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1ª EDIÇÃO/ANO 2015
www.revistasisifo.com
Revista Sísifo – v. 2, nº 1, agosto 2015. Ano 2015 - ISSN: 2359-3121 - www.revistasisifo.com
Filosofia – Periódico
ISSN: 2359-3121
EDITORES
Marcelo Vinicius
ORGANIZAÇÃO DO DOSSIÊ
COLABORADORES
Eduardo Pellejero
José Castanheira
Luize Queiroz
Mauro Luciano
Os artigos e demais textos publicados nesta revista (online, PDF ou qualquer outro
meio) são de inteira responsabilidade de seus autores. A reprodução, parcial ou
total, é permitida, desde que seja citada a fonte.
Revista Sísifo – v. 2, nº 1, agosto 2015. Ano 2015 - ISSN: 2359-3121 - www.revistasisifo.com
SUMÁRIO
EDITORIAL .................................................................................................................... 1
SUBMISSÃO ................................................................................................................ 71
1
Revista Sísifo – v. 2, nº 1, agosto 2015. Ano 2015 - ISSN: 2359-3121 - www.revistasisifo.com
EDITORIAL
O que é o cinema? Fazer esta pergunta é mais simples do que respondê-la. O
cinema possui muitas facetas, e é saudável que as tenha. Afinal, como diz Mark
Cousins, o que move o cinema é a paixão, a inovação. Tudo isso se apresenta na tela, na
escuridão da sala de projeção.
O cinema nos ensinou muito sobre o nosso mundo. Mostrou as selvas mais
distantes da civilização e o fundo do mar. Enviou o homem à lua meio século antes das
primeiras tentativas reais. Mostrou o quanto que somos capazes de amar e odiar. O
quanto que a humanidade é má, e o quão terna também.
Enquanto arte, o cinema não pode deixar de mudar, de se nos fascinar. Para isso,
é necessário que seja capaz apresentar surpresas. E, acredite, ele ainda guarda muitas
surpresas.
Poderíamos dizer que o cinema é vida. Como também poderíamos dizer que é a
morte. Poderíamos dizer que o cinema é a ação. Como também poderíamos dizer que é
o repouso.
O cinema é tudo isso porque vive dentro da imaginação humana – esta, sem
limites estabelecidos, que enxerga além da linha do horizonte, além das materialidades.
Que enxerga possibilidades múltiplas na realidade e na fantasia. Na opressão e na
libertação. Na ordem e na anarquia.
Mas eis que há uma faceta do cinema que pouco é conhecido de seu grande
público: a literatura teórica. Sim, porque para que o cinema se mantenha nesta saga
inventiva é preciso pensá-lo também. Não somente antes da criação dos filmes como
também depois.
É daí que surge a ideia do dossiê de cinema da Revista Sísifo. Se os filmes
permanecem em nossa mente antes e depois de feitos, por que não escrever sobre eles?
Destrinchar as muitas possibilidades de se pensar o cinema?
Nesse sentido, autores de diferentes formações se juntam neste dossiê para
apresentar-nos diferentes lados desta extensão do espetáculo cinematográfico. E os
agradecemos pelo esforço realizado para fazer deste estudo uma realidade.
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Crítica
DEPOIS DA CHUVA
De Cláudio Marques e Marília Hughes
1
Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Feira de Santana e editor da Revista Sísifo.
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das imagens ou mesmo pela montagem acelerada em que os planos duram segundos ou
menos que um segundo em tela. Com algumas exceções (como as cenas dos encontros
de Caio com sua namorada), Depois da chuva não segue este padrão de construção
fílmica. As imagens são estáticas - em algo que me lembrou especialmente o cinema de
fluxo oriental de Tsai Ming-liang, apesar de serem propostas radicalmente diferentes -
enquanto a música é posta demandando a agilidade, a velocidade. A música é explosão
enquanto a imagem é calma.
Este dualismo é muito sensível ao trabalho realizado pela dupla de diretores em
seu debute em longa-metragem. O que demonstra que os cineastas pensaram muito bem
em como compor seu filme antes de transformá-lo em realidade. Isto porque estas cenas
em que se dá o dualismo desenvolvem uma emoção no espectador que pode não ter seu
significado bem compreendido, mas que será sentida. A proposta do filme é de realizar
um registro em primeira pessoa de um momento histórico. Mais do que falar do Brasil
em seu momento de abertura política, o filme busca o impacto da história sobre o
indivíduo. Ao tratar do indivíduo ele encontra os indivíduos que flutuam ao seu redor:
os colegas de escola, os professores, a mãe, os amigos anarquistas.
Os personagens em geral parecem atirados numa inércia que os planos fixos
captam bem. Porque, apesar de "inércia" evocar a movimentação - necessária à feitura
de um filme -, aqui ele surge como um descontrole (continuo me movimentando mesmo
depois de ter tentado parar). A câmera é fixa como se esperasse a ação dos personagens
(os anarquistas dizem que tem que agir por conta própria, mas por que não agem?), mas
eles em poucos momentos fazem alguma coisa. Quando a câmera se põe em cena como
provocadora é porque encontra no mundo quem esteja disposto à ação. E a ação
somente surge quando seus personagens resolvem tomar as rédeas de suas próprias
vidas. A ação surge no relacionamento de Caio com a colega de escola, que vira sua
namorada. E na performance de sua banda num festival na escola.
O papel da câmera aqui passa a ser mais que observar os jovens, mas buscar o
sentimento que os guia. Quando o anarquista amigo de Caio descobre-se sozinho em
meio à sua batalha política, perde as forças para fazer um pronunciamento em sua rádio
de frequência roubada, como ele orgulhosamente pontua. Microfone em mão, sozinho
do prédio onde fica o equipamento, ele pergunta se há alguém o ouvindo. Enquanto isso
a câmera recua como se sentisse a necessidade de libertá-lo. Mais que isso, registra a
sua solidão.
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Referências bibliográficas:
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.
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O CINEMA EM MERLEAU-PONTY
Muito pouco se fala sobre os caminhos que tanto Sartre, Bergson, e principalmente
Merleau-Ponty trilharam ao tentar descrever o que seria a imagem contemporânea (ou moderna,
a notar as influências e contingências do “mundo moderno” na filosofia francesa do século XX).
Enfim, falar sobre a “Imagem” nestes autores, parece intrigante – principalmente hoje em dia
quando a compreensão do imaginário sofre duras críticas e é colocado à escanteio. O que se
chamou de existencialismo, na verdade, não existiu em larga escala. Porém, nesse período
incisivo do pensamento francês, surgiram autores que intensificaram sua presença nas variadas
fórmulas atingidas pela psicologia da época. Aqui, neste ensaio, procuramos aliar Merleau-
Ponty, controverso autor, mas nem por isso, ou talvez por isso, tão influente, ao que se poderia
afirmar sobre seu olhar acerca do cinema instituído em sua época.
2
Mestre em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos; especialização em Ética
e Epistemologia pela UFS – Universidade Federal de Sergipe, publicou o livro Existencialismo e critica
no cinema.
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3
VIEGAS cita Deleuze .Conversações
Conversações,
Conversações trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século, 2003, pág.73. Cf.
disponível em: http://filmphilosophy.squarespace.com/1-maurice-merleau-ponty#_ftn1, acessado em 25 de
maio de 2015.
* Mestre em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos; especialização em Ética e
Epistemologia pela UFS – Universidade Federal de Sergipe, publicou o livro Existencialismo e critica no
cinema.
4
PONTY, Merleau. Le cinema et la nouvelle psychologie.
psychologie Paris: Folioplus philosophie, Gallimard, 2009.
5
GRÜNNEWALD, José Lino. A ideia do cinema.
cinema Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
6
XAVIER, Ismail. A experiência do Cinema.
Cinema Rio de Janeiro: Graal, 1983.
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constituição (ou, quase instituição) do olhar. Isto quando leva-se em conta que Merleau-
Ponty conversava com uma tradição não unicamente, e talvez não incisivamente, da
filosofia, mas, e principalmente, com uma história da psicologia como ciência do
humano – pois, já se evidencia isso no título da sua fala. Este campo das imagens, para
ele, também seria frutífero pela força cartesiana que predominava no campo cognitivo,
ou das ciências cognitivas no entorno dos debates sobre a psique e noções
epistemológicas que estas ciências tentavam preconizar. Principalmente porque, para
Merleau-Ponty, assim como para Bergson, o cartesianismo teria sido um ponto de
partida para uma espécie de filosofia francesa, falando em grosso modo, e lá em
Descartes já se observava algo que se compreendia por uma espécie de não dissociação
entre imaginário e realidade (em termos psicanalíticos posteriores).
O que atraiu estes dois filósofos contemporâneos, Bergson como conceitos e
Ponty como campo de pesquisa, praticamente, foi a relação do corpo (ou de suas
subjetividades) e a imagem. Aqui, neste ponto específico, podemos interferir um pouco
mais, traçando alguns comentários sobre, e como, Merleau-Ponty tentou compreender o
cinema em seu tempo de inflexão no social moderno que se elaborava intuitivamente.
À propósito de uma introdução a este estudo sobre as imagens, “cinema”,
também em senso comum, na época das tentativas fenomenológicas, não era aquilo que
hoje compreendemos. Não eram as inúmeras telas que habitam hoje em praticamente
todas as salas domésticas com a TV, todos os bolsos com os smartphones, e todos os
shoppings com os multiplexes. Pesquisas sobre a imagem, ainda no início do século
passado, a saber as próprias citadas no texto sobre as experiências feitas por Kuleshov e
Pudóvkin, não resolviam uma curiosidade que, na França, percebeu-se como algo muito
além a ser adiantado pelos “efeitos” procurados ou causados pela imagem
cinematográfica. Em Bergson, especificamente, a imagem cinematográfica, em texto
publicado em 1907,7 partia do princípio da ilusão – e não da materialidade. Aceitando-
se que, como o próprio Deleuze revitalizaria, Bergson não tratava em seu capítulo a
respeito a ilusão cinematográfica de um cinema que iria se desenvolver posteriormente.
Àquela época, as imagens cinematográficas não possuíam ainda, efetivamente, caráter
“gráfico”. Eram, as imagens, apenas “cinema”.
Cinematógrafo, porém, sem problematização lingüística, ou de linguagem.
A imagem que surge, portanto, nos textos do pensamento francês é uma dotada de
7
Cf. BERGSON, H. A Evolução Criadora.
Criadora São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.
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significação que envolvia não a certeza do que se compreendia do que se via. Para
melhor comentar esta chave de relações entre imagem e vida, Ponty descreve uma
situação:
8
MERLEAU-PONTY. O cinema e a nova psicologia. in Xavier, Ismail (org) A experiência do cinema.
cinema Rio
de Janeiro: Graal, 1983. p. 109.
9
PARLANT, Pierre. Le texte en perspective – la figure Du philosophe – La Scéne de l’être. In. PONTY,
Merleau. Le cinema et la nouvelle psychologie
psycho logie.
logie Paris: Folioplus philosophie, Gallimard, 2009,
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frustrações, por pouco tempo também chamado de moderno em uma civilização que
deslocaria todas as imagens a um caráter transcendental – portanto, imaterial, a certo
modo. A cisão principal se dá, agora a partir de Ponty, quando o olho, ou olhar, ainda
“atrasado” ou “descompassado” com os ideais modernos, pois no visível persistiria o
enigma, o mistério, a dificuldade de compreensão do mundo – contudo, apenas em
poucos casos: “doente”. Por isso a ausência de julgamento no filósofo nisto que falamos
aqui num a partir.
Para quem conhece o filósofo, Cézanne evidentemente teria guardado algo
que dosa o olhar moderno “científico” com o antes do compreendido, este pintor que
serviu como um quase-autor para o filósofo. Neste artista, o denominado virtual
contemporâneo se expressaria em contornos, linhas, “formas materializadas”, as que
seriam também denominadas como “gestuais” por Ponty.10 Gestos, portanto, que
expressam sentidos, sentimentos: afecções, movimentos, pulsões, ações: fenômenos,
como dito acima. Não estaria Ponty, em sua época, falando de uma imersão que hoje se
pode provocar através de instalações, ou mesmo na possibilidade dos jogo virtuais e da
participação do espectador diretamente na imagem como amálgama? Cedo e anacrônico
para falar nestes termos, porém tarde para encarar um possível denominador comum
entre a noção de imaginário e de virtual.
Referências Bibliográficas:
Bibliográficas:
10
LECONTE, Patrick. La perception: Cézanne chez Merleau-Ponty. Revista Philopsis. Disponível em
http://www.philopsis.fr/IMG/pdf_perception_cezanne_leconte.pdf . Acesso em 29 de maio de 2015.
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PERCEPÇÃO E CINEMA
Luize de Queiroz11
11
Licenciada em Filosofia pela Universidade do Recôncavo da Bahia (UFRB).
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12
MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo : Abril
Cultural, 1984. p. 91.
13
Cf. VIEGAS, Susan. Film&Philosophy-Mapping an Encounteur. Maurice Merleau-Ponty. Instituto de
Filosofia da Linguagem. 2010.
15
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CINEMA E PERCEPÇÃO
O tema do cinema em M. Merleau-Ponty é, sobretudo, mediado pelo fenômeno da
percepção principalmente porque acolhe ainda que criticamente os princípios da
Gestalttheorie, cuja exploração da relação entre conteúdo e forma, fundo e figura se faz
aparente. Tendo isto em vista, o filósofo considera que a sétima arte vivificaria, não só a
experiência de nossa inerência no mundo, como também às coisas e o outro, enquanto
meio de interrogação filosófica no sentido além do ilustrativo. Nesta perspectiva, a
relação entre cinema e filosofia, traz em voga a significação estética do mundo, dada em
nossa percepção das coisas e de outrem.
A conferência Le cinéma et la nouvelle psychologie, ao tratar da questão do cinema,
o faz de modo breve e exploratório aludindo a questões contemporâneas a respeito da
psicologia no que se refere a percepção, a intersubjetividade e, por conseguinte, do lugar
em que ocupa a arte do cinema. O fio condutor estabelecido por M. Merleau-Ponty se
desenvolve a partir do esclarecimento a respeito da percepção. Para o filósofo, no
sentido intelectualista não muito estimado por ele, “a percepção torna-se uma
interpretação dos signos que a sensibilidade fornece conforme os estímulos corporais,
uma hipótese que o espírito forma para explicar suas impressões.”15 Uma segunda
concepção da percepção ainda solidária a primeira vem por parte do empirismo
moderno, que afirma ser a sensação e a percepção causadas pelos estímulos dos objetos
externos, onde temos a partir disso, um processo de associação de sensações em uma
percepção.
A percepção para M. Merleau-Ponty, “não é uma espécie de ciência iniciante e um
primeiro exercício da inteligência; é preciso que reencontremos um comércio com o
mundo e uma presença, nele, mais antiga que a inteligência”16. Em suma, a percepção
para nosso filósofo é a questão privilegiada de onde sobrevém o cinema como um tema
que seduz, pois toda a arte só se exerce sobre um fundo inalienável do qual nos
14
KRISTENSEN, Stefan. Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement. Archives de
Philosophie, 69 (1) (Printemps 2006), p. 123. Apud. VIEGAS, Susan. Opt. cit.
15
MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens: Gallimard, 1996. p.42
16
Idem. 1996, p. 66.
16
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17
Idem. 1996, p. 91.
18
Idem. 1996, p. 104.
17
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invisível, o visível que irradia um modo de Ser, que aparece como cristalização
momentânea a partir da experiência no mundo que une sujeito e mundo, corpo e coisas,
num horizonte comum. Ela liga aquilo que é visível, ou seja, a coisa do mundo e aquele
que vê, ao corpo, sendo condição de que ambos são feitos, indicando uma relação de
proximidade que dá àquele que vê uma espécie de familiaridade prévia com o visível. 19
Maurice Merleau-Ponty influenciado pela Gestaltheorie vai compreender também o
Ver nesta relação figura-fundo. Ver se torna, no entanto, um jogo de posições,
oposições e equivalências entre as figuras do ser e seu fundo invisível. “Ver [...] é [...]
assistir por dentro à fissão do Ser” 20. A respeito disso, Alberto Tassinari no posfácio da
edição brasileira de L’oeil et l’Espírite, vem dizer: “Se a fissão do Ser é sua separação,
sua divisão, ela é a separação entre o Ser que é figura e o Ser fundo, invisível. Ela é
enfim, a diferença diacrítica entre o que vejo e o que não vejo. E que só pode ser vista
por dentro do Ser, pois o Ser não tem um fora.” 21
Nesta passagem, ele nos remete a tomada de M. Merleau-Ponty do pensamento de
F. Saussure, no qual o filósofo influenciado por ele formula uma concepção do Ver
como um sistema diacrítico ao associar Ser e Ver. É evidente que em L’oeil et l’espirit,
M. Merleau-Ponty pretende renovar e tornar mais concreto o pensamento de M.
Heidegger, quando fala sobre os aspectos do visível. Já que Ver é ver sobre um fundo
de Ser, os aspectos do visível são como categorias do Ser. O Ser enquanto tal, não pode
ser dito. Retrai-se na linguagem em que ele mesmo surge. Não pode ser dito nem visto.
Então se faz importante ser dito que M. Merleau-Ponty não fala de uma visão do Ser,
fala de uma fissão do Ser. Diante disso nos explica Marilena Chauí:
Ao fazer falar a experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-
nos de volta ao recinto da encarnação, abandonando aquela maneira
desenvolta com a qual a filosofia julgava poder explicá-la, perdendo-
a. Doravante, não se trata, em primeiro lugar, de explicar a
experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata, em segundo
lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao
recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos
ensina a decifrar a fissão no Ser.22
19
Cf. ALVIM, Mônica Botelho. A ontologia da carne em Merleu-Ponty e a situação clínica na Gestalt-
terapia: entrelaçamentos. Ver. Abordagem Gestalt. Vol.17 nº2 Goiânia dez. 2011.
20
MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo : Abril
Cultural, 1984. p.108.
21
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito (seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio
e A dúvida de Cézanne). Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. Prefácio de
Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2004. P.155.
22
CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty a obra fecunda. Ver. Cult. Ed. 123. 2010
19
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23
Cf. PINTO, Débora Morato... [et al] Ensaios sobre a filosofia francesa contemporânea. São Paulo:
Alameda, 2009 p. 134-137.
20
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24
MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens: Gallimard, 1996. p. 74.
25
Idem. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 92.
26
MERLEAU-PONTY, Maurice. Résumés de Cours: College de France (1952-1960). Paris: Gallimard,
1968. p. 20.
27
Idem. Fenomenologia da Percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fonte, 2006. p. 73.
28
Idem. op. cit., p. 74.
21
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Referências bibliográficas:
ALVIM, Mônica Botelho. A ontologia da carne em Merleu-Ponty e a situação clínica na
Gestalt-terapia: entrelaçamentos. Revista: Abordagem Gestalt. Vol.17 nº2 Goiânia dez.
2011.
CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty a obra fecunda. Revista: Cult. Ed. 123. 2010
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
_____________. O visível e o invisível. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
_____________. O olho e o espírito (seguido de A linguagem indireta e as vozes do
silêncio e A dúvida de Cézanne). Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão
Gomes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari. Rio de
Janeiro: Cosac & Naify, 2004.
____________. Textos escolhidos/ Maurice Merleau-Ponty; seleção de textos de
Marilena Chauí; Tradução e notas de Marilena Chauí, Nelson Aguilar, Pedro Morais. –
2ª ed.- São Paulo; Abril Cultural, 1984. (Os pensadores).
____________. Sens et Non-sens. Paris: Gallimard, 1996.
____________. Résumés de Cours: College de France (1952-1960). Paris: Gallimard,
1968.
VIEGAS, Susan. Film&Philosophy-Mapping an Encounteur. Maurice Merleau-Ponty.
Instituto de Filosofia da Linguagem. 2010.
XAVIER, Ismael. A experiência do cinema: Antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal:
Embrafilme, 1983. (Coleção arte e cultura; v. nº 5)
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Mestrando no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNESP. Bolsista Capes. Contato:
leovash5@gmail.com.
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estaria no “nível” do neorrealismo italiano, pois seu cinema ainda era de predominância
da imagem-movimento, mas ali já se misturava os lugares ocupados por espectador e
personagem.
Disque M para matar (Dial M for Murder), por exemplo, pode ser visto como
todo um processo de raciocínio, em que Tony Wendice (interpretado por Ray Milland)
trama um plano para assassinar sua noiva Margot (Grace Kelly), e após a falha do
plano, busca levá-la a prisão. Tony age como se tudo tivesse ao controle de seu
raciocínio. O cálculo único se debruça, em termos de materialidade fílmica, sobre a
unidade do cenário. Todo o filme se passa tendo como centro do cenário o apartamento
do casal.
Seis anos antes Hitchcock dirigia Festim Diabólico (no original: Rope). Nesse
longa-metragem a unidade do cenário é ainda mais radical. Assim também é a unidade
do raciocínio, filmado em uma só peça, um único plano que percorre o apartamento sem
sair dele, tendo seus cortes de uma tomada para outra omitidos pelo virtuosismo técnico
do diretor, que teve que lidar com a limitação dos rolos de filme que não passavam de
10 minutos. Dois jovens assassinam um rapaz e fazem um jantar festivo sobre o seu
corpo, escondido em um baú. Assim como em Disque M para Matar, o filme acontece
pelos argumentos expostos, numa batalha de ideias que gira em torno do tema do crime.
Mas somente esses exemplos não são suficientes para determinar a
especificidade de Hitchcock enquanto cineasta da imagem mental. Poderíamos elencar
uma série de filmagens de outros cineastas que se aproximariam muito do que foi
descrito até aqui. Uma rápida olhada no cinema norte-americano e poderíamos pensar
em um elenco de filmes de investigação criminal ou de caráter mais diretamente
judiciário que poderiam satisfazer as exigências do cinema da imagem mental. Mas isso
soa contraditório com a ideia de que a imagem mental traz a crise da imagem-ação.
Portanto, é válido acrescentar elementos que, junto aos descritos, possa oferecer uma
visão mais satisfatória da peculiaridade da imagem mental.
Pois bem, Janela Indiscreta (Rear Window) nos parece o melhor exemplo para
fechar a apresentação da ideia de imagem mental no cinema. Nessa obra reside o maior
questionamento do esquema sensório-motor realizado no cinema de Hitchcock. O
fotógrafo Jeff (protagonizado por James Stewart) se encontra paralisado em uma cadeira
de rodas após um acidente de trabalho. Confinado em seu apartamento, o personagem
passa a assistir o mundo a partir de sua janela. Por muitas vezes podemos perceber o
corpo de Jeff atuar como um sistema sensório-motor danificado. Ao perceber os
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acontecimentos através de sua janela aberta, Jeff não pode responder da maneira que se
esperaria em um filme de ação. Sua percepção não leva a uma ação imediata. Sua
reação é retardada. Abre-se a fissura entre percepção e ação, revelando um estado de
impotência motora.
Para Deleuze, Hitchcock estabelece outra relação entre o pensamento e a
imagem cinematográfica. Em Disque M, já era possível ver o espectador se tornar
personagem com a câmera sendo direcionada, em alguns momentos de diálogos, para
quem escuta, ocupando, assim, o lugar de quem fala. Mas se nessa obra espectador e
personagem são unidos pelo tipo de enquadramento, em Janela Indiscreta o cineasta
inglês faz dessa união a própria questão do filme. Jeff/Stewart é um espectador/ator do
próprio filme, que gira em torno de sua visão, de sua expectativa e re-ação a partir
daquilo que seus olhos e ouvidos apreendem.
Deleuze constata em sua visão do cinema de Hitchcock um momento de
reversão do domínio do movimento sobre o tempo. Segundo o autor, a imagem-tempo
apareceria apenas com o neo-realismo italiano, em que o tempo estaria em condições de
emergir de maneira direta, isto é, sem estar subordinado ao movimento. As imagens
diretas do tempo seriam alcançadas por meio das imagens puramente óticas e sonoras,
que Deleuze denomina de opsignos e sonsignos. Contudo, é possível notar que a
imagem mental no cinema de Hitchcock não deixa de condicionar o personagem a uma
situação ótica pura. Basta enquadrarmos o caso do personagem de James Stewart na
cadeira de rodas, condenado a tocar o mundo fora de seu apartamento apenas com o
olhar.
Dessa maneira a imagem-movimento é colocada em xeque, sobretudo em função
da quebra do esquema sensório-motor: “É que e o esquema sensório-motor já não se
exerce, mas também não é ultrapassado, superado. Ele se quebra por dentro. Quer dizer
que as percepções e as ações não se encadeiam mais” (DELEUZE, 2009, p. 55). A
hierarquia que o movimento impunha sobre o tempo é desarticulada, a quebra leva às
situações óticas e sonoras puras, mas o esquema sensório-motor ainda se apresenta,
mesmo que quebrado.
O movimento aberrante havia sido reconhecido, mas também conjurado.
Tratava-se do movimento que foge a centros de determinação, uma espécie de
movimento anormal. Deleuze acredita que o movimento aberrante oferece uma imagem
do tempo em sua totalidade, anterior mesmo a ação, isto é, ao próprio movimento: “Se o
movimento normal vai subordinar o tempo, do qual nos dá uma representação indireta,
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o movimento aberrante atesta uma anterioridade do tempo, que ele nos apresenta
diretamente” (DELEUZE, 2009, p. 51). Deleuze acredita que esse movimento já se
apresentava com os grandes pioneiros do cinema, como Jean Epstein. Mas nesse mesmo
terreno deduziu-se uma tentativa de reparação desse movimento, de modo que as
aberrações tenham sido normalizadas, compensadas, “submetidas a leis que salvavam o
movimento, [...] e que mantinham a subordinação do tempo” (DELEUZE, 2009, p.54).
Desse modo, foi preciso esperar cineastas como Hitchcock para que o
movimento sofresse uma crise na imagem, no interior da imagem-ação – uma das
formas mais marcantes da imagem-movimento, sobretudo em Hollywood. Foi preciso a
inserção de uma interferência no esquema sensório-motor, uma desproporção instalada
entre movimento recebido e movimento executado, entre a percepção e a ação, para que
houvessem o aparecimento das situações óticas e sonoramente puras.
Mas em Hitchcock não predomina as imagens diretas do tempo. A reversão do
domínio do movimento sobre o tempo em seu cinema ainda é muito inicial, na medida
em que a imagem-movimento ainda não é agredida por inteiro em seu domínio. Ataca-
se a imagem-movimento, mas o faz de seu interior, não escapando dela. Situações
sonoras e óticas puras, enquanto vistas ainda a partir da imagem-movimento, mesmo
que atestando a crise da imagem-ação, permanecem sob o modelo dicotômico situação-
reação. As imagens, nesse modelo, necessitam de uma impossibilidade de ação
decorrente de uma situação dada (por exemplo, a perna quebrada em Janela indiscreta),
o que configura a situação ótica pura como resultado de um meio, como reação a um
meio dado previamente. Por essa via, até mesmo o efeito de transformar o espectador
em personagem é criado em função da identificação entre os dois em meio a uma
situação sensório-motora. Por isso, em busca de um cinema da imagem-tempo, Deleuze
recorre a outras produções. Algumas delas residem numa corrente que na história do
cinema veio a se denominar neorrealismo, que emergiu na Itália do pós-guerra.
Contra as interpretações correntes em seu tempo, André Bazin procurou analisar
o neorrealismo sem se limitar ao conteúdo dos filmes, buscando atingir seus aspectos
formais. Destarte, a importância do neorrealismo para a história do cinema não viria do
conteúdo social de seus filmes, mas do fato de que essa corrente criou o que Bazin
denomina de imagem-fato (Cf. BAZIN, 1991, p.253). Deleuze, por sua vez, concorda
que a importância do neorrealismo não deve ser reconhecida apenas em seu conteúdo.
No entanto, sua posição singular na história das imagens cinematográficas não reside
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em sua ligação com um pretenso realismo, mas sim em sua relação com o tempo, em
poder propiciar uma imagem direta do tempo que reverta o predomínio do movimento.
Segundo o filósofo francês, independente de sua situação sensório-motora, o
personagem neo-realista “registra, mais que reage” (DELEUZE, 2009, p.11). Assim
como Hitchcock, o cinema neorrealista, a sua própria maneira, transforma as posições
do espectador e do personagem em uma situação única. Tal configuração pode ser vista
em filmes dirigidos por Roberto Rossellini.
Rossellini é um diretor muito conhecido em torno da relação entre filosofia e
cinema, sobretudo por ter realizado uma série de longas-metragens acerca da vida e das
ideias de pensadores renomados na história da filosofia, como Sócrates, Agostinho,
Descartes e Pascal. Mas o que mais interessa Deleuze em Rossellini são os sonsignos e
opsignos, de modo que outros filmes são mais pertinentes para a discussão deleuzeana
sobre a imagem-tempo. Mencionaremos dois deles, em que a transformação dos
personagens em espectador é marcante.
Em Alemanha ano zero (Germania anno zero), o jovem Edmund Koeler,
interpretado pelo também Edmund (Moeschke) se suicida após tudo que vê. Do alto de
um prédio em ruínas, nos últimos minutos do filme, após uma série de perambulações
(característica marcante do neorrealismo) o garoto assiste o mundo lá fora, também em
ruínas, inclusive o corpo de seu pai – principal motivo de sua perambulação durante
todo filme – ser carregado, após o próprio Edmund ter lhe abreviado a vida de dor e
sofrimento. O suicídio de Edmund não se dá somente por ter envenenado o pai. Sua
morte não se entrecruza mais com sua ação do que com sua visão, ela está
intrinsecamente ligada àquilo que ele vê, à sua condição de personagem-espectador.
Europa '51 seria outro longa-metragem de Rossellini que serviria como
exemplo. Irene Girard (vivida por Ingrid Bergman), personagem que não experimentava
nada fora do mundo burguês em que vivia, após e a partir da morte do filho passa a
conhecer o mundo das favelas e dos conjuntos habitacionais da Itália do Pós-guerra.
Deleuze aborda essa cena no capítulo Para além da imagem-movimento, em A imagem-
tempo: quando o olhar da personagem se livra da função prática de dona-de-casa, “que
arruma as coisas e os seres, para passar por todos os estados de uma visão interior,
aflição, compaixão, amor, felicidade, aceitação, [...] ela vê, aprendeu a ver”
(DELEUZE, 2009, p.9). Assim, Deleuze parece enxergar nesse filme uma espécie de
pedagogia do olhar.
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aprofundamos aqui –, mas como podemos perceber desde já, libera também uma
discussão em torno da relação entre personagem e espectador. Essa discussão amplia a
formulação teórica acerca do cinema, não apenas de sua produção para sua recepção,
mas para um mergulho em uma reflexão sobre a própria prática de ver e do aprendizado
com as imagens. Assim o cinema mostra sua potência de destruição de clichês e de
reinventar a si próprio.
Referências bibliográficas:
BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Matéria e memória. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
______. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009.
DIAL M for Muder. Direção: Alfred Hitchcock. Produzido por Warner Bros., 1954. 105
min.
EUROPA '51. Direção: Roberto Rossellini. Produzido por Ponti-De Laurentiis
Cinematografica, 1952. 113 min.
GERMANIA anno zero. Direção: Roberto Rossellini. Produzido por Tevere Film,
SAFDI e Union Générale Cinematographique, 1948. 78 min.
LADRI di biciclette. Direção: Vittorio De Sica. Produzido por Produzioni De Sica,
1948. 93 min.
REAR Window. Direção: Alfred Hitchcock. Produzido por Paramount Pictures e Patron
Inc., 1954. 112 min.
ROPE. Direção: Alfred Hitchcock. Produzido por Warner Bros., Transatlantic Pictures
e Metro-Goldwyn-Mayer, 1948. 80 min.
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Esboço de ensaio
Este texto é um ensaio. Como o próprio nome já diz, aqui não será apresentado
nenhum dado definitivo, mas algumas implicações que nos levarão a uma conclusão.
Nosso objeto de estudo é o tempo cinematográfico. Enquanto espectador de um filme,
percebo que o tempo passa enquanto assisto à obra. Enquanto cinéfilo, percebo que
diferentes cineastas trabalham de formas diferentes para nos fazer perceber o tempo.
Ora ele é alongado, ora ele parece curto. Trata-se de um ensaio escrito, antes de
qualquer coisa, por um cinéfilo, e por isso muitos serão os filmes abordados aqui, neste
que é um ensaio de introdução a um pensamento. Comecemos, então, com uma história:
Em Turim, no dia 3 de janeiro de 1889, Friedrich
Nietzsche deixa a residência no número 6 da Via Carlo
Alberto, talvez para dar um passeio, talvez para ir até o
correio para recolher sua correspondência. Não longe dele,
ou realmente bastante longe dele, um cocheiro tem
problemas com seu cavalo teimoso. Apesar de sua
premência, o cavalo resolve empacar, o que faz com que o
cocheiro - Giuseppe? Carlo? Ettore? - perca a paciência e
comece a chicoteá-lo. Nietzsche avança até a multidão e
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Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Feira de Santana e editor da Revista Sísifo.
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31
TARR, B. O cavalo de Turim. 2011.
32
TRUFFAUT. HITCHCOCK. Hitchcock/Truffaut, p. 137-138.
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TRUFFAUT. HITCHCOCK. Hitchcock/Truffaut, p. 77.
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diferentes filmes seus. A primeira de Os pássaros (the birds): um pássaro ataca num
posto de combustível, o frentista deixa a mangueira cair e a gasolina escorre pela rua.
Um homem de costas não percebe esta ação e acende um cigarro, deixando o fósforo
cair ao chão, causando a explosão. Mélanie, a protagonista do filme assistia a tudo da
janela de uma lanchonete ali perto. A montagem de Hitchcock busca capturar sua
reação, e nada mais faz que por uma fotografia do rosto dela a olhar aquela cena
macabra. Outro momento de sua filmografia em que isso pode ser percebido é na cena
da morte do investigador em Psicose (Psycho), esta sendo quando o homem entra na
mansão de Norman Bates, que surge de detrás de uma porta e o esfaqueia. A cena
poderia ter sido alongada quando o investigador chega ao topo das escadas para criar
sentimento mais profundo de suspense: Norman poderia estar atrás de qualquer uma
destas portas. Mas a rapidez confere ao filme a sua agilidade nos dando a impressão de
algo real. É a busca de um tempo realista. Hitchcock não quer que seu espectador
imagine estar assistindo a um filme e por isso não lhe dará tempo de perceber que está
assistindo a um filme.
Em 8 1/2, Federico Fellini apresenta Guido Anselmi, seu alter-ego, um diretor de
cinema que se vê em crise de criatividade pouco antes das filmagens de seu próximo
filme, o qual ainda não possui uma história, mas que já possui equipe e elenco
contratada. É em meio a esta crise do personagem que Fellini nos permite uma viajem
em sua mente. Vemos o mundo por meio do personagem, o que significa que
percebemos aquilo que Guido capta dela. Saímos da realidade e passeamos por seus
sonhos, desejos e lembranças. Todas estas cenas são tratadas com igualdade ao longo do
filme, nenhuma cena é discriminada por um fade, fusão ou transformação estética do
filme (tal como modificar a cor da cena) e cabe ao espectador distingui-las.
Já em Cantando na Chuva (Singin’ in the rain) são os números musicais que nos
dão esta discriminação entre a imaginação e realidade. Os números musicais são sempre
postos quando o personagem demonstra uma ideia, uma emoção, uma memória. É o
caso da famosa cena da dança na chuva que dá nome ao filme. Don Lockwood, nome do
personagem de Gene Kelly, sai da casa de sua amada, Kathy Selden, feliz pelo encontro
que tiveram e por nele ainda surgir uma ideia que os faria colocá-la no mundo do
cinema. A cena da dança na chuva não seria nada além do que a forma com que os
diretores (Kelly e Stanley Donen) encontraram para demonstrar por meio de imagens o
quão feliz está seu protagonista.
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Tudo o que até agora foi posto abraça a mesma ideia: a importância do tempo para
a construção cinematográfica. O tempo é a principal fonte da construção fílmica, daí
começar o texto por O Cavalo de Turim (A torinói ló). As palavras, quando faladas, não
se encontram no espaço, mas no tempo. Elas, quando assim surgem, não podem ser
representadas por meio do espaço, mas por meio de sua sucessão e duração, categorias
temporais que nos fazem compreender, entre outras coisas, o espaço. Somente o tempo
ordenava alguma coisa no filme naquele momento (não existia qualquer representação
espacial para que pudéssemos colocar o contrário). Neste ponto podemos até mesmo
dizer que Kant e seu seguidor na teoria de cinema, Jean Epstein, estão certos, o tempo
seria a primeira das categorias de nossa mente para que possamos conhecer a
realidade3435. A cena de abertura de O Cavalo de Turim (A torinói ló) mais que explicita
isso, mas quanto ao cinema. Podemos fazer um filme somente com o tempo, mas não
podemos fazer um filme com espaço, sem tempo.
La Jetée segue um padrão muito parecido com a abertura do filme da Tarr, mas
neste caso, ao paralisar o espaço, paralisa-se também um momento da realidade. As
micronarrativas se perdem com a ausência da liberdade que o espaço normalmente
possui e cede lugar para que a macronarrativa possa acontecer. Estas micronarrativas
ficam escondidas nos movimentos de câmera e na movimentação dos personagens em
cena36. Isso tudo se perde aqui. Desta maneira percebe-se que é por meio do tempo que
se pode contar uma história no cinema (primordialmente), mesma conclusão a que
chegou Bela Tarr quase cinquenta anos depois.
Daqui, pode-se perceber que o tempo cinematográfico não respeita um tempo
fenomenológico. Ele é construído à revelia dos fatos dados para que melhor se apresente
na tela de cinema e para que melhor tenha efeito ao espectador que intui o tempo (a não
ser quando é escolha do cineasta criar um filme realista, como acontece com
Hitchcock). Citando Jacques Aumont: “O cinema é, em primeiro lugar, mecanicamente,
ou melhor, “maquinicamente”, um instrumento para produzir tempo. Tem seus próprios
procedimentos temporais, distintos dos procedimentos habituais” 37.
Aumont faz este comentário acerca da teoria do cineasta Jean Epstein, que na
década de 1940 passou a direcionar suas atenções às questões temporais do cinema. A
partir dos exemplos práticos postos acima, somente podemos concordar com o que diz
34
AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 41.
35
KANT, I. Crítica da razão pura, p. 79, B 46.
36
Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/14/2.html. Acessado dia 02/09/2013 às 10:05.
37
AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 38.
36
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Aumont/Epstein. Tarr, por exemplo, produziu tempo para fazer a abertura de O Cavalo
de Turim (A torinói ló) – ele não fez a reprodução de qualquer ato fenomênico, o tempo
apresenta-se intelectivo, tanto em sua construção quanto em sua percepção (como se
estivesse a compor uma música). Já no caso de La Jetée, esta questão fica mais clara
quando notamos que o tempo do filme não possui qualquer ligação com a temporalidade
dos fenômenos externos à película. Ele segue o tempo que lhe é ditado pela
permanência e sucessão das fotografias. Uma fotografia pode permanecer na tela por
mais tempo do que a narração levaria para explicá-la ou para chegar até ela. E uma
fotografia não respeita a temporalidade com a qual os fenômenos acontecem, ela
congela o tempo e torna um momento eterno. Mas neste momento ainda não chegamos
a nos posicionar no cinema enquanto imagens em movimento, que será o verdadeiro
alvo da teoria de Jean Epstein.
Quando Aumont coloca que o cinema “tem seus próprios procedimentos
temporais” ele se refere ao que Epstein se prende quando constrói sua teoria, que são os
efeitos de câmera: aceleração das imagens e câmera lenta, por exemplo38. É comumente
aceito de que um filme, ou qualquer produto audiovisual, quando é montado ele recebe
a visão do realizador, de que este irá manipular as imagens e moldar o discurso fílmico
de acordo com a sua visão. Por isso quando temos uma imagem que não sofreu com um
corte é aceito como possuindo a verdade – é o exemplo de Bazin da montagem proibida.
Mas pode ser que ela também esteja embebida do olhar poético do cineasta que captou
aquelas imagens. Exemplo disso seria a aceleração da gravação do crescimento de uma
árvore. Em alguns segundos poderíamos ver o crescimento de alguns meses de uma
árvore, claramente manipulando a construção temporal ou o tempo tido como real.
Mas não somente com a manipulação de uma imagem que pode ser feita a
construção do tempo no cinema. É aí que reside uma das maiores críticas à montagem
no cinema. Andrei Tarkovski, cineasta soviético, criticava o cinema de seu compatriota
Sergei Eisenstein por causa da temporalidade que não possuía qualquer semelhança com
a realidade. As cenas ganhavam um peso desconfortável na vontade do cineasta de
mostrar mais do que poderia ser mostrado simplesmente seguindo o tempo dado por um
relógio. Em uma cena de batalha, por exemplo, ele poderia mostrar o confronto entre
dois inimigos lutando com espadas até a morte de um deles e, logo em seguida, mostrar
38
AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 38.
37
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outros dois soldados lutando na mesma batalha, exatamente no mesmo momento que os
personagens anteriormente apresentados lutavam – a montagem de ações simultâneas.
Esta crítica de Tarkovski pode valer para a montagem cinematográfica, mas ela
não enxerga os benefícios de criar um tempo para um filme – algo que vai um pouco
além do esculpir o tempo a que Tarkovski se refere. O exemplo dado anteriormente da
cena que segue o padrão de suspense seria um ótimo exemplo disso. O tempo é alterado
para que o cineasta possua a atenção do espectador em sua obra e isso tudo promovido
por uma série de plano/contraplano e outras técnicas comuns para quem se utiliza da
montagem para contar uma história em um filme. O tempo é construído para que possa
servir de ponte entre as imagens e a emoção do espectador.
Fellini em 8 ½, ao tratar as imagens reais e mentais com igualdade (os sonhos e os
fatos), brinca com o tempo e criando uma temporalidade subjetiva, ou melhor, faz a
representação de seu tempo subjetivo no filme. Durante toda a duração da película
passeamos pela mente deste personagem como se a câmera tivesse o superpoder de nos
mostrar o fluxo mental de um sujeito, e durante pouco mais de duas horas víssemos
parte daquilo que ele tem em mente.
O filme abre com um sonho. Guido, preso dentro de um carro em um
congestionamento, começa a sufocar até que consegue se libertar pela fresta da janela e
sair voando por cima dos carros, dos prédios, até sair da cidade e chegar no mar.
Durante grande parte desta cena, Guido não é mostrado, vemos aquilo que ele consegue
captar daquele sonho. A câmera nos apresenta o ponto de vista de Guido, não
necessariamente tomando a posição de seus olhos durante toda a cena (somente em
alguns momentos). Mesmo quando ele sai do carro, e não mais estamos neste
posicionamento privilegiado de sermos os olhos do personagem, a câmera fica atrás
dele, mostrando qual seria a perspectiva deste mesmo personagem, mas dando o espaço
necessário para que ele possa voar.
Jean Epstein, uma década e meia antes do filme de Fellini já tinha feito esta
relação entre a manipulação/criação do tempo do filme e a possibilidade de mostrar um
sonho em uma obra cinematográfica:
do mesmo modo que o sonho, o filme pode desenvolver
um tempo próprio, capaz de diferir amplamente do tempo
da vida exterior, de ser mais lento ou mais rápido do que
este. Todas essas características comuns desenvolvem e
apoiam uma identidade fundamental de natureza, uma vez
que ambos, filme e sonho, constituem discursos visuais.
Donde se pode concluir que o cinema deve transformar-se
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É ainda nesta visão subjetiva do tempo que podemos retomar o ultimo filme
citado no inicio do texto, Cantando na Chuva (Singin’ in the rain). A felicidade do
protagonista não poderia ser demonstrada em sua real forma, em seu real “tamanho” se
não fosse com um número musical. É o tempo dado pela música que dá a tonalidade da
cena, a música que é levada pelo sentimento de felicidade do protagonista. É deste
modo que os diretores preferiram, ao invés de mostrar um ator sorrindo caminhando
pela rua - mostrando que ele está feliz, mas com a felicidade visivelmente contida –
explodir o sentimento em um número musical. A música faz um constructo temporal da
cena em que o dançar do ator passa a ser guiado por ela. E toda a cena volta para este
par música-dança. Os cortes e movimentos internos ao plano são guiados de acordo com
o bailar ritmado pela música. O tempo fílmico torna-se, também, um tempo musical.
Mas neste caso, servindo ao desnudar emocional de seu personagem. O tempo
apresentado no filme difere radicalmente do fenomênico para poder desvelar o tempo
subjetivo.
O cinema é uma máquina de criar tempo. O cinema não faz a simples reprodução
do tempo dos fenômenos, porque estes são apresentados de acordo com a temporalidade
criada pelo realizador para que eles possam se adequar ao discurso fílmico em
39
EPSTEIN, J. O cinema do diabo, p. 297.
40
AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 37.
39
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construção. Cada filme possui um discurso e todo filme tem em sua base o tempo que
por sua vez é variável de filme para filme, como também, de cineasta para cineasta.
Referência bibliográfica:
AUMONT, Jacques; As Teorias dos Cineastas; Tradução: Marina Appenzeller; Papirus
Editora, Campinas, 2008.
XAVIER, Ismail (org.); A Experiência do Cinema; editora Graal, São Paulo, 2008.
TRUFFAUT, François; Hitchcock/Truffaut – entrevistas; tradução: Rosa Freire
D’Aguiar; Companhia das Letras, São Paulo, 2010.
Filmes:
CAVALO DE TURIM; Bela Tarr; Hungria; 2011.
La Jetée; Chris Marker; França; 1962.
8 ½; Federico Fellini; Itália; França; 1963.
Cantando na Chuva; Stanley Donen; Gene Kelly; EUA; 1952.
Site:
SUPPIA, A. L. P. O.; La Jetée, “documentário” do futuro. Disponível em:
http://www.studium.iar.unicamp.br/14/2.html
40
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MATÉRIA E LINGUAGEM:
1. INTRODUÇÃO
O cinema tem sido, ao longo de sua história, alvo de inúmeros questionamentos
a respeito de sua natureza. Desses, destacamos alguns que podem nos ajudar a pensar o
seu papel frente aos atuais modelos de comunicação e, mais especificamente, o lugar do
som dentro da construção cinematográfica.
41
Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor e coordenador do
curso de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador na área de Estudos do
Som, Cinema e Música. É um dos autores do livro Reverberations: The Philosophy, Aesthe-tics and
Politics of Noise (2012), editado por Michael Goddard, Benjamin Halligan e Paul Hegarty e do
livro Small Cinemas in Global Markets: Genres, Identities, Narratives (2015), editado por Lenuta Giukin,
Janina Falkowska e David Nasser. José Cláudio atua também como compositor de trilhas sonoras e sound
designer para filmes.
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Um dos problemas surgidos nas primeiras décadas do século XX, como uma
espécie de consequência de um modelo industrial de produção que se instaurava, é o da
autoria da obra cinematográfica. Essa discussão se acirrou por conta de movimentos de
vanguarda que reforçavam seu caráter de manifestação artística sob a responsabilidade
de autores individuais, impondo, cada um destes, sua marca distintiva ao filme. Essa
postura certamente tem raízes no romance do século XIX e repercute até os dias de hoje.
Em segundo lugar, a ideia (ou “as ideias”) de realismo tem gerado e pautado
outras questões mais complexas, seja no tradicional cinema ainda filmado e exibido
com o suporte de celulóide, seja em modelos de cinema digital, em que nem a película
e, muitas vezes, nem a existência real dos objetos filmados, são necessários para sua
concretização.
Este trabalho pretende explorar alguns desses pressupostos, tomando como base
a discussão proposta por Joachim Paech (2000) em que este aponta uma transição de um
modelo de cinema visto fundamentalmente como arte independente para uma
confluência ou uma quase indistinção das diversas mídias, o cinema incluso, no cenário
contemporâneo.
Para essa exploração, partiremos de uma crítica à noção de linguagem como
estruturante da experiência cinematográfica. Apresentamos alguns argumentos de
teóricos como Christian Metz endossando essa posição e, ao mesmo tempo, propostas
discordantes por autores como Berys Gaut. A definição de linguagem, como
apresentada por Donald Davidson, também nos fornece uma alternativa interessante ao
determinismo estruturalista de Metz e demais pensadores centrados em um modelo
linguístico de cinema.
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como um texto, ao qual podem ser reduzidas as mais diferentes espécies de criações:
imagens, sons, textos escritos etc.
Vivian Sobchack (1992) faz uso da metáfora lacaniana do espelho para
descrever esse tipo de relação que se dá entre a obra e o espectador. Por sobressair-se à
liberdade subjetiva tanto do autor quanto do “leitor”, o cinema é encarado, nessa
concepção, como uma mediação-em-si-mesma. Ele “reflete” quem o faz e quem o vê.
É também útil destacar a diferença que Sobchack faz entre essa abordagem das
teorias contemporâneas e os dois polos da teoria clássica do cinema: uma concepção
realista e uma concepção formalista.
Por realismo podemos entender uma visão de que o cinema nos apresentaria – ou
deveria apresentar – a realidade como ela é. O caráter de mimese das tecnologias do
final do século XIX e início do XX, sendo o cinema, nesse sentido, um herdeiro da
fotografia, crê em uma reprodução imparcial do mundo à nossa volta. Teóricos como
André Bazin (2005), além de apostar no cinema como obra de arte única e autoral,
também o consideram como mais adequado a reproduzir fielmente o mundo que nos
cerca. Tudo o que for da esfera da representação, tudo o que não for exclusivamente
imanente no ato de captura pela câmera, deve ser descartado ou levado em menor
consideração. O cinema é dotado, assim, de uma objetividade tal que o ato de perceber o
filme equipara-se ao ato de perceber o mundo. O filme, associado aqui à metáfora da
janela, é tratado como uma percepção-em-si-mesma (SOBCHACK, 1992).
Na outra ponta dessa conceituação clássica da experiência cinematográfica
tratamos o cinema não mais como uma janela para o mundo, como no caso da
concepção realista, e sim como um quadro deste. Nele o autor vai retratar o que vê não
de forma inocente ou direta, mas mediado por uma instância subjetiva. Nessa linha de
pensamento destacaram-se realizadores e teóricos como Eisenstein e Kuleshov,
defendendo a montagem como principal produtora de sentidos do filme. A subjetividade
do autor toma conta e ultrapassa a simples descrição do mundo objetivo. O filme passa
a ser uma expressão-em-si-mesma (SOBCHACK, 1992).
Entretanto, tanto em um polo como em outro, podemos perceber uma
ascendência do texto em relação a outras dimensões da experiência cinematográfica. Do
lado realista, o filme deveria ser percebido como real para que pudéssemos mais
facilmente entrar na história. A crença de Bazin era a de que quanto mais próximo de
nossa percepção natural, mais o cinema se apresentaria como um prolongamento da
experiência imediata. Mas ainda estaríamos atrelados a uma história sendo contada. A
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imaginação etc.) que não são especificamente linguísticos. Essas são habilidades que
não se encaixam em nenhuma explicação formal e fazem parte de um existir no mundo.
Davidson propõe que, muito embora sejam facilitadoras, convenções linguísticas
não podem ser a base única para o entendimento de qualquer linguagem.
Essa postura, muito embora ainda centrada em uma possibilidade de
interpretação através das estruturas da linguagem, pode nos ajudar a desconstruir o mito
da “linguagem cinematográfica” como proposto pelas correntes estruturalistas, pelo
menos naquilo que toma como molde as linguagens naturais, ou seja, aquelas com
propriedades gramaticais específicas, mantidas e usadas por grupos ou populações,
valendo-se de um repertório lexical, relações sintáticas e semânticas. Esse projeto,
visível na obra Metz, sofre também a crítica de parte dos teóricos contemporâneos
ligados à filosofia do cinema.
A tendência a focar nas características representacionais do filme provém, em
parte, da grande ênfase colocada em sua suposta capacidade de mostrar o real, como já
mencionamos. Berys Gaut parte dessa proposição para perguntar como se estabelecem
essas características. De que modo o cinema (ou as teorias cinematográficas) se define
(ou é definido) diante dessa questão?
Primeiramente, devemos notar que Gaut não se sente confortável com a ideia de
uma linguagem cinematográfica. Descreve o modelo tradicionalmente vinculado a essa
perspectiva, admitindo que algumas similaridades podem ser apontadas entre uma
forma e outra. Em seguida, afirma que a imagem cinematográfica, exatamente por seu
caráter de imagem, não é passível de ser reduzida às estruturas clássicas das teorias da
linguagem. É pelo caráter de transparência atribuído às imagens, como uma espécie de
chancela do realismo nelas presente, que o cinema guardaria uma dimensão para além
do textual ou do linguístico.
Analisando o modelo do cinema enquanto linguagem, Gaut descreve alguns
argumentos usados para enquadrá-lo dessa maneira. Seriam eles: como meio de
comunicação o cinema é portador de sentidos. Os sentidos são frutos dos planos que são
postos juntos e de suas relações, assim como no caso de palavras formando frases. Essa
organização dos planos pode apresentar erros, segundo determinadas convenções, como,
por exemplo, a quebra de eixo ao se filmar sequências em campo e contracampo. Esses
erros teriam o status de erros gramaticais.
E aqui terminariam as semelhanças. Começam a surgir algumas diferenças em
relação ao modelo tradicional das linguagens naturais. Entre elas: nós não podemos
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falar de um número finito de imagens possíveis, como nas diversas línguas possuímos
um número limitado de palavras. A virtual infinidade de frases possíveis de serem
construídas se dá pela combinação desses elementos finitos e desprovidos de
significação per se fora de um contexto, o que não acontece no caso das imagens.
Além disso, as relações que se apresentam entre objeto/palavra e objeto/imagem
não são as mesmas. Enquanto na primeira temos uma atribuição de significados
arbitrários, no tocante à imagem, temos uma relação causal. O registro do objeto no
filme se deu porque os raios de luz, refletidos nele, atingiram a lente da câmera e
sensibilizaram a emulsão na película (ou inscreveram-se eletronicamente na fita de
vídeo ou foram convertidos em 0s e 1s em formatos digitais).
Gaut critica a tentativa de Metz de aproximar forçadamente um modo de
significação característico do cinema de um modelo que ele considera limitado,
utilizando, para isso, a montagem como seu principal recurso. Para contornar a ausência
de um léxico definido ou a relação entre imagens e objetos feita por analogia e não por
convenção, Metz define a sequência (frase) como unidade de sentido do filme, ou seja,
fruto das infinitas combinações entre unidades de linguagem (planos). Esta seria a base
de significação do cinema. “A palavra, que é a unidade da linguagem, está ausente; a
frase, que é a unidade do discurso é suprema. O cinema só pode falar por neologismos.
Cada imagem é um hápax” (METZ apud GAUT, 2010, p. 54).
Encontramos uma contradição nessa argumentação ao tentar forçar essa relação
entre linguagem natural e cinema. Mesmo admitindo que palavras não sejam análogas a
planos, e que uma gramática é uma relação entre palavras, Metz ainda quer estabelecer
uma espécie de gramática entre planos. Mesmo a possibilidade de frases (sequências)
não constituídas de palavras (uma vez que planos seriam, por definição, diferentes de
palavras) soa forçada. A necessidade de encontrar relações entre os dois universos, em
uma tentativa de estabelecer regras para a produção de sentidos, acaba por colocar em
xeque a própria noção de sentido. Se é verdade que cada sequência (frase) é um hápax,
ou seja, uma ocorrência única desvinculada de uma estruturação interna, como seria
possível que terceiros compreendessem o significado das imagens?
Mesmo estruturas mais sofisticadas, como a montagem paralela, não seriam
ainda uma prova cabal dessa paridade entre cinema e linguagem natural. E aqui Gaut se
aproxima da postura de Davidson: existem elementos, ou convenções, no processo de
comunicação, que não são linguísticos.
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mediação tecnológica. Nesse sentido, talvez, o som fosse mais avesso a uma
estruturação em termos de linguagem.
Mas, na medida em que a codificação de convenções de montagem
cinematográfica se dava, ao som cabia um papel de conferir realismo a essa construção
ainda em seus alicerces. Muitas das práticas que se seguiram, ainda no processo de
junção entre som e imagens, e que culminaram com o que nós entendemos como
cinema clássico-narrativo, foram tentativas de dar vida a uma projeção bidimensional
que pouco a pouco causava menos espanto. O engajamento por meios físicos ou pela
identificação subjetiva entre cada espectador e o que se via na tela, como no caso do
cinema de atrações (GUNNING, 2006a; 2006b), foi cedendo terreno a uma narrativa
lógica e autocentrada. O que era mostrado no filme deveria fazer sentido independente
do que havia para além da projeção. Ao som, como nos diz Rick Altman (2004), cabia o
papel de indicar os caminhos, de estabelecer esse caráter de verossimilhança, do que a
imagem sozinha não era capaz. O som também dirigia o olhar, nos informava a que
prestar atenção e a que não. Atores se posicionavam atrás das telas, bem na direção de
seus personagens para que a voz e a imagem procedessem do mesmo lugar. O
acompanhamento musical era substituído ou complementado por efeitos sonoros
mecânicos ou pela reprodução do próprio som do objeto gravado em discos ou
cilindros. O acompanhamento musical não era mais suficiente – muito embora atuasse
em esferas de sugestão emocional – para descrever o universo que o som, junto com a
imagem, descortinava. Mais do que um estruturação discursiva, o que o som procurava,
nos primórdios do cinema, era fornecer elementos impossíveis para a imagem enquanto
estrutura formal.
Não podemos negar que também as imagens pudessem fornecer uma série de
informações que não seriam da ordem apenas da construção linguística, dessa
“gramática” cinematográfica. Há um bom número de estudos que se preocuparam em
compreender como elementos resistentes a essa codificação estruturalista – como é o
caso do “olhar” e seu endereçamento – poderiam produzir efeitos de ordem não apenas
textual, mas também física, psíquica etc. O que se pode dizer é que essa classificação
torna-se ainda mais complicada quando entramos no universo sonoro, seja pela
metafísica descrita anteriormente, seja pelo caráter envolvente da propagação sonora, ou
seja, por seu funcionamento distante de uma esfera visual e, em consequência, sendo
comumente menos associado a aspectos racionais ou conscientes. Mas é claro que,
como a imagem, o som também seria alvo dessa sistematização estrutural.
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Metz afirma que não há diferença funcional entre um tiro de revólver ouvido em
uma sala de projeção de filme e o som do tiro original. Ou ainda, não haveria diferenças
entre sons distintos de tiros em filmes, por maiores que sejam suas singularidades
acústicas, uma vez que todos atendam à mesma função dentro da narrativa. Todos serão
compreendidos como tiro. Toda e qualquer distorção imposta pelos mecanismos de
gravação e reprodução será desconsiderada na experiência de quem ouve o som
acompanhado das imagens. Para Metz, a linguagem seria um metacódigo dos sons, em
que, para que haja uma completa identificação do que se ouve, é necessário especificar
não apenas o som, mas também sua fonte. Assim, quando dizemos o “estrondo do
trovão” é pelo termo “trovão” que conferimos um significado mais preciso ao objeto,
sendo que “estrondo” é uma qualidade pouco precisa e que pode atender a vários outros
objetos. A atenção às propriedades acústicas, estritamente falando, não seria o mais
importante. “Ideologicamente, a fonte aural é o objeto, o som em si é uma
‘característica’. Como qualquer ‘característica’, ele está ligado ao objeto, e é por isso
que a identificação deste é suficiente para evocar o som, enquanto o inverso não é
verdade” (METZ, 1980, p. 26-27).
Metz opõe a audição, que para ele designaria qualidades secundárias dos objetos,
a sentidos como a visão e o tato, capazes de captar qualidades primárias, essencialmente
materiais, das coisas. O tato poderia ser considerado, seguindo essa linha de raciocínio,
como árbitro supremo da realidade, o critério principal para a definição da materialidade
do mundo. O som funcionaria, nessa perspectiva, pelo estabelecimento de convenções e
pelo acúmulo de qualidades secundárias. O som seria construído socialmente e devemos
aprender as regras pelas quais os sentidos são conferidos a ele.
Paradoxalmente, Metz não vê uma discrepância entre sua postura e uma
abordagem fenomenológica da experiência cinematográfica. Ele busca uma descrição da
apreensão das coisas, sendo que essa apreensão não é espontânea ou natural, e sim
profundamente contaminada por instâncias culturais. Ela pode se dar de formas
diferentes dependendo do grupo social em que estamos inseridos. Sem o conhecimento
prévio desse corpo de relações, não há sentido possível. É como se Metz tentasse trazer
a fenomenologia transcendental, defendida por Bazin (na verdade uma leitura precária
da proposta husserliana), para uma esfera cultural. A cultura, e não os dados perceptuais
(como nos sugere Sobchack), seria o parâmetro definitivo para o entendimento do filme.
Quando penso em meu próprio campo de pesquisa, a análise
cinematográfica, como eu poderia esconder de mim mesmo – e
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É claro que essa posição encontra diversas vozes discordantes. Tom Levin, por
exemplo, nos diz a respeito das tecnologias de gravação e reprodução: “que um tiro de
revólver pareça soar da mesma forma nos diferentes espaços acústicos da rua e dentro
do cinema é um engano [...] a familiaridade entorpeceu a capacidade de reconhecer a
violência feita ao som pela gravação” (LEVIN apud LASTRA, 1992, p. 66). Cada som
é um som único, portador de significados próprios.
Ao propor um “cinema de evento”, Rick Altman (2004) igualmente atenta para
dimensões não categorizáveis dentro da experiência do cinema. Assistir a um filme é
também estar sujeito a diferentes condições físicas que modificam nossa apreensão do
que é mostrado na tela. O filme funciona dessa ou daquela maneira muito em função do
seu entorno. Cada exibição, em que suporte for, é um evento único.
Já Metz não encara o som como um evento único e não passível de repetição,
mas como estrutura inteligível. O que parece contraditório quando ele afirma serem as
sequências de imagens “neologismos”, eventos únicos.
Metz, com efeito, rejeita a corrente versão da representação-
como-estímulo-sensorial em favor de uma nova versão da
representação-como-inscrição-(legível). Metz, assim, enfatiza
menos a unicidade perceptual do que a capacidade de gerar
sentidos em um contexto particular, definido neste caso por
parâmetros econômicos, institucionais e formais (LASTRA,
2000, p. 126).
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espectador, parece apontar para um nível de produção de sentidos que não exatamente o
proposto pelo modelo estruturalista.
5. CONCLUSÃO
Ao encaminhar a discussão do papel do cinema (e não apenas do cinema, mas
também de diversas outras mídias) no atual ambiente comunicacional, Joachim Paech
indica algumas das críticas sofridas atualmente por essa perspectiva estruturalista de
análise textual. Uma epistemologia neo-formalista, segundo Peach, defendida por
teóricos como David Bordwell (1996), traria o sujeito mais uma vez à frente da relação
com o filme. Agora, em vez de considerar o filme como um “texto” que constrói o seu
sujeito, definindo de onde espectador e realizador partem para compreender ou filmar,
essa nova concepção advoga a existência de conhecimentos prévios que aqueles que
vêm (e fazem) o filme devem possuir. Sem isso, sem essa experiência prévia, não há
sentido possível. O filme passa a ser uma construção de quem o faz e também de quem
o vê.
Nós entendemos filmes tão bem (e mais facilmente do que
textos literários) porque os esquemas que eles utilizam são, até
certo ponto, homomórficos em comparação com aqueles usados
em nossa percepção cotidiana, isto é, não precisamos aprender a
entender filmes porque nós já sabemos nosso caminho no
mundo (PEACH, 2000, não paginado).
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Eduardo Pellejero42
LIÇÕES DE INTERPRETAÇÃO
Em Rear Window (1954), uma das obras-primas de Alfred Hitchcock, L.B.
Jefferies (James Stewart), fotógrafo de guerra, preso a uma cadeira, praticamente
desvalido, resolve um crime através da observação atenta e prolongada do que o rodeia.
Em Blow-Up (1966), a provocativa adaptação de um conto de Julio Cortázar que filmara
Michelangelo Antonioni, Thomas (David Hemmings), frenético fotógrafo de moda,
fechado num quarto escuro, acredita revelar outro através da exploração obsessiva das
suas imagens. Quietos ou inquietos, heróicos ou delirantes, as personagens que o
42
Universidade Federal do Rio Grande do Norte / Capes
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cinema propõe muitas vezes encarnam as aventuras do olhar, e ao fazê-lo nos submetem
a uma prova, na qual o que está em jogo é a nossa capacidade para interrogar as
evidências do que é e descobrir o que não é – pelo menos imediatamente – visível43.
Não é preciso internar-se nas cinematecas para embarcar nessa aventura, que
perpassa o cinema no seu conjunto, inclusive quando adota as marcas do gênero, as
prescrições do sistema de estudos ou as prerrogativas do mercado. Sob as suas formas
mais explícitas, ganha algumas vezes as formas de um desafio manifesto, como em
certos filmes nos que somos a priori convidados a solucionar o mistério que a intriga
nos propõe, antes que encontre propriamente a sua solução argumental; é o caso das
adaptações de alguns policiais clássicos, como Murder on the Orient Express (1974), de
Sidney Lumet, assim como de boa parte dos thrillers contemporâneos, como Zodiac
(2007), de David Fincher. Outras vezes, o desafio nos é lançado a posteriori, resolvido
já o mistério, expondo-nos a imagens que vimos e não fomos capazes de observar com a
necessária suspicácia; é algo que encontramos em alguns filmes de twist ending, como
em The sixth sense (1999), de M. Night Shyamalan, onde no final somos confrontados
com o que todo o tempo esteve à nossa frente, chamando-nos a redobrar a nossa atenção
em relação às imagens. Outras vezes, por fim, o desafio coloca em causa, não apenas as
nossas competências para ver e apreciar, mas também o alcance e os limites do que
aparece enquanto via de acesso ao real – como em Memories of murder (2003), de
Bong Joon-Ho, onde a ambiguidade das imagens e a interrogação crítica do olhar
tencionam os elementos definidores do gênero até fazê-los em pedaços.
Em todos esses casos é a intriga que nos instrui sobre o tempo e o esforço que
exigem de nós as imagens, oferecendo-nos uma lição sobre o que significa ver e
interpretar.
A DESEDUCAÇÃO DO OLHAR
Mas as imagens do cinema também podem oferecer-nos a possibilidade de uma
aprendizagem, nas aparências e pelas aparências, que excede as histórias que conta e a
lógica da lição.
43
Refiro-me ao visível, mas certamente não podemos deixar de considerar todas as dimensões que fazem
parte do cinema: o som, a linguagem, a narrativa. O cinema também nos oferece uma aprendizagem
nessas matérias. The conversation (1974), de Coppola, e Blow out (1981), de Brian de Palma, por
exemplo, retomando respectivamente Rear window y Blow-up, oferecem uma verdadeira lição do que
significa ouvir e escutar.
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Em The third man (1949), de Carol Reed, uma das primeiras coisas que chama a
nossa atenção é o uso e o abuso do plano holandês ou aberrante. As imagens aparecem
inclinadas, em constantes jogos de plano e contra-plano, nos que a inclinação se dá em
ângulos opostos. O recurso, provavelmente utilizado com a intenção de sublinhar a
tensão de algumas cenas, consegue, de fato, perturbar-nos, produzindo em nós certo
incômodo, alimentando a nossa ansiedade. Mas, ao mesmo tempo, o recurso se
denuncia a si próprio, não dissimula o seu papel na disposição das imagens. Vemos as
cenas, podemos sentir a tensão, e ao mesmo tempo vemos essa rara propriedade estética
das imagens que a compõem. Não é improvável que esta última se imponha em nós
sobre os efeitos induzidos, ao ponto de que, ao reingressar no domínio da
horizontalidade que rege a maior parte das imagens que vemos diariamente, sintamos
uma ligeira moléstia, uma espécie de enjoo, como um marinheiro ao pisar terra firme
depois de um prolongado tempo em alto mar. Não é que a perspectiva aberrante dos
planos de Reed seja mais adequada que a perspectiva da horizontalidade, mas a
desestabilização da nossa predisposição perceptiva projeta uma sombra crítica sobre as
poéticas que pretendem ocultar a sua artificialidade detrás dos prestígios de certas
construções historicamente identificáveis44.
Filmes como The third man nos oferecem a possibilidade de ilustrar-nos sobre as
formas de pôr em imagem ao mesmo tempo que nos instruem sobre os fundamentos da
interpretação (ao fim e ao cabo, apesar da sua singularidade, não deixa de ser um
thriller). Esse trabalho não é necessariamente mais subtil nem mais discreto, ainda
quando, acostumados a falar do cinema em termos de narração, possa resultar-nos mais
difícil identificar as suas apostas e as suas operações. Em realidade, enquanto que a
compreensão da trama de um filme depende do conhecimento prévio de uma série de
convenções, as imagens, em si, se oferecem ao nosso olhar sem pressupostos, não
solicitando de nós outra coisa que o nosso tempo e a nossa curiosidade, a nossa
memória e a nossa imaginação.
O que nos resulta inquietante, em verdade, é o estranhamento que a colocação
em jogo de recursos desse tipo produzem em nós, habituados pelas poéticas televisivas
e cinematográficas hegemônicas a que as imagens se nos ofereçam sob os modos da
44
Nem todas as imagens cinematográficas se prestam a essas aventuras, que, pelo contrário, muitas vezes
tendem a reforçar os esquemas psicofísicos de reação condicionada e os códigos expressivos instituídos,
sobredeterminando o sentido das imagens e deixando pouco ou nenhum espaço para o exercício crítico do
olhar. Quando o cinema se abre a tal, implica um desfasamento em relação ao seu funcionamento comum
(Rancière, 2011, p. 12). Cf. Pellejero, Eduardo. Eikasía: A consciência nas sombras do cinema. In:
Paralaxe, nº especial. São Paulo: PUC-SP, 2014.
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Como é sabido, Godard afirmava que “o travelling é uma questão moral”, brincando com uma frase de
Luc Moullet, que pela sua vez afirmara que “a moral é uma questão de travellings”.
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Para nós, pelo contrário, as imagens sempre estão em movimento, inclusive as imagens estáticas da
pintura e da fotografia, mesmo que não seja senão porque os nossos olhos nunca ficam quietos.
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sensibilidade do espectador antes que este tenha clara consciência do que está vendo, se
encontram totalmente à vista; logo disponíveis para a nossa consideração crítica – ao
contrário do que em geral acontece nas poéticas da transparência que procuram
manipular a nossa percepção sem que o notemos. Como é possível não sermos
sensíveis, depois de ver o filme de Noé, às formas habituais em que é posta em imagem
a violência47? Como esquecer que o movimento ou a quietude das imagens são algo
mais do que metáforas do compromisso ou da indiferença do olhar?
De modo geral, chamando a nossa atenção sobre as propriedades estéticas das
imagens, sobre as formas sempre singulares da sua articulação, o cinema afirma sem
rodeios a sua própria artificialidade. À consciência ou não dos seus realizadores,
habitualmente às costas dos seus produtores, nega assim que seja possível dar conta de
uma história através de imagens sem pôr em jogo uma série de operações complexas,
que ao mesmo tempo velam e revelam aquilo que as imagens evocam.
Baz Luhrmann dizia que no cinema tudo é técnica, inclusive quando parece não
haver. Na sua frequentação, contudo, o reconhecimento da artificialidade, da opacidade
e do perspectivismo do cinema podem converter-se em oportunidade para aprender
sobre os dispositivos que aspiram a naturalizar um certo tipo de imagens, dando por
descontada a sua transparência e neutralidade – logo, proclamando o seu caráter
indicial, exigindo a sua assimilação referencial e a adesão total (acrítica) do nosso olhar.
A minha intenção, com isto, não é distinguir um cinema bom ou libertário de um
cinema ruim ou alienante, nem estabelecer uma diferença essencial entre o cinema e a
televisão. Os clichés nos quais se anquilosa o nosso olhar, e que nos levam muitas vezes
a equiparar certas poéticas cinematográficas ou televisivas às formas naturais em que se
manifesta o mundo aos nossos olhos (se é que tem algum sentido falar dessa maneira),
assombram por igual todos os modos de pôr em imagem. Ao mesmo tempo, a potência
disruptiva das imagens pode manifestar-se em não importa que campo da criação
artística, inclusive a rebeldia dos seus criadores, contrariando o sentido das fábulas que
se propõem contar48.
O que me interessa assinalar é menos ambicioso, mas não menos instigante. Se
trata de considerar algumas das formas em que o cinema pode contribuir para a
(des)educação do olhar, para a desnaturalização dos modos incorporados que temos de
47
Recentemente, Dan Gilroy tematizou de forma arrepiante os dispositivos televisivos de pôr em imagem
a violência. Cf. Nightcrawler (2014).
48
Sobre o sentido da fábula contrariada, cf. Rancière, Jacques. La fable cinematographique. Paris: Seuil,
2001.
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ver, e, pelo mesmo, para a denúncia das poéticas da transparência que, ao mesmo tempo
que procuram satisfazer as expectativas desse olhar normal ou normalizado, contribuem
para o seu endurecimento.
As neurociências nos advertem que detrás do rápido funcionamento da nossa
visão se estende uma inteligência tão vasta que ocupa quase a metade do nosso córtex
cerebral, e que, por sua vez, coloca em movimento as zonas do nosso cérebro associadas
à afetividade, à memória e à imaginação (Hoffmann, 2000, p. 12-13). Ver não é apenas
uma questão de recepção passiva, mas um processo que põe em jogo toda a nossa
inteligência.
Agora, boa parte das operações que dão lugar à visão têm lugar em geral de
modo inconsciente. Isso significa que, em teoria, conhecendo os modos em que tende a
responder um cérebro médio, em circunstâncias normais ou normalizadas, seria possível
propiciar (sobredeterminar) certo número de reações psicofísicas, e inclusive
emocionais (algo similar já afirmavam os psicólogos da Gestalt). Na prática, por outra
parte, constatamos que parece perfeitamente possível, através do agenciamento
estratégico das imagens, manipular, com propósitos artísticos ou políticos, ideológicos
ou comerciais, o modo em que se comporta o nosso olhar e vemos o mundo, induzindo
expectativas perceptivas, associações mecânicas, reações afetivas, etc.49
Mas também é possível, assim como nos mostra a ciência, através de
experimentos pensados especialmente para identificar os automatismos aos que em
geral se encontra preso o nosso olhar, suscitar o nosso estranhamento enquanto
espectadores através do reagenciamento das propriedades estéticas das imagens,
obrigando-nos a pôr em variação e, através disso, a pôr em questão, o que significa ver e
dar a ver, olhar e resignificar, contemplar e fazer sentido.
As nossas mentes não se prestam passivamente à manipulação, como temia
Platão e muitas vezes continua a temer a filosofia. As nossas mentes não são como a
cera. Porém, sem a desnaturalização do olhar à qual dá lugar a experiência estética,
seriam muito mais vulneráveis ao constante bombardeamento de publicitários e
ideólogos.
49
O próprio Einsenstein considerava que “o estudo da conduta do homem (…) e dos seus métodos de
percepção da realidade e formação de imagens, seria sempre determinante [para os cineastas]”
(Eisenstein, 2006, p. 54). E, como assinalávamos antes, alguns grandes cineastas foram verdadeiros
especialistas no cálculo das respostas prováveis dos espectadores às imagens, e utilizaram
estrategicamente esse saber probabilístico para lhe armar ciladas, criar e frustrar expectativas, ou
condicionar as suas reações psicofísicas (com mais ou menos sucesso).
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50
Sartre dizia que, de forma geral, a arte nos apresenta o mundo, não como uma totalidade fechada,
historicamente sobredeterminada, mas como um processo, um devir, sempre em jogo, ao contrário do que
acontece na realidade cotidiana, onde “o mundo aparece como o horizonte da nossa situação, como a
distância infinita que nos separa de nós mesmos, como a totalidade sintética do dado, como o conjunto
indiferenciado dos obstáculos e dos utensílios – mas jamais como uma exigência dirigida à nossa
liberdade” (Sartre, 2004, p. 49).
51
Mesmo quando se encontrem incorporadas numa intriga, mesmo quando possam estar articuladas por
uma narração, as imagens são paratáxicas. Imaginemos um exemplo limite, em que as imagens se
sucedam separadas por placas com conectores lógicos. Inclusive nesse caso, a conexão entre as imagens
(incluídas as imagens dos conectores lógicos) não é uma propriedade do que aparece, mas depende
sempre das relações que estabelece cada espectador. As imagens não são apofânticas, não são proposições
nem enunciados; são uma condensação que excede qualquer figura do sentido. As imagens proliferam,
mesmo a contrapelo da sucessão temporal na que se encontram inscritas (por exemplo, uma imagem
modifica retrospectivamente o sentido das anteriores).
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52
A música também pode contrariar a fábula cinematográfica. Em Lisbon story (1994), de Wim Wenders,
há um longo momento musical, quando Winter (Rüdiger Vogler) descobre o ensaio de Madredeus, que
nos arranca totalmente do filme. Como o protagonista, fechamos os olhos, ou, mantendo-os abertos,
perdemos a vista num ponto qualquer, como numa sala de concertos, e viajamos com a música. O cinema
também nos depara coisas assim: verdadeiros momentos de arrebatamento.
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é algo mais do que um mero instrumento de exame. Pelo menos esse feitiço já não pesa
sobre nós.
Sem lugar a dúvidas, as imagens cumprem diversas funções no cinema: ilustram
a intriga, pontuam a trama, enfatizam os momentos dramáticos, materializam o estado
de ânimo das personagens, etc. Mas a sua singular natureza faz com que,
independentemente dos serviços que possam vir a prestar, acabem sempre por fraturar a
intriga, contrariar a fábula, exceder o drama, despersonalizar as personagens, etc.
Nesses momentos, que são indissociáveis do seu caráter sensível, as imagens nos
oferecem a oportunidade de exercitar-nos em algo mais do que na moral das histórias
que nos conta o cinema.
Isso não quer dizer que o cinema não possa contar histórias, nem que as histórias
careçam em si mesmas de interesse. Pelo contrário. Porém, a partir do momento em que
certas imagens perturbam o decoro do seu desenvolvimento argumental, escorregam,
indo ao encontro de outras imagens, de intuições e de ideias, desencadeando uma
miríade de histórias possíveis, assim como dando lugar a experiências que não traduzem
bem as figuras da narração.
O cinema nunca deixou de contar histórias, e hoje, na época que é a nossa, quiçá
privilegiemos a sua forma de fazê-lo sobre qualquer outra. A questão é que o cinema
não conta nunca apenas uma história, ou não se limita nunca a contar histórias. A sua
intimidade com as imagens lhe impede isso. Entre a história que resume o argumento e
as operações que, numa dialética complexa, se articulam no entrelaçamento do
argumento e as imagens dos filmes, por um lado, e a memória e a imaginação dos
espectadores, por outro, as aventuras da percepção e do sentido proliferam sem
controlo.
Isso é assim inclusive nos filmes que se inscrevem no cinema de gênero, no
sistema de estudos ou na indústria do entretenimento53. Em The player (1992), Robert
Altman, que nunca ignorou a abertura das imagens às quais dá lugar o cinema, e que em
certa medida deixava sempre o corte final em mãos do espectador54, faz a crítica mais
53
Nisto guardo uma dívida impagável para com as aulas de Mário Jorge Torres, com quem aprendi tudo o
que entra em jogo quando vemos um filme.
54
Robert Altman acostumava filmar os seus filmes utilizando várias câmaras, que exploravam cenas
múltiplas, nas que tinham lugar muitas coisas ao mesmo tempo. Essa estranha forma de filmar tinha um
propósito. Altman dizia que estava à procura de um momento especial, de um momento verdadeiro. Mas
o reconhecimento da verdade é algo que deixava em última instância em mãos do espectador. Para
multiplicar ainda mais as aberturas, nos anos setenta começa a utilizar uma gravadora de oito canais, que
lhe permitia gravar a voz dos atores individualmente, para depois, na mesa de edição, misturá-las de tal
forma que duas ou mais conversas tivessem lugar ao mesmo tempo, como em The long goodbye (1973) –
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corrosiva desse cinema que se propõe filmar “The Graduate – Part II”, ou “a cynical,
psychic, political, thriller comedy with a heart”. Mas Altman não deixa de filmar por
isso. Sabe que, inclusive sendo obrigado a negociar, o cinema sempre acaba por se
vingar desse sistema, transgredindo as suas leis, transbordando a lógica do plot.
De um ponto de vista filosófico, quiçá seria mais apropriado falar de um excesso
do real sobre a representação. A consciência histórica que temos desse excesso,
modifica as formas pelas que fazemos, vemos e pensamos a arte. E, no caso do cinema,
nos é difícil imaginar como poderíamos fazê-lo, vê-lo ou pensá-lo de outra maneira
(seja porque o cinema contribui para a emergência dessa consciência, seja porque ganha
consistência em virtude dessa consciência emergente55). O certo é que, para os homens
que somos, as suas imagens jamais chegam a identificar-se completamente com a
representação, e, além de funcionar como ilustração ou pontuação das representações
das que formam parte, põem a trabalhar o excesso da sua realidade contra as próprias
figuras da representação às quais dão corpo.
Mais uma vez, isso não significa que, perante as imagens do cinema, devamos
evitar qualquer representação, que não possamos acompanhar a intriga ou contar-nos
histórias que divergem mais ou menos da intriga. No fundo, como diria Bergson,
qualquer representação é particular, artificial, e em certa medida arbitrária, mas o fato
de nos fazer representações é universal, natural, e em certa medida, também, necessário
(e essa distinção é quiçá outra forma de definir o princípio da emancipação).
Mais simplesmente, digamos que o cinema não se esgota nas histórias que conta,
nos argumentos que encena, mas que se encontra essencialmente aberto a uma
articulação do que os seus filmes nos propõem com tudo aquilo que somos capazes de
pôr da nossa parte.
é o espectador que deve decidir a que conversa prestar atenção, dado que não é possível escutar todas ao
mesmo tempo.
55
Sabemos que Deleuze lia a desconexão entre a intriga e as imagens a partir do que denominava a
ruptura do laço sensório-motor, que atribuía, por outra parte, aos acontecimentos traumáticos da Segunda
Guerra Mundial, retomando, de alguma maneira, a ideia adorniana de que não é possível continuar a
escrever poesia depois dos campos. Da mesma forma, já não seria possível continuar a fazer filmes como
se faziam até então, algo grande demais teria acontecido, algo que invalidaria inevitavelmente as formas
de inscrever as imagens numa trama. A pertinência desse recorte, em todo o caso, se presta à polêmica.
Walter Benjamin identifica esse momento decisivo nas próprias origens do cinema; John Berger nos
primeiros anos do cubismo; Jacques Ranciére, na literatura francesa do século XIX. Quiçá o que se
encontra em jogo exceda qualquer tentativa de atribuir um acontecimento desencadeante à mudança
operada no que respeita aos modos em que fazemos, vemos e pensamos as imagens (Pellejero, 2013). O
certo é que constatamos uma mudança na nossa consciência histórica, para a qual “o passado já não cabe
na história” (Rojas, 2015), assim como a realidade não cabe na representação.
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CINEMA E EMANCIPAÇÃO
Os exemplos expostos não têm nenhum valor especial, não constituem um
modelo nem propõem um método. A aprendizagem à que nos convida o cinema, em
virtude da distância que assegura o exercício livre das nossas faculdades em relação ao
espetáculo56, é inevitavelmente um processo sempre individual, que ninguém pode
poupar-nos, e necessariamente devemos conduzir nós próprios.
Evidentemente, as imagens que interrompem as suas intrigas e contrariam as
suas fábulas podem ser, e muitas vezes são produto das obsessões de um realizador (por
exemplo, homens pendurados na borda de um abismo em Hitchcock), ou uma marca de
gênero (como quando nos filmes de terror a câmara se aproxima, da praia ou do mato, à
janela de uma cabana no meio da noite), ou inclusive efeito da aura de um ator ou de
uma atriz (os olhos de Greta Garbo). Mas também, de forma mais geral, essas imagens
podem ganhar a sua força suspensória dos investimentos do nosso olhar – com o qual
qualquer imagem poderia, em princípio, ser arrancada de um filme, arrancando pela sua
vez o filme do seu progresso intrínseco, para inscrever-se num jogo livre de associações
e dissociações, de invenção e de crítica.
O cinema é capaz de lições magistrais, assim como de uma potência crítica
imponderável, mas, sobretudo, é ocasião de aventuras afetivas e intelectuais. Se nos
entregamos a elas com paixão, lucidez e perseverança, podemos chegar a apreender
muito sobre nós, sobre a profundidade da nossa sensibilidade e a espontaneidade da
nossa inteligência, sobre a persistência da nossa memória e a rebeldia da nossa
imaginação. No seu espaço57, ao fim e ao cabo, não só tem lugar a suspensão da
incredulidade que exigem as suas fábulas, mas também – e isso é menos evidente, mas
muito mais importante – a das formas habituais de relacionarmo-nos com o sensível,
com o que se dá e aparece.
Em última instância, o cinema não é um espelho da natureza nem do homem. A
ideia de que a arte levanta um espelho no qual se contemplam o homem e a natureza,
dizia John Berger (2002, p. 155) é uma maneira de subestimar a realidade em lugar de
interpretá-la. O cinema é, antes, um lugar de experimentação – não sempre para os
diretores, os atores ou os estúdios, mas seguramente sempre para nós – onde as imagens
forçam as nossas faculdades a duvidar e especular, a interrogar e propor hipóteses,
56
“A distância não é um mal a abolir, é antes a condição normal de toda a comunicação.” (Rancière,
2010, p. 19)
57
Não me refiro apenas à escuridão das salas onde tradicionalmente teve lugar, mas também à luz com
que emana das telas de qualquer tipo.
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abrindo gretas que podem chegar a comover os cimentos da nossa percepção e os modos
que habitualmente damos por descontados para a sua interpretação.
Nisso, as aventuras do cinema guardam certa semelhança com as da observação
científica. Num como noutro caso, do que se trata é de “ligar o que se sabe com o que se
ignora” (Rancière, 2010, p. 27), mesmo quando “o ato de olhar uma imagem seja muito
menos concentrado e a imagem atraia uma gama mais ampla e variada das experiências
do espectador” (Berger, 2002, p. 179). Resta que, no caso do cinema, ao contrário que
no caso da ciência, o saber do qual partimos não exige nenhum prestígio particular.
Desde as suas origens nas feiras, o cinema sempre foi fiel ao seu ascendente popular,
sobretudo quando os seus artifícios formais aspiram a assombrar o olhar do espectador
comum. O singular exercício da liberdade que nos propõe se dirige a todos e cada um de
nós, não importa quem, na espera de que assumamos o nosso papel de intérpretes ativos,
capazes de fazer das suas histórias a nossa própria história (Rancière, 2010, p. 27).
Já em 1935, Walter Benjamin celebrava essa abertura democrática do cinema,
que conjugava, de forma nunca antes vista, as distrações do povo e as provocações da
vanguarda, e que, sob a forma de uma experiência lúdica, propiciava a emancipação
intelectual dos seus espectadores. Com o tempo, tornou-se comum fazer pouco do seu
otimismo, reduzindo as suas teses a uma definição da essência das suas imagens. Mas o
que estava em jogo para Benjamin, e continua a estar em jogo para nós, era a
possibilidade de uma relação.
Com frequência esquecemos que qualquer homem é capaz de interrogar
criticamente o que vê a partir do visto e do pensado, do vivido e do imaginado, quando
é dessa potência comum que depende a sobrevivência do sonho benjaminiano de uma
arte de massas que seja ao mesmo tempo promessa de aventuras espirituais58. À
margem das apostas da indústria cinematográfica, e dos filmes – bons ou maus – que
continuam a fazer-se, o cinema continua a ser um convite para que a exercitemos em
liberdade.
Referências bibliográficas:
BERGER, John. El sentido de la vista. Madrid: Alianza, 2002
EISENSTEIN, Sergei. El sentido del cine. México: Siglo XXI, 2006.
HOFFMANN, Donald. Inteligencia visual. Barcelona: Paidos, 2000.
58
Cf. Sontang, Susan. “Um século de cinema”. Em: Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
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