Como o futebol e o narcotráfico bateram bola na Colômbia.
também jogou com Zico no Flamengo.
Corner não é bola parada. Nosso time levanta a poeira e dá
O canto do editor atira para todos os lados. Parece nome a volta lá pra cima mostrando o que este editor não tem
de espião. Mas é um cara de casa. O curioso caso de Matt a menor ideia do que seja: quem foi Lamar Hunt? Série
Le Tissier que não quis deixar o Southampton, nasceu na da Netflix? Não: é o nome da mais antiga competição dos
Ilha de Guernsey que fica quase na França, mas é “mais EUA: Lamar Hunt US Cup.
ou menos” da Inglaterra.
Para que serve essa Copa? Faça como eu. Leia. E faça
Entendeu? Não se preocupe. A gente está aqui para alternar como sempre devemos quando queremos entender a
o jogo. A gente vai e volta. Revive a atmosfera em torno inexplicável América Latina que tanto parece o nosso
do Boleyn Ground, numa fotorreportagem da antiga casa futebol: perguntemos a Ariel Palacios. O jornalista fala
do West Ham. sobre esse continente esquinado do planeta. Esse canto
esquecido. Essa pelota que se perde pela linha de fundo
Na fronteira entre os EUA e o México, o bicho pega e o
em escanteio. Corner pra gente!
futebol não foge à luta. No norte da África, a primavera
árabe tomou as arquibancadas no Egito. O futebol não Melhor: Corner pra vocês.
aliena. Ele faz a gente jogar junto. Ou minimiza as dife-
renças essenciais na vida em que, para que alguém ganhe,
é necessário que outro perca.

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Sumário

Championship Manager 2001/02


8 A edição mais admirada de um jogo e as inesquecíveis lendas do CM,
por Fernando Martinho & Miguel Lourenço Pereira

O curioso caso de Matt Le Tissier


16 Um gênio nascido em Guernsey,
por Joshua Law

Green Streer sem Hooligans


20 Memórias do Boleyn Ground,
por Fernando Martinho

Revolução nas arquibancadas do Egito


34 A Primavera Árabe e o futebol egípcio,
por Luã Reis

Ouro africano
38 As origens de um país e a trajetória de George Weah no futebol e na política,
por Clayton Fagundes

De Zwarte Schapen
44 As Ovelhas Negras e o derby perdido de Amsterdã,
por Fernando Martinho

La storia vivente del Calcio


52 A memória do futebol italiano em pessoa,
por Fabio Felice

Aqui jaz o homem de cinco mil gols


56 A história de Josef Bican: o maior artilheiro que o futebol já viu,
por Fernando Martinho & Lucas Sposito

Aquele Super Depor


60 A grande alternativa à hegemonia de Real e Barça surgiu na Galícia,
por Miguel Lourenço Pereira

Entrevista: Djalminha
64 Djalma Feitosa Dias como ele é,
por Mauro Beting, Fernando Martinho & Felipe Rolim

Foi eterno enquanto durou


84 O Palmeiras de 1996,
por Mauro Beting

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Corner #9

Quando o Flamengo quis jogar o Paulistão


Fla-Araçatuba e o campeonato Carioca do W.O.,
por Fernando Martinho
88
O derradeiro brilho da Estrela Solitária
A melancólica passagem de Mané Garincha pelo Olaria,
por Guilherme Lázaro Mendes
92
Entre tapas e beijos
A história de Beijoca,
por Clayton Fagundes
94
Copa Mercosul 1995
O título que [quase] ninguém viu,
por Fernando Martinho
96
A Intercontinental do Atlético de Madrid
O primeiro campeão mundial que não conquistou seu continente,
por Fernando Martinho
98
Loma Negra
A fábula do time de uma fábrica de cimento que venceu a URSS,
por Tauan Ambrosio
100
Entrevista: Ariel Palacios
por Fernando Martinho 104
El papelito
Jens Lehmann e o papelzinho que ficou entalado na garganta dos argentinos,
por Fernando Martinho & Miguel Lourenço Pereira
114
Plata o plomo
A relação entre o futebol e o narco-tráfico na Colômbia,
por Guilherme Jungstedt
118
Dorados y calientes
Os negócios e o caos na Baja California,
por Matheus Steinmetz
122
Lamar Hunt US Open Cup
A competição mais antiga dos Estados Unidos,
por Carina Itaborahy
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Championship
Manager
2001/02
Por Fernando Martinho
& Miguel Lourenço Pereira

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A edição mais admirada de um jogo que
forjou “treinadores” no mundo todo e
as inesquecíveis lendas do CM

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ada jogo de “Manager”, no qual você contrata Veio então o CM 2, em 1996 praticamente, que trazia uma
e vende jogadores, tiveram sua base de fãs complexidade de atributos ainda maior e bem superior a
e seu momento. O Championship Manager do Elifoot mas parecia ter ficado pequeno muito rápido
não chegou a ter um concorrente à sua altura diante da ambição da garotada que jogava seguidamente
embora houvesse outros jogos na época. O mais popular por horas e horas.
— e até precursor — foi o Elifoot. Tão simples que, por
A espera pelo CM 3 era enorme. Toda a ansiedade no jogo
isso, conseguiu ter tanta popularidade, a interface não
fez sentido quando aqueles adolescentes se depararam
permitia muito além de escalar, comprar e vender joga-
com uma interface revolucionária em comparação com
dores, mostrar resultados e classificações.
aquelas telas em 8bit, mas o jogo ainda estava concentrado
Justamente por isso, o Elifoot era pouco pra quem queria em textos. E esse era o grande gatilho.
mais além de “sair contratando e jogando” e sem esbar- Quando a EA Sports lançou o FIFA Soccer 1996 pra PC,
rar nas virtuoses dos jogos de futebol como FIFA Soccer com gráficos nunca antes vistos, seguido da edição 1997
ou International Super Star Soccer que invariavelmente e da inesquecível versão “Road to World Cup 1998” [que
tinham algum macete pra se conseguir um gol, o famoso tinha como trilha “Song 2”do Blur],a Sports Interactive
“gol apelão” que perdurou nos games de futebol. vinha com um jogo baseado em mensagens que pisca-
vam na tela quando havia um gol, cartão, enfim, o jogo
Além disso, por mais avançados que estivessem pra época,
era narrado lance a lance assim, e você era obrigado a
tanto o FIFA quanto o ISSS, tinham limitações gráficas
imaginar aquilo tudo.
que impediam muito realismo dos movimentos, a ima-
ginação era limitada pela tecnologia disponível. Por mais Essa experiência lúdica fazia o Championship Manager
que quando chegou o primeiro “Fifinha” — como ficou se parecer muito mais a um livro, enquanto a série “FIFA
conhecido depois — todo mundo tenha ficado perplexo e Soccer” buscava imitar a realidade como o cinema, além
soltado aquele: “nossa, é muito futebol”, bastava algum de exigir habilidades com os joysticks. Já o CM exigia
tempo pra se ter noção de que era um gráfico “16bit” atenção aos detalhes, aos números, às estatísticas e à
muito distante das verdadeiras imagens de TV de tubo história que se contava com o passar do tempo.
daqueles anos 1990, diferentemente do que viria acontecer
Um jogo de estratégia que chegou ao ápice desse equi-
nos anos 2010, com video-games renderizados em Full
líbrio entre imaginação e base de dados na sua edição
HD e posteriormente em 4k, os quais são “mais reais que
2001/02. Absolutamente tudo que existisse no futebol
a própria realidade.”
estava contemplado naquele jogo: Lei Bosman; pressão
E foi justamente nessa limitação tecnológica que surgiu de imprensa que fazia perguntas, as quais se você não
o Championship Manager. Lançado pela primeira vez em respondesse assertivamente, teriam um impacto nega-
1992 com times e jogadores fictícios, os desenvolvedores tivo no seu elenco; jogadores que brigavam entre si, se
do jogo se preocupavam muito mais com os atributos desentendiam com você e tinha que ser vendido, ou com
dos jogadores e com a simulação mais realista possível algum outro técnico em outro clube e era a oportunidade
à diferença do Elifoot que caía em um reducionismo de para comprá-lo; alguns atletas exigiam titularidade ou
forças básicas de jogadores e times. renegociar seus contratos; enfim, passou a existir uma
gestão de seres humanos virtuais. Os atributos psicoló-
Em 1993, o jogo abriu-se para o mundo real e passou a in- gicos começaram a pesar muito, tal como na vida real.
cluir jogadores e clubes reais, mas somente da Inglaterra.
A edição 2001/02 permitia uma sensação de que com pla-
Depois surgiu uma versão idêntica porém com a base de
nejamento, você pode pegar um time da segunda divisão
dados toda da Itália. Esse “Championship Manager 1”
de qualquer país e elevá-lo ao primeiro nível continental.
atingiu o coração de milhares — ou até milhões — de
O modesto estádio passava por reformas, as condições
adolescentes no mundo todo na incipiência da popula-
de treino evoluíam, tudo de acordo com a performance
rização dos PC’s nos lares de classe média.
desempenhada ao longo das temporadas.

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Championship Manager 2001/02

O jogo cresceu em escala global, os jogadores jovens


passaram a ganhar atenção especial, pois significavam O caso Tó Madeira
investimento a longo prazo que renderiam em campo
primeiro, à medida que iam evoluindo com o passar do
tempo e, depois, poderiam ser vendidos a peso de ouro
António Lopes é um desconhecido para a esmagadora
para grandes clubes. Essa estratégia era sinônimos de
maioria dos portugueses. Enquanto Tó Madeira chegou
sucesso. Mais valia apostar numa promessa do que tentar
a ser um ícone mundial. Ambos são a mesma pessoa,
trazer um reforço de peso, uma lógica que funcionou no
com dois denominadores comuns: a cidade de Gouveia e
mundo real algumas vezes.
o jogo Championship Manager. O caso Tó Madeira ainda
O desenvolvimento e o crescimento do jogo se deu de é um dos episódios mais comentados da história dos
forma que já não bastavam olheiros em vários países de games de futebol.
todo o mundo, muitos queria visualizar as jogadas e não
Apesar do futebol português viver então a sua idade de
mais imaginá-las, o detalhamento técnico, físico, mental
ouro com Figo e Rui Costa como protagonistas além de
e tático dos jogadores era tão vasto que um upgrade se
Simão Sabrosa surgindo, Portugal tornou-se um ni-
fez necessário para a indústria dos games.
cho de mercado habitual para os diversos “managers”
E isso levou à cisão do Championship Manager que passou em todo o mundo encontrarem jovens promessas para
a se chamar Football Manager, pois a produtora Sports desenvolver, havia um nome consensual aparecido do
Interactive se associou à SEGA para desenvolver e lançar nada: Tó Madeira.
o FM 2005, enquanto a distribuidora EIDOS lançou o
Atacante do Gouveia, clube que militava então a Terceira
Championship Manager 5. Embora a EIDOS tenha fica-
Divisão, Tó Madeira era uma verdadeira máquina de
do com o “naming”, a base de dados e tecnologia ficou
marcar gols. Na filosofia do jogo, onde os atributos dos
com a Sports Interactive e dali nascia a dinastia Football
jogadores — a esmagadora maioria fielmente represen-
Manager enquanto o Championship Manager, mesmo
tativos da sua performance real — ditam o seu valor e
com todo o prestígio do nome, percorreu um caminho
importância, não havia nenhum outro jogador que fizesse
fadado ao fracasso.
sombra ao desconhecido dianteiro. Nem Luís Figo, nem
Mas o jogo nunca mais foi o mesmo. Muitos dos que joga- Ronaldo, nem Zinedine Zidane, as máximas estrelas da
vam a edição 2001/02 — zero um zero dois — continuaram época. Tó Madeira era o jogador que todos queriam ter
a jogar as edições subseqüentes do Football Manager, mas na sua equipe, estivessem em Londres, Madrid, Lisboa,
houve quem resistisse ao avanço tecnológico e se apegasse Rio de Janeiro ou Shanghai.
ao CM 01/02 eternamente.
A popularidade inicial de Tó Madeira tornou-se num
Esse apego não se deu em edições anteriores ou pos- verdadeiro enigma para muitos. O sucesso da saga
teriores, havia uma magia naquela versão do jogo. O Championship Manager — que seguiu na variante Football
mais curioso é que além do equilíbrio entre imaginação Manager — passava sobretudo pela imensa verossimi-
e simulação de uma realidade embasada em atributos lhança entre os jogadores reais e virtuais. Historicamente
e variáveis, o que mais encantou nesse game foram jo- sempre tinham existido jogadores supervalorizados,
gadores que se converteram em verdadeiras lendas do especialmente jovens promessas que acabaram por não
futebol nos “saves” — como são chamados os jogos cumprir todas as expectativas, mas nunca tinha apare-
criados no CM. cido do nada um jogador com um potencial tão grande.

E nesse universo de lendas, algumas eram reais e outras A Sports Interactive, criadora do jogo, contactou a equipe
sequer existiam. Houve quem “hackeasse” a base de portuguesa de pesquisa para informar-se sobre este pro-
dados para entrar para a eternidade na realidade virtual dígio. Por essa altura já existiam clubes, especialmente
e também aqueles que por um erro de “scouting” se tor- britânicos, que utilizavam a base de dados do jogo para
naram os melhores de suas épocas, superando a Ronaldo, procurar jogadores para os seus plantéis e muitos con-
Zidane, Shevchenko ou qualquer outro jogador mítico do tactaram a produtora para saber informações sobre um
início dos anos 2000. Esse tipo de jogador fazia você criar jogador que ninguém parecia conhecer. O modelo da SI,
um vínculo maior com ele do que com jogadores reais e especialmente desde a sua expansão para o futebol con-
ficaram guardados na memória de quem vivia esse uni- tinental, passava por criar uma equipe de pesquisadores
verso paralelo tão real quanto os melhores livros de ficção. em cada país que apresentava anualmente um relatório
sobre todos os jogadores desse país, com os atributos e
Por isso e por muito mais, em 2008, o jogo foi disponibili-
classificações que ditavam o seu valor futuro no jogo.
zado para download gratuitamente, já que muitas pessoas
Começou então a procurar-se por quem descobriu Tó
ao redor do mundo ainda queriam continuar a jogar aquela
Madeira. É aí que entra em cena António Lopes.
versão e não as subseqüentes com mais recursos tecno-
lógicos, inclusive. Devido à particularidade do equilíbrio Depois de várias pesquisas, que incluíram telefonemas de
entre base de dados, jogabilidade e complexidade dentro vários pesquisadores portugueses para o próprio Clube
de uma interface, nasceu um fenômeno cultural único. Desportivo de Gouveia, a equipe de investigação da CM

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A edição mais admirada de um jogo que forjou técnicos de futebol no mundo todo e as inesquecíveis lendas do CM

Portugal descobriu que Tó Madeira era um nome fictício, Durante alguns anos vários clubes e técnicos procura-
criado pelo próprio investigador da zona, um estudante ram o nome de Maxim Tsigalko na realidade à procura
de engenharia civil, natural de Gouveia e a residir em da solução para os seus males. Nunca o encontraram. O
Coimbra. António Lopes tinha sido efetivamente jogador avançado apontou apenas 53 gols como profissional em
do clube, mas ficou pelos juvenis. Quando foi nomeado dez anos de carreira.
pela CM Portugal como pesquisador oficial das divisões
Mas como Tsigalko se tornou um mito? Na edição 2001/02,
secundárias, na zona centro de Portugal, decidiu fintar
os “técnicos” encontraram na base de dados uma pérola
o destino e criar o espelho do jogador que ele gostaria de
de marcar gols.
ter sido. E assim nasceu Tó Madeira.
Um jovem de 19 anos que despontava nas camadas jovens
Mas não só. Lopes criou igualmente perfis falsos para
do Dynamo Minsk e que parecia ter capacidades gole-
amigos seus de escola, como os irmãos Peralta, que tam-
adoras reservadas para os predestinados. Jogasse onde
bém apresentavam dados de jogadores de primeiro nível
jogasse, Tsigalko era garantia de gols, muitos gols. O
mundial. Naturalmente António Lopes acabou por ser
seu baixo preço permitia aqueles que utilizavam clubes
desmascarado, despedido pela SI e a distribuidora Eidos
humildes bater-se de igual com os tubarões do futebol
considerou em lançar uma nova versão à venda nas lojas
europeu. E, ao contrário do que sucedia com Tó Madeira,
sem o célebre Tó Madeira na base de dados.
desta vez os jogadores podiam pesquisar no google e
Mas o jogador tinha atingido já condição de mito e tor- encontrar um rosto a ser reconhecido no futuro.
nou-se num dos exemplares mais vendidos da história
Numa altura em que a popularidade do jogo começava a
do jogo e poucos são os que abdicaram de ter o avançado
alcançar dimensões de culto, o nome rapidamente pas-
português no seu time.
sou do anonimato das telas de computador para espaços
Tó Madeira tornou-se um símbolo e ainda há muitos midiáticos. Os treinadores e dirigentes que consultavam o
nostálgicos que utilizam o editor do jogo para recriá-lo, jogo e a base de dados originais, cientes de que os valores
edição atrás de edição. A internet está repleta de artigos da esmagadora maioria dos jogadores desconhecidos
sobre este avançado fictício, capaz de apontar mais de 50 dentro do jogo se aproximavam bastante à realidade,
gols por temporada. Uma espécie de Cristiano Ronaldo começaram a interessar-se pelo jogador. Alheio a tudo
surgiu em uma brincadeira de um jovem universitário, isto, Tsigalko continuava a marcar gols pela equipe júnior
mas acabou por se tornar num dos mais célebres jogadores do Dynamo Minsk.
da história do futebol virtual.

Maxim Tsigalko:
o goleador fantasma
Poucas vezes a realidade e ficção se confundiram de forma
tão evidente. Maxim Tsigalko é um mito como goleador
no mundo virtual. A realidade foi bem diferente. O avan-
çado bielorrusso é a prova de que nem sempre os mundos
alternativos se assemelham ao dia a dia. Herói da saga
Championship Manager, os seus dotes como goleador na
vida real foram apenas suspiros de uma lenda perdida.

Se Tó Madeira era produto da mais pura ficção, a fábula


de Maxim Tsigalko é totalmente distinta.

A história de sucesso virtual do dianteiro bielorrusso


deve-se apenas e só a um erro de julgamento de um ob-
servador que acreditou ter visto nele o grande avançado
da década seguinte. O seu engano não foi voluntário. Como
tantas vezes acontece, um jogador que muito prometia,
por mil e um motivos, perde-se pelo caminho. Mas foi
sem dúvida o erro com maior repercussão mediática
porque acabou plasmado num jogo de estratégia e gestão
desportiva que prima pela quase infalível base de dados
que é estudada e revista de forma minuciosa.

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Championship Manager 2001/02

O seu treinador seguramente não jogava Championship futebolista capaz de marcar uma era, vencer Champions
Manager porque só um ano depois o começou a convocar Leagues com clubes de segundo nível e de vencer, ano sim
de forma regular para o time principal. Nos cinco anos ano também, os mais prestigiosos prêmios individuais
seguintes, em 53 jogos, o avançado apontou 24 gols. Na internacionais, leia-se: Ballon D´Or.
realidade não tinha passado de uma promessa, como
Se os sonhos virtuais tivessem sentido, Tonton Zola
tantas outras, do futebol bielorrusso. No espaço virtual,
Moukoko estaria para o futebol africano como Nelson
era uma figura de contornos mitológicos.
Mandela está para os seus políticos. Um exemplo único
As suas estatísticas eram resultado do trabalho de pes- e absolutamente inimitável. Mas a realidade é, habi-
quisa do observador da produtora Sports Interactive tualmente, mais dura que a ficção. Não houve finais de
no Leste da Europa. Mais tarde soube-se que o olheiro Champions League, não houve prêmios individuais e não
tinha estado presente em três jogos de Tsigalko com os houve sequer essa odiosa comparação com os heróis do
juniores do Dynamo Minsk e um pela seleção de sub-19 passado. O maior futebolista africano de todos os tem-
do país. Foram quatro jogos inesquecíveis do atacante pos nunca esteve perto de ser o homem que previram.
que convenceram o observador que ali estava o material Enganaram-se tanto sobre o futuro de Zola Moukoko
para o sucessor do então popular dianteiro ucraniano: que acabaram por fazer dela uma estrela involuntária
Andrey Shevchenko. dos nossos tempos.

O risco de tomar a parte pelo todo tornou-se claro. Os Claro que a história de Zola Moukoko é um sinal dos
jogos não foram o reflexo real do valor imaginário de tempos, uma era onde o virtual ganha cada vez mais
Tsigalko e à medida que a realidade ultrapassou a lenda, importância na vida quotidiana.
os seus registos ficaram às claras. Na edição seguinte do
Aliás, apesar de ser fisicamente um exemplo do fute-
jogo Tsigalko ainda estava na base de dados mas os seus
bolista do continente negro, como tantos emigrantes,
valores tinham sido aproximados à realidade. Mesmo
Moukoko viveu muito pouco na sua terra natal. Aos sete
assim vários jogadores procuravam comprá-lo e sonhar
anos seguiu com a família para a Suécia onde cresceu e
reeditar velhas glórias. E vários clubes europeus conti-
viveu a maioria da sua etapa como jogador profissional.
nuaram a perguntar por ele. De tal forma que em 2004 o
Ao contrário de outros casos midiáticos, como Tó Madeira
dianteiro chegou à Portugal para assinar pelo Marítimo da
ou Maxim Tsigalko, o atacante formado nas escolas do
Ilha da Madeira, treinado por Manuel Cajuda, reconhecido
Djurgårdens era visto por uma larga maioria de obser-
por utilizar o CM como fonte para as suas contratações.
vadores de futebol nórdico como uma imensa promessa.
A odisseia de Tsigalko começou antes de chegar à Ilha
Tinha talento, tinha conceitos tácticos assimilados a uma
da Madeira. O atacante teve problemas em sair do país,
idade bastante precoce e parecia ter também o funda-
com um visto caducado, e nos primeiros treinos deixou
mental: a cabeça no lugar para enfrentar as exigências
evidente que a realidade era bem mais crua do que os
do futebol profissional. Em 1998, quando completou 15
dirigentes insulares imaginavam. Uma oportuna lesão
anos, foi-lhe outorgada a nacionalidade sueca e no dia
foi o pretexto ideal para o Marítimo devolver Tsigalko
seguinte foi convocado pelo treinador do time sub-16 do
ao futebol bielorrusso de onde não voltou a sair até ter
país. A sua popularidade era tal que Moukoko foi convi-
terminado a carreira, com apenas 28 anos, para se dedicar
dado a treinar com vários clubes italianos no verão de
a vender janelas em Minsk. Um destino bem distinto da-
1999. Acabou por preferir viajar até Inglaterra e assinou
quele que os que o utilizaram para conquistar Champions
pelo Derby County. Começou a chamar atenção no sub-
League consecutivas com clubes tão anônimos seriam
19 do clube a tal ponto que muitos viam nele o sucessor
capazes de imaginar. Para eles a lenda continua a valer
de Henrik Larsson, então uma das grandes estrelas do
mais do que a realidade e Tsigalko é um dos mitos virtuais
futebol sueco e também de ascendência africana.
que o futebol real não soube entender.
Foi rodeado de todo esse ruído midiático que saiu, em
2001, a nova versão do popular jogo Championship
Manager. Naturalmente a equipe de olheiros contrata-
da pela Sports Interactive seguiu o jogador durante o seu
Tonton Zola Moukoko: primeiro ano em Inglaterra e pareceu chegar à conclusão
de que o potencial para ser uma estrela mundial era real.
o melhor jogador africano Não era um relatório de um observador do leste-euro-
peu como Tsygalko nem uma invenção de um estudante
português como Tó Madeira. Era algo fácil de observar,
O que seria da história do futebol africano se todos os so-
semanalmente, por quem geria o jogo. E automaticamente
nhos virtuais se tornassem realidade. Hoje, talvez, em vez
Zola Moukoko tornou-se uma estrela do jogo.
do mundo discutir os méritos de Lionel Messi ou Cristiano
Ronaldo, falariam do gênio superlativo de um futebolista Na edição 2001/02 desse jogo surgiu como uma referência
que redefiniu a natureza do jogador africano. Melhor mundial. Começava com 17 anos a temporada e em três
do que Weah, melhor até mesmo do que Eusébio. Um anos já se emparelhava com os melhores do mundo tanto

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A edição mais admirada de um jogo que forjou técnicos de futebol no mundo todo e as inesquecíveis lendas do CM

em gols como em valor monetário. Estivesse o jogador peso antes de ser, realmente, um jogador de excelência,
no Brasil, na Coreia do Sul, no Canadá ou em Portugal, fosse a melhor forma de o condenar a um final precipi-
o resultado era o mesmo. Comprar o atacante do Derby tado e angustioso.
era comprar um passaporte para a fama.

O seu caso acabou por ser o outro lado do espelho da


realidade virtual dos jogos de simulação. Zola Moukoko
podia ter sido tudo aquilo que os gestores da saga acre-
ditavam que ia ser. Mas não foi. Cherno Samba: do
A pressão, talvez, tornou-se no seu pior inimigo. Quando Liverpool à depressão
era ainda um adolescente, ao atuar pelo time de reservas
do Derby, as bancadas do Baseball Ground enchiam-se de
O jogador com nome amigável para brasileiros é, na ver-
com cartazes da sua imensa legião de admiradores. Nos
dade, oriundo de Gâmbia, mas se mudou pra Inglaterra
princípios da era global da internet, o seu nome tornou-se
quando tinha seis anos. Filho de um ex-goleiro da seleção
popular nos motores de busca e em fóruns. Tudo isso
de sua terra natal, o futebol era algo natural pro menino
sem que o sueco tivesse sequer feito o seu primeiro jogo
que aos 15 anos já ganhou status de potencial craque
oficial com os Rams. A situação tornou-se descontrolada.
quando jogava pelo Millwall, graças ao Championship
Começaram a surgir rumores de problemas pessoais, de
Manager.
vícios incontroláveis, de uma profunda incapacidade do
jovem em lidar com uma realidade que o ultrapassava. Muito parecido ao caso de Tonton Zola Moukoko, o brilho
precoce fez muito mal ao jovem atleta anglo-africano.
O Derby contratou um psicólogo para acompanhá-lo,
Manchester United e Liverpool se interessaram no jogador
tentou focá-lo nos estudos e pediu ajuda à família que
e os Reds tomaram a frente da disputa.
voou até à cidade para se hospedar com o jogador numa
casa do clube. Nada disso pareceu funcionar. Sem ter feito Depois do clube levar o menino para fazer um tour em
um só encontro como profissional, Moukoko partiu de Melwood, Michael Owen ligou para o jogador, que es-
Inglaterra envolto numa aura de mistério. Enquanto isso, tava num ônibus com amigos, e ao tentar pedir silêncio
o seu alter-ego virtual, preenchia os sonhos da maioria disse que estava falando com Michael Owen no telefone.
dos adolescentes do Mundo. Ninguém acreditou. Ele colocou no viva-voz e imediata-
mente todos ficaram mudos. Owen disse que seria ótimo
A partir desse momento a carreira de Moukoko caiu em
que ele fosse pro Liverpool logo. Cherno Samba mal con-
pedaços. Ou talvez seja melhor dizer que nunca começou
seguia respirar: “está acontecendo!”
realmente. O jogador voltou primeiro à Suécia, fez testes
no futebol escocês, mas tudo sem sucesso. Com 20 anos, O sucesso precoce fez ele dar um pequeno passo em falso
ainda com tempo para provar o seu real valor, assinou que mudaria o curso das águas. Ele foi fotografado usando
com o Carlstad, um clube da segunda divisão sueca com um agasalho do Liverpool na sua visita às instalações do
ligações com o técnico Sven-Goren Eriksson. Seria como clube quando o negócio ainda não havia sido concreti-
começar do zero. zado. Os Reds fizeram uma proposta, porém o Millwall
endureceu a negociação. Segundo Samba, o Liverpool
Mesmo com toda a evolução midiática do jogo
ofereceu £ 2 milhões, sendo £ 1 milhão antecipado, mas
Championship Manager, nos anos seguintes outros “Zola
seu clube queria a quantia integral. O negócio melou.
Moukoko” aparecia nas suas sucessivas bases de dados,
e por algum motivo concreto, o seu valor continuava em “Meu mundo ruiu”, disse Cherno em entrevista ao The
alta e havia sempre quem acreditasse que, tarde ou cedo, Guardian. Ele ficou seis meses sem jogar. Frustrado por
o seu talento iria explodir. Isso nunca sucedeu. não ter feito a transferência dos seus sonhos, ele quis
abandonar o futebol. Antes dos 17 anos, ele acabou retor-
Passagens por outros clubes secundários do futebol sueco
nando ao Millwall, mas algo estava quebrado. As expec-
levaram-no à liga da Finlândia. Nunca voltou a represen-
tativas no jogador eram altas e ele chegou a ver o que ele
tar o selecionado sueco, nunca foi chamado pelo Congo
poderia ter sido justamente no Championship Manager,
para jogar pela terra dos seus pais e nunca mais voltou
onde se tornaria uma lenda. Mas na vida real, o caminho
a ser notícia. O esquecimento seria o seu destino se não
foi oposto: depressão.
fosse a popularidade imensa de um jogo que se tornou em
objeto de culto dentro de uma saga extremamente popular. “O futebol estava me enterrando vivo. Eu não consigo
mais lidar com isso. Quero dormir, esquecer tudo e nunca
Zola Moukoko continua a ser um dos exemplos mais crus
mais acordar.”, disse Samba. No Millwall, ele sentiu que
de como a expectativa em volta de um jogador juvenil
não havia mais ambiente, que as pessoas olhavam torto
pode condicionar o seu futuro como futebolista. Ninguém
pra ele, pois sentiram que ele tentou foder o clube.
pode dizer que aqueles que previram o seu futuro como
maior futebolista africano da história estavam errados. Em 2004, ele foi para o Cádiz da Espanha. E foi onde tudo
Mas também nunca ninguém pensou que viver com esse veio à tona. Sozinho, não conseguiu retomar os trilhos e

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Championship Manager 2001/02

se afundou numa crise psicológica. Ele roubava analgési- O excelente material nem consegue passar a mensagem
cos no clube. Depois de mais ou menos quatro semanas, de um conteúdo de Relações Públicas, por mais que tente
ele tomou uma enorme quantidade de remédios e caiu em algum momento se vender como produto, afinal o
desmaiado. Graças a um companheiro de clube que dava Football Manager pode ser considerado que já deixou
carona pra ele diariamente, ao perceber que Samba não de ser só um jogo.
estava no local e hora combinados, resolveu ligar e ao não
Vários relatos que viraram Stand-Up comedy, como os
atender, percebendo que algo estava errado, decidiu ir
de Tony Jameson que conta para o público geral e para
atrás do menino, então com 19 anos, e teve de arrombar
fanáticos do jogo coisas que são tão banais para os fãs
a porta pra entrar em seu apartamento onde o encontrou
e absurdas para quem nunca jogou. “É uma alucinação,
desfalecido. Samba foi levado ao hospital urgentemente
uma idiotice e uma obsessão de um cara já deveria ter
e conseguiu escapar da morte.
maturidade mas que claramente não tem”, diz Jameson
Samba disse que acreditava que nunca teria depressão, que desde um ângulo externo ou de uma maneira mais inter-
nunca aconteceria com ele: “Mas você nunca sabe o que na ao jogo: “vocês já tentaram explicar pra alguém que
é, até acontecer contigo”. Depois de recuperar consciên- nunca jogou, que é um jogo de computador que você é um
cia, Cherno Samba disse que precisou fugir pra Espanha técnico de futebol”, tudo fica muito ridículo.
depois de fracassar na Inglaterra, mas que aquele não
O documentário dá diferentes visões, desde um aspecto
era ele, que precisava sair daquela: “o acordo frustrado
religioso do jogo, passando por entretenimento, ou seja,
com o Liverpool estava constantemente na minha cabeça,
um lazer no tempo livre, até declarações como a do cantor
foram tempos sombrios e ter ficado sozinho não ajudou,
escocês Paolo Nutini de que se tratava de um escapismo.
tudo saiu do meu controle.”
O Championship Manager ou sua variação moderna, o
Sua carreira nunca mais foi trilhada como se imaginava
Football Manager, de fato tem uma capacidade de abs-
nos “saves” de Championship Manager, o jogador jamais
tração da realidade como poucos jogos têm ou tiveram.
atingiu o nível esperado e se aposentou dos gramados aos
Uma imersão que somente os melhores livros conseguem
30 anos em 2015 depois de passagens por diversos clubes
dar, mas com uma diferença: os livros acabam um dia.
da Inglaterra, Finlândia, Grécia e Noruega.
No CM — ou no FM —, não. Você sempre está a alguns
Após deixar os campos, Samba fez curso de treinador e cliques da glória.
conseguiu a Licença B da UEFA. A “lenda do Championship
O documentário mostra muito bem todos os aspectos,
Manager”, como ele mesmo se auto-intitula na sua conta
passando por jogadores que nunca conseguiram se tor-
no Twitter, lançou um livro em 2018. Ele diz que teve muita
nar tudo aquilo que o jogo previu, até outros futebolistas
raiva, ansiedade e dor e que o livro ajudou a colocar pra
que jogavam CM no tempo livre nas concentrações ou
fora definitivamente. Ele só tinha contado da overdose
nas viagens, que muitas vezes compravam a si mesmos
pra amigos e familiares um ano antes da publicação de sua
e às vezes se viram obrigados a venderem suas próprias
biografia: “eu não estava aliviado até finalizar o livro.”
versões virtuais por preços inferiores aos que pagaram
Samba não guarda nenhuma mágoa do jogo, diz que ado- por terem se decepcionado com os seus rendimentos.
rava o Championship Manager: “Eu amava e era parte de Algo como “Quero ser John Malkovich”.
mim, que rendeu tantas histórias. Era só um jogo, você
E o fenômeno transcende gerações. São vários os casos
precisa ter a sua própria mentalidade.”
de jogadores de diferentes épocas que jogaram o CM ou o
FM, desde os tempos de Ole Gunnar Solskjær ou Demetrio
Albertini que aparecem no documentário. O norueguês
relata, inclusive, que aprendeu muito com o jogo para
se tornar técnico e que usava muito ainda nos tempos
Documentário de jogador do Manchester United.

Os relatos de vestir um terno pra jogar a final da


Em 2014, a Sports Interactive lançou o documentário Champions League foram freqüentes no filme, e o curioso
“Football Manager: An Alternative Reality” contando a é justamente isso: quem é fã do jogo não se surpreende.
evolução do jogo. Toda a trajetória da saga desde cartas Nem quando um dos “viciados” diz que o vizinho chamou
enviadas à empresas de video-games e foram recusadas a polícia pois achava que ele estava sendo assaltado ou
como a EA Sports recusou, dizendo “essa idéia nunca agredido em casa chegou a surpreender. São loucuras
vai fazer sucesso”, até as edições dos anos 2010, já sob recorrentes na vida de quem joga essa realidade virtual
o novo nome “Football Manager”, nas quais a Prozone, tão simples, sobretudo aquelas que você devia imaginar
empresa de estatística se associou para expandir a base tudo através de mensagens de texto que piscavam no
de dados e o conhecimento de informações completas centro da tela. Mouses, teclados e até monitores eram
em todo o mundo, oferecendo aos clubes um serviço de vítimas freqüentes de dias de fúria com derrotas inex-
monitoramento de mercado amplo e detalhado. O doc plicáveis em jogos que bastava um empate para uma
está disponível no YouTube. classificação ou título.

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A edição mais admirada de um jogo que forjou técnicos de futebol no mundo todo e as inesquecíveis lendas do CM

A edição 2001/02 ficou marcada por vários jogadores controversa, liderada por Peter Winkelman, de realocar
como Tó Madeira, Maxim Tsigalko, Adrian Mihalcea, o clube para a cidade de Milton Keynes, a 90 quilômetros
Julius Aghahowa, Cherno Samba, Mark Kerr, Kennedy da sua sede. Os torcedores se rebelaram, obviamente, e
Bakircioglü e outros. Esses jogadores desenvolveram um começou ali uma disputa pelo verdadeiro Wimbledon.
vínculo afetivo muito maior com quem jogava do que as
Em 2002, porém, surgiu uma idéia de se refundar o clube.
grandes estrelas reais. Talvez, a sensação de ter sido quem
A nova agremiação seria controlada pelos torcedores,
enxergou um Messi, faça de quem jogava Championship
mas a iniciativa previa recomeçar tudo do zero. A Football
Manager com um desses jogadores alguém privilegiado,
Association autorizou a mudança do FC Wimbledon para
uma espécie de Celso Garcia, que ficou eternizado como
Milton Keynes com seu lugar na liga que disputava, a
“o homem que levou Zico para o Flamengo”, e estabeleça
segunda divisão. O clube permaneceu com o nome ori-
essa ligação inabalável com essas lendas virtuais.
ginal até a temporada 2003/04, quando foi à falência
No Brasil e em todo o mundo, há diversas comunidades, e logo em seguida adquirido por um consórcio do qual
sejam grupos de Facebook ou perfis no Twitter dedicados Peter Winkelman fazia parte. O clube foi rebatizado como
ao velho CM 01/02. A cada ano lançam diferentes edições Milton Keynes Dons FC.
atualizadas do jogo que encontrou, sem querer, dentro
Mas os torcedores rebeldes, liderados por Ivor Heller, não
da limitação tecnológica da época, um equilíbrio perfeito
imaginavam que seus sonhos seriam realizados justa-
entre a ilusão e a simulação. No fracasso ou na glória,
mente por um jogo de fantasias. Afinal, o Championship
tudo era tão real.
Manager é um “Fantasy Game”. Ivor entrou em contato
com a Sports Interactive que dias após o primeiro contato
se tornou patrocinadora e viabilizou a existência do novo
clube, o AFC Wimbledon.

A salvação do Antes de iniciar a primeira competição oficial, o primei-


ro uniforme usado era fabricado pela Umbro, parceira
“verdadeiro Wimbledon” comercial da Sports Interactive na época, tanto a mar-
ca da produtora quanto a logo de seu principal jogo, o
Championship Manager, apareciam na parte frontal da
camisa se tornando um item de coleção para quem ama
CM. Porém esta indumentária era utilizada pelo time de
pelada de funcionários da empresa! Por isso não havia
sequer o escudo do Wimbledon na camisa.

Muitos anos se passaram, o novo Wimbledon subiu os


vários degraus desde o nível zero do futebol inglês e sem-
pre entrou em campo estampando a marca da Sports
Interactive — e mais adiante estampou o nome do novo
game: “Football Manager”. A escalada se deu até que
chegou a vez de enfrentar o Milton Keynes. É difícil dizer
quem são os dissidentes, mas ambos tinham a mesma
origem que foi quebrada com a mudança de endereço
forçada pela diretoria da época.

A primeira vez que o acaso os colocou frente a frente foi


dez anos após a cisão. Em 2012, os clubes se cruzaram
na segunda fase da FA Cup com vitória do Milton Keynes
por 2 a 1. Em agosto de 2014, novamente pela Copa da
Inglaterra, outra vitória do MK Dons, mas em outubro
do mesmo ano, dessa vez pela Copa da Liga Inglesa, os
times voltaram a duelar e, dessa vez, o AFC Wimbledon
venceu pela primeira vez o inusitado rival.

No início dos anos 2000, o futebol inglês viveu um el- Desde então os clubes voltaram a se enfrentar em ins-
dorado de investimentos privados no futebol. Várias tâncias de copas, até que, em 2016, após várias promo-
aquisições de clubes por magnatas ou aventureiros que ções desde as divisões mais baixas do futebol inglês, os
se respaldavam nos direitos de transmissão negociados “dois Wimbledons” se encontraram na League One, a
a valores cada vez maiores desde o início da Premier terceirona da Inglaterra, formando uma rivalidade que
League em 1992. só foi possível graças a amantes e criadores de um jogo,
capaz de realizar sonhos no universo virtual e também
O Wimbledon FC, fundado em 1889, tomou uma decisão no mundo real. Afinal, o que é a realidade?

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O curioso
caso de
Matt Le Tissier

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O deus nascido em Guernsey

Por Joshua Law

S
ucesso no futebol normalmente é medido em tro- Le Tissier nasceu em outubro de 1968, na ilha de Guernsey,
féus, glórias, gols marcados em jogos importantes uma das Ilhas do Canal da Mancha, que ficam no trecho
e muitas partidas pela seleção do seu país. Mas se de mar entre Inglaterra e França. Guernsey, como Jersey,
um jogador não alcançar tudo isso, ainda se pode falar a outra grande ilha do arquipélago, é uma dependência da
que sua carreira foi um grande êxito? Pode-se dizer que Coroa Britânica mas oficialmente não faz parte do Reino
foi um dos melhores que se viu jogar? Para muita gente Unido nem da União Europeia.
na Inglaterra isso aconteceu no caso de Matt Le Tissier.
Essa condição dá à ilha a segurança de ser protegida in-
Le Tissier foi um jogador talentosíssimo, mas só jogou ternacionalmente pelo Reino Unido enquanto ela tem a
no Southampton, um clube modesto da pequena cidade liberdade de fazer suas próprias leis e, significativamente,
de mesmo nome no litoral sul da Inglaterra, e nunca ne- decidir os níveis de impostos. Guernsey é livre de impos-
nhuma taça sequer. Só fez tos comerciais e tem taxas
oito partidas pela seleção baixas de outros tributos,
inglesa, sendo titular em o que transforma o lugar
duas, nunca foi para um em um paraíso fiscal.
Mundial ou Eurocopa.
O nome da ilha está numa
Mas pergunte a alguém lista da UE dos países in-
que viu Le Tissier jogando fratores, que não estão
e todos vão falar a mesma em conformidade com as
coisa: que ele era incrível, normas internacionais
um fenômeno, um jogador de transparência fiscal.
que podia fazer tudo que Guernsey também se
quisesse com a bola nos destacou recentemente
pés. Ele trazia uma ale- quando seu nome apare-
gria para o campo e dei- ceu com alta frequência
xou muitas pessoas, principalmente os torcedores do nos “Panama Papers”, documentos revelados pelo The
Southampton, com muitas memórias maravilhosas de Guardian mostrando como milhares de pessoas poderosas
lances sensacionais e momentos inesquecíveis. de vários países evitam impostos.

Ele mesmo falou, em uma entrevista dada ao The Guardian, Além de albergar dinheiro sujo de parte da elite econô-
que considera sua carreira um sucesso: “Quando eu era mica mundial, Guernsey é um lugar sossegado, calmo, e
criança eu tinha duas ambições na vida: uma era ser jo- sereno, e Le Tissier acha que ser criado nesse ambiente
gador profissional, e a outra era jogar pela Inglaterra. E lhe deu uma certa tranquilidade que ele carregou por
com 25 anos de idade eu fiz as duas.” toda sua carreira.

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O curioso caso de Matt Le Tissier

O Farol de Castle Breakwater, em Saint Peter Port,


cidade natal de Matthew Le Tissier, em Guernsey.
(Foto: Paul Robinson)

Guernsey não é um celeiro de futebolistas. Ele foi a pri- Na temporada 1989/90, os Saints chegaram a fazer sua
meira pessoa da ilha a vestir a camisa branca da seleção melhor campanha durante a passagem do jogador pelo
inglesa do futebol e isso é uma fonte de muito orgulho clube, ficando em sétimo lugar na classificação final.
para o Le Tissier e a sua família. Com o quarteto de atacantes: Paul Rideout, Le Tissier,
Alan Shearer e Rodney Wallace — não aquele do Sport, o
Começou a jogar com os três irmãos num campinho na
original —, o Southampton marcou 71 gols na temporada,
frente da casa do seus pais, e junto com seu irmão mais
o segundo maior número de qualquer time na primeira
velho, Carl, se destacou jogando pelo time da sua escola.
divisão, só atrás do campeão Liverpool.
Carl foi convidado a mudar-se para Southampton e jogar
com os times de base do clube, mas infelizmente não Le Tissier marcou 20 vezes em 35 jogos e foi votado pelos
aguentava ficar longe dos pais e amigos e voltou para a seus colegas o “PFA Young Player of the Year”, o prêmio
ilha um ano depois. dado ao melhor jovem jogador do ano.

Carl contou tudo sobre a vida lá para Matt e, seguindo As campanhas seguinte foram mais difíceis para o clube
o técnico da época, Chris Nicoll, isso preparou o irmão e jogador. Um novo técnico chegou e Le Tissier teve que
mais novo para a sua mudança bem sucedida para o clube, jogar no lado direito, uma posição que não gostava. Mas
pra onde ele foi com 16 anos. A base do Southampton é ainda assim foi se destacando, e, nesses anos, marcou
considerada uma das mais produtivas do país e formou uns do seus gols mais espetaculares.
vários jogadores ingleses de alta qualidade como Alan
Agora todos os jogadores de todos os cantos do mundo
Shearer, Theo Walcott, Adam Lallana e Alex Oxlade-
têm um vídeo do seus melhores momentos no YouTube,
Chamberlain, todos jogadores de seleção inglesa, além
mas existem poucos clipes mais bonitos do que o de Le
do próprio Gareth Bale, grande craque galês, que venceu
Tissier. Os gols mais lembrados são três. Dois marcados
Ligas dos Campeões da Europa com o Real Madrid.
na mesma partida contra o Newcastle, e um outro, contra
Durante sua primeira temporada no seu novo ambiente, o Blackburn.
Le Tissier marcou 59 gols pelo time de base e, logo na
O primeiro gol no jogo contra Newcastle foi o momento
sequência, lhe foi dada a primeira oportunidade como
que se anunciou seu nome internacionalmente. Foi um
titular, jogando bem numa partida contra o Tottenham
dos poucos jogos do Southampton transmitidos pelo
Hotspur. Depois disso, ele foi se estabelecendo como
canal recém formado Sky Sports e seu talento estava lá
membro insubstituível do time.
para todo mudo ver.

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Um gênio nascido em Guernsey

Ele recebeu a bola a 35 metros da meta e dominou com Numa partida pela Inglaterra B, pouco tempo antes da
o calcanhar, aí tocou a bola para um lado do zagueiro e Copa do Mundo de 1998, ele marcou um hat-trick num
correu para o outro, chegando no limite da grande área. jogo amistoso contra Rússia B. Le Tissier acha que essa
Com a bola ainda quicando, Le Tissier deu um chapéu foi a melhor oportunidade de ir a um torneio interna-
no outro zagueiro e, cara a cara com o goleiro, mostrou cional, mas o Glenn Hoddle, então técnico da seleção,
toda aquele tranquilidade que aprendeu na ilha aonde foi não o convocou.
criado, colocando a bola na bochecha da rede.
Le God vê isso como o começo do fim do seu tempo jo-
É considerado o seu melhor gol por muitos comentaristas gando profissionalmente. Teve um efeito psicológico
e fãs, mas Le Tissier não concorda. Ele é um perfeccio- muito profundo no jogador e ele nunca mais recuperou
nista assumido e acha que, na finalização, ele tocou na o nível técnico que tinha chegado antes. Ele foi se ma-
bola com a sola da chuteira. Não era exatamente como chucando muito e cada temporada posterior, jogando
ele queria. Ele prefere o gol contra Blackburn, quando ele menos e menos vezes.
colocou a bola no ângulo a 30 metros de distância depois
Mas ainda sobrou tempo para mais um momento especial.
de driblar um jogador duas vezes.
A última partida do Southampton no seu velho estádio,
Foram lances assim que o fez ganhar o apelido de ‘Le God’ chamado The Dell, antes da mudança para o moderno St.
dos torcedores do Southampton, e era exatamente isso Mary’s Stadium, foi contra o Arsenal no dia 19 de maio
que ele sempre quis fazer. Claro que ele gostava de ganhar, de 2001, no último dia da temporada.
como todos os atletas profissionais, e mais do que isso,
Le Tissier não tinha jogado muito naquele ano por causa
ele gostava de se divertir em campo e alegrar a torcida
de várias lesões, e não tinha marcado nenhum gol na
como relatou a documentário de Sky Sports de 2015:
Premier League, mas o Técnico Stuart Gray lhe prometeu
que ele entraria em campo nos últimos minutos por tudo
que o jogador — eleitor em 2012 o melhor da história do
“Eu queria entreter as pessoas Southampton — tinha feito pelo clube.
e colocar um sorriso nos rostos Ele entrou com o jogo empatado em 2 a 2. O Southampton
delas, e colocando a bola no foi para cima com uma bola longa do goleiro. Ela sobrou
para Le Tissier e ele não errou; com o pé esquerdo, virou
ângulo a 25 metros de distância e colocou a bola bem no cantinho, fora do alcance do Alex
era um bom jeito de fazer isso.” Manninger. Os Saints conseguiram segurar a vantagem
e a vitória foi um momento emocionante para o jogador
que estava com a carreira chegando bem perto do fim.
O celebrado gol contra Blackburn veio durante seu período
Le God pendurou as chuteiras em 2002 com 209 gols
mais produtivo, quando marcou 45 gols em 64 partidas,
marcados em 541 partidas, além de muitas assistências
jogando no meio-campo. O técnico Alan Ball levou o time
dadas para os seus colegas. Uma de suas estatísticas mais
à décima colocação na liga em 1994/95, e Le Tissier con-
notáveis é que ele marcou 47 dos 48 pênaltis batidos.
sidera essa a segunda melhor campanha da sua carreira,
Ninguém na história tem um aproveitamento melhor
um pouquinho atrás daquela de 1989/90.
e isso mostra aquela calma e frieza que sempre tinha
Apesar dessas duas temporadas fantásticas, em muitos dentro das quatro linhas.
dos 16 anos do Le Tissier como jogador do Southampton
Alguns comentaristas e jornalistas o acusam de não ter
o time escapou de rebaixamento por muito pouco, devido
tido ambição suficiente durante o seu tempo como jo-
somente aos seus gols e suas habilidades. Mas ele nunca
gador por não ter mudado para um clube que podia ter
quis deixar os Saints, ainda que houvesse interesse dos
lhe dado títulos e mais oportunidades na seleção. O que
grandes clubes do país como Manchester United, Chelsea
ele diria para essas pessoas? Bem, na mesma entrevista
e Tottenham. Ele era feliz com sua vida no litoral e gos-
com The Guardian ele respondeu: “As pessoas que fa-
tava de ser o craque do time e o centro das atenções do
zem essas acusações não me conhecem, então consigo
técnico e da torcida.
entender porque elas pensam assim. Minha resposta é
Talvez seja por isso que nunca ganhou o reconhecimento sempre: ‘quando você era criança o que você queria ser?
que merecia com a seleção. Ele jogou pela Inglaterra em Você já cumpriu esse sonho com 25 anos?’ Me diz se eu
oito ocasiões sem marcar nenhum gol. É verdade que a se- não tenho ambição.”
leção inglesa tinha muitos craques naquela época, atacan-
Sem ganhar nada, sem ir para nenhum torneio interna-
tes incríveis como Alan Shearer, Teddy Sheringham, Les
cional, Le Tissier tornou-se uma lenda do futebol in-
Ferdinand, Andy Cole, Robbie Fowler, Steve McManaman
glês. Ele é lembrado pelas torcidas dos todos os times
e Paul Gascoigne, mas se Matt Le Tissier tivesse jogado
da Inglaterra. No Southampton, porém, ele é o maior, o
num dos clubes mais tradicionais, com todo o talento
melhor, ele é: Le God.
que tinha, seria difícil imaginar que ele não teria vestido
a camisa dos Three Lions mais vezes.

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Green
Street sem
Hooligans

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Memórias póstumas
do Boleyn Ground

Texto & Fotos:


Fernando Martinho

J
á se foi o tempo em que a Green Street era fre-
qüentada por hooligans. Desde que a Premier
League foi instaurada, o fenômeno de afasta-
mento dos torcedores assíduos atingiu a todos
os clubes da elite do futebol inglês. Com as melhorias exi-
gidas pelo Relatório Taylor, encomendado por Margaret
Tatcher, os ingressos passaram a custar muito mais,
afugentando, assim, o maior problema dos estádios lo-
cais: os hooligans. A medida, no entanto, também atingiu
os torcedores comuns – aqueles que realmente torcem,
que gostam de futebol e que amam seus times. O fim do
hooliganismo também decretou o fim das torcidas, que
foram substituídas por platéias nos estádios ingleses.

Entretanto, aquele charme dos “caixotes” ingleses


permanecia. Mesmo com as reformas, alguns estádios
conjugavam tradição e modernidade. Muitas fachadas
mantinham sua arquitetura centenária enquanto os as-
sentos nas arquibancadas pareciam de cinema. Até que,
em 2006, o Arsenal inaugurou o Emirates Stadium.

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Green Street sem Hooligans

Um novo conceito de estádio chegava ao futebol


da Inglaterra: “naming rights” bem explorados
[como nas arenas norte-americanas] e estrutu-
ra arquitetônica “Padrão-FIFA”. O Arsenal deixava
de ser um simpático clube do norte de Londres para
competir em status com Real Madrid ou Bayern de
Munique, disputando quem tinha o estádio mais
moderno da Europa.

Anos antes, o Manchester City abandonou seu ter-


reno de jogo tradicional. Maine Road ficou pra trás
junto com os últimos longos anos sem glória. A
compra do clube por multimilionários até a chega-
da do Sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan — e as
estrelas que estavam por ser contratadas — reque-
riam uma mudança de patamar. O Etihad Stadium
passou a ser a nova casa dos Citizens.

Alguns clubes conseguiram conciliar a capacidade


dos estádios com a os novos padrões do futebol
europeu. Não era só a Premier League que se de-
senvolvia. A Champions League crescia a cada tem-
porada e os clubes do topo da Europa aumentavam
suas receitas com patrocínios, direitos de TV e,
claro, bilheteria.

Entre os grandes ingleses, ninguém pôde se manter


muito fiel à sua casa com as reformas feitas nos
anos 1990 e 2000. Clubes como Manchester United
Chelsea e Liverpool mantiveram seus estádios mas,
a cada temporada, surgiam planos para o aumento
da capacidade ou até mesmo construção de novos
estádios ­­— tanto Stamford Bridge [com 41,7 mil
lugares] quanto o Anfield Road [capacidade de 45,5
mil pessoas] ficaram pequenos.

Clubes que não triunfaram no âmbito continental,


como West Ham e Tottenham, se viram obrigados a
repensar seus estádios ou sucumbir à atrofia imposta
pelo “futebol moderno” — e pelo fair play financei-
ro. Ambos duelaram para herdar o Estádio Olímpico
de Londres, construído para albergar os Jogos de
2012 na capital inglesa. Três pessoas foram presas
acusadas de espionarem o processo de licitação
que teve o West Ham como vencedor. Também foi
levantada a possibilidade de que os clubes dividissem
o estádio, mas a idéia não foi adiante. Os Hammers
nem consideraram.

O West Ham jogava no Boleyn Ground desde 1904.


Depois de mais de cem anos de residência, a tempo-
rada 2015/16 foi a última dos Hammers na famosa
Green Street. O nome da rua deu origem ao título
de um longa-metragem com Elijah Wood [Frodo,
em Senhor dos Anéis] como protagonista. O filme
mostra a rivalidade entre os hooligans do West
Ham e do Millwall.

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Memórias do Boleyn Ground

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Memórias do Boleyn Ground

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Memórias do Boleyn Ground

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Green Street sem Hooligans

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Memórias do Boleyn Ground

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Green Street sem Hooligans

A rivalidade com o Millwall parece ter sido substituída.


O Tottenham [arqui-rival do Arsenal] parece ser o novo
inimigo, dadas as equivalências de forças econômicas e
esportivas, com maior número de encontros na Premier
League. O Millwall não freqüenta a elite do futebol inglês
e o Arsenal, com Arsène Wenger, subiu de categoria ao
longo dos anos 1990 e 2000, rivalizando muito mais com
o “peso pesado” Chelsea, que por sua vez não era tão
gigante até a chegada de Roman Abramovich que injetou
parte de suas fortunas e elevou o clube ao status de po-
tência européia. Isso fez com que West Ham e Tottenham
se tornassem oponentes diretos do futebol inglês.

Boleyn Ground, muito referido como Upton Park, tinha


capacidade para 35 mil espectadores. O West Ham tem
uma torcida muito fiel, que esgota os “season tickets”
a cada temporada. Os planos para aumentar as receitas
provenientes da bilheteria levaram o clube a optar pelo
abandono da casa onde residiu por mais de um século.

Com a mudança para o Estádio Olímpico de Londres, o


West Ham United demonstra ambição esportiva. Quer
crescer como instituição e, para isso, um estádio maior
se faz necessário. Cedo ou tarde, os resultados dentro
de campo virão. Com maior arrecadação, o clube poderá
contar com melhores jogadores. Mas a atmosfera, que
já não era a mesma de tempos atrás no próprio Boleyn
Ground, ficará ainda menos calorosa nas distantes arqui-
bancadas do novo estádio em um ambiente muito mais
esterilizado, muito menos charmoso e nada tradicional
no mundo do futebol.

Quem vai sentir a mudança não serão os nostálgicos


torcedores, muito menos o clube ou o time, mas sim,
Green Street, que se tornará só mais uma rua londrina.
Talvez sofra melhorias urbanísticas e se torne uma rua
luxuosa em que velhos torcedores contarão para seus
filhos e netos aonde ficava o estádio do time deles. Após
a temporada 2015/16, o bairro jamais voltará a sentir a
atmosfera gerada por fanáticos que transbordavam da
estação Upton Park e desciam rumo ao Boleyn Ground.

Green Street foi uma reduto do velho futebol inglês, uma


fantasia que pôde ser vista até 2016. O climão pesado e
violento em derbies contra o Millwall deixou de existir
para sempre.

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Um
Memórias
mate e uma
do Boleyn
volta ao
Ground
mundo

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Revolução nas
arquibancadas
do Egito
Por Luã Reis

Vista da cidade do Cairo


(Foto: Sophia Valkova)

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O futebol
A
s multidões que tomaram as ruas e
as praças do Egito surpreenderam o
mundo em janeiro de 2011. Dezenas de

como fator milhares de pessoas afirmavam que o


povo queria a queda do regime dura-

político na
douro de Hosni Mubarak, no que foi o ápice da série de
manifestações pela região: a “Primavera Árabe”. No meio
da massa de descontentes, alguns elementos eram ainda

Primavera mais distintos: bandeiras, sinalizadores, cantos e coreo-


grafias dos torcedores dos dois maiores clubes de futebol

Árabe
do país: Al Ahly e Zamalek. Torcedores eram boa parte
do povo que desafiava o governo, mas era difícil precisar
a importância deles naquele movimento revolucionário.
Um ano depois, foram os próprios remanescentes da velha
ordem ainda no poder que confirmaram a dimensão da
participação torcedora. No Estádio de Port Said, cobrou-
-se o preço das torcidas organizadas pelo envolvimento
político com a morte de 74 pessoas e milhares de feridos,
no que permanece sendo a maior tragédia envolvendo o
futebol no século XXI.

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Revolução nas arquibancadas do Egito

As torcidas se organizaram no Egito em meados da década para a legitimação política, Nasser, junto com outros
de 1990, substituindo as torcidas oficiais, vinculadas e líderes nacionalistas africanos, funda a Confederação
domesticadas pelas diretorias dos clubes. Essas novas or- Africana de Nações [CAN] em 1957. A organização foi
ganizadas eram independentes e contestavam as decisões fundada como o braço esportivo do movimento Pan-
de cartolas e da Federação. A partir dos anos 2000, surgem Africanista, que reivindicava o fim da dominação europeia
no país os Ultras, seguindo a organização das torcidas ita- no continente. Já na primeira competição, a CAN teve que
lianas, modelo que se espalhava no período também pelos assumir uma posição política: a expulsão da África do
países mediterrâneos como Argélia, Marrocos, Turquia, Sul — sob o regime do Apartheid — da Copa Africana de
Líbano, Líbia, Sérvia e Grécia. A popularização da internet Nações, pela recusa em incluir negros na sua seleção. O
e das transmissões de campeonatos via satélite foram Egito se sagrou campeão no torneio disputado no Sudão.
fundamentais na disseminação e na organização dessa Nasser utilizou a conquista para reforçar o elo entre a
cultura torcedora. Em 2007, foi fundada a Ultras Ahlawy, sua política nacionalista com um Egito líder das nações
a maior organizada do time mais popular e vencedor do africanas e árabes. O esporte era usado para aproximar
país, o Al Ahly. O exemplo foi seguido pelos torcedores a população do regime, especialmente a juventude. Após
dos outros grandes do país: Zamalek, Ismaly e Al Masry. o Brasil conquistar o bicampeonato mundial, um editor
de uma revista esportiva do Cairo convidou a Seleção
Nas arquibancadas dos estádios egípcios, os ultras seguiam
Brasileira para uma série de amistosos no Egito em 1962.
a cartilha consagrada da cultura torcedora: festa colorida e
O presidente Nasser telefonou para o jornalista: “Você
incessante, com bandeiras, faixas, sinalizadores e cânticos,
os está convidando para virem aqui nos derrotarem?” As
formando um bloco coeso e impactante atrás dos gols a
justificativas técnicas do editor não convenceram Nasser,
cada partida. A intensidade da festa desafiava as regula-
que preferia se precaver de uma derrota.
mentações impostas pela federação e pelo governo, que,
como em tantas outras partes do mundo, lançava as forças A derrota do Egito na Guerra de 1967 contra Israel mo-
de segurança contra os torcedores. Nestes confrontos, os tivou a suspensão da liga egípcia de futebol. O governo
mesmos desenvolveram técnicas de resistência e combate. temia que os estádios se tornassem palco de manifes-
Gritos, cânticos e faixas passaram a denunciar o governo tações contrárias ao fracasso na guerra. Os estádios se
de Hosni Mubarak, tornando o estádio de futebol um dos constituíam em espaço de politização de uma sociedade
poucos lugares onde essa crítica era possível. que se modernizava. Em um período de prosperidade
que vivia o Egito após a Segunda Guerra, o papel dos
A história do futebol no Egito se confunde com a história
estádios era favorável ao governo. Após a derrota para os
política e social do país. O esporte chega ao país do norte
israelenses, Nasser percebeu que os torcedores poderiam
da África junto com a ocupação britânica em 1882, tor-
se opor ao governo. A arquibancada poderia ser um campo
nando-se um sucesso imediatamente. Como em outras
de disputa política.
partes do mundo, os primeiros clubes, formados nas
décadas iniciais do século XX, carregavam as contradições Por todo Oriente Médio, o estádio serviu historicamente
da colonização e da influência estrangeira: os estudan- como um espaço privilegiado para a expressão política e
tes, a classe média urbana formada por profissionais a contestação dos governos autoritários. Exemplos dessa
liberais e a baixa oficialidade do exército formaram, em relação não faltam: no próprio Egito, as partidas do Al
1907, um clube que seria uma sede da discussão e da luta Ahly se tornavam manifestações de repúdio à ocupação
pela independência. Nascia o Al Ahly [“O Nacional”, em britânica do país na década de 1920; nos estádios irania-
árabe]. Aqueles favoráveis ao regime vigente, próximo nos, em 1968, ouviram-se os primeiros gritos contrários
à Inglaterra e aos colonizadores europeus em geral, for- a Israel. No final dos anos 2010, nos mesmos estádios,
maram o Qasr El Club, que, dois anos depois, tornou- expressam-se as questões étnicas das minorias no Irã;
-se El-Mokhtalat Club [“O Misturado”, em referência além disso, os curdos reforçam o desejo de autodeter-
à participação de estrangeiros e nativos], para depois minação nos estádios da Síria e da Turquia.
se chamar com o nome do monarca egípcio Rei Farouk
O Egito vivia desde 1981 a ditadura do Marechal-do-Ar
Club. No período entre as guerras mundiais, o país era
Hosni Mubarak, um governo repressor e autoritário, que,
nominalmente independente, inclusive participou da
seguindo o antecessor, promovia um programa econômico
Copa do Mundo de 1934. Na prática, porém, permanecia
liberalizante, mas só para os empresários próximos, em sua
sendo um protetorado britânico. A rivalidade do Cairo
maioria militares. Os clubes mais populares também eram
condensava essa disputa política que se travava no país.
presididos por militares. Na década de 2000, a estagnação
O Egito se tornou de fato um país independente, liderado econômica se tornou crise social, agravada dramaticamente
pelo nacionalista General Gamal Nasser. Com um projeto pela crise financeira de 2008. Nesse momento começa um
socialista, Nasser estimulou o subsídio aos ingressos nos período de mobilizações da sociedade egípcia, com o sur-
eventos esportivos, permitindo um amplo acesso das gimento de sindicatos independentes, como o Movimento
camadas populares aos jogos. O futebol se torna um fe- 6 de Abril, e grupos da juventude da classe média urbana
nômeno das massas no Egito, penetrando profundamente como o “Somos todos Kaled Said”, nome dado em home-
na cultura popular do país. Atento à utilidade do futebol nagem a uma vítima da violência policial.

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O futebol como fator político na Primavera Árabe

Em 2009, Argélia e Egito disputam a última vaga africana antes do jogo foram ignoradas; os torcedores do Al Masry
para a Copa do Mundo da África do Sul, na reedição do entraram armados sem revista; ao tentarem escapar, os
confronto que ficou conhecido como o “Jogo do Ódio”. torcedores do Al Ahly encontraram os portões fechados
Na primeira partida, disputada no Cairo, torcedores egíp- por fora, acesso que era controlado pela polícia; no mo-
cios atacaram o ônibus da Argélia. Na volta foi a vez dos mento que começaram os ataques, as luzes do estádio
argelinos hostilizarem a delegação e os torcedores do foram apagadas.
Egito. O governo de Mubarak, em um momento de cri-
Imediatamente, líderes políticos e manifestantes es-
se, aproveitou a rivalidade para estimular um discurso
pecularam sobre o envolvimento de remanescentes do
nacionalista, enaltecendo os torcedores que defendiam o
antigo regime com o episódio de Port Said. Para os ultras
país contra as agressões estrangeiras. Pela primeira vez
há uma certeza: o ataque não foi planejado pelos torce-
os ultras estavam no centro da política do país.
dores do Al Masry, ainda que haja uma grande rivalidade
Se nas partidas contra a rival nacional Argélia, o envol- entre as equipes. Port Said foi uma espécie de aviso para a
vimento político dos torcedores foi bem recebido pelo Revolução, na qual os torcedores se envolveram. Mubarak
governo, o mesmo não seria dito no momento seguinte. não mais governava, mas a estrutura de poder, baseada em
Em dezembro de 2010, manifestações tomam conta da violência, corrupção e impunidade permanecia. Os ultras
pequena vizinha Tunísia, cujos problemas sociais eram do Al Ahly cantam que: “Em Port Said, as vítimas viram a
muito semelhantes aos dos egípcios. Nos estádios do traição antes da morte. Eles viram o regime que oferece
Egito, os torcedores apoiavam o movimento do povo tu- o caos como única alternativa. O regime que pensou que
nisiano, e nas arquibancadas se escutava “Túnis! Túnis!”. suas garras o fariam intocável. E faz o povo revolucionário
ajoelhar diante da lei militar. Nunca mais! Apenas liberta
Quando as organizações da sociedade civil lançaram
mais seus cães e espalha caos por todo lado. Eu nunca
a convocação para uma grande manifestação contra o
vou confiar em você, não vou deixar você me controlar
governo Mubarak, no final de janeiro de 2011 na Praça
nenhum dia mais.”
Tahir, as torcidas ultras negaram a participação através
dos canais oficiais, temendo represálias. No entanto, na Controlar o território do oponente é essencial tanto no fu-
praça estavam lá com seus sinalizadores, bandeiras, gritos tebol quanto na política. Os torcedores do Egito entraram
de guerra e organização, contagiando os manifestantes. com tudo no jogo político do país, em seguida sofreram
A presença se tornou mais marcante ainda diante da re- um duro contra-ataque. A violência do regime, no entanto,
pressão do governo. Diante da violência da polícia e das é proporcional à força que os torcedores organizados já
milícias civis pró-Mubarak, os ultras demonstraram nas demonstraram ter. As faixas das torcidas penduradas nos
ruas o que tinham aprendido nos estádios, confrontando alambrados dos estádios ainda insistem: “Nós somos o
semanalmente as forças de segurança. Nos dias entre o Egito”. Das arquibancadas e para as arquibancadas, a
início dos protestos e a queda do governo, eles se tornaram Revolução e a Contra-Revolução.
essenciais para a resistência dos manifestantes.

O esperado fim do longo governo Mubarak foi come-


morado intensamente, mas abriu um período de insta-
bilidade no país, com as mesmas Forças Armadas, que
sustentavam o ditador, coordenando a transição. Os ul-
tras e outros manifestantes exigiram a continuidade do
processo revolucionário, com o estabelecimento de uma
democracia. Nesse contexto, praticamente um ano após
as manifestações, no dia 1 de fevereiro de 2012, aconteceu
a partida que marcaria para sempre o futebol no Egito e
se tornaria um evento decisivo no futuro político do país.

No Estádio de Port Said, o time da cidade, o Al Masry,


venceu a equipe do Al Ahly. Após o apito final, milhares
de torcedores do Al Masry atacaram com paus, pedras
e facas a torcida do Al Ahly, em número muito menor
diante do ataque surpresa. Sem chance de defesa, tor-
cedores se jogaram das arquibancadas para tentar fugir.
Jogadores e comissão técnica do Al Ahly foram agredidos.
Um torcedor morreu nos braços do camisa 10 do time, o
histórico Mohammed Aboutrika. Setenta e quatro torce-
dores morreram no massacre e centenas ficaram feridos.

Uma série de fatores indica uma negligência cúmplice


por parte das forças de segurança: as ameaças feitas

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Ouro
africano

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As origens de um país e a trajetória de
George Weah no futebol e na política

Por Clayton Fagundes

A
África foi o eixo central no expansionismo co-
lonizador europeu. Além de se instalar e ocupar
diferentes terras no continente africano, fosse
Portugal, França ou Inglaterra, o objetivo era um só: ex-
trair o máximo que pudessem das relações comerciais ou
territoriais, desde quando o objetivo era chegar às Índias
até o sempre. O mercado de escravos, que durou séculos,
acabou culminando com um processo de ilegalidade da
aquisição de escravos, dos filhos de escravos que passa-
vam a ser livres, e posteriormente com a libertação da
escravidão em diferentes colônias da América do Norte
e Caribe — somente mais tarde na América do Sul —, e
também no Reino Unido.

Um processo natural — talvez — de recuperar as origens,


resgatar o sentimento de pertencimento e compensar um
dano histórico e cultural, levou à criação de Freetown —
atual capital de Serra Leoa, pelo abolicionista britânico
John Clarkson, pra onde iriam escravos libertos, em 1792.

Mas após diversos ataques de tribos locais à localida-


de, a Coroa Britânica decidiu incorporar a cidade ao seu
império, em 1808. Este ato culminaria com a formação
daquilo que se conhece como Serra Leoa hoje.

Em 1816, um movimento criado para “repatriar” os


negros libertos foi fundado com o nome de American
Colonization Society. Liderado por abolicionistas, a ACS
acreditava que os negros teriam melhores condições de
liberdade na África do que nos EUA. Em 1822, A American
Colonization Society começa a enviar negros libertos para
a região conhecida em inglês como Pepper Coast, onde
fundou-se o novo país dos escravos libertos.

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Ouro africano

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As origens de um país e a trajetória de George Weah no futebol e na política

Localizada na África Ocidental, a Libéria, do latim “Terra enquanto o garoto talentoso partia para França, seu país
dos Livres”, foi por um breve momento a esperança e o vivia mergulhado em um caos político sem precedentes.
sonho para os ex-escravos americanos. Criada para os
O ano de 1989 marcou outro golpe de estado no país.
negros libertos e já nascidos livres, a capital da Libéria,
Mesmo ano que Weah começava sua brilhante trajetória
Monróvia, leva esse nome desde 1824, em homenagem a
no Monaco. Logo em sua primeira temporada no prin-
James Monroe, presidente dos EUA na época, que defendia
cipado, marcou 14 gols em 23 partidas na Ligue 1, o que
o envio de escravos libertos para o novo país.
lhe ajudou a conquistar o primeiro de seus três prêmios
Os negros americanos, ex-escravos se depararam com de melhor jogador africano, ainda aos 23 anos de idade.
tribos locais, e além de não se identificarem com os povos No Monaco ele conquistou um título da Copa da França.
nativos, nada se sabia de suas origens, culturas, reli-
Ao mesmo tempo em que Weah brilhava no futebol fran-
giões ou línguas ancestrais. Em 1847, proclamou-se a
cês, se tornando um dos principais jogadores do futebol
independência da República da Libéria, era o início de
francês, na sua terra natal iniciava uma guerra civil entre
um pesadelo, marcados por guerras, conflitos étnicos
grupos étnicos que disputavam o poder. As tribos que
e intolerância, fomentados por interesses econômicos
vinham sendo discriminadas por Samuel Doe ocuparam
e imperialistas ao longo do século XX, que fizeram do
a linha de frente da revolta. No comando, estava Charles
sonho e da ilusão uma triste realidade.
Taylor, que havia sido ministro de Doe, afastado por
corrupção. Essa guerra duraria sete anos.

Em 1992, Weah foi contratado pelo Paris Saint-Germain.


No time da capital ele jogou ao lado de grande jogadores
Um século depois como Raí, David Ginola, Ricardo Gomes, Valdo e Bernard
Lama. O time interrompeu a hegemonia do Olympique
No ano de 1971, George Tawlon Manneh Oppong Ousman de Marselha, faturando a Ligue 1 em 1994. Além disso,
Weah, nascido na capital Monróvia, dava seus primeiros Weah também conquistou duas Copas da França e uma
passos, não no futebol, mas na vida, tinha ele apenas 5 Copa da Liga pelo clube parisiense.
anos de vida. Ano de transição para a Libéria e seu povo.
Já na Libéria os banhos de sangue entre as tribos se inten-
Com a morte de William Tubman, presidente desde 1943,
sificavam. A situação de violação dos direitos humanos
que mudou a constituição — aplicando um golpe de estado
chegou a tal ponto da banalização, que foi necessário
— para ficar no poder por sete mandatos consecutivos.
a intervenção de tropas internacionais. Um breve mo-
Enquanto o jovem George Weah encontrava no futebol mento de paz no país coincidiu com o melhor momento
um refúgio e uma esperança de vida melhor em meados de Weah. Suas atuações pelo PSG aliado as belas cam-
dos anos 1970, o país vivia uma constante instabilidade panhas do time tanto na Copa da UEFA, quanto na UEFA
e clima de tensão, com o substituto de Tubman, o vice- Champions League o credenciaram a melhor jogador do
-presidente de William Tolbert. mundo de 1995.

Já no Inicio dos anos 80, o jovem Weah dava os primeiros


passos no Young Surviors. Enquanto ele começava a trilhar
seu caminho no futebol, outro golpe era instaurado no

Bola de ouro
país. Liderado pelo sargento Samuel Doe pertencente a
tribo étnica Krahns.

Weah, embora se saiba que suas raízes são várias, é reco-


A confirmação da conquista da Bola de Ouro da revista
nhecido como parte da tribo Kru [ou Kroo] que também
France Football — e de melhor do ano da FIFA — veio
está muito presente na Costa do Marfim e em Serra Leoa.
após um primeiro semestre esplendoroso em seu novo
Na Libéria, os Krus representam 6% da população. A maior
clube: o gigante italiano Milan. Com atuações épicas, o
tribo é a Kpelle, representando 20,3% dos liberianos. No
liberiano foi peça fundamental em um time recheado de
total, 16 etnias são reconhecidas oficialmente, além de
estrelas do brilho de Baresi, Maldini, Savićević, Desailly,
outras minorias também presentes no país.
Albertini e Baggio. A conquista da Bola de Ouro aliada ao
Após sua passagem pelo Young Surviors, George Weah título do Scudetto, colocou Weah na galeria definitiva dos
perambulou por vários times do país: Bong United, Mighty maiores da história do futebol mundial. Sua felicidade se
Barolle, e Invincible Eleven. Com muitos gols, oportunis- completou com a conquista da Libéria para a disputa da
mo e um talento muito acima dos demais, Weah conseguiu Copa Africana de Nações no ano de 1996.
sua primeira transferência internacional: Para o Tonnerre
Mas infelizmente o brilho da Bola de Ouro de Weah não
de Yaoundé de Camarões.
foi iluminou os problemas políticos e sociais no país.
O destaque foi tanto no time camaronês que logo o menino Ainda em 1996, dissidentes que estavam posicionados na
atraiu a atenção de um grande time francês, o Monaco, Guiné invadiram o país, estourando assim outra guerra
treinado pelo técnico Arsène Wenger. Era o ano de 1988, e civil. Naquele mesmo ano, Weah ficaria em segundo lugar

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Ouro africano

no prêmio de melhor do mundo da FIFA, vencido pelo


brasileiro Ronaldo.

George Weah fez outras três grandes temporadas pelo


Milan, permaneceu como um dos astros do time e um dos
melhores atacantes do futebol europeu. Na temporada
1998/99 conquistou seu segundo Scudetto pelo time ros-
sonero. Ao lado do artilheiro alemão, Bierhoff, o liberiano
contribuiu com gols e grandes jogadas. No entanto, após
a contratação do ucraniano, Andriy Shevchenko, jogador
mais jovem e de características parecidas, o atacante
liberiano perdeu espaço no ataque milanista.

Sem espaço no clube, Weah partiu para Inglaterra no


inverno de 2000, para jogar por Chelsea por emprés-
timo. Chegando ao clube londrino em janeiro, no meio
da temporada, e logo em sua estréia, marcou o gol da
vitória sobre o Tottenham. Apesar da rápida adaptação
ao clube, onde marcou gols na campanha do título da FA
Cup, o técnico, Gianluca Vialli, decidiu não contratar o
jogador em definitivo. Foi contratado grátis então, pelo
recém-promovido Manchester City, após o fim de seu
contrato com o Milan.

O jogador ficou insatisfeito com seu novo treinador que o


deixava como suplente na maioria dos jogos. Em 11 jogos
pelos Citizens, Weah marcou quatro gols. Foi quando, no
final do ano de 2000, ele decidiu voltar à França para jo-
gar pelo Olympique Marseille, seu último clube europeu;
encerrou sua brilhante carreira jogando pelo Al-Jazira
dos Emirados Árabes Unidos.

Já na seleção da Libéria pode se despedir em grande estilo


durante a Copa Africana de Nações de 2002. A despedida
dos gramados de George Weah coincidiu com o fim da
Guerra Civil em seu país em 2003. Após outra intervenção
militar dos americanos.

Com sua aposentadoria, Weah se enveredou para a polí-


tica. Disputou as eleições presidenciais em 2005, mas não
venceu. Em 2011, novamente participou das eleições para
presidente, mas desta vez como candidato à vice presi-
dente, na chapa de Winston Tubman, sobrinho de Willian
Tubman, o presidente mais longevo da história do país.

No primeiro turno das eleições de 2011, Tubman e Weah


conseguiram 32,7% dos votos, contra 43,9% da presidente
Ellen Johnson Sirleaf. Entretanto, no segundo turno, a
chapa de oposição, Tubman-Weah, foi esmagada pelos
candidatos da situação por 90,7% contra apenas 9,3%
dos votos válidos.

Em 2014, George Weah decidiu concorrer ao senado de


seu país pelo condado de Montserrado, o mais populoso
da Libéria, onde fica a capital Monróvia. Derrotou Robert
Sirleaf, filho da presidente Ellen J. Sirleaf, com larga
vantagem e passou a ser o primeiro ex-atleta a ocupar
uma cadeira legislativa na história da nação africana.

Em 2017, porém, Weah concorre à presidência novamente


e, desta vez, ganha as eleições com 61,5% dos votos e
assume o posto em 22 de janeiro de 2018.

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As origens de um país e a trajetória de George Weah no futebol e na política

Ao lado de Alfredo Di Stéfano e George Best, o liberiano


é considerado um dos três melhores jogadores a nunca
ter jogado uma Copa do Mundo.

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De Zwarte
Schapen
Wim van Rossem/Anefo

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As Ovelhas Negras
e o derby perdido de Amsterdã

Por Fernando Martinho

Q
uando o destino é Amsterdã, o roteiro certamente
conta com idas ao Rijksmuseum, ao Stedelijk,
à estação de trem Amsterdam Centraal, linda
por sinal e, claro, aquela clássica foto nas insignas
“I AMSTERDAM” são paradas obrigatórias.

Os passeios nunca deixam de fora incursões ao Red Light


District, onde a prostituição foi, deixou de ser, voltou a ser
e nunca se sabe bem se é ou não legalizada. Os famosos
cafés, onde se consomem as melhores cannabis, com suas
infinitas variações também atraem turistas do mundo
todo que acham que Amsterdã é um lugar anárquico no
pior sentido que se pode dar à palavra.

A capital holandesa e seu urbanismo heterodoxo — como


poucas cidades no mundo cujo centro é “inundado” e
muitas vezes o transporte fluvial é mais eficaz do que
o terrestre — tem um charme incomum com os seus
diques e canais que conformam a cidade. Todo esse re-
quinte de um lugar cujo principal clube revolucionou o
futebol mundial na década de 1970 com um pensamento
que inspirou essa revolução que parecia só ser possível
existir ali, com aquele Ajax de Amsterdã treinado por
Rinus Michels e liderado por Johan Cruijff.

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De Zwarte Schapen

BVC Amsterdam no estádio


olímpico da capital holandesa
em setembro de 1956
(Foto: Ben van Meerendonk/IISG)

A Holanda tem uma posição geográfica que a coloca no Entretanto, mesmo em Roterdã quanto em Eindhoven,
centro de zonas de influências culturais. O holandês é existem clubes rivais locais, de menor projeção, mas que
uma língua que demonstra perfeitamente isso. Parece servem de contraponto ao grande clube da cidade. O Sparta
alemão e parece inglês. Um país que precisou lutar contra Rotterdam e o FC Eindhoven são os primos pobres. Mas lá
o mar para conseguir mais espaços, e segundo o escritor estão seus torcedores que se sentem num refúgio para os
inglês, David Winner, isso determinou o estilo holandês menos favorecidos. Nessas duas cidades, esses refúgios
de enxergar o futebol. Um estilo obcecado por encontrar existem, coisa que não acontece em Amsterdã.
espaços físicos que não existem, como relata Jonathan
A visita a Amsterdã também permite uma experiência
Wilson em um artigo para a Folha de S. Paulo em 2018.
futebolística espetacular. O museu do Ajax, chamado
No entanto, não é correto afirmar que este seja o único Ajax Experience, no centro da cidade tem, além de toda a
jeito holandês de enxergar futebol. Existem outras for- memorabilia do clube, imersões tecnológicas que marcam
mas de se enxergar o jogo e o país conta com outros dois bem a forte cultura do clube.
grandes clubes que rivalizam com o Ajax: Feyenoord de
Johan Cruijff, Marco van Basten, Dennis Bergkamp. Todos
Roterdã e o PSV Eindhoven.
esses caras começaram no Ajax. Os melhores jogadores
Os três clubes já foram campeões europeus. Mas claro, o de três diferentes gerações holandesas vieram da base
Ajax é o único a vencer por quatro vezes [até 2019, quando do clube da capital.
chegou à semifinal]. Os outros clubes conseguem duelar
Mas onde ficam aqueles que querem ser oposição? Sejam
domesticamente com o gigante da capital e usam diferen-
eles rebeldes ou não. Por qual clube torcer? O melhor é
tes abordagens de futebol. Mais alemã ou mais inglesa,
escolher entre Feyenoord e PSV. Em se tratando de uma
tal como é o país, um lugar de proximidade cultural com
capital, o monopólio esportivo-cultural é enorme, ainda
duas potências econômicas e também do futebol.

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As Ovelhas Negras e o derby perdido de Amsterdã

Jansen, Otto en Visser após


vitória por 2 a 1 sobre o Feyenoord
em Rotterdam em 1975
(Foto: Bert Verhoeff/Anefo)

mais Amsterdã sendo tão cosmopolita como é. O clube esse. Tanto o escudo bordado na camisa quanto o mascote
incorporou na sua base de torcedores, inclusive, a comu- do time eram exatamente uma ovelha negra.
nidade judaica, ou seja, até uma minoria muitas vezes
O Beroepsvoetbalclub Amsterdam [que significa Clube
perseguida é contemplada no “único” clube de Amsterdã.
de Futebol Profissional de Amsterdã e carregava a sigla
Houve um momento em que foi possível coexistir com BVC] foi fundado em 1954, com o status de profissional,
o Ajax em Amstedã. Mas a força econômica do clube fez como diz no nome, e durou quatro anos exatos até a sua
com que os clubes vizinhos sucumbissem a fusões ou fe- fusão com o DWS Amsterdam em 1958.
chassem as portas. Amsterdã virou uma cidade sem derby.
O clube seguiu adiante com o nome de DWS e foi pro-
Na segunda divisão, o único clube de Amsterdã é o Jong movido à primeira divisão na temporada 1962/63. Logo
Ajax, o time B dos Ajacieden. E na terceira divisão estão o na primeira temporada na Eredivisie, o clube sagrou-se
Amsterdamsche FC e o Ajax Zaterdag [em tradução livre: campeão, um feito nunca mais repetido por um time recém
Ajax Sábado], o time amador ajacied, ou seja o time C do promovido. Graças ao título, o clube disputou a Copa dos
principal clube da cidade. Campeões em 1964/65, na qual o DWS Amsterdam chegou
às quartas-de-final. A capital holandesa parecia ter uma
O Amsterdamsche FC, conhecido como AFC, foi fundado
nova força no futebol.
em 1895, cinco anos antes do Ajax, mas nunca deixou o
status de amador. As rivalidades em Amsterdã são coisas Em 1972, outra fusão com clubes de Amsterdã aconteceu.
de um tempo remoto. Talvez a busca por um modelo de sucesso semelhante
àquela junção em 1958 fosse a razão que motivou a nova
Curiosamente, um desses clubes que coexistiram tinha a
iniciativa: somando forças com outras agremiações lo-
alcunha de Zwarte Schapen [Ovelhas Negras], e não era
cais para se consolidar como, no mínimo, uma segunda
só coincidência, afinal o símbolo do BVC Amsterdam era
potência de Amsterdã.

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De Zwarte Schapen

Heini Otto do FC Amsterdam


em jogo contra o ADO den
Haag em 1977 no Olympisch
Stadion (Foto: Anefo)

Foi a vez do DWS se fundir com o Blauw-Wit Amsterdam o Ajax foi eliminado nesta fase para a Juventus. Mesmo
para formar o FC Amsterdam. Logo na primeira tem- com saldo empatado, a Juve passou pelo gol feito fora de
porada, o modelo atraiu outro clube local, o AVV De casa, na derrota por 2 a 1 em Amsterdã depois de perder
Volewijckers e uma nova fusão foi feita. Em 1973/74, por 1 a 0 em Turim.
após o Ajax conquistar seu terceiro título europeu, a cidade
Nas quartas de final, porém, viria o choque de realida-
parecia ter finalmente um rival à altura com o fortale-
de. O FC Amsterdam foi derrotado por 5 a 1 fora de casa
cido FC Amsterdam. O novo clube da capital terminou a
contra o Colônia e sofreu outro revés em casa por 3 a 2.
Eredivisie na quinta posição que lhes rendeu uma vaga
No campeonato holandês o FC Amsterdam terminou
da Copa da UEFA da temporada seguinte graças ao títu-
em nono lugar e daí em diante passou a lutar contra o
lo da Copa da Holanda por parte do PSV que terminou
rebaixamento que aconteceria finalmente no final da
em quatro lugar e abriu espaço pro clube da capital que
temporada 1977/78.
teria companhia do fragmentado Ajax, já sem Cruijff e
Neeskens, que terminou em terceiro. No mesmo ano que a Holanda terminava, pela segun-
da vez, com o vice da Copa do Mundo, na Argentina, o
Em 1974/75, o FC Amsterdam fez bonito na Copa da UEFA,
segundo clube da capital era rebaixado e duraria mais
eliminando, na primeira fase, o Hibernians de Malta por
quatro anos até que em 1982 o FC Amsterdam fechou
um placar acumulado de 12 a 0 [5 a 0, em Amsterdã; e 7 a o,
as portas após terminar em décimo terceiro na segunda
na volta, em Paola] e, na segunda eliminatória, venceram
divisão holandesa.
a tradicional Internazionale após vitória em Milão por 2
a 1 e empate em casa, no Olympisch, por 0 a 0. O FC Amsterdam enfrentou o Ajax 12 vezes e venceu ape-
nas em duas ocasiões, perdeu dez jogos e nunca foi capaz
Veio então o Fortuna Düsseldorf na terceira fase. Triunfo
de terminar acima dos Ajacieden na tabela.
por 3 a 0 na Holanda e, fora de casa, outra vitória: 2 a 1. Já

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As Ovelhas Negras e o derby perdido de Amsterdã

As Ovelhas Negras
cruzam a ponte
Os “órfãos” das Ovelhas Negras, insatisfeitos com a vezes, se chamaria então VV De Zwarten Schapen entre
fusão, fundaram o clube amador De Zwarte Schapen, 1994 e 1996; quando a cidade de Almere, do outro lado
em 1959. O time disputou os campeonato amadores nos da ponte Hollandse, resolveu atrair atividades esportivas
mais baixos escalões até chegar no segundo nível mais para si, num plano de desenvolvimento municipal e o
alto do amadorismo holandês. Em 1978, mesmo ano do clube acabou atravessando a ponte, deixando Amsterdã.
rebaixamento do FC Amsterdam, o De Zwarte Schapen se
Nascia ali Sporting Flevoland, aludindo a região onde
fundiu com o AVV Argonaut e dava origem ao [Argonaut
está situada a cidade de Almere. Mas o nome duraria
Zwarte Schapen] AZS Amsterdam.
até 2001, quando o projeto ganhou corpo e fundaram
Em 1986, o AZS Amsterdam conquistou a Copa KNVB de oficialmente o FC Omniworld, denominação que durou
futebol amador e começou a trilhar um caminho sinuoso até 2010, quando foi adotado, finalmente, o nome Almere
envolvendo mudanças de nome e de endereço mas com a City FC, que herdou também o apelido de Ovelhas Negras.
mesma ambição original daquele clube fundado em 1954.
Na temporada 2019/20, o Almere City disputa a segunda
Entre 1988 e 1992, o clube passou a se chamar FC De divisão do campeonato holandês e a cidade de Amsterdã
Sloterplas, em alusão a um grande lago no oeste de segue sem um derby, afinal, o que significa “ovelhas ne-
Amsterdã. Em 1994, o famoso ex-jogador do Ajax e da gras”, senão aqueles que são renegados ou que renegam
seleção holandesa, Johnny Rep, assumiu o comando téc- a própria família?
nico do time, que mudaria de nome novamente algumas

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Além do museu do Ajax, Amsterdã oferece uma fantástica
experiências para amantes do futebol. A COPA Football
Store é um destino obrigatório para quem é apaixonado
pela história do esporte mais popular do Mundo. Mas o
lugar não é recomendado para quem tem o orçamento
apertado, a tentação vai ser grande.

A marca se especializou em camisas retrô e não hesitou


em vasculhar histórias como essa — ainda mais por ser
um clube extinto da cidade onde nasceu a loja — e desen-
volveu o modelo usado pelo clube na temporada 1976/77.

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La storia
vivente
del Calcio
A memória do futebol italiano
em pessoa

Texto & fotos:


Fábio Felice

P
ouco mais de um minuto depois da campainha
tocar, surge um senhor de andar cadenciado, com
um chapéu-panamá na cabeça e um par de óculos
com lentes quadradas para abrir o portão na rua. A alguns
quilômetros do centro de Florença, na Itália, ele toma
conta do Museo del Calcio. Este senhor é Fino Fini, nove
décadas de vida, a maioria delas dedicadas ao futebol.

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La storia vivente del Calcio

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A memória do futebol italiano em pessoa

Florença, capital da Toscana, é a casa de algumas das mais


relevantes obras de arte de toda a humanidade. O berço
do Renascimento também abriga o único museu italiano
inteiramente dedicado ao futebol. Michelangelo estaria
orgulhoso do acervo que hoje é exposto na construção
amarela localizada ao lado dos campos de treinamento da
Federação Italiana de Futebol, a FIGC. Lá estão camisas,
bolas, taças, flâmulas, medalhas, ingressos e muito da
história do futebol mundial, não só italiano. E o simpático
“Dottore” Fino Fini toma conta de tudo.

Fini foi médico da Seleção Italiana entre 1962 e 1982, o que


significa que ele sentou no banco de reservas da Azzurra
em seis Mundiais e em cinco Eurocopas. Nesse período,
os italianos ganharam um Copa do Mundo [1982], uma
Euro [1968] e viram o surgimentos de lendas como Luigi
Riva, Giacinto Facchetti, Gianni Rivera, Dino Zoffi, Bruno
Conti, Marco Tardelli e Paolo Rossi. Fino Fini estava lá,
colecionando bons amigos e acumulando uma enormidade
de relíquias que contam a história do futebol. Entre elas,
a camisa usada pelo maior jogador de todos os tempos
na final da Copa do Mundo de 1970.

Em 1996, Dr. Fini virou diretor da Fondazione Museo del


Calcio [um centro de documentação histórica e cultural
do futebol italiano] e passou a mostrar tudo o que jun-
tou — e a receber ainda mais presentes. São centenas de
itens expostos no museu, alguns bem curiosos como os
óculos escuros que Arrigo Sacchi usou durante a Copa
de 1994, e verdadeiras preciosidades, como uma camisa
usada por Di Stéfano em 1958, as chuteiras calçadas por
Roberto Baggio na Copa de 1990 e o uniforme que o ca-
pitão Fabio Cannavaro vestiu na final que deu à Itália o
tetracampeonato mundial em 2006.

A Copa de 1982 é a que mais rendeu lembranças materiais


ao Museo del Calcio. Camisas dos jogadores italianos,
ternos da comissão técnica, flâmulas das seleções parti-
cipantes, medalhas dos campeões e réplicas da taça estão
lá representando o mundial vencido pela Itália do então
médico Fino Fini. Depois de mais um dia de trabalho e já
perto de trancar as portas do museu, o nonagenário ita-
liano reflete com calma, em silêncio, antes de responder
sobre como foi estar no gramado da mais icônica partida
daquela Copa — e uma das maiores de toda a história
—, o Brasil-Itália no estádio Sarriá, em Barcelona. Ele
relembra que ao Brasil bastava empatar para avançar. E
sacramenta, de maneira simples, com a serenidade de
quem é a própria memória do futebol mundial: “Però
vinciamo noi. Solo questo”.

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Aqui jaz o
homem de
cinco mil
gols
Fernando Martinho

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Josef Bican,
o maior artilheiro que
o futebol já viu

Por Fernando Martinho


& Lucas Sposito

U
m amigo que morou em Praga por um bom tempo
recomendou um passeio ao forte de Vyšehrad [em
português, quer dizer “Castelo do Alto”]. Mas
não é bem um castelo. É uma fortaleza localizada no alto
de uma montanha à beira do rio Vltava, que corta a cidade.
A fantástica vista do alto das muralhas — que datam do
século X — permite um ângulo perfeito pra contemplar a
capital tcheca. A lenda local diz que Vyšehrad foi a cons-
trução que deu origem à cidade, mas não há registros que
a confirmem essa informação. Lá no topo, a basílica de
São Pedro e São Paulo. Ao lado da basílica, um cemitério.

Em um dos túmulos, é impossível não perceber o desenho


em granito de uma bola de futebol e o busto da pessoa
que ali jazia: Josef Bican. Entre uma e outra foto no local,
uma pessoa se aproxima e diz: “Você conhece ele? Ele
marcou mais de cinco mil gols.”

Milan Šimůnek, um engenheiro tcheco de uma empresa


alemã com sede em Praga, começa a falar sobre sua pai-
xão pelo futebol e a lenda ao redor de Josef Bican. Disse
que fez questão de visitar a Bombonera quando esteve
na Argentina e também marcou presença na Copa do
Mundo do Brasil em 2014. Mostrava contundência quando
afirmava: “Aqui jaz o homem de mais de cinco mil gols.”

Que ali jazia Josef Bican, era um fato. Que ele tivesse
marcado cinco mil gols, despertava uma só conclusão:
a de que no Brasil, poucos sabem que o maior artilheiro
de todos os tempos não é Pelé. No entanto, o que menos
importa é a quantidade de gols marcados por Bican, seja
em jogos oficiais ou em amistosos. A lenda em torno do
jogador vai muito além.

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Aqui jaz o homem de cinco mil gols

A lenda
Ele jogou por três seleções: Áustria, por quem disputou a
Copa de 1934; Boêmia e Morávia, por alguns jogos em
1939; e República Tcheca, onde pediu cidadania quando
Durante a Copa do Mundo de 2014, os argentinos inva- foi jogar no Slavia Praga. Foi impedido de jogar a Copa do
diam o país e provocavam os brasileiros com a já clássica Mundo pelos tchecos, mas seu sucesso na seleção chegou
“Decime qué se siente”. O troco veio em seguida: “Mil ao ponto de o time tentar boicotá-lo por puro ciúme.
gols, mil gols, mil gols. / Só Pelé, Só Pelé / Maradona chei-
Durante a Segunda Guerra Mundial, ele foi o artilheiro
rador”. Era uma resposta convincente. Para um paulista,
absoluto da Europa por cinco temporadas seguidas jo-
Maradona nunca foi tão bom quanto Pelé. E ninguém
gando pelo Slavia Praga. Quando a guerra terminou, o
marcou mais gols do que o rei do futebol.
atacante recebeu uma proposta da Juventus, mas recusou
Mas o torcedor que saía de São Paulo e ia ao Maracanã após ouvir rumores de que os comunistas tomariam o
ouvia uma versão diferente da música: “Mil gols, mil poder na Itália.
gols, mil gols / Só Pelé, Só Pelé / o Romário e o Túlio!”
Ironicamente, o Partido Comunista tomou o poder em
O carioca acredita nos números que apontam Romário e
Praga, mas Bican recusou-se a aderir aos comunistas —
Túlio como detentores de gols contados em quatro dígitos.
ele havia feito o mesmo com o Partido Nazista, enquanto
Mesmo que o botafoguense não seja fã do baixinho e o
vivia na Áustria. Mas os comunistas foram mais duros e o
vascaíno não goste do Maravilha, vale a pena contradizer
expulsaram da cidade, fazendo com que ele passasse dois
os paulistas.
anos jogando em Vítkovice até voltar a Praga, onde en-
E se alguém entrasse nessa briga dizendo que tem cinco cerrou a carreira em 1955.
mil gols? É isso o que diz a lenda de Josef Bican, o atacante
austríaco que teria deixado Pelé, Romário, Túlio, Puskás
e Gerd Müller no chinelo. Tanto em gols oficiais como em
suas próprias contas.

Bican nasceu em Viena, em 1913. Seu pai era um jogador Mas e os cinco mil gols?
de futebol, lutou na Primeira Guerra Mundial, voltou
sem ferimentos, mas morreu aos 30 anos de idade por se Essa história surgiu em 1969, quando Pelé marcou seu
recusar a operar um dos rins após uma lesão sofrida numa milésimo gol. Como o acontecimento despertava o inte-
partida. Sua mãe — obrigada a criar os quatro filhos resse de todo o planeta, repórteres procuravam por outro
sozinha — já invadiu uma partida para dar uma “guar- jogador que tivesse atingido tal marca. O austríaco Franz
da-chuvada” num garoto que fez uma falta em Bican, Binder — 11º maior artilheiro da história — indicou Bican
nos tempos de categorias de base. aos jornalistas. Quando perguntado sobre o porquê de
jamais ter clamado pelo feito, Bican respondeu: “se eu
Seu fantástico controle de bola era relacionado à pobre-
dissesse que marquei cinco vezes mais gols que Pelé,
za de sua família, que não tinha condições para com-
quem teria acreditado em mim?”
prar chuteiras e fez com que ele jogasse descalço em
seus primeiros anos. Jogou no Schustek e no Farbenlutz De fato, ninguém acreditaria. Bican teria que manter uma
até tornar-se profissional pelo Rapid Viena. Em 1934, aos média de 185 gols por ano — desde os 15 até os 42 anos
21 anos, já tinha feito quase 250 gols [95 deles, oficiais]. de idade, tempo total de sua carreira — para conseguir
Isso rendeu-lhe uma transferência para o Slavia Praga, essa marca. De acordo com o RSSSF, sua média de gols,
onde consagrou sua carreira. contando jogos oficiais e amistosos, foi de 54 por ano.
A história diz que os treinos do Slavia Praga eram um Mas ele era convencido demais para aceitar estes números.
show à parte. Centenas de torcedores pagavam para ver os Para ele, foram cinco mil e ponto final. E assim foi até
truques que Bican era capaz de fazer, na maioria das vezes, o ano de 2001, quando morreu aos 88 anos, em Praga.
exibindo sua pontaria refinada. Dizem que ele colocava Até o fim de seus dias, não aceitava que os atacantes da
diversas garrafas sobre o travessão — cada uma a alguns atualidade tivessem mais créditos que os de antigamente:
centímetros de distância da outra —, posicionava algu-
“Eu ouvi muitas vezes que era mais fácil marcar gols na
mas bolas na entrada da área e derrubava as garrafas,
minha época. Mas as chances eram as mesmas há cem
uma por uma.
anos e serão as mesmas daqui a cem anos. A situação é
Os números de Josef Bican, de acordo com o RSSSF, são idêntica e todos concordariam que, de uma chance, deveria
de 805 gols em 530 jogos oficiais e 663 gols em 388 par- sair um gol. Se eu tivesse cinco chances, eu marcaria cinco
tidas amistosas. A soma totaliza 1468 gols em 918 jogos, gols — se eu tivesse sete, então seriam sete.”
marca superior à de Pelé: 1284 tentos em 1375 exibições.

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A história de Josef Bican, o maior artilheiro que o futebol já viu

Vista da cidade de Praga


do alto de Vyšehrad
(Foto: Fernando Martinho)

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Aquele
Super Depor

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Durante os anos
1990, a grande
alternativa à
hegemonia de Real
Madrid e Barcelona
surgiu na Galícia

Por Miguel
Lourenço Pereira

B
ebeto, Djukić, Fran, Mauro Silva, Donato, Aldana,
López Rekarte. Nomes próprios desta história
que mergulha na mitologia do futebol europeu
uma das suas maiores surpresas. Numa era onde o di-
nheiro começava a fazer, cada vez mais, a diferença, o
Deportivo La Coruña apresentou uma versão alternativa
de como encarar o futebol de alta competição. E trans-
formou a sua política esportiva em gesta. E, de gesta em
gesta, tornou-se lenda.

Numa cidade que nunca tinha feito parte da história


maiúscula do futebol espanhol, surgiu um time sem medos
e sem complexos, capaz de olhar dentro dos olhos dos
grandes da Espanha e de batê-los no seu próprio campo.
Somente o La Coruña e o Valencia conseguiram quebrar
a exclusividade de FC Barcelona, Real Madrid e Atlético
de Madrid desde os títulos da Real Sociedad e Athletic
Bilbao no início dos anos 1980.

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Aquele Super Depor

Um título que culminou com uma história de sacrifícios,


surpresas e jogos que entraram para a posteridade do fu-
tebol espanhol. Um título que foi também, ironicamente,
a reviravolta nesta fábula de heróis inesperados. Uma
década depois de fechar com chave de ouro a sua lenda,
o Deportivo caiu para Liga Adelante, a segunda divisão
de onde tinha escalado, surpreendentemente, em 1990.
Ao cometer os erros dos rivais e esquecer-se das virtudes
do seu próprio passado, o La Corunã condenou-se a si
mesmo. Mas mesmo no seu momento mais baixo nunca
deixou os adeptos perderem o rastro à memória do seu
Super Depor.

O técnico Arsenio Iglesias e o presidente Augusto César


Lendoiro foram os arquitetos da história, os “irmãos
Grimm” que escreveram esta lenda de surpresas e sus-
pense desde o primeiro capítulo. Iglesias, que assumiu o La
Coruña na obscuridade da segunda divisão em 1988, não
esteve presente no momento da consagração definitiva.
Mas foi com ele que tudo começou.

O Deportivo tinha chegado de surpresa à liga espanhola


e inevitavelmente o primeiro ano na elite desde 1973 —
época em que o clube era conhecido como o “elevador”,
por subir e descer de divisão ano sim, ano não — foi
sofrido. Um play-off contra o Betis fez a diferença. Iglesias
e Lendoiro começaram a preparar a nova temporada com
afinco. Uma mistura de jovens promessas, lideradas pelo
irrepetível Fran, juntou-se a jogadores descartados pelos
grandes e um trio de brasileiros fundamental: Bebeto,
Donato e Mauro Silva. Ingredientes mais do que suficien-
tes para protagonizar uma surpresa maiúscula.

Nessa época em que o Riazor, histórico estádio construído


do outro lado da praia da Corunha, ainda não tinha a sua
quarta e definitiva arquibancada, o Deportivo tornou-se
o time mais temido do futebol espanhol. Visitar terras
galegas e sair com pontos debaixo dos braços tornou-se
quase uma utopia. Em 3 de Outubro de 1992 o clube recebeu
o Real Madrid de Benito Floro, sério candidato a destronar
o hegemônico Barcelona de Johan Cruyff. Os homens da
Corunha eram líderes da prova à quinta rodada, ainda sem
derrotas, perseguidos pelos Merengues na tabela classifi-
cativa. O Real jogava com classe, um futebol ofensivo prag-
mático do homem que inventou em Albacete, anos antes, o
conceito do futebol total manchego, o “Queso Mecânico”.
Zamorano, Butrageño, Michel, Hierro e Sanchis eram os
habituais heróis de infância dos pequenos que davam os
primeiros pontapés na bola às portas do estádio mas nessa
noite a cidade galega sentiu que estava a presenciar um
fenômeno especial.

O Real Madrid esteve à frente, ganhando por 2 a 0 mas


com dois gols de Bebeto e Ricardo Rocha, contra, o La
Coruña virou o placar e criaram na imprensa a etiqueta que
ficou para a posteridade: “Super Depor”. A equipe galega
recebeu quinze dias depois o “Dream Team” e voltou a
vencer, de forma clara, e manteve-se durante grande parte
do ano à frente da tabela classificativa acabando a tem-
porada no terceiro lugar. Bebeto sagrou-se “Pichichi”, o

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O rival galego de Real Madrid e Barcelona nos anos 1990

guarda-redes Liaño venceu o “Zamora” e as bases para os galegos para o título que confirmaram a duas rodadas
o futuro estavam definitivamente consolidadas. do final da Liga. Nessa temporada, o Depor perdeu apenas
dois jogos em casa [inesperadamente contra Racing e
O ano seguinte foi ainda mais épico e traumático. Os
Numancia] e goleou por 5 a 2 o Real Madrid. Os pontos
homens de Iglesias bateram Barcelona e Real Madrid,
conquistados em casa deram gordura suficiente para gerir
outra vez, e chegaram ao último dia do campeonato como
a vantagem na liga e consumar um milagre histórico.
líderes. Jogavam em casa, contra o Valencia — que perdido
no meio da tabela só fazia figuração — e a vitória era Um título que marcou também uma metamorfose na vida
necessária para assegurar a conquista de um título ines- do clube. Lendoiro ambicionou ir mais longe e começou
perado mas justo mesmo que Barcelona ganhasse o seu a investir mais e mais dinheiro para melhorar a equipe.
jogo no Camp Nou. Os homens de Cruijff cumpriram o Chegaram jogadores como Juan Carlos Valerón, Diego
seu dever e o La Coruña não podia empatar. No Riazor, Tristán, Sérgio, Luque, Pandiani e a equipe tornou-se um
as celebrações antecipadas subitamente sofreram um mata-gigantes das provas européias, transformando-se
sobressalto. No último minuto o Deportivo, que seguia indiretamente num fenômeno de popularidade no Velho
empatado a zero, viu um pênalti ser marcado a seu favor. Continente.
Bebeto, o herói do time durante todo o ano, não quis bater
Vitórias frente ao Manchester United, Arsenal, Bayern,
e o central Djukić errou, adiando assim o primeiro título do
Milan e Juventus no Riazor ajudaram a criar a marca “Euro
clube. A derrota na última jornada da temporada 1993/94
Depor” ao mesmo tempo que o clube mantinha-se como
marcou profundamente Arsenio Iglesias.
a grande alternativa interna aos grandes, terminando no
Na pré-temporada seguinte, o técnico anunciou que se segundo lugar em 2000/01 [atrás do Real Madrid] e em
aposentaria no final do campeonato e deixou os adep- 2001/02 [apenas batido pelo Valencia, no primeiro ano,
tos do clube coruñés a pensar no que seria o seu futuro. desde 1983 que nenhum dos dois grandes de Espanha
Pelo segundo ano consecutivo o Deportivo acabou em termina nos dois primeiros lugares da tabela]. Na tem-
segundo, perdendo agora o título para o Real Madrid de porada seguinte o clube foi terceiro e lançou o definitivo
Jorge Valdano, mas dessa vez antes da última rodada. ataque a um grande título europeu. A gesta definitiva do
Terminar à frente do Barcelona, repetir a medalha de Super Depor terminou em Abril de 2004 num mano a
prata e vencer a Copa del Rey — pela primeira vez! — não mano intenso com o FC Porto de José Mourinho.
foi suficiente para mudar a opinião de Iglesias e para o
Os espanhóis eram favoritos para chegar à final de
seu lugar Lendoiro, o presidente que resgatou o clube
Gelsenkirchen depois de terem eliminado de forma con-
da obscuridade, encontrou no basco Javier Irureta, o
tundente o campeão de 2003, Milan, mas depois de um
homem ideal.
empate sem gols no Estádio do Dragão, marcado pela
“Jabo”, como era conhecido, manteve de pé a filosofia expulsão de Jorge Andrade, um gol de pênalti de Derlei
de Iglesias. Uma equipe sólida na defesa, com um meio- no Riazor acabou com as esperanças da equipe galega.
-campo com muito músculo e espaço para um criativo Foi a sua última gesta.
solitário e uma linha ofensiva móvel e vertical.
Nas temporadas seguintes, e à medida que os seus grandes
Os resultados não acompanharam as exibições nos pri- nomes individuais deixavam progressivamente o clube, as
meiros anos e o Deportivo sofreu para manter-se no arcas ressentiam-se da falta dos milhões da Champions
topo da tabela nas épocas seguintes, particularmente League. A saída de Irureta fechou o ciclo iniciado por
depois das saídas de Bebeto e Aldana. Pouco a pouco o Iglesias e o Deportivo tornou-se de novo numa figura
clube começava a rearmar-se, particularmente graças à secundária do futebol espanhol. Mas para os seus torce-
paciência e olho clínico de Lendoiro, e com as chegadas dores, e para muitos seguidores europeus que fizeram do
de Djalminha, Roy Makaay e Pauleta, o clube encontrou clube azul e branco um dos seus símbolos alternativos,
a combinação certa para voltar a lutar pelo título que lhe a épica lenda do Super Depor permanece viva, guardada
tinha escapado das mãos anos antes. no baú da história de um jogo controlado pelo dinheiro
mas gerido pela ambição de homens como os que fizeram
Irureta alinhava um time onde o virtuosismo de Victor,
daquele La Coruña uma equipe mítica.
Fran e Djalminha que era contra-balanceado pelo traba-
lho de Mauro Silva, Flávio Conceição ou Donato. Os gols
de Makaay e a eficácia defensiva de Naybet, Romero e
Manuel Pablo garantiam um equilíbrio em ambos vér-
tices do campo. E com esse alinhamento, o Super Depor
renasceu de forma definitiva.

Em 1998/99, o clube voltou à Europa ao terminar no


sexto posto na tabela classificativa. No ano seguinte os
“Turcos”, conquistaram o seu único título até hoje. A vi-
tória por 2 a 1, no Riazor, frente ao Barcelona de Louis van
Gaal, campeão nas duas temporadas anteriores, lançou

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Djalminha
Djalma Feitosa Dias
como ele é.

Por Mauro Beting,


Fernando Martinho
& Felipe Rolim

U
ma espécie em extinção em seu habitat natural.
Relaxado, à vontade, sem nenhuma formalida-
de, como ele mesmo quis. “Vamos fazer aqui
mesmo”, Djalminha preferiu falar com a Corner no Rei
do Caranguejo, em Barra de Guaratiba, onde tomava sua
cerveja com amigos de longa data. Um refúgio na Zona
Oeste do Rio de Janeiro, a mais de 20 quilômetros do Barra
Shopping e distante de qualquer badalação.

Sem camisa, de bermuda e chinelo, Djalma estava senta-


do na mesa ao lado de Alex Ribeiro, um ex-jogador sem
grande trajetória como a de seu amigo. Mas se Djalminha
é filho de ninguém menos que Djalma Dias, Alex é filho
de um renomado sambista, Roberto Ribeiro, e faziam um
“ensaio” de um samba escrito por Djalminha e sonorizado
no banjo pelo companheiro de longa data.

Ambiente alegre, calor não tão infernal do verão carioca,


numa localidade afastada da urbanização, uma roça,
com cerveja, samba e simplicidade caracterizada nas
cadeiras plásticas e mesas de madeira. Ali, todos eram
iguais, como muitas vezes gostaria de ser a maioria dos
jogadores. Daquele jeito, sem formalidades ou bajulações,
sem autógrafos, sem selfies, com muitas histórias, piadas
e provocações entre amigos.

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Fotografias:
Fernando Martinho

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Entrevista: Djalminha

A tua relação com o teu pai, o fato de terem o mes- “Eu não tenho nenhuma
mo nome, ajudou, atrapalhou?
mágoa do Zagallo.
Na verdade, futebolisticamente, eu não me lembro dele
jogando profissionalmente, ele parou em 1973 e eu nasci Minha mãe tem,
em 1970. Mas é a minha referência maior. Quando as com certeza.”
pessoas me perguntam, o meu ídolo, é o meu pai. Era meu
amigo, um cara que me cobrou muito e nunca exigiu que eu
fosse jogador de futebol. A obrigação era estudar. Futebol
era algo que eu gostava muito, um dom que eu tinha. Eu
fui sozinho pro futebol, me viram jogando pelada na rua,
fui pro futsal, e meu pai só começou a me acompanhar
um ano depois. Ele foi fundamental na minha vida, uma
pena que eu o tenha perdido cedo. Eu estou dando essa Seu pai era titular com João Saldanha nas elimi-
entrevista e gostaria que ele estivesse sabendo que essa natórias da Copa de 1970, mas não foi convocado
é a verdade. Foi uma referência principalmente como pelo Zagallo pro Mundial. Existia alguma mágoa?
pessoa muito mais do que como atleta. Ele falava disso?
Nunca falei sobre isso com o meu pai. Mas se perguntar pra
Ele queria que você fosse o que?
minha mãe, ela tem, pois em 1998 era o Zagallo também e
Ele queria que eu estudasse. Se eu não estudasse ele não eu não fui. Eu não tenho nenhuma mágoa com o Zagallo,
deixava eu jogar futebol. Como eu amava futebol, estu- foi o primeiro técnico a me convocar pra Seleção, mas a
dava. Era assim. Ele me cobrava no estudo e não pra que minha mãe com certeza tem! Ele não levou meu pai em
eu fosse alguma coisa. 1970, ele foi titular em todos os jogos das eliminatórias e
não foi pra Copa. As pessoas se lembram muito mais que
Seu pai era primo de Carlos Alberto Torres. Não eu fiquei de fora da Copa de 2002, mas em 1998 eu estava
era muito talento pra poucas Copas do Mundo? bem melhor em todos os aspectos do que em 2002, e o
Inclusive o Alexandre Torres, que foi um excelente jogador Zagallo não me levou. Mas sinceramente, eu não tenho
e poderia ter uma Copa. Eu acho que sim, mas são coisas nenhuma mágoa. Minha mãe tem, com certeza.
que acontecem. Carlos Alberto jogou só a de 1970. Meu
pai não jogou nenhuma, eu não joguei nenhuma, mas Você não foi pra Copa de 2002, por conta da cabe-
enfim… Mas sim, ter quatro jogadores nesse nível numa çada no Irureta..
mesma família é difícil. São poucos os casos de pais e Há controvérsias…
filhos que sejam grandes jogadores.
Então, fale sobre isso. Você teria ido no lugar no
Seu pai ficou quase sete meses sem jogar no Kaká, que era um garoto daquela geração. Ou me-
Palmeiras antes de ir pro Galo, tinha a questão do lhor, o Kaká foi no teu lugar…
passe. Ele ter passado por isso, te fez mais feroz
Sendo bem claro. Felipão foi ver um jogo. Barcelona e La
para brigar pelos teus direitos?
Coruña no Camp Nou e tinha um da Champions League
Me fez mais forte sim. Eu sempre fui um cara, como todos logo depois. Eu estava jogando todos os jogos do campe-
sabem, de personalidade forte. E é muito bom tocar nesse onato espanhol e às vezes não era titular na Champions.
assunto. A questão da lei do passe é muito conhecida Esse jogo em Barcelona, o Irureta não me coloca pra jogar.
pelo Afonsinho de quem meu pai era muito amigo e eu Eu fiquei louco, porque eu sabia que o Felipão estava lá,
também sou. Ele foi sempre muito presente nas nossas era uma oportunidade maravilhosa. Mas nós saímos
vidas. Mas foi meu pai que começou essa briga de ficar pra jantar depois do jogo, ele falou: “Djalma, tu tem
sete meses parado brigando pelo direito de jogar. Assim, 31 anos, eu conheço o teu futebol, você não precisa me
eu já nasci com essa visão de que os dirigentes não são mostrar nada.” Eu ainda perguntei a ele se eu saísse em
bonzinhos. Não pensam no atleta como ser humano, é só dezembro, se ele achava que ia ser melhor, ele disse que
sugar, sugar, e quando não serve mais não te respeitam, não precisava. Eu forçaria a minha saída, porque eu tinha
te execram. Não respeitam que você queira mudar de uma proposta do Lyon, pra poder jogar até a Copa, pra
local de trabalho. Não aceitaram que meu pai quis ir pro estar jogando. Ele disse que não precisava. E aconteceu a
Santos naquela época e teve que ficar sete meses parado, confusão com o treinador que eu realmente não gostava
ir pro Atlético Mineiro emprestado pra depois poder ir há muito tempo. Se ele quisesse realmente me convocar,
pro Santos. Interromperam sete meses de uma carreira. me convocaria, só que ele tinha muita pressão na época
Não é fácil ficar tanto tempo sem jogar. Eu levei muito em função do Romário, que ele disse que não convocou por
isso pra mim. Você tem que buscar o seu espaço e pensar indisciplina e quando acontece meu episódio na Espanha,
só em si na sua profissão, porque se você depender de um o caso explode nos jornais aqui no Brasil. Como eu não
clube ou de dirigente, você está ferrado. seria titular, que contava comigo pra quando os jogos

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Djalma Feitosa Dias por ele mesmo

estivessem difíceis, pra entrar e mudar o jogo. Havia


essa conversa. Ele não me convocou, eu não tenho má-
goa nenhuma, ele não tinha nenhuma obrigação em me
convocar. Mas se ele quisesse, ele teria me convocado.
Basicamente é isso.

O Alex falou algo muito parecido na Corner #5…


Sem querer te cortar, mas parece que com o Alex havia
uma promessa de convocação. O que é completamente
diferente do meu caso. Ele disse que contava comigo que
eu estava nos planos, mas nunca me prometeu que ia
me levar. E uma vez, a gente conversando lá no Resenha
[ESPN], o Marcelinho Paraíba disse que o Felipão tam-
bém prometeu que ia levar ele. Aí eu falei, o Felipão usou
muito bem a gente, porque a gente treinava só pensando
na Copa. Deixou todo mundo confiante e na hora ele
escolheu quem levaria.

Essa escolha, inclusive, se deu por outros aspectos


e nem tão táticos. Tanto que quando o Emerson é
cortado quem entra no lugar é o Ricardinho e não
você ou o Alex…
O Ricardinho nem era da mesma posição que o Emerson…

Teria então a ver com o teu temperamento?


Não, tanto que o Alex não foi. E eu já estava mais madu-
ro. Na Seleção, eu estava muito mais agregador do que
reivindicando meu lugar pra jogar. Eu queria ir pra Copa.
Eu sabia que essa era a última. Eu não teria outra chance,
eu não queria confusão.

Você acaba não indo pra Copa e vai emprestado pro


Austria Viena. Como você foi parar lá?
Simples e rasteiro: A cabeçada [no Irureta] é nas vésperas
de terminar a Liga. Logo antes da Copa. Eu já não estava
sendo titular do La Coruña. Faltando quatro dias pro en-
cerramento da janela, o meu representante me liga, e diz
que apareceu uma proposta da Áustria. Financeiramente
pra mim foi a melhor que eu tive na vida. O melhor con-
trato que eu fiz. Pensei: “vou lá ganhar um dinheiro. Já
estou com 32 anos, vou peitar o presidente, porque aqui eu
não estou jogando.” Se eu estivesse jogando, podia chegar
a mesma proposta que eu não sairia. Mas como eu não
ia jogar, eu fui no presidente e falei: “quero ir embora.”

Pra resumir, eu estava no show do Julio Iglesias com a


minha ex-mulher e o meu representante me liga, fala
da proposta, eu digo: “que Áustria!? Não!” Ele diz que
o dinheiro era muito bom. Ele diz quanto era, e dava o
dobro do que eu ganhava no La Coruña. Falei com a mi-
nha ex-mulher e ela disse: “vamos!”. O Show do Julio
Iglesias foi na quinta-feira. Na sexta, o cara da Áustria
queria ouvir da minha voz que eu realmente queria. Meu
representante em Luxemburgo colocou um telefone pra
ouvir o outro. Ele queria ouvir a minha voz. No sábado
encerrava as inscrições. O Marcelo, meu representante,
me liga na sexta e diz que não tinha vôo de Luxemburgo

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Entrevista: Djalminha

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Djalma Feitosa Dias por ele mesmo

pra Corunha, o cara da Áustria tinha o vôo dele, mas não ia


adiantar nada, o meu presidente [Augusto Lendoiro] não
falava alemão, nem inglês. Tinha que ter o Marcelo pra
intermediar. Falei pra ele se virar, alugar um jato, ele alu-
gou e chegou no sábado e falei queria ir na reunião. Se eu
não estivesse presente, o presidente não ia me emprestar.
A concentração do time era às 22h. Eu cheguei às 20h e à
meia noite fechava a janela. Falei pro presidente que queria
ir embora porque eu não ia jogar com aquele treinador,
que se eu fosse jogar eu não ia querer sair. Expliquei que
a proposta era boa papapá… Ele me perguntou: “mas
como vou conseguir um jogador como você agora?”, eu
respondi: “sou reserva, você consegue qualquer um, eu
já dei uma cabeçada no técnico, está arriscado eu dar
outra”, já ameaçando o presidente. Levantei e falei pra
ele não prejudicar a minha família porque eu ia ganhar
mais dinheiro [Djalma levanta gesticula como se estivesse
apontando o dedo na cara do presidente Lendoiro]. Ele
ficou louco, pediu pra eu ir pra concentração, tinha jogo
domingo. Estava lá, querendo que saísse essa transação.
Era um ano [de contrato], eu tinha mais três de contrato
com o La Coruña, a proposta era pra ficar um ano e se
eu jogasse 75% dos jogos, eu ficaria mais dois anos lá,
eles me comprariam. Eles pagaram 500 mil euros pelo
meu empréstimo e eu com 31 anos, eles ainda quiseram
dinheiro. Quando deu 23h30, me ligam e me perguntam
qual número eu queria jogar. Eu falei: “Qualquer número,
irmão!”, já peguei minha roupa, saí da concentração e
parti pra Áustria.

E qual número você acabou jogando?


Com a 30.

Muito do estilo do futebol brasileiro tem a ver


com o antigo futebol austríaco. Você vai jogar
no berço do futebol estilístico, mas você acaba
tendo um técnico que também reclama do seu
individualismo.
Quem foi o técnico que reclamou?

Christoph Daum.
Quem mandou contratar ele? Ele reclamou do meu
individualismo?

Reclamou, a imprensa portuguesa noticiou.


O que acontece, lá foi horrível. Você piora jogando com
jogador ruim. Lá eu me sentia na obrigação de fazer mais.

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Entrevista: Djalminha

Por isso eu era mais individualista. disse que não queria prêmio, não queria nada. Rescinde
agora! E o treino era em outro lugar, tinha que ir no clube
Tem aquela frase de que time ruim enterra craque pra poder rescindir, o Marcelo, meu representante está
e time bom consagra perna de pau. É isso? puto comigo até hoje porque ele deixou pra ganhar as
É claro! Óbvio. Quando cheguei era outro treinador. Era comissões dele só no final, quando eu fosse contratado
maravilhoso, o Walter Schachner. Foi um grande jogador em definitivo. Vai me chamar a atenção porque eu perdi
de lá. Ele era muito gente boa e um ótimo treinador. Só que um vôo? Deu uma merda lá no aeroporto, eu perdi o car-
o chefão lá quando me contratou, eu avisei pra ele, com tão de embarque, mas já estava na área de embarque, já
esse time nós não vamos. Aqui na Áustria até dá, vamos estava na porta, e quiseram me chamar a atenção. Então
ganhar tudo, mas pra jogar a fase de grupos da Champions, rescinde! Assinei a rescisão, não recebi prêmio, dei tchau
não vamos conseguir passar da fase prévia. Terminamos o e peguei um vôo pra Espanha na mesma hora. Meus filhos
campeonato com mais de 20 pontos na frente do segundo, precisavam terminar o colégio e eu voltei antes. Assim,
ganhamos a copa de lá, ganhamos tudo. Mas eu sabia que não tinha mais tesão de ficar lá, num campeonato fraco,
não dava [pra disputar a Champions League]. Ainda demos ruim, e pro objetivo deles, eu até abracei a idéia, mas teria
o azar de cair pro Porto [na segunda fase da Copa da UEFA que contratar mais jogadores.
2002/03, o Porto viria a ser campeão daquela edição com
Mourinho como técnico]. Eles tinham um time 50 vezes Aí você volta pra Espanha, com o Irureta ainda,
melhor que o nosso. Primeiro jogo, o Porto ficou parado como foi isso?
sem atacar a gente. Tentamos, tentamos e o Porto foi lá Irureta nunca foi o problema pra mim. Foi o treinador
e fez 1 a 0 em Viena. Lá, em Portugal, perdemos de 2 a 0. com quem eu mais tempo trabalhei na vida.
Ou seja, eu avisei.
Teve uma notícia da Folha
Mas voltando ao louco do
na época, dizendo que o
Daum, que e um bom treina-
Irureta tinha te perdoado.
dor mas e maluco, tem uma
filosofia meio louca, uns trei- Me perdoar de que? O que
acontece, na Áustria eu joguei
namentos loucos e me encheu “Irureta achava que e ainda me sentia competitivo,
o saco. A gente estava 10 pon-
tos a frente e ele chegava no eu e o Valerón não por isso que abandonei e quis
domingo, marcava o treino às poderíamos jogar voltar pra Espanha. Não me
sete da manhã e ficava falando arrependo de nada. Mas eu
por duas horas, falava que o
juntos” poderia ficar “roubando” lá
time jogou mal. Eu perdi a pa- mais dois aninhos, ia ser cam-
ciência. Quando veio o inverno peão. Eu sabia que a parada
eu desanimei geral. Quando na Espanha ia ser difícil, não
eu cheguei e vi aquele clima que o Irureta não gostasse de
maravilhoso, uma cidade ma- mim, mas ele achava que eu e
ravilhosa, no verão… o Valerón não poderíamos jogar juntos. Mas aí eu optei
pela qualidade de vida. Não vou me acomodar também,
Fala de Viena. vou lutar pela posição. Mas eu tinha um problema com
a Receita Federal de lá. Embargaram tudo meu. E foi por
Cidade espetacular, as pessoas nem tanto, são distantes…
culpa do clube, não minha. O clube não pagou meu imposto
quando eu fui pra Áustria. O presidente do La Coruña
Mas isso é bom pra você como jogador, de poder
até me ajudou, pois se ele me pagasse ia ficar retido. O
andar na rua…
presidente disse que ia resolver e como eu tinha muita
Sim, eu gostava disso, nunca me reconheciam em lugar moral lá, o Irureta teve que me engolir, digamos.
nenhum.
Então era um problema, apesar de você dizer que
Em Corunha, você tinha essa liberdade? não era.
Como a gente ganhava, não nos incomodavam, lá era Sim, porque ele sabia que eu ia querer jogar, eu ia ar-
paixão e eu sou apaixonado por aquele lugar. Mas voltando rumar confusão pra jogar. Eu no treino não dava bola
ao Daum, ficava cheio de coisa e eu me sentia na obrigação pra ninguém, treinava como um louco, queria jogar. Eu
de fazer mais pelo time. Eu não fui só pelo dinheiro. Tanto tinha muita moral, o time nunca tinha sido campeão e foi
que um dia eu enchi o saco, porque eu fui à Espanha e campeão comigo jogando. O Valerón nunca foi campeão.
perdi o vôo de volta, eles me chamaram pra conversar, Os caras me amam. Eu tinha muito prestígio no clube.
pra me dar um puxão de orelha, nisso eu nem quis saber, Como eles não resolveram a questão do meu imposto, eu
falei pra rescindir meu contrato. “Mas falta um jogo pra esperei o time chegar nas quartas de final da Champions
acabar o campeonato e você vai perder os prêmios”, eu pra entrar na justiça contra o clube. Se eu entrasse na

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Djalma Feitosa Dias por ele mesmo

justiça só depois que eu saísse, nunca mais ia receber. você é bom, você faz o que você quer em campo. O Messi
Quando bateu na justiça a juíza já deu o parecer favorável faz o que ele quer. Mas quando não, tem que seguir o
pra mim. Eu terminei o campeonato e tinha mais um ano baile. Quando você é acima da média você impõe as tuas
de contrato. Pedi pro presidente me deixar livre. “regras”.

Você consegue imaginar como seria o Djalminha Você falou da influência do seu pai na sua for-
jogador no mundo com redes sociais? mação como indivíduo, mas fala da tua formação
Estava fodido! Seria complicado. Eu não sou dessa geração. como jogador. Você jogou futsal até que idade?
É diferente. Mas eu ia conseguir me mover, mas aquele Até os 14 anos.
Djalminha teria muitos problemas. Mas isso aqui [aponta
pra mesa com o copo de cerveja na mão], esses caras Dali você vai pro Flamengo e faz o infantil, juvenil,
são meus amigos de longa data. Minha vida sempre foi júnior e profissional…
essa. Chegava de férias e pro bar com eles, pra resenha, Nenhum treinador me cobrou mais do que meu pai. Eu
minha vida é essa. Tomar a minha cerveja sempre foi fazia quatro gols no futsal e ele dizia que foi uma mer-
sagrada. Eu ia me dar mal, não ia ficar trancado em casa da. Eu: “uma merda? O jogo foi 5 a 0 e eu fiz quatro!” O
fazendo festinha, eu gosto da rua, de estar em contato papo era reto, ele disse que eu tinha perdido três gols e
com os outros. poderia ter feito sete. Era assim. Minha mãe pedia pra
ele não cobrar tanto. Eu ficava puto.
Você tem idéia de quanto
você corria em campo?? Teu pai te ajudou em como
Eu sempre estive bem fisica- bater na bola, em como
mente. Mas jamais colocaria proteger a bola, onde você
um negócio daquilo no peito. acha que se desenvolveu
Ia me rebelar com isso. mais? No futsal? Teve
algum técnico que te esti-
Riquelme já disse algo
“No Flamengo foi a mulou mais?
semelhante. Ele questio- melhor base que eu Meu pai me levava pra Quinta
nou essa aferição. Pois poderia ter tido. Graças da Boa Vista e a gente ficava
aquilo não mede se o cara
correu errado. Só mede a a Deus peguei uma batendo bola. Passe longo,
passe curto. Ele não errava, era
distância. época que era um muito bom tecnicamente e eu
Ia me incomodar, qualquer Flamengo de verdade.” não podia errar. A gente ia só
coisa no meu corpo ia me in- nós dois. Entrava no carro e ia
comodar. E segundo, que em pra lá. Foi o que me doutrinou.
vez de marcar o quanto eu
corro, marca o que eu faço. E posicionamento, ele
Sendo bem sincero. Não vou corrigia?
dar nomes. Jogadores que Não, nisso não, mais tecnica-
ainda jogam me disseram que mente mesmo. Ele era zaguei-
prejudica o rendimento, porque não deixa você pensar. ro, nisso ele não interferiu.
Tem horas que você tem que ficar parado, que por in-
tuição, você percebe que a bola vai chegar naquele lugar. Peladas, futsal, campo. Onde você aprendeu mais?
Mas você não pode mais ficar parado, porque vão ver que
No Flamengo, no campo, foi a melhor base que eu poderia
você não correu. Quantas vezes eu nem precisei ir marcar
ter tido. Graças a Deus peguei uma época ali que era um
o volante contrário, pois eu sabia que ele era ruim, que
Flamengo de verdade. Tinha o Projeto Soma, né? Que era
ele ia perder sozinho, hoje eu teria que ir lá, correr à toa,
pros moleques franzinos. Eu, Marquinhos, Marcelinho,
e isso prejudica o jogo. Mas pra peitar, tem que ser bom.
Fabinho, Paulo Nunes. Tudo Projeto Soma. Tinha o Luis
Quem erra mais passe no Barcelona? Messi. Então tira ele,
Antônio, mas ele já era forte, não precisava. Nem ele nem
porque ele é quem erra mais passes. Eu não tenho a menor
o Rogério [Lourenço], que aliás, a gente dizia: “não é
idéia do quanto eu corria, nem me preocupava com isso.
possível, tu é gato”, e pode ver, hoje ele está muito mais
Em todos os clubes que eu joguei, eu nunca estive abaixo
acabado que a gente. Eu era o melhor, mas era franzino.
dos oito melhores fisicamente em qualquer aspecto.
No time campeão brasileiro de 1992, você joga
Então, você não usaria aquele medidor? Se você muito pouco. Nélio e Paulo Nunes eram titulares.
tivesse vinte anos a menos e ainda jogasse. Marcelinho jogava bastante também e o Rogério
Obrigado, eu usaria, se estivessem me pagando dez mi- era o substituto imediato na zaga.
lhões, jogaria até de óculos. Mas não concordaria. Quando

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“O quão bem você vive que importa,
não o quanto você vive”

Citação em latim de Séneca,


escritor e advogado do Império Romano

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Entrevista: Djalminha

Eu começo o campeonato de titular, na ponta esquerda, Como foi essa passagem pelo Bugre?
porque o Nélio estava na Seleção. Aí joga com aquele Mas jogamos pouco tempo juntos. Eu cheguei e o Amoroso
meio de campo: Uidemar, Júnior e Zinho; Paulo Nunes, tinha metido 40 gols no aspirante e o treinador era o Levir
Gaúcho e eu. Mas ali não dava pra mim. Não era a mi- Culpi. Eu tive muita influência e pedi pro Levir subir o
nha. E o Carlinhos honestamente me diz, que não ia dar moleque. Antes de começar o Brasileiro, o Levir caiu e
pra eu jogar enquanto o Júnior estivesse jogando. Eu veio o Carlos Alberto Silva. Eu jogo o primeiro jogo contra
não conseguia correr igual ao Zinho. Não dava pra jogar o Cruzeiro, faço dois gols, Amoroso me dá o passe pra
Uidemar, Júnior e eu. Eu ia entrar um jogo ou outro, ele um. Joguei mais uns dois ou três jogos e fui pro Japão
foi muito honesto, eu me revoltei com ele, mas depois nesse brasileiro que ele foi destaque. Se eu não tivesse ido
fiquei apaixonado por ele. embora, ia ser difícil, jogar nós três, eles arrebentaram,
fizeram aquela dupla maravilhosa. Fiquei seis meses no
Você se revoltou com o Carlinhos? Japão e volto em 1995, quando fizeram aquela música
Sim, me revoltei porque ele me falou a verdade que eu “não é mole não, é Amoroso, Djalminha e Luizão”, só
não queria ouvir. Fiquei puto, eu queria jogar, eu sabia que ele jogou uns poucos jogos e sentiu o joelho e teve
que eu tinha potencial. E quando eu fui mandado embora que operar. Com o Luizão eu joguei bastante, mas com o
do Flamengo e vou pro Guarani, quem era o técnico do Amoroso joguei pouco.
Guarani? Carlinhos! Eu estou subindo pra sala do presi-
dente e ele fala com essas palavras: “Presidente, dá tudo Você vai pro Palmeiras e joga naquele time de
pra esse aí que ele é o cara”. Não é que eu não gostava 1996…
dele, mas a verdade dói. E o Maestro [Júnior] na época O melhor time que eu joguei na minha vida como
estava jogando pra caramba, não tinha jeito. profissional.

Ainda sobre essa gera- Luxemburgo, como foi ele


ção, houve um 7 a 1, num como técnico? Fala-se que
Flamengo e Corinthians ele ficou ultrapassado?
na Copinha de 1990. O que
Maior injustiça. Eu não tenho
você errou nesse jogo?
“O Palmeiras de 1996 uma relação além de amiza-
Sabe quantos gols você
fez? foi o melhor time de com o Vanderlei. Mas é um
cara que ganhou tudo, dos
Fiz cinco. que eu joguei como poucos que eu aprendi alguma
profissional.” coisa no futebol. Fiquei feliz
E os outros dois gols? por ele voltar pro Palmeiras
Participei de ambos. Mas eu em 2020. Ele sabe muito de
não me lembro desse jogo futebol.
muito bem não. Mas aquele
time era fantástico, nosso so- Ele não perdeu um pouco
nho era jogar pelo Flamengo, a o foco?
gente cresceu vendo o Zico. Mas pra mim não deu certo. Aí eu não sei. Não trabalhei com ele depois. Mas falar
Fui o primeiro dessa geração a sair. que ele não sabe de futebol, isso não existe. Foi o único
treinador [que eu tive] que preparava uma jogada no
O Flamengo de 1981 e aquele de 1992, ou o time de treino e saía tudo exatamente como ele queria e fazía-
1999, campeão da Mercosul tinham sempre uma mos o gol. Ele dizia que um ia fazer isso o outro aquilo,
base formada no clube. Já o Fla de 2019 só tinha o vai acontecer isso e gol. E não foi uma vez. Foram várias.
Reinier na reserva. Pra você, os tempos mudaram? Os outros [técnicos] falavam que íamos jogar assim ou
Como você vê isso? O que você sente pelo clube? assado, mas só ele dava o caminho das pedras. Ele estava
Eu não fiquei com nenhuma raiva do Flamengo, eu fiquei na vanguarda naquela época. Foi o primeiro a mostrar
com raiva das pessoas. Eu falei que nunca mais jogaria tudo no computador, qual tinha que ser a movimentação
no clube. Depois, até pensei, se me fizessem uma pro- do lateral esquerdo quando o lateral direito estava com a
posta, mas não aconteceu. Eu gosto do Flamengo e esse bola. Perdeu a bola, o outro lateral tinha que fechar, tudo
time [de 2019] joga pra caramba. Flamengo é Flamengo. lá [na tela do computador], eu sempre tive uma boa leitura
Claro que tem aquela história, de que craque o Flamengo de jogo e acontecia tudo no campo! Pode perguntar pra
faz em casa, mas pô, esse time eu desfrutei muito, como todos que trabalharam com ele se é mentira.
torcedor pra mim é o máximo, não me importa que não
tenha ninguém da base. Se tiver, lógico, melhor. Os jogadores da tua época se preocupavam com
tática? Porque jogadores de sub 20 pra baixo estão
Você chega no Guarani e está o Carlinhos como falando termos de jogadores de educação física.
técnico. Além disso, tinha Luizão e Amoroso.

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Djalma Feitosa Dias por ele mesmo

Estão falando. Mas se eles entendem eu não sei. Se você me E o Showbol? Tem a ver com isso?
ensinar a falar sobre um assunto, eu vou aprender, mas Ali é prazer máximo. Você não faz idéia do que é o teu
não vou entender necessariamente. Os jogadores de hoje ídolo te agradecer por você ajudar a encher a geladeira
sabem falar de tática, mas entender é outra coisa. Sabe o dele. Você não tem noção do que é isso. Retribuir à minha
que eu fazia? Falava pros meus companheiros em campo, classe, os ex-atletas. E era um prazer porque eu estava em
você vai pra lá, você vem pra cá. O que tem de tática nisso? alto nível ali. Eu tenho vontade de jogar, mas não volto.
Linguagem de campo. Eu mandava o cara tomar naquele Não dá mais. Eu vou fazer 50 anos. Não posso fazer feio.
lugar, falava pra ele não passar dali.
Maurinho, ex-lateral, o Mauro Fonseca, certa vez
E como você fez isso na Áustria e no Japão? confessou que ele jogava o Showbol por conta da
Eu xingava de tudo quanto era nome o tempo inteiro. Mas adrenalina da competição. Existe isso? É viciante?
no Japão, o Rivelino xingava mais do que eu, aí eu só ria. Eu sou assim, mas a minha competição passou a ser no
Eu entendia muito ele. Tentar explicar pra um cara que futevôlei. Quando eu comecei o Showbol, era só com joga-
não tem qualidade e ele não entender é muito complicado. dores da minha geração de 1970, só tomamos porrada. Eu
Por isso que eu nunca pensei em ser treinador, porque comecei a pegar um aqui outro ali pra competir. Cheguei
eu acho que não ia ter paciência. Eu vou chamar o cara no posto de gasolina um dia e o frentista veio me cobrar
de burro e não pode fazer isso. que tinha perdido no Showbol. Não, cobrança de novo,
não! Armei um time bom e ganhamos tudo. Ninguém
Como isso te influenciou na tomada de decisão pra gosta de perder.
parar de jogar?
Influenciou porque eu senti que não tinha mais o mesmo Essa é a questão, da abstinência da adrenalina.
rendimento. Eu me cobrava Eu morro se não tiver.
muito e não conseguia mais Consegui no futevôlei, já estou
resolver sozinho as coisas no surfe, no pôquer, qualquer
que eu costumava resolver. A parada. Isso pra mim é vida.
cabeça funciona, mas o corpo Ficar tenso é muito bom.
não é mais o mesmo. Eu tinha “Eu morro se não tiver
certeza que se eu voltasse pro
Brasil, a cobrança ia ser pelo
[adrenalina]. Consegui Tem um outro lado, você
falou da ajuda financeira
Djalminha que eles viram e no futevôlei, já estou no pros ex-jogadores mas…
isso ia me incomodar.
surfe.” Tem a qualidade de vida. Eu
sempre falo com a galera. O
E o pior, pois você jogou
cara pára de jogar, fica gordão,
num time que todo mundo
enfarta e morre. Aí o cara se
via aqui no Brasil, pri-
cuida mais.
meiro foi o Bebeto, depois
o Rivaldo, todos viam aquele La Coruña mas sem
Tem um passo além, alcoolismo ou qualquer outro
tanta exposição, só os principais jogos. Logo, iam
vício pra suprir a abstinência, o Showbol ajuda?
querer aquele melhor Djalminha.
Olha, não tem tanto poder, pois o Showbol dura um mês,
Exato. E o que me ajudou muito, foi o fato do meu pai ter
três vezes por ano, não dura um ano. Não dá pra mudar
sido jogador. Eu vi todo o processo. Ele parou, na época
um ser humano. Se ele observar que ali ele consegue
não se ganhava tanto, mas eu sempre tive uma vida boa.
ganhar um trocado, ele vai se cuidar, mas ele não vai
Ele parou em 1973, eu nasci em 1970. Mas eu percebi que
conseguir só por causa disso. Mas quando o cara deixa
as coisas iam caindo de padrão. Eu guardei isso na minha
de ter a competição, pra ele se viciar em alguma coisa é
cabeça. Eu tinha que parar com uma cabeça boa. Porque
mole. Álcool ou qualquer droga. A pessoa fica perdida, ela
muito jogador se fode por isso, por não saber fazer ou-
precisa encontrar outras coisas. Eu encontrei rapidinho
tra coisa e não aceita parar. Eu admiro quem joga até os
no Showbol. Tive sorte. Parei de jogar e já comecei com
quarenta. Nada contra. Opção de cada um.
o Showbol.

O jogador não se prepara pra parar?


Antes da entrevista começar, você estava cantando
É igual a morte. A gente tem medo da morte, mas sabe um samba que exalta a negritude. Como era o pre-
que vai morrer. conceito na sua época como jogador. Você sofreu
com isso na Europa?
Mas e a falta de assédio, imprensa atrás?
Na Áustria, mas eu já era mais velho, eu pensava “você
Esse é o bobo. O cara que precisa disso é bobão. Vocês que é ruim, não sou eu”. Me coloquei numa posição su-
me ligaram, falaram da capa, legal, mas se eu desse uma perior. Eu sempre tive uma cabeça bem aberta em rela-
louca hoje, eu furava, não estou preocupado com isso.

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Entrevista: Djalminha

ção a isso. Mas nós [aponta pra André Ribeiro] somos


privilegiados. Nunca passamos dificuldades, meu pai no
futebol e o pai dele no samba deram essa vida pra gente,
aí é mole. Mas aqueles que sofreram mesmo, o buraco
é bem mais embaixo. A minha irmã quis denunciar um
porteiro uma vez, eu falei pra ela deixar pra lá, que ela
tinha que ser superior àquilo ali. Ela ia pra delegacia. A
pessoa sente quando alguém olha torto. Eu disse que ele
era pequeno, pra ela não denunciar. Mas essa música aí
surgiu porque num dia que eu conheço o Seu Jorge, ele
me deu uma idéia muito boa, porque eu me preocupo com
isso, com nós que somos negros. Essas coisas de cota,
legal, mas você vê, quem está preso é negro, quem está
morrendo pela polícia é negro. Aí o Seu Jorge chega pra
mim, e eu que queria conhecer o cara, e ele fica falando
por dez minutos só disso, e isso entrou na minha cabeça.
Não sou compositor. Só escrevi uma música. Aí fiz essa
outra. Nós que temos uma posição, temos que fazer algo.
Mas eu disse que não podia fazer sozinho. Na música diz,
“tem um gaúcho que é bruxo”, tem o Ronaldinho, tem
o Xande de Pilares, aí vira um movimento. Um sozinho,
fica enfraquecido.

Seu jeito de jogar irritava o adversário.


Ali eu quero que ele tenha raiva de mim. Essa era a idéia.
Se ele está com raiva eu estou fazendo o certo. É compe-
tição. Mas ali tem regra. Ele não pode me matar, naquela
regra eu sou melhor que ele. Eu vou driblar, ele vai me
bater? Cartão vermelho.

E pra ser técnico, você acha que o negro é encora-


jado pra estar nessa posição?
Encorajado? Irmão, qual treinador que é negão? Outro
dia, um jornalista disse que o Marcão pra ser técnico do
Fluminense não servia, que pra ser interino estava bom.
Ele não percebe que isso é preconceito. Com que base ele
afirma isso? Onde ele conversou com o Marcão sobre
futebol? O que ele conhece do Marcão como técnico? É
porque é negro. Andrade foi campeão brasileiro e não
arrumou mais emprego. Jayme de Almeida… Se eu sou
campeão brasileiro como treinador, eu estou empregado
pra vida inteira, porque eu vou falar isso todo dia, eu ia
peitar. Júnior Baiano é meu brother, teve uma pequena
chance e já desanimou porque tem preconceito sim.

Em cargos de gerência teve o Roque Júnior na


Ferroviária e o Tinga no Cruzeiro.
Mas o Tinga é fenômeno. O que ele fez? “Não vou ficar

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Djalma Feitosa Dias por ele mesmo

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“Era de igual mais”, ninguém mandou ele embora. Ele sentiu que não
tinha ambiente e ele não precisa daquilo. Ele pode fazer
pra igual. isso. Ele é um negro que gosta de verdade, de persona-
lidade, que não vai se sujeitar àquilo. Se um dia eu for
Podia vir quem treinador, vou impor condições, se não forem respeita-
das, eu vou embora, porque eu tenho condição de peitar.
viesse. Em Quando você precisa, você tem que fazer o que você não

seis anos que quer, pra ganhar o teu salário, aí é foda. Eu nem gosto
muito de falar disso, eu gosto de fazer.

fiquei lá, eu Por falar em técnico, você falou dos seus proble-
nunca perdi pro mas com o Irureta no Deportivo, mas você chega
bem antes, ainda no Super Depor. Esse “proje-
Barcelona ou to” começou com Bebeto, Mauro Silva e Donato,
depois chega o Rivaldo e você na seqüência. Teve
pro Real Madrid outro jogo que você jogou com o Rivaldo.

jogando em Só na Teresa Herrera!

Corunha” Nessa Teresa Herrera, vocês enfrentam o Vasco


que foi campeão brasileiro naquele ano e ganham
de 4 a 0 com todo mundo em campo, Edmundo,
Evair, Felipe… Como era esse time que enfrentava
de igual pra igual Barcelona ou Real Madrid?
Sim, eu tinha mais medo de jogar no San Mamés contra
o Athletic do que contra o Real Madrid no Bernabéu ou
o Barcelona no Camp Nou. Muitas vezes o campo estava
ruim, era um jogo mais aguerrido. Era pior, faziam mais
medo. Eu adorava jogar no Bernabéu porque eles atacavam
e não se preocupavam tanto com a gente. Davam espaço e
o nosso time era bom. Agora, jogar contra um time que vai
marcar o tempo todo e te dar pancada é bem mais difícil.

Como era enfrentar os grandes? O time muda-


va sua formação quando ia enfrentar Barça ou
Madrid?
No meu primeiro ano, a nossa equipe era inferior.
Tínhamos que nos defender bem e buscar o resultado
num contra-ataque. Em 1998, nossa equipe melhorou.
Já tínhamos que nos preocupar menos com se defender.
Mas em 1999, a gente estava muito mais forte. A gente
dificilmente levava gol e tinha o Makaay que foi funda-
mental, ele era muito bom pra fazer gol. Tinha fama de
preguiçoso, mas fazia gol, resolvia nossos problemas.
Pessoal encrencava com ele no treino e eu falava pra deixar
ele na dele porque quando eu enfiava a bola, ele guardava.
Era eu e o Fran metendo bola pra ele e ele fazendo gol. E
depois de ser campeão, contrataram mais gente, aí era
de igual pra igual. Podia vir quem viesse. Em seis anos
que fiquei lá, eu nunca perdi pro Barcelona ou pro Real
Madrid jogando em Corunha. Perdemos uma vez, mas eu
considero que não perdi porque eu estava no banco. Até
entrei no jogo e o Ronaldinho acabou com o jogo. Foi 3 a
2, com três dele. Entrei só no segundo tempo, nem conto.

E a rivalidade com o Celta?


Cara, acho que joguei um jogo só lá, ou dois. Eu sempre
estava suspenso. Eu sou o recordista de cartões vermelhos

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Entrevista: Djalminha

do Deportivo. Eu gosto de bater récordes. cabeça, ele nem tinha o direito de reclamar, só porque
perdi aquela? Ele começou a gritar comigo, eu respondi,
A força desse Depor era impressionante. Na me chamou de moleque e eu fui pra cima. Brigamos.
Champions de 2000/01, na fase de grupos, jogo Entramos no vestiário e ele começa a falar que “essa
de volta, contra o Milan no San Siro, o jogo estava molecada é muito abusada” e eu já estava no chuveiro,
zero a zero. Pênalti pro La Coruña. Você bate. ouvi no banho, e respondi “foda é aturar esses velhos que
Quando o Capdevilla sofreu aquele pênalti, eu já peguei não servem pra nada, esses velhos mortos, que a diretoria
a bola e ele veio me dizer pra não dar a cavadinha. Que encobre”, enfim. Ficou nisso. No dia seguinte, cancelaram
não o quê! Eu vi o goleiro, o Rossi, grandão, ele ia pular o treino, chamaram ele às 9h e eu às 10h. Não sei se ele
com certeza. Nem duvidei. Tchau. O treinador nunca teve influência nisso. Mas nem conversaram comigo, já
falou nada comigo. Eu nunca perdi um pênalti, pô. Ele chegaram falando que iam rescindir o meu contrato. Eu
não gostava, mas nunca me pediu pra não bater daquele acho que eles esperavam outra reação minha. Mas eu
jeito. O Vanderlei já. Mas eu bati tranquilão, foi moleza, falei “está bem”. Eu sozinho, sem empresário, nem tinha
colocar a bolinha ali na marca... empresário. Eu tinha 22 anos. Aí eu perguntei se o passe
era meu. Quando eu disse isso, mudaram o semblante,
Djalma, desculpe te interromper, mas era contra o e disseram que eu tinha direito a falar. Falar o que? Não
Milan no San Siro pela Champions League, como tinha nada pra falar. Perguntei de novo se o passe era
assim moleza? meu, disseram que não era bem assim. Eu saí, peguei
tudo meu, minhas chuteiras, tudo. Fui embora. Nunca
Difícil é fazer um gol de fora da área. Agora, eu coloco a
mais voltei ao Flamengo. Aí, o Carlos Alberto Torres,
bola na marca do pênalti, o gol está ali, eu olho e posso
que até passei grande parte da infância junto com eles,
chutar em qualquer lugar sem ninguém do meu lado.
mas era uma pessoa mais distante, quando ele soube o
Difícil é fazer um de cabeça naquela defesa com o Maldini…
que aconteceu, ele foi comigo lá no clube e todo mundo
Agora, pênalti? Fácil, já era.
tremeu quando ele chegou. Ele disse que tinham que pagar
Quem você odiava quando te marcava? tudo que me deviam e disseram pra marcar uma reunião.
Marcamos. Isaías Tinoco, que foi quem me deu a notícia
Makélélé. E no Brasil, o Amaral. Eles não faziam falta,
da rescisão do contrato, Edmundo Santos Silva, ele era
ficavam te mordendo, você driblava, eles vinham de novo.
do financeiro, eu e Carlos Alberto Torres na reunião.
Quando o cara te dá uma porrada é mole, você dribla e
Eles vieram dizer que tinham mudado de idéia, que iam
é falta. Esses dois eram incansáveis. O Makélélé desde a
me aplicar uma suspensão. O Carlos Alberto já disse que
época do Celta e o Amaral quando eu jogava contra ele
estava tudo errado. Nisso me emprestaram, pagaram o
no Brasil.
que me deviam, fui embora e nunca mais voltei.

No Brasil te faziam muita marcação individual?


E isso foi bom pra sua carreira? Você sai da zona
Foi um dos motivos que me fez querer ir embora. Aqui de conforto?
estava ficando difícil. Colocar um cara pra correr atrás
Foi a melhor coisa! Esse é o outro lado da moeda. Eu mo-
de você o jogo inteiro é muito desgastante, tem que se
rava no Rio, meu pai já era falecido, mas eu morava com a
movimentar pra receber uma bola. Cheguei na Espanha e
minha mãe, no Leblon, tinha carro, moto, playboyzinho.
lá eu não era ninguém no início. Deitava e rolava. Depois
Gostava de festa, não era tão profissional. No primeiro
começaram a apertar mais.
dia que eu cheguei em Campinas, chorei pra caralho,
no hotel, pensei, “porra, vou morar aqui agora”, mas
Mas teve um cara que atrapalhou mais a tua
em compensação quando fui assinar meu contrato e vi
carreira.
o dinheiro que eu podia ganhar com futebol, eu fiquei
Quem? sem sair nem uma vez. Fiquei seis meses focado. Explodi,
ganhei bola de prata. No outro ano, quando termina o
Renato Gaúcho. campeonato brasileiro, primeiro jogo do campeonato
Não! Ele foi quem mais ajudou a minha carreira! paulista contra o Santos na Vila Belmiro. O presidente me
amava e eu voltava de carro com ele e não com o time de
Pois é, conta aquele episódio e o peso do que acon- ônibus. Eu falei pra ele que queria que me comprassem.
teceu na tua saída do Flamengo. Seu Beto Zini. Ele não acreditou. No dia seguinte fomos
O motivo foi exatamente esse. Fla-Flu no Caio Martins, pro Rio. Meu passe estava estipulado em 750 mil dólares,
fizemos 2 a 0, dois gols do Renato. Fluminense teve um ele chegou e ofereceu 500 mil dólares. O Flamengo estava
jogador expulso. E eles começaram: 2 a 1, 2 a 2 e, faltando numa crise, aceitou. Mas não quiseram me pagar os 15%
cinco minutos pra acabar, 3 a 2, viraram o jogo com um que eu tinha direito. O Zini disse que eu podia assinar, que
a menos. Todo mundo puto com aquela virada. Chutam ele ia pagar a minha parte. Eu, com raiva do Flamengo,
uma bola lá pra frente, eu disputo com o Lira no alto, disse “no senhor eu confio, neles não!”, na cara deles.
perdi, normal, perdia todas. Nunca ganhei uma bola de Saímos da Gávea, ele falou pra eu ficar uns dias no Rio.

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Djalma Feitosa Dias por ele mesmo

E com o Renato, você se resolveu com ele? Conceição e eu. Eu falei mesmo, “vim pra ser campeão”.
É meu cliente no futevôlei! Ele não tem culpa de nada. Eu me lembro num jogo que eu foi o primeiro pênalti
Quem manda no clube é o dirigente. Não foi o Renato. que eu perdi na vida, La Coruña e Mérida, com o Navarro
Normal, coisa de bola. Na época, no início ficou um clima Motoya no gol. Estava 0 a 0 e na seqüência eles fizeram o
ruim entre eu e ele. Mas no final daquele ano, teve uma gol, no segundo tempo já. Eu comecei a querer resolver
pelada na praia, e ele já veio falar comigo. A gente se dava tudo sozinho, foi o pior jogo da minha vida, só fiz merda.
muito bem, foi uma coisa de campo. No futebol a gente Acabou o jogo, eu fui lá e falei: “hoje o La Corunã perdeu
briga muito. Já briguei com um monte de companheiros, por minha culpa, mas eu tenho certeza que vai ganhar
isso é normal. Faz parte. muitos jogos por minha causa também”.

Você vê futebol? Quando um jogador qualificado sente que não está


num dia bom, ele resolve tocar pro lado ou quer
No Brasil, vejo o Flamengo. Nem Barcelona me seduz,
arriscar mais?
Manchester City, nada. Me amarro em ver o Liverpool,
hoje, em 2020 é o time que eu mais gosto de ver jogar. Já Eu morro atirando. Não vou me acanhar, porque ali eu
gostei de ver o Barça, mas não mais. me garanto. Jogando eu vou até morrer porque eu sei que
sou bom. Pra um jogador de futebol, e acho que na vida, é
A maioria dos campeonatos ficaram muito previ- mais importante ele ter personalidade do que ele ser bom.
síveis. Itália, Alemanha, França e Espanha já tem Você tem que se impor. Você tem que peitar. Se você der
claramente um ou dois favoritos. mole, as oportunidades somem porque você foi devagar.
Eu cheguei pro presidente e pedi que ele me comprasse.
Mas se ninguém quiser se superar também, se aposenta.
Eu era o melhor do time. De repente, se eu não tivesse
Quando eu cheguei na Espanha, fizeram piada. Eu disse
pedido, ele não me compraria, porque ia passar mais seis
assim: “Cheguei aqui pra ser campeão.” A imprensa ridi-
cularizou. O time tinha sido vice e contratou Luizão, Flavio

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Entrevista: Djalminha

meses, eu arrebentei de novo, e o Flamengo falar “não “No intervalo, o médico


vendo mais”, entendeu? Meti 18 gols pelo Guarani, ganhei
a Bola de Prata. Pedi quase assim: “por favor me compra”. me perguntou se eu tinha
sentido alguma coisa. Eu
E no final da sua carreira você vai parar no México.
falei: ‘Doutor, parei de jogar
Eu rescindi com o La Coruña, vim pro Brasil, com a in-
tenção de parar até. Recebo a proposta, fui lá, gostei da futebol’, ele não acreditou.”
estrutura do clube, da cidade. Era um pouco mais do que
eu ganhava no La Coruña, mas nem era o dinheiro que
pesava. E lá, eu ia competir, pois o futebol mexicano é
competitivo. Jogar no Azteca, enfim, mas as coisas não
aconteceram. Eu treinei dois meses e me machuco na
semana que ia começar o campeonato. Lesão muscular,
num treino ridículo desses preparadores físicos idiotas.
Parei, voltei a jogar, senti de novo. Três vezes a mesma
coxa. Nessa minha volta, eu fico no banco. O treinador
me coloca no jogo e eu faço um gol.

Aí teve um jogo no Azteca, o Ruggeri era o técnico, me


colocou faltando quinze minutos. Eu fiz umas graças,
estávamos ganhando o jogo. Ele vai na coletiva e diz que
o importante é ganhar e não jogar bonito. Na segunda-
-feira, o presidente mandou ele embora, “No América
tem que ganhar e jogar bonito”, ele disse. Eu tinha con-
trato de um ano, tinha um jogo contra o PUMAS e o Piojo
López tinha sido contratado nessa semana. Estréia dele,
primeiro tempo, 3 a 0 pros caras no Azteca. Vinte e pou-
cos minutos já estava 3 a 0, e o treinador colocou dois
jogadores pra aquecer. Eu dentro de mim pensei: “vai
ser a primeira vez que vou ser substituído no primeiro
tempo”. Eu estava uma merda, o time todo mal, eu tava
no bolo. Ele tirou o Piojo López e o lateral esquerdo. Me
livrei, mas com uns 40 minutos eu senti a coxa no mesmo
lugar. Fiquei aqueles cinco minutos disfarçando, eu não
podia pedir pra sair, fiquei fingindo. Mas no vestiário, o
médico me perguntou se eu tinha sentido alguma coisa.
Eu falei pra ele: “Doutor, parei de jogar futebol”, assim
mesmo. Ele não acreditou, disse que eu voltaria a jogar
em quinze dias, eu repeti: “você não está entendendo, eu
parei de jogar futebol”. Tirei a minha camisa, meu short,
fui pro chuveiro, saí, minha família estava no estádio.
Fomos almoçar, o jogo era meio-dia, aí falei pra minha
ex-mulher “parei de jogar”, ela me chamou de louco,
eu falei que tinha acabado. À noite tinha um churrasco
na casa do lateral-esquerdo que tinha sido substituído,
e os gols foram todos nas costas dele, eu fui lá, falei com
a rapaziada e fiz o anúncio pra eles, mas deixei claro
que ia parar mesmo, que não estava saindo porque o
time estava mal, que todo mundo tinha a carreira pela
frente. O presidente não queria me dar a liberação, com
medo de eu ir jogar em outro clube. Mas ele me pediu a
indicação de um jogador como eu. Eu indiquei o Felipe,
ele estava voando no Flamengo, eles conversaram mas
não teve acerto.

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Djalma Feitosa Dias por ele mesmo

Após a entrevista, o samba comeu solto com Djalminha


e seu amigo, Alex Ribeiro.

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Foi eterno
enquanto
durou
Arquivo/Folhapress

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“Preste atenção. Esse time vai jogar pra
cacete. Hoje não foi nada ainda. Esse
time vai ser foda. Você vai ver!”

Por Mauro Beting

E
u vi o que Vanderlei Luxemburgo profetizou no
jantar em janeiro de 1996, depois do amistoso
de estreia da temporada contra o Grêmio (vice
mundial um mês antes). O Palmeiras venceu por 2 a 1
em casa. Mas poderia ter sido fácil o repeteco dos 5 a 1
da Libertadores de 1995. O Brasil também veria o que ele
planejou. Pena que a América e o mundo não puderam
ver mais do que cinco meses de um melhores futebóis
da história.

“Futebóis” é feio mas está certo. Aquele trem-bola que


o professor montou na segunda Via Láctea escalada pela
Parmalat — nos tempos de vacas gordas no Palmeiras dos
anos 1990 — era lindo de ver e torcer. Mas ficou “feio”
ter conquistado como único feito “apenas” um Paulistão.
E ter perdido no Palestra Italia [sem acento em “Itália”]
a decisão da Copa do Brasil para o ótimo Cruzeiro de
Levir Culpi. Título que levaria a Raposa à reconquista
da América em 1997. Depois de Dida e ótima companhia
celeste em 1996 terem sofrido um bombardeio paulista
em 180 minutos. Nas duas partidas decisivas da Copa, o
Palmeiras teve 25 chances e marcou apenas dois gols. O
Cruzeiro chegou apenas cinco vezes, mas marcou três e
foi o campeão.

Crime lesa-bola com um time avassalador e espetacular.


“O melhor time que já joguei em minha vida.” Frase
padrão dos onze titulares de Luxemburgo. E de quase
todos os reservas.

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Foi eterno enquanto durou

Entre eles, multicampeões como Muller. Dois Mundiais


pelo São Paulo e uma Copa pelo Brasil. O cara que o São
Paulo fez “pular o muro” antes da finalíssima contra
o Cruzeiro. Ele não foi feliz na sua caríssima terceira
passagem pelo Morumbi. Mas foi essencial para desfal-
car o Palmeiras na decisão. Um caro troco tricolor pelo
“sombrero” palmeirense um anos antes quando trouxe
Cafu de volta ao Brasil.

Perdida a Copa do Brasil para o Cruzeiro e Muller para


o São Paulo, o Palmeiras ainda negociaria na sequência
Rivaldo com o La Coruña. O Verdão que no primeiro se-
mestre de 1996 engatou 21 vitórias seguidas [12 delas por
goleada] não existia mais.

A Parmalat ainda tentou segurar seus craques. Mas não


tinha como. O gerente de futebol no clube à época, José
Carlos Brunoro, conseguira manter Rivaldo até julho. Ele
já teria saído no final de 1995 pelo acerto entre as partes.
Também por isso a co-gestora palmeirense contratara
Djalminha e o goleador Luizão, do Guarani. Inovando
ao trazê-los ainda na reta de chegada do Brasileirão de
1995. O Palmeiras tinha chances de conquistar o terceiro
nacional seguido. Sobretudo com a volta de Luxemburgo
ao comando de clube, em outubro de 1995, no lugar de
Carlos Alberto Silva.

Mas a idéia ousada e inusitada foi antecipar a chegada de


Djalminha e Luizão para que já se condicionassem fisi-
camente e se entrosassem com o elenco. Em janeiro de
1996, o novo Palmeiras já voava. No Nordeste, no Torneio
Euro-América, meteu 6 a 1 no Borussia Dortmund — que
em dezembro de 1997 seria campeão mundial sobre o
Cruzeiro, que venceu do Palmeiras aquela Copa do Brasil.
Empatou com o Flamengo no fim do jogo e conquistou o
torneio em Fortaleza.

Minimizando as críticas ao treinador por ter negociado


com o rubro-negro o ídolo Mancuso, ótimo volante ar-
gentino. Mas “lento” para a idéia de um time com muita
velocidade em todo campo. Equipe que marcasse o rival
na saída de jogo dele. Atacasse pelo lado com dois laterais
ofensivos e espetados, no usual 4-2-2-2 da época — mas
chamado de 4-4-2 à brasileira, com dois volantes e dois
meias centralizados.

Por isso Luxemburgo liberou Mancuso e apostou em


Amaral e Flávio Conceição, que com o próprio Luxa foram
campeões no Palmeiras em 1993 e 94. O treinador pediu a
volta de Galeano, volante de muita raça e aplicação tática
lançado pelo clube em 1989. Dois deles fariam a cobertura
de Cafu pela direita e do lateral-esquerdo que era aposta
do técnico, da diretoria e da Parmalat: o jovem e desco-
nhecido Júnior que viera do Vitória. Impressionara no
jogo contra o Palmeiras no Brasileiro. E era a alternativa
de mercado para Roger — que ainda não era Machado —,
e que o Grêmio não fazia negócio.

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O Palmeiras de 1996, por Mauro Beting

Arquivo/Agência Estado

Na zaga, melhor protegida pelos volantes, Luxemburgo na armação, Luizão no comando do ataque, Muller mais
recuperara a confiança e a condição física de Cléber. E pela esquerda em parceria com Júnior, com o corredor
ainda apostara com ele que o zagueirão ajudaria na frente direito aberto para Cafu apoiar.
fazendo gols. Só o zagueiro pela direita ficaria mais atrás.
Pelo contrato com as televisões fechadas, a ESPN Brasil
Era para ser titular Cláudio, ex-Guarani. Mas lesões e a
tinha o direito de escolher o jogo que transmitiria no
eficiência naqueles meses de Sandro Blum [ex-Juventude,
Paulista. O Sportv ficava com a segunda partida. Quase to-
irmão de leite gaúcho também patrocinado pela Parmalat]
dos os jogos palmeirenses passaram na ESPN. Jornalistas
garantiram uma zaga firme de um time que jogou como
faziam questão de ver o Palmeiras jogar. E o bolão era
raros na história, e não deixava os rivais chegarem perto
“quanto seria?”, Independentemente do rival e do mando.
da meta de Velloso — também em grande fase.
Fui convidado a dirigir um documentário a respeito da-
No Paulista, o Palmeiras de 1996 repetiu a proeza da quele time. Algo então raro. Os caros direitos de TV en-
“Primeira Academia” de Filpo Núñez, que ganhou os tão inviabilizaram a produção de um time com futebol
dois turnos do torneio Rio-São Paulo e cancelou as finais. de cinema. Insaciável em campo. E fora dele. Marcado
No estadual, foram absurdas 27 vitórias, dois empates, dentro e fora de campo, ótima parte daquele time tinha
e uma derrota em Campinas para o Guarani. Foram 102 apetite insaciável também nas horas de folga. Foi um
gols marcados. Seis deles na goleada contra o Santos vice dos elencos mais encantadores da história do futebol.
brasileiro em 1995. Um 6 a 0 na Vila Belmiro! Um alviverde Imponente.

Teve outros dois 8 a 0 em Ribeirão Preto e Aracaju contra Uma maravilha que durou apenas cinco meses e segue
Botafogo e Sergipe. “O time entrava em campo discutindo sendo exemplo de um futebol espetacular. O que ajudou
quanto seria o placar”, lembra Muller. Luxemburgo in- meu primogênito a ser palmeirense quando o time estava
sistia para que fosse sempre mais. Fazia um gol, buscava na Série B em 2003. Em vez de ver os jogos sofridos na
muitos mais. A melhor maneira de respeitar o rival era Segundona, o pai mostrava os VHS de 1996. Uma aula
querendo mais gols. E eles vinham. Djalminha e Rivaldo de futebol e de Palmeiras. Foi eterno enquanto durou.

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Quando o
Flamengo
quis
disputar o
Paulistão
O Fla-Araçatuba e o
Campeonato Carioca do W.O.

Por Fernando Martinho

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E
ra novembro de 1997. O Vasco chegava à final
do campeonato brasileiro daquele ano superan-
do o Flamengo na segunda fase da competição.
Edmundo, o artilheiro daquele Brasileirão, fez três gols ao
seu estilo, com velocidade e dribles combinados no jogo
que selou a passagem para a decisão contra o Palmeiras.

O Flamengo vivia os anos de Kléber Leite, o ex-radialista que,


de certa forma, revolucionou o clube — pra bem e pra mal. A
cada ano o Rubro-Negro trazia jogadores de renome, mas sem
uma preocupação com a montagem de um time de futebol.

Em 1995, quando trouxe — Romário em uma operação


de marketing que só era possível naquela época graças
à paridade cambial entre o dólar do recém implemen-
tado Plano Real —, Kléber Leite não poupou iniciativas
como um “0900” para que a torcida definisse qual camisa
Romário deveria usar. Por cada ligação, o torcedor pagava
uma quantia que vinha debitada na conta bancária e, dessa
forma, o clube criava uma receita nova.

Já naquele ano, Kléber Leite falava que o Campeonato Carioca


era deficitário. Os altos investimentos em jogadores como
Romário e Branco que, seis meses antes conquistaram a
Copa do Mundo nos EUA, pretendiam colocar o Flamengo no
patamar mais alto do futebol brasileiro e continental para,
enfim, chegar novamente à disputa da Intercontinental.

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Fla-Araçatuba

Dias após ser contratado pelo Flamengo, Romário voltou Kléber também confirmou que todas as conversas exis-
à Europa para receber o prêmio de melhor jogador do tiram tanto com a FPF quanto com o Araçatuba, não foi
mundo. Era uma realidade que já podia ser considerada simplesmente uma notícia plantada sem sustentação.
fantástica nos anos 1990. O futebol europeu já concen- Farah tinha ambições de atingir a presidência da CBF na
trava os melhores jogadores do planeta, mesmo antes da eleição de 2000 e fez várias inovações no campeonato
Lei Bosman ser sancionada, no final daquele ano de 1995. paulista para, no fim das contas, se auto-promover.

Voltando ao final de 1997, com o título “inesperado” do No final, Flamengo e FERJ chegaram a um acordo. Os
Vasco naquele campeonato brasileiro que contou com a rumores do Flamengo disputar o Paulistão foram descar-
melhor versão de Edmundo, artilheiro do com 29 gols — tados, mas mais uma cisão ainda estava por vir. O ano de
outro jogador que passou pelo Flamengo de Kléber Leite 1998 começou e, outra vez, regado de reforços ao melhor
mas sem deixar saudade —, o presidente Rubro-Negro estilo Kléber Leite.
chacoalhou a imprensa com uma “bomba”.
Era a segunda volta de Romário ao Flamengo. O craque
Radialista por muitos anos, Kléber Leite entendia a força da tinha deixado o clube no meio de 1996 rumo ao Valencia
mídia esportiva para conseguir mudanças impossíveis so- mas retornou ao Flamengo no final daquele mesmo ano
mente com articulações políticas. Ele foi repórter de campo após desentendimento com o técnico Luís Aragonés. No
e fazia dupla com Loureiro Neto nos tempos de Jorge Cury final de 1997, foi a vez do Baixinho tretar com Claudio
com o saudoso jargão “Kléber Loureiro, Loureiro Kléber”. Ranieri e acertar o retorno ao Flamengo.

Naquele final de 1997, o diário esportivo Lance! acabava Juntamente com Romário, foram apresentados outros jo-
de ser lançado para competir com o histórico Jornal dos gadores de luxo: Rodrigo Fabri e Zé Roberto pertencentes
Sports, de papel rosa. O Lance! adotava um formato mais ao Real Madrid além de Cleisson e Palhinha, vindos do
parecido ao do argentino Olé, com outro design, mais Cruzeiro, que conquistaram a Taça Libertadores com o
“atual” e promoções que marcaram uma época, como a técnico Paulo Autuori que comandava aquele Flamengo.
coleção de 20 selos para se conseguir uma bola de futebol.
Rodrigo Fabri e Zé Roberto vieram em contrapartida
Kléber Leite articulou com o presidente da Federação de pela venda de Sávio, que conquistou os corações me-
Futebol Paulista da época, Eduardo José Farah, a partici- rengues após uma excursão do Flamengo à Europa no
pação do Flamengo no Campeonato Paulista. As conversas verão europeu. No troféu Palma de Mallorca, Sávio teve
envolviam o Araçatuba que tinha uma dívidas trabalhistas uma atuação sublime diante do campeão da Champions
— e também com a própria FPF — e o clube carioca arcaria League e foi contratado.
com as pendências, na casa de R$ 1,3 milhão.
Apesar da baixa, os reforços recolocavam o Flamengo
Segundo o então presidente do Flamengo, o campeonato no centro das atenções da mídia. Era o último ano de
carioca tinha que sofrer mudanças para compensar o in- Kléber Leite na presidência e um título de expressão se
vestimento. “Tenho uma folha de pagamento de R$ 650 fazia necessário.
mil mensais e não posso mais disputar um campeonato
Aquele 1998 até chegou a iludir os rubro-negros, mas
sem datas e jogos marcados”, como conta a Folha de S.
o clube resolveu abandonar o campeonato estadual que
Paulo em 7 de novembro de 1997.
terminaria com o Vasco campeão. Fluminense e Botafogo
Tanto o presidente do Araçatuba quanto o Eduardo José se juntaram ao “boicote” por divergências no calendário
Farah, que presidia a FPF, confirmaram as tratativas que com a federação de futebol carioca.
não tinham ainda detalhes como e onde o clube carioca
Já o Vasco, que tinha boas relações históricas com a FERJ
treinaria ou qual uniforme seria usado. Chegou a surgir
seguiu adiante e levantou a taça “dentro de campo” e nos
a idéia de uma camisa, com detalhes em amarelo, cores
bastidores. Os três clubes não concordavam com as par-
do clube paulista e o restante em vermelho e preto.
tidas adiadas que beneficiavam o Cruzmaltino. À medida
Kléber Leite, como bom comunicador que era e até marke- que avançava na Copa do Brasil e na Libertadores, o ca-
teiro, soube usar bem a mídia para pressionar a FERJ, pre- lendário espremia as datas entre um jogo e outro e a FERJ
sidida por um desafeto: Eduardo Vianna, o famoso Caixa se sensibilizava diante dos pedidos de Eurico Miranda que
D’Água. As insatisfações entre o Rubro-Negro e a federação sempre soube colocar os regulamentos debaixo do braço.
carioca ficaram ainda mais evidentes no ano seguinte.
Primeiro, o Botafogo não compareceu para um duelo
A estratégia era desestabilizar o poder na FERJ e mos- contra o Vasco. Depois, houve uma Fla-Flu com duplo
trar o interesse do Flamengo em um campeonato mais WO. O Vasco precisou vencer o Bangu por 1 a0 pra garantir
rentável. O próprio Kléber Leite confessou ao UOL em o título da Taça Rio e como havia obtido o título da Taça
2012 que o objetivo era esse, de chacoalhar as coisas. Guanabara, consolidou-se como campeão carioca. Era o
“Foi uma sacudida para acordarem e levarem a sério. primeiro título do ano do centenário do Vasco.
Criamos a possibilidade de disputar o Paulista, foi uma
Em 1995, ano que o Flamengo comemorava cem anos,
confusão danada, surtiu efeito e chamou a atenção”,
ficou conhecido como ano do “sem ter nada”, afinal o
disse o ex-presidente do Flamengo.

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Quando o Flamengo quis disputar o campeonato paulista e o Carioca do WO

clube só ganhou uma Taça Guanabara, o que gera um peonatos estaduais ou até mesmo excursões à Europa.
imenso debate sobre sua importância e quanto a ser um O campeonato brasileiro demorou até ter seu formato
título ou não. Título é, simbólico é, e só. unificado e ser chamado assim, também acabava coli-
dindo com os campeonatos estaduais em importância e
Aliás, existia um charme em torno desse formato no qual
por isso cada campeonato era disputado em um semestre
os campeões de cada turno, batizados de Taça Guanabara
por razões políticas, econômicas, geográficas e culturais.
e Taça Rio, se enfrentavam no final, sempre proporcio-
nando grandes bilheterias e, a cada ano, uma renovação Mas com o tempo, a Champions League passou a con-
das rivalidades no Rio de Janeiro. Era um formato que centrar em seis ou oito times os melhores jogadores
deixava o campeonato bem disputado, sem se arrastar do mundo, ficou difícil sustentar economicamente um
por seis meses — os estaduais duravam um semestre campeonato estadual pautado só no aspecto cultural e
inteiro! — para se definir o campeão. da rivalidade. A geografia esportiva obedece também à
ordem econômica e embora toda a estrutura política do
O Vasco seria ainda campeão da Libertadores em
futebol brasileiro ainda obedeça às federações estadu-
1998 e jogaria contra o Real Madrid de Sávio a Taça
ais, é normal que haja muita resistência, mas o futuro
Intercontinental. Restou aos rubro-negros criarem a
dos campeonatos estaduais não é diferente do futuro do
torcida Fla-Madrid e secar o rival. Até uma camisa meio-
jornal impresso.
-a-meio foi criada, metade do Flamengo, metade do Real
Madrid. A torcida rubro-negra foi grande, e precisou, As manchetes que ilustravam as capas dos jornais e os
afinal, o time do Vasco era incrível e jogou demais naquele pôsteres encartados a cada ano no dia seguinte do título
duelo em Tóquio, mas perdeu por 2 a 1. estadual ficaram no passado, assim como essas histórias
que são infindáveis e compõem o folclore mágico do
O Flamengo mudaria de presidente no final de 1998.
futebol brasileiro.
Chegaria junto com Edmundo dos Santos Silva um in-
vestimento multimilionário da tal ISL, uma empresa que
tinha vínculos comerciais com a FIFA. Chegariam Petković,
Alex, Gamarra, Denílson e Edílson como fruto do acordo
entre clube e empresa. E isso foi o combustível que permitiu
o Rubro-Negro encarar o seu arqui-rival.

O último grande momento do Campeonato Carioca talvez


tenha sido no triênio 1999–01, que culminou com o tri-
-campeonato do Flamengo sobre o Vasco. Excetuando o
último ano, o Vasco sempre entrava com um time melhor
mas acabava saindo com o vice-campeonato. O acúmulo
de vices acabou rendendo a alcunha de “Vice de novo”,
embora o Gigante da Colina tenha se sagrado campeão
brasileiro e da Copa Mercosul no ano de 2000.

As provocações faziam parte da rivalidade, eram em certa


medida muito benéfica para que os encontros fossem
carregados de poder midiático. Eurico Miranda histori-
camente trabalhava muito bem esse quesito. Em tempos
de vacas gordas, com dinheiro oriundo do NationsBank,
Eurico fez questão de investir em esportes olímpicos.
A rivalidade se estendeu até para o Basquete, onde al-
guns campeonatos foram decididos entre Flamengo e
Vasco com a torcida lotando os diferentes ginásios onde
jogavam.

O Fla-Araçatuba, anunciado em 1997, era o prenúncio do


que aconteceria no campeonato de 1998. Um campeonato
esvaziado por questões políticas. No entanto, o respiro
que os investimentos de ISL e NationsBank duraria so-
mente até o início de 2002, quando todo o dinheiro sumiu.
Coincidentemente, o Brasileirão passou a ser disputado
em pontos corridos em 2003 e o eixo começou a inverter
irreversivelmente.

No passado distante, já aconteceu de times preterirem a


recém criada Taça Libertadores para priorizar os cam-

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O derradeiro
brilho da
estrela
solitária
A melancólica passagem do que restou
de Mané Garrincha pelo Olaria

Por Guilherme Lázaro Mendes

Fotos: Acervo O Globo

P
ouca gente sabe além do básico mas, depois da
passagem singularmente sublime pelo Botafogo,
Garrincha se perdeu pelo Brasil afora e até por
outros países, indo trabalhar como embaixador do café
brasileiro na Europa. Quis o destino — e um grupo de
empresários — que as pernas mais admiradas e enge-
nhosas do Brasil fossem parar na Rua Bariri.

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Manoel dos Santos chegou ao Olaria em 1972, após duas Nos dez jogos para os quais foi escalada, a estrela jamais
temporadas sem pôr os pés no gramado. Sua fase áurea esteve tão apagada em toda a sua carreira — não que os
ficara pelo menos sete anos no passado — desde que saiu fãs se importassem: por mais inapto e apagado que esti-
de General Severiano, em 1965, sua vida simples porém vesse, Mané era uma estrela e seu brilho de tantas firulas
desregrada fora dos campos começou a talhar as marcas mágicas ainda brilhavam nos olhos de cada um dos mais
no corpo frágil do anjo das pernas tortas. de cinqüenta mil flamenguistas que o assistiram em seu
primeiro jogo pelo Azulão da Bariri. Durante aquele empate
Tudo o que Garrincha fez de glorioso no lado de den-
em 1 a 1, eles talvez se lembrassem de como aquelas patelas
tro do campo já estava
tortas tanto maltrata-
começando a ser soter-
ram o Rubro-Negro no
rado. Dos gols indes-
passado.
critíveis e dos dribles
incontáveis, em 1972 No quarto jogo da série,
sobrava o pouco que o ponto alto: coube ao
praticamente sobrou goleiro do Comercial de
até hoje [repare como Ribeirão Preto buscar
sempre são os mesmos nas redes a bola do úl-
legendários dribles no timo gol de Garrincha,
Botafogo; a mesma ar- o de número 283.
rancada de frente à câ- Paschoalin viu o petar-
mera; os mesmos lances do de perna direita no
no Chile em 1962; mais finzinho do jogo selar
dribles e o gol contra o empate, dois pra lá e
a Bulgária na Copa de dois pra cá, em Ribeirão
1966. Eis grande parte do inventário de restos mortais Preto. Anos depois, quando entrevistado, Paschoalin
do gênio]. Suas passagens por clubes como Flamengo e afirmou estar feliz da vida com o gol tomado.
Junior Barranquilla — onde jogou uma única vez — fo- O último jogo, no dia da Independência, em 1972, foi a
ram extremamente apagadas e, por mais que a torcida goleada sofrida para a Caldense. Os 5 a 1 selaram o fim de
do Corinthians o tenha recebido de braços abertos, o uma série de amistosos que o time fez pelo país.
herói da nação parecia um mau equilibrista, não sabendo
Como diz o ditado: os jogadores vão e os clubes ficam. O
coordenar sua vida de jogador com o casamento com a
Olaria continuou a década de 1970 como uma das forças
cantora Elza Soares.
da capital fluminense, o time do goleiro Beto e do trio de
Um dos acordes dissonantes nessa sinfonia era o incons- ataque Ézio, Aguinaldo e Fernando. Em 1981, conquistou a
ciente freudiano daquele pau-grandense: Garrincha man- Taça de Bronze, torneio equivalente à terceira divisão
tinha tantos relaciona- nacional.
mentos extraconjugais
Quem ficou pelo ca-
quanto conseguisse, tal
minho mesmo foi
como uma grande ce-
Garrincha, vendo o fim
lebridade de sua época.
da carreira profissio-
Mas a trilha que tirou
nal de 19 anos, sempre
todo seu brilho — e
enganado por um mar
disso todo brasileiro de
de empresários e carto-
meia-idade sabe — foi
las, talvez por cometer
o alcoolismo.
o mais simples dos er-
Tão bem narrado em ros: recusar-se a deixar
“A Estrela Solitária” de ser simples, de jogar
[1995], de Ruy Castro, bola nos terrões de Pau-
Mané aparece nos ar- Grande, sua cidade na-
quivos da TV Globo an- tal, e por jamais deixar
dando pelo gramado do seu novo time, na Rua Bariri, de montar o seu modesto palco nos gramados; de tornar
em seu traje mais comum: shorts, sem camisa, com as torcedores espectadores, arquibancadas em plateias;
pernas de cambito, pouco viradas pra esquerda e nos pés, de tornar a estrela solitária um símbolo respeitado e a
um par de sandálias. A pele já dá os primeiros sinais de amarelinha um manto admirado; e a todos os zagueiros
macilência e flacidez. Era como ver um grande guitarrista que cruzaram sua frente... a estes lhes sobrou apenas a
chapado — não era possível imaginar quais seriam suas humilhação anônima.
próximas notas.

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Entre
Conhecido
nos campos
pelo apelido
de Beijoca, o

tapas
atacante ficou
famoso por
comemorar os
gols jogando

e beijos
beijos para
torcida

Por Clayton Fagundes

J
orge Augusto Ferreira de Aragão nasceu na capital Os anos seguintes seguiram a cartilha de Beijoca, gols,
da Bahia, Salvador, no dia 23 de abril de 1954, dia artilharia, títulos e muita confusão. Depois de uma pas-
de São Jorge e, como seu santo protetor, era guer- sagem e título pelo Sport Recife em 1977, Beijoca retornou
reiro e lutador, mas também encrenqueiro e baderneiro. para o Bahia para conquistar o título de 1978 e de quebra
a artilharia da competição.
Surgiu nas categorias de base do Esporte Clube Bahia,
e logo foi campeão no ano de 1970. No ano seguinte foi O decisivo e controvertido artilheiro foi beneficiado na
para o São Domingos de Alagoas onde conquistou o título época pela exibição de seus gols no quadro “Gols do
alagoano de 1971; seguiu para o Fortaleza em 1973 onde Fantástico” do programa das noites dominicais da TV
foi artilheiro do cearense naquele ano e do ano seguinte. Globo que consagrou o artilheiro maluco do Bahia e, de
Retornou para o tricolor baiano em 1975 onde se sagrou quebra, rendeu para ele um contrato com o Flamengo.
novamente campeão baiano.
Mesmo antes de estrear no Flamengo, Beijoca já causou
Junto com os gols, Beijoca levava um pacote cheio de con- uma grande confusão. Uma semana antes de se apresentar
fusões. Uma das mais notáveis foi na final do campeonato ao time rubro-negro, o artilheiro dos beijos e dos excessos
baiano de 1976 contra o Vitória. Na verdade Beijoca saiu foi preso em Salvador por causa de uma briga na chamada
da concentração na noite anterior a partida, retornando “Ladeira da Montanha”, conhecida pelos prostíbulos.
apenas às quatro da madrugada completamente alcoo-
Depois de passar alguns dias em cana, Beijoca se apre-
lizado. A solução foi dar um banho no fujão junto com
sentou a delegação do Rubro-Negro, que embarcaria para
doses de glicose. Acordando apenas no ônibus a caminho
Espanha para a disputa do Torneio Ramón de Carranza.
do estádio, beijoca não hesitou. Seu primeiro pedido foi o
No voo, o recém-chegado artilheiro não hesitou, foi logo
mesmo de um faraó egípcio no romance “Noites Antigas”
mostrando suas armas, não de matador dentro de cam-
do escritor estadunidense Norman Mailer: uma cerveja.
po, mas de um especialista em causar confusão fora dos
Mesmo sem estar 100 % o centroavante entrou em campo gramados. Já não bastasse beber sem parar a viagem toda,
para decidir a partida a favor do Bahia, mesmo contra a Beijoca, desafiado por Cláudio Adão, não se fez de regrado,
vontade do técnico Orlando Fantoni. Beijoca marcou o acariciou as pernas e as nádegas de uma aeromoça.
gol e comemorou com beijinhos para torcida o título de
A confusão foi total, Beijoca foi obrigado a pedir desculpas,
campeão baiano.

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com o perigo de toda a delegação do Flamengo ser presa
caso ele se negasse. Depois de muita insistência e pérolas
do artilheiro dizendo “Eu não vou pedir desculpas. Sabe
por quê? Semana passada eu fui preso em um puteiro lá
em Salvador. Ser preso em Madri vai ser muito chique”, o
maluco atacante se retratou com a moça e toda tripulação.

A passagem de Beijoca pelo Flamengo foi marcada por


poucas partidas, poucos gols e muita confusão. A mais co-
nhecida foi durante a partida entre Flamengo e Palmeiras
pelo campeonato brasileiro de 1979. A partida estava 4 a
1 para o time paulista, quando Beijoca entrou em cam-
po e arranjou uma baita confusão. Primeiro ele agrediu
Mococa com uma cotovelada, e depois deu um soco em
Baroninho. A consequência disso foi à expulsão de campo,
e o fim de sua passagem pela equipe da Gávea. No total,
Beijoca atuou em apenas nove partidas [seis vitórias, um
empate e duas derrotas] e marcou um gol.

Após a passagem conturbada pelo Flamengo, Beijoca


rodou por diversos times até se aposentar no Camaçari
da Bahia em 1990, aos 36 anos. Beijoca fez história e
confusões no futebol, poderia ter ido muito além, se
não fosse pelo temperamento explosivo e o alcoolismo.

Mesmo assim marcou história no Bahia, sendo um dos


maiores ídolos do time. Depois de perder praticamente
tudo o que tinha e se ver dominado pelo vício do álco-
ol, Beijoca foi buscar na religião a força para mudar de
vida. Tornou-se evangélico e passou a pregar em várias
igrejas de Salvador. Mas quem acha que ele deixou de
causar polêmica, está redondamente enganado. Em uma
entrevista ao jornal Lance ele disse que foi um atacante
mais completo que Ronaldo Nazário!

A famosa e antiga Ladeira da Montanha


(Foto: Flavio Damm)

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Copa
Mercosul
1995

O título que [quase] ninguém viu

Por Fernando Martinho

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E
m 1997, o River Plate liderado por Enzo
Francescoli levantou uma taça até então inexis-
tente na sua sala de troféus: a da Supercopa dos
Campeões da Libertadores. O torneio foi extinto no ano
seguinte, substituída pela recém criada Copa Mercosul,
que teve o Palmeiras como primeiro campeão. Mas “há
controvérsias”, diriam. O primeiro campeão teria sido
o Figueirense.

Realizado durante dez dias entre o final de janeiro e o


início de fevereiro de 1995, o primeiro “Torneio Mercosul”
foi jogado em Santa Catarina. Foram convidados times do
Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, mas muitos desis-
tiram por questões referentes ao calendário. Esvaziado,
o torneio contou com a participação de times do próprio
estado — Avaí, Criciúma, Figueirense, Joinville e Marcílio
Dias —, além de Coritiba, Olimpia do Paraguai, Nacional
e Cerro do Uruguai.

Na final, o Figueirense derrotou o Joinville por 1 a 0 com


um gol de pênalti na prorrogação, marcado por Biro-Biro
(não aquele). Embora poucos tenham visto o título — no
site oficial do Figueira, a conquista está devidamente re-
gistrada —, e seus torcedores devem acreditar que o clube
merece reconhecimento oficial por parte da Conmebol.

Talvez seja verdade que o torneio disputado em Santa


Catarina tenha sido um embrião para a verdadeira Copa
Mercosul, que se iniciou em 1998. Mas isso não confere
nenhuma legitimidade à reivindicação. A Conmebol não
participou da organização do torneio e pode ser que sequer
tenha tomado conhecimento de sua existência.

Em 1996, houve uma segunda edição da competição,


desta vez jogada em turno e returno entre três times:
Internacional, San Lorenzo e Universidad Católica. O
campeão foi o Inter, após ter vencido os quatro jogos
que disputou.

Muitas vezes, um movimento de reconhecimento de um


título pode até ser legítimo. Mas neste caso, não passa de
mais um torneio de verão que se quer reconhecer como
título continental, a não ser de caráter amistoso, como
a Euro-América de 1996, as tradicionais Taças Teresa
Herrera em Corunha conquistadas por clubes brasileiros
ou outros torneios de verão do gênero na Espanha: Ramón
de Carranza, disputado em Cádis, Torneo Naranja, em
Valência; Troféu Joan Gamper, em Barcelona ou o Palma
de Mallorca, nas Ilhas Baleares.

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O primeiro
campeão
mundial que
não conquistou
seu continente
Por
Fernando
Martinho

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Quando o Atlético de Madrid venceu a
Intercontinental sem ter conquistado a Europa

A
FIFA reconheceu — deixou de reconhecer e A agressividade foi tanta que o regime militar argentino
voltou a convalidar — como campeões mun- interveio. O presidente “de facto” Juan Carlos Ongania
diais aqueles clubes que conquistaram a Copa demandou à AFA severas medidas em nome do esporte
Intercontinental, que era disputada entre os campeões nacional. O órgão leu essas demandas nas entrelinhas e
europeu e sul-americano e possuía um formato diferen- aplicou uma suspensão permanente em Poletti. O goleiro
te do atual — em vigor desde 2005, quando a Copa do também foi preso pelo regime por 30 dias, junto com
Mundo de Clubes passou a ser organizada pela entidade Eduardo Manera e Ramón Suárez.
máxima do futebol mundial e a reunir os campeões das
A reputação violenta da competição derivou na recusa em
seis associações continentais.
disputar o troféu por parte de vários campeões europeus
A Copa Intercontinental começou a ser disputada em nos anos subseqüentes. Em 1971, o Panathinaikos, vice
1960, colocando frente a frente o campeão europeu, Real campeão da Europa, substituiu o Ajax que havia levan-
Madrid, e o sul-americano, Peñarol. Os espanhóis levaram tado a taça europeia. O Nacional do Uruguai sagrou-se
a melhor no confronto que era disputado em ida e volta. campeão do Mundial Interclubes ao vencer os gregos.
Após o empate por 0 a 0 em Montevidéu, os Merengues
Em 1974, o Bayern de Munique foi o segundo clube a
venceram por 5 a 1 em Madrid e ficaram com o primeiro
se recusar a disputar o duelo intercontinental, abrin-
título “mundial” disputado.
do vaga para o vice campeão Atlético de Madrid. Os
Até 1968, o saldo de gols nos jogos não era critério de Colchoneros perderam o primeiro jogo na Argentina,
desempate. Era disputado um jogo extra — às vezes em contra o Independiente, por 1 a 0. Mas no jogo de volta,
país neutro. A polêmica e violência presentes no con- venceram por 2 a 0 e levantaram o caneco. A partir de
fronto de 1967 entre Celtic e Racing fez a disputa passar então, Liverpool, duas vezes [1977 e 1978] e Nottingham
a considerar a diferença de gols. A violência já era recor- Forest [1979] se recusaram a jogar a Intercontinental. Mas
rente. Há relatos de que a partida extra entre Santos e nenhum dos vice-campeões europeus depois do Atlético
Milan, em 1963, foi marcada por subornos e doping por de Madrid conseguiram conquistar o título.
parte dos santistas, segundo a auto-biografia de Almir
O desprestígio da competição levou à criação da Copa
Pernambuquinho. O ex-jogador, que substituiu Pelé no
Toyota, disputada em jogo único, em Tóquio, a partir de
terceiro jogo, no Maracanã, afirmou que subornaram o
1980, o que convenceu os campeões europeus a partici-
juiz argentino Juan Brozzi, mas essa história nunca foi
parem da competição anualmente. A disputa durou até
comprovada nem investigada.
2004 pois, em 2005, a FIFA passou a organizar a Copa do
A competição era organizada e supervisionada por Mundo de Clubes. Em 2000, a FIFA já havia realizado um
Conmebol e UEFA, o que impedia intervenções e punições Mundial de Clubes no Brasil, cujo campeão, Corinthians,
da FIFA aos clubes envolvidos. A mesma FIFA se negou a ingressou como campeão do país sede. O representante
reconhecer o título mundial ou sequer o intercontinental, local ainda integra a competição, seja ela disputada no
atribuindo à competição um caráter amistoso. Em 1968, Marrocos, Japão, ou Emirados Árabes Unidos.
uma carnificina provocada pelos jogadores do Estudiantes
Desde então, mesmo após ter conquistado a Libertadores
de La Plata — que conquistou o título naquela edição
em 2012 e, posteriormente, o Mundial sobre o Chelsea, os
— contra o Manchester United, rendeu aos platenses a
corintianos ainda são provocados por torcedores rivais por
alcunha de Animals por parte dos ingleses. Matt Busby,
terem dois títulos mundiais — um reconhecido e o outro
treinador do United, se pronunciou dizendo que a FIFA
organizado pela FIFA — e somente um título continental.
deveria banir o clube de qualquer competição.
A discussão fica acirrada pois entra em pauta um suposto
A violência explícita se repetiu em 1969, novamente pelo
título mundial do Palmeiras de 1951 — e do Fluminense
Estudiantes. O Milan era a vítima da vez. O centroavan-
de 1952! —, quando a UEFA sequer existia. Mas esse é
te rossonero Pierino Prati chegou a ficar inconsciente
outro capítulo, e está na Corner #8, sob o título “O mundo
após sofrer uma agressão. Nestor Combin, um argentino
é das pessoas”.
naturalizado francês que jogava no Milan, quebrou o
nariz após levar um chute na cara dado pelo goleiro do
Estudiantes, Alberto Poletti. Tudo isso negligenciado pelo
árbitro chileno Domingo Massaro.

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Loma Negra

A fábula do time de uma fábrica de


cimento que tirou a invencibilidade da
União Soviética

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Por Tauan Ambrosio

O
futebol é terreno para gols, gritos, táticas e es-
tratégias. Mas é também uma gigantesca terra
fértil para verdadeiros contos de fadas e poucas
histórias se assemelham tanto a esse tipo de narrativa
quanto a do Loma Negra. O pequeno time da cidade in-
teriorana de Olavarría, na Província de Buenos Aires, na
Argentina, ganhou as manchetes esportivas em todo o
mundo quando, em 1982, acabou com a incrível inven-
cibilidade de 18 jogos da então temida seleção soviética.

E da mesma maneira como é comum nas fábulas infantis,


o humilde protagonista contou com grande ajuda de uma
fada madrinha. No caso do Loma Negra, os episódios mais
inesquecíveis vieram graças ao investimento financeiro de
Amalia Lacroze de Fortabat. Conhecida como ‘Amalita’,
ela foi uma das personalidades mais fortes, influentes e
carismáticas de seu país. Chegou a ser a mulher mais rica
da Argentina, segundo apontado pela revista Forbes, e
revolucionou a cidadezinha ao interior da província de
Buenos Aires.

Fundado em 1929, o Club Social y Deportivo Loma Negra


tinha como principal objetivo dar uma opção de lazer aos
operários da famosa fábrica de cimentos, o coração da
cidade. Fora dela, o clube era um nome conhecido somente
por causa do empreendimento de Alfredo Fortabat, com
quem Amalia se casou depois de assinar um dos primeiros
divórcios oficializados pelo governo argentino. Fluente
em vários idiomas e dona de um carisma único, ela passou
a acompanhar o marido em suas viagens de negócios e
reuniões empresariais.

Após a morte de Alfredo, em 1976, o peso daquele império


milionário caiu no seu colo. Negando-se a viver apenas
a gastar quantias aparentemente sem fim em obras de
arte, sua grande paixão, ela se debruçou sobre o trabalho
e triplicou toda aquela fortuna. A partir de então, Amalita
ganhava uma nova alcunha: a Dama do Cimento.

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Loma Negra

De abóbora à carruagem Do 7 a 1 à glória máxima


Loma Negra já era um nome de sucesso entre as empresas Os torcedores de Olavarría até mesmo estranhavam todo
argentinas pois nas décadas de 50 e 60 havia dominado aquele glamour repentino, com astros antes vistos apenas
com folgas o seu setor, mas Amalia queria mais. A história nas capas de revistas ou jornais esportivos chegando em
sobre o seu interesse no futebol não tem uma origem carros de luxo para a época. Sem falar das aterrissagens
muito bem definida. Um sobrinho a teria encorajado a via helicóptero de Amalita e de outros dirigentes, em
investir no modesto time? Estava ela em busca de maior dias de treinos ou jogos. No meio do futebol, a Dama do
espaço político? Se animou na aventura esportiva após Cimento sentia-se popular dentre os populares — embora
conversas com diretores da empresa ou simplesmente, fosse o grande alvo de xingamentos dos torcedores rivais.
como afirmaria em entrevistas futuras, via no futebol
Em 1982, de forma incrível ante todo o investimento
uma arte como as que colecionava e promovia em es-
feito, o Loma Negra não conseguiu repetir presença na
culturas e pinturas?
primeira divisão. Durante amistoso de pré-temporada
Poucos anos antes, Amalita testemunhara como a con- realizado em Mar Del Plata, os jogadores da ‘tia’ Amalia
quista da Copa do Mundo de 1978 teve um impacto para perderam por 7 a 1 para a seleção argentina.
aliviar os corações pesados em meio à sangrenta ditadura
Frustrada pela goleada sofrida, a fada madrinha que
de Jorge Rafael Videla. Naquele cenário de terror, espor-
transformara o futebol do Loma Negra resolveu fazer
tivamente a Argentina se orgulhava pelo primeiro título
mais uma grande extravagância. A temida seleção so-
mundial conquistado. A grande maioria dos estádios foi
viética, que vinha em grande forma, fazia excursão pela
construído com cimentos de sua empresa, e embora a
Argentina enquanto se preparava para Copa do Mundo
Dama do Cimento jamais tivesse sido acusada de liga-
na Espanha e, então, Amalita pagou os 30 mil dólares de
ção direta com a ditadura, é fato que lucrou bastante no
cachê, agendando o pouco usual confronto.
período.
No início da tarde daquele dia 17 de abril, o Estádio Ignácio
A partir de 1981, o Loma Negra começou a seduzir grandes
Zubiria, pertencente ao Racing de Olavarría, estava abar-
jogadores do país com salários que gigantes como Boca
rotado. Mesmo assim, a arrecadação não devolveu metade
Juniors e River Plate nem sonhavam em pagar. Depois de
do dinheiro investido. Mas não era isso o que importava
ter conseguido o feito de bater o Estudiantes de Olavarría,
para a Dama do Cimento. O time da URSS vinha de em-
o time da fábrica garantiu presença no Torneo Regional.
pate por 1 a 1 com a Argentina, alcançando a marca de 18
Era o último passo antes de conseguir uma vaga inédita
compromissos sem derrotas, divididos em 13 vitórias e
na primeira divisão e a elite do futebol passou a ser uma
5 empates, com um total de 43 gols marcados e apenas
obsessão de Amalita.
10 sofridos.
Jogadores famosos da época chegaram para a disputa do
Em meio aos tradicionais papéis picados, som dos tam-
certame classificatório. Vieram Carlos Squeo (Racing de
bores e com muitas bandeiras argentinas, o Loma Negra
Avellaneda), Mario Husillos (Boca Juniors), Carlos Carrió
encarava aquela partida contra os soviéticos como uma
(Gimnasia La Plata), Luis Barbieri (Atlanta), Osvaldo
final de Copa do Mundo, apesar de vários reservas, im-
Mazo (Colón), Jorge Vázquez (Atlanta), Ricardo Lazbal
primindo um ritmo tão forte que, no intervalo, um diri-
(River Plate) e Osvaldo Gutiérrez (Vélez). A ideia de Dream
gente visitante entrou no vestiário dos mandantes para
Team tomava conta da antes modesta equipe, que tentou
lembrar que aquilo era apenas um amistoso. Não para o
até mesmo as contratações de um jovem Diego Maradona
Loma Negra.
e do goleiro Ubaldo Fillol. Valentín Suárez, que no passado
havia sido presidente da própria AFA, era o cérebro por Mesmo com a entrada do mítico atacante Oleg Blokhin,
trás das transações. não teve jeito. O lance que terminou no único gol da partida
foi um retrato do jogo que vinha fazendo o Loma Negra.
A vaga na primeira divisão foi garantida e o nome Loma
Após a bola ser lançada à área, os jogadores argentinos
Negra também passava a ser sinônimo de futebol por toda
brigavam pelo rebote e dentre as várias pernas que busca-
a Argentina. O estádio acanhado passou por reformas, mas
vam arrematá-la, foi a de Armando Husillos — ex-Boca
ainda era muito pequeno para as proporções que a equipe
Juniors e que estava no Real Madrid Castilla antes de ser
de futebol tomou. Olavarría transpirava orgulho, com a
contratado — que deu o golpe fatal à invencibilidade
sua identidade expandindo, principalmente depois que
soviética. As imagens da comemoração são épicas: os
o time estelar, reunido em tão pouco tempo, conseguiu
companheiros de time se abraçando em meio à festa dos
terminar o campeonato argentino na terceira colocação
papéis e se pendurando nas traves. Na tribuna, Amalita
de seu grupo — atrás apenas de River Plate e Ferro Carril,
via a sua mágica dar certo sem esconder a felicidade.
que seguiram em frente para decidirem o título.

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A fábula do time de uma fábrica de cimento que tirou a invencibilidade da URSS

Todo carnaval
tem seu fim
Terminado o encontro, a festa foi do tamanho do feito
do Loma Negra. Pela primeira vez, o nome do clube es-
tampava páginas de jornais pelo mundo. Poucos podiam
acreditar que um time pequeno havia batido a famosa
União Soviética. Foi o ápice naquela construção de ci-
mento. No ano seguinte o clube voltou a se reforçar e
conseguiu entrar na disputa do Campeonato Argentino
de 1983, chegando ainda mais longe em relação à cam-
panha anterior: avançou até as oitavas de final para cair
somente para o Racing de Avellaneda.

O dia 18 de maio daquele ano, que sacramentou a elimi-


nação, foi também quando o relógio bateu o ponteiro
da meia noite. Tão rápido quanto o dinheiro veio, ele se
foi. Por causa de uma crise econômica, o mecenato de
Amalita chegava ao fim. Sem a fada madrinha, que se-
guiu desempenhando papel importante na esfera política
do país até a sua morte em 2012, o Loma Negra voltou
à realidade de sempre, sem jamais se esquecer do seu
momento mais mágico.

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Ariel
Palacios
Fotos & entrevista:
Fernando Martinho

R
esidente em Buenos Aires desde os anos 1990.
Seu sempre impecável figurino, da vestimenta
ao corte de cabelo e barba suavemente por fazer,
além de seu sotaque que lhe é peculiar são os temperos de
um jornalista que faz um trabalho igualmente distinto.

A proposta inicial era gravar alguns depoimentos sobre


a comunidade judaica na Argentina, mais precisamente
em Buenos Aires, ilustrar como isso se reflete no futebol
através do Club Atlético Atlanta do bairro de Villa Crespo,
mas seria um desperdício não aproveitar para falar de
política e futebol do país que Ariel reside há tanto tempo.

O encontro se deu em um Café no bairro de Recoleta na


Avenida Puyerredón, muito perto de onde ele mora, um
bairro de classe média-alta com urbanização muito se-
melhante à parisiense ou barcelonesa. Caminhar pela
Recoleta é um passeio no tempo. Impossível não ficar
estonteado com a “europeidade” do bairro nobre a cada
esquina. Mas pequenos detalhes fazem lembrar que se
trata de uma cidade do terceiro mundo, mas que surfou
numa onda de tempos de esplendor no início do século XX.

O papo começa sobre o local de nascimento do jornalista


cujo sotaque particular causa dúvidas em muitas pessoas.

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Entrevista: Ariel Palacios

Muita gente acha que você é argentino.


Nasci em Buenos Aires, mas primeiro “morei” em São
“O governo argentino
Paulo, depois em Governador Valadares e por fim em priorizou o
Londrina. Mas Londrina é a minha cidade, morei lá dos
nove aos 24 anos. Fútbol para Todos
Então, você é brasileiro? em vez de investir em
Sou brasileiro, como muitos que nasceram fora do Brasil:
Clarice Lispector, Dom Pedro I, Vladimir Herzog…
outros setores.
Isso aqui não é a
“Siga el Baile”, o quanto essa expressão represen-
ta a cultura e o futebol da Argentina? Suécia, é terceiro
É uma música carnavalesca argentina, mais ou menos
um candombe, que fala dessa festa permanente, mas no
mundo.”
futebol, evidentemente, pros cartolas e políticos. A festa
não é pra todos, nem pra torcedores ou pra maioria dos
jogadores. Desde a gastança bestial que houve em 1978,
com a realização da Copa do Mundo, cujo orçamento
original era de US$ 70 milhões e terminou, depois, ofi-
cialmente, em US$ 700 milhões, a gente já tem uma idéia
da farra que foi. Outro exemplo desse “Siga el Baile”, é
a figura de Julio Grondona, um cartola empossado pelo
Videla em 1979, e que só deixou o cargo em 2014, logo
depois da Copa do Mundo, quando morreu, assim como
ele dizia que ia ser. Inclusive, nos seus últimos anos, fi-
cou muito fortalecido pelo governo da Cristina Kirchner,
com uma série de benefícios a ele e ao seu entorno, com o
programa de estatização das transmissões do futebol, o
Fútbol Para Todos, que no discurso havia uma promessa
de usar todo o dinheiro que o Estado arrecadaria com a
publicidade nas transmissões para incentivar o espor-
te no país, sobretudo as modalidades olímpicas. Esse
dinheiro nunca pôde ser destinado ao estado, no total,
até a sua extinção, o gasto foi de mais de US$ 1,5 bilhão,
sem nenhum retorno, o que superava os investimentos
do Ministério da Cultura ou os custos no tratamento e no
combate à AIDS. Então, o governo priorizou isso em vez
de investir em outros setores. Isso aqui não é a Suécia, é
terceiro mundo. Esse dinheiro faz falta. Como não con-
seguiu colocar publicidade privada no futebol, acabou
colocando publicidade estatal. Ou seja, o Estado cobrava
a si próprio, ou seja um dinheiro que ia embora, e isso é
paradoxal, porque com a indústria do sexo, dos cassinos e
com o futebol é impossível perder dinheiro, a não ser que
você seja muito incompetente. Mas o dinheiro se esvaiu,
foi pros cartolas, não pros clubes, pois continuam com
grandes prejuízos e dívidas. Não houve uma melhoria nos
estádios, no sistema de segurança, não houve combate
aos Barra Bravas. O mesmo esquema de poder e corrup-
ção que existia permaneceu e esse dinheiro desvaneceu
sem nenhum investimento no resto dos esportes e áreas.

E como você observou a opinião pública com re-


lação ao Fútbol para Todos? Pois o próprio Macri
quando concorre à presidência, ele não diz que vai
acabar com o programa. Ele fica em cima do muro,
com medo de perder alguma popularidade.

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Entrevista: Ariel Palacios

Houve até muita cobrança sobre isso, pois ele não se


pronunciava sobre o assunto. Como ele havia sido cartola,
de 1995 até 2007, até acharam que tinha a ver com isso.
Na realidade, o Macri começa o governo sem mexer no
Fútbol para Todos. Houve uma mudança meses depois
quando houve divergências entre clubes e governo porque
queriam mais dinheiro e o Macri diz que não podia dar
mais dinheiro e começaram a se mobilizar para buscar
dinheiro privado, ou seja, quem pulou fora do programa
foram os clubes e pro governo acabou sendo conveniente.
Encontraram uma outra fonte de financiamento fora do
Estado. Já não era uma prioridade, porque futebol sem-
pre tem dividendos políticos interessantes, mas mesmo
presidentes, com uma pose neo-liberal, acabam pre-
ferindo manter certo clientelismos e populismo que o
esporte proporciona no terceiro mundo. Mas por outro
lado, também é verdade que já na época prévia ao FpT,
os torcedores argentinos acabavam assistindo de alguma
forma, a TV a Cabo na Argentina é extremamente po-
pular, e antigo. O cabeamento começou em meados dos
anos 1980, e o percentual da população com acesso à TV
fechada é altíssimo e, claro, com isso corrobora o fato
de que um terço da população argentina está na Grande
Buenos Aires, é mais fácil “cabear” um país assim do que
o Brasil ou o México.

Macri saiu do futebol onde ele ganha essa projeção


política. Se torna governador da Capital…
Perdão, te interrompendo, aqui não se mistura o fato dele
ter sido presidente do Boca e que torcedores rivais não
votem nele, uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Na torcida do Boca há um percentual muito grande de
peronistas e kirchneristas, então não se transfere o voto
de torcedor pro campo político.

E mais curioso ainda, é que durante o governo dele


“Aqui não se mistura na cidade, o que mais se desenvolve foi o trans-
porte público: MetroBus [corredor de ônibus],
o fato do Macri ter BiciSendas [ciclofaixas] além de linhas novas de
metrô. Justamente o que gerava muitas críticas
sido presidente do ao Haddad em São Paulo, o atacavam de socialista
por implementar ciclofaixas. E quem fez isso em
Boca e que torcedores Buenos Aires foi um “neo-liberal”.

rivais não votem É uma coisa engraçada. Buenos Aires é uma cidade his-
toricamente complicada de se administrar. As pessoas
nele, uma coisa não reclamam muito aqui. Os portenhos têm vários esportes
e um deles é reclamar. Aqui tudo é pior pra eles. “É o pior
tem nada a ver com tráfico do planeta, a cidade mais corrupta do planeta”,

a outra. Na torcida
e essas pessoas nem conhecem outras cidades pra dizer
isso. Os argentinos passaram de achar, há meio século

do Boca há um atrás, que eram do melhor país do mundo pra se auto-fla-


gerarem. Neste caso, do transporte, é uma cidade fácil de
percentual muito se administrar, apesar dos governantes não terem sido
grandes coisas. Mas eles herdaram uma infra-estrutura
grande de peronistas que começou a ser construída no início do século XX, e
consegue sobreviver apesar dos políticos daqui. Mas o
e kirchneristas.” Macri fez duas obras que são muito interessantes. Uma

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Entrevista: Ariel Palacios

delas é o MetroBus e a outra as BiciSendas. As duas sur- Na Argentina há uma frase que diz “com o petróleo
preenderam. Era um paradoxo. Buenos Aires é uma cidade não se brinca”, mas com o futebol também não se
plana com paixão pelo ciclismo, não ao mesmo nível da brinca…
Espanha ou da França, mas talvez é o país com maior É como se fosse uma área sacrossanta. As pessoas tem
interesse na modalidade da América Latina e, no entanto, medo de mexer com o futebol. O melhor exemplo disso,
ninguém andava de bicicleta, nem os ciclistas, exceto é com a Guerra das Malvinas em 1982, quando houve
por questões esportivas. Um ciclista não ia de bicicleta uma onda anti-britânica. Monumentos que faziam re-
pra faculdade, ele usava algum transporte público. Mas ferência à Inglaterra ou a ingleses foram apedrejados,
são daquelas coisas esquisitas que explico pro pessoal do escolas inglesas foram atacadas. Lugares tradicionais
Brasil, sim o Macri tem uma imagem neo-liberal, mas como Farmácia Franco-Inglesa e o Bar Británico, tive-
enquanto prefeito de Buenos Aires não privatizou nada ram que trocar o nome rapidamente, a farmácia tirou
e desde que é presidente não privatizou nada. Até, aliás, o “Inglesa” e ficou como “La Franco”, o Bar Británico,
estatizaram duas ou três rodovias na província de Buenos com mais pressa ainda, apagou a primeira sílaba e virou
Aires. Não dá pra comparar o Brasil com a Argentina nem Bar Tánico, até que anos depois voltou ao nome original.
pra comparar as direitas e as esquerdas de um país com Mas não se mexeu nos nomes dos times de futebol com
o do outro. nomes ingleses. River Plate, Banfield, Chaco For Ever,
Newell's Old Boys, enfim, é como se fosse outra esfera,
E tem um outro personagem que faz o caminho não fizesse parte deste universo. A fúria anti-britânica
inverso do Macri. Ele sai da política, do sindica- não se direcionou contra os times que tinha, ostensiva-
lismo, e vai pro futebol: Hugo Moyano. Ele perdeu mente, nomes ingleses. Se direcionou contra a Inglaterra.
um pouco de protagonismo. O Uruguai que sempre foi o grande rival durante seis dé-
Ele foi, digamos assim, um dos sindicalistas mais com- cadas e depois o Brasil era o rival, mas a Inglaterra passou
bativos dos anos 1990, cresceu muito naquele período, a ocupar esse espaço no imaginário coletivo argentino.
pois foi quando o sistema ferroviário argentino encolheu Tanto que os gols mais recordados da torcida argentina
de forma drástica e aí se expandiu o poder dos cami- não são gols nem contra o Brasil nem contra o Uruguai,
nhoneiros. O Moyano soube articular muito bem, ele são os dois gols de Maradona contra a Inglaterra na Copa
conseguiu absorver tudo que tivesse algum vínculo com de 1986 no México.
caminhões, os garis, o pessoal do pedágio, tudo dentro
do mesmo sindicato. Depois ele virou secretário geral da Falando agora do vácuo de poder que a morte do
CGT, e havia já um certo desgaste com a figura dele, o Grondona gera, quando parecia que não dava pra
tempo dele estava chegando. O Moyano é muito esperto, ficar pior, mas sem ele as coisas pioraram.
percebeu que tinha que fazer uma transição. Ele sai da Deve ter acontecido a mesma coisa quando Al Capone foi
área sindical e vai pra outra também muito lucrativa que preso. Deve ter havido brigas entre os outros mafiosos em
é o futebol. Chicago que disputavam o poder. Ou quando morre um
narco-traficante em alguma favela e que outros brigam
E ele consegue colocar o genro no comando da AFA pra ocupar aquele espaço. Mais ainda porque o Grondona
[Chiqui Tapia é casado com a Paola Moyano, filha tinha linha direta com a FIFA, ele era o Vice-Presidente.
do ex-líder sindical]. Com a morte do Grondona, Quando desaparece a figura desse mega-gângster o pes-
que por sua vez se associou aos militares durante soal ficou perdido como baratas tontas. Tinha tudo pra
o regime, passando por quem tivesse no poder, se começar do zero e fazer as coisas direito, mas não,
Menem e Cristina Kirchner… porque todo o segundo escalão continuava sendo um
Quando não se associava, como era o caso do Alfonsín, o bando de mafiosos. Caiu o grande chefão e apareceu uma
Alfonsín temia mexer com o futebol. Havia um medo, pois feudalização de mafiosos no lugar dele.
o Grondona tinha uma grande vínculo com a FIFA. Mesmo
aqueles que evitaram alguma relação com o Grondona, No retorno político de Cristina Kirchner, ela usou
sempre temeram qualquer interferência no futebol com o Fútbol para Todos no seu discurso?
ficar de fora de alguma Copa, pois o Grondona teria o Não vi nenhuma referência. Ela se concentrou na pobreza,
respaldo da FIFA. no desemprego, na inflação, na crise econômica em si.

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Voltando à AFA, parecia que por fim tinham en-


contrado um treinador, com exceção do Sabella
que durou pouco, mas o Sampaoli parecia ser um
cara destinado a dar certo no futebol argentino por
ser herdeiro da escola do Bielsa. E mesmo com o
Grondona que dava uma “estabilidade” ao seu es-
tilo à instituição, dentro de campo há muito tempo
que a Argentina não tinha um técnico propostas
de jogo desde Pekerman, passando por Basile,
Checho Batista, Maradona…
Talvez o melhor nome fosse o do Bielsa, mas não sei se
funcionaria. Não sei se ele se adaptaria num esquema tão
bagunçado como o da AFA. Ele precisa ter as suas vontades
sempre satisfeitas. O caso do Sampaoli é interessante, é
um cara que começou a carreira sem nenhum contato
com o futebol argentino. Foi técnico no Peru, no Chile
a na Espanha. É uma figura que poderia ter funcionado.
Parecia ter encontrado uma fórmula para driblar a distân-
cia entre seleção e jogadores pois todos jogam na Europa.

O Sampaoli é um cara que conseguiu furar uma


resistência muito comum na Argentina, que tem a
ver com o Piazzola e Messi, que primeiro ganhou
reconhecimento fora do país pra depois ser reco-
nhecido dentro…
O próprio [Jorge Luís] Borges, era respeitado dentro da
intelectualidade, mas só se tornou popular na Argentina
quando foi publicado na França. O próprio Gardel, até fez
sucesso aqui, mas quando ele começou a fazer seus tours
artísticos pela Europa e EUA, ele começou a ser despre-
zado. E só depois da morte ele retomou o prestígio, e o
Gardel só teve o mega-sucesso na Argentina, depois de
explodir fora.

O sucesso fora da Argentina não é bem visto aqui?


Exato, por incrível que pareça. As pessoas que fazem su-
cesso lá fora num primeiro momento são encaradas assim
como alguém soberbo. Há grandes figuras do mundo
artístico e científico que não são conhecidos.

Por falar em “lá fora”, a Argentina recebeu muitos


imigrantes judeus.
Isso, a Argentina tem a maior comunidade judaica da
América Latina. Uma das maiores do mundo. É difícil
calcular o tamanho dessa comunidade, eles mesmos
dizem que é difícil saber porque estão os freqüentadores
das sinagogas, das escolas judaicas e, já desde os anos
1920, essa população é, na verdade, laica. Não são só
os ortodoxos, com as suas vestimentas características,
isso você vê bastante na rua, mas a imensa maioria não “O próprio Jorge Luís
é ortodoxa, 90% da comunidade judaica argentina é lai-
ca. São várias gerações de laicos que mantém tradições Borges só se tornou
gastronômicas, do humor, algumas palavras do ídiche,
um idioma fenomenal que infelizmente sumiu do planeta
popular na Argentina
todo. As estimativas mais baixas falam em 250 mil ju- quando foi publicado
deus e as mais altas em 600 mil, até porque houve muita
mistura de judeus com não-judeus. Como definir se é ou na França.”
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Entrevista: Ariel Palacios

“Dar um soco dentro não? O humor argentino tem muita influência do humor
judaico, tem muitas figuras das ciências e das artes. É uma

de uma biblioteca cultura muito influente na sociedade argentina desde


o início do século XX. Mas também é, por outro lado, o
pública é um horror, país que mais recebeu criminosos de guerra nazistas,
que nos anos 1930, tinha o maior partido nazista fora da
mas matar alguém Alemanha, fizeram comícios e lotaram o Luna Park [uma

dentro de um estádio
famosa casa de shows] em duas ocasiões, uma delas para
celebrar o Anschluss. O exército argentino era ultra-an-

‘é fruto da paixão ti-semita. Há ainda pequenos grupos neo-nazistas e a


gente vê isso tudo a questão do Chacarita e do Atlanta.

futebolística, é O Atlanta é um clube uma forte presença judaica na sua


torcida e o Chacarita é a contra-posição [futebolística] e
preciso entender’, não, o fato é que nos jogos entre eles, os cânticos anti-semitas
eram muito freqüentes.
é crime!”
A AFA chegou a proibir esses cânticos…
Mas como acontece no mundo inteiro, qualquer discri-
minação tende-se a dizer que “a paixão esportiva isso,
a rivalidade aquilo”, então, xingar alguém dentro de
um estádio está tudo bem e xingar a mesma pessoa na
frente de um banco é um absurdo! Dar um soco dentro
de uma biblioteca pública é um horror, mas matar den-
tro do estádio “é fruto da paixão futebolística, é preciso
entender”, não, é crime! Há uma tendência a ser muito
condescendente com tudo que acontece com delitos e
discriminações dentro do ambiente do futebol. Há leis,
mas as punições nunca são muito pesadas. A própria
FIFA quando aplica sanções por questões racistas ou
homofóbicas, quando você vê as multas são US$ 20mil…
O que é isso pra um grande time? Nada! Não há punição
exemplar de um ato racista, xenófobo, homofóbico. São
punições leves que as torcidas não dão bola.

Na Argentina houve aqueles terríveis atentados


contra a embaixada de Israel e AMIA. Quais outros
episódios de perseguição aos judeus aconteceram
na Argentina?
Sim, houve em três momentos. Se a gente pega a porcen-
tagem de pessoas torturadas e desaparecidas, a proporção
de membros da comunidade judaica com relação ao res-
tante da sociedade argentina é imensa. Proporcionalmente
tinha algo muito estranho. E há depoimentos que as tor-
turas eram piores com os integrantes da comunidade
judaica do que com o restante dos civis. Também houve
violações a túmulos de judeus e há um caso que nunca foi
muito detalhado que só foi possível com alguma revisão
histórica, que foi um Pogrom em Buenos Aires em 1917
ou 1918, dentro de um contexto de protestos sindicais,
como aconteceu em várias partes do mundo. Houve uma
colaboração da polícia em Blitzes na região da Balvanera,
conhecida como Once e no bairro de Villa Crespo onde se
concentra muita gente da comunidade judaica. Houve
muitas pessoas mortas e é um assunto meio tabu, mas
existem relatórios da embaixada americana contando o
que havia acontecido aqui em Buenos Aires que era uma
metrópole da época, era a terceira cidade no mundo nos

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Entrevista: Ariel Palacios

anos 1930 em produção cinematográfica em ídiche de- tem que lembrar que a esquerda européia é a favor do
pois de Varsóvia e Nova Iorque e também a terceira em aborto, do casamento gay, e o Maduro é categoricamente
publicação de jornais e periódicos em ídiche, atrás de contra o casamento homo-afetivo, anti-abortista e usa
Varsóvia e Nova Iorque. Chegou a ter três jornais diários um palavreado religioso, não é laico. Aí, ficam de novo sem
em ídiche, era impressionante. saber o que dizer. E quando digo que ele tem muitos pontos
em comum com a direita, e não estou dizendo que ele seja
Falando em extremos, como é ser correspon- de direita, pois ele é um reacionário, e ser reacionário
dente num mundo no qual noticiar algo ruim na não é um privilégio de algum ponto da direita somente,
Venezuela, você é tachado de fascista e se você ele pode estar em qualquer lado do espectro ideológico.
criticar o Macri, você é chamado de comunista? E E as pessoas usam a palavra fascismo e comunismo pra
além disso, você gasta bastante energia no Twitter qualquer coisa. Macri é fascista, dizem. Fascismo implica
onde reside muito dessa polarização. em mobilização de massas e em militarismo. O Macri
O caso é que se eu tivesse outra profissão, se eu fosse não faz nenhuma das duas coisas. Maduro é comunista.
açougueiro, talvez eu não tivesse uma conta no Twitter. Depois de 18 anos da “Revolução Bolivariana”, a maior
Mas como eu sou jornalista, parte dos leitores, ouvintes parte da economia venezuelana está em mãos privadas.
ou telespectadores estão lá. Tenho que começar a usar o Se isso é comunismo, o pessoal está indo bem devagar.
Instagram, aliás, pois são nichos de mercado e do futu- A Revolução Soviética sim, em meses estatizou tudo. É
ro. É interessante também pra estar instantaneamente como o PT no Brasil, não fez a reforma agrária, não esta-
antenado, profissionalmente é bom. Você consegue ver tizou praticamente nada, ao contrário, privatizou, quem
as tendências, as coisas legais ou as loucuras sobre as mais lucrou foram os bancos e a “pejotização”, durante
quais as pessoas estão comentando. Talvez se eu fosse o período do PT, expandiu a doidado. Só as empregadas
psicólogo eu me divertiria mais no Twitter. domésticas tiveram algum avanço trabalhista. São tempos
esquizofrênicos.
O mundo está num momento de extremos, mas
na Argentina não apareceu nenhum louco de
extrema-direita.
Não, mas tampouco de extrema-esquerda. É um país que
a esquerda tradicional foi dinamitada pelo peronismo
que é algo que oscila entre a centro-direita e a centro-
-esquerda, com toques de populismo, que incorpora
setores da direita e da esquerda. Tem de tudo. Perón era
um admirador de Mussolini, declaradamente. Não era
exatamente um democrata, era amigo do Stroessner.

E as redes sociais têm jogado um papel importante


nessas polarizações?
Sim, o Twitter menos, mas o Facebook muito. As cor-
rentes de WhatsApp mais ainda. A tia-avó recebe manda
pro sobrinho que estão chegando treze navios com dois
milhões de refugiados. Mas peraí, então em cada navio
entraria 180 mil pessoas. Mas acreditam nisso.

Como você chama cada lado?


A direita-sertaneja e a esquerda-caviar. Mas eu sinto
que são minoria, pelo menos no Twitter. E eu bloqueio
as pessoas permanentemente. Eu tenho uma série de
regras, por racismo, homofobia, misoginia, xenófobas,
xingamentos… Já me tacharam de comunista, de fascista,
de satânico pelos fanáticos religiosos. Mas os grosseiros
gritam mais mas são minoria. E essas pessoas sequer são
de direita ou de esquerda. Essas pessoas que sentem sau-
dade do regime militar brasileiro e se dizem neo-liberais.
Mas peraí, o governo militar estatizou muito. A ditadura
militar brasileira apoiou os regimes comunistas de Angola
e Moçambique, as pessoas não sabem o que fazer. Quando
dizem que Maduro é um representante do socialismo,
levando à sério o que é a direita e a esquerda na Europa,

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Entrevista: Ariel Palacios

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El papelito
Fifa.com

Jens Lehmann e o papelzinho que ficou


entalado na garganta dos argentinos

Por Fernando Martinho


& Miguel Lourenço Pereira

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Q
uando muitos continuam a insistir no espíri- Nas vésperas da final da Taça dos Campeões Europeus
to de loteria para as decisões por pênaltis, o contra o SL Benfica, o holandês conseguiu recolher uma
papelzinho utilizado por Jens Lehmann para base de dados satisfatória sobre a tendência de disparo
travar os disparos da seleção argentina no dos eventuais cobradores encarnados. O jogo seguiu para
Mundial de 2006 permite relembrar a importância da pênaltis, van Breukeleen revelou-se decisivo e o PSV
ciência e do treino para equilibrar um duelo aparente- Eindhoven venceu o troféu. Um mês depois, em Munique,
mente desigual. o guardião impediu que o soviético Igor Belanov devol-
vesse emoção aos minutos decisivos da final da Eurocopa.
Um papel suado, com a tinta a desaparecer progressi- Travando o remate do jogador do Dynamo Kiev, depois
vamente, travou as aspirações de um país. Cada vez que de tê-lo estudado avidamente, o guardião conseguiu
Lehmann tirava a folha da sua meia esquerda, o rosto do completar o seu memorável ano graças ao seu trabalho
cobrador mudava. Mas o que ele estaria lendo? de pesquisa. Uma decisão que abriu um precedente. De
Durante a transmissão ao vivo na TV, ninguém percebeu forma pública ou camuflada, vários guarda-redes foram
que o goleiro da seleção da Alemanha consultava um seguindo o seu exemplo. Mas nenhum caso se tornou tão
papel antes de defender cada disparo. Mas no estádio, simbólico como o de Lehmann naquela tarde de Junho
vários torcedores e jornalistas viram como o seu ritual em Berlim.
parecia dar frutos. Em quatro disparos dos argentinos, Köpke tinha preparado a lista. Lehmann guardou na
nenhuma vez sequer Lehmann falhou o lado certo. E em meia, suada, com algumas palavras perdidas no tempo.
duas delas, com a precisão suficiente, travou a esquadra Alguns dos jogadores da lista já nem sequer estavam
albiceleste e abriu caminho à passagem para as semifinais em campo. Quando Julio Cruz apareceu para apontar
dos germânicos no seu Mundial. Era a conseqüência de o primeiro remate, o goleiro do Arsenal consultou o
um enorme trabalho de pesquisa e análise, desenvolvido papel e atirou-se para o lugar certo. Mas a bola foi com
pelo staff técnico alemão. demasiada força para ser defendida. O resultado estava
Andreas Köpke, ex arqueiro e o treinador de goleiros, igualado. Depois foi a vez do central Roberto Ayala ter de
tinha compilado uma lista de vídeos com todos os pênaltis enganar Lehmann. No papel borrado o seu nome aparecia
apontados pelos eventuais rivais da seleção alemã nos destacado, com o número da camisa, caso o goleiro se
dois anos anteriores ao Mundial. Quando a Alemanha esquecesse de quem era quem. Lehmann leu e atirou-se
superou a fase de grupos, Lehmann começou a treinar quase antes da bola sair da chuteira do argentino e aca-
especificamente a defesa de penalidades. Sabendo sempre baria defendendo. Köpke celebrava com o punho no ar.
o que o esperava. Contra a Suécia, nas oitavas-de-final, Ele também tinha defendido aquela grande penalidade.
não foi necessário recorrer ao arquivo. Mas à medida que Enquanto os alemães encontravam sempre a forma ideal
o jogo com a Argentina seguia para a prorrogação, parecia de bater Leo Franco, o disparo de Maxi Rodríguez esteve
evidente que Lehmann seria testado. Mais do que ele, todo a centímetros de ser defendido por um Lehmann que
o sistema de preparação do staff de Jürgen Klinsmann. voltou a adivinhar o local onde a bola foi adormecer.
A ciência e a estatística fazem parte do treino dos guar- Com o golo de Borowski, o guardião sabia que tinha a
da-metas há vários anos. Apesar disso, tanto a imprensa decisão nas mãos. Mas o nome de Cambiasso não estava
esportiva como alguns profissionais, procuram relegar na folha. Era suplente, tinha poucas probabilidades de
para o segundo plano a crescente importância do estudo jogar e Köpke não se incomodou em inclui-lo na lista.
estatístico dos rivais. Em algo tão concreto e decisivo Mas depois de tantas horas a ver vídeos, a memória de
como os pênaltis, esse trabalho é ainda mais necessário. Lehmann reativou e o estilo do meio-campista argentino
Os goleiros partem em desvantagem e têm de procurar surgiu no momento certo. O alemão mergulhou para o
reequilibrar a balança. Conhecer as tendências de exe- lado certo e defendeu a cobrança. No vestiário, em plena
cução do seu rival é a única maneira de o conseguirem. euforia, decidiu guardar a folha de papel. Meses depois
Em 1988, numa era onde ainda não existia a internet, os leiloou-a para uma instituição de solidariedade por mais
vídeos do YouTube ou a transmissão diária de dezenas de de 1 milhão de euros. A ciência tinha aberto as portas da
jogos de todo o mundo, Hans van Breukeleen tornou-se presença alemã nas semifinais e Jens Lehmann, desta vez,
o primeiro arqueiro a utilizar a estatística a seu favor. queria que essa recordação ficasse para a posteridade.

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El papelito

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Jens Lehmann e o papelzinho que ficou entalado na garganta dos argentinos

Getty

Antes de “el papelito”


O inesquecível Submarino Amarillo do Villarreal, chegou sul-americanos, o que permitiu que rivalidades e tretas
surpreendentemente à semifinal. Surpreendeu porque o antigas viessem à tona. Mas novamente com o gol feito
clube nunca teve nenhuma relevância sequer dentro da fora de casa, na derrota por 2 a 1 no San Siro, garantiu ao
Espanha, apesar de um projeto esportivo muito consis- Villarreal a classificação épica às semifinais, após a vitória
tente à época que pôde montar um plantel forte, capaz em casa por 1 a 0 com gol de Arruabarrena.
de duelar com os dois gigantes espanhóis e deixar clubes Na semifinal, o adversário era o Arsenal, que ainda exa-
tradicionais como Atlético de Madrid e Athletic Bilbao à lava um cheiro daquele espetacular time de 2004, que
sua sombra. ficou conhecido como “The Invincibles’. Em Londres,
O Villarreal reuniu jogadores do calibre de Gonzalo no velho e charmoso Highbury, 1 a 0 pros Gunners. Não
Rodríguez, Rodolfo Arruabarrena, Juan Pablo Sorin, teve gol fora. E em Villarreal um empate por zero a zero
Alessio Tacchinardi, Marcos Senna, Santi Cazorla, José que poderia ter sido diferente, não fosse o pênalti perdi-
Mari, Diego Forlán e, claro, Juan Román Riquelme. Um do por Riquelme, ou melhor, defendido por ele mesmo,
time que mesclava experiência com juventude sem Jens Lehmann, que pode até ser considerado o melhor
prescindir de talento sob o comando do chileno Manuel goleiro do mundo de 2006, dados os feitos decisivos do
Pellegrini. arqueiro alemão.

Após eliminar o Everton nos playoffs, na fase de grupos Seu time não foi campeão da Champions League, nem
o time da “Comunitat Valencià” encarou Lille, Benfica da Premier League, sequer da FA Cup ou da Copa da Liga
e Manchester United, passando às oitavas de final em Inglesa e nem a sua seleção foi campeã do mundo. Mas o
primeiro lugar o que lhe permitiu enfrentar um time papelzinho de Lehmann ficou entalado na garganta dos
“menos complicado”, o Rangers da Escócia. Dois empates argentinos naquele ano.
com os escoceses, 2 a 2 no Ibrox Stadium e 1 a 1 em El Riquelme não pôde se vingar. O camisa 10 da Argentina
Madrigal, deram as espanhóis a vaga nas quartas graças foi substituído por Cambiasso, um dos jogadores que
ao gol qualificado. Vinha a Internazionale e esse duelo falharam naquela partida das quartas-de-final contra a
merece uma capítulo à parte. Uma carnificina no segundo Alemanha de Lehmann e do maldito papelito.
jogo, uma batalha característica dos velhos tempos de
Copa Libertadores, ambos os elencos eram recheados de

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Plata o
plomo
Por Guilherme Jungstedt

A cidade de Cali vista de cima


(Foto: Andrés F. Uran)

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A
partir da segunda metade da década de 70, o
crescimento do império das drogas na Colômbia
era tamanho que os barões do tráfico precisavam
de algum artifício para lavar seus milionários lucros, sob
pena de perdê-los para as traças em úmidos depósitos
ultra-secretos. Ironicamente, o próprio governo colom-
biano auxiliou na tarefa. Durante o mandato do presidente
Alfonso López Michelsen [1974–1978] o banco central do
país tinha a permissão de comprar dólares sem sequer
investigar a origem dos recursos. A medida era conhecida
como ventanilla siniestra e permitiu que o dinheiro do
narcotráfico fosse lavado e aplicado no próprio país nos
mais variados setores. O futebol não foi exceção.

As regulações do mercado financeiro internacional e as


pressões políticas exercidas principalmente pelos EUA
acabaram fechando a janela sinistra. Mas àquela altu-
ra, o dinheiro sujo já estava tão incorporado à sociedade
colombiana que parecia impossível limpar as contas dos
empreendimentos que um dia contaram com ele.

Quem assistiu à primeira temporada da série Narcos, es-


trelada pelo ator brasileiro Wagner Moura, deve ter notado
que, em dado momento, diz-se que o futebol colombiano
foi um dos setores controlados pelos incontáveis milhões
de dólares que jorravam do narcotráfico na Colômbia. O
dinheiro foi supostamente investido em contratações,
compra de árbitros, arranjos de resultados, apostas e outras
burlas ao esporte.

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Plata o plomo

Atlético Nacional campeão


da Libertadores em 1989
(Foto: Reprodução)

As lavanderias de Cali,
Bogotá e Medellín
Os carteis atuavam no futebol colombiano de acordo Os dias dourados terminaram junto com a incursão de
com a cidade onde estavam estabelecidos e o América outro traficante de grife no meio futebolístico colom-
de Cali parece ter sido um dos primeiros clubes a usu- biano. Gonzalo Rodríguez Gacha, sócio de Pablo Escobar
fruir do dinheiro do tráfico de drogas. Sob o comando no cartel de Medellín, assumiu-se publicamente como
dos irmãos Miguel e Gilberto Rodríguez Orejuela, os acionista do Millonarios de Bogotá e, em 1987, o clube
Diablos Rojos viveram o período mais glorioso de sua conquistaria o título nacional depois de nove anos. No
história. Entre 1982 e 1986, o time conquistou todos os ano seguinte, novo título, mas nada de jogadores con-
campeonatos nacionais graças a seu poderoso elenco que sagrados. Gacha era mais afeito às compras de árbitros
alinhava com nomes do calibre de Willington Ortiz — do que de jogadores midiáticos.
um dos expoentes do futebol colombiano e cujas cifras
Pablo Escobar, o mais proeminente e poderoso dos tra-
da contratação se desconhece até hoje —; a dupla estelar
ficantes colombianos, não estava alheio a essa festa.
peruana Cesar Cueto e Guillermo La Rosa; o paraguaio
Apesar de jamais assumir vínculos oficiais, sabia-se
Roberto Cabañas, ídolo do Boca Juniors no início da dé-
que ele injetava dinheiro no Independiente e no Atlético
cada seguinte e Ricardo Gareca, herói da classificação
Nacional, ambos de Medellín — com claros privilégios
argentina para o Mundial de 1986.
para este último. Em 1987, gastou cifras estratosféricas
Os triunfos não se limitaram apenas ao território nacional. para atravessar as negociações de seus rivais com as
Apesar de jamais ter conquistado a Libertadores, o América estrelas colombianas Leonel Álvarez, Gildardo Gomez e
de Cali foi por três vezes seguidas o vice-campeão do maior Luis Carlos Perea, além do treinador Francisco Maturana,
torneio do continente, entre 1985 e 1987. Hegemonias do- que também treinava a seleção do país. Com o timaço que
mésticas à parte, é bom apontar que antes dos “inves- formaria a base da Colômbia na Copa do Mundo de 1990, o
timentos” dos irmãos Orejuela, o clube detinha apenas Atlético Nacional foi o primeiro time do país a conquistar
uma taça em sua sala de troféus: a de campeão nacional uma Libertadores — não sem uma arbitragem polêmica
de 1979. Nada mais. num clássico local.

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A relação do futebol com o narco-tráfico na Colômbia

A Libertadores suja de pó Barões mortos ou presos.


O grupo 3 da Libertadores de 1989 terminou com a clas-
E agora?
sificação do Millonarios em primeiro, seguido pelo rival
Atlético Nacional. O regulamento punha as equipes do Ainda em 1989, Gonzalo Rodríguez Gacha foi encurralado
mesmo país para se enfrentar o quanto antes e o clássico na cidade litorânea de Cartagena, numa operação que
aconteceu também pelas quartas de final. No jogo de ida, destacou mais de mil homens entre policiais e fuzileiros
em Medellín, vitória do time da casa por 1 a 0. Na volta, navais do país. Após assistir à morte do filho pelas mãos
em Bogotá, o time da casa sofreu com a “desastrosa” dos agentes da justiça, Gacha deu fim a sua própria vida
arbitragem do chileno Hernán Silva, que expulsou in- usando uma granada.
justamente um jogador do Millonarios e ignorou um O Millonarios voltou a ser campeão nacional apenas em
pênalti a favor dos locais depois de violenta entrada de 2012. Felipe Gaitán Tovar, presidente do clube entre 2012
Higuita em Iguarán. e 2013, chegou a ventilar a ideia de devolver as estrelas
Na semifinal, o time do Patrón Escobar enfrentaria o referentes ao bicampeonato conquistado na época de
Danúbio, do Uruguai. Em Montevidéu, 0 a 0. Na volta, uma Gacha. Mas a proposta se mostrou impopular entre os
acachapante vitória do time da casa por 6 a 0. Anos após torcedores e os títulos foram mantidos.
aquela partida, Juan Bava, um dos assistentes de arbi- Em 1993 foi a vez do Patrón. Cercado pela polícia e fugindo
tragem na ocasião, revelou à revista El Gráfico que o trio pelos telhados das casas de um bairro de classe média em
recebeu a tradicional oferta de Escobar: “Plata o plomo?” Medellín, Pablo Escobar foi alvejado quatro vezes. O tiro
Eles devem ter escolhido a grana pois o próprio Bava, ao fatal desferido em sua orelha levanta suspeitas até hoje
revelar o caso, havia dito que ele mesmo teria feito um sobre a autoria do disparo: teria sido um policial bem
gol para o time colombiano se fosse necessário. A vaga treinado ou suicídio?
na decisão já parecia estar no bolso antes do apito final.
Fato é que seu apadrinhado Atlético Nacional segue como
No primeiro jogo da finalíssima contra o Olímpia do um dos grandes da Colômbia. Já o Independiente, quebrou
Paraguai, em Asunção, vitória dos locais por 2 a 0. Por um jejum de 45 anos sem títulos com a conquista do na-
uma ironia do destino, a grande decisão foi disputada no cional de 2002. Na Libertadores, sua melhor participação
estádio El Campín, em Bogotá — casa do rival Millonarios. foi em 2003, quando caiu na semifinal para o Santos de
O fato é atribuído a uma normativa da Conmebol, que não Diego e Robinho e o Atlético Nacional voltou a ganhar a
permite a disputa de decisões em estádios com capacidade Libertadores em 2016.
inferior a 50 mil lugares. Por uma diferença de cinco mil
lugares, o estádio Atanasio Girardot deixou de ser o palco Os irmãos Orejuela foram capturados separadamente
da maior conquista da história do clube que abrigava. em 1995 e cumprem até hoje uma pena de trinta anos
de prisão nos EUA. Em 1996, o América de Cali perdeu
O Atlético Nacional devolveu o placar e levou a decisão para para o River Plate a decisão da Libertadores daquele ano.
uma emocionante e quase interminável disputa de pênaltis, No mesmo ano, o clube foi incluído na “Lista Clinton”
onde brilhou a estrela de René Higuita. O folclórico goleiro — criada pelo Departamento do Tesouro dos EUA e que
pegou nada menos que quatro cobranças e ainda converteu aponta entidades ligadas ao tráfico de drogas. Conseguiu
a sua. Apesar da final ter parecido limpa, o caminho até limpar seu nome da indesejada lista em 2013 e o clube
ela manchou a campanha e é motivo de chacota entre os passou anos na segunda divisão.
rivais do Nacional.

Entre 1986 e 1994, a Colômbia foi o país mais violento


do mundo com nada menos que 505 assassinatos
por “limpeza social” e mais de 1.500 seqüestros e
desaparecimentos sem solução, de acordo com nú-
meros do jornal colombiano El Tiempo. Há quem diga
que até mesmo nos dias de hoje o tráfico de drogas
estende seus tentáculos pelo futebol colombiano —
uma assertiva difícil de confirmar com tão poucas
pessoas dispostas a falar sobre o assunto. Entre di-
nheiro e chumbo, os envolvidos de hoje — se é que
existem — parecem preferir o dinheiro.

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Dorados y
Calientes
Max Böhme

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Os negócios e
o caos na Baja
California
Por Matheus Steinmetz

É
provável que não haja adjetivo mais utilizado — e
desgastado — como sinônimo de latinidade que
“caliente”. O estereótipo se constrói em referência
à vibração e ao tal poder de sedução atribuídos, sobretudo,
aos hispanohablantes. Neste mundo de simplificações, o
adjetivo cai como uma luva sobre os mexicanos, apesar de
serem eles, curiosamente, os latino-americanos com o
território mais isolado em relação aos de seus “irmãos”. É
justo ali, mais precisamente onde México e Estados Unidos
se encontram, que “caliente” vira também substantivo, e
o futebol se desenvolve lado a lado com a contravenção.

O lema de Tijuana — maior e mais populosa cidade do


estado mexicano da Baja California, extremo noroeste
do país — afirma: “Aquí empieza la pátria”. Todavia, o
fato de ser um município fronteiriço cujo limite norte
coincide com o da vizinha San Diego, já em território
yankee, faz com que a “Esquina do México” seja na ver-
dade a porta de saída para quem deseja fazer a vida na
maior potência econômica do planeta. Também por esse
motivo, Tijuana sofre tanto com a violência relacionada
ao fluxo de migrantes que tentam acessar os Estados
Unidos ilegalmente, quanto com o tráfico de drogas que
dominou a região.

É nessa realidade caótica que surgiu a mais jovem for-


ça da elite do futebol mexicano. No dia 14 de janeiro de
2007, nasceu o Club Tijuana Xoloitzcuintles de Caliente.
Nos seis primeiros anos de existência, los Xolos tiveram
uma ascensão repentina: no fim de 2011, tornaram-se os
primeiros representantes da história de Baja California a
figurar na primeira divisão do futebol azteca — a Liga MX
—; conquistaram o seu primeiro título mexicano no Torneio
Apertura de 2012 e só foram eliminados da Libertadores
de 2013 por causa do critério de gol qualificado, depois de
dois empates contra o Atlético Mineiro de Ronaldinho,
já nas quartas-de-final. O pênalti do colombiano Duvier
Riascos — milagrosamente defendido pelo pé esquerdo de
São Victor — impediu a vitória e a classificação da equipe
comandada pelo técnico argentino Antonio Mohamed no
Estádio Independência, a um minuto do fim do jogo. Um
crescimento tão rápido e precoce só foi possível graças
ao aporte financeiro do fundador e dono da equipe, Jorge
Hank Rhon, um magnata com passagem pela política e um
pezinho no crime organizado.

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Dorados y Calientes

Prefeito de Tijuana entre 2004 e 2007, Jorge Hank Rhon é


o homem à frente do Grupo Caliente, empresa especiali-
zada na indústria do entretenimento adulto que gerencia
cassinos, casas de apostas, hotéis e outros empreendi-
mentos do ramo por todo o México e em mais de uma
dezena de países da América Latina e da Europa. Na ci-
dade de Tijuana, o principal complexo da organização é
o Hipódromo Agua Caliente, que reúne — entre outros
estabelecimentos — um galgódromo; um cassino e o
Estádio Caliente, casa dos Xolos, com capacidade para
receber 33.333 espectadores.

A evolução na estrutura do clube e na qualidade do elenco


se dá por meio de investimentos do Grupo Caliente, cuja
marca estampa a camisa dos Xolos desde seu primeiro ano,
como patrocinador máster do clube. Assim, ao mesmo
tempo em que reforça o orçamento do time, o “patrocínio”
pareceu render uma ótima visibilidade à empresa. Se não,
pelo menos coincidiu com o aumento vertiginoso dos seus
lucros: em 2014, a companhia registrou um faturamento
de 2.6 bilhões de pesos, quantia 92,3% superior aos 1.352
bi de 2007, ano da fundação da equipe.

A relação entre o Tijuana e Jorge Hank é notória, mas


estritamente proibida pela FIFA. Segundo o seu Código
de Ética, a entidade proíbe a ligação de filiados, direta ou
indiretamente — “por meio de ou em conjunto com ter-
ceiros” —, a qualquer organização que promova apostas e
loterias relacionadas a jogos e/ou competições de futebol.
“Não interessa a ninguém
Para teoricamente driblar a conexão entre as duas frentes,
entrar nesse assunto”
Jorge Hank não poderia ser juridicamente o proprietário — Jornalista anônimo
da empresa e do clube de forma simultânea. Por isso, mexicano
alçou seu filho, Jorge Alberto Hank Inzunza, à condição
de presidente e dono dos Xolos, eliminando — no papel
— a ligação direta entre o negócio de apostas e o futebol.

No entanto, não é preciso muito para constatar as relações.


Basta entrar no site do Grupo Caliente para encontrar o
estádio Estádio Caliente — casa dos Xoloiztcuintles —
listado como imóvel da empresa entre suas divisões de
negócio. Além disso, o vice-presidente do clube é Gog
Alberto Murguía, filho de Alberto Murguía Orozco que,
por sua vez, é sócio de Hank Rhon no Grupo Caliente.

A Femexfut [Federación Mexicana de Fútbol] faz vista


grossa sobre os fatos e não parece se incomodar muito
com a relação flagrante entre a equipe e os negócios do
seu fundador e dono de fato, já que a entidade nunca
sancionou o clube de acordo com as premissas estabele-
cidas pela FIFA. Não há registros na imprensa local sobre
links comprovados entre o Club Tijuana e os negócios
clandestinos atribuídos ao seu fundador. Segundo um
jornalista mexicano consultado por esta reportagem — o
qual terá sua identidade preservada —, “não interessa a
ninguém entrar nesse assunto”. Afinal, estamos falando
de um empresário e, mais recentemente, político com
um histórico nebuloso, associado ao tráfico de drogas e
acusado de mandar matar adversários que resolveram
cruzar o seu caminho.

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Os negócios e o caos na Baja California

“Hank, por que um de


seus guardas me matou?”
Já nos anos 1980, o primeiro caso que manchou a reputa-
ção de Hank Rhon foi o assassinato do jornalista Héctor
Félix Miranda. O “Gato Félix”, como era conhecido, foi
executado em uma emboscada: quando se dirigia à redação
do semanário Zeta, pouco depois das nove horas da manhã
do dia 20 de abril de 1988, seu carro foi encurralado por
um Pontiac Trans Am preto. Um dos homens que estava
no automóvel o acertou com dois tiros de espingarda
12mm à queima roupa — um no ombro esquerdo e outro
no tórax —, matando-o na hora.

As suspeitas caíram automaticamente sobre Hank Rhon,


um dos alvos mais freqüentes das críticas de Félix, que o
chamava de “Abominável Homem das Neves” nos textos
para a sua coluna Un poco de algo, insinuando que Rhon
era usuário de cocaína. Jesús Blancornelas, fundador e
co-diretor da revista junto com Félix, afirmava que as
suspeitas sobre Jorge Hank cresceram depois da polícia
judiciária de Baja California encontrar uma pista que
conduzia as investigações até o Hipódromo Agua Caliente
e impedir que os integrantes do Zeta acompanhassem o
caso. Segundo ele, “aí começou o processo de acoberta-
mento de Hank Rhon”.

No fim, foram presos Antonio Vera Palestina e Victoriano


Medina Moreno — o primeiro era chefe da segurança
no Hipódromo Agua Caliente, e o segundo, ex-policial e
guarda no mesmo estabelecimento. Os dois foram conde-
nados a 25 e 27 anos de prisão, respectivamente. Ainda de
acordo com Blancornelas, Victoriano Medina, autor dos
dois disparos que vitimaram o jornalista — que afirmou
haver confessado o crime sob torturas —, teria alegado
que aceitara participar da execução porque “se incomo-
dava muito que Félix criticasse o patrão”.

A partir daí, ninguém foi acusado, processado e nem


sequer investigado pela autoria intelectual do homicí-
dio, mesmo que tivesse sido constatado um pagamento
de dez mil dólares a Medina, efetuado no mesmo dia do
crime. Desde então, Blancornelas manteve uma seção com
“lembretes” para as autoridades logo abaixo do título que
batizava a coluna do amigo. Destacava-se a frase “Hank,
por que um de seus guardas me matou?”. Tudo isso a fim
de ver punidos os responsáveis pelo assassinato, o que
Blancornelas jamais conseguiu, pois morreu em 2009.

Nos anos 1990, Hank Rhon voltaria a freqüentar as pági-


nas policiais, mas dessa vez por outros motivos. Em 1991,
ele precisou pagar 25 mil dólares de fiança ao ser flagrado
tentando levar um filhote de Tigre-siberiano branco
— espécie ameaçada de extinção — de San Diego para
Tijuana de carro. Em 1995, desembarcou no aeroporto da
Cidade do México vindo do Japão e declarou o valor de
mil dólares em mercadorias, mas foi apreendido com 12
malas repletas de marfim e peles de animais ameaçados

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Dorados y Calientes

de extinção. Novamente, pagou fiança para não ser preso. dalo policial. À 0h50 do dia quatro de junho, três homens
O envolvimento de Hank com animais exóticos também foram detidos no hotel Suites Royal de Tijuana por porte
rendeu a ele um lado excêntrico: além de manter um de armas de fogo, com o argumento de que as haviam
zoológico particular — o Parque Zoológico Internacional recebido de Jorge Hank Rhon e que faziam parte da sua
— nas dependências do hipódromo, também é conhecido equipe de segurança. Com essa informação, militares
por apreciar drinks misturando tequila e pênis de leão, do exército foram à casa do empresário no complexo do
tigre ou cachorro. Seu gosto por bichos também foi, aliás, hipódromo, onde o encontraram acompanhado de sete
a inspiração na criação do Tijuana. Hermoso era o nome do dos seus guarda-costas. No local havia quase dez mil
xodó de Hank Rhon, um raro exemplar vermelho da raça cartuchos de munição, uma bomba de gás e 88 armas.
xoloitzcuintle [Pelado Mexicano] que venceu 28 corridas Dessas, apenas dez estavam registradas legalmente. A
durante seus oito anos de vida, antes de morrer vitimado perícia ainda descobriu que duas das armas haviam sido
por um câncer. Portanto, é de Hermoso a imagem no utilizadas em dois assassinatos: uma pistola 380 matou
escudo do clube, assim como o nome “Xoloitzcuintles” o guarda Olegário Figueroa Leandro, em 16 de dezembro
que batiza o time. de 2009; e uma pistola calibre 40 foi usada para executar
o vendedor de carros Mario Feliciano Camacho Ontiveros,
em 28 de junho de 2010. Hank e seus seguranças ficaram
sob custódia até a madrugada do dia 14 de junho, quando
liberados pela juíza Blanca Evelía Parra Meza por incon-
“Um político pobre é um sistências na versão oficial do Exército sobre a apreensão.

pobre político”
“Serviu para eu
Já em 1999, a Operação White Tiger, do Centro Nacional
de Inteligência sobre Drogas dos Estados Unidos, vazou perder uns oito
quilos”
um relatório preliminar à imprensa em que o clã Hank,
formado pelos irmãos Jorge e Carlos Hank Rhon, Carlos
e Carlos Hank González [pai], era acusado de lavagem de
dinheiro e tráfico de drogas junto ao cartel de Tijuana,
— Jorge Hank,
segundo informações do Swiss Leaks no site do Consórcio
Internacional de Jornalistas Investigativos.
ao sair da prisão
Filho de mãe mexicana e pai alemão, González foi um dos
nomes mais influentes do PRI [Partido Revolucionário Mas antes que Hank pudesse ir embora, a Procuradoria
Institucional], que governou o país ininterruptamente Geral de Justiça do estado o levou para prestar esclareci-
entre 1928 e 2000. González nunca pôde concorrer à mentos sobre o assassinato da sua nora, Angélica María
presidência por causa de uma lei que permitia apenas Muñoz Cervantes, de 24 anos, em agosto de 2009. Uma
políticos mexicanos cujos ambos os pais fossem nascidos testemunha teria dito às autoridades que recebeu ordens
no México a ocuparem o cargo. Mesmo assim, construiu para matar a moça, mãe de uma menina de 11 meses junto
uma carreira sólida na política como prefeito de Toluca, com Sergio Antonio Hank Krauss, um dos 19 filhos do
governador do Estado do México, chefe do Departamento bilionário. De acordo com as informações publicadas
do Distrito Federal, Secretário do Turismo e Secretário pela revista Zeta, Jorge Hank poderia ter participação
da Agricultura e Recursos Hidráulicos. no homicídio. Libertado novamente por falta de provas,
definiu os dez dias encarcerado com inesperado bom
Carlos repetia que “um político pobre era um pobre políti- humor: “Serviu para eu perder uns oito quilos”.
co”. Pelo jeito, a lição foi aprendida pelo filho caçula. Três
anos após a morte do pai, Jorge Hank assumiu a prefeitura Intocável, Jorge Hank Rhon voltaria à vida normal. Dois
de Tijuana em 2004. Em 2007, foi alvo de polêmica quando dias antes da ida da final do campeonato Apertura de
concorreu ao posto de governador de Baja California. A 2012, revelou o desejo de se candidatar novamente ao
sua candidatura chegou a ser cancelada pela justiça do governo de Baja California no ano seguinte. Questionado
estado pelo fato de ainda não ter concluído o mandato sobre a influência de um possível título do clube a favor
como prefeito àquela altura. A justiça federal revogou o da sua campanha, respondeu que qualquer membro do
cancelamento. Jorge Hank foi liberado para concorrer, PRI se beneficiaria com a vitória do Tijuana e emendou
mas não para fazer campanha. Acabou sendo derrotado que o time “é dos bajacalifornianos, claro, mas quando
por pouco menos de 54 mil votos pelo candidato do Partido o assunto é voto, ele é do partido”.
Acción Nacional [PAN], José Guadalupe Osuna Millán. Os Xolos venceram o Toluca nos dois jogos da decisão
Quatro anos depois, os Xolos conquistaram o acesso à e levantaram seu primeiro título mexicano, mas Jorge
primeira divisão do México. 2011 seria um ano somente Hank não conseguiu transformar a taça em prestígio e
de festejos para Jorge Hank, não fosse mais um escân- não passou de pré-candidato do PRI às eleições de 2013.

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Os negócios e o caos na Baja California

A passagem de Maradona
pelo México virou série
(Foto: Netlfix)

Sinaloa, Dorados
e El Pibe
A frustração na política não impediu a ampliação dos ne- No dia dez de setembro de 2018, já sob a presidência de
gócios da família. Em maio daquele mesmo 2013, o Grupo Jorge Alberto Hank Inzunza, os Dorados apresentaram
Caliente adquiriu 60% dos Dorados de Sinaloa, da capital Diego Armando Maradona como novo técnico da equipe.
Culiacán que — coincidentemente [!?] — também abriga Ademais, toda mídia espontânea atraída para o clube com
o Cartel de Sinaloa, cujo território dominado abrange a a chegada de Dios — o que por si só já configurava uma
Baja California de Hank Rhon. eficiente ação de marketing —, a presença de Maradona
trouxe consigo a memória afetiva mais especial que o
No final dos anos 1980, Joaquín Archivaldo Guzmán
imaginário coletivo mexicano pode resgatar. Como ca-
Loeira, “El Chapo”, deu início ao processo que trans-
pitão, El Diez carregou a Argentina ao título mundial de
formou o estado na casa do maior cartel narcotraficante
1986, no México, e realizou, contra a Inglaterra, dois dos
do planeta. A “Aliança de Sangue” superaria o império
lances mais icônicos da história do esporte.
construído por Pablo Escobar em Medellín. Por dividir a
mesma cidade com o grupo criminoso, os Dorados vivem O retorno de Maradona devolveu ao povo mexicano a
sob a constante suspeita de influência do cartel. chance de desfrutar de um ídolo mundial tão forte cujo
futebol local nunca pôde forjar. Além disso, a sua perso-
Os questionamentos se acentuaram quando Pep Guardiola
nalidade concentra em si os holofotes que a família Hank
desembarcou no Aeroporto Internacional Bachigualato
certamente não gostaria de ter sobre os seus negócios.
para vestir a camisa dos Dorados — onde, inclusive,
Em uma demonstração de poder, o Grupo Caliente virou
encerraria sua carreira como jogador em 2006—, porque
coadjuvante — propositadamente — do próprio jogo.
todos se perguntavam de onde vinha o dinheiro para ar-
car com a contratação do ex-jogador do Barça, já que se A conexão entre o cartel e os Dorados de Sinaloa nunca
tratava de uma equipe modesta que mal se mantinha na chegou a ser comprovada. Também não é possível cravar
primeira divisão. Em janeiro de 2016, El Chapo foi preso que a compra do clube pela família Hank se deu apenas
pela última vez, o que reorganizou as lideranças internas por puro interesse esportivo. Mas a história sugere que os
do cartel sem enfraquecer sua atuação. interesses não são nada dorados mas, sim, bem calientes.

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Lamar Hunt
US Open Cup

A competição mais antiga


dos Estados Unidos

Por Carina Itaborahy

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N
ova Iorque, abril de 1913. O encontro de uma peque- não é nada fácil encontrar transmissões online de boa
na delegação no Astor House Hotel foi o primeiro qualidade. Tanto as torcidas quanto alguns times da Major
passo para o desenvolvimento do “soccer” no país. League ainda torcem o nariz para o torneio, mesmo sendo
A reunião resultou na formação da Federação de Futebol o caminho mais fácil para Concacaf Champions League
dos Estados Unidos e, com ela, a criação de um campeonato — desde 2007, o vencedor da Open Cup se classifica au-
nacional: a National Challenge Cup. tomaticamente para o torneio continental.

Sir Thomas Dewar, um escocês que viajava o mundo di- O jornalista Thomas Floyd, editor do site Goal.com, aponta
vulgando o uísque da família e interessado em promover como um problema a adoção do mata-mata desde o início
o futebol na América, doou a primeira taça da competição, da competição: “Há uma falta de entendimento entre tor-
que sobreviveu até 1979 e hoje está exposta no National cedores casuais quanto ao formato do torneio. Torcedores
Soccer Hall of Fame, em Nova Iorque. americanos são acostumados ao formato simples da NFL,
NBA, NHL, MLB, que é uma temporada regular seguida de
Num país em que pouco se sabia sobre futebol, era um
finais. A idéia de um torneio envolvendo times de níveis
grande desafio criar uma liga nacional. No entanto, o pon-
inferiores ainda é estranha para muitos torcedores e para
tapé inicial foi dado em 1914. Um campeonato democrático,
a mídia. Então, não há investimentos. Muitos jogos não
que reunia times amadores e profissionais em um sistema
são acessíveis e a torcida não se engaja. Se a torcida não
único de mata-mata desde as primeiras rodadas, o que
se importa, o time também não se importa.”
dava mais emoção às partidas.
Mas apesar do desinteresse da grande mídia, há quem se
Mais de cem anos se passaram e a fórmula de disputa conti- esforce para preservar os mais de cem anos de história da
nua a mesma. Apenas o nome mudou. Em 1990, passou a se Open Cup. Em 2003, Josh Hakala criou o site Thecup.us ­—
chamar US Open Cup mas, no final da década, foi modificado até hoje, o único com cobertura exclusiva da competição.
para Lamar Hunt US Open Cup — em homenagem a Lamar Antes disso, Josh era apresentador do Soccer Fanatics Radio
Hunt, um dos fundadores da MLS (Major League Soccer) Show, que basicamente cobria a competição e discutia
e grande entusiasta do futebol nos EUA. Hunt também foi as notícias do futebol no país. Com o maior número de
o fundador da NASL (North American Soccer League), no torcedores interessados no assunto, ele resolveu criar um
final da década de 60. site independente que pudesse não apenas reunir tabelas,
notícias das partidas e fotos, mas resgatar a história do
campeonato: “As pessoas estão muito interessadas em
descobrir mais sobre o torneio e, principalmente, sua

A sobrevivência história. O site recebe cada vez mais acessos e eu gostaria


de torná-lo rentável para dedicar mais tempo e ajudar as
pessoas a aprenderem mais sobre a competição.”
Foram muitos os percalços para manter a competição.
Desde o fim dos anos 60 até a década de 90, os times
profissionais ignoraram a Open Cup. “Foi o período mais
desafiador. Quando as equipes da NASL se recusaram a
participar da Open Cup, foi um grande golpe. Os times What now?
profissionais estavam virando as costas para a Copa. A
Associação Adulta de Futebol Norte-americano assumiu Mas o que esperar do futuro do campeonato? Se alguns
a organização e manteve a competição. Se o campeonato times não se importam tanto com a Open Cup, outros
ainda sobrevive, é fruto da dedicação dos times durante vêem nela uma chance de recontar a história. Em 2013, o
todos esses anos”, lembra o jornalista Josh Hakala. Para DC United estava atolado em sua pior crise. Thomas Floyd
manter o torneio consistente até as finais durante aquele acompanhou de perto o drama e a ascenção: “A vitória na
período, a Open Cup dependia do que restava de times Open Cup salvou o trabalho do treinador Ben Olsen e, no
formados por imigrantes europeus. Contudo, a criação fim de 2014, ele foi eleito o melhor técnico da MLS. Isso
da MLS, em 1996, fez com que os clubes retornassem à mostrou como esse torneio pode mudar o rumo de uma
competição aos poucos, vencendo todas as finais desde equipe”. Para Josh Hakala, um investimento significativo
então — exceto a de 1999, quando o Rochester Rhinos, precisa ser feito para atrair torcedores: “O torneio é exclu-
de uma liga inferior, venceu o Colorado Rapids. sivo. É um evento fácil de ser vendido para fãs de futebol,
mas o investimento tem que ser feito antes, para tornar
A Open Cup nunca despertou o interesse de emissoras
as pessoas mais conscientes disso.” É um processo lento,
americanas. Poucas finais foram transmitidas nos últimos
mas que avança ao longo dos anos.
anos. Assistir aos jogos é sempre um desafio e também

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Tuân Kiêt Jr.

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