Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
24
HABITAT
Margem 24 Final.indd 1 25/05/2015 16:53:49
Copyright © Boitempo Editorial, 2015
Margem Esquerda – ensaios marxistas n. 24
Editora
Ivana Jinkings
Editora-assistente
Thaisa Burani
Editor de imagens
Sergio Romagnolo
Editor de poesia
Flávio Aguiar
Revisão
Thais Rimkus
Capa
Antonio Kehl e Sergio Romagnolo
Imagens do miolo e da capa
Mauro Restiffe
Obras que compõem a série Maré, 2014,
e, na terceira capa, “Mirante #5”, 2010.
Projeto gráfico e diagramação
Antonio Kehl
Produção
Livia Campos
Impressão e acabamento
Intergraf
ISSN 1678-7684
BOITEMPO EDITORIAL
Jinkings Editores Associados Ltda.
Rua Pereira Leite, 373 – Sumarezinho
CEP 05442-000 São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869
editor@boitempoeditorial.com.br
www.boitempoeditorial.com.br | www.blogdaboitempo.com.br
www.facebook.com/boitempo | www.twitter.com/editoraboitempo
www.youtube.com/imprensaboitempo
HABITAT
Margem 24 Final.indd 2 25/05/2015 16:54:05
Sumário
Apresentação .........................................................................................9
IVANA JINKINGS
ENTREVISTA
Apresentação .......................................................................................29
JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA (organização) e KARINA DE OLIVEIRA LEITÃO (colaboração)
O território e a dominação social .........................................................31
FLÁVIO VILLAÇA
América Latina urbana: violência, enclaves e lutas pela terra ..................37
TOM ANGOTTI
Espaços em disputa e contestações ......................................................44
AGNES DEBOULET
Conflito urbano e gramáticas de mediação ...........................................51
GABRIEL DE SANTIS FELTRAN
ARTIGOS
HABITAT
Margem 24 Final.indd 3 25/05/2015 16:54:05
Lucien Goldmann, marxista pascaliano ................................................111
MICHAEL LÖWY
CLÁSSICO
Apresentação
ALEXANDRE LINARES
Lenin .................................................................................................125
LEON TROTSKI
HOMENAGEM
RESENHA
NOTAS DE LEITURA
HABITAT
Margem 24 Final.indd 4 25/05/2015 16:54:05
América Latina urbana:
violência, enclaves e
lutas pela terra*
TOM ANGOTTI
dia à América do Norte num futuro própero, tão logo haja ordem e
T
* Tradução de José Eduardo Baravelli. Uma versão ampliada deste artigo foi publicada em Latin
American Perspectives, n. 189, mar. 2013, p. 5-20. (N. E.)
M
1
Cf. UN Habitat, Cities and Climate Change: Global Report on Human Settlements (Londres,
O
Earthscan, 2011).
T
AMÉRICA LATINA U R B A N A : V I O L Ê N C I A , E N C L AV E S E L U TA S P E L A T E R R A 37
HABITAT
Margem 24 Final.indd 37 25/05/2015 16:54:11
descontrolada são dominantes em cidades de todos tamanhos e tam-
bém nas áreas rurais; que as cidades que mais cresceram em qualquer
lugar do planeta foram, por décadas, de porte pequeno ou médio;
que os sinais de convergência entre Norte e Sul se limitam aos bairros
exclusivos de elite, bairros esses que estão onde sempre estiveram,
reproduzindo a si mesmos desde períodos coloniais. São previsões,
por fim, que não conseguem reconhecer as desigualdades estruturais
entre áreas rurais e urbanas dentro de cada país, bem como inter e
intrametrópoles – sem falar nas desigualdades que se expandem cada
vez mais entre os hemisférios Norte e Sul.
Esses mitos urbanos se somam a uma falácia urbana: a noção
de que o problema diz respeito à própria cidade, e não às relações
sociais que governam a sociedade. Ainda mais significativo, esses
mitos urbanos dizem pouco sobre o que realmente importa nessa
transformação histórica do rural em urbano, que são suas implicações
econômicas, sociais e políticas. Qual é o significado da urbanização
na vida cotidiana das pessoas? Se toda a América Latina é urbana, en-
C I D A D E S
violência, uma massa de pessoas que antes vivia da terra foi forçada
a migrar para as cidades. A terra, mesmo nas propriedades comunais,
passou a ter valor pela capacidade de produzir mercadorias para um
mercado global, levando a maioria da população à despossessão e aos
E M
pelo livre arbítrio, mas, sim, por essa gigantesca tomada de terra.
Ao mesmo tempo, a terra urbana se tornou um novo campo de
batalha na luta de classes. São as elites econômicas que controlam
a terra nas cidades, e, como elas têm pouco interesse em acomodar
:
38 M A R G E M E S Q U E R D A 24
HABITAT
Margem 24 Final.indd 38 25/05/2015 16:54:11
infraestrutura urbana básica, como saneamento e acesso a água
potável. Ao longo do século passado, movimentos sociais urbanos
emergiram de conflitos intensos em torno da questão do acesso e
do controle sobre a terra. O que estava em jogo, no entanto, não
era apenas a posse da terra em si. Se entendermos a terra como in-
tegrante não apenas de espaço físico, mas também de um conjunto
de relações sociais – entre indivíduos, classes, grupos sociais e o
Estado –, as lutas pela terra urbana se tornam fundamentalmente
lutas comunitárias e de classe.
Já as lutas pela terra rural prosseguem quase sempre desconhecidas
do mundo cosmopolita, mas não menos importantes, se considerar-
mos as crises ambientais e de energia que afetam a América Latina
urbana no século XXI, sem falar na devastação dos recursos e das
comunidades rurais.
As lutas pela terra estão no centro tanto da questão urbana
quanto da questão rural e, nas próximas décadas, dependendo do
andamento da mudança climática global, farão parte da luta pela
sustentação da vida dos seres humanos no planeta.
AMÉRICA LATINA U R B A N A : V I O L Ê N C I A , E N C L AV E S E L U TA S P E L A T E R R A 39
HABITAT
Margem 24 Final.indd 39 25/05/2015 16:54:11
Enclaves industriais nas cidades e em seu entorno, na forma de zonas
de livre comércio e maquiladoras*, também impulsionaram a ida de
massas de pessoas para as cidades, que se tornaram gigantescas reservas
de trabalho para o capital local e global. O valor da massa de pobreza
urbana era enorme – péssimas condições de vida em cidades carentes de
infraestrutura básica reduziam para o capital o custo de reprodução do
trabalho. Ocasionalmente, o trabalho transnacionalizado era dirigido para
a América do Norte, tanto para atender à necessidade de trabalho novo
quanto para conter o custo total do trabalho, o que foi bem aproveitado
por empresários oriundos da América Latina. Mesmo assim, apesar do
crescimento de algumas economias – como Brasil e Argentina – e do
afrouxamento do controle dos Estados Unidos sobre a agenda política,
por conta da entrada da China e de outras economias gigantes na região,
ainda não se vê nenhuma mudança fundamental no desenvolvimento
dependente e na desigualdade da urbanização latino-americana.
A violência é parte fundamental da vida cotidiana nas cidades da
América Latina. Para entender o que a mantém, é preciso colocá-la
C I D A D E S
seus militares, mas não seriam tão poderosas como são sem o trei-
namento oferecido pela Escola das Américas e sem o apoio material
do Pentágono. Hoje, elas se valem do terror em grande escala, sob a
rubrica da “guerra às drogas”, com o forte apoio militar dos Estados
,
2
Ver Mark Karlin, “How the Militarized War on Drugs in Latin America Benefits Transnational
O S S I Ê
Corporations and Undermines Democracy”, Truthout, 5 ago. 2012. Disponível em: <truth-out.
org/news/item/10676-how-thewar-on-drugs-in-latin-america-benefits-transnational-corporations
-and-undermines-democracy>; acessado em: 8 abr. 2015.
D
40 M A R G E M E S Q U E R D A 24
HABITAT
Margem 24 Final.indd 40 25/05/2015 16:54:11
em relação a afrodescendentes e os temores crescentes em relação a
imigrantes sem-terra que cada vez mais cruzam as fronteiras nacio-
nais do continente à procura de trabalho. Nas cidades, o “outro” se
tornou o complemento lógico e necessário dos enclaves, cada vez
mais armados e fortificados. Como a tradicional Plaza de Armas, todo
espaço público precisa ser um refúgio em que uma força uniformi-
zada é convocada para proteger a propriedade privada e promover
consumo. A consequência é não haver mais um verdadeiro espaço
público, mesmo nos casos em que ele é de propriedade e gestão de
entidades públicas. Os complexos condominiais privados, por sua vez,
precisam ter estacionamento protegido, cercas eletrificadas e guardas
e câmaras de segurança 24 horas por dia.
A gestão da violência é parte essencial das organizações respon-
sáveis pelo planejamento político e militar nos poderosos enclaves
de negócios que abrigam as instituições do capitalismo monopolista
global. Centralidades comerciais, incluindo as de São Paulo, Buenos
Aires, Bogotá e de praticamente todas as demais capitais latino-ameri-
canas, são construídas a partir de uma composição de capital global e
local. Investidores internacionais buscam cada vez mais refúgios para
seu capital excedente em centros de negócio e precisam de parcerias
locais que garantam um ambiente seguro para seus investimentos.
Os preços da terra nessas centralidades são astronômicos e, portanto,
os proprietários têm um empenho especial em proteger seus investi-
mentos pelo uso de recursos públicos e privados. Quem investe em
novos complexos de escritórios tem capacidade de comprar projetos e
tecnologia de classe internacional, a fim de salvaguardar seus enclaves
de riqueza, mas também depende de governos locais para policiar os
espaços públicos – ruas, calçadas, parques, mercados etc. –, necessários
para a reprodução do lucro e da força de trabalho que empregam.
Uma transformação neoliberal do Estado foi necessária, portanto,
para assegurar o controle sobre esses espaços. Parcerias público-pri-
I
Dualismos e orientalismos
A
AMÉRICA LATINA U R B A N A : V I O L Ê N C I A , E N C L AV E S E L U TA S P E L A T E R R A 41
HABITAT
Margem 24 Final.indd 41 25/05/2015 16:54:11
deradas “cidade informal” e contrastam, assim, com a “cidade formal”,
que é “moderna”, “civilizada” e “planejada”3. Os importantes estudos
de Janice Perlman4 sobre uma favela do Rio de Janeiro desafiaram o
“mito da marginalidade” ao revelar as complexidades das e entre as
favelas, que são obscurecidas pelos mitos da ciência social ortodoxa.
Em meio à retórica e aos mitos, as favelas sempre terminam por
ser um problema. A solução supostamente racional, portanto, é se
livrar delas. Se a cidade informal é o problema, então a cidade formal
é a solução. Com a forte resistência dos movimentos sociais urbanos
contra esquemas monumentais de reurbanização, instrumentos mais
sofisticados para a eliminação da informalidade surgiram no século XX.
As reurbanizações de terra arrasada para a promoção da especu-
lação imobiliária desencadearam uma resistência maciça contra es-
quemas urbanos privados e de governo, particularmente no período
de insurgências radicais e revolucionárias dos anos 1960, quando
movimentos sociais urbanos floresceram em todas as grandes nações
urbanizadas. Como eles se revelaram obstáculos formidáveis, o Banco
C I D A D E S
3
Uma discussão séria e crítica sobre informalidade urbana pode ser vista em Ray Bromley (org.),
The Urban Informal Sector: Critical Perspectives in Employment and Housing Policies (Nova York,
Pergamon, 1979) e Ananya Roy e Nezar AlSayyad, Urban Informality: Transnational Perspectives
from the Middle East, Latin America, and South Asia (Lanham-MD, Lexington, 2004).
:O S S I Ê
4
Ver Jenice Perlman, The Myth of Marginality (Berkeley, University of California Press. 1976) [ed.
bras.: O mito da marginalidade, 3. ed., trad. Waldivia Portinho, São Paulo, Paz e Terra, 2002] e Favela:
Four Decades of Living on the Edge in Rio de Janeiro (Nova York, Oxford University Press, 2010).
D
42 M A R G E M E S Q U E R D A 24
HABITAT
Margem 24 Final.indd 42 25/05/2015 16:54:11
suas visões subjetivas e culturalmente dirigidas a respeito do resto do
mundo. Essa tendência segue a discussão inovadora de Edward Said
a respeito do orientalismo no Império Britânico5. Uma vez que as
teorias hegemônicas e as práticas de planejamento urbano na América
Latina têm suas raízes na Europa e na América do Norte, as favelas e a
informalidade continuam a ser vistas sob a distância dos dominadores,
como locais a serem geridos. São habitadas por pessoas indiscrimi-
nadamente homogêneas e incapazes de exercer controle sobre suas
próprias comunidades. A não ser, é claro, que sejam “educadas” à
maneira do mundo “civilizado”.
AI
T
T
O
G
N
M
5
Ver Edward W. Said, Orientalism (Nova York, Vintage, 1979) [ed. bras.: Orientalismo: o Oriente
O
como invenção do Ocidente, trad. Rosaura Eichenberg, São Paulo, Companhia de Bolso, 2007].
T
AMÉRICA LATINA U R B A N A : V I O L Ê N C I A , E N C L AV E S E L U TA S P E L A T E R R A 43
HABITAT
Margem 24 Final.indd 43 25/05/2015 16:54:11