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Copyright © Linette Douglas, 2024

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É vedada a reprodução, distribuição, comercialização, impressão ou cessão deste e-book ou qualquer parte dele sem autorização
expressa, por escrito, da autora, exceto pelo uso de citações breves em uma resenha.

Capa: Ana Bozollan


Revisão: Camila M. Barbosa
Leitura crítica: Larissa Alcantara
Diagramação: Linette Douglas

Esta é uma publicação independente.


Aviso de conteúdo

Este livro não é recomendado para menores de 16 anos e contém cenas que
podem ser sensíveis para algumas pessoas.

Não leia caso se sinta desconfortável com: violência explícita, morte, conteúdo
sexual, consumo de álcool e drogas ilícitas, assédio e tentativa de abuso sexual.
PRÓLOGO
13 anos antes...

Sienna Bianco tinha sete anos quando se deparou com a morte pela primeira vez. A morte,
naquela circunstância, era antipática e fedia a legumes apodrecidos.
A garota levou alguns minutos examinando o canteiro desolado de hortaliças.
As folhas de rúcula e os brotos de beterraba, cultivados religiosamente durante todo o verão,
agora não passavam de vegetais murchos e de aparência esquelética, tendo sido ceifados bem
quando iriam atingir todo o seu potencial.
— Mas não é justo — lamentou ela, correndo os dedos pelas folhas ressequidas.
Sua avó ficou de pé, limpando a terra das mãos.
— Tem razão, não é justo mesmo. Mas aceitamos o risco quando decidimos plantar aqui atrás.
Deve ter virado um pântano com essas últimas chuvas.
Sienna sentiu a mão do avô tocar seu ombro, mas ainda não estava pronta para aceitar aquela
fatalidade.
Não era justo. Não quando todos sabiam que sua horta estava muito mais bonita que a de
Luísa, com muito mais chances de vencer a competição das hortas que seus avós criaram no
início das férias para manter as duas crianças ocupadas.
Sua horta iria ganhar, e eles passariam a semana usando os vegetais nas refeições. Agora,
usariam as cenouras pálidas e o manjericão queimado de Luísa.
— Na próxima vez, vamos fazer as duas lado a lado — disse o avô, otimista.
Mas isso deixou Sienna ainda mais desgostosa, pois lembrou-se que o verão estava quase
acabando (e com ele, as férias) e até lá um ano inteiro teria se passado.
Sienna não gostava de esperar pelas coisas, mesmo que quase nunca tivesse outra opção.
— Mas plantar aqui foi ideia sua, Fred — rebateu a avó.
O marido abanou a mão no ar como se aquele detalhe fosse irrelevante.
A garota sofria seu luto ainda de joelhos na terra, alheia ao diálogo dos adultos.
Não queria erguer o olhar e ver a expressão zombeteira de Luísa, e também não parava de
pensar que a menina havia sabotado propositalmente sua horta. Não eram amigas, sequer
conseguiam brincar juntas por muito tempo sem que Luísa estragasse tudo.
Ela arriscou uma olhadela pelo canto do olho e viu Luísa segurar duas beterrabas murchas
pelo caule, batendo uma contra a outra e parecendo achar muita graça naquilo. Teve que morder
o interior da bochecha para conter as emoções, mas sentiu o sangue fervilhar nas veias e, naquele
instante, quis muito varrer o sorriso do rosto da outra garota, de uma forma tão definitiva que ela
demoraria a sorrir de novo.
— Bom, de toda forma, regras são regras — o avô resumiu, dando palmadinhas em seu
ombro. — A melhor horta até o fim do verão venceria o campeonato. Assim sendo, Luísa é a
ganhadora deste ano.
O verão não acabou ainda, Sienna quis dizer, mas ainda que fosse nova, sabia que isso seria
apenas chover no molhado. Sua horta não se recuperaria em três dias. O esforço de semanas e
mais semanas havia sido em vão.
Luísa, por sua vez, comemorou por vários minutos. Logo a menina e os avós de Sienna
estavam discutindo sobre os pratos que seriam preparados no dia seguinte, mas Sienna amuou-se
quando alguém mencionou um bolo de cenoura. Nunca mais comeria cenoura em sua vida.
Sua avó rapidamente depositou um beijo no topo de sua cabeça, dizendo-lhe para não se
demorar lá fora, e refez o caminho de volta para a casa, com o marido e a filha dos vizinhos a
tiracolo.
Sienna, que geralmente preferia ter alguma companhia, agora apreciou ter sido deixada
sozinha com seus pensamentos sombrios e vegetais mortos.
Pensou que teria gostado do sabor deles, e no quanto sua mãe ficaria orgulhosa quando
soubesse de sua vitória. Porém, conhecendo a mãe, Sienna tinha certeza de que ela se orgulharia
até mesmo da horta apodrecida.
Se fosse honesta consigo mesma, a garota admitiria que o principal motivo de estar tão
chateada era o fato de Luísa ter roubado o que naturalmente pertencia a ela. A vitória. E Sienna
detestava perder injustamente.
Alguns instantes depois que os outros foram embora, a menina pôs-se de pé. Não queria voltar
para casa ainda, afinal o sol continuava alto no céu e as férias estavam quase no fim, então subiu
pelo pasto na direção de sua árvore.
Sua árvore, que era literalmente sua, pois seu avô a tinha plantado quando ela nasceu, era um
mutambo de mais de seis metros de altura, e tinha uma vista agradável da lagoa. À tarde, as
folhas bloqueavam a luz do sol, de modo que Sienna passava horas e horas brincando sob a
árvore e não sentia o tempo passar.
Era para lá que sempre ia quando algo a aborrecia, e quando se aproximou da árvore, a garota
sentiu-se um pouco mais sossegada. A não ser pela visão da terrível horta de Luísa, que ficava
logo adiante e mais próximo da casa dos Faber, não havia muito ali para chateá-la.
Circundou a árvore a fim de ficar de costas para o plantio, mas parou no meio do caminho.
Havia um banco de madeira embaixo da árvore, também colocado por seu avô, e Sienna
estava indo sentar nele, mas alguém tinha chegado primeiro.
Ela observou, parada sob a sombra dos galhos, o estranho cortar fatias de um pêssego e levá-
las à boca.
Parecia não ter pressa alguma, e estudava a lagoa à sua frente durante as longas mastigadas.
Foi a primeira coisa que Sienna notou sobre o estranho: que ele mastigava muito. A segunda
foi que ele não calçava nenhum sapato. Ela mesma não os usaria, se pudesse, então achou
reconfortante ver um adulto sem eles. Mas não o conhecia, e isso a alarmou para o fato de que
alguém desconhecido estava usando a sua árvore, ou melhor, o seu banco.
— Oi — falou, como quem faz uma pergunta.
O estranho virou a cabeça para olhá-la.
Mechas do cabelo escuro se agitaram com o vento, e Sienna sentiu cócegas na própria
sobrancelha como se fosse com ela que o vento estivesse brincando.
— Olá — respondeu, mordendo outra fatia de pêssego.
A garota inclinou a cabeça para o lado.
— Quem é você?
— Não sou ninguém.
— Mas eu tô vendo você.
— Também estou vendo você.
Sienna não sabia argumentar a respeito de ser e não ser alguém, então tratou de mudar a
abordagem.
— Não posso falar com estranhos — disse, simplesmente.
O desconhecido balançou a cabeça meio que para si mesmo, trabalhando a faca contra o
pêssego.
— Te ensinaram bem, Sienna.
A garota arregalou os olhos — não esperava que o estranho soubesse seu nome. Pensou que
devia ser um dos rapazes que ajudavam seu avô no plantio de melão, apesar de ter quase certeza
que já conhecia todos eles.
— O vovô te mandou ficar de olho em mim? — desconfiou.
— Por que o seu avô precisa que alguém fique de olho em você?
Sienna suspirou, se desanimando outra vez.
— Ele acha que eu implico com a Luísa, mas é ela quem sempre estraga tudo. E hoje a minha
horta perdeu a competição porque ela fez tudo murchar. Acho que o vovô te mandou aqui pra
vigiar a horta dela.
O estranho engoliu a fatia que estava em sua boca e logo pegou outra.
— Sério que ela estragou sua horta? — perguntou ele, escandalizado.
Sienna deu alguns passos à frente, sentindo a raiva começar a voltar.
— Eu ia ganhar e ela sabia disso, aí ela deu um jeito — conspirou, vendo que o estranho
acreditava nela.
Ele balançou a cabeça, franzindo o cenho.
— E o que você vai fazer?
— Nada. — A menina abaixou o olhar para o chão, envergonhada. — A vovó e o vovô
disseram que ela venceu.
— Mas o que ela fez lá foi maldade. Quando alguém faz algo errado para ganhar de você, isso
se chama trapaça. E ela trapaceou, você não acha?
Sienna concordou com ele sem pensar duas vezes. Um calor subiu pelo pescoço da garota,
esquentando suas orelhas e bochechas. Lentamente, seu coração começou a bater mais rápido à
medida que ela permitia que a raiva reivindicasse seu lugar de direito.
Não achava nada daquilo justo, não importava o que seus avós dissessem. Estavam fazendo
planos para o bolo de cenoura, mas Sienna preferia o suco de beterraba que vinha desejando
desde o começo das férias. Só que agora não haveria mais suco de beterraba, e era tudo culpa de
Luísa. Ela nem gostava de Luísa.
Sienna deu meia-volta, lançando um olhar mortífero para a pequena plantação adiante.
Poderia consertar a injustiça em um piscar de olhos.
Com a benção do estranho, ela marchou até o canteiro de Luísa, enfiou as mãos na terra e
arrancou os vegetais de suas raízes. Quebrou as cenouras ao meio, rasgou as folhas de
manjericão e por fim usou o sapato para encobrir tudo com terra. Se sentiu melhor e mais leve,
tendo, enfim, resolvido o problema. Luísa teve o que mereceu.
Sorridente, voltou ao banco embaixo da árvore, e dessa vez sentou-se ao lado do estranho, que
agora já considerava um amigo. Uma mariposa voou bem a tempo de não ser amassada contra o
assento.
O amigo tirou um pêssego de um cesto ao seu lado e ofereceu a ela.
— Obrigada — disse a garota, pegando a fruta.
— Bom trabalho — falou o amigo, entre uma mordida e outra.
Sienna não ouviu quando sua avó chamou seu nome, a alguns metros dali, mas o estranho
ouviu muito bem.
— Estão chamando você.
Ela suspirou outra vez, mas agora tinha mais motivos para se alegrar.
Levantou-se, segurando o pêssego.
— Hora do jantar. Vou dizer ao vovô que você é legal se você não contar o que eu fiz.
Seu amigo ergueu o dedinho, fazendo uma promessa silenciosa.
Ela sorriu, sabendo que ele falava a verdade.
— Bom jantar, Sienna — disse ele, indo para o terceiro pêssego.
Sienna saiu saltitando por todo o caminho até a casa dos avós.
O estranho ficou por mais uns instantes, saboreando o gosto do pêssego antes de ter que partir.
Era possivelmente a única coisa da qual sentia falta de quando estava vivo; o gosto das coisas.
Se perguntou se a criança sabia apreciar gostos e paladares, ou se, quando partisse deste
mundo muito em breve, desejaria ter aproveitado mais.
Seja qual fosse a resposta, ele estaria lá para descobrir.
1: SIENNA
Purple Yellow Red and Blue, Portugal. The Man

Acordo com o teto em chamas. Ou é o que parece, porque vejo estalactites acima de mim e todas
brilham em um tom intenso de vermelho. Talvez seja sangue e não fogo. Talvez seja a luz
refletida nelas. Seja lá o que for, definitivamente não é o teto do meu carro.
Mas eu estava no meu carro. Pelo menos antes de tudo ficar escuro. Agora estou… Que lugar
é esse?
Apesar da letargia, consigo forçar a cabeça para cima, só então percebendo que estou deitada
de costas. Tenho o primeiro vislumbre dos arredores, e o que vejo me causa arrepios.
Embora o teto brilhe como pedras de rubi, o resto do lugar está jogado na penumbra. A única
luz vem de pequenas janelas na parte alta das paredes, e ela também tem um tom avermelhado.
Não é muito, mas ilumina o que parece ser um salão abandonado, do tipo que lembra igrejas
desativadas há muito tempo.
Há filas de bancos de madeira dispostos com um grande vão separando-os em dois lados.
Estou deitada em cima de um deles, embora não faça ideia de como cheguei aqui.
Lembro de estar voltando da Academia, depois de ter aceitado o acordo nada inocente do meu
professor, e então acordei aqui.
Estou sonhando? Porque, se não estiver, a única explicação é eu ter morrido e este lugar ser o
inferno. O que mais poderia ser? Não sou a pior pessoa do mundo, mas tampouco acredito que
estou no grupo das melhores e que por isso o céu me espera no pós-vida.
Espera.
Não posso estar morta.
Estou no meu carro, indo para casa, e este é um dia que me lembrarei no futuro: seja como o
estopim de algo incrível, ou como o maior arrependimento da minha vida.
Preciso acordar desse pesadelo!
POUCAS HORAS ANTES...

Se há uma coisa capaz de desestabilizar as emoções de toda a minha turma, é um anúncio de


escalação de elenco.
A nova peça de Edgar Costacurta, o professor mais célebre da Academia de Artes Cênicas de
São Paulo, está sendo motivo de alvoroço há várias semanas, e hoje é o dia em que saberemos o
resultado dos nossos testes de elenco. Todos estão um pouco esverdeados essa manhã, até
mesmo os mais confiantes.
— Certeza que ele se atrasou de propósito.
Me viro para Ágata, sentada na cadeira ao meu lado, e noto que, apesar do tom escuro de sua
pele, ela parece pálida.
Ela enfia uma longa trança atrás da orelha, coisa que sempre faz quando está ansiosa. O lábio
inferior, pintado de marrom, está preso entre seus dentes.
— Deve estar rindo da nossa cara na sala dele — murmuro de volta, balançando uma perna
para cima e para baixo sem parar.
Dei tudo de mim na audição para o papel principal. Me esforcei o triplo nas últimas aulas de
Encenação, determinada a convencer o professor de que sou sua melhor escolha. Estive confiante
nos últimos dias, mas agora o fantasma do fracasso me assombra de perto.
Não vou fracassar. Por ela, não posso fracassar.
Como se invocado por nossos pensamentos ansiosos, o professor entra na sala. Qualquer
indício de cochicho se encerra imediatamente.
— Que dia lindo, não acham? — diz ele, à guisa de cumprimento. — Perfeito para um
primeiro ensaio.
A turma inteira já se precipitou para a ponta da cadeira, incluindo eu.
O professor deixa as covinhas à mostra enquanto dobra as mangas da camisa e se encosta no
birô.
— Quem eu chamar agora, quero que venha até o tablado e forme uma linha. No final,
teremos o elenco oficial definido e os substitutos de cada um.
A peça é uma releitura do Canto V do Inferno de Dante Alighieri, mas sem Dante e Virgílio,
já que Edgar decidiu usá-los como alegorias para o sol e a lua. É por isso que o protagonismo
será de Francesca da Rimini e seu amante, Paolo Malatesta. E eu serei Francesca.
Os nomes começam a ser chamados, primeiro pelos papéis menores. A sensação é de que
todos prendem a respiração ao mesmo tempo conforme o professor faz as convocações.
Quando há pelo menos quinze pessoas no tablado, Ágata é chamada. Será Cleópatra, uma das
personagens com mais destaque na história. Sorrio quando ela passa, feliz com a visão de suas
covinhas e pelo fato de que nossas noites sem conseguir dormir estejam se pagando.
Mas meu estômago aperta logo em seguida. Só restam os dois papéis principais agora.
O professor avalia o resto da turma sem pressa alguma. Sabe perfeitamente como manter o
suspense até o último segundo.
— E, por último, mas não menos importante, Francesca da Rimini e Paolo Malatesta —
começa ele, juntando as mãos. — Sienna e Liang, podem vir.
Me levanto com as pernas bambas e o coração disparado, mas me junto aos meus colegas no
palco, mal conseguindo conter o sorriso.
Não é todo dia que se ganha o papel principal na matéria de Edgar Costacurta, o professor que
pode abrir e fechar portas para qualquer um aqui num piscar de olhos.
Espero ser capaz de me manter nas boas graças dele, não importa quantos sacrifícios eu tiver
que fazer para me destacar entre os outros.

Duas horas e meia depois, nossa turma é liberada.


Agora tenho mais certeza que nunca de que nasci para dar vida a Francesca, e descobri, com
ligeiro espanto, que tenho uma boa química com Wu Liang, meu par romântico na história.
Liang, além de educado e paciente, ainda tem o agravante de ser bonito. Em uma das nossas
conversas fora de hora, Agui e eu chegamos à conclusão de que ele parece mais novo do que
realmente é, e depois de interagir com ele nessas últimas horas, tenho uma nova teoria para
explicar essa questão, que envolve sua pele de porcelana e a ausência de pelos em seu rosto.
Estou prestes a deixar a sala com Agui quando ouço o professor me chamar.
— Tenho umas ideias para compartilhar com você, se tiver alguns minutos — diz ele,
descendo os degraus da plataforma.
— Claro, estou com a agenda livre — respondo, incapaz de dispensá-lo logo no primeiro dia
de ensaio.
Mas não é bem verdade; ultimamente meus assinantes andam mais impacientes que o normal
e minha caixa de mensagens está superlotada há dias. Acho que precisarei cuidar do assunto em
outro momento.
Não querendo atrapalhar, Ágata se despede com um aceno e fecha a porta quando passa. Ela
provavelmente vai aparecer na minha casa mais tarde, querendo saber o que achei de Liang agora
que somos pares.
— Se importa se formos para a minha sala? — pergunta Edgar. — Outra turma pode querer
usar essa aqui.
O jeito como ele sugere, em vez de comandar, faz parecer que ele não é um dos melhores
dramaturgos vivos do país, e que é possível alguém em perfeito juízo dizer não a ele.
Deixamos a sala e subimos um lance de escadas para chegar ao andar dos professores. Edgar
me conduz até uma porta com seu nome estampado em uma placa, depois sinaliza para que eu
entre primeiro, e então fecha a porta atrás dele.
Nunca estive na sala de nenhum professor antes, e descubro que, pelo menos a de Edgar, é
bem maior do que imaginei. E mais extravagante também, mas não fico tão surpresa com isso.
Todos por aqui sabem que menos nunca é mais para Edgar Costacurta.
Passo os olhos pelo lustre grandioso pendurado no centro da sala, o piano polido em um dos
cantos, as duas poltronas de estofado roxo e o piso de porcelanato. Atrás da mesa de trabalho,
uma estante de livros cobre toda a extensão da parede. É dia, mas todas as cortinas estão
fechadas e a única luz do ambiente é artificial. Estranhamente, cai como uma luva para o
professor.
— Fique à vontade. — Ele deixa os sapatos na soleira antes de avançar no cômodo. — Vou
abrir uma sidra. Me acompanha em uma taça?
Eu não esperava por isso tampouco, mas estou aberta às excentricidades do professor e não
quero bancar a estraga-prazer.
— Tudo bem se for meia taça? — arrisco, tirando o tênis e ficando só com as meias. — Vim
dirigindo.
Edgar sorri e vai até um frigobar que eu não notei no meio de tanta mobília. Tira uma garrafa
de dentro e pega duas taças finas do móvel ao lado.
Enquanto aguardo o professor terminar, me dirijo à cadeira em frente à mesa dele, temendo
que me sentar na poltrona pareça um gesto muito íntimo.
Passo por um espelho imenso no caminho, e inevitavelmente me espanto com a minha
aparência depois de uma noite em claro e uma manhã de emoções.
O tom bronzeado da minha pele deu lugar a uma palidez fantasmagórica, há manchas escuras
embaixo dos meus olhos, e ninguém acreditaria que eu não levei um choque com todo esse frizz
no meu cabelo castanho.
Sabendo que passar os dedos só vai piorar a situação, me limito a prender as mechas atrás das
orelhas e sigo em frente. Uma noite bem dormida deve resolver meu problema.
Tomo meu assento à mesa e corro os olhos pela superfície abarrotada de papéis e objetos. Um
porta-retrato descansa na ponta, com duas pessoas posando sorridentes para a foto.
É uma versão mais nova de Edgar — tão ruiva quanto a atual, mas sem a barba — sentada em
um sofá, com o braço ao redor de uma mulher negra da mesma idade.
— Fato engraçado… — A voz do professor traz minha atenção de volta. — Meus melhores
trabalhos foram feitos quando eu estava sob efeito do álcool. Por isso eu criei esse hábito de
beber pelo menos uma taça todos os dias. Para garantir que nunca falte inspiração.
O professor circunda a mesa, me oferecendo a taça pela metade. Senta-se em sua cadeira e
toma um gole da bebida.
Aproveito a deixa para fazer o mesmo. A bebida é agradável, apesar de não ser o meu tipo
preferido.
— É um bom otimizador de talento — respondo, depois de tomar um gole.
— Um que você com certeza não precisa. Estou impressionado com você, Sienna. — Ele
larga a taça na mesa e se encosta na cadeira. — E, sendo bem honesto, não sei até que ponto
escrevi essa nova peça pensando em você como Francesca. Não acho que outra pessoa serviria
tão bem.
Fico sem palavras a princípio. Imaginei que ele havia gostado do que viu no meu teste, caso
contrário não teria me dado o papel, mas isso é algo além. Não estou somente recebendo
prestígio de Edgar, estou impressionando-o.
— Obrigada. É uma honra ouvir isso de você — consigo dizer, sentindo meu coração
trovejando no peito.
O professor brinca com os dedos entrelaçados, refletindo sobre algo enquanto me observa.
— Tenho dezenas de peças engavetadas porque não conseguia encontrar a pessoa certa para
ser o rosto delas. Uma mulher jovem, centrada, ambiciosa e linda como você. Gostaria muito que
visse.
— Seria um prazer.
Seria perfeito!
— Mas não quero que isso atrapalhe seu último ano acadêmico. Nem seu trabalho fora daqui.
Você parece estar cuidando muito bem dos dois — ele cochicha a última parte como se fôssemos
cúmplices em uma conspiração.
Sinto minha testa franzir.
— Meu trabalho fora daqui?
Edgar abre um sorriso tímido, mas não desvia o olhar.
— Perdão, não sei se você considera um trabalho. Sei que algumas pessoas fazem para se
divertir, talvez seja o seu caso. De toda forma, tive o prazer de conhecer esse lado seu e fiquei
encantado. Você é talentosa em tudo que se dispõe a fazer.
Tão rápido quanto subiu, sinto a temperatura do meu corpo despencar.
Ninguém que eu conheço sabe sobre o meu trabalho extraoficial, nem mesmo minha mãe.
Não é vergonha que me faz manter minha fonte de renda em segredo, é a garantia de que consigo
controlar minha vida dupla contanto que nenhuma das partes interfira na outra. Sempre tomei
cuidado para manter minha identidade oculta na internet, então não entendo como justo o meu
professor descobriu meu segredo.
— Eu… — gaguejo, tentando decidir se mentir é uma boa ideia. — Desculpa, mas… como
você descobriu? Nunca mostro meu rosto nas fotos.
Preciso saber qual foi a brecha que deixei, ou nada impedirá que outras pessoas também
cheguem à mesma conclusão que Edgar.
O professor me olha como se já esperasse essa pergunta e estivesse ansioso para respondê-la.
— Você tem um sinal no seu ombro direito, logo acima da clavícula — diz, indicando com o
queixo o ponto ao qual se refere.
Um sinal?!
Examino meu ombro quase esperando que uma verruga tenha brotado nele da noite para o dia,
mas não há nada fora do lugar. Somente um sinal comum que passaria despercebido a não ser
por uma inspeção minuciosa.
— Uau. — Engulo em seco. — Ele é tão pequeno…
Como diabos ele pode ter prestado tanta atenção num detalhe como esse?
— Por favor, não fique constrangida — Edgar se adianta. — Sou um artista também, e
reconheço a arte por trás do que você faz lá.
— Não estou — disfarço, forçando meus músculos a relaxarem. — É que ninguém mais sabe.
Não seria interessante para a minha carreira se descobrissem, entende?
Esse não é bem o portfólio que se espera de alguém pronto para atuar em Malhação. Essa
informação nas mãos erradas e na hora errada pode muito bem me custar um papel grande.
Edgar sabe perfeitamente bem disso. Ele não revelaria nada que pudesse me prejudicar ou
afetar a imagem de sua nova peça. Não é?
— Sim, eles geralmente não gostam de ver a sexualização feminina a menos que estejam
lucrando com ela. Mas não se preocupe, seu segredo está seguro comigo.
Contenho um suspiro.
— Obrigada — digo, porém me arrependo em seguida.
Parece que estou agradecendo pelo elogio dele às minhas fotos íntimas e essa definitivamente
não era a intenção.
Deus, só piora.
Edgar volta a pegar sua taça e sorve um gole generoso.
Agradeço pela desculpa de virar a minha própria bebida de uma só vez. Lamento
amargamente não ter aceitado a taça cheia.
— Vou abrir o jogo com você, Sienna — fala, depois de alguns segundos em silêncio. — Sua
arte me ajudou com a minha arte. Fiquei horas imerso nas histórias que você conta usando seu
corpo. Quando terminei, me senti mais sóbrio do que alguma vez já estive, só que dessa vez eu
não senti falta do álcool. Foi como um processo de desintoxicação. Obrigado por isso.
Encaro o professor pelo que parece uma hora. Tenho medo de abrir a boca e descobrir que
perdi a voz para sempre.
O que se costuma dizer quando seu professor admite que anda comprando fotos íntimas suas?
Sou incapaz de pensar em uma resposta para isso.
Infelizmente, ele interpreta meu silêncio como uma deixa para continuar.
— Consegui ressuscitar alguns grandes projetos para os quais você serviria perfeitamente. É
quase como se tivessem sido feitos para você. E vou ficar mais do que satisfeito em levar você
aos círculos que frequento, se você estiver disposta a conhecer bons nomes. Só o que peço em
troca, e espero que não me interprete mal, é mais da sua arte.
— Quer fotos minhas? — pergunto, seca.
A situação saiu tanto do meu controle que devo ter perdido a capacidade de me surpreender.
Edgar leva a taça à boca sem nenhuma pressa, os olhos verdes ainda fixos em mim.
Não sou burra. Sei bem que o que o professor está pedindo vai além do que a maioria das
pessoas considera adequado. E ainda que Edgar seja quase intocável na Academia, algo como
isso jamais passaria batido se descoberto, pelo menos não para mim.
— Só se fizer sentido para você. É claro que isso vai depender das suas prioridades, por isso
não se sinta pressionada a nada — ele responde, dando de ombros conforme termina de bebericar
o que sobrou da sidra.
Entendo bem o que ele quer dizer. A depender das minhas prioridades, eu posso decidir se
vale a pena barganhar com meu corpo para ter Edgar Costacurta como meu patrono. Se escolher
o caminho do pudor e também o mais confortável, não receberei nada mais do professor. Por
outro lado, caso aceite usar meu corpo como moeda de troca, portas se abrirão em todas as
direções.
Não é uma escolha fácil, muito menos uma proposta que fico feliz em receber. É o tipo de
decisão que empurra meus limites em relação ao que estou disposta a fazer em nome do meu
futuro.
Toda vez que pensei haver algo que eu não poderia fazer pela minha carreira, acabei fazendo
sem pensar duas vezes. Não me orgulho de todas as escolhas que fiz na vida, mas já percorri um
caminho longo demais para parar agora. Não posso falhar. Vovó não iria querer que eu falhasse.
Brinco com a taça em minha mão, sustentando o olhar ávido do professor. É quando percebo
que não há uma resposta certa, ao menos não para nós dois.
— Podemos tentar — respondo por fim.
Espero nunca ter que vender minha alma também.
Edgar abre um sorriso satisfeito.
Eu teria encarado o gesto de forma totalmente diferente poucos minutos atrás. Agora, porém,
só consigo ver o lobo espreitando sua presa com a certeza de que garantiu a próxima refeição.
— Então vamos nos divertir muito — promete ele. — Vou garantir sua ascensão, querida.
Você merece o mundo.
Faço reflexo à expressão no rosto dele.
— Fico feliz que acredite tanto em mim, professor.
— Me chame de Edgar quando estiver aqui.
Aumento o sorriso.
— Está bem, Edgar.
Vejo um lampejo faceiro passar pelos olhos dele.
Talvez seja tarde demais. Talvez eu tenha acabado de vender minha alma, no final das contas.

Deixo a sala do professor achando que vou vomitar. A sidra agora pesa duas toneladas em meu
estômago, e não consigo me livrar do gosto amargo na boca.
Desço até o estacionamento o mais rápido que minhas pernas conseguem me levar. Tenho a
sensação de que, se não escapar logo, alguém descobrirá sobre a conversa que acabei de ter com
Edgar.
Me apresso para abrir a porta do Corolla de segunda mão que consegui comprar com o que
sobrou dos meus pagamentos, e saio do estacionamento.
Ainda me sinto estranha e o nó no estômago não se desfez por completo. Digo a mim mesma
que só fui pega de surpresa, por isso estou tendo dificuldade para digerir tudo. Só que, se me
permitisse analisar com cuidado, teria que admitir que estou abalada porque acreditei, por um
momento, que conquistei o prestígio de alguém como ele meramente com o meu esforço.
Não sou ingênua a ponto de ignorar as coisas que acontecem quando se é mulher em uma
indústria maquinada por homens poderosos, mas até então eu tinha esperança de que nem todos
eles fossem predadores.
Aguardo o sinal abrir enquanto me deixo levar pelos últimos acontecimentos.
Entretanto, antes que consiga colocar o carro em movimento outra vez, ouço um ruído
estridente ao mesmo tempo em que sou atingida por um solavanco, e de repente, tudo fica escuro
e quieto.

Não estou morta. Não estou morta. Não estou morta.


Sentindo uma onda de pânico se aproximar, me sento no banco e examino com mais atenção o
lugar onde estou.
As paredes, ao contrário do que a princípio achei, não são lisas. Têm uma superfície rochosa e
irregular, e se estendem por vários metros de altura.
É de se esperar que as janelas minúsculas na parte de cima não ajudem muito na entrada de ar,
mas noto que não faz calor aqui dentro. O que é estranho, pois tenho certeza de que o clima no
inferno não deveria ser ameno.
Você não está morta! E esse não é o inferno!
Reunindo o pouco de coragem que sinto dentro de mim, ponho-me de pé e sigo pela fileira de
bancos até o final, onde o vão se abre no meio.
O outro lado do salão parece exatamente igual ao que estou, o que me faz virar a cabeça e
analisar o que, se isso fosse uma igreja, seria o altar. Mas não é isso que encontro lá em cima.
Prendo o fôlego, tomada pelo horror.
No centro da plataforma, tão alto quanto as paredes, um imenso arco feito de ossos, crânios de
todos os tamanhos e esqueletos contorna uma abertura macabra.
O brilho carmesim intenso que ela emite não revela o que há lá dentro, mas não preciso ver
para saber que não gostaria de passar para o outro lado. O frio que sinto em meus ossos é
advertência suficiente.
Mesmo assim, me pego andando na direção do arco como se meus pés discordassem do meu
cérebro. Meus batimentos aceleram e gotas de suor escorrem por minhas costas, mas não consigo
me impedir de chegar mais e mais perto da passagem.
Não, preciso dar meia-volta e correr. Preciso achar uma saída daqui.
Mas o arco… O brilho é tão… Eu tenho que chegar até ele, senão…
— Paciência, criança.
A quebra do silêncio absoluto é tão dramática que estremeço.
Poucos centímetros separam minha mão já erguida do brilho da passagem, e se não fosse pela
interrupção vinda de algum ponto atrás de mim, eu a teria tocado sem nem perceber.
Com o sangue correndo depressa nos ouvidos e a boca seca, dou as costas para a passagem
macabra.
Não sei o que estava esperando encontrar, sequer tive tempo de pensar sobre isso, mas não
posso evitar o choque quando me deparo com a figura parada diante de mim.
Ah, merda. Estou morta pra caramba.
2: SIENNA
How Villains Are Made, Madalen Duke

A figura de branco me encara de volta, e apesar de enxergar traços humanos nos olhos e rosto,
sei de imediato que não se trata de alguém como eu. O par de asas em suas costas é um excelente
indicador desse fato.
Instintivamente, dou um passo para trás.
Por favor, não seja o Diabo.
— O quê?
É uma pergunta que não se restringe somente ao que ouvi. Ela contém toda a minha esperança
de saber o que está acontecendo aqui.
— Antes que você se aprofunde na Origem, primeiro devo guiá-la — diz o ser enigmático.
Me pego observando a aparição com o queixo caído, desde as vestes alvas destacando sua
silhueta, até os fios longos e dourados emoldurando seu rosto pálido. Lembra muito um ser
humano, mas ao mesmo tempo não parece com nada que eu já tenha visto antes.
Balanço a cabeça para dispersar os devaneios, incapaz de formular um pensamento coerente.
Estou sonhando. É isso.
Não estou morta.
Como posso estar morta? Minha vida está só começando!
— Origem? — É o que consigo dizer, depois de o que parece uma hora encarando a figura.
A criatura alada nem mesmo pestaneja.
— A Origem é onde todo ser humano foi formado — explica. — O desejo por esse
conhecimento vai atraí-la como um imã.
Volto a olhar para o arco atrás de mim, ainda sentindo o chamado da passagem. Porém agora
há algo sobrepondo-se ao apelo. É como se a criatura alada também estivesse me chamando e
mantendo as forças de atração equilibradas.
Devolvo a atenção à aparição.
— Estou morta? — pergunto, e apesar de já imaginar a resposta, sinto os olhos lacrimejarem.
Só mais alguns anos e eu teria realizado meu sonho. Teria deixado vovó orgulhosa de mim.
Onde quer que ela esteja agora, espero que me perdoe. Não há mais nada que eu possa fazer por
ela.
Os olhos da criatura suavizam um pouco, apesar da postura inabalável.
— Não está morta, criança. Pelo menos não ainda.
Abro a boca, mas não consigo emitir som algum de imediato.
Um calafrio me faz abraçar meu próprio corpo.
O que ele está dizendo? Se ainda não morri, como vim parar nesse lugar impossível? Quero
me agarrar à esperança de que ele falou a verdade, mas é difícil quando tudo ao meu redor é
prova do contrário.
— Então onde estou? — questiono por fim. — E quem é você?
— Sou Emeryel, da casta de Arcanjos a serviço do Divino. E esse é o lugar onde as almas
como a sua vêm para serem julgadas.
Arcanjos? Estou no céu? Isso só pode ser um mal-entendido. Tudo isso, um grande e terrível
mal-entendido.
— Mas você disse que não estou morta — balbucio, avançando alguns passos na direção dele.
— Como posso estar aqui se não estou morta?
Emeryel começa a diminuir a distância entre nós, sem nenhuma pressa.
— Porque esse é apenas o início da sua jornada. Na hora certa, você virá até aqui novamente
para ser julgada, mas antes, há algumas coisas que precisa saber.
Consigo ficar ainda mais confusa depois disso. Não estou morta e não vou ser julgada, mas
estou na companhia de um anjo. Definitivamente estou sonhando.
O Arcanjo chega mais perto e para ao meu lado, oferecendo-me uma mão.
— Deixe-me acompanhá-la à Origem — pede ele.
Me viro lentamente até ficar de frente para o arco outra vez.
Não parece uma boa ideia, mas o Arcanjo inspira uma confiança que nenhuma racionalidade
poderia explicar. E eu estaria mentindo se dissesse que jamais me enfiaria dentro dessa tal
Origem, com ou sem Emeryel para me guiar.
Respiro fundo, decidindo que é mais seguro aceitar a mão que ele me estende. Não sei de
onde vem essa constatação. Nem sequer conheço o Arcanjo, como posso confiar nele?
Seja como for, completamos juntos o caminho que falta até a passagem. Compelida pelo
encanto sobrenatural, eu sequer hesito ao atravessar o arco.
A princípio, nada de especial acontece. A atmosfera não muda, e não sou engolida pela
abertura, como achei que seria. Dois, três, dez passos adentro, e a única coisa que vejo é uma
neblina sem fim me cercando por todos os lados.
Me viro, esperando encontrar o Arcanjo ao meu lado, mas o que vejo me faz esquecer todo o
resto.
Em um canto onde a neblina se dissipou, me deparo com projeções que têm formas e
tamanhos reais.
Nelas, um homem de no máximo vinte e cinco anos começa a remover a camisa de costas
para o meu ponto de vista. Ele a descarta sem muito zelo e ajoelha-se em seguida. Identifico os
desenhos no chão sobre o qual o homem se prostra, pois formam um pentagrama perfeito.
O homem fecha os olhos por um momento, depois ergue uma taça que estava largada no
centro do desenho e a leva aos lábios. Quando deixa a taça de volta no chão, ela está vazia.
A projeção se desfaz naquele ponto, mas logo outra surge mais adiante. Me aproximo um
pouco mais, absorta na visão.
Na nova imagem, o mesmo homem agora está sentado no banco de um carro, mas há alguém
em cima dele.
Uma mulher, mais ou menos da minha idade, encontra-se no colo do rapaz, acariciando o
pescoço dele com os lábios. Ela ergue a cabeça para olhar para ele, e reconheço a versão mais
jovem da minha mãe.
Me viro em busca do Arcanjo, mas Emeryel indica com o queixo para que eu continue
assistindo.
O rapaz afaga a bochecha da minha mãe com as costas dos dedos e sorri brevemente antes de
falar alguma coisa. O espectro não tem sons, portanto tenho que usar a imaginação para
preencher as lacunas dos diálogos.
Ele está declarando os próprios sentimentos para ela? Talvez prefira ir para um lugar mais
confortável ou esteja de despedindo porque ficou tarde. Qualquer uma dessas coisas estaria
dentro do esperado.
Mais uma vez a projeção se desfaz, e eu continuo no encalço dos espectros. Agora, estou
vendo minha mãe sofrendo com as dores de parto, deitada em uma cama de hospital.
Entretanto, logo a imagem é substituída por outra. Uma Amélia revigorada segura seu bebê
enquanto um padre o salpica com água.
Já vi fotos suficientes do meu batismo para saber que esse bebê sou eu mesma.
— E assim o fruto da semente maldita torna-se digno da graça divina — diz Emeryel, e
quando termina de falar, o espectro se dissipa por completo.
A neblina volta a preencher o lugar novamente.
Encaro o Arcanjo em busca de explicações. Parece que tudo só fica mais confuso a cada
minuto.
— Aquele homem — começo, tentando organizar os pensamentos. — Está querendo dizer
que ele é o meu pai?
— Aquele de prole marcada para morte. Você foi concebida para sacrifício, criança. Nasceu
para ser útil ao inferno, e só está aqui hoje pelo ato de sua mãe, que consagrou sua alma ao céu e
possibilitou um julgamento para decidir a qual lado sua alma pertence.
Balanço a cabeça, certa de que ouvi mal.
— Calma aí. Meu pai fez uns rituais malucos e eu tenho que assumir as consequências? Mas
eu nem conheço esse homem — digo, esfregando as têmporas.
Ele também consegue enxergar o absurdo por trás disso, certo?
— O que foi selado está selado desde antes de você nascer — afirma o Arcanjo. — Não há
propósito em contestar sua origem, quando seu destino final está em uma balança nesse exato
momento.
Nada disso faz sentido. Faço o que posso para ignorar a dor se formando em minha cabeça,
mas a sensação ameaça se tornar debilitante.
— Não tenho responsabilidade nenhuma sobre esse acordo feito pelo meu pai. Como a alma é
minha, exijo que qualquer barganha em meu nome seja desfeita — insisto com a voz trêmula,
mas cerro os punhos até as unhas deixarem marcas na palma.
O Arcanjo balança a cabeça, embora não pareça chateado.
— Os termos de um pacto só podem ser revistos pelas partes detentoras. Como bem sabe, seu
pai não caminha mais entre os vivos, sendo assim, nenhuma força poderá interromper o curso do
contrato.
Minha respiração fica presa na garganta e a visão embota.
Nunca dediquei grandes reflexões à morte precoce do homem que me gerou, mas agora acho
muitíssimo merecida. Não sei nada sobre ele, não conheço suas motivações e desejos, tampouco
o que deu errado para que ele encontrasse seu fim tão cedo, porém fico feliz ao reconhecer o
poder infalível do Karma. Torço para que meu pai esteja ainda mais enrascado do que eu estou
agora.
— Então por que estou aqui se não há nada que eu possa fazer? — questiono, varrendo o
ambiente estéril com os olhos, de alguma forma esperando que as explicações brotem do chão.
Por favor, quero acordar desse pesadelo. Não pode ser real.
— Porque vai precisar de ajuda para continuar viva, criança. A batalha pela sua alma começa
hoje, e seus acusadores têm toda a intenção de tomá-la para si como foi acordado desde o
princípio. Se tiverem sucesso, você estará morta assim que completar vinte e um anos. Mas, se
provarmos que sua alma é boa, poderá voltar à sua vida normal, e quando seus dias sobre a Terra
chegarem ao fim, você poderá encontrar novo propósito no céu.
— E como vão saber se a minha alma é boa ou não? Vão pesar meu coração com uma pena,
como aquele deus egípcio lá?
Emeryel não parece se importar com o meu ceticismo e muito menos com minha referência a
Osíris.
— Por sete semanas, você será testada das mais diversas formas. Terá ao seu lado um
conselheiro e um tentador, ambos com o objetivo de garantir o direito à sua alma. Eles tentarão
guiá-la pelo caminho que cada um representa, e as decisões que tomar influenciarão o desfecho
desse julgamento, portanto recomendo cautela e discernimento — aconselha como se a questão
não pudesse ser mais trivial. — Em sete semanas, conheceremos exatamente a natureza da sua
alma.
Sinto meu coração entrar em descompasso outra vez.
— E você vai ser o meu conselheiro?
— Como Arcanjo, minha jurisdição é outra. Do outro lado, você terá uma acompanhante
celestial mais flexível. Lembre-se: nosso papel como defesa é ajudar você a salvar a si mesma.
Faça o que lhe for aconselhado, da melhor forma que puder. Seja uma boa pessoa.
Um calafrio percorre meu corpo. O que exatamente ser uma boa pessoa significa? Não afogo
filhotes de gatos, mas muitas das coisas que faço podem ser consideradas, no mínimo, duvidosas.
Trato de varrer o pensamento para o canto da mente. Lidarei com todas as implicâncias disso
mais tarde. Por enquanto, só preciso de mais informações.
— Segure meu braço, criança. Há outra coisa que precisa ver.
Mais por medo de ficar presa no nevoeiro do que por qualquer outra coisa, faço o que o
Arcanjo diz.
A mudança de ambiente é imediata. Não há mais neblina nos cercando, e a claridade daqui é
quase cegante.
Sinto uma nova latência na cabeça, mas me esforço para olhar ao redor.
Parece um… jardim. Tem grama no chão, arbustos nos cantos e flores de diferentes cores e
tamanhos crescendo por todo lado. Definitivamente um jardim.
Mas o que chama minha atenção não é a paisagem inocente. No final de uma trilha, noto
alguém parado em pé. E não está sozinho. Há um banco ornamentado ao seu lado, e nele alguém
mais aguarda, sentado de costas para mim.
A pessoa que está de pé — uma garota branca como a neve — me encara de volta. É tão
pálida que não existe contraste com os cabelos platinados na altura das orelhas. Assim como
Emeryel, asas saem de suas costas, chegando até a parte inferior de seu torso. Ela usa um vestido
que parece ter sido feito com fios de ouro.
Sinto sua energia daqui, e não é nada terna, mas inspira autoridade. Quase como a energia do
Arcanjo ao meu lado.
— Esse é o anjo que vai estar com você nas próximas semanas — diz Emeryel, plácido.
Meu coração martela dentro do peito. Se essa garota-neve é o anjo…
Cravo o olhar nas costas do que está sentado. De repente, começo a ouvir meu próprio sangue
sendo bombeado. Minhas entranhas se retorcem e fico com um gosto ruim na boca, mas empurro
a sensação para segundo plano.
— Aquele… — Minha voz falha. — Quem é aquele?
Por que ele me parece tão familiar? A forma como está sentado, com as costas ligeiramente
inclinadas para frente, desbloqueia memórias que jamais fui capaz de apagar da mente. E seu
cabelo… eu conheço esse cabelo.
Não, não conheço. Não posso conhecer. Estou vendo coisas.
O rosto do Arcanjo anuvia com a minha pergunta, o que lhe dá um ar melancólico que
imagino que anjos não deveriam ter.
— Oficialmente, seu julgamento começa hoje. Tudo que fizer ou deixar de fazer nas próximas
semanas ditará seu destino. Mas o inferno tem artimanhas e as usa para seu próprio benefício.
Não se pode esperar que obedeçam a lei, não é mesmo? — Ele deixa a pergunta pairar no ar. —
O céu faz o que pode para detê-los, mas são espertos e vez ou outra fogem do nosso jugo.
Escapam por onde podem, trapaceiam sempre que conseguem uma chance… e é claro que
arranjaram brechas para chegar a você antes do tempo determinado. Enviaram o melhor
enganador entre eles para brincar com a sua mente. Ele se infiltrou em sua vida há anos, e você
sequer sabia o que ele realmente é.
Um soco teria doído menos.
Pontos vermelhos surgem na minha visão conforme assimilo o que acabei de ouvir. Meus
batimentos cardíacos se tornam tão violentos que não passam mais despercebidos.
Isso não está acontecendo.
Nada disso é real.
Não. Não pode ser real.
Encaro as costas dele outra vez. Não vejo seu rosto, porém, por mais que eu queira acreditar
no contrário, não preciso disso para saber que é ele. Posso senti-lo. Tão intensamente que
respirar se torna uma tarefa manual. É como uma força gravitacional me atraindo para si.
Ele nada mais é que a minha assombração pessoal. Meu pior pesadelo. Meu sonho mais
ousado. Kai.
Há treze anos o conheço, a princípio como um amigo e cúmplice em momentos imprudentes,
depois como um estranho insensível, e, por último, como o desejo mais vital do meu coração. Ele
esteve sempre indo e voltando ao longo da minha vida, de modo que me acostumei à sua
presença, mas já fazem três anos desde a última vez que o vi.
Não quero, não posso acreditar que ele seja o meu carrasco. Ele foi o meu confidente, meu
cúmplice. Como poderia ser também meu inimigo?
— Ele só descansará quando conseguir arrastar você para o inferno, não esqueça disso —
Emeryel alerta. — Devo ir agora que meu papel foi cumprido. Não se preocupe, o anjo lhe dirá
tudo que precisa saber.
E, simples assim, o Arcanjo evapora, por pouco não levando meu equilíbrio com ele.
Meu estômago afunda. Quero gritar para que volte e me leve com ele.
O que vou fazer?
— Olá, Sienna. Sou Thalia, da casta das Virtudes.
A voz da garota-anjo me arranca do choque como um balde de gelo. Ela se aproximou até
estar a poucos metros de mim sem eu ao menos perceber.
Olho para o anjo, deixando as mãos penderem ao lado do meu corpo trêmulo. Não sei o que
ela espera que eu diga. Não consigo pensar direito.
Nunca ouvi falar de Virtudes, mas meu conhecimento religioso não é referência.
— Mas nosso pequeno desafio aqui não gosta muito de virtudes. — A voz cadenciada de Kai,
quando ele se aproxima, é como um tapa. Eu não estava preparada para encará-lo tão cedo. —
Estou errado, Sienna?
Quando nossos olhares se cruzam, sinto o exato momento em que meu coração pula uma
batida e então dispara até ser possível ouvi-lo em meus tímpanos.
A primeira coisa que noto é o que sempre noto primeiro. A mecha rebelde se soltando dos
cabelos pretos e caindo na testa. Está sempre lá, não importa o quanto ele a afaste com os dedos.
Ele é o mesmo desde a primeira vez que o vi. Muitas coisas mudam para mim ao longo dos
anos, mas ele é uma constante. Desde a camisa preta de mangas e a calça de linho nunca
trocadas, passando pela fina camada de barba por fazer, até a forma como fala comigo, como se
nenhum dia tivesse se passado desde nossa última conversa.
— O que está fazendo aqui? — externo o único pensamento coerente que meu cérebro é capaz
de produzir.
Sei a resposta, mas preciso ouvir dele.
Guardando as mãos no bolso, Kai suspira.
— Não menti para você, antes que me acuse. Você nunca perguntou se eu era um demônio
atrás da sua alma, então eu não contei.
Aperto os lábios, sentindo uma onda de raiva se misturar ao desalento que me preenche. Não
vou chorar. Mas é só o que quero fazer.
— Eu era uma criança — digo, a voz tremulando contra a minha vontade.
E você era meu amigo.
Ele era? Amigos não se aproximam na intenção de matar você. Acreditei no que queria
acreditar, pelo visto.
— Uma criança cruel — ele fala, sem tirar os olhos de mim. — Eu não estaria lá se não fosse.
Eu não era cruel. Ele quem sempre teve o hábito de pensar o pior de mim. Ele também era
muito bom em despertar esse meu lado. Eu devia ter imaginado, porque os sinais estavam lá o
tempo todo.
— Então você se esconde atrás de uma máscara para não assustar as pessoas com a sua
verdadeira aparência? — questiono, avaliando-o de cima a baixo. Um demônio em pele de deus.
A armadilha perfeita.
Ele estreita os olhos na minha direção.
— Acha que preciso de uma aparência tenebrosa para assustar as pessoas? Não deve acreditar
muito nisso, ou seu coração não estaria tão acelerado — retruca, parecendo incapaz de me levar a
sério.
Sinto o sangue subir ao meu rosto. Não costumo corar com facilidade, mas a sensação de estar
perto de Kai é de que ele não só sabe meus segredos mais embaraçosos, como também me fará
encará-los um por um.
O anjo dá alguns passos para se colocar ao meu lado, e de repente parece que estamos nós
duas contra o demônio.
— Ignore-o, Sienna — ela adverte. — Ele não merece a sua atenção.
Sei que não devo morder a isca de Kai, mas não aguento o olhar condescendente que me lança
como se eu fosse a criatura mais ingênua em que já pôs os olhos.
— Você nunca mais vai me influenciar. Não vou mais seguir seus conselhos.
Os cantos dos lábios de Kai se curvam de forma quase imperceptível. Só o vi sorrir uma única
vez, e mesmo naquela época, quando eu mal sabia o nome dele, não me preocupei tanto quanto
agora com o significado por trás do gesto.
— Você sabe ser um monstrinho sem precisar da minha ajuda, Sienna. Vamos ver até quando
você consegue se segurar — diz por fim, me desafiando a contra-argumentar.
— Vamos ver até quando você consegue se surpreender comigo — rebato, cruzando os braços
na frente do peito.
Não sinto nem metade da coragem que tento transmitir, mas preciso fingir que não sou um
alvo tão fácil assim.
O sorriso que Kai vinha contendo finalmente vem à tona, a satisfação iluminando seu rosto e
lhe dando um aspecto ainda mais ameaçador.
Ele estende o braço para uma roseira próxima e arranca uma flor. A passos lentos, diminui a
distância entre nós.
— Estou contando com isso — admite, pegando minha mão e depositando a rosa nela.
Me afasto como se tivesse levado um choque. Na pressa, esmago o caule da flor e sinto os
espinhos entrando na pele.
Torço para que nenhum deles note a forma como meu corpo reage ao toque. Pelo visto, dizer
ao meu cérebro que Kai é o inimigo não será suficiente. Eu terei que acreditar nisso.
— Comovente — a voz do anjo ressoa, tão flexível quanto aço. — Mas você não é mais
necessário aqui. Volte para o buraco de onde saiu, demônio.
O rosto de Kai assume uma expressão ferina ao redor do sorriso, mas ele não tem tempo para
uma réplica. Desaparece num piscar de olhos, sem deixar para trás resquícios de sua presença.
Atônita, demoro a desviar os olhos do ponto agora vazio à minha frente. O anjo logo ocupa
meu campo de visão.
— Agora, sim, podemos conversar — declara como se apenas tivesse espantado uma mosca
inconveniente.
— O que aconteceu com ele?
Olho ao redor para confirmar que Kai realmente sumiu.
— Eu o bani — diz Thalia, sem cerimônias. — Demônios estão sujeitos à autoridade
angelical. Gosto de fazer isso sempre que posso.
— Se você pode simplesmente bani-lo — raciocino, sentindo um vinco se formando na minha
testa —, por que não faz isso toda vez que ele aparecer? Ele não pode me tentar se não puder
falar comigo.
Thalia me olha de perto por um instante. Tão perto que noto pela primeira vez a cor
translúcida de seus olhos. Não parece haver nada para contrastar com a pouca pigmentação do
anjo.
— Não estarei com você enquanto ele estiver, Sienna. E nem ele estará por perto quando nós
estivermos juntas. As regras exigem que tanto o céu quanto o inferno tenham oportunidades de
exercer influência sobre você durante sete semanas. A parte boa é que, se você escapar da
condenação, nunca mais terá que lidar com esse demônio.
Encaro os olhos transparentes do anjo.
— Então o que devo fazer?
— Rejeite-o. Desvie de cada artimanha que ele tentar usar para te atrair. Fuja dele como ele
fugiria da cruz.
— Ele não pode me forçar a fazer algo que eu não queira?
Talvez ele já tenha me forçado a tomar decisões ruins. Não pode ter sido somente eu. Não sou
um monstrinho.
— A escolha de fazer ou não o que um de nós te disser é só sua. As consequências dessas
escolhas também. Não temos permissão para coagir ou ferir você — o anjo explica.
— Posso fazer isso. — Balanço a cabeça, talvez querendo convencer o anjo de que tenho a
situação sob controle, talvez querendo convencer a mim mesma. — Só preciso ignorar a
presença dele.
Ignorar quem nunca fui capaz de ignorar. Mas agora será mais fácil. Agora eu sei o que ele é e
qual é seu objetivo.
— Faça isso e teremos uma chance — diz Thalia. — Mas quero que entenda que quem você é
hoje é uma consequência da sua natureza. Você já nasceu comprometida pelo mal ao qual seu pai
sujeitou vocês dois. Sua alma não é como a da maioria dos seres humanos, porque já foi
corrompida uma vez. Você sente isso, não é? O que é claro para outras pessoas, é obscuro para
você. Certo e errado às vezes se misturam na sua cabeça.
Não sei o que responder. Na verdade, estou ocupada engolindo a bile em minha garganta.
Nunca tentei achar justificativas para quem sou, embora concorde que seja um tanto atípica.
Mas não acho que seja para tanto. Há pessoas piores, que fazem coisas piores, e nem por isso são
marcadas pelo diabo.
— Nunca soube que o motivo era esse — digo, depois de um instante.
Thalia cruza as mãos atrás das costas.
— A verdade é que estamos entrando no campo de batalha com as duas mãos amarradas e
uma espada de plástico. Eles têm a vantagem, mas é você quem tem mais a perder. E quanto
mais acuada a criatura, maior o dano do seu ataque.
Não é nada reconfortante, mas é útil para me lembrar da gravidade da situação.
— Tenho que ir agora — diz ela. — Nos veremos de novo quando você acordar.
— Espera, você não me disse nada! — me sobressalto.
— Disse tudo que você precisava saber agora.
— Mas e sobre ele? — meu tom vacila com a menção.
Uma linha se forma no cenho do anjo.
Então ela é capaz de ter emoções.
— Agora que sabe que ele é seu inimigo, tente esquecer os sentimentos que acha que sente
por ele. Ele mentiu para você esse tempo todo. Quando estiverem sozinhos, se lembre do que ele
deseja e do que você quer. Vai ver que não é tão difícil assim.
A verdade é que eu não confio em mim mesma na presença de Kai, mas nunca vou admitir
isso em voz alta. Em vez disso, fico em silêncio quando o anjo estica a mão e pressiona um dedo
no centro da minha testa, pegando-me de surpresa.
— Essa audiência acaba aqui. Até logo, Sienna.
Sou fisgada por um gancho invisível e içada para cima numa velocidade incompreensível,
embora a sensação seja de estar caindo em queda livre.
Um zumbido agudo enche meus ouvidos enquanto sou virada de cabeça para baixo, e então
não há mais nada.
O ERRO CERTO
10 anos antes...

Sienna teria adorado passar o sábado brincando com suas amigas, mas sua mãe a levou consigo
para comprar uma roupa adequada à festa de aniversário de seu chefe.
Amélia prometera que levaria somente alguns minutos, mas entre a busca minuciosa por uma
peça bonita e barata, e os assuntos infindáveis com as vendedoras, Sienna logo foi esquecida.
Sentia-se ociosa e já começando a ficar sonolenta pela falta de estímulo, mas resolveu
perambular pelos departamentos.
Não havia muitas pessoas na loja — na verdade, havia mais funcionários do que clientes, e a
garota aproveitou a privacidade para explorar as seções.
Passou pelas bolsas, depois pelos sapatos. Não demorou muito e chegou nas araras de roupa
feminina.
Sua mãe não costumava ir tão fundo no departamento, sempre se detinha nas peças
promocionais que mantinham na entrada.
Sienna foi se metendo entre as infinitas araras, atenta a algo que lhe chamasse a atenção.
Bocejando, a garota alcançou a divisa com o departamento masculino.
Um estande de maquiagem despertou sua curiosidade, e ela se aproximou para analisar os
objetos mais de perto. Afastou uma mariposa que pairava na prateleira e pegou um batom de cor
brilhante.
Não tinha permissão para usar maquiagem ainda, mas isso não a impedia de se interessar pelo
assunto. Sua mãe concordara que ela poderia começar a se maquiar no próximo ano, quando
completaria dez anos de idade, só que a garota não tinha gostado muito da ideia.
Seu aniversário de dez anos parecia que nunca chegaria. Não entendia porque não podia
começar agora.
Enquanto mexia nos diferentes tipos de produto, Sienna notou um movimento pela visão
periférica, e por um instante, pensou que fosse a mãe prestes a começar um sermão sobre a
adultização compulsória que as meninas sofriam desde cedo. Tirou a mão do estande no mesmo
segundo.
No entanto, quando olhou para o lado, não foi a mãe quem ela viu.
Parado diante de uma das araras da seção masculina, um rapaz analisava as peças e empurrava
os cabides para o lado como se nada ali fosse de seu agrado. Sienna o reconheceu de imediato,
mas não pôde evitar ficar espantada.
Não o via desde as férias do campeonato de hortas, apesar de tê-lo procurado todas as vezes
que voltara à casa dos avós. Tinha finalmente se convencido de que o mais novo amigo havia se
mudado, ou que o avô o tivesse dispensado do serviço, por mais que este tenha afirmado várias
vezes que não havia nenhum rapaz novo no plantio.
A avó deduziu que a menina tinha criado para si um amigo imaginário, e depois de um tempo,
Sienna passou a acreditar nisso também.
Mas nada explicava o porquê de não ser capaz de conjurá-lo outra vez. E ela tentara muitas
vezes depois daquele dia.
Queria contar a ele a reação de Luísa quando viu as hortaliças deterioradas embaixo da terra.
Queria contar que gostou da sensação, pois tinha certeza de que ele não a julgaria. E que, embora
tenha ficado de castigo até o dia de voltar para casa, o pêssego que comeu naquele dia foi sua
refeição favorita. Só que ele não estava em lugar algum para ser encontrado.
Entretanto, lá estava o rapaz, parado bem diante de Sienna enquanto descartava peças de
roupa que nunca usaria.
Ela imaginou que, se ele era tão exigente assim, isso explicava por que ele ainda estava
vestindo a mesma camisa preta de botão e a calça de linho cinza de quando ela o conheceu, dois
anos atrás. Sem falar que continuava descalço, o que Sienna achou muito estranho, já que não
estavam mais no campo.
Teria que ajudá-lo a encontrar roupas novas e sapatos o quanto antes, afinal, era para isso que
serviam os amigos.
Correu na direção do amigo ressurgido, sentindo-se mais desperta agora.
— Você voltou!
O rapaz parou o que estava fazendo somente por dois segundos, para olhar para ela, e em
seguida voltou a mexer na arara.
— Ah, oi, Sienna — falou, e Sienna sentiu como se nenhum dia tivesse se passado desde que
vira o amigo pela última vez. Ele se lembrava dela como ela se lembrava dele.
— Eu procurei você na lagoa. Onde você tava?
— Estive trabalhando. Tenho outras pessoas para visitar, sabe? Mas nos encontramos de
novo, não é bacana?
Sienna esquecera que, como uma pessoa adulta, seu amigo também precisava trabalhar, e
corou um pouco por ter sido tão ingênua. Ele não era invenção de sua cabeça, apenas estava
trabalhando e vivendo sua própria vida.
— Você precisa de uma roupa nova? — perguntou ela, se aproximando mais da arara. — E,
humm… sapatos? Posso te ajudar a escolher.
O amigo suspirou, derrotado, finalmente largando os cabides.
— Não, acho que não pode me ajudar. Essas roupas não durariam um dia onde eu moro.
A garota arqueou as sobrancelhas, impressionada.
— Você mora perto de um vulcão?
Tinha tido uma aula sobre vulcões na semana anterior, e agora conhecia a história de uma
cidade chamada Pompeia, que fora engolida pela lava muito antes de ela nascer. Achava que
vulcões eram a coisa mais assombrosa que já ouvira falar, e não gostava da ideia de ter um
amigo morando próximo a um.
— Claro que não — respondeu ele, e Sienna ficou tão aliviada que esqueceu de perguntar que
outro lugar era capaz de destruir roupas tão facilmente.
O rapaz pôs ambas as mãos na cintura e a encarou.
— E onde estão as suas compras?
Sienna deu de ombros, indiferente.
— Já ganhei roupas no mês passado — disse ela.
Além de que, sua mãe havia deixado claro que elas só iriam comprar um vestido e nada mais.
Com o que Amélia ganhava no emprego atual, elas não podiam se dar a muitos luxos. Mas,
involuntariamente, Sienna lembrou-se do estande de maquiagem e do batom que tinha achado
bonito.
Seu amigo franziu o cenho, pensando.
Agora que estava reparando, a garota percebeu que o rapaz era muito parecido com seu
professor de artes. Tinha o mesmo tom de azul dos olhos, as sobrancelhas espessas e o cabelo cor
de nanquim que não se decidia por uma única direção.
A diferença estava apenas na idade. Enquanto o professor tinha lá seus quarenta anos, seu
amigo a lembrava do irmão mais velho de Luísa, que estava na faculdade e que ela às vezes via
quando ia visitar os avós.
O amigo, para ela, era o adulto mais diferente que conhecia — até mais que a sua mãe, que a
tivera com dezenove anos de idade e sempre fizera questão de ser uma mãe descolada.
O rapaz se parecia com um adulto, falava como um adulto, mas o mais esquisito: não a tratava
como criança. Se dirigia a ela de igual para igual e sem enrolação, coisa que nunca acontecia
com os outros. Naquele momento, ela passou a gostar ainda mais dele.
— E não tem mais nada que queira ganhar? — questionou ele, confuso.
A menina olhou de relance para o estande, subitamente tímida.
Ele riria dela por desejar um batom… mas talvez não. Afinal, não a repreendeu quando ela
contara sobre a trapaça de Luísa na horta, pelo contrário, a incentivou a ir atrás de justiça. Era
por isso que ele hoje era seu amigo.
Resolveu que confiaria nele novamente.
— Sim, tem um batom.
Ela andou de volta até a prateleira de produtos.
O rapaz surgiu ao lado dela, estudando o conteúdo do estande.
Sienna pegou o batom que havia chamado sua atenção e o cobiçou mais um pouco. Por que o
próximo ano parecia tão longe?
— Então por que ele ainda está na prateleira? — ele indagou.
Ela balançou a cabeça, rejeitando a ideia.
— Mamãe acha que sou muito nova para usar maquiagem. Ela não vai me deixar levar.
Não pretendia soar tão miserável, mas a mágoa era óbvia.
Seu amigo cruzou as mãos atrás das costas.
— Não deveria deixar para depois o que seu coração pede agora, Sienna. Nem sempre há um
depois.
Sienna arquejou, querendo negar a acusação, mas ele tinha razão.
Ela estava sempre deixando para trás coisas que desejava ter ou fazer, pois havia sempre algo
para impedi-la. Fosse pela falta de condições, a teimosia da mãe ou a proteção exagerada dos
avós, Sienna sentia que toda sua vida se baseava em esperar por algo que ainda aconteceria.
Queria poder fazer mais, entretanto, ainda tinha suas limitações…
— Eu não tenho dinheiro — retrucou, amuada. — Não conseguiria comprar.
— Às vezes — disse o rapaz —, nós simplesmente pegamos o que merecemos.
A garota ouviu. Considerou. Analisou suas opções. Poderia chamar a mãe e tentar convencê-
la de que precisava daquele batom, para logo em seguida ouvir um “você está anos adiantada
para esta conversa”, ou podia escolher a opção mais fácil.
Sabia que não era certo, que não devia pegar coisas que pertenciam aos outros e nem levar
algo consigo sem pagar. Mas Sienna duvidava que a pessoa que fosse dona da loja sentiria falta
de um objeto tão pequeno, tampouco que sofreria por isso. Mesmo assim, hesitou.
Ergueu o olhar para o amigo, que aguardava pacientemente.
— Roubar não é errado? — perguntou, cheia de dilemas internos.
O rapaz deu de ombros.
— Parece errado para você?
Na verdade, parecia certo que ela tivesse seu tão desejado batom, de fato.
O rosto de Sienna se iluminou de repente. Ela pensou que o amigo deveria ter razão, nem
sempre um erro era um erro, principalmente se não parecia errado.
De qualquer forma, ela decidiu naquele momento que o argumento bastaria. Aumentou o
aperto em volta do batom e o meteu no bolso da salopete tão rápido que nem o olhar mais
treinado teria notado alguma coisa. Por sorte, uma mariposa tinha escolhido justo a câmera
daquela seção para descansar.
Seu estômago vibrou com a excitação. Quando voltou a olhar para o amigo, ele deu-lhe uma
piscadela.
Mais uma vez, Sienna o tinha como cúmplice, e não poderia ter pedido por alguém melhor.
— Ah, aqui está ela — disse alguém, e Sienna se virou de supetão.
Uma mulher de olhos puxados e cabelos pretos sorriu para ela, e logo atrás surgiu sua mãe,
esbaforida.
— Por Deus, achei que alguém tivesse levado você! — Amélia exclamou, levando uma mão
ao peito.
Sienna achou que seu coração poderia pular pela boca a qualquer momento, embora nenhuma
das mulheres a estivesse repreendendo.
Não tinha sido pega no flagra, mas por muito pouco. Rapidamente cuidou em tirar a mão do
bolso da roupa.
— Eu estava olhando as peças. — O que não era mentira. Mas também não era toda a
verdade.
Algum tempo depois, Sienna se lembraria desse momento e refletiria sobre o quanto achou
fácil mentir para a mãe.
— Pobrezinha, deixei você sozinha por muito tempo, não foi? — lamentou sua mãe, trazendo-
a para junto de si.
— Eu não fiquei sozinha.
Sienna se virou para ver seu cúmplice, ansiosa para enfim apresentá-lo à mãe (que também
acreditou na versão do amigo imaginário), mas não havia mais ninguém no espaço além delas
três.
Quis chamá-lo, mas percebeu que não sabia seu nome. Quando a mãe começou a levá-las
departamento afora, a garota resolveu que, caso voltasse a encontrar o amigo, perguntaria seu
nome antes que ele sumisse de novo.
3: SIENNA
Way Down We Go, Kaleo

Quando volto a me sentir estável de novo, movo as pálpebras.


A mudança de cenário é tão inesperada que pisco várias vezes para compreender o que estou
vendo.
Uma porta fechada, uma poltrona ao lado dela, e a minha mãe se esticando na direção de um
ar-condicionado velho.
Com uma sensação de completo desamparo, limpo minha garganta obstruída.
Minha mãe se vira no mesmo instante, de olhos arregalados.
— Ah, querida — ela arqueja, correndo até a cama onde estou deitada. — Que susto você me
deu.
Meus olhos reclamam da secura e minha língua pesa três vezes mais na boca, no entanto, o
que mais me incomoda é o sentimento de que meu coração se quebrou em mil pedacinhos. É
como acordar de um pesadelo terrível e não ser capaz de expulsar a angústia que ele causou.
Mudo o foco para mamãe, que começou a esfregar meu braço dormente, e me dou conta de
que ela ainda não parou de falar.
— Ele disse que não houve concussão, mas também não soube explicar com certeza por que
você não acordava nunca. Aparentemente você estava exausta e o seu corpo aproveitou a chance
para se recuperar. Filha, você anda pulando noites de sono? Sabe o que penso sobre essa sua
faculdade, não sabe? Parece que querem comer vocês vivos — continua a dizer.
Começo a movimentar o braço para recuperar a sensibilidade, mas paro quando sinto fisgadas
e vejo a quantidade de agulhas enfiadas no braço que minha mãe afaga. Ainda que não doa tanto,
me sinto instantaneamente nauseada.
— O que aconteceu? — pergunto, surpresa que minha voz tenha encontrado caminho através
da areia na minha garganta.
Minha mãe franze as sobrancelhas.
— Você não se lembra? Um carro avançou no sinal e bateu no seu quando você estava
voltando da faculdade. O outro motorista está bem, só fraturou o braço. Mas foi um milagre você
não ter se ferido — explica ela, perdendo a força da voz na última frase.
Minha boca fica seca de repente.
Um acidente? Não pode ser. Como isso é possível, se não sinto nenhuma mudança no corpo
além da letargia que o sono causou? Deveria ao menos estar um pouco dolorida, não?
Começo a questionar a informação, mas nesse mesmo instante minhas memórias começam a
voltar ao lugar.
O anúncio de elenco, a conversa na sala do professor, minha pressa para fugir da Academia…
E o que imagino ter sido o acidente, apesar de não ter visto nada além do breu que se seguiu. A
próxima lembrança já é daquele lugar. Do sonho.
Então eu realmente sofri um acidente? Que desconcertante.
Olho ao redor com mais atenção, notando os tripés com soro e outras substâncias, e o
maquinário hospitalar em torno da minha cama.
Não faço ideia de como cheguei aqui, ou como minha mãe chegou em São Paulo tão rápido. E
agora que paro para pensar…
— Quanto tempo eu dormi?
— Faz pouco mais de quatro horas que você deu entrada. Nenhum arranhão, mas não
acordava por nada.
Arregalo os olhos.
Quatro horas?! Pelo amor de Deus!
Se estive a mercê do meu subconsciente todo esse tempo, não é de se admirar que o resultado
tenha sido um sonho tão criativo.
Anjos, demônios e pactos com o Diabo? Acho que as noites mal dormidas estão finalmente
cobrando seu preço.
A porta se abre de repente e um homem de jaleco entra no quarto com uma prancheta em
mãos. O médico sorri ao me ver encarando-o.
— Ah, está acordada — diz ele, se aproximando da cama. — Teve um ótimo progresso,
Sienna. Me chamo Félix, fiquei responsável por você hoje.
Leio "Dr. Félix" no bordado do jaleco ao mesmo tempo que ele se apresenta.
— O que os exames disseram, doutor? — mamãe se precipita.
Dr. Félix balança a prancheta no ar, ainda sorrindo.
— Não tem absolutamente nada fora do lugar. A jovem aqui dormiu até descansar o suficiente
para receber alta, pelo visto.
— Ela já pode ir para casa, então?
— Se estiver se sentindo bem, não vejo por que não. Só recomendo repouso nas próximas
horas e uma alimentação leve.
Balanço a cabeça, aliviada. Quero sair daqui o mais rápido possível. Perdi uma tarde inteira de
afazeres, e se continuar deitada nessa cama, vou perder a noite também.
Impaciente, me esforço para ficar sentada.
— Ah, a enfermeira virá remover o cateter daqui a pouco — adianta o médico, vendo que
pareço pronta para arrancar as agulhas por conta própria.
— Obrigada, doutor. — Não quero parecer uma megera.
O homem faz um gesto com a cabeça e deixa o quarto.
— Excelente rapaz, esse Dr. Félix — mamãe comenta depois de o médico ter saído,
levantando uma sobrancelha na minha direção.
Eu rio a contragosto. É bom finalmente acordar de um pesadelo.

A enfermeira demora quase meia hora para chegar e remover os cateteres.


Nesse ínterim, minha mãe conta que já estava perto da cidade, almoçando com a
cerimonialista de seu casamento, quando recebeu a ligação da polícia. Ela abandonou tudo e
dirigiu o resto do caminho até o hospital, sabendo quase nada sobre o meu estado.
Odeio tê-la preocupado nessa fase tão corrida por conta do casamento que se aproxima. Ela
nunca se queixaria de ter que vir em meu socorro, mas evito envolvê-la nos meus problemas
sempre que possível. Minha mãe já fez muito por mim e não é justo continuar pedindo.
Quando enfim recebo autorização, me levanto para ir trocar de roupa.
— Tem certeza que não está sentindo nada? Posso dormir com você hoje e voltar para o
interior pela manhã — mamãe pergunta pela terceira vez, me interceptando a caminho do
banheiro.
Retribuo o olhar dela, sem saber o que mais posso dizer para tranquilizá-la.
Minha mãe e eu somos parecidas em muitas coisas, desde o castanho dos olhos e a estatura
mediana, ao tom quente da pele. Também somos teimosas no geral, mas nessa última ela ainda
consegue me superar. Agora que vovó não está mais aqui, está para nascer alguém mais zeloso
com as pessoas que ama do que Amélia Bianco.
— Mãe, eu estou ótima. De verdade.
Ela suspira. Antes que tenha a chance de recomeçar o dilema, eu corro para o banheiro.
Tiro a peça hospitalar e aproveito para me analisar no espelho em busca de hematomas ou
arranhões que possam ter deixado passar nos exames.
Surpreendentemente, não há indícios de que estive envolvida em um acidente.
O carro, segundo mamãe, perdeu a porta do motorista por causa da colisão, mas foi levado a
uma oficina e estará recuperado em alguns dias.
Admito que dei sorte ao escapar ilesa da situação, e mais uma vez me pego pensando sobre o
sonho estranho.
Ainda está vívido na minha memória, ao contrário dos outros sonhos, que se desvanecem em
poucos minutos. A ideia, por mais absurda que seja, custa a ser varrida para o canto da minha
mente. Ainda sinto o gosto amargo na boca por tudo que ouvi.
Começo a vestir a calça, mas paro quando sinto uma ardência na mão.
Pequenos furos avermelhados fazem uma trilha na palma e ao longo dos dedos.
Furos que espinhos poderiam ter causado. Espinhos de uma rosa.
O ar fica preso em meu pulmão com o choque. Procuro por algo para me apoiar, para o caso
das pernas vacilarem, mas de alguma forma sou capaz de me manter no lugar, mesmo que meu
coração ameace escapar por entre as costelas.
Não pode ser real. Não é real.
Tive um sonho. Vi memórias que não são minhas, de fatos que eu nunca poderia ter
presenciado. E o pior: ouvi coisas muitíssimo preocupantes. Coisas que podem me destruir.
Sem muita convicção, torço para que eu tenha enlouquecido. Entre essa alternativa e o futuro
que o Arcanjo previu para mim, não restam dúvidas de qual causará mais estrago.
Se tiverem sucesso, você estará morta assim que completar vinte e um anos.
Sinto os pelos da minha nuca ficarem em pé.
Ele se referia a Kai quando me disse isso. O mesmo Kai que eu achei que conhecia. Que me
escondeu toda a verdade durante treze anos.
Involuntariamente, repasso todas as vezes que encontrei Kai na última década.
Ele zombou de mim e me tirou do sério muitas vezes. Sempre foi um provocador de primeira.
Mas é de se esperar que um demônio tenha mais formas de prejudicar uma pessoa, não é? Por
que nunca me tratou mal, se seu objetivo era me derrotar? E como pode ser tão belo, sendo o que
é?
Aperto os olhos até enxergar pontinhos brilhantes, forçando a passagem do oxigênio pelas
narinas.
O que estou sentindo é… medo? Raiva? Quero fugir e enfrentá-lo ao mesmo tempo. Quero
nunca mais dirigir uma única palavra a ele, mas a ideia de xingá-lo de todos os nomes sujos
desse mundo também me atrai.
Mas não.
Não posso acreditar em nada nisso.
Tudo não passou de um sonho. É isso. Vou dormir e, quando acordar amanhã, tudo estará bem
de novo. Pelo meu próprio bem, é melhor que esteja.
4: KAI
You Can Run, Adam Jones

Demônios são trapaceiros por natureza, mas alguns de nós simplesmente exalam mentiras pelos
poros. Enganam toda vez que abrem a boca e quase nunca são refutados. A plateia ouve,
arrebatada, sem sequer perceber que está sendo manipulada.
O demônio em questão sorri como se desafiasse qualquer um a cogitar que alguém tão
brilhante quanto ele estivesse dizendo algo diferente da verdade.
Vocês me conhecem, ele diz, porque é óbvio. Confiem em nossas decisões, exige o outro, e a
coroa em sua cabeça inibe os opositores de pensarem diferente.
Ninguém diz uma palavra contrária quando Mammon, Príncipe da Cidadela e Alto
Comandante da Ordem dos Enganadores, dá o sinal para que o carrasco arranque três cabeças
com um só golpe da espada.
O sangue jorra e banha uma parte dos que assistem a execução na primeira fileira. Pelo menos
não me dei ao trabalho de vestir um uniforme limpo antes de vir, senão esse encontro seria ainda
mais desagradável.
Quando os corpos decapitados tombam no chão, ninguém na nossa formação comemora. Mais
da metade sequer estaria aqui se não fosse obrigada.
Assistiríamos com prazer covardes sendo estripados lentamente, mas não há sensação de
deleite quando bravos soldados são aniquilados por discordar de uma regência tirânica. Acredite
ou não, até demônios têm princípios. Os únicos satisfeitos com a matança estão ao lado do
carrasco.
Em pé ao lado de Mammon, como só um cão bem treinado estaria, Lorchi encontra meu
olhar. Ele mostra os dentes para garantir que eu saiba o quanto está contente com esse momento,
como se seu último monólogo antes da execução não deixasse isso claro o bastante.
Não dou o que ele quer. Permaneço impassível em meu posto, com as botas alinhadas e as
mãos atrás das costas, conforme observamos novos soldados se adiantando para levar embora os
corpos caídos.
Quando resta apenas o mar de sangue no chão, Mammon suspira alto o suficiente para que
toda a praça ouça. Ele fecha ambos os olhos, mas o terceiro, no centro de sua testa, continua
atento à nossa formação.
— Que o fim desses rebeldes sirva de exemplo para os que ousarem ficar contra a coroa. —
Sua voz áspera reverbera pelo espaço aberto.
Um coro de botas batendo no chão é a resposta que o Comandante recebe. Significa que
estamos de acordo com ele. Qualquer coisa além disso não acabaria bem.
— Não sejam como eles — Lorchi complementa de seu poleiro. — Porque implacável será o
destino dos insurgentes e daqueles que simpatizam com eles.
As palavras são lançadas para mim sem o mínimo de sutileza.
Na fileira atrás de mim, ouço Baelgrim cuspir uma ofensa ao mesmo tempo em que outra
rodada de botas esmagando o chão quebra o silêncio. Aprecio a lealdade do meu parceiro, mas
seu desprezo por Lorchi não é algo novo.
— Permissão para falar, Comandante — alguém brada nas fileiras de trás.
Agora com todos os olhos abertos, Mammon abana uma mão displicente no ar, deixando que
falem.
— Serão punidos também os que tiverem relações estreitas com os traidores, mesmo que não
estejam envolvidos nas conspirações?
Sem esperar permissão, Lorchi começa a responder no lugar do Comandante.
— Você tira os pais de um filhote de Beemote e sabe o que acontece? — indaga, nos dando
mais uma de suas infinitas retóricas. — Ele cresce e caça você até conseguir pagar na mesma
moeda. É por isso que não deixamos o filhote crescer. Nós o matamos antes que se volte contra
nós.
— Entretanto — Mammon toma a palavra, transformando a vaidade de Lorchi em azedume, a
julgar pelo músculo se contraindo em seu maxilar —, faremos bem se considerarmos o
argumento do Alto Maligenii.
Sinto os olhares das fileiras atrás de mim no instante em que os olhos do Comandante me
encontram.
Com a menção direta, até mesmo Lorchi é obrigado a me dedicar sua atenção.
Aproveito a deixa e dou um passo à frente.
— Mantenho minha opinião, Comandante — me faço ouvir por toda a formação. — A Ordem
já está desfalcada pelo trabalho duro com as bestas. Quanto mais membros punirmos, menores
ficarão nossas legiões.
Ninguém com amor ao próprio pescoço ousaria tomar para si a réplica do Comandante, mas
Lorchi já passou dessa fase há muito tempo.
— E o que você sugere, Alto Maligenii? — ele cospe meu título com desdém. — Que
tratemos os traidores com a hospitalidade que guardamos para os amigos? Aposto que você faria
exatamente isso, se pudesse.
Não desvio os olhos de Mammon. Sabendo que tenho a atenção dele, declaro:
— Deixo essa decisão nas mãos do Alto Comandante, confiando em seu julgamento.
Minha resposta é suficiente para calar Lorchi, pelo menos por agora.
Devolvi a palavra ao Comandante, e até mesmo seu lacaio mais fiel sabe quando dar um passo
atrás.
Mammon pondera a questão com os dedos entremeados nos fios da barba cinza, que se mescla
ao cabelo da mesma cor.
Aguardamos em absoluto silêncio, alguns tensos, outros entediados. Deixo que Lorchi se
pergunte em qual dos dois grupos eu me encaixo.
O último decreto de Mammon vem para pôr um ponto final à reunião.
— Vamos lidar com os rebeldes apenas — decide. — Não precisamos inventar mais inimigos
do que os que já temos.
Outro coro de pés.
Satisfeito, Mammon dá as costas e deixa a cena da execução antes que mais assuntos surjam
para consumir seu tempo.
Rapidamente as fileiras se dispersam e todos começam a voltar para seus postos.
Como não tenho pressa, aguardo a praça se esvaziar enquanto observo um par de demônios
começar a lavar o sangue do chão. E não sou o único a permanecer.
Baelgrim para ao meu lado e cruza os braços bem na hora em que Lorchi passa e se detém na
nossa frente.
— Você sabe por que ele ainda te dá ouvidos? — Ele não espera uma resposta, então continuo
em silêncio. — Porque ele nunca viu alguém trazer o número de almas que você trouxe. Ele te
acha um grande soldado, mas só porque nunca viu um de verdade na frente dele. Quando isso
acontecer, ele não vai nem olhar nessa sua cara de novo.
O título de Alto Maligenii foi criado especialmente para mim, quando cada respiração minha
era reservada ao propósito de arrastar almas para o inferno. Mammon em pessoa me ofereceu a
honraria, e mesmo agora, depois de ter abandonado meus antigos métodos, ninguém mais
reclamou o título para si. Mas, pelo visto, Lorchi parece determinado a mudar isso.
Tiro um lenço de um dos vários bolsos da calça e esfrego uma mancha de sangue no meu
antebraço.
— Se você começar a trazer almas na mesma intensidade com que anda destruindo elas, não
vai precisar esperar muito — murmuro de volta.
Os olhos de Lorchi, um violeta e outro azul, ganham uma aura homicida antes de ele dar as
costas e marchar a passadas largas para longe.
Bael cospe no chão, incapaz de disfarçar a repulsa por mais tempo.
— Como você aguenta esse pedaço de bosta? Já poderíamos ter nos livrado dele — diz,
torcendo o nariz adunco.
— Ele é útil — respondo, ciente de que já tivemos uma discussão parecida. — Se não fosse
por ele se gabando por ter a confiança de Mammon, de que outra forma a gente descobriria os
próximos passos do Comandante?
Bael checa os arredores para confirmar que ninguém está tentando bisbilhotar.
— Talvez se você só perguntasse, ele lhe diria. O que de tão bom você fez para cair nas
graças do Comandante? E não me venha com essa merda de Alto Maleginii, antes mesmo disso
ele já te dava ouvidos.
Como não éramos próximos na época em que tudo começou, há muitas coisas sobre minha
relação com Mammon que Baelgrim não entende. Talvez um dia, quando nenhum de nós tiver
nada melhor para fazer, eu compartilhe algumas histórias com ele.
Dou de ombros, guardando o lenço quando percebo que nada além de um banho vai limpar
todo o sangue que respingou sobre nós.
— Ele gosta do meu pragmatismo.
Houve um tempo, assim que minha vida acabou e eu cheguei na Cidadela, em que Mammon
decidiu que seria interessante ter um pupilo para ensinar. Não sei se fui escolhido ao acaso,
apenas porque estava mais perto dele naquele momento, ou se ele viu algo em mim que julgou
promissor.
De um jeito ou de outro, a decisão de Mammon naquela época determinou quem eu seria hoje.
Os anos que passei ao redor dele e todas as lições que aprendi, acima de tudo me ensinaram que
a Ordem ficará melhor sem seu atual Comandante.
— Vejamos se ele ainda vai gostar quando você pôr a cabeça dele numa estaca — meu braço
direito murmura.
Pondero a questão por um momento, observando a lama avermelhada que escorre do local da
execução. Por fim, dou um tapinha no ombro de Bael.
— Não acho que ele vai estar em condições de gostar de qualquer coisa que seja — digo.
Baelgrim abre um sorriso carregado de malícia com o qual já estou acostumado. Seus olhos
dourados brilham e a faceta sempre mal-humorada vacila por um momento.
— Bem… está na hora, não está?
Não respondo porque não há necessidade. Nós dois sabemos o que precisa ser feito agora.
Discutimos e planejamos incansáveis vezes. Esse é o nosso ponto de partida, e depois daqui não
há mais volta.
— Depois de hoje, os ânimos não podiam estar piores — ele prossegue. — Você nem vai
precisar ir muito longe para conseguir aliados para o clã.
Bael está certo. Cada vez que alguém da Ordem é morto por não concordar com as sujeiras de
Mammon e sua corja, o número de demônios prontos para apunhalá-lo pelas costas aumenta.
Muitos deles ficariam mais do que felizes em começar um motim para tirá-los do poder. Bael e
eu só vamos facilitar a tarefa.
— Vou começar pelo Cemitério — declaro.
O Cemitério das Bestas é onde muitos demônios são forjados para a sobrevivência. São ruínas
na região da Cidadela, onde feras de muitos tipos e tamanhos se proliferam, e já há algum tempo
tem servido de esconderijo para membros desgarrados da Ordem que se opuseram ao
Comandante e escaparam antes de serem mortos.
À medida que foi crescendo, o clã aprendeu a viver nos caminhos subterrâneos do Cemitério e
resistir às bestas que rondam a região. São demônios duros na queda, valiosos em combate e, o
mais importante, que nutrem um ódio genuíno por Mammon.
Se eu puder convencê-los a lutar comigo, Mammon nem sequer saberá de onde virá o golpe
que o derrubará.
Considerei a possibilidade de ter que defender minha decisão, mas Bael não se opõe. Em vez
disso, ele balança a cabeça, fazendo as mechas escuras de cabelo dançarem em seus ombros, e
puxa uma generosa lufada de ar.
— Me diga se precisar que eu cubra seu turno com a humana — é tudo o que ele diz.
Por um segundo, as estratégias são varridas para o canto da minha mente e a imagem dela
preenche o plano central.
Sienna. Ela está magoada com a minha omissão e parece convencida de que eu era a
influência negativa. Como se sua natureza não fosse má o bastante.
Fui enviado para preparar o terreno, para torná-la mais suscetível aos próprios impulsos
perversos, mas acabei me surpreendendo. Só precisei sentar e assistir.
Se eu não a conhecesse bem, talvez cogitasse intensificar minha abordagem para
desestabilizá-la. Mas tenho minhas razões para acreditar que esse vai ser meu trabalho mais fácil
até agora.
— Não se preocupe com isso — dispenso, me dirigindo para uma das saídas. — Ela se
arrastaria até aqui sozinha se eu não estivesse lá para ajudar.
Uma preocupação a menos.
Agora só tenho uma coroa para roubar.
O PÁSSARO
8 anos antes...

Seu dedo latejava de dor, mas Sienna não se importava. Na verdade, passou a apreciar a
sensação, à medida que o papel ia se transformando.
Estava há duas horas sentada sob a sombra da árvore, pintando com o lápis preto todos os
cantos das folhas em branco do seu diário.
Não via e não ouvia mais nada além da música saindo dos fones pendurados em seus ouvidos.
Quando bateu a porta e saiu marchando rumo ao campo, Sienna tinha imaginado uma dúzia de
formas de se rebelar, de fazer sua família saber que ela não estava feliz, mas descobriu que, aos
doze anos, não havia muito ao seu alcance; pelo menos nada realmente significante.
Claro que poderia fugir por algumas horas e forçar sua mãe a ir procurá-la, no entanto, tinha
medo de que a mãe sequer fosse notar sua ausência, estando tão concentrada em seu novo amigo.
Sienna achava que não tinha como piorar, mas agora a mãe havia chegado usando palavras
como “namorado” e “padrasto”, e a menina reagira da única maneira que pensava ser possível: se
negando a ter qualquer parte nessa história.
A reação não foi porque não gostava do namorado de Amélia, que, de fato, ela não gostava
muito, mas porque tinha medo de perder o tempo que tinha com sua mãe.
Sabia que as duas não fariam coisas sozinhas com tanta frequência agora que havia uma
terceira pessoa a ser considerada na equação.
E também não conseguia imaginar onde em sua vida caberia um padrasto, afinal, nem de um
pai ela precisara, e estava indo muito bem sem um esse tempo todo.
Pensou tanto a respeito que concluiu que homens em geral eram superestimados. Era a única
justificativa para sua mãe, que sempre lutou e conquistou tudo sozinha, ter decidido que ambas
precisavam de um homem em suas vidas.
Tentara argumentar isso com a mãe, mas ouviu que ela entenderia quando estivesse mais
velha. Sienna duvidava, obviamente, pois acreditava em sua autossuficiência e em seu bom
senso.
Mas se pôs a refletir sobre a facilidade com que deixamos que outras pessoas venham e tirem
as coisas de seus encaixes, onde tudo funciona como deveria, na esperança de que os novos
encaixes deem certo.
Para a garota, era um risco muito grande que não sabia se um dia estaria disposta a correr.
Sienna logo descobriu que podia descontar a raiva em seu diário, mas a forma tradicional não
funcionou, e quando ela teve dificuldade para colocar os sentimentos em palavras, resolveu usar
o caderno de um jeito mais produtivo.
Na primeira hora, metade das folhas em branco já tinha sofrido com o turbilhão de emoções
que a garota colocava para fora pelas pontas dos dedos. Desde então, Sienna se sentia mais leve a
cada página virada.
Estava concentrada em rabiscar no ritmo da música e por pouco não deixou de notar um pé
descalço amassando a grama ao seu lado.
Quando levantou a cabeça, os fones de ouvido foram puxados pelo fio que tinha ficado preso
debaixo do diário. O silêncio repentino só não foi mais chocante que a visão do rapaz diante
dela.
Não, Sienna não havia esquecido o rapaz que por muito tempo acreditou ser seu amigo. E
como poderia, se o via no rosto de estranhos e em diferentes lugares, mesmo ele não estando lá?
Tinha aprendido a duras penas que o “amigo” não fazia tanta questão assim de estar por perto,
mas isso não a impedia de esperar que ele fosse aparecer em algum momento.
Ela tentara se lembrar de como o encontrou pela segunda vez, esperando notar um detalhe que
a faria ser capaz de achá-lo novamente, porém lembrava somente que, na época, ele apareceu
quando ela tinha finalmente esquecido de esperar por ele.
De certo, não seria esse o segredo. Como o rapaz poderia saber até quando ela esperaria, se
ela mesma achava que seria para sempre?
— Oi de novo — disse o rapaz, sentando-se no banco desocupado.
A menina o fitou em silêncio. Queria chamá-lo de nomes feios que sua idade não permitia, e
por não confiar no seu atual humor, preferiu ficar calada.
Não pôde deixar de reparar na aparência do rapaz, no entanto. Três anos haviam se passado
entre aquele momento na loja de roupas e agora, e mesmo assim, ele fazia parecer que foram
apenas algumas horas.
Nada estava diferente nele, nem mesmo a fina camada de pelos em seu maxilar. Sienna quis
tanto saber como aquilo era possível que, por um instante, quase esqueceu que estava brava com
ele.
— Por que você sempre aparece do nada? Quem é você? Por que está sempre igual e vestindo
as mesmas coisas? — disparou, a voz pesando com a mágoa.
O rapaz juntou as mãos abertas e apoiou os cotovelos nas coxas, inclinando o corpo
ligeiramente para frente.
— Primeiro de tudo: eu não apareço do nada, eu venho até você. Segundo: eu sou seu amigo,
você me conhece. Terceiro: eu gosto dessas roupas e mantenho elas sempre limpas e cheirosas.
Sienna semicerrou os olhos, calculista.
— Você não é meu amigo. Qual é mesmo o seu nome? Ah, é, você nunca me disse! —
retrucou, cruzando os braços.
— Uau, você ficou irônica — divagou o rapaz como se externasse um pensamento em voz
alta. — Meu nome é Harry.
A garota não se impressionou.
— Harry de quê? — quis saber.
— Potter — respondeu ele, rápido demais.
— Não é, não.
— É, sim. Por que você está tão mal-humorada hoje?
Sienna virou o rosto, detestando-o por ser tão insensível. Tinha quase se esquecido do
problema com a mãe e seu novo namorado, mas ouvi-lo insinuar que existia um problema a fez
sentir vontade de chorar.
— Não é da sua conta.
Dessa vez, não abriria seu coração para ele. Não se isso significasse que ele desapareceria em
seguida. Manteria seus problemas para si.
Pegando uma pedra no chão, Sienna a lançou com toda sua força na direção da lagoa. A pedra
quicou na superfície por um segundo antes de afundar.
— Ok, não me conte, então — ouviu o rapaz dizer.
Ele nunca entenderia. Era um homem, no final das contas. Se tivesse uma namorada,
provavelmente não achava que ela estaria melhor sem ele.
A garota catou outro seixo e o lançou com ainda mais força. Era muito melhor que riscar o
diário, descobriu.
Porém, antes de cair na água, a pedra atingiu alguma coisa. Sienna não teria notado se não
fosse pelo barulho estrangulado que veio da margem da lagoa.
Ela ficou em pé para conferir a origem do som. De onde estava, não conseguiu ver nada
através da grama alta.
Foi rumando para a margem da água, feliz por ter uma desculpa para se afastar do rapaz.
Receava que fosse começar a chorar logo, logo, e não queria fazê-lo com ele olhando.
Mas o rapaz seguiu em seu encalço, também curioso.
Agitada, Sienna parou na borda da pequena riba que dava para a lagoa, e então viu o pássaro
pulando sobre a água com uma das asas machucadas.
Ela havia acertado em cheio na criatura e agora a ave se contorcia, tentando voltar à terra
firme.
A garota observou o pássaro por um instante, imaginando que ele estava apenas levando sua
vida tranquilamente quando, por azar, cruzou o caminho de alguém e tudo virou de cabeça para
baixo.
Os encaixes, ela pensou. Nem sempre dão certo.
De relance, ela viu o rapaz se ajoelhar para olhar mais de perto.
— Vai se afogar se você não tirar ele da água logo — advertiu, voltando sua atenção para ela.
Sienna assistiu mais um pouco as tentativas inúteis da ave de subir a riba.
Se perguntou quanto tempo de vida ele ainda teria se ela simplesmente desse as costas e saísse
andando. Duvidava de que seria uma morte rápida. Por um momento, ela quis ficar e descobrir.
Quis saber se observar o sofrimento alheio a faria esquecer do seu próprio. Só mais um pouco e
ela teria a resposta…
O pássaro se esforçou uma última vez, sem resultado. A primeira onda o cobriu e…
Sienna enfiou a mão na água, puxou a ave e a soltou na grama, onde a criatura cambaleou,
sem entender o que quase lhe havia acontecido.
Desejando que o animal tivesse mais sorte na próxima vez que esbarrasse com a pessoa
errada, a garota se virou e refez o caminho que tinha percorrido.
O rapaz não voltou a segui-la.
5: SIENNA
Seven Devils, Florence & The Machine

Uma pesquisa rápida na internet é suficiente para eu saber que ninguém em sã consciência me
levará a sério, porque embora eu tenha passado por uma experiência inexplicável, me recuso a
acreditar em qualquer um dos relatos sobrenaturais que encontro em minha pesquisa.
Procuro por pactos satânicos, anjos, demônios e inferno. Cada artigo que abro soa mais
absurdo que o anterior, até que enfim desisto de achar explicações razoáveis para a minha
questão.
Ao que tudo indica, cresci sob influência de um demônio por quem acabei me afeiçoando,
que, não coincidentemente, queria me ver morta. Duvido que exista alguém com o mesmo
dilema, disposto a trocar figurinhas na internet.
Quando deito para dormir, não consigo pregar os olhos de imediato. Encaro por vários
minutos as sombras oscilantes que a janela aberta reproduz no teto.
Não quero pensar demais a respeito do que provavelmente não passou de um sonho, mas acho
incrivelmente difícil me concentrar em outros assuntos agora que estou sozinha com meus
pensamentos.
Também não consigo parar de visualizar pentagramas, névoa e rosas com espinhos afiados.
Preciso usar toda a minha força de vontade para fechar os olhos e mantê-los assim pelo tempo
necessário para que o sono venha. Quando por fim sinto minha consciência escorregar para um
canto distante, não tento resistir.
Acordo logo em seguida, com alguém berrando em meu ouvido. Sento-me tão rápido que o
quarto, já envolto pela escuridão, dá cambalhotas.
Logo que volto a enxergar normalmente, vejo que não há nada diferente no quarto. Tento
aguçar a audição para captar possíveis conversas no apartamento vizinho ou até mesmo na rua lá
embaixo, mas a noite parece tão silenciosa quanto sempre esteve.
Tive outro sonho? Se sim, por que não me lembro de nenhum detalhe?
Não tenho as respostas que quero, mas estou mais desperta agora do que estive antes de pegar
no sono.
Sabendo que não vou conseguir repetir tão cedo o feito de adormecer, saio da cama. Preciso
de um copo d'água e talvez de um pouco de ar fresco.
Na penumbra, atravesso o corredor até a cozinha. Assim que piso na sala, uma corrente de ar
frio arrepia a minha pele. Nada anormal, uma vez que a porta da varanda não está totalmente
fechada, mas meu coração não quer saber de racionalidade e se desritma mesmo assim.
Fico subitamente consciente de mim mesma, sozinha aqui, com o jogo de sombras e o silêncio
impassível do apartamento.
Engolindo a sensação inquietante, vou em frente.
Na cozinha, meus olhos já se habituaram à pouca claridade, mas acendo as luzes de qualquer
forma. O escuro gosta de pregar peças em mentes criativas.
Tiro uma garrafa de água da geladeira e sirvo um copo na ilha da cozinha.
Mas algo no ambiente muda de uma hora para outra, eriçando os pelos dos meus braços como
estática pura. A luz tremula e meus sentidos de alerta são acionados simultaneamente.
Posso ouvir a tensão no ar, um zumbido incômodo que dificilmente significa algo bom. Algo
me diz para não me virar — muito provavelmente o meu senso de autopreservação —, mas
permanecer de costas para o desconhecido é ainda pior. Sinto o medo se arrastar pelo meu corpo
como dedos longos e pegajosos.
Contra todo o bom senso, me mexo para conseguir olhar por cima do ombro, e quase caio
para trás.
Aperto a mão contra a boca para conter um grito e o movimento brusco me faz esbarrar no
copo, que cai no chão com um ruído estridente. Respingos de água molham minhas pernas, mas
eu continuo paralisada no lugar.
Do lado da pia, equilibrado sobre a bancada, alguém me encara de volta.
Uma garota. Não qualquer garota. A de pele branca como neve que estava no meu sonho. O
anjo. Estou vendo coisas? Que pergunta idiota, é claro que estou!
— Olá, Sienna — diz a aparição, pegando uma maçã da tigela ao seu lado.
Por um momento, esqueço de respirar.
— Você não é real — arquejo, balançando a cabeça. — Estou alucinando.
O acidente deve ter bagunçado a minha cabeça. Uma sequela invisível que os médicos não
previram. Estou enlouquecendo. É isso.
A aparição suspira, parecendo subitamente cansada.
— Sou real, sim. E você sabe que nada do que viu e ouviu foi um sonho.
Como isso é possível? Tem que ser uma pegadinha.
Por favor, seja uma pegadinha.
Observo a garota brincar com a fruta, jogando-a de uma mão para a outra, sem demonstrar o
menor interesse em comê-la. Pelo menos não há mais asas à mostra em suas costas e as roupas
que está usando são perfeitamente comuns. Ela parece um ser humano normal, apesar de tudo.
— Como entrou aqui? — pergunto, ainda que essa não seja a questão mais urgente.
— Ah, desculpa por não ter batido antes — ela responde, dando de ombros.
Batido antes?
Estou sonhando de novo, é claro! Peguei no sono no mundo real e ainda estou dormindo.
— Está bem acordada, sinto muito. Você ainda lembra da nossa última conversa, certo? Vou
precisar de um bom descanso se tiver que repetir tudo.
Com as pernas bambas, aumento a distância entre nós o máximo que posso sem perdê-la de
vista. Preciso me sentar. Vou cair dura se não me acalmar nos próximos minutos.
— Não acredito em você — sussurro, despencando no sofá. — É impossível.
Com um franzir de sobrancelhas, a garota deixa a maçã cair de volta no cesto com um baque
seco.
— Você acreditou bem mais rápido da primeira vez. Foi o jardim? Talvez voltar lá ajude.
E, como um truque de mágica, não estamos mais no meu apartamento. Em vez disso, a
claridade do dia preenche o espaço e ilumina a vasta flora ao nosso redor.
— O quê?! Não! Como fez isso?!
Meu corpo estremece com náusea ante à visão do jardim que visitei em meu sonho. Acho que
vou vomitar.
— Agora acredita que não está alucinando?
Minha pia está no meio do jardim, pendendo avulsa, e a garota continua sentada nela. É a
coisa mais bizarra que já vi na minha vida. Mas o sofá em que estou caída também não pertence
a esse lugar. Tudo está errado aqui.
Balanço a cabeça, me esforçando para manter meu jantar no estômago.
— Isso é loucura.
Loucura não chega nem perto de descrever o que isso é.
Ela desce da pia com um pulo, ainda me observando.
— Prefere voltar à Origem? Podemos ir para lá — diz.
— Não! — exclamo, apavorada. — Quero a minha casa!
Por um segundo, ela parece ponderar sobre algo. No próximo, estou de volta à minha sala.
A lâmpada no teto da cozinha pisca, sensível à alteração energética.
Levo minhas mãos ao rosto, completamente desnorteada.
Não estou sonhando. Acabei de ser teletransportada não só uma, mas duas vezes. Minha pele
ainda está sentindo os efeitos.
— Você vai se acostumar com a ideia — ouço a garota dizer. O anjo. Thalia. — Quanto mais
cedo, mais tempo teremos para tentar te salvar.
Vou morrer. Em sete semanas, vou morrer e ser arrastada para o inferno. Nada pode mudar o
fato de que em menos de dois meses estarei morta.
— Não pense assim, você só vai morrer se desistir.
Levanto a cabeça de supetão.
— Está lendo minha mente?! Pare com isso!
Anjo ou não, meus pensamentos continuam sendo privados. Ninguém vai tirar isso de mim
enquanto eu estiver viva.
Ela começa a andar despretensiosamente, deixando a cozinha e se juntando a mim na sala.
Sua expressão é uma máscara que não revela absolutamente nada do que está pensando. Ela pode
ler meus pensamentos, mas eu não posso lê-la de nenhuma forma.
— Prometo não fazer mais isso — fala por fim, interrompendo a caminhada para me olhar nos
olhos. — Em troca, quero que você tente confiar em mim. Você pode vencer essa guerra pela sua
vida, Sienna. Os outros anjos podem não ter fé em você, mas eu já te vi sendo uma boa pessoa e
acredito nesse lado seu. Estou aqui pra te ajudar a trazê-lo à tona.
Apesar da tentativa de incentivo, meus ombros cedem.
— O que quer de mim? — pergunto, com uma crescente sensação de derrota.
Thalia cruza as mãos atrás das costas.
— Primeiro, que mude sua forma de ganhar dinheiro. Pense em algo que não envolva uma
indústria tão problemática.
Meu trabalho na internet? Minha vida está por um fio e eu devo me preocupar com os ensaios
fotográficos que faço a cada quinze dias? Sim, eu sei que não é o método mais convencional de
todos, mas é o que tem me mantido por anos.
— Tenho contas para pagar — digo o óbvio.
— Então é melhor encontrar outro rápido.
Não demoro para perceber que seguir cegamente os conselhos do anjo será mais difícil do que
imaginei.
— Não é tão simples assim.
Cruzo os braços por não ter nenhuma ideia do que fazer com eles.
Thalia levanta as mãos em sinal de rendição.
— Tudo bem. Dei meu conselho. Se vai ou não segui-lo, cabe a você.
Simples assim. Ela não insiste, não tenta me convencer a aceitar a sugestão, tampouco perde a
calma. Simplesmente me deixa tomar a decisão. Acho que é justo, considerando que serei eu
quem irá sofrer as consequências.
A compreensão disso me faz hesitar.
Minha vida e o meu destino agora dependem de muitas variáveis, e, se eu quiser ter alguma
chance, vou ter que aprender a jogar o mais rápido possível, mesmo que para isso tenha que
sacrificar coisas.
Talvez o anjo não esteja aqui para construir uma amizade, mas é, até onde sei, a única ajuda
com a qual posso contar. Precisarei confiar nas estratégias dela, pelo menos até que possa criar as
minhas próprias.
— Ok.
Ela lê nas entrelinhas o que a minha resposta significa. Vou aceitar seu conselho. Vou confiar
em você. O esboço de sorriso em seu rosto me diz que sim.
Magnífico. Espero que minha reserva de emergência esteja em dia.
Em vez de responder, ela me analisa com ares de quem está tramando algo.
— Você sabe o que é caridade? — pergunta em seguida.
— Claro que sei o que é caridade.
Quão desnaturada ela pensa que sou?
— Ótimo. Que tal praticarmos um pouco? Pra aquecer, e depois podemos pensar juntas em
boas ações para você fazer.
Estreito os olhos.
— Que tipo de caridade?
Thalia parece refletir sobre. Por fim, se encaminha sala afora.
Sou obrigada a segui-la, embora a fraqueza em minhas pernas esteja longe de passar. Vejo a
porta da casa pelo canto do olho e, por um momento, penso em sair correndo. Qualquer pessoa
no meu lugar faria isso. Se adiantaria de algo, tenho minhas dúvidas.
Ela vai até o fim do corredor e entra no meu quarto, obstinada. O anjo estuda o cômodo sem
cerimônia.
Não sei se está julgando a bagunça em cima da mesa, os pôsteres da minha banda favorita
colados na parede, ou a coleção de samambaias artificiais que eu trouxe para dar cor ao quarto, já
que cuidar de plantas reais não é para mim.
Pendurei os arranjos aleatoriamente e me convenci de que ficou bom. Sei o quão brega é, só
decidi não me importar.
No final, não descubro o que Thalia achou. Ela para diante do meu guarda-roupas e escancara
as portas.
— Essas roupas — diz, passando as mãos pelas peças nos cabides. — Aposto que você não
usa boa parte delas. Separe tudo que não precisa mais. Vamos levar para doação.
Ah, não.
Isso é bem pior do que eu temia. Minhas roupas da Shein são conquistas de anos de acúmulo,
não posso me livrar delas assim, sem mais nem menos.
Mordo o interior da bochecha, ciente de que parecerei mesquinha se negar o pedido. Mas a
ideia de doar parte do meu guarda-roupas…
— Você acha mesmo uma boa ideia? — pergunto, sem pensar. — Doar roupas parece tão…
irrelevante.
O anjo tira um cabide do suporte e se vira para mim.
— Sabia que isso aqui — agita meu suéter verde-oliva no ar — pode salvar uma pessoa numa
noite de frio?
— É, mas é uma única pessoa. — Luto contra o impulso de tirá-lo das mãos dela. — Não é
como se eu pudesse poupar o mundo do frio.
Ela me lança um olhar de mil facas.
— É melhor se preocupar com o que você pode fazer de bom nessa vida e não com o que não
pode.
Aperto os lábios para me impedir de resmungar de volta. Sei que devo fazer o que ela diz. Só
estou sendo… bom, estou sendo o monstro sem coração que Kai me acusou de ser.
Relutante, vou até o armário.
Não tenho tantas roupas assim, embora sejam suficientes para eu me vestir por um mês inteiro
sem repetir nenhuma peça. É claro que não faço isso, mas gosto de ter opções. Quando a sua
imagem é o seu trabalho, você aprende a valorizá-la.
Começo pela parte de baixo, onde guardo os moletons e as peças que usei até enjoar.
— Você pode ajudar arranjando uma caixa ou a iniciativa toda precisa partir de mim? —
pergunto, ganhando um revirar de olhos.
Thalia sai em busca de uma caixa grande o suficiente, nas palavras dela, e eu começo a
separar tudo em pequenas pilhas de roupas.
Na maior parte do tempo, faço tudo no automático, enquanto o anjo zanza pelo quarto,
listando casas de caridade que podemos acionar. Vez ou outra, tece comentários sobre uma roupa
incomum.
Entre uma gaveta e outra, encontro um objeto do qual não lembrava mais da existência. Um
pequeno relógio mecânico, que, segundo mamãe, pertenceu ao meu pai. Ele ainda funciona,
mesmo depois de tantos anos, mas não tenho tanta certeza de como ele veio parar nas minhas
coisas.
Estudo a peça prateada e os desenhos gravados nela por alguns segundos, incapaz de não me
ressentir com o homem que a deixou para trás.
É culpa dele que eu esteja nessa situação. O homem que me gerou — e que deveria zelar por
mim — selou esse destino terrível do qual preciso escapar.
A essa altura, só posso admitir que tudo isso é real mesmo. Minha vida acabou de mudar
completamente. Poucas horas atrás, eu era só uma atriz fervendo de alegria por ter conseguido
um papel, e agora sou muitas outras coisas.
Sou uma filha vendida em acordo. Uma alma presa entre dois mundos. Um prêmio a ser
conquistado em uma disputa. Sou todas essas coisas e não pedi por nenhuma delas.
Mas eu pedi por ele. Dia e noite, eu pedi a todos os deuses que o trouxessem para mim.
Esperei anos e anos por novas chances de vê-lo, mesmo a espera me matando um pouco a cada
dia. Eu o desejei com tanto fervor que não devia estar surpresa por ter conseguido.
Aí está o homem por quem você se apaixonou. Uma pena que ele seja um demônio atrás de
sua alma.
Estava preocupada antes. A possibilidade de o sonho ter sido real me assustou. Mas só agora
me permito sentir medo. O medo genuíno — do tipo que faz as pernas amolecerem e o coração
perder o compasso — que só a certeza da queda pode causar.
Eu teria dito que resistir ao inferno seria fácil, que eu nunca daria ouvidos a um demônio com
a missão de arrastar a minha alma para a perdição. Mas, se a ameaça for Kai e minha vida
depender de mantê-lo longe, eu talvez já esteja condenada.
É melhor que o anjo realmente saiba o que está fazendo.
6: SIENNA
Dangerous Game, Klergy

Meu primeiro ensaio como Francesca é um fracasso. Não consigo me concentrar em Liang o
suficiente para acompanhá-lo nas falas e preciso reler o texto mais vezes do que o aceitável.
O resto do elenco finge não perceber, mas o professor não faz vista grossa.
— Arranje tempo para descansar, ou vai acabar ficando para trás — diz ele, quando ficamos
sozinhos no canto por um momento.
Não tento negar que o motivo para a minha desatenção é o cansaço, porque realmente não
consegui pregar os olhos na noite passada.
O anjo me fez encher a caixa até não caber mais nenhuma roupa e ainda arrancou a minha
promessa de que procuraria uma ONG no primeiro horário da manhã. Deixei tudo no primeiro
abrigo que encontrei a caminho da Academia.
Em vez de elaborar outra explicação, prometo ao professor que logo voltarei ao normal.
— Vou dar um jantar na minha casa amanhã — ele muda de assunto. — Vai ser ótimo para
você conhecer alguns amigos meus.
Ofereço o que espero ser um sorriso convincente.
— Claro. Obrigada pelo convite — respondo, no piloto automático.
— Quero te ver radiante.
Então ele se afasta para conduzir os outros alunos.
Isso não melhora meu humor. Quando a aula acaba, estou mais irritadiça que antes.
No almoço, conto a Ágata sobre o acidente.
Ela fica escandalizada por não ter sido avisada antes, o que julgo compreensível, porque eu
reagiria da mesma forma se os papéis fossem invertidos, mas, em minha defesa, eu tinha muito
mais coisas ocupando minha mente ontem.
Oculto toda a parte irracional, obviamente. Agui não acreditaria em nada que eu dissesse. Às
vezes, nem eu mesma acredito.
— Eu teria passado a noite com você — ela funga.
— Não aconteceu nada, Agui. Foi só um susto — asseguro.
— Mesmo assim. Que tipo de amiga não está por perto nessas horas?
Encaro Agui com a testa franzida.
— O tipo que não tem uma bola de cristal. — Mudo a abordagem quando a vejo colocar uma
trança escura atrás da orelha, visivelmente agitada. — Você está bem? Mal tocou na comida.
Ela também não pareceu muito presente no ensaio mais cedo. Há algo que minha amiga não
está me contando.
Ágata balança a cabeça, mas desvia o olhar brevemente.
— Sim, só estou cansada.
Certo. Não sou a única mantendo segredos, aparentemente.
Sinto o impulso de insistir, mas seria de uma hipocrisia incompreensível, então deixo a
pergunta morrer em meus lábios. Ela irá me contar se achar que deve.
Ainda estou na metade do prato quando minha energia se esgota. É como se meu cérebro
tivesse sido mastigado e cuspido de volta no meu crânio. Me sinto horrível, mas o dia está longe
de terminar.
Preciso dos materiais da biblioteca para terminar um trabalho de Cenografia sobre tipos de
figurinos, ou ao menos é o que digo a mim mesma para mascarar o fato de que não quero ir para
casa ainda.
Sozinha, sou um alvo muito fácil para Kai, caso ele resolva aparecer. E a última coisa que
quero agora é ficar sozinha com ele.
Ágata lamenta não poder me acompanhar na tarefa por ter que ir a um evento da candidatura
política de seu pai. Promete me ligar quando eu estiver em casa mais tarde.
A biblioteca está praticamente vazia quando chego, com exceção de alguns retardatários que
trabalham em silêncio em seus computadores.
Depois de pegar um livro com boas referências ao tema que preciso abordar, escolho a mesa
mais isolada da sala, pois tenho o hábito de ler em voz alta para absorver o conteúdo.
Ligo o notebook e abro um documento em branco, mas nenhum dos monólogos da professora
me vem à cabeça. Encaro a tela vazia pelo que parece dez minutos, até decidir começar
recolhendo referências do livro antes de pôr a mão na massa.
Mas as palavras logo se embaralham no papel amarelado, e paro de assimilar frases que
acabei de ler.
Volto ao início da página pelo menos duas vezes, à medida que manter os olhos abertos se
torna um esforço descomunal.
Deixo o livro de lado. Digito o título do trabalho e um parágrafo introdutório.
Apago tudo e escrevo “Vou morrer em breve”.
Massageio as têmporas para dispersar a dor de cabeça que começa a surgir, e, por um instante,
caio numa vertigem de autocomiseração que, devo admitir, não combina comigo.
Preciso dormir. Não posso repetir o desempenho de hoje no ensaio de amanhã, ou Edgar pode
começar a se questionar de sua decisão. Com fotos íntimas ou não, se eu o constranger em suas
produções, duvido que ele mantenha a boa vontade comigo.
Depois de esfregar os olhos como uma última tentativa de dispersar o cansaço, volto a pegar o
livro. Dessa vez, consigo ler uma página inteira sem perder o raciocínio, mas sou obrigada a
abaixar o tomo quando um par de asas batendo me distrai.
Olho para baixo bem a tempo de ver uma mariposa pousar no teclado do computador.
Ah, não.
Houve uma época em que só o que eu queria era um vislumbre dessas asas pequeninas
batendo, porque elas sempre traziam ele para mim. Mas agora elas parecem uma piada de mal
gosto.
Minha visão embota por dois segundos, mas me forço a não hiperventilar. Não vou perder a
cabeça aqui dentro. Talvez seja exatamente isso que ele queira.
Ergo o olhar apenas pelo tempo de vê-lo se aproximar da minha mesa.
De pés descalços, como sempre, ele caminha entre as mesas como se estivesse habituado ao
lugar, embora provavelmente nunca tenha pisado aqui antes. As mãos estão enfiadas nos bolsos
da calça, um hábito que ele carrega desde que consigo me lembrar.
Visto assim, ninguém diria que ele não é um aluno da Academia. Não há nada em seu rosto
que indique o que está se passando em sua cabeça, mas ainda é cedo demais para tentar decifrá-
lo.
Kai e eu nos encaramos por meio segundo até eu quebrar o contato. Pego o livro novamente e
continuo a leitura de onde parei.
Merda, minhas mãos estão trêmulas. Aperto o volume com mais força.
A cadeira na frente da minha protesta quando é arrastada no chão.
— Achei mesmo que fosse te encontrar aqui — diz ele.
Continuo em silêncio, relendo a mesma frase sem parar. Se eu o ignorar, ele irá embora uma
hora ou outra. Só preciso fingir que ele não está aqui.
Meio minuto se passa e me dou conta de que eu provavelmente preciso virar a página para
tornar a farsa mais convincente. Folheio o capítulo, arriscando uma olhadela no outro lado da
mesa.
Com uma sobrancelha arqueada, Kai está olhando para a tela do notebook, onde deixei minha
mensagem mórbida à mostra.
— O que aconteceu com aquela determinação de antes?
Me atiro sobre o computador tão rápido que o livro cai da minha mão e atinge o chão com um
baque surdo.
Minha língua coça para mandá-lo cuidar da própria vida e parar de xeretar a minha, mas
aperto os lábios e me contenho a tempo.
Me limito a lhe lançar um olhar afiado que faz mais jus ao que estou sentindo do que qualquer
resposta malcriada que eu poderia dar.
Kai abre um sorriso inocente que me faz querer bater sua cabeça contra a mesa.
Respiro fundo e me abaixo para recuperar o livro.
— Se você continuar me ignorando, que graça vai ter?
Kai faz a cadeira ranger pela segunda vez quando se inclina contra o encosto.
Mordendo a língua, abro o livro em um capítulo diferente. Não lembro mais o que estava
lendo. Examino minuciosamente as imagens que encontro no rodapé, apesar de não fazer ideia
do que representam.
Acho que posso chamar o segurança do prédio e pedir que Kai seja retirado da biblioteca.
Talvez funcione, se eu alegar importunação. E então o quê? Ele me esperaria do lado de fora, ou
me encontraria mais tarde, quando eu estivesse sozinha em casa?
— Nunca pensei que eu fosse sentir saudade de quando você era caidinha por mim e me dava
atenção.
Sinto o sangue subir à cabeça rápido demais. Por um instante, não consigo enxergar mais nada
além de pontos vermelhos cercando a minha visão.
Ele joga baixo.
— Nunca fui caidinha por você — sibilo, tropeçando na armadilha dele. Não consigo evitar.
Ele parece satisfeito por arrancar uma reação minha.
— Eu esperava mesmo que não fosse — confessa, os olhos azuis cintilando de sarcasmo. —
Você era uma criança e tudo mais.
— Sim, uma criança que você manipulou como um covarde — cuspo, fechando o livro com
uma força três vezes maior do que seria necessário.
Lá se vai meu voto de silêncio.
— Já tivemos essa conversa. Nunca manipulei você. Tudo que eu fiz foi fazer você se dar
ouvidos.
Reviro os olhos.
— Uma criança não sabe o que quer! Diga o que quiser, mas você jogou sujo esse tempo
todo.
Kai se debruça sobre a mesa e prende meu olhar ao dele.
— Eis um segredo, monstrinho — diz, baixando a voz em um decibel. — Alguns jogos não se
ganham jogando limpo. Esse é um deles.
Resisto ao impulso de engolir em seco.
— Se você espera me convencer com esses argumentozinhos, melhor começar a procurar
outro emprego.
Quando termino de retrucar, um lampejo prateado chama minha atenção para a mão dele que
está em cima da mesa.
Ao redor de seu dedo médio, um anel que não lembro de já ter visto antes descansa. Ele é
cheio de entalhes delicados, mas identifico a cabeça de uma cobra dando uma volta em torno da
própria cauda. Por algum motivo, a visão causa arrepios na minha pele.
A risada de Kai me pega desprevenida e minha pulsação acelera nos ouvidos. Ela corta como
uma lâmina afiada.
— Não quero te convencer de nada — ele revela. — Só que converse comigo.
— Que pena. Não tenho nada para conversar com você.
Por que ainda estou falando?
Ele balança a cabeça como se tivesse que admitir a lógica por trás da minha resposta.
— Vamos jogar um pouco, então — sugere. — Algo simples. Se você vencer, eu te deixo em
paz e você não vai precisar falar comigo nunca mais.
Estreito os olhos. Ele não pode realmente achar que vou cair nessa.
— Ah, claro. E se eu perder, você fica com a minha alma.
— Se perder — ele começa, e vejo um brilho que beira o indecente em seus olhos —, você
responde uma pergunta minha.
O encaro por vários instantes. Estou tentando ler nas entrelinhas e achar a implicância que dá
a ele o direito sobre a minha alma, mas falho em encontrar qualquer coisa.
Uma pergunta. Por que uma simples pergunta seria importante para ele?
Como se estivesse dentro da minha mente, Kai reassegura:
— Juro que não é uma armadilha. Você ainda vai ter sua alma no final.
Eu não deveria, mas analiso a proposta. Se eu ganhar, me livro dele para sempre. Sem mais
influências negativas para aflorar a minha já comprometida natureza. Mas parece bom demais
para ser verdade. Deve haver alguma casca de banana nisso.
— E qual seria o jogo? — pergunto, sentindo uma gota de suor descer pelas minhas costas.
O que estou fazendo?
— Vamos manter as coisas simples para que você não diga que estou trapaceando — fala,
voltando a se encostar na cadeira. — Vou dizer três coisas sobre a sua vida, coisas que você
mesma viveu, e uma delas será mentira. Você só tem que me dizer qual é a mentira.
Agora ele está brincando comigo.
— Você é mais idiota do que eu imaginava — murmuro, incrédula. — Isso ao menos já
funcionou com alguma outra vítima sua?
Kai faz pouco caso com um movimento displicente dos ombros.
— Estou testando novas abordagens.
Por um momento, quase esqueço de com quem estou lidando. Ou, mais precisamente, com o
quê.
Por debaixo dessa pele que nunca envelhece e por trás desses olhos de oceano, há um ser
poderoso e articulado, capaz de qualquer tipo de atrocidade. Ou ao menos é o que nos dizem
sobre demônios. Confio que já tenham validado essa teoria em algum momento.
Vovó costumava dizer que o Diabo é cheio de artimanhas. Nunca disse nada sobre a prole
dele ter herdado o mesmo talento, mas enquanto observo Kai me observando à espera de uma
resposta ao seu desafio, tenho cada vez mais certeza de que o meu demônio particular também é
astucioso.
Mesmo assim, a proposta parece razoável. Se o preço por falhar for dar uma mera resposta a
algo que ele queira saber, tenho muito a ganhar e pouco a perder nesse caso.
Cruzo as mãos sobre a mesa, assumindo uma posição de embate.
— Muito bem — digo, meu coração acelerando em antecipação. — Me diga duas verdades e
uma mentira sobre a minha vida.
Kai recebe meu convite com uma sugestão de sorriso no canto da boca. Não um sorriso
explícito. De alguma forma, esse consegue ser mais perigoso. Preciso tomar mais cuidado.
— Você só tem uma chance de responder corretamente — ele informa.
Aguardo ele continuar. Minhas mãos já estão pegajosas.
O olhar dele não oscila nem por um segundo conforme ele cria o suspense.
Quando volta a falar, tenho que me obrigar a me concentrar em suas palavras e não na bela
compleição de seu rosto.
— Você tinha uma amiga chamada Naomi quando era criança. Um dia, vocês estavam
apresentando uma peça na escola e ela caiu do palco no meio de uma cena. Ela gritou porque o
pé doía, mas você disse a ela: “chore mais baixo, senão ninguém vai ouvir a minha fala”.
Como ele pode saber disso? Estava presente no auditório naquele dia? E por que não falou
comigo como das outras vezes em que apareceu?
Não importa. Concentre-se.
— O show deve continuar — respondo como se devesse uma explicação a ele. — Mas não me
orgulho disso.
Kai não parece acreditar muito em mim, porém não tece comentários.
Só verdades até agora.
— Sua primeira namorada se chamava Bianca. Ela ficou brava porque você não ia para a
mesma faculdade que ela em Londres e terminou o namoro logo depois da formatura de vocês.
Ele tamborila sobre a mesa.
— Quem te contou todas essas coisas? — pergunto, incapaz de resistir.
Ninguém além de mim e Bianca soube o motivo do nosso término, nem mesmo minha mãe.
— Fiz meu dever de casa, monstrinho — diz, satisfeito consigo mesmo.
Ele está adorando tudo isso. Maldito.
— Como se estudar na Europa estivesse ao alcance de todos...
Outra verdade. A próxima definitivamente é a falsa.
— Você já esteve tão desesperada para me ver de novo que me invocou em sua própria mente
sem nem saber como.
Abro um sorriso vitorioso.
— Errado — aponto, triunfante. Essa foi fácil. — Você nunca veio somente porque eu queria.
Espero ver decepção no rosto dele, a constatação de que sua estratégia falida lhe rendeu uma
alma. Mas tudo o que vejo é presunção. Está blefando, é claro. Tenho certeza de que matei a
charada com perfeição.
— Você realmente me invocou por meios não-oficiais e eu não tive escolha a não ser ir — ele
diz.
Ele está mentindo. Nada que eu tenha feito, nenhuma oração que sussurrei aos deuses,
conseguiu fazê-lo voltar mais cedo para apaziguar minha saudade. Eu saberia se isso tivesse
acontecido.
— Mentiroso — acuso, sentindo meu sorriso esmorecer.
— Sua avó tinha acabado de morrer e você sonhou comigo, lembra? Acontece que não foi só
um sonho. Eu estava lá.
Nego com um movimento de cabeça.
— Sonhei com você muitas vezes e isso nunca significou nada — insisto, a contragosto.
Ele está louco se acha que vai me enganar.
A expressão de Kai não muda.
— E ainda assim, na última vez que nos vimos, você me fez te ouvir chorar por horas.
Acredite ou não, você me invocou uma vez porque sentia minha falta — repete a última parte,
fazendo pequenas pausas entre as palavras para enfatizar seu ponto.
Faço uma careta.
Me lembro do sonho que tive um dia depois que enterramos vovó, e do quanto eu me sentia
roubada quando deitei para dormir. Me lembro de ter desejado que eu tivesse partido no lugar
dela, porque assim vovô não ficaria tão arrasado. Eu queria tanto sentir algum conforto de novo
que sonhei com Kai embaixo da árvore onde o conheci.
Ele estava sentado na grama e eu no banco. Não conversamos muito, no entanto. Até mesmo
no sonho, eu sentia aquele pedaço de mim que estava faltando. A ausência de vovó não podia ser
compensada com a presença de Kai, embora essa última tenha ajudado.
Mas nunca achei que aquela versão de Kai era de verdade, e menos ainda que eu o tivesse
atraído para lá. Nem mesmo sei como isso seria possível.
— Se só tenho a sua palavra para confirmar isso, não conta — argumento.
Kai arqueia uma sobrancelha.
— Quem disse que não conta?
Maldito. Desgraçado. Demônio trapaceiro.
Me empertigo na cadeira. Não estou pronta para largar o osso.
— Você me contou duas verdades antes. A terceira precisa ser uma mentira. É questão de
lógica.
— Eu te contei uma verdade e uma mentira. Você não estava prestando atenção.
Balanço a cabeça com veemência. Ele não vai me fazer de idiota.
— Bianca foi a minha primeira namorada e ela terminou comigo porque não fui para Londres
com ela. Onde está a mentira? — desafio, ávida para desmascará-lo.
— Ela ficou brava e terminou tudo porque você passou um ano inteiro fazendo promessas a
ela — diz, no mesmo tom que usaria para ensinar algo a uma criança. — Nunca pretendeu viajar
com ela e ainda assim prometeu que iria. Ela até comprou uma passagem para você, sua
desalmada.
É claro que prometi. À certa altura, Bianca só falava disso. Em como seria incrível nós duas
morarmos fora, nas oportunidades que eu teria fazendo Teatro na Europa, no cachorro que
iríamos adotar e chamar de Frodo. Prefiro gatos e Harry Potter, mas era mais fácil concordar
com tudo e deixá-la fazer seus planos.
Eu nunca teria saído do país com ela. Ela não me conhecia o suficiente se acreditava
realmente que eu faria isso.
— Não pedi nenhuma passagem, ela comprou porque quis — digo com impaciência. — E as
pessoas vivem fazendo promessas que não pretendem cumprir, não tente me dar lição de moral.
Kai ergue a mão da mesa e passa os dedos pelos cabelos para afastar a mecha rebelde em sua
testa.
Cerro os lábios para não deixar escapar um suspiro.
— Eu nem sonharia em fazer isso. Mas isso não anula o fato de que você errou sua resposta,
monstrinho. Não tinha como não errar, já que você não se culpa pela reação da sua ex. Viu como
te conheço bem?
Eu sabia que ele trapacearia. Ele mesmo admitiu que nunca jogaria limpo comigo. E ainda
assim, eu fui estúpida o suficiente para achar que Kai aceitaria qualquer coisa diferente da
vitória.
Dessa vez, não vou dar o mérito a ele. O demônio pode ser astuto, mas o que me pôs nessa
situação foi a minha arrogância e apenas ela. Achei que esse podia ser um jogo para dois e
descobri tarde demais que sequer sei as regras ainda.
— Sabe o que vai acontecer quando você se deparar com alguém mais esperto que você? —
pergunto com a voz enganosamente doce. — Ele vai fazer você sufocar com o seu próprio
veneno. E se eu acabar no inferno no final de tudo isso, esteja certo de que eu vou me tornar essa
pessoa. Pense nisso na próxima vez que decidir me enganar.
Incapaz de levar minha ameaça a sério, Kai bate palmas espaçadas, deixando claro que eu não
passo de uma fonte de entretenimento para ele.
— Aí está ela — zomba, fingindo estar impressionado. — O monstrinho finalmente mostra as
garras. Elas combinam com você, Sienna.
Odeio que ele diga o meu nome. Odeio, porque meu nome em sua boca é o veneno que eu
tomaria até me perder de mim mesma, de novo e de novo. Preciso me lembrar que não haverá
antídotos.
Adoto uma expressão neutra, mantendo-a livre dos sentimentos controversos dentro de mim.
Em breve, deixarão de existir.
— Faça a sua pergunta — cuspo, aceitando a consequência de ter perdido.
Uma resposta. É tudo que ele terá de mim.
Ao contrário do que achei, ele não sorri para me provocar. Em vez disso, seu rosto assume um
ar contemplativo à medida que ele me estuda com atenção.
Posso garantir que está prolongando a espera de propósito para me deixar mais tensa.
Infelizmente, funciona.
— Me diga, monstrinho — começa, e pela primeira vez sinto que ele está levando algo a
sério. — E se você pudesse alcançar todo o potencial da sua existência, sem nunca sentir o peso
dos anos em sua pele e sem precisar temer o dia em que tudo acabaria? O que você faria se o
tempo, ou a falta dele, não fosse mais um problema para você? Se não houvesse uma porta que
você não fosse capaz de abrir?
Nos encaramos por mais tempo do que posso mensurar. Meu silêncio cresce, ganha forma e se
espalha ao nosso redor como erva daninha. Nem mesmo os cliques dos teclados da biblioteca eu
consigo ouvir a essa altura.
Kai é tudo o que tenho em mente, e sua pergunta reverbera dentro de mim. Pensamentos
indesejados são sempre os piores de se controlar.
Leva alguns instantes, mas reencontro minha voz.
— Eu ainda estaria morta — digo, remando na direção contrária à correnteza em seus olhos.
— Não faria diferença nenhuma no final, acredite.
— Faria para mim. — Ergo o queixo. — Minha vida não está à venda.
Uma centelha de divertimento ilumina os olhos de Kai.
— Esses anos humanos medíocres que você ainda teria não valem a pena o seu esforço,
monstrinho. Você foi feita para coisas maiores.
Não respondo. Não acho que poderia, sendo sincera.
Toda a minha existência para ele não passa de poeira ao vento. Ele enxerga mais propósito na
minha morte do que na minha vida. É disso que preciso lembrar quando estiver cara a cara com
ele.
— Você tem razão — digo, passado alguns segundos. — O resto dos meus dias humanos
pode ser medíocre, mas serão eles que você vai lamentar até o fim dos tempos não ter
conseguido tirar de mim.
Não espero a resposta dele.
Apanho o livro e o notebook, e me afasto o mais rápido que posso.
Mas temo nunca ser capaz de chegar longe o suficiente.
A QUEDA
5 anos antes...

Sienna nunca tinha provado cerveja antes e se surpreendeu com o gosto forte. Fez um careta tão
angustiada que sua amiga Janine gargalhou.
— É horrível!
Ela empurrou a garrafa de volta nas mãos da amiga.
A garota também ouviu risadas vindo das cadeiras vizinhas.
— Você devia tentar o gin — disse uma voz, se fazendo ouvir sobre a música alta e as
conversas paralelas ao longo do quintal. — Ainda tenho uma garrafa cheia, se você quiser.
Sienna virou a cabeça para olhar para Bianca.
A jovem estava mais atraente que o normal essa noite e vinha arrumando jeitos de chamar a
atenção de Sienna desde o começo da festa.
Sienna, assim como muitas pessoas do colégio, não era imune às covinhas que apareciam
quando Bianca usava seu sorriso matreiro para conseguir o que queria, portanto sentiu o
estômago vibrar quando fez contato visual com a colega pela centésima vez.
— Ainda está cedo — respondeu ela, apesar de ser quase onze horas da noite. — Me lembre
mais tarde.
Bianca segurou o olhar de Sienna por mais tempo do que precisava antes de dar de ombros e
voltar sua atenção para o grupo de amigos ao seu redor.
Sienna achava que não suportaria esse jogo por muito mais tempo; queria partir logo para a
ação, porém Bianca nunca saía de perto dos amigos por tempo suficiente para as duas terem uma
conversa com mais privacidade.
Ela sabia que era porque Bianca não via problema em flertar com ela na frente dos amigos,
mas Sienna ainda não se sentia confortável com a situação.
Pensou em chamá-la para um passeio, só que para isso ela teria que entrar no meio dos outros
colegas que rodeavam a garota, e não havia uma forma de fazer isso sem chamar a atenção de
todo mundo para o que aconteceria em seguida.
Sendo assim, não tinha feito nenhum movimento ainda.
Em vez disso, tinha permitido que Janine a convencesse de que ela precisava de uma cerveja.
Ela evitava experimentar bebidas quando ia para as festas dos colegas de escola, em parte
porque não queria dar motivos para sua mãe pensar que ela andava solta demais, e porque não
era fã do gosto do álcool.
Ainda assim, lá estava ela, aceitando cervejas e rindo mais alto que o habitual, alisando os
cabelos a cada poucos minutos e lançando olhares para a mesa ao lado a noite toda.
Era uma sensação esquisita. Como ser consumida pela ansiedade do que poderia acontecer em
seguida, mas sem o pânico e a preocupação.
Gostava da atenção que Bianca lhe dava quando ela achava que a garota estava muito
distraída pela conversa dos amigos e arriscava olhar para ela, para então vê-la retribuir o olhar.
Era como se nenhuma das duas estivesse completamente presente em suas rodas de amigos,
como se parte delas estivesse em outro lugar, aproveitando a companhia uma da outra, a sós.
Sienna nunca havia beijado ninguém. Como esperado, ela se sentia atraída por alguns caras da
escola, em especial os que treinavam no ginásio com o peitoral à mostra, e por muitas meninas
também, mas não tinha levado a cabo nenhum desses interesses.
Primeiro porque, embora não tivesse problemas para se enturmar com os colegas, com certa
frequência se sentia sufocada pelo padrão de vida deles, cujo ela não conseguia acompanhar, e
segundo porque achava que ninguém da escola atenderia seus critérios.
Não que fossem muitos, só eram… específicos demais. Sienna não gostava de passar muito
tempo pensando sobre esses critérios, pois temia a verdade por trás deles e se recusava a admiti-
la para si mesma. Porém, sempre que fantasiava sobre alguém, ela acabava voltando para suas
expectativas irreais. Voltando para ele.
Todos aqueles anos passados e ela ainda encontrava um jeito de mantê-lo em seus
pensamentos. Era um cabelo que não parecia rebelde o suficiente, olhos no tom errado de azul,
sobrancelhas arrumadas demais, sapatos demais…
Ela estava sempre tentando convencer a si mesma de que não passava de uma coincidência o
fato de gostar tanto desses aspectos a ponto de desejá-los em seus interesses amorosos, mas, no
fundo, sabia a real razão.
Foi justamente por causa disso que a garota resolveu aceitar os flertes de Bianca e retribuí-los;
precisava reconstruir seus interesses ao redor de outras pessoas. Especialmente daquelas que não
desapareciam por anos.
— Eu juro que se você não beijar ela nos próximos cinco minutos, outra pessoa irá — falou
Janine, arrancando Sienna de seus devaneios.
— Pare com isso — pediu Sienna, mantendo a voz baixa para as outras amigas não ouvirem.
Janine balançou a cabeça, respirando fundo.
— Vocês são duas idiotas.
Sienna revirou os olhos, mas não pôde evitar checar a mesa de Bianca.
Já tinha notado o rapaz sentado ao lado dela, rindo de todas as suas piadas e vez ou outra
tocando o joelho da garota em um gesto de intimidade.
Conhecia Benji Soares de maneira muito superficial, mas, desde as últimas férias, Sienna
começara a reparar na beleza do garoto. Culpava os hormônios da adolescência, é claro.
— Isso não é uma competição para ver quem chega primeiro, Janine — respondeu por fim,
mas algo se contorceu em seu estômago.
A garota não se achava insegura, mas estava perfeitamente ciente do apelo que um rapaz
como Benji oferecia a uma garota como Bianca. Ambos pertenciam ao mesmo mundo e
orbitavam o mesmo centro de gravidade, enquanto Sienna só podia observá-los de um ponto
muito abaixo.
Ela sabia que não deveria criar expectativas, no entanto, torceu em segredo para que Bianca
não desistisse dela tão fácil.
— É, dá pra notar que nenhuma está com pressa.
Janine pôs-se de pé, derrubando sua cadeira de praia no processo.
Convocou o grupo de amigas para a piscina sob o pretexto de que tinha bebido cervejas
demais para manter-se na superfície sem ajuda, mas Sienna soube que a amiga estava criando
uma oportunidade para Bianca aproximar-se dela enquanto estivesse sozinha ali. Sentiu-se grata
e, ao mesmo tempo, traída.
Sozinha, Sienna se tornaria um alvo fácil demais. Talvez fosse exatamente o que precisava,
porém ainda ficava nervosa com o pensamento de Bianca próxima a ela, as duas sozinhas,
Bianca com seu riso solto…
Mesmo assim, a garota não protestou quando todas se levantaram para irem até a piscina. Até
inventou uma desculpa rápida quando Raquel perguntou se ela não iria junto. Logo ela se tornou
a única pessoa sentada à mesa.
Sem saber o que fazer com as mãos, ela agarrou uma garrafa quase vazia de cerveja e fingiu
bebericar.
Bianca estava imersa em uma conversa com os amigos e sequer notou a movimentação na
mesa vizinha, de modo que Sienna se sentiu uma imbecil parada ali, esperando a outra virar a
cabeça mais uma vez.
Ela não se virou, mas a mente de Sienna foi arrastada para outro lugar quando alguém puxou
uma cadeira bem ao seu lado e se jogou nela.
— Então você bebe agora?
O coração de Sienna pulou uma batida. Aquela voz.
Virou-se para o lado, sentindo a pulsação cardíaca em sua garganta.
Lá estava o rapaz-fantasma por quem ela nutria tantos sentimentos conflitantes. Exatamente
como ela se lembrava dele, como o imaginava em suas fantasias adolescentes mais sigilosas.
Sienna esqueceu-se de como respirar por um momento; quando por fim conseguiu, o ar saiu
trêmulo de suas narinas.
— Você não está realmente aqui — sussurrou ela, com medo do que a própria voz deixaria
transparecer. — Você só existe na minha cabeça.
Havia enfim se decidido pela versão que sua avó contara todos aqueles anos atrás, sobre o
produto de sua imaginação fértil. Não fazia sentido algum, mas nada mais explicava o
comportamento do rapaz e a forma com que ele surgia e desaparecia como fumaça, sem ninguém
além dela nunca tê-lo visto sequer uma vez.
A garota tinha, sim, uma mente criativa, e por mais impossível que aquilo parecesse, a parte
racional de seu cérebro insistia que era a resposta mais crível que ela conseguiria obter. Então ela
aceitou-a e seguiu em frente. Mais ou menos.
O rapaz franziu a testa e mesmo sob a pouca luz do ambiente, Sienna se pegou mergulhando
no azul daqueles olhos inescrutáveis.
— Isso é uma fanfic que você está escrevendo? Eu sou um delírio e você é esquizofrênica?
Baita criatividade — falou, assaltando um prato de batatas fritas esquecido na mesa.
Sienna não tinha palavras. Temia iniciar uma discussão e ser vista falando sozinha, como
suspeitava que já estava.
Entretanto, o rapaz ao seu lado parecia tão real quanto qualquer outro adolescente naquele
quintal, e, pela primeira vez, ela duvidou da própria sanidade.
Como podia ser normal, se sua mente estava criando tudo aquilo sem o mínimo esforço?
— Por favor, vá embora — pediu o mais discretamente que conseguiu.
O rapaz empurrou mais batatas na boca.
— Achei que ficaria feliz em me ver.
— Isso é loucura, você é uma loucura.
Ele parou de mastigar por alguns segundos e voltou a encará-la.
— Como estão as coisas com o namorado da sua mãe?
Sienna pestanejou.
Nunca havia mencionado aquilo com ele. Tinha virado as costas e partido naquele dia, há três
anos.
— Não sei do que você está falando — mentiu.
Não achava que importava mais, de toda forma. Sua mãe até já estava com outro namorado, e
dessa vez Sienna fora mais branda quando recebeu a notícia.
— Entendo… você está se fechando em si mesma já faz alguns anos. Imaginei que aos quinze
estaria mais relaxada.
A garota bufou, se irritando. Não deixaria que ele agisse como se conhecesse algo sobre ela.
Não a conhecia de forma alguma, pois nunca estava por perto tempo suficiente para saber o
quanto as mãos dela suavam minutos antes de subir ao palco para encenar, ou como seus lábios
se apertavam quando precisava se calar para evitar um comentário ácido, tampouco que ela o
mantinha em seus pensamentos mais embaraçosos.
— Desculpa se não me abro tão facilmente com estranhos — ela retrucou, esquecendo de
manter a voz sussurrada.
O rapaz apanhou outro punhado de batatas, ignorando-a.
— Então agora você bebe e flerta com pessoas?
Sienna corou de maneira tão furiosa que nem a iluminação parca a salvaria de um olhar
atento.
— Isso não é da sua…
— Ela parece interessada também, por que não vai até lá? — ele interrompeu.
Algo cutucou o coração de Sienna, causando-lhe dor. Ouvi-lo incentivando-a a se aventurar
com outra pessoa foi um golpe que ela sentiu bem fundo.
— Ela parece mais interessada no baseado que está fumando — falou, e lançou um olhar para
Bianca, que ouvia histórias e ria alto, provavelmente chapada.
Era como se tivesse esquecido da existência dela.
— Não quer mostrar que você é mais interessante?
Ela não pôde evitar ficar na defensiva.
— Não sei se vale a pena — disse, externando velhas preocupações. — No fundo, ela é uma
garota mimada pelos pais, que sabe tanto quanto ou menos que eu sobre as coisas da vida.
O rapaz recostou-se no apoio da cadeira, dando-lhe toda sua atenção. Ela desejou que ele
fizesse isso muito mais vezes.
— Às vezes — continuou ela, sem pensar —, eu me pergunto se não seria melhor esperar por
alguém mais… experiente. Que tivesse sempre algo a acrescentar, como… — você, iria dizer,
mas se interrompeu.
Sua mão livre tremeu e ela escondeu-a debaixo da mesa. Podia sentir o sangue pulsando em
seus ouvidos, estando agora hiperconsciente de seu corpo.
O rapaz ficou encarando-a com uma expressão impassível.
Ela notou uma mecha de cabelo caindo em sua testa e precisou controlar o impulso de
entremear os dedos naqueles fios e puxá-lo para si. Era uma sensação atordoante.
— Você não pediu a minha opinião — começou o rapaz —, mas talvez você devesse se
preocupar em aprender ao menos o básico antes de sair em busca de alguém mais… experiente.
Sienna achava que já conhecia todas as emoções que um ser humano podia experienciar ao
longo da vida, mas nada a tinha preparado para aquele sentimento de humilhação genuína.
Sentiu-se fraca, medíocre, reduzida a pó. Uma completa imbecil. Sua visão ficou embotada.
— Tem razão — disse ela, aturdida. — Eu não pedi a sua opinião.
A garota se levantou como se sua cadeira estivesse pegando fogo, tamanha a pressa de se
afastar do rapaz ao seu lado.
Tropeçou no amontoado de cadeiras vazias antes de chutá-las para fora do caminho, mas
assim que deu as costas para a mesa, Sienna só tinha uma coisa em mente: reparar seu orgulho.
Foi marchando na direção de Bianca e sua gangue, determinada a livrar-se do sentimento de
humilhação.
— Ah, olha quem decidiu aceitar o gin — falou Bianca, assim que viu a garota entrando no
círculo de cadeiras.
Sienna forçou o melhor sorriso que conseguiu esboçar naquele momento.
— Eu disse a você que estava interessada — respondeu, piscando um olho para a jovem.
Bianca abriu a boca, mas esqueceu de falar.
Os colegas da escola que estavam no círculo emitiram barulhos abafados, empolgados com a
interrupção promissora.
Benji se afundou na cadeira, amuado.
Sienna não estava mais com medo da exposição. Estava única e exclusivamente fervendo de
raiva, desesperada para provar que a opinião do estranho não tinha influência sobre ela.
Ignorando o fato de que a opinião dele a havia levado até ali, a garota se aproximou de Bianca
o suficiente para tirar o rolinho de papel da mão dela e levar à sua própria boca.
Sentiu os olhares queimando suas costas, mas ninguém falou uma palavra sequer durante o
momento.
Bianca a olhava, em transe. Sienna podia dizer, pela expressão em seu rosto, que a garota não
desistiria dela tão cedo.
Por um milagre, ou pela força do ódio que sentia pelo rapaz que deixou para trás, Sienna
conseguiu inalar a fumaça sem engasgar. Teve que cuidar em puxar uma pequena quantidade,
mas quando exalou, viu, pelo sorriso de Bianca, que ela tinha feito tudo certo.
— Pode pegar o que quiser, então — respondeu a garota, mostrando as covinhas.
Sienna sentiu-se mais ousada do que pensara ser possível até poucos segundos atrás. Ela tinha
conseguido provar que já sabia o básico e esperava que o idiota tivesse prestado bastante
atenção.
Mas então ela cometeu o erro de olhar para sua mesa e seu humor foi reduzido a frangalhos
quando viu que o assento do rapaz estava vazio. O único indício da presença infame dele era o
prato de batatas fritas, que agora jazia limpo.
Sienna desejou ter envenenado a comida de alguma forma. Torceu para que ele tivesse uma
má digestão e morresse. Que convalescesse por muito tempo, arrependido de suas últimas
palavras para ela, e então partisse dessa para pior.
E que não demorasse tanto para encontrá-la da próxima vez.
7: SIENNA
Devil Devil, Milck

Dormi como uma pedra depois que cheguei da biblioteca, o que tornou meu segundo ensaio
muito mais interessante.
Dessa vez, Edgar não me abordou no canto da sala para tecer comentários sobre o meu
desempenho, mas demonstrou aprovação em alguns momentos.
Quando enfim chego no meu apartamento, do outro lado da cidade, estou faminta e
precisando de um banho. No entanto, assim que entro no quarto, descubro que meus planos
precisarão ser adiados.
Thalia está parada na frente da janela, brincando com a persiana com uma mão e segurando
um copo transparente com a outra.
Parece bastante à vontade em um short branco de algodão, uma blusa de gola alta da mesma
cor e tênis esportivos.
Ela não se vira logo que entro, o que me faz pensar se sequer me ouviu chegar.
Acho que nunca vou me acostumar a essas aparições repentinas.
Com um movimento sutil, o anjo me lança um olhar por cima do ombro.
— Olá — diz, deixando a persiana de lado.
Enfio as mãos nos bolsos da calça.
— Oi — respondo, incerta.
Thalia mexe o conteúdo do copo com o canudo, e só então noto o logo da Starbucks impresso
no plástico.
— Chá verde? — ela oferece.
Faço que não com a cabeça.
Me pergunto com que frequência os anjos devem frequentar cafeterias famosas. O mais
engraçado é que eu julgaria Thalia como alguém que prefere café em vez de chá. Isso só prova o
quanto eu não sei nada sobre ela.
— Só ofertas de vida eterna, então — fala.
Minhas bochechas ardem com a sensação de ter sido pega no pulo.
— Como ficou sabendo disso?
Agora que paro para pensar, Thalia já parece saber muitas coisas sobre mim que eu nem
mesmo admiti em voz alta alguma vez. No nosso primeiro encontro, ela me mandou esquecer os
sentimentos que tenho por Kai, mas como ela sabia sobre eles, para começo de conversa? Esteve
o tempo todo lendo meus pensamentos?
Thalia se senta na cama com graciosidade.
— Nada que acontece nesse plano é segredo para o céu. Nem para o inferno, sendo sincera.
Quem quiser saber, vai saber.
Eu deveria estar chocada, mas não estou. Seria esperar demais que seres imortais respeitem a
privacidade de meros humanos como eu. Aposto que tudo não deve passar de entretenimento
para eles. Devem assistir as vidas alheias, apontar dedos e quem sabe até fazer apostas às nossas
custas.
— Quase um BBB deturpado — murmuro comigo mesma.
O anjo pestaneja.
— O quê?
Balanço a cabeça para dispersar os pensamentos aleatórios.
— Nada — digo, embora fique com a impressão de que Kai teria entendido a referência. —
Mas de toda forma, eu não aceitei oferta nenhuma.
— Certo. Só entrou nos joguinhos dele e deu exatamente o que ele queria. Nada demais.
Embora não pareça brava, as alfinetadas deixam claro que Thalia não está satisfeita comigo.
Não que ela esteja errada. Também não estou feliz depois do rumo que a minha conversa com
Kai tomou.
— Achei que pudesse me livrar dele de uma vez por todas — explico, evitando os olhos do
anjo.
— Você vai se livrar dele de uma vez por todas, Sienna, só não agora. Sei que é difícil, mas
mantenha a guarda levantada quando estiver com ele. — Ela faz uma pausa. — E já que estou
dando conselhos, recomendo que você se afaste daquele seu professor pervertido. Isso não tem
como acabar bem.
Meu rosto volta a esquentar com a menção de Edgar e do trato sórdido que fizemos.
Tanta coisa aconteceu nesses últimos dois dias que mal tive tempo para pensar nesse
problema em específico.
Mas não é uma surpresa que Thalia me queira longe dele. Ninguém com o coração no lugar
levaria uma barganha desse tipo adiante, e, pelo menos por agora, eu preciso tentar ser uma boa
pessoa.
— Não vou dar o que ele quer — respondo, parte aliviada por ter escapado, parte ansiosa
pelas consequências que a minha decisão trará.
— Garota esperta.
Não digo mais nada enquanto assisto Thalia tomar os últimos goles de seu chá como se não
tivesse problema nenhum para resolver.
Quando termina, ela me olha por um longo minuto antes de compartilhar o que tem em mente.
— O que acha de dar comida aos animaizinhos de rua do bairro? — pergunta por fim.
Faço cara de interrogação.
— Dar comida?
— Tem ração atrás de você. Percebi que há muitos bichinhos sem lar nessa área e imaginei
que você fosse querer ajudar eles.
Me viro e dou de cara com um saco imenso de ração que definitivamente não estava aqui
quando entrei no quarto. Ela é rápida.
— Hmm, é uma boa ideia, eu acho. Posso almoçar primeiro? — arrisco, sabendo que essa não
vai ser uma tarefa trivial, mas sem querer dar para trás.
Thalia fica confortável na minha cama.
— Seja rápida ou eu posso acabar pegando no sono aqui.

É impressionante a quantidade de coisas que seu cérebro pode ignorar quando não são
convenientes. Há mais animais de rua no meu bairro do que nunca imaginei que tivesse na
cidade inteira, e, de alguma forma, eu só percebi isso agora.
Thalia e eu andamos por parques e vielas, deixando porções de ração em lugares estratégicos,
até meus pés ameaçarem formar bolhas.
É por uma boa causa, penso vez após outra. Mas o calor castiga e o sol de rachar não torna a
missão mais tranquila.
— E você ainda queria vir sem passar um protetor solar — ouço o anjo murmurar ao meu lado
conforme atravessamos a rua.
Se proteger dos raios UV não é bem a prioridade quando se está numa situação como a minha.
Não fosse pelo lembrete de Thalia antes de sairmos, eu estaria vários passos mais perto de uma
insolação.
— Obrigada por literalmente salvar minha pele — digo, sorrindo a contragosto.
Paramos para beber água sob a sombra das árvores de uma praça, e sinto meu celular vibrar
no bolso da calça.
Aproveito a distração do anjo, que coça as orelhas de um cãozinho alegre, para dar uma
espiada no aparelho.
O nome de Edgar aparece na tela, com uma notificação de mensagem não lida. Fico surpresa a
ponto de quase derrubar o celular.
Intrigada, abro a mensagem.

A mensagem termina com uma localização.


Tudo o que faço por meio minuto é encarar a tela do celular, perplexa.
Não quero nem ao menos saber como ele descobriu onde eu moro. E que coisa é essa que ele
deixou na minha portaria?
Um movimento na minha visão periférica me lembra que não estou sozinha. Bloqueio o
celular e o devolvo ao bolso rapidamente, torcendo para que Thalia não tenha notado.
Aparentemente alheia às minhas atividades paralelas, ela começa a brincar com outro cão que
se aproxima ao sentir o cheiro da comida.
Volto a dar atenção aos bichos, mas se antes não conseguia focar completamente na tarefa,
agora só tenho a mensagem do professor ocupando minha mente.

Quando o último saco de ração acaba, Thalia se dá por satisfeita.


— Gostei de ver — ela diz, me olhando de soslaio. — Começamos pelo mais simples e você
se saiu bem.
Aceito sua aprovação com um meio sorriso, mesmo que meus ombros estejam ardidos pelo
sol e meus pés cheios de bolhas.
— Agora quero que você mesma pense no que faremos quando eu voltar. Não é difícil, basta
escolher uma ação que vá ajudar alguém. Sei que você consegue.
Meu sorriso vacila.
Ela tem mesmo fé em mim. Eu deveria ficar feliz por isso, não? Então por que estou com a
sensação de que irei decepcioná-la logo, logo?
— Posso tentar — murmuro, apesar do crescente desconforto.
Quão difícil isso poderia ser? Vou dar conta.
O anjo me acompanha de volta ao meu prédio, se locomovendo com muito menos esforço que
eu sob o sol escaldante.
Assim que nos despedimos e Thalia some de vista, entro no edifício antigo e vou até a
portaria.
Edgar me viu hoje mais cedo, então por que apenas não me entregou a coisa pessoalmente?
No final do ensaio, todo mundo está exaurido demais para notar uma simples troca entre quem
quer que seja. A não ser que a coisa em si não seja tão discreta assim.
William, o porteiro, acena para mim quando me vê chegar.
— Boa tarde, menina — diz ele, virando de costas. — Deixaram isso aqui pra você.
Ele me entrega uma caixa do tamanho de uma bandeja, completamente preta e sem inscrições,
mas rodeada por um laço vermelho.
— Obrigada — agradeço com um sorriso.
A caixa não é pesada, e quando a chacoalho, já dentro do elevador, não ouço nada balançar.
Fico tentada a abrir aqui mesmo, mas lembro que o elevador tem câmeras e que ainda não sei o
que Edgar resolveu aprontar.
De volta ao meu apartamento, deixo o pacote em cima da mesa, tiro uma foto e encaminho ao
professor com uma breve mensagem:

Não que eu acredite que poderia ser qualquer uma dessas coisas.
Edgar não tem motivos para me fazer mal. Ainda, pelo menos.
Cautelosa, começo a desfazer o laço no topo da caixa. Edgar não teria conseguido me entregar
isso mais cedo na Academia sem chamar atenção indesejada.
Deixo a fita no canto e removo a tampa para revelar o conteúdo lá dentro.
Tecido. É por isso que chacoalhar a caixa não denunciou nada.
Com uma sensação crescente de ansiedade, tiro a peça do embrulho até poder vê-la por
completo.
Edgar me mandou um vestido. Preto como a noite, de um tecido suave que me lembra veludo.
Tem um corpete justo e um decote quadrado bastante razoável. As alças são largas, se
encontrando atrás da nuca, e a saia lápis é feita para ir até ligeiramente pouco depois dos joelhos.
É lindo e eu fico admirando-o por um longo instante.
Digo a mim mesma que a única intenção de Edgar ao me enviar esse presente é causar uma
boa impressão em seus convidados. Nada mais que isso.
Ainda assim, sei o preço deste convite. Ele prometeu ser útil contanto que eu também fosse
útil para ele. Não sou tola de confundir as ações de Edgar com caridade; ele espera receber seu
pagamento na moeda que combinamos.
Não sei descrever como me sinto exatamente. Não deveria estar recebendo vestidos elegantes
do meu professor e tampouco deveria ir a um jantar na casa dele. Toda essa situação é absurda e
perigosa.
Gostaria de poder dizer que não vou ficar para ver onde isso vai acabar, mas me conheço
muito bem para isso. Apesar de ter decidido que Edgar não receberá nada de mim, ele ainda é
uma porta de acesso aos contatos que preciso e eu quero me aproveitar disso enquanto posso.
Levo o vestido comigo para o quarto, fazendo um apelo silencioso para que Edgar seja mais
paciente do que aparenta.
Se a nossa barganha está condenada, posso pelo menos tentar conseguir algo antes que ele
descubra.

Como até não caber mais nada, e pelo resto da tarde me ocupo com tarefas da Academia.
Quando finalmente termino, estou com dores na lombar e os olhos secos.
Me enfio no roupão depois do banho e me jogo no sofá para responder as mensagens que
chegaram enquanto estive ocupada.
Algumas são de Ágata, querendo saber o que vou fazer hoje à noite e se quero jantar comida
japonesa em sua casa. Minto que irei à academia, apesar de não ter pisado lá já faz meses.
Mais mensagens. Minha mãe, perguntando se estou bem e se estou dormindo oito horas por
dia. Liang, compartilhando um meme do Twitter.
Na altura que consigo responder todo mundo, já estou em cima da hora para me arrumar.
Começo pela maquiagem, mas não me empenho tanto. Pode ser um grande evento para mim,
mas, no final das contas, ainda é um jantar em casa para poucos convidados. Opto por um batom
nude que faz meus lábios parecerem mais grossos do que realmente são, e uma sombra marrom
para favorecer o tom castanho claro dos meus olhos.
Pego o vestido que deixei num cabide e o admiro mais um pouco.
Edgar acertou o meu tamanho. Não sei se fico impressionada ou intimidada.
Visto a peça com cuidado para não criar vincos no tecido. A sensação de tê-la no corpo é
bastante agradável.
No espelho, contemplo o resultado.
É belo, simples e sofisticado. Mesmo sem nenhum acessório, pareço alguém que frequentaria
o círculo social de Edgar e riria de todas as piadas que certamente não envolveriam meu nome.
Pareço alguém que pessoas importantes notariam. Consigo enxergar porque o professor fez
questão que eu fosse ao jantar assim.
Satisfeita, me viro de volta para a penteadeira para finalizar com os acessórios.
Mas assim que dou as costas ao espelho, sou pega totalmente de surpresa. A poltrona, até
segundos atrás vazia, agora acomoda o demônio mais inconveniente que já pôs os pés nesse
mundo.
Quase tropeço, tamanho o susto causado pela intromissão, e levo uma mão ao peito ofegante.
— O que acha que está fazendo?! — Minha voz sai esganiçada.
Com uma perna dobrada sobre a outra, Kai brinca com uma mariposa que voa em torno de seu
dedo em riste.
— Também me faço essa pergunta às vezes — responde, sem interromper sua distração. — O
que estou fazendo? Será que realmente sei? Ou só estou fazendo todo mundo acreditar nisso?
O quê?!
Devo ter feito a exclamação em voz alta, pois Kai hesita por um segundo antes de deixar a
mariposa seguir seu curso.
Ele me encara pela primeira vez, e então desce o olhar pelo meu corpo.
Sinto as bochechas arderem.
Estou corando de novo? Pelo amor de Deus!
— Está tentando impressionar alguém? — ele pergunta, após uma inspeção meticulosa.
Cruzo os braços para esconder os arrepios que lamberam minha pele.
— Não é nem um pouco da sua conta — resmungo, malcriada.
Ele abre um sorrisinho faceiro de quem sabe muito bem que estou aprontando.
— Pelo menos esse seu professor tem bom gosto. O vestido te faz parecer interessante.
Dou-lhe um olhar fulminante.
Primeiro: isso não foi nem de longe um elogio. Segundo: não gosto do que ele está
insinuando.
— Saia do meu quarto — digo, seca. — Não me importo que volte depois, já aceitei que estou
presa a você por sete semanas, mas estou me arrumando e não quero fazer isso com você aqui.
Kai deixa escapar uma risada grave e curta.
— Gosto quando você me dá ordens — confessa, me surpreendendo. — É como se esperasse
que eu fosse obedecer.
— Todos os demônios são tão imbecis quanto você? — rebato, entredentes.
— Não, sou o primeiro e único de meu nome.
Faço cara de escárnio. Ele é inacreditável.
— Para uma criatura do inferno, você sabe muito sobre coisas mundanas.
Ele apenas dá de ombros.
— Já fui humano um dia. Uma pena que não tinha tanta coisa legal para usar de referência
naquela época.
Pisco várias vezes seguidas, estarrecida com a revelação.
— Você? Humano? — gaguejo, nem sequer tentando disfarçar o quanto estou surpresa.
Ele não pode estar falando sério. Humanos não se tornam demônios, nem antes nem depois da
morte.
— É claro. Onde acha que eu arranjei esse corpo? — ele aponta, e sou obrigada a ponderar a
questão.
Nunca soube como e por que Kai tem essa aparência, mas depois de descobrir quem ele é,
acho que apenas deduzi que ele estava tomando uma forma humana qualquer esse tempo todo,
para não me assustar com sua verdadeira aparência.
Mas se Kai já foi humano um dia…
— Como foi que você se transformou num demônio? — pergunto, embora não tenha certeza
de que desejo saber.
— Vivi exatamente o que você está vivendo agora, monstrinho — revela, distraidamente
raspando as unhas no apoio de braço da poltrona. — Minha alma foi disputada e eu perdi. Há um
lugar especial no inferno para almas como a nossa. Você vai conhecer em breve.
Um novo arrepio me assombra e não tenho certeza se consigo escondê-lo dessa vez.
— Todos que perdem a alma viram ceifadores para repetir todo o processo com outras
pessoas?
Como um esquema de pirâmide macabro ou alguma merda parecida. O pior de tudo é que faz
sentido. Todos eles se tornam parte de um exército cujo principal objetivo é se manter crescendo.
De caça a caçador.
— Nos chamam de Enganadores — explica. — A melhor Ordem de todos os cinco domínios
infernais, na minha opinião. Tenho certeza que você vai adorar.
— Não pretendo perder minha alma.
— Felizmente, alguém mais inteligente já tomou essa decisão por você. Seu pai sabia das
coisas.
Meu coração martela no peito, pego desprevenido.
— Você conhece ele? — balbucio.
A ideia de Kai e meu pai serem vizinhos no inferno me deixa nauseada.
Para o meu alívio, ele faz que não com a cabeça.
— Os que fazem pactos geralmente vão para outro lugar. Não é um ambiente agradável, então
gosto de passar longe de lá.
Ah, o Karma. Estou em apuros agora, mas meu querido pai está bem ferrado. Quase me sinto
um pouquinho melhor sabendo disso. Talvez eu brinde a isso se conseguir sair dessa situação
com a minha vida e minha alma intactas.
Kai volta a falar, interpretando meu silêncio como um convite para continuar a conversa.
— Agora que você tocou no assunto, me veio uma ideia — ele diz. — Se está tão determinada
assim a manter a sua alma, por que não entra em contato com seu pai e convence ele a romper o
acordo? Ele tem pouco a perder agora, uma quebra de contrato não faria muita diferença.
Estreito os olhos na direção dele.
— Ele está morto — digo o óbvio como se ele pudesse ter esquecido. — Como você espera
que eu entre em contato com alguém que já morreu?
Porque eu definitivamente não estou tendo essa conversa com um morto-vivo.
— Dica de alguém que já morreu: há sempre uma forma de se comunicar com quem está do
outro lado.
Tenho o impulso de zombar dele e da sugestão por ser algo que eu nunca faria, mas me pego
fantasiando cenários onde eu consigo convencer o homem que me gerou a desfazer o estrago que
ele mesmo causou em minha vida.
Eu o daria a chance de ser meu pai ao menos uma vez e ele a aproveitaria. No entanto, fora da
imaginação, as coisas não são tão simples. Se fossem, a ideia teria partido de Thalia e não de
Kai.
— Talvez eu faça isso mesmo — blefo mesmo assim, pois o quero pensando no que sou capaz
de fazer. — E você vai parecer um idiota quando eu conseguir me livrar de você. Dessa vez, para
sempre.
— Não sei, não. Acho que você estaria me fazendo um favor.
Cansada dos joguinhos dele, pego minha caixa de acessórios em cima da penteadeira e os
sapatos que separei, e marcho na direção da porta.
— Já que você não vai sair do meu quarto, saio eu — murmuro, sem olhá-lo. — Tenha uma
péssima noite.
— Aproveite a sua. Faça valer a pena ter agido pelas costas do seu anjo.
Involuntariamente, me viro de volta para ele quando estou passando pela porta.
— Não estou fazendo nada errado — me defendo, mas meus batimentos cardíacos me traem.
Apoiando a cabeça no encosto da poltrona, Kai me lança um sorrisinho arteiro.
— E desde quando você sabe o que essa palavra significa?
Nos encaramos por meia respiração antes de eu bater a porta com força e correr para o
banheiro.
Não estou fazendo nada errado. Não estou fazendo nada errado. Não estou fazendo nada
errado.
Mas desde quando eu sei o que "errado" significa?
8: SIENNA
I Did Something Bad, Taylor Swift

Arrumo meu cabelo da melhor forma que posso, com os recursos limitados que tenho no
banheiro, mas não ouso voltar ao meu quarto depois que deixo Kai sozinho lá.
Meio que espero encontrá-lo na porta do banheiro quando saio para ir embora, porém o
apartamento está vazio e quieto. Não querendo dar sorte ao azar, pego minhas coisas e saio porta
afora.
Peço um Uber, e embora o trânsito me faça atrasar nove minutos, chego sem dificuldades ao
endereço do professor.
Depois que passo pela guarita do condomínio fechado, o funcionário dá as coordenadas para
encontrar a casa de Edgar.
Já dentro do lote, descubro o motivo da preocupação do rapaz. Eu facilmente me perderia aqui
dentro, no meio de todas essas mansões monocromáticas.
Passo por meia dúzia de casas com gramados perfeitos e arquiteturas curiosas, tentando — e
falhando — imaginar a vida das pessoas que moram aqui.
Mal consigo bancar meu apartamento a uma hora da Academia com o que ganho. São
realidades totalmente diferentes, embora eu ache que poderia me acostumar a essa nova num
piscar de olhos.
O motorista para o carro na frente da casa de número vinte, e por um momento, tudo o que
faço é encarar a construção, boquiaberta.
É um sobrado moderno, que varia entre cinza e preto, com uma porta medindo dez vezes o
meu tamanho e uma varanda com sacada de vidro. É tão impressionante que me sinto patética
diante dela.
A entrada da casa de Edgar é intimidadora, mas faço o caminho até a porta pivotante como se
estivesse habituada ao lugar. Cabeça erguida e um passo de cada vez. Exatamente como tenho
feito todo esse tempo.
A princípio, fico em dúvida entre bater direto na porta e tocar o interfone. A segunda opção
me parece constrangedora demais, porém a primeira dificilmente funcionaria, uma vez que Edgar
pode estar em um cômodo onde não seria possível me ouvir.
Respiro fundo e aperto o botão do interfone. Cinco segundos depois, ouço um estalido e a
porta se abre num rompante. Quase pulo para trás.
— Aí está você — diz Edgar, aparecendo no vão entre a porta e o batente.
Ele usa uma camisa verde de caxemira, com mangas longas e gola alta. O cabelo ruivo está
arrepiado como se ele estivesse a noite toda passando os dedos pelos fios.
— Desculpa pelo atraso — balbucio, por falta de algo melhor para dizer.
— Entre, acabamos de abrir um vinho.
Sou puxada para dentro antes de poder falar qualquer outra coisa, o que é bom, pois ainda não
sei que palavras usar.
Dou de cara com o que deve ser o hall de entrada, e só esse pequeno espaço já denuncia a
imponência do resto da casa.
Passo na frente de um espelho imenso quando o professor me guia pelo corredor com uma
mão nas minhas costas. De onde estamos, já consigo ouvir alguém falando no próximo cômodo.
Viramos à direita na primeira entrada e descubro que o cômodo em questão se trata de uma
sala de estar.
A decoração e os móveis à primeira vista são de tirar o fôlego. Todo o cômodo exala
elegância e bom gosto, mas não encontro sinais da excentricidade de Edgar em lugar algum.
Não tenho muito tempo para refletir a respeito, pois o professor caminha comigo na direção
dos sofás e eu tenho o primeiro vislumbre das duas pessoas que estão sentadas nele. E acontece
que eu conheço ambos os homens, embora nenhum deles me conheça ainda.
Edgar se adianta ao meu lado, se dirigindo a eles.
— Senhores, essa é a Sienna Bianco, minha convidada especial. Pensem duas vezes antes de
falar merda na frente dela.
Meu estômago dá voltas quando reconheço os homens a quem estou sendo apresentada.
Apesar disso, sorrio de maneira ampla, estendendo a mão para o primeiro que se levanta e vem
me cumprimentar.
— Sienna, que prazer — o homem mais baixo e grisalho diz, dispensando minha mão e me
puxando para um abraço amistoso. — Sou o Raul.
Raul Zambini. Provavelmente o agente de atores mais cobiçado da cidade.
Retribuo o abraço com o coração vibrando no peito.
— Digo o mesmo.
O segundo homem, talvez o mais alto aqui presente nesse momento, também se aproxima
para um cumprimento amigável.
— Prazer, Sienna. Laerte.
Laerte Saraiva. Ator de destaque em mais novelas do que consigo lembrar. Ele deve ter uns
trinta anos somente de carreira, mas os procedimentos estéticos que andou fazendo no rosto
ainda conseguem disfarçar os efeitos do tempo.
— O prazer é todo meu — digo, apertando a mão dele.
— Venha sentar aqui com a gente — Edgar pede, indo se acomodar em um dos sofás. —
Ainda falta o Mathias, mas enquanto isso, o Laerte quer nos contar uma história interessante, não
é, Laerte?
Raul e Laerte voltam aos seus lugares, já com suas taças em mãos.
Aproveito a deixa e me sento ao lado do professor. Ele prontamente me oferece uma taça com
vinho.
Arrumo um jeito de segurar a peça delicada sem demonstrar que estou trêmula e transpirando
como uma maratonista.
Estou diante de dois gigantes do mundo artístico. Isso está mesmo acontecendo.
Em algum lugar fora dos meus pensamentos, a voz de Laerte preenche o espaço.
— Vou ter que guardar essa para mais tarde, Ed. A Sienna está sóbria demais para ouvir essa
história sem pensar mal de mim.
— Seu doente — Edgar dispara, ao que Raul gargalha do outro lado, segurando a ligeira
saliência da barriga.
Entro na brincadeira, sentindo o olhar do professor estudando minhas reações.
— Não se preocupe, se eu te julgar, vai ser só mentalmente — asseguro, esboçando um
sorriso doce.
Erguendo sua taça em um brinde fictício, Laerte pisca por trás dos óculos e fala:
— Obrigado por isso. Se todos pensassem como você, viveríamos num mundo bem melhor.
Ao lado dele, Raul bufa.
— Ah, cala a boca, você é o primeiro a julgar os outros — acusa, e os dois iniciam uma
discussão sem propósito.
Se aproveitando da distração dos amigos, Edgar se inclina para falar de forma que só eu possa
ouvi-lo.
— Fico feliz por você ter vindo. Tive medo que achasse o convite invasivo demais —
confessa.
Encontro seu olhar, e por um instante, quase esqueço que ele está esperando uma resposta
minha.
— Nem um pouco — digo, porque ele não precisa saber o que realmente acho. — É uma
oportunidade incrível. Obrigada, Edgar.
O professor sorri, tomando um gole do próprio vinho.
— Não me agradeça ainda. Meu caríssimo Raul aqui — ele se faz ouvir acima da discussão
improdutiva dos outros dois — está revirando o país inteiro à procura de novos nomes. Eu disse
a ele que conhecia alguém perfeito.
Esquecendo o bate-boca com o amigo, Raul se empertiga no assento.
— Não, você disse que me apresentaria a pessoa que eu nem sabia que estava procurando —
ele corrige, olhando para mim em seguida. — O que automaticamente me deixou ansioso para te
conhecer, porque Edgar não é alguém que se impressiona fácil.
— Só espero estar à altura da propaganda — digo, lançando um olhar de esguelha para o
professor.
Laerte faz um muxoxo.
— Você não precisa ser modesta na nossa frente, Sienna — o ator pontua, gesticulando com
as mãos. — Ninguém aqui é conhecido pela humildade.
Levo a taça aos lábios para esconder meu sorriso.
Esses homens não são nada parecidos com o que eu tinha em mente. Parecem dois bobões
sem nenhuma preocupação séria no mundo. Será esse o segredo que os homens bem-sucedidos
escondem de todos?
Uma terceira voz surge de algum ponto adiante, me trazendo de volta.
— Começamos os elogios tão cedo, rapazes?
Ergo a cabeça bem a tempo de ver uma mulher incrivelmente sofisticada descendo o último
degrau da escada.
Está usando roupas casuais, mas isso não a deixa menos impressionante. É a mesma mulher
de pele negra e sorriso afável ao lado de Edgar nas fotografias que vi em sua sala na Academia.
O primeiro a se levantar é Laerte, que envolve a mulher em um abraço terno.
— Diana, querida, achei que não teria o prazer de te ver hoje — diz ele.
Raul é o próximo a cumprimentá-la.
— É, pensei que teríamos que nos contentar com esse seu marido insosso.
Como não fui introduzida, permaneço sentada onde estou. Edgar não demonstra nenhum sinal
de que irá se levantar para saudar a mulher.
— Me desculpem pelo atraso — a mulher fala, parecendo de verdade sentir muito. — Esse
fuso-horário é terrível, tive que me controlar para não dormir na hora do almoço hoje.
Ao meu lado, Edgar escolhe esse momento para se pronunciar.
— Ana, essa é Sienna, a aluna de quem falei mais cedo.
Fico de pé no mesmo instante, dando um passo na direção de Diana Costacurta.
— Prazer em conhecê-la, Diana. E obrigada por me receber na sua casa.
A esposa de Edgar sorri de maneira educada, fazendo pequenas rugas se formarem ao redor de
seus olhos.
— Bem-vinda, Sienna. Aposto que você é tão talentosa quanto é bonita.
Sem que eu perceba, Edgar surge ao meu lado e estende um braço por sobre os meus ombros.
Argh.
— Ela é um escândalo — diz ele, me deixando sem opção a não ser sorrir pelo lisonjeio. —
Espere só até o Mathias pôr os olhos nela. Ele vai enlouquecer.
Os três homens começam a tecer comentários sobre a possível reação de Mathias, mas Diana
os ignora conforme mantém os olhos em mim.
Tenho o cuidado de sustentar uma expressão neutra, no entanto, estou me remoendo
internamente.
Edgar planejou tudo isso com sua esposa em casa. E agora ela está aqui, me recebendo em seu
lar de bom grado, sem sequer imaginar qual teria sido a verdadeira natureza da minha relação
com seu marido se eu não tivesse pensado melhor.
Me pergunto se ainda há salvação para mim depois disso.
— Fique à vontade, querida — Diana volta a dizer. — O jantar vai ser servido em alguns
minutos.
Mas não fico à vontade.
O vinho parece ter ficado amargo e meu sorriso agora sai engessado.
Passo os próximos minutos evitando olhar nos olhos de Diana por receio do que ela possa
encontrar por trás dos meus.

Depois que o último convidado chega, não demora muito até a mesa ser posta.
Sou apresentada a Mathias Almeida, que até então eu não conhecia, e que descubro ser um
diretor de elenco em ascensão.
Mathias me examina dos pés a cabeça assim que bate os olhos em mim, beija minhas duas
bochechas e me faz rodopiar uma vez.
Se eu pensava que Edgar era excêntrico, Mathias se mostra a excentricidade em pessoa. A
começar por suas roupas elegantes, seu cabelo na altura dos ombros e os olhos delineados de
preto.
Ele e Raul iniciam diversas discussões sobre qual deve ser o rumo da minha carreira e em
quais projetos preciso focar, embora nenhum deles me consulte sobre o que acho.
Edgar se limita a observar os amigos e fazer algum comentário espirituoso de vez em quando.
Diana, ao que parece, é uma ouvinte excepcional.
Tento interagir o máximo possível nas conversas, apesar de ser difícil acompanhar as piadas
internas do grupo. Felizmente, todos eles parecem gostar de mim o suficiente para trazer os
tópicos a terrenos que eu já conheço, então Mathias logo começa a falar sobre o seu novo projeto
em andamento.
Em seguida, Laerte decide me convencer de que devo começar pelas novelas, ao que Raul
critica categoricamente.
Em meio às farpas trocadas, Edgar se inclina para mais perto até que nossos ombros estejam
quase se tocando.
— Não lembro de ter dito antes — fala em voz baixa —, mas você está incrível nesse vestido.
Engulo uma garfada do polvo à provençal em meu prato, sentindo a bile subir à garganta.
Aperto os punhos fechados em meu colo até as unhas deixarem marcas na palma.
Como ele pode me dizer essas coisas com a esposa literalmente do lado?
Fico tão inquieta que não presto atenção a mais nada do que dizem, até ouvir uma cadeira
raspando o chão.
Diana fica de pé de repente.
— Hora de dar uma olhada na sobremesa.
Afasto a minha própria cadeira antes de pensar mais a respeito.
— Posso te ajudar — ofereço, me agarrando à promessa de um pouco de ar.
Se estranha a oferta, Diana não transparece. Ela aquiesce com um gesto e começa a deixar a
sala.
Vou atrás sem perder tempo, aproveitando a distração dos homens à mesa. Sinto o olhar de
Edgar em minhas costas, mas não olho para trás.
Mal percebo por onde estou andando, e só me dou conta de que chegamos à cozinha quando
vejo Diana terminando de vestir uma luva térmica.
Seus cachos, antes caindo ao redor do rosto, agora estão presos para não atrapalhar na tarefa.
— É a primeira vez que faço Clafoutis, não estou muito confiante — diz, enquanto abre o
forno e retira uma assadeira com a mão enluvada. — Na França, eles são muito exigentes com os
pratos. Pelo menos aqui posso brincar um pouco.
Forço uma nova máscara de tranquilidade.
— Você mora na França, então?
Ela usa o balcão da pia para descansar a assadeira fumegante.
— Há seis anos. Mal reconheço essa casa hoje em dia.
Apoio o quadril na ilha de mármore, grata pela mudança de ambiente mesmo que por poucos
minutos.
— Deve ser difícil lidar com a saudade de quem está aqui — comento.
Removendo a luva, Diana reflete um pouco antes de responder. Assim como eu, ela usa o
balcão como apoio para ficar mais confortável.
— Minha família está espalhada pelo mundo, não nos vemos há séculos. E Edgar ama demais
o trabalho para ficar longe por muito tempo. Nos visitamos sempre que possível, mas não é a
mesma coisa — confessa, e noto um quê de melancolia em suas palavras.
Como não posso ser honesta sobre o que realmente penso, digo o que imagino que uma
mulher na pele dela gostaria de ouvir.
— É de se admirar. Vocês se amam o bastante para sustentar um casamento, apesar da
distância. Muitos relacionamentos acabam por bem menos.
Edgar a ama? Não faço a menor ideia. Ele a merece? Definitivamente não.
— Casais precisam fazer concessões para que o relacionamento dê certo — fala. — Nós dois
abrimos mão de certas coisas em prol de outras e assim temos sido felizes. O erro está em não
querer abrir mão de nada.
Considero o argumento por um instante. Por fim, concordo com um meneio de cabeça.
— Vou manter isso em mente daqui pra frente — prometo, e pelo menos isso não preciso
fingir.
Fico surpresa quando Diana ergue a mão de repente, deslizando os dedos pela minha
bochecha. O gesto é terno, quase nostálgico.
— Você é tão jovem. Tão linda — murmura com delicadeza. — O vestido ficou ótimo em
você.
Sinto toda a cor se esvair do meu rosto, totalmente incapaz de fingir uma reação diferente.
Não penso nem por um segundo que Diana não tenha percebido meu choque.
Ela me enviou o vestido?
Meu cérebro começa a buscar as palavras certas para a resposta que preciso dar. Tenho que
dizer alguma coisa, afinal. Ela me deu um maldito Versace.
— Não tive a chance de agradecer por ele — consigo dizer, mal reconhecendo minha voz. —
Obrigada. É deslumbrante e serviu perfeitamente.
Não é uma mentira. E ela está melhor sem saber tudo que não estou dizendo.
Diana acaricia meu cabelo solto.
Me ocorre que eu daria tudo para saber o que está se passando pela cabeça dela nesse
momento.
— Use seu cabelo assim — ela diz por fim, juntando todas as mechas em um único lado. —
Edgar prefere os ombros à mostra.
A mulher se afasta e começa a lavar as mãos na pia, me deixando paralisada no meio da
cozinha.
Dessa vez, nem ao menos tento formular uma resposta. Tudo o que consigo fazer é encarar as
costas de Diana.
O que diabos ela quis dizer com isso? Não quero acreditar na explicação mais óbvia porque
ela vai contra a imagem que criei de Diana na minha cabeça. Mas qual outra interpretação me
resta?
Como se tivesse feito um comentário inocente sobre o clima, Diana sorri para mim depois de
secar as mãos.
— Acho que podemos voltar à mesa.
Hesito quando ela passa por mim. Provavelmente devo segui-la, mas ainda estou atordoada.
Acabo julgando melhor não dar motivos para deixá-la irritada e forço meus pés a se moverem
atrás dela.
Deixei a mesa querendo clarear as ideias, mas volto ainda mais sobrecarregada.
Tanto Diana quanto eu nos sentamos nos nossos lugares.
A conversa dos homens não passa de um burburinho distante, sem chances de competir com a
cacofonia dos meus pensamentos.
A sobremesa é servida, porém mal toco nela. Em vez disso, esvazio minha taça de vinho pelo
menos duas vezes.
Essa não é uma noite para ficar sóbria.
Pelo resto do jantar, me limito a responder somente o que sou perguntada, e quando Raul se
desculpa por precisar ir embora, os outros aproveitam a deixa para também se despedirem.
Raul deposita seu cartão de visita em minha mão depois de me puxar para um abraço. Ele me
faz prometer que irei procurá-lo, e logo trato de garantir que farei isso.
Mathias fica de me contatar assim que tiver mais direcionamentos sobre seu projeto. Laerte
me deseja sorte nesse início de carreira.
Me despeço deles com uma sensação agridoce na boca. Estou contente por tê-los conhecido,
mas inquieta com as circunstâncias.
Enquanto termino minha quarta taça, Diana se retira para acompanhar os rapazes até a porta.
Fico a sós com Edgar por um momento, que começa a servir outro copo de uísque para si.
O álcool em minhas veias é provavelmente a única coisa me impedindo de dar meia-volta e
fugir agora mesmo.
— Um brinde — diz o professor, se aproximando.
Faço espelho ao seu gesto por instinto, erguendo minha própria taça.
Acho que meu rosto está dormente.
— Às novas portas que se abrem — Edgar termina.
Ouço o tilintar do vidro, mas quando me dou conta, ele já está bebendo.
— Um brinde — murmuro, atrasada.
Vejo Diana assim que ela vira a curva do hall de entrada.
O que ainda estou fazendo aqui? Também já devia ter ido embora.
— Sienna — ela diz, parando no pé da escada por onde desceu mais cedo. — Vai passar a
noite, querida?
Fico olhando para ela por um minuto inteiro. Quando finalmente desvio o olhar, procuro pela
reação de Edgar, mas ele já se sentou no sofá e me observa com expectativa.
Alterno o olhar entre os dois, tonta demais para assimilar as coisas em tempo hábil.
— Não. — Engulo em seco. — Estou indo para casa.
Onde estão minhas coisas? Preciso dar o fora daqui.
Encontro minha bolsa na mesa entre os sofás.
— A noite foi ótima, professor. Obrigada — digo, mal ouvindo minha própria voz.
Dou as costas a Edgar sem um último olhar.
Agora estou de volta ao ponto de partida, com Diana na minha frente.
— E obrigada pela hospitalidade, Diana. Tenha uma ótima noite. Não se preocupe, sei o
caminho até a porta.
Se alguém responde, não ouço.
Escapo deles mais rápido que um diabo fugindo da cruz.
9: KAI
Welcome to the Fire, Willyecho

O inferno não queima.


Ao menos não em todas as partes. Em alguns lugares, você congelaria até a morte sob um frio
implacável. Em outros, a escuridão absoluta enlouqueceria você antes que se desse conta. Há
lugares, porém, em que respirar errado será sua sentença de morte. E não uma morte agradável.
A Cidadela em si não é o mais hostil dos cinco domínios infernais, se comparada ao frio
tenebroso do Domínio Dourado, à escuridão sem fim do Reduto das Sombras ou à tortura
silenciosa do Poço, mas para os que vivem nas ruínas ao norte, se manter inteiro é como lutar
kung-fu calçando patins.
Hoje, há quase tantas bestas no inferno quanto demônios, e o único lugar em que oficialmente
são livres para caçar é o Vale das Lamentações, o domínio mais esquecido de todos, porém as
regras estão mudando de uns tempos para cá.
O Vale e as almas arrasadas de lá não são nem de longe tão atraentes para as bestas quanto os
destroços além dos muros que apelidamos de Cemitério. É lá que elas têm ido caçar e se
alimentar, para a infelicidade dos rebeldes que não fogem ou se escondem rápido o suficiente.
Não, o inferno não queima, mas, para alguns, o fogo seria o menor dos problemas.
E como se os rebeldes já não tivessem dores de cabeça o suficiente, regularmente patrulhas
são feitas nas ruínas para caçar e derrubar o maior número possível deles. Em geral, são
atribuídas a membros de mais alta patente na Ordem, uma vez que é preciso perícia para se
manter inteiro fora da fortaleza, e, claro, Artefatos de poder embebidos com magia rica o
suficiente para dar vantagem a quem usá-los.
Não há muito que um demônio possa fazer sem eles, a não ser que resolva apelar para rituais
que raramente são úteis numa batalha. E Artefatos são caros demais para os membros mais
baixos da Ordem, especialmente com Mammon dobrando os impostos sobre eles.
O círculo íntimo do Comandante e o alto escalão são os mais preparados para enfrentar
ameaças simplesmente porque guardam para si todos os recursos.
Como Alto Maligenii, meu papel é trazer almas para crescer nossas fileiras, mas não
contempla certas tarefas da linha de frente, tal qual outros combatentes. Por esse motivo, meu
nome não está incluso na próxima patrulha a ser dispensada, e precisei arranjar um jeito de
contornar isso.
Tenho uma missão para dar conta hoje.
Entre os designados de cada grupo, há sempre um rastreador responsável por guiar o caminho
até os esconderijos subterrâneos, sem o qual se torna quase impossível encontrá-los. Não sou um
rastreador, portanto preciso dos serviços de um para chegar a quem estou procurando.
Nos portões da Cidadela, encontro o demônio rastreador esperando. Além dele, outros quatro
patrulheiros foram convocados, mas nenhum deles dará as caras.
Quando me aproximo sozinho, ele me analisa com os olhos arrogantes de quem passou tempo
demais ao redor de Mammon.
— Mojezeh — cumprimento.
Sua única resposta é me examinar de cima a baixo, torcendo o nariz de modo quase
imperceptível quando nota que usamos o mesmo uniforme de couro preto com a insígnia da
Ordem dos Enganadores cravada no peito.
— Podemos ir na frente — prossigo. — O resto da patrulha nos encontrará lá.
Talvez ele perceba a mentira, talvez não. O fato é que ele não tem como adivinhar que seus
colegas de serviço estão no fundo do Mar da Desolação nesse exato momento.
— O Alto Maligenii vai sujar as mãos hoje? — ele retruca, apertando o cajado com mais
força.
— A menos que você tenha alguma objeção — respondo, quase esperando que ele vá discutir.
Ele dá de ombros, mas não tem mais nada a dizer.
Faço sinal para que lidere o caminho, me atrasando só pelo tempo de conferir os pontos de
vigília desse lado da fortaleza.
Estão todos vazios. Baelgrim deve ter causado uma baita distração nos portões ao leste. Acho
que vou parabenizá-lo por isso depois.
Há arqueiros nos níveis superiores das fortificações, mas estamos muito abaixo para que nos
vejam, sem mencionar toda a poeira no ar, dificultando a visão. Seria fácil para qualquer um
deles me reconhecer pelos trajes ou pela manta negra cobrindo meus ombros, então tratamos de
mitigar os riscos.
Quando me dou por satisfeito, saio no encalço do rastreador.
A caminhada é penosa. Mesmo com uniformes equipados para nos proteger aqui fora e lenços
envolvendo nossos rostos o clima da Cidadela não é fácil de lidar. A poeira é equivalente a
neblina desse lado das fortificações, preenchendo a atmosfera até não sobrar espaço para mais
nada.
Mojezeh resmunga consigo mesmo a cada poucos minutos, mas não tenta puxar assunto.
Deve achar minha companhia tão agradável quanto a de uma harpia.
Várias vezes, me pego distraído pensando no monstrinho que deixei para trás com uma
sugestão que, se eu a conheço bem, ela não vai deixar passar. Vamos ver como ela reage ao
contato com o pai e às consequências que isso trará…
O pensamento ativa uma centelha de ânimo em mim, que é bem-vinda nessa empreitada
espinhosa.
Nesse meio tempo, posso assisti-la brincar com fogo pelas costas do anjo, como fez ao aceitar
o convite e o presente do professor. A artimanha combinou com ela tão bem quanto o vestido
que usou para ir atrás do que queria.
Um talento para o engodo como o dela seria um desperdício em qualquer outro lugar. Não
tenho dúvidas de que ela se dará bem na Ordem.
Na altura em que chegamos ao gargalo das montanhas que precedem o Cemitério, já estou
menos distraído e noto uma tempestade de areia se formando. Vou precisar ser rápido se não
quiser ser apanhado por ela no caminho de volta.
O rastreador escuta atentamente seu cajado à medida que diz qual caminho devemos seguir.
As primeiras ossadas surgem em pouco tempo. Começa com fragmentos espalhados aqui e
ali, mas logo estamos pisando em camadas e mais camadas de ossos. Grande parte é das bestas
abatidas pelos rebeldes, mas só porque não costuma sobrar muita coisa das vítimas.
Noto rastros de algo semelhante a piche por onde passamos, apesar de muito sutis. Alguém fez
o dever de casa.
— Sul — Mojezeh aponta.
A tensão no ar é palpável. Para chegar às ruínas do sul, é preciso atravessar todo o Cemitério,
e possivelmente há mais bestas vivas no Cemitério do que mortas.
Antes mesmo de vermos, nós as ouvimos. Seus silvos denunciam que já não temos mais o
fator surpresa para usar contra elas.
Mojezeh grunhe algum xingamento ao mesmo tempo em que desembainho minhas armas,
embora eu não possa vê-lo através da cortina de poeira.
Enquanto cruzo os punhos em posição de ataque, com as lâminas de fogo maldito nas mãos,
só me resta torcer para que a tempestade se atrase.
Os silvos me dizem que deve haver de duas a quatro bestas nos cercando nesse instante, mas,
pelo tempo que estão demorando para atacar, eu arriscaria que querem primeiro saber quantos de
nós há. Bestas em geral são inteligentes.
Se enfim descobrem ou se apenas se cansam da espera, não há como saber. O que sei é que,
quando elas se lançam na nossa direção, uma sinfonia de metal e fogo contra carne e couraça se
inicia.
Nunca aprendi a usar as lâminas com a elegância de um mestre de combate. Desde que as
ganhei de Mammon como meu primeiro Artefato, meu único uso para elas tem sido tirar o
máximo de sangue no menor espaço de tempo possível. Não me preocupo com o quão feio será.
Acho que estou mais para um açougueiro.
Corto com destreza tudo que chegue perto o bastante. Logo o cheiro de carne queimada enche
meus pulmões.
Avanço com cautela, as lâminas em riste, e um guincho furioso me permite desviar de uma
investida. Não perco tempo — ataco com uma combinação sucessiva de golpes.
A besta recua, rosnando ferozmente antes de tentar um golpe com sua cauda. Salto a tempo de
não ser atingido, mas algo se choca contra as minhas costas.
— Estão chamando as outras! — Mojezeh berra.
Me viro e o vejo segurando uma cimitarra com metade de seu tamanho.
Devolvendo minha atenção à criatura imensa à minha frente, avanço mais uma vez, golpeando
a couraça da fera enquanto me mantenho longe das presas.
A besta se esquiva da melhor forma que pode, mas é incapaz de evitar todos os golpes. Um
líquido escuro e pútrido começa a escorrer dos cortes.
Decido que é melhor me livrar logo da cauda. Ao aumentar o agarre, o fogo que embebe as
lâminas se intensifica. Desfiro um único golpe na cauda da coisa e é o bastante para separar a
extensão de sua base. O silvo que se sucede é ensurdecedor.
Começo uma espécie de dança com a fera, que agora está agindo por puro instinto de
sobrevivência.
Espero ela atacar primeiro, só então me lançando para finalizar a luta. Ela é ágil, mas consigo
ser ainda mais, e no segundo em que monto em suas costas dilaceradas, finco as lâminas em sua
jugular.
O chiado de carne queimando se mistura aos gorgolejos da besta. Um segundo depois, a
cabeça tomba para um lado e o corpo para o outro.
— Parece até que estavam nos esperando — o rastreador comenta, derrubando outra fera.
— E estavam. Vi lama do Vale por todo o caminho até aqui. Foram atraídas para cá de
propósito.
Não posso culpar os rebeldes pela estratégia. Se eu quisesse atrapalhar o máximo possível o
caminho dos meus inimigos até mim, criaria tantas distrações quanto fossem necessárias.
Passo por Mojezeh, seguindo na direção dos silvos raivosos.
Com a tempestade se aproximando, se eu não me apressar, as chances de ficarmos
completamente às cegas e cercados por todos os lados são imensas.
Avisto um trio de bestas mais adiante, brigando por uma carcaça fresca.
Me aproximo pela retaguarda, atraindo a atenção de ao menos uma das três.
Quando a criatura com chifres e focinho cadavérico se afasta das outras e começa a se lançar
para mim, as lâminas ganham vida em meus punhos, sedentas por mais sangue.
A dança mortal recomeça, mas dessa vez tenho ainda mais pressa para terminar.
Ataco o flanco da fera para desestabilizá-la, desviando por pouco de um dos chifres. Ferida, a
besta cambaleia por um instante antes de tombar de lado. Tento me posicionar para finalizá-la
com um golpe entre os chifres, mas algo se choca contra mim e me derruba no chão.
É mais uma do trio. Essa tem uma enorme cara de morcego, com fileiras de dentes afiados
que agora estão a poucos centímetros do meu rosto.
Com a queda, as lâminas voam das minhas mãos e chamuscam a areia onde pousam. Uso as
mãos para conter a fera e impedi-la de arrancar minha cabeça com uma mordida.
Se adulta, seria muito mais difícil me livrar de seu agarre, o que daria ao anel em meu dedo a
oportunidade que ele tanto espera para entrar em ação.
A minha serpente de estimação de quinze metros é um Artefato paciente na maioria das vezes,
mas muito tempo longe do combate o deixa irritado. Para o azar dele, a fera que tenho em mãos é
pouco mais que um filhote, sem grande resistência.
Segurando a mandíbula da criatura, uso minha perna para me impulsionar para cima,
erguendo-me do chão. Aproveito o ângulo e a força do meu impulso para lançar a criatura ao
chão, onde ela cai com uma pancada surda.
Recupero as lâminas do chão e as empunho novamente, deixando sua energia fluir pelo meu
corpo.
Me volto para a fera caída, que tenta se recuperar do meu último ataque.
Minhas lâminas cortam o ar com um som afiado enquanto desfiro os golpes, me concentrando
nos pontos vitais. Com um golpe final entre os olhos, a besta solta um urro agudo antes de ficar
imóvel.
— Logo vai chegar sua vez, Devorador — prometo à serpente, usando o apelido carinhoso
que dei a ela.
O anel aquece em resposta, indicando que ele não gostou muito da dispensa.
Meu corpo tensiona, pronto para o próximo embate, mas a criatura de focinho cadavérico não
avança imediatamente. Por causa do que acabou de ver, ela agora me considera uma ameaça.
Mojezeh surge, pronto para apoiar meu ataque, mas faço que não com a cabeça. Rugas se
formam em sua testa.
— Se concentre no cajado. Vou me livrar delas — digo.
Se pensa em discordar, ele não demonstra. Seu olhar abaixa involuntariamente para a manta
em meus ombros e isso parece ser resposta suficiente para ele.
Ele embainha a espada e puxa o cajado preso em suas costas.
Volto minha atenção ao assunto mais urgente. Os olhos da criatura me fitam enquanto ela
rosna e mostra as fileiras de dentes letais como se sentisse a mudança no ar.
Começa com um bater de asas suave, quase imperceptível. Sinto o Artefato em forma de capa
vibrar em minhas costas, perfeitamente feliz em atender ao meu chamado.
Em um instante, sou apenas eu mesmo. No próximo, estou por toda parte. Tenho centenas de
olhos, asas velozes e a fome de uma legião de criaturas noturnas. Todas elas se desprendem de
mim, enchendo o espaço acima de nós com formas escuras e grasnados.
Agora, cientes da nova ameaça, as bestas que sobraram assistem ao alvoroço sem poder fazer
muita coisa. Não recebem sequer a oportunidade de lutar por suas vidas.
Leva menos de cinco segundos para todo o perímetro ao nosso redor ser tomado pelos corvos,
e ainda menos para tudo que respira, com exceção de mim e Mojezeh, se transformar em massas
disformes e sangrentas.
Deixo que voem na noite por alguns instantes, se deleitando na morte que causaram, antes de
chamá-los de volta.
Os corvos formam uma parede acima de mim e, com uma disciplina invejável, retornam ao
receptáculo preso às minhas costas. O silêncio que se segue é quase alto demais.
Dou meia-volta e encontro Mojezeh parado a alguns passos.
— Onde?
— Poucos metros à frente — ele responde.
Fechamos a distância que falta em silêncio.
Quando alcançamos as ruínas de um dos sarcófagos, o rastreador ergue a mão.
— É aqui.
Estudo o cenário, atento às armadilhas que possam estar escondidas.
Não há guarda montada do lado de fora nem nada que indique ser uma área habitada, mas não
quer dizer que a segurança não exista.
No meio dos destroços, quase encoberta por duas colunas tombadas, avisto uma porta. Está
selada, mas não obstruída.
Interessante.
— Uma tranca inteligente — Mojezeh chega à mesma conclusão que eu. — Só deve se abrir
para membros do clã.
Passo a mão pela coluna menos danificada, pensando.
Se eu fosse um rebelde…
— Ou talvez haja um código — ele continua.
Se eu fosse um rebelde, não confiaria em códigos facilmente corruptíveis.
— Agora que estamos aqui, vamos esperar o resto da patrulha.
Membros também podem ser voláteis demais para ter passe livre…
O que eu faria?
— Ei, estou falando com você.
É claro, só pode ser isso. Se eu fosse um rebelde, selaria minha porta com sangue inimigo.
A compreensão me assalta quase na mesma velocidade com que cravo uma lâmina no peito de
Mojezeh, incinerando seu núcleo antes mesmo de uma reação.
— Me desculpe — peço, aparando a queda do corpo agora oco. — Mas você não seria bem-
vindo.
Seguro Mojezeh contra a pedra, deixando que o sangue faça a sua parte.
A magia é discreta, quase não demonstra que algo mudou. Mas as frestas da abertura ficam
mais óbvias, não mais uma ilusão de ótica. O selo foi partido.
Deito o corpo do patrulheiro sobre os escombros e volto para a porta.
Guardo as lâminas, torcendo para não precisar usá-las de novo.
— Basom — chamo, ciente de que alguém pode me escutar —, você vai querer ouvir o que
tenho a dizer.

Sou escoltado por dez rebeldes através de uma passagem longa e estreita, com mais lanças
apontadas para mim do que quero admitir.
O esconderijo subterrâneo se mostra gigante, e quanto mais avanço, menos luz natural há,
deixando toda a iluminação por conta dos braseiros espalhados.
O grupo usa peles grossas por cima das roupas e máscaras no rosto. Nenhum emite uma
palavra sequer durante todo o caminho. Não tentaram me desarmar assim que me puxaram pela
abertura na pedra, o que, confesso, me surpreendeu.
Agora, estou me deixando ser guiado até onde espero que o líder deles esteja. Não quero
pegar em armas aqui embaixo, mas não quer dizer que não irei se for necessário.
O túnel desemboca em uma bifurcação, mas sou incentivado a pegar o caminho da esquerda.
O destino final parece ser uma sala estratégica, dado a mesa de vários assentos no centro e a
meia dúzia de rebeldes esperando.
Minha escolta enfim abaixa as lanças, embora eu duvide que abaixem a guarda.
No centro da sala, uma figura se assoma. É magra, tem pelo menos dois palmos de altura a
mais que eu e seus olhos são dois poços escarlates contrastando com a pele retinta.
O cabelo preto e enrolado no comprimento do peito lhe confere um quê a mais de presença. A
forma como se coloca entre os outros, com os ombros relaxados e o queixo erguido, deixa claro
quem está no comando.
Sinalizo com a cabeça em reconhecimento.
— Basom.
O líder rebelde me olha dos pés à cabeça.
— Conheço você — diz, a voz carregada de tédio. — Me diga, principezinho, por qual motivo
eu não deveria arrancar essa sua nobre cabeça agora mesmo?
Não sou nobre e tampouco príncipe, mas ele sabe muito bem disso. A provocação é apenas
uma garantia de que ele me enxerga da mesma forma que vê Mammon.
Vários pares de olhos me escrutinam, atentos ao deslize que me fará ser decapitado a qualquer
momento.
— Se você fizer isso, nunca saberá o que vim dizer.
Apelar para a sua curiosidade pode não ser o melhor caminho, mas não teriam me trazido até
aqui se o interesse em mim fosse nulo.
Basom estreita os olhos.
— Nada que você ou seu Comandante tenham a dizer me interessa.
— Algo me diz que dessa vez você vai gostar — insisto.
Sem pressa, ele afasta uma cadeira e se senta, cruzando os pés descalços em cima da mesa.
— Foi por isso que derramou sangue aliado antes de descer aqui?
Lembro do choque no rosto de Mojezeh pouco antes de sucumbir à minha lâmina, e desvio o
olhar do rebelde por um instante.
Mas então lembro da dedicação de Baelgrim e de seu zelo por essa missão.
— Meus aliados são outros — digo por fim. É a explicação mais simples.
— Sabe, eu já ouvi coisas sobre você. O orgulho de Mammon. O prodígio da Cidadela. Até
por essas bandas você é conhecido. Dizem que não há uma coisa da qual você tenha medo. Eu
pessoalmente acho que isso é conversa para boi dormir. Toda criatura, que ande ou rasteje, tem
medo de alguma coisa. Me diga um medo seu, Alto Maligenii, e eu decido se quero te ouvir.
Se você dura tempo demais aqui, os boatos começam a falar por você. Podem ser perigosos ou
apenas uma chateação, dependendo de quando forem usados contra você.
Mas quando boatos e fatos se misturam, as coisas ficam esquisitas.
O medo é superestimado. Ele só existe quando se tem algo a perder. E eu não tenho nada a
perder que já não vá desaparecer mais cedo ou mais tarde. Nada bom demais dura muito tempo
no inferno.
Não falo nenhuma dessas coisas. Não é o que ele quer ouvir.
Dou alguns passos na direção da mesa.
— Também já ouvi coisas sobre você, Basom. Dizem que você tem muitos medos. Que se
esconde embaixo do Cemitério só porque não é páreo para o Comandante. Que é covarde demais
para levar seu clã para longe desses destroços. E nós dois sabemos que nada disso é verdade.
Qualquer um pode dizer o que bem entender. Não significa que devemos acreditar neles.
O estoicismo em seu rosto vacila só um pouco.
— E eu deveria acreditar no que você veio até aqui para dizer? — zomba, arrancando
murmúrios dos outros rebeldes presentes.
Conto os segundos em silêncio e só volto a falar quando tenho a atenção de todos.
— Se não puder confiar nas minhas palavras, então confie nos meus atos. Mammon não vai
durar muito tempo. Estou formando alianças que querem o mesmo que eu. Nos próximos dias,
você terá notícias de caos na Cidadela, um caos ainda maior do que vocês estão tentando
instaurar. Saiba que serei eu por trás dele.
A risada seca de Basom preenche o espaço.
Por um segundo, me questiono se não fui com muita sede ao pote.
— Um motim? Com você na liderança? Devo fingir acreditar que você tem alguma chance?
Mais uma vez os rebeldes se alvoroçam como se essa fosse a coisa mais cômica que ouviram
em séculos.
Avanço mais até estar diante da mesa, onde apoio a palma das mãos.
— Qual outra opção você tem, Basom? — Não é uma ameaça, mas o sorriso esmorece do
rosto dele como se fosse. — Você tem esperado todo esse tempo, tendo que manter de pé um
Cemitério sitiado e entregue às bestas, sem nenhuma margem para um ataque efetivo até então.
Você precisa chegar até Mammon de alguma forma se pretende virar o jogo. Me diga que sabe
exatamente como fazer isso e eu te deixo em paz.
Ele mostra os dentes.
— Você ficaria surpreso, principezinho — cospe, o lábio se erguendo com desprezo. —
Perdeu o juízo se acha que preciso de você para alguma coisa.
— Pode não precisar de mim. Mas seu clã precisa de ajuda. — Lanço um olhar pela sala,
passando por cada rebelde que observa nossa discussão com incerteza e ansiedade. — Mammon
está aniquilando qualquer um que ouse respirar errado na direção dele, e a vigília ficou ainda
mais pesada. Vocês não vão conseguir se infiltrar atrás de recursos por muito mais tempo.
Quando a coroa for minha, isso tudo vai acabar.
Basom acompanha meu olhar e um músculo treme em seu rosto. Ele sabe que tenho razão,
mas não vai admitir.
— Mesmo que você conseguisse encostar um dedo no Comandante, o que eu duvido
seriamente, ninguém nos cinco infernos aceitaria o seu principado. Por que acha que Mammon
nunca foi desafiado em milênios?
Não é por que uma coisa nunca aconteceu antes que ela não acontecerá. Se tratando de um
precipício, uma só queda já basta. Uma só queda é o que estou procurando.
Balanço a cabeça.
— Não dou a mínima para o que os cinco infernos ou os príncipes vão achar — dou-lhe nada
mais que a verdade. — Vou ter o apoio da Ordem e só isso importa.
Posso lidar com os outros príncipes depois. Um desgraçado por vez.
— Certo. Porque, depois de Mammon, você é a coisa mais próxima da nobreza que existe
entre os Enganadores — o líder desdenha.
Dou de ombros, sabendo que não adianta corrigi-lo. Minha antiga e estreita relação com
Mammon sempre rendeu olhares insatisfeitos.
Depois de coçar a barba em silêncio, Basom finalmente me dá a abertura que preciso.
— Por que está aqui, principezinho? — Pela primeira vez, seu tom não é depreciativo, apesar
do apelido. Ele decidiu me ouvir. — O que quer de mim?
Um peso é tirado dos meus ombros. Antes mesmo de responder, sei que venci essa batalha.
— Por enquanto, o seu ódio por Mammon. Sabe a forma como ele te consome e envenena
seus pensamentos? Quero isso. E então eu aceitarei seja lá o que você quiser fazer a respeito.
Eu poderia lhe pedir mais. Homens, magia, armas, segredos… Qualquer uma dessas coisas
seria útil nesse primeiro momento.
Mas o que estou pedindo de Basom é o que realmente fará a diferença quando chegar a hora.
O ódio de todo um clã cravado nas costas de Mammon. Nenhuma arma é mais poderosa que o
ódio do oprimido pelo seu opressor.
Clã e líder trocam olhares cheios de mensagens silenciosas. Ninguém se move por um minuto
inteiro e o ar se enche de expectativa enquanto decisões importantes são tomadas.
Mantenho o olhar fixo no perfil de Basom, contando mais segundos, até suas pupilas ofídicas
apontarem para mim.
— Você não vai ter todo tempo do mundo, entende? Não vou mover um dedo sequer pela sua
causa se achar que você está enrolando. Vou ficar de olho nas suas ações, principezinho.
O canto da minha boca se contrai.
— Aposto que vai gostar do que verá.
10: SIENNA
Cleopatra, The Lumineers

Evito o professor durante a aula inteira. Ele não muda o comportamento nem age como se a noite
passada fosse grande coisa, mas agora parece errado olhar para ele na luz do dia.
Você não fez nada demais, fico lembrando a mim mesma.
A boa notícia é que busquei meu carro na oficina no primeiro horário da manhã, e agora me
sinto um pouco mais no controle das coisas. Mas não é o bastante para desfazer os nós de tensão
em meus ombros.
Quando o ensaio termina, invento uma desculpa para Ágata e sou a primeira pessoa a deixar a
sala.
Me sinto uma péssima amiga, mas não há muito o que Agui possa fazer por mim ultimamente,
e tampouco tenho sido a melhor companhia para se estar por perto. Ela estará melhor com Yuri,
Rubi e o resto do nosso grupo.
Em vez de ir para casa, onde seria apenas eu e meus pensamentos inquietos, fujo para a
biblioteca.
Graças ao horário de almoço, só há um par de alunos usando os computadores, o que me dá a
privacidade que preciso para praticar minhas falas.
Fico confortável no assento antes de ocupar minha cabeça com trabalho. Demoro a achar um
ritmo adequado, mas quando começo, avanço mais em poucos minutos do que em todo o ensaio.
Até alguém se juntar a mim na mesa.
Ergo os olhos do papel e vejo Thalia se acomodando na cadeira à minha frente, vestindo um
conjunto de jeans e suéter que poderia ter saído do Pinterest.
Ela pode ter perdido uma asa ou sido promovida, eu não saberia dizer somente lendo seu
rosto.
Independente disso, tenho plena certeza de que sei o que ela está pensando de mim agora.
— Não foi nada demais — me adianto, tomando cuidado para que só ela ouça. — Tudo que
eu fiz foi jantar e conversar sobre trabalho.
Thalia nem sequer pestaneja.
— Achei que você tinha entendido o recado ontem — ela diz. — Você consegue ver por conta
própria o quanto é errado, mas não faz questão de se impedir?
Sinto meus ombros cederem com a frustração.
— Não é tão simples, Thalia. Ele é o meu professor, nós trabalhamos juntos. Estou pisando
em ovos nesse momento.
Ele também é um atalho numa estrada instável, mas não menciono isso. Thalia não
entenderia.
— Quanto tempo até ele perceber que você não vai dar a ele o que prometeu? Porque você
não vai dar. Já pensou em como vai ser?
É claro que penso nisso. Edgar pode não ter cobrado ainda, mas sei que está esperando que eu
cumpra a minha parte do acordo.
Ontem à noite, ele me deu algo que eu quero, e agora está na minha vez de pagar de volta.
Acho que vou descobrir em breve quão paciente Edgar Costacurta consegue ser.
— Vou pensar quando chegar o momento — desconverso, querendo escapar do escrutínio do
anjo. — Até lá, preciso aproveitar o máximo possível as portas que ele está abrindo para mim.
Um lampejo de frustração cruza os olhos do anjo, tão rápido que me pergunto se não o
imaginei.
— Você vai precisar estar viva para usar essas portas — murmura.
Como se eu não soubesse disso. É difícil esquecer que seus dias podem estar contados.
— Elas são justamente para o caso de eu estar viva. Tenho que me preparar para um futuro
longo e cheio de desafios também.
É claro que eu poderia viver como se não houvesse amanhã. Poderia esquecer tudo isso, todas
as coisas que até quatro dias atrás eram tudo que importava para mim, e passar o resto do meu
tempo ponderando sobre a iminência da morte.
Mas não sei fazer isso. Não sou eu mesma se não estiver pensando no meu próximo passo.
Talvez querendo evitar uma briga, Thalia interrompe sua réplica. Ela crispa os lábios e
suspira.
— Que ideia você teve para fazermos hoje? Por favor, me diga que pensou em algo.
Ótimo, ela mudou a estratégia. Vai me deixar varrer o problema com Edgar para o canto da
mente. Por agora.
Tamborilo na mesa enquanto reflito.
Sim, eu pensei em algo, mas não quer dizer que seja uma boa ideia.
Acho que estamos prestes a descobrir.
— Um asilo?
Thalia me olha de canto de olho.
— Uma casa de repouso — corrijo. — Segundo o Google, eles têm um programa de
voluntariado.
O anjo ensaia um sorriso de quem não quer admitir que foi pego de surpresa, em seguida sai
do carro.
Fito o prédio adiante, me perguntando se não fui ousada demais na escolha. Pareceu um plano
bom o bastante na hora, mas, se eu tiver que trocar fraldas…
Sabendo que não posso voltar atrás agora, sigo o anjo recinto adentro.
Não tenho problemas com idosos, mas minha experiência nessa área é limitada aos meus
avós, com quem nunca precisei ser ninguém mais além de mim mesma.
Devo falar com eles de alguma forma específica? Como sei que ficarão confortáveis com uma
estranha lhes observando?
Atravessamos uma porta dupla que dá acesso a uma antessala, e além de alguns idosos
espalhados aqui e ali, há uma mulher debruçada sobre o balcão da recepção.
Thalia se adianta para cumprimentá-la e eu me distraio com o ambiente e com as pessoas.
Perto de uma janela, um grupo de idosos se concentra em um tabuleiro de Damas. No sofá
mais à frente, um outro parece falar sozinho enquanto lê. Uma música indistinta toca em algum
lugar, mas as conversas se sobrepõem.
Me aproximo de Thalia, que já engatou numa conversa com a recepcionista, mas continuo
observando os moradores da casa de repouso.
— Eles não têm uma família para cuidar deles? — penso em voz alta.
Parecem tão sozinhos.
A mulher de cabelos curtos e acinzentados suspira.
— A maioria tem família, mas a família decidiu que não teria um idoso — diz simplesmente.
Bem, isso é horrível.
A imagem de vovô ofusca meus pensamentos por um momento. Eu odiaria vê-lo em um lugar
como esse.
— O que podemos fazer por eles? — Thalia questiona.
— Temos muitos perfis por aqui. Alguns deles são tímidos e preferem atividades onde não
tenham que conversar, como artesanato. Outros já são o completo oposto e quanto mais puderem
papear, melhor. E há também os fissurados em jogos de tabuleiro. Damas, dominó, baralho… se
puderem, vão te fazer jogar com eles até seus dedos caírem. Escolha o que mais se sentir
confortável para fazer, docinho.
Mais uma vez, corro o olhar pelos idosos espalhados pela sala.
Um chama a minha atenção.
— O que me diz daquele senhor de touca com o jornal de cabeça para baixo? Posso ler para
ele.
A mulher franze as sobrancelhas e as rugas ao redor dos olhos se acentuam.
— O Romildo? Ah, não, você não vai querer ficar perto dele. Ele raramente usa o
desodorante, é uma situação realmente chata, entende?
Olho para ela, pega de surpresa.
— Como assim, não usa…
— Dona Clementina, o que acha que está fazendo aí? — Uma voz surge atrás de nós,
abafando o resto da minha pergunta. — Santo Deus, mulher, a senhora não tem jeito mesmo!
Uma segunda mulher se junta a nós, arregalando os olhos para a primeira.
A mulher atrás do balcão se empertiga.
— O quê? Estou quieta na minha, oras.
Aparentemente escandalizada, a última a chegar se vira para mim e Thalia, estendendo as
mãos.
— Mil desculpas, a dona Clementina às vezes gosta de fingir que trabalha aqui. Vocês são
voluntárias? Sou a Laura, prazer.
Minha cabeça estala com a rapidez com que me viro de volta para o balcão.
— Calma, a senhora é residente daqui?
Devo ter entendido errado.
Meu queixo vai parar no chão quando Clementina dá de ombros.
— Moro aqui há nove anos, não sei qual o problema de falar com as visitas quando chegam. E
não precisa me chamar de senhora — ela murmura.
Balançando a cabeça, a recém-chegada (que deve ser a verdadeira recepcionista), nos oferece
um sorriso.
— Então, gostariam de um passeio pela instalação para conhecerem melhor os idosos?
Mas a mulher mais velha à minha frente já tem toda a minha atenção.
— Acho que vou fazer companhia à Dona Clementina aqui, se ela não se importar — digo,
sufocando um sorriso.
Ela abana uma mão no ar.
— Pode ficar vendo enquanto faço meu crochê, não ligo.
— Parece ótimo. Meu nome é Sienna.
Tendo observado tudo em silêncio, Thalia me lança um olhar divertido.
— E eu vou aceitar o passeio — diz à funcionária.
O anjo pisca para mim antes de se afastar.
Me aproximo de Clementina.
— Então você gosta de se passar por recepcionista?
— Não, mas todo mundo logo assume que sou, o que posso fazer?
Sorrio, impressionada.
— Eu nunca adivinharia. Você não parece…
— Gagá o suficiente? — ela se antecipa. — Nem todo idoso aqui perdeu o juízo, docinho. Só
não temos lugar melhor para ir.
— Eu não ia dizer isso — começo, mas não sei exatamente o que iria dizer.
Rejeitada? É tão ruim quanto.
Decido ir por outro caminho.
— Você comentou sobre os perfis que existem aqui. Em qual deles se encaixa?
Dona Clementina começa a rumar para o cômodo seguinte. Como não quero perdê-la de vista,
vou atrás.
A próxima sala é maior e tem mais janelas, assentos e idosos cuidando de seus afazeres.
O sofá no centro é onde Clementina se detém.
— Não é uma ciência exata — explica ela, afastando uma pilha de almofadas para liberar
espaço. — Gosto de ficar sozinha com o meu crochê, mas também converso bastante. Tem dias
que ninguém me tira daquela mesa de dominó, e tem dias que só me sento e encaro a parede. O
que não gosto mesmo é da rotina, entende? Se eu acordo já sabendo o que vou fazer o dia inteiro,
está tudo errado.
Me sento no sofá ao seu lado.
— Sei como é. Rotinas são enlouquecedoras às vezes.
Ela não responde. Em vez disso, tira um crochê em andamento de baixo de uma almofada.
— Com o que você trabalha?
Ah, as mudanças de assunto repentinas. Vovó costumava ser assim. Com isso eu posso lidar.
— Sou atriz — respondo.
— Hum. E no que anda atuando?
— Numa recontagem de A Divina Comédia. Sou Francesca da Rimini.
Dona Clementina abre um sorriso conspirador.
— Papel principal? Boa menina — diz. — Eu também fui atriz, sabe? Muitos anos atrás.
Não tento esconder minha surpresa.
— Sério? Chegou a pegar papéis?
— Algumas dezenas. Teatro, na maior parte. Mas tem coisas que a gente não controla. — A
última parte é dita com melancolia e sua expressão sagaz anuvia ligeiramente.
— Você parou? — presumo, de repente me dando conta de onde estamos. De como ela vive
hoje.
As mãos ágeis de Clementina trabalham no crochê, mas seu olhar fica desfocado.
— Eu fugi. Fugi do futuro, das responsabilidades, dos riscos.
— Não sei seus motivos, mas não posso te julgar pelas suas escolhas — digo.
Ela se encolhe.
— Ah, mas eu me julgo. Talvez não por ter largado o teatro, mas com certeza por todo o
resto.
Minha curiosidade deve transparecer em meu rosto, porque a mulher balança a cabeça.
— Não é uma história interessante — avisa.
— É a sua história. Aposto que é interessante.
O que seria de mim sem as histórias de vida que vovó costumava contar o tempo todo?
As histórias dos mais velhos são uma ode ao tempo e às lembranças. Raramente as
valorizamos como deveríamos.
Incentivada pelo meu olhar cheio de expectativa, Dona Clementina suspira profundamente
antes de ceder.
— Eu tinha vinte anos na época — começa, nunca pausando o crochê. — Já trabalhava em
São Paulo, mas precisei voltar para casa para enterrar o meu pai. Estava desolada com a perda,
não conseguia pensar em mais nada. Tinha um rapaz que conheci, e quando voltei para o interior
e não dei mais notícias, ele foi atrás de mim. O velório ainda estava acontecendo quando ele
chegou, e quando eu menos esperava, me pediu em casamento. Ele me disse que eu nunca ficaria
sozinha nesse mundo.
Me acomodo melhor no assento e deixo que ela fale.
— Mas eu estava sem chão. Não pude dar a resposta que ele queria e ele deixou a cidade
depois disso. Eu teria me casado com ele, é claro, porque o amava muito. Só que era tarde
demais. Soube depois que ele se casou com outra mulher. Não procurei por ele e nem ele voltou
a me procurar. Voltei para São Paulo e recomecei longe dos palcos. Aos vinte e quatro, me casei.
Um ano depois, tive um filho. Com vinte e sete, estava divorciada e sem dinheiro. Comecei de
novo pela terceira vez.
Sou tomada por um sentimento esquisito que faz meus olhos arderem. Por alguns segundos,
tudo o que faço é contemplar a peça inacabada nas mãos da mulher.
— Lamento que tenha tido tantas perdas — digo por fim. — E o seu filho?
Por que ele deixaria você aqui?
Mas algo me diz que essa pergunta faria mais mal do que bem.
— Me visita quando pode. A esposa não gosta muito de mim, então já sabe.
Não conheço esse homem, mas já não gosto nem um pouco dele. Eu jamais deixaria meu avô
ou minha mãe sob os cuidados de estranhos, se esquecendo dia após dia de que têm uma família.
Decido mudar o foco dos meus pensamentos antes que acabe me intrometendo demais.
— Você se arrepende por não ter ido atrás dele? Do homem que amava — pergunto em vez
disso.
A mulher dá de ombros, apesar de parecer ter ponderado sobre isso por muitos anos.
Dizem que se arrepender do que não se fez é o pior dos arrependimentos. Você nunca saberá
como poderia ter sido. A possibilidade, dentre todos os elementos desconhecidos da natureza
humana, é o que mais nos assusta.
— Não tenho como saber como as coisas teriam sido com Camilo. Mas nunca deixei de amá-
lo.
Meu peito aperta com os sentimentos impressos em sua voz que não estão sendo ditos. O quão
terrível e belo deve ser carregar um amor desse tamanho por tanto tempo?
— Alguém uma vez disse que não basta conhecer a pessoa certa, você precisa conhecê-la no
momento certo também — digo.
Exatamente, Billy Dunne.
Clementina suspira outra vez.
— E por acaso alguém no mundo já alcançou esse milagre?
Ela tem um ponto.
Parece que estamos todos no mesmo barco em relação a isso. Só nos resta torcer para que as
chances estejam ao nosso favor.
Um minuto se passa, mas nem eu nem Clementina compartilhamos nossos pensamentos.
Me distraio com uma discussão acalorada na mesa de dominó, que rapidamente termina
quando uma cuidadora surge na esquina.
Um movimento ao meu lado me traz de volta.
Clementina acaba de tirar um livro de baixo de outra almofada.
Começo a perguntar o que mais ela está escondendo nesse sofá, mas ela se adianta e me
entrega o livro.
— Tome. Leia para mim enquanto termino esse crochê.
Estudo o volume, intrigada.
A Sombra. A capa simples não entrega o conteúdo, e o título é vago demais. O marcador
indica a última página lida, portanto a utilizo como ponto de partida.
Depois de quase quarenta páginas, descubro do que se trata a história.
— Como esse livro termina? Ela vai simplesmente desistir do sonho para ir atrás dele? —
questiono, franzindo a testa.
O dilema da personagem, que precisa decidir se ama mais o seu sonho ou seu marido, faz
minhas entranhas se emaranharem de ansiedade. Ninguém deveria ter que escolher entre duas
felicidades.
Clementina me olha de esguelha.
— É o único final que você consegue imaginar?
Dou de ombros, depositando o livro em cima de uma almofada.
— É o mais clichê.
A mulher me dá um sorriso misterioso.
— Então leve o livro. Leia tudo e traga de volta.
Estreito os olhos, mas meu próprio sorriso me denuncia.
Se eu não a conhecesse por uma hora, diria que ela está me pedindo para voltar.
Bom. Estava justamente pensando no que poderíamos discutir da próxima vez que nos
encontrarmos.
11: SIENNA
Devil I Know, Allie X

O livro emprestado de Clementina traz mais surpresas além da leitura.


Depois que tomo um banho, pego o romance para ler, dessa vez desde o início, mas algo preso
nas primeiras páginas se solta e cai no chão. A princípio, imagino que seja o marcador, só que
ele continua onde o deixei mais cedo.
O objeto nada mais é que um papel, ou, mais especificamente, um cartão.
Analiso as inscrições desbotadas para tentar descobrir do que se trata. Há poucos vestígios das
palavras agora, mas o relevo delas me permite ler o conteúdo do cartão.
“Agência de Artistas” está marcado em um dos lados e no outro há muitas palavras menores
quase que completamente apagadas. A única coisa ainda legível é um nome. Camilo Moreira.
Camilo.
Observo o cartão por alguns instantes.
Não foi esse o nome que Clementina usou quando se referiu ao homem com quem deveria ter
se casado?
Não tenho como saber como as coisas teriam sido com Camilo.
Esse era o cartão de visitas dele na época? Ela o guardou consigo por todos esses anos,
mesmo depois de um casamento, um divórcio e um abandono.
Se isso foi a única coisa que lhe sobrou dele, não me surpreende que tenha sobrevivido ao
tempo. Clementina deve ter zelado essa pequena lembrança com tudo de si.
E se ela pudesse encontrá-lo de novo?
A ideia vem sem avisar.
Talvez não para retomarem de onde pararam, mas para trazerem à tona tudo o que faltou ser
dito na época. Quem sabe assim o coração de Clementina ficasse mais leve, sabendo que foi
honesta uma última vez com o homem que amou. Ela poderia finalmente seguir em frente.
A partir dessa ideia, mil outras começam a borbulhar na minha cabeça. Tenho o nome
completo desse homem e o lugar onde ele costumava trabalhar. Sei que morou em São Paulo,
pelo menos enquanto esteve com Clementina.
Se quiser começar uma busca, tenho algo com que trabalhar.
A primeira coisa que faço é ligar o notebook e pesquisar o nome no Google. O resultado não é
promissor: além de dezenas de contas no Facebook e processos no Jusbrasil, não encontro nada
que aponte para o Camilo que estou procurando.
Uso palavras-chave como agente, atores e São Paulo, mas, ou o homem sumiu do mapa antes
da internet, ou se aposentou muito cedo.
Vendo pelo lado bom, só vou ter seis mil resultados de busca para checar.
Um por um, abro os links que vejo pela frente, atenta às informações que já sei sobre Camilo.
Não bastasse a missão quase impossível, uma maldita mariposa entra voando na sala. Kai
surge logo depois, fazendo a luz da sala oscilar.
Meu estômago se rebela com a visão dele caminhando pela minha sala, mas ignoro a sensação
e vou direto ao ponto.
— Não tenho tempo para você agora, estou fazendo coisas importantes — digo simplesmente.
Kai se senta no sofá e estende o braço por cima do apoio de costas.
Seu olhar cínico encontra o meu.
— Então sou algo banal para você? Que insensível.
Abro a boca para rebater à altura, mas desisto. É exatamente o que ele quer que eu faça.
— Estou falando sério, Kai — insisto, sem disposição para suas provocações. — Preciso
encontrar um homem idoso, que nem deve saber usar a internet, tendo somente o nome e um
sobrenome impossivelmente comum nesse país. Fora que nem sei se ele ainda está vivo.
Por que achei que isso daria certo? É como achar uma agulha no palheiro.
Kai tamborila contra o estofado.
— Já tentou olhar no Facebook? Se ele estiver vivo, provavelmente tem uma conta lá.
Balanço a cabeça.
— Ninguém mais usa Facebook hoje em dia.
— Ninguém da sua idade — ele corrige. — Os velhos continuam lá.
Impressionante. Como ele consegue fazer isso?
— Você não devia saber essas coisas.
— Eu caminho entre a humanidade há quase três séculos, monstrinho — ele revela, erguendo
o queixo com ares presunçosos.
Arregalo os olhos.
Três séculos. Ele viu guerras começarem e terminarem. Governos surgirem e serem
dissolvidos. Sementes amadurecerem e apodrecerem. Trezentos anos de uma existência sem fim.
Com todo esse tempo a seu dispor, ele com certeza conhece mais sobre os hábitos humanos
do que nós mesmos. É o seu trabalho usá-los contra nós.
De repente, outra ideia me ocorre. Talvez a mais racional que tive essa noite.
— Você consegue rastrear pessoas, certo? — Soa mais como uma acusação.
— O que te faz achar isso?
— Você sempre soube onde me encontrar. Não vejo outra explicação.
Sem mencionar o fato de ele ser uma criatura do submundo com mais poderes do que posso
compreender. O quão difícil para ele poderia ser rastrear alguém?
Kai dá de ombros.
— Talvez eu possa. Onde quer chegar com isso?
— Você pode rastrear esse homem que estou procurando — digo, agitando o cartão de
Camilo no ar. — É só me dizer onde ele está e eu cuido do resto.
O demônio solta uma risada desdenhosa que faz meu humor despencar.
— E por que eu faria isso? — Seu tom sugere que estou perdendo o juízo.
Levanto o queixo, querendo parecer confiante.
— Para me ajudar. E porque você precisa conquistar minha confiança para seus truques
funcionarem.
Não acredito nisso, é claro.
— Na verdade, não estou interessado em nenhum dos dois — murmura ele. — Por que não
pede ajuda ao seu anjo?
— Ela não está aqui, você está. Eu conheci alguém hoje que merece muito uma segunda
chance, e talvez eu consiga criar a oportunidade para isso.
Não sei o que esperava de Kai. Se o mínimo de empatia pela causa, ou se apenas um incentivo
para ir adiante.
Mas a expressão de puro desinteresse em seu rosto faz meu sangue ferver. Ele não se importa
nem um pouco. E por que deveria?
— Está bem. — Minha paciência se esgota. — Me diga o que você quer em troca. Além da
minha alma, que não está disponível para negociação.
Tiro de seu alcance a única coisa que ele espera receber de mim. Vejamos como ele lida com
isso.
— Está propondo uma barganha? — ele pergunta, o azul revolto em seus olhos faiscando.
— Estou.
O interesse ilumina suas feições.
Por um segundo, penso em retirar o que eu disse.
— Certo. Qualquer coisa exceto sua alma… — O sorriso faceiro que ele exibe me causa
arrepios nos quais não quero refletir a respeito. Não agora. — Vou pensar em algo.
Meu coração bate mais rápido.
Ele não pode fazer nada com você.
Tenho realmente certeza disso?
— Você parece satisfeito demais, esqueça tudo que eu falei — murmuro, me voltando para o
notebook com a respiração trêmula.
Não posso cair na armadilha dele de novo. Não tenho dúvidas de que ele tramaria mil formas
de me prejudicar a partir dessa barganha.
Ouço Kai bufar do outro lado da sala.
— E eu achando que você queria mesmo ajudar alguém…
Puxo o ar com um misto de raiva, frustração e arrependimento.
— Eu quero — asseguro, encarando-o outra vez. — Só não confio em você.
— Eu não mordo, monstrinho. — Mas o dano que causa… — Não me diga que o anjo já tirou
toda a sua coragem?
Um desafio. Kai não seria ele mesmo se não houvesse pelo menos um desafio por vez
beirando seu olhar altivo.
Semicerro as pálpebras, odiando-o por sempre escolher as piores horas para testar meus
limites.
— Você não pode me forçar a fazer o que eu não quero, pode? — pergunto.
Além de me lembrar disso, quero que ele saiba que eu conheço algumas regras.
O demônio nem sequer pensa a respeito.
— Não — garante.
Certo. Seja lá o que ele decidir pedir em troca, eu terei total autonomia para decidir se atendo
ou não. Posso até mesmo rejeitar toda e qualquer sugestão só para atazaná-lo.
Endireito os ombros e me sento mais ereta na cadeira.
— Encontre a pessoa que preciso, então.
Farei isso por Dona Clementina.
Com uma faísca de divertimento no rosto, Kai me observa por um instante, subitamente
intrigado.
— Você tem algum pertence da pessoa que quer encontrar? — ele pergunta.
Demoro um instante para processar o que ele disse. É difícil raciocinar sendo alvo de um
olhar tão intenso.
Me levanto com as pernas esquisitas e levo o cartão de Camilo até ele.
— Isso deve ajudar.
Nossos dedos roçam levemente quando lhe entrego o item. A sensação não deveria me deixar
tão atordoada, mas é como me sinto. É necessária toda a minha força de vontade para fingir
indiferença.
Me afasto rapidamente.
Kai manuseia o cartão com atenção, e apesar de nada evidente estar acontecendo, sei que ele
está usando suas habilidades. É assustador e bonito em igual medida. Como uma lâmina afiada
num cabo de diamantes.
— Sinto as impressões dele — ele fala depois de alguns segundos. — Humanos são coisinhas
fáceis de localizar do lado de cá.
Aguardo de braços cruzados, a expectativa aumentando dentro de mim. O plano pode dar
certo. Posso conseguir ajudar Clementina.
Quando ergue o olhar para mim, Kai parece já ter todas as respostas de que preciso.
— Espero que esteja com disposição para dirigir.

Odeio como tudo nessa cidade é longe.


Kai me diz para seguir a oeste até segundas instruções, e apesar de eu não ter nenhum motivo
para confiar nele, é o que faço.
Ele definitivamente não está me ajudando por nenhuma razão nobre, mas quero acreditar que
é de seu interesse levar a barganha adiante.
Imprevisível como é, não faço ideia do que irá pedir em troca desse favor, mas se o sorriso
que me deu mais cedo foi um prenúncio, estou certa de que não irei gostar nem um pouco.
Sinto a necessidade de impor alguns limites, então vou em frente.
— Não espere que eu vá aceitar coisas que me prejudiquem em troca dessa localização —
digo, mantendo os olhos à frente. — Seja razoável se quer que eu também seja.
De soslaio, vejo Kai encostar a cabeça no banco.
— Devia ter pensado nisso antes de fazer uma barganha, monstrinho. A não ser que eu peça
sua alma, você deve pagar o preço que eu pedir, esse foi o combinado.
Engulo em seco e aperto o volante com mais força.
— E se eu não quiser pagar? Você não pode me obrigar, lembra?
— Não, mas você vai precisar torcer bastante para que eu nunca consiga cobrar a dívida —
responde, curto e grosso.
Isso com certeza é algo para se preocupar. Se eu morrer no final de tudo isso, nada poderá
impedi-lo de conseguir sua parte do trato, por bem ou por mal.
No que eu estava pensando? Eu nem mesmo deixei as condições claras o suficiente. Kai pode
estar me levando até alguém com o mesmo nome, mas que não seja o verdadeiro Camilo, ou até
mesmo a um túmulo num cemitério.
Merda, eu sou um pesadelo com barganhas.
Além de que, Thalia vai me matar com as próprias mãos quando descobrir que estou em
dívida com um demônio.
Uso técnicas de controle de respiração para ignorar o frio crescente dentro de mim e me
manter na minha missão.
Vai valer a pena.
— Quer saber? Tanto faz. — Dou de ombros. — Estou prestes a fazer uma coisa boa por
alguém que merece. Obrigada por facilitar a missão.
— Você vai ver que sou facilmente atraído por barganhas. Mas não acredito muito em dar
sem esperar nada em troca.
É claro que não, não faz parte da natureza dele. Mas não sei até onde posso julgá-lo sem ser
hipócrita.
Arrisco uma olhada rápida nele e, para a minha surpresa, ele está de olhos fechados enquanto
descansa a cabeça no banco. Seja lá o que estiver fazendo por aí, evidentemente está sugando
suas energias. Isso me deixa curiosa demais para o meu próprio bem.
— Você é feliz no inferno? — pergunto de repente, em parte porque não quero que ele caia no
sono.
— Você é feliz na Terra? — A réplica vem tão rápido quanto.
Ele nem sequer abre os olhos.
Balanço a cabeça.
— É que você é tão empenhado em arrastar pessoas para lá — digo. — Não se sente mal por
elas?
Às vezes, Kai parece ter tanta certeza de que eu gostaria do inferno… Aposto que não passa
de um blefe para me confundir. Ele é, afinal de contas, um maldito enganador. Ou talvez ele
realmente acredite nisso.
— Boa parte das almas que levei está se saindo muito bem lá — diz ele. — Não é esse
sacrifício todo que você acredita.
Morrer e passar a eternidade presa em um lugar inóspito me parece um sacrifício grande o
bastante.
— Me diga três coisas que você gosta no inferno — desafio. — Na verdade, vou ser bondosa.
Me diga uma, se for capaz.
É uma armadilha para desmascará-lo. Vou forçá-lo a reconhecer que não há nada
remotamente atraente num lugar como o inferno.
Kai fica em silêncio por um tempo, me deixando em dúvida se ele adormeceu ou se apenas
vai admitir que é incapaz de dar uma resposta.
— As festas infernais são fabulosas — fala por fim. — Você não pode dizer que sabe o que é
viver até ter ido a uma. Também gosto de como as noites lá podem durar eras. São bem úteis
quando você não quer que o encantamento de um momento especial acabe cedo demais. Se você
der sorte, pode viver mil vidas em uma única noite.
Ele fica mais confortável no banco.
— E também tem a magia. Aquele lugar pode destruir e dar à luz a algo com a mesma
velocidade. Quando a magia é feia, é realmente feia. Mas quando é bela, te deixa de joelhos.
Duvido que até mesmo o céu consiga superar isso.
O carro mergulha em silêncio.
Por mais que eu tente e queira, não consigo pensar numa resposta para dar. Ele soou tão
apaixonado, tão devoto… Não acho que consigo fingir indiferença a algo como isso.
Tamborilo de modo incessante contra o volante, e após um momento de hesitação, encontro
algo para falar.
— E algo que você não gosta?
Isso deve equilibrar as coisas.
— Pode ser bem solitário às vezes — diz simplesmente.
Então ele está mesmo sendo honesto. Não sei muito bem como me sinto a respeito disso.
— Por que só às vezes? Está me dizendo que vocês fazem amigos lá?
— Não só amigos. Às vezes a relação é mais íntima, mas a maioria prefere não arriscar para
não ficar em desvantagem com os inimigos.
A maneira como ele fala, como se tivesse total propriedade sobre o assunto, faz meu
estômago se apertar.
— E qual desses é o seu caso? — indago, curiosa demais para o meu próprio bem.
Eu naturalmente cogitei a possibilidade de Kai ter alguém, e isso tirou meu sono muitas vezes
no passado. Vai ser estranho ter a resposta agora que nada disso importa.
Não muda nada, digo a mim mesma.
— Já fui próximo de alguém, mas hoje tenho outras coisas ocupando minha cabeça — admite.
Me recuso a pensar a respeito da fisgada que essa informação me causa.
Não importa.
— Como esse alguém é? — me pego dizendo, mas me arrependo logo em seguida.
Por que continuo fazendo perguntas para as quais não quero saber a resposta? Por que ainda
me importo?
— Assustadora.
— Esse é o seu tipo? — Ergo uma sobrancelha. — Assustadora e preferencialmente morta?
Não preciso encará-lo para saber que há um sorrisinho jocoso crescendo em seu rosto agora.
— É o seu? — Ele inverte o jogo. — Porque isso explicaria muita coisa.
Algo ganha vida dentro de mim. Algo perigoso. E vem acompanhado de uma vozinha no
fundo da minha mente que me diz para fechar a porta enquanto o monstro ainda está lá fora. Mas
não acho que ele ainda esteja lá fora.
Ligo o aparelho de som e deixo a música encher meus ouvidos.
Essa conversa não está me levando a lugar nenhum. No máximo, para um pouco mais perto
do precipício.
Thalia provavelmente diria que é hora de correr na direção contrária.

Dirijo por uma hora em completo silêncio. Kai parece não dar a mínima e tenho quase certeza de
que tirou um cochilo em algum momento.
Aproveito para pensar no que vou dizer a Camilo caso o encontre.
Até onde eu sei, ele está casado há anos e há chances de ele sequer lembrar de Clementina,
embora eu prefira acreditar que um sentimento como esse, que se enraizou nela por tantos anos,
não pode ser esquecido.
Preciso ir com calma ou vou acabar assustando-o.
O GPS indica que estamos chegando ao endereço que Kai me passou. É uma região
residencial e pacata, com uma vizinhança que provavelmente se conhece pelo nome.
Ao menos não há vizinhos nas portas, de olho em possíveis fofocas.
Paro o carro na frente de uma casa de estilo clássico, com muretas de pedra e árvores no
jardim. Parece ser uma casa com muitas histórias.
— Aí está seu destino final — Kai diz, se mexendo no assento.
— Tem certeza que é aqui? Se você me trouxe à pessoa errada, vou considerar a barganha
desfeita.
Ele aperta os olhos.
— Eu não tenho uma bola de cristal — murmura. — Desça e descubra.
Enquanto saio do carro, faço uma nota mental para nunca mais entrar em barganhas com
demônios.
Kai me assiste pela janela aberta, claramente entediado demais para participar do meu plano.
Por um breve instante, penso em pedir que me acompanhe até a porta, mas ainda me resta
bom senso.
O portão de ferro é quase decorativo, sem nenhum tipo de tranca impedindo o acesso. Para
bater à porta ou tocar a campainha, preciso passar por ele e subir uma escada. A ideia não me
anima muito, mas faço o que precisa ser feito.
Só percebo que minhas mãos estão suando quando toco a campainha.
A porta de madeira antiga não revela nada do interior da casa. Há cortinas pesadas nas janelas,
então não consigo dizer se há luzes acesas lá dentro.
Arrisco um olhar para trás e vejo Kai arquear uma sobrancelha.
Não consigo afastar a sensação de que ele sabe mais do que está me fazendo acreditar.
— Pois não?
Me viro, pega totalmente de surpresa. A porta se abriu sem nenhum ruído, e um senhor
grisalho me encara com uma ruga no meio da testa.
— Boa noite. Você é Camilo Moreira? — balbucio, esquecendo todo o meu script.
O homem continua me olhando como se eu fosse um bicho exótico que apareceu no seu
quintal.
— Quem é você?
— Meu nome é Sienna. Estou aqui porque acho que temos uma amiga em comum. — Faço
uma pausa. — Me desculpe pela intromissão, mas o senhor é casado?
Ok, não era assim que eu tinha planejado, mas vai ter que servir.
O suposto Camilo estreita os olhos. Não tenho dúvidas de que vai fechar a porta na minha
cara a qualquer momento.
— Eu só não quero causar nenhum mal-entendido — explico rapidamente. — Se sua esposa
estiver aí, vou me retirar agora mesmo.
— Ela morreu — ele diz, curto e grosso. — Cinco anos atrás.
Viúvo? Acho que posso trabalhar com isso.
— Lamento. — Parece o certo a se dizer. — Vim aqui porque ouvi falar de você por alguém
que nós dois conhecemos. Clementina. Lembra dela?
A expressão carrancuda e desconfiada se transforma em um misto de reconhecimento, choque
e esperança.
— Cleo? O que houve com ela?
— Nada. Ela está bem. Ela me contou sobre um amigo de muito tempo atrás, de quem sente
falta. Eu peguei seu cartão, então fiquei pensando… talvez, se você sentir vontade, e se ainda
fizer sentido… você poderia visitar ela.
Percebo somente agora que, se ele não estiver interessado, vou ter dirigido até aqui à toa.
Camilo segura a lateral da porta com tanta força que os nós dos dedos ficam brancos.
— Onde ela está?
Alívio me varre dos pés à cabeça e tenho que morder o lábio para evitar um sorriso bobo.
— Pode anotar o endereço?
O homem leva um instante para processar a informação, como se sua mente estivesse
trabalhando a mil no momento.
— Claro. Vou pegar papel e caneta — diz por fim. — Por favor, entre.
— Ah, não precisa — dispenso com um meneio de cabeça.
Sem insistir ou perder tempo, Camilo entra em busca dos materiais.
Olho para trás novamente, dessa vez mal contendo o sorriso orgulhoso. Mas, não
surpreendentemente, Kai fechou sua janela.
Ao contrário de Thalia, se estivesse aqui, o demônio não deve estar feliz. Acabei de fazer algo
legal durante seu turno. Como fica sua reputação depois disso? O pensamento só alarga meu
sorriso.
Camilo volta meio minuto depois, e eu ensino como chegar a Clementina.
— Obrigado — ele diz, a voz carregada de emoção. — Por ter vindo seja lá de onde com
notícias da Cleo. Amanhã vou atrás dela.
— Ela vai ficar feliz — garanto.
Realmente espero que ela fique.
Me despeço rapidamente do homem e volto para o carro com a sensação de dever cumprido.
Toda essa situação me deixa emotiva, mas contenho meus ânimos.
De volta ao carro, flagro Kai bisbilhotando meu porta-luvas.
— Ei, não tem nada aí da sua conta — ralho, sem conseguir ficar chateada de verdade.
Kai fecha o compartimento e ergue as duas mãos em sinal de rendição.
Não sei o que pensar de como ele tem agido essa noite. Em nenhum momento tentou me
incentivar a cometer erros, e só me chamou de monstrinho uma vez. Ele provavelmente está
aprontando algo.
Decido pensar nisso outra hora. Por enquanto, vou simplesmente aceitar o saldo positivo da
noite e voltar para casa com o coração mais leve.
— Estou vendo uma combinação perigosa — Kai fala, quando já estou dirigindo em silêncio
há vários minutos.
— Que combinação?
— O brilho nos seus olhos e esse sorriso convencido — diz em um tom afiado.
Mantenho meu foco à frente, sentindo o olhar dele no meu perfil.
— Isso te preocupa? — murmuro de volta.
— Não. Já vi essa mistura antes e você não tinha feito nada de bom, monstrinho.
O CONSELHO
3 anos antes...

Depois daquela fatídica noite na festa, Sienna só voltou a encontrá-lo aos dezessete anos,
exatamente no mesmo lugar onde o conhecera, todos aqueles anos atrás.
Estava refletindo sobre o ano que começava — o último do ensino médio — e na vida que
teria quando saísse da casa de sua mãe para ocupar seu próprio lugar no mundo.
Ficou tanto tempo imersa em devaneios que Bianca precisou empurrá-la de leve com o
ombro.
— Você não ouviu uma palavra do que eu disse — acusou a garota, fingindo ressentimento.
— Ouvi, sim — respondeu Sienna, virando-se para olhá-la. — Você falou que o verão de
Londres é parecido com o daqui.
Sienna realmente tinha ouvido cada parte do monólogo de Bianca sobre a nova vida que elas
teriam em Londres. E, por causa disso, não parava de pensar em como seria quando as duas não
estivessem mais juntas.
Ela teria liberdade para explorar as nuances de sua própria sexualidade como uma mulher
adulta e bastante curiosa.
No entanto, não queria jogar um balde de água fria em Bianca, não quando elas ainda tinham
alguns meses para serem adolescentes fingindo que sabiam algo sobre o amor.
— Sim, e acho que você vai amar a cidade.
Sienna abriu um sorriso e deixou a outra pegar sua mão e levá-la aos lábios.
Bianca era boa demais para ela, disso tinha certeza. Por vezes ela desejara que Bia significasse
para ela o que ela significava para Bia, mas não conseguia convencer seu coração de que era pela
garota que ele deveria bater mais forte.
Ela amava a forma como se sentia quando estavam juntas, quão bem a garota a tratava e suas
tentativas constantes de ser o que ela precisava, mas não a amava. Nunca era capaz de afastar a
sensação de que algo estava faltando em Bianca, sem o qual ela não poderia amá-la.
Mas não era que algo estivesse faltando em Bianca. Na verdade, nada daquilo tinha a ver com
Bia, porque era outra pessoa que Sienna estava esperando.
— Por que você não surrupia uma garrafa de vinho do meu avô? Quero curtir um pouco antes
de ir dormir.
Bia estreitou os olhos e sorriu atravessado.
— Grandes planos?
Sienna deu de ombros, sorrindo com o canto da boca.
— Sou toda sua pelo tempo que você ou o vinho conseguirem me manter aquecida aqui fora.
A garota suspirou e ficou de pé em um pulo.
Sienna se acomodou melhor sobre a toalha, satisfeita.
— Volto em dois minutos — disse Bia, e Sienna a observou caminhar a passos largos na
direção da casa.
Bianca daria sorte se conseguisse voltar em quinze minutos, considerando que Amélia Bianco
estava o dia todo cercando-a atrás de uma oportunidade de encontrá-la sozinha para começar
uma de suas conversas infindáveis.
Conhecendo a mãe, Sienna sabia que corria o risco de sucumbir à brisa fria da noite antes
mesmo que o vinho chegasse.
Mas passou os dedos pela grama e deixou a mente vaguear novamente. Pensou nas notas boas
que precisaria tirar para tentar uma bolsa na Academia de Artes Cênicas de São Paulo no ano
seguinte, na torta de laranja que a mãe fizera e que ela não tinha conseguido comer ainda, e
depois distraiu-se com a leve ondulação da lagoa adiante.
Por último, fechou os olhos e simplesmente ouviu. O som da água chegando à encosta, os
insetos noturnos, o vento soprando em seus ouvidos… Também sentiu algo, mas como não
esperava por isso, abriu os olhos rapidamente.
Uma pequena mariposa repousava tranquila no dorso de sua mão como se enfim tivesse
chegado ao seu destino depois de uma jornada cansativa.
Sienna a estudou por meio segundo, tempo que seu coração levou para começar a dançar em
seu peito.
A garota não mais acreditava na casualidade de mariposas, especialmente se alguma surgisse
enquanto ela estava sozinha. Vinha procurando os sinais por tanto tempo que quando esse
finalmente apareceu, ela não hesitou.
Já fazia dois anos que não tinha sequer um vislumbre dele. Ela não queria imaginar como
seria ficar muito mais tempo.
Sienna levantou-se para procurá-lo e a mariposa voou para fora de seu alcance, rumando na
direção do velho deck na margem da lagoa. Foi lá que a garota o avistou, apesar da pouca luz e
da distância entre os dois. Ela sabia que só podia ser ele.
Correu descalça pela grama, no encalço da mariposa, que a levava exatamente aonde ela
queria ir. Seu peito se comprimiu de tal forma que Sienna achou que o sentimento fosse reduzi-la
a poeira, mas, de novo, já estava acostumada.
O rapaz de cabelos escuros e rebeldes estava de costas para ela, com as duas mãos apoiadas
no trilho superior do deck. Pareceria uma pintura, se não fosse pelos fios de cabelo tremulando
com o vento.
Sienna interrompeu-se antes de subir na passarela de madeira, e prendeu a respiração. Não
sabia o que diria, embora soubesse o que queria dizer.
O tempo sempre era curto demais e ela desejava poder conversar com ele por horas e horas,
pois assim talvez os anos que se seguiriam sem a presença dele fossem mais toleráveis. Sienna
queria muito mais do que poderia receber, mas tinha esperanças.
A garota jamais saberia o que teria dito primeiro, porque o rapaz logo soltou a estrutura de
madeira e virou-se para ela.
Não parecia justo para Sienna que ela tivesse mudado tanto com o passar dos anos, enquanto
ele não mudara em absolutamente nada. Dez anos pareciam dez dias para o rapaz.
Só depois Sienna descobriria que, na verdade, dez anos para ela eram como cem anos para
ele, e que o tempo soa diferente quando já não se está mais vivo.
— Esse lugar nunca muda? — perguntou o rapaz, quebrando o silêncio.
Sienna soltou o ar dos pulmões devagar.
— Algumas coisas nunca mudam, eu acho — respondeu, absorvendo cada milímetro da
presença do homem à sua frente.
Tinha que garantir que nunca esqueceria aqueles traços, não importava quantos anos se
passassem.
O rapaz começou a andar até ela sem pressa alguma, parecendo não ter muitas preocupações
no mundo.
A garota não fez nenhum movimento, mas não tirou os olhos dele por um segundo sequer.
— Como está indo a vida, Sienna? — ele quis saber, parando próximo a ela.
— Senti sua falta.
Sienna mal ouviu a pergunta dele e tampouco importava. Ela teria tirado aquilo de seu peito
de um jeito ou de outro.
— Fazem dois anos…
— Dois anos! Por que você demora tanto para voltar?
Ele balançou a cabeça, parecendo não compreender.
— Você não devia ficar esperando por mim. Achei que sua vida fosse um pouco mais
interessante que isso.
Sienna quis esganá-lo pela ousadia, mas percebeu, de último instante, que não estava
realmente brava com ele. Na verdade, sentira saudade dos comentários ácidos do rapaz, e agora
que ele estava de volta, ela se viu feliz com suas implicâncias.
— Eu tenho vivido a mesma vida desde sempre — murmurou ela. — Mas quando você vem,
é uma novidade. Eu nunca sei o que esperar.
Os dois se encararam por alguns segundos.
O rapaz adotou uma expressão de pesar quando voltou a falar.
— Todo dia é uma novidade, Sienna. Ou deveria ser, pelo menos. Quanto menos você
permitir que uma pessoa se torne essa novidade, mais interessante ficará sua vida.
Ela não gostava do rumo que a conversa estava tomando, como se estivesse sendo repreendida
por seus sentimentos, e logo por ele, então tratou de mudar de assunto.
— Para onde você vai quando não está aqui?
Sienna tinha suas teorias, claro. Cada uma fazia menos sentido que a outra, e a maioria
envolvia agentes secretos e viagem no tempo. De certa forma, todas elas pareciam possíveis
naquele contexto.
— Eu viajo pelo mundo — respondeu o rapaz, enfiando as mãos nos bolsos da calça de linho.
— Raramente fico em um só lugar. Ossos do ofício, eu acho. Mas também tenho a minha casa.
— Posso saber onde fica a sua casa?
Sim, ela estava ciente de que soava ligeiramente maníaca. Mas tinha que saber algo
substancial sobre ele antes que ele sumisse outra vez.
— Um dia.
— Então você pretende voltar? — precipitou-se, se agarrando às pistas que ele deixava ao
longo da conversa como farelos de pão.
— Ainda vamos nos encontrar muitas vezes, Sienna — garantiu ele, alheio às reações que
suas palavras causavam na garota.
— Quando? — ela exigiu saber.
O rapaz apertou os lábios.
— Em breve.
Não era satisfatório o bastante, mas Sienna sentia seu tempo se esgotando. Ela lembrou-se de
outra questão urgente que vinha lhe atormentando.
— Você não é casado, é?
E assim que fez a pergunta, descobriu imediatamente que não queria saber a resposta. Quis
retirá-la, mas o rapaz já estava adotando uma expressão esquisita.
— Ok, isso está ficando estranho — disse ele. — É melhor eu ir. Sua namorada está voltando.
A garota olhou rapidamente por sobre o ombro, apavorada com a ideia de vê-lo sumir de
novo, mas ainda mais ansiosa pela possibilidade de Bianca aparecer naquele momento.
Não teria como explicar a situação, se nem ela era capaz de entender direito.
— Mas você acabou de chegar. O que veio fazer?
Ele não podia simplesmente ir embora tão rápido.
Sienna ainda tinha tantas perguntas…
— Acho que só vim… — Ele fez uma pausa, procurando o resto das palavras. — Te dizer
para aproveitar seus próximos anos como se nada mais importasse.
Sienna pestanejou.
— Eu não…
— Faça o que sentir vontade de fazer — o rapaz a interrompeu. — Crie momentos dos quais
vai se lembrar depois. — Com um leve suspiro, ele começou a dar as costas à garota. — Nos
vemos por aí, Sienna.
— Espera — pediu ela.
Impulsivamente, ela segurou o pulso do rapaz. Mil pensamentos se atropelaram em sua mente,
todos eles brigando para sobrepor um ao outro.
Sienna queria poder segurá-lo ali por muito mais tempo.
— Ao menos me diga o seu nome.
Parecia patético que ela não soubesse o nome do rapaz em quem pensava tanto.
Mas ele nunca fizera questão de dizer a ela o seu verdadeiro nome, e Sienna não voltou a
perguntar até aquele momento, talvez porque sentisse que esse encontro não era como os outros.
Que era o ponto de partida para algo muito maior.
O rapaz não puxou o braço de imediato. Estudou os olhos da garota por um instante,
provavelmente analisando se deveria ou não ser sincero daquela vez.
Sienna prendeu a respiração, rezando aos deuses para que passasse pelo crivo exigente do
rapaz.
Por fim, ele livrou-se gentilmente do aperto de Sienna em seu braço e esboçou um princípio
de sorriso. Mal era perceptível, mas Sienna se agarrou ao gesto como uma alma necessitada de
seu anjo salvador, pois aquele foi o primeiro e único sorriso que a garota o viu esboçar.
— Pode me chamar de Kai.
Sienna sentiu o nome na ponta da língua, se emaranhando em seu consciente e reivindicando
um lugar junto a tudo mais que se referia àquele estranho.
Ela não teve a oportunidade de entoá-lo em voz alta, no entanto, pois ouviu Bianca a
chamando a alguns metros dali, e os dois segundos que levou para olhar para trás e de volta para
Kai foram suficientes para que ele sumisse.
Ela estava sozinha no deck agora, com o coração descompassado e uma camada de suor
escorrendo em suas costas.
Kai. Era a única coisa ocupando seus pensamentos, como um grande letreiro em neon.
Kai voltaria a aparecer, ela sabia disso agora. Podia não saber quando ou onde, mas em menos
de um ano ela seria alguém independente cuidando da própria vida na cidade grande.
Sienna achava que nada que Kai fizesse poderia prepará-lo para o que aconteceria quando ela
o encontrasse de novo.
12: SIENNA
Darkside, Oshins

— Ele está olhando pra sua bunda.


Belisco o ombro de Ágata enquanto fazemos o alongamento.
— Não precisa anunciar para a turma inteira — resmungo, mantendo meus olhos fixos à
frente.
Com o meu peso sobre suas costas curvadas, Ágata se engasga com uma risada.
— Como se só eu tivesse notado — ela provoca.
Termino o exercício em dupla e me sento no chão ao lado de Agui. Os outros alunos finalizam
seus alongamentos, aproveitando a ausência do professor para colocar os assuntos em dia.
Quando lanço um olhar na direção de Liang, se alongando a alguns metros daqui, o pego me
encarando. Sem ter como disfarçar, ele acena com a cabeça e sorri antes de se virar para seu
parceiro de exercícios.
— Ele é fofo — digo, prevendo a reação de Ágata.
— Fofo? O coitado não tem chance nenhuma com você, então.
Mordo um sorriso bem na hora em que o professor passa pela porta, e então passo o ensaio
inteiro evitando o olhar lascivo de Agui sempre que Liang chega perto de mim.
Faltando poucos minutos para o término, sou puxada discretamente para um canto da sala.
Ágata disfarça usando os papéis das nossas falas como pretexto.
— Você pode ir comigo a um lugar depois da aula? — pergunta num sussurro.
A forma como ela fala automaticamente me faz lembrar de seu comportamento estranho nos
últimos dias. Das coisas que ela não está me contando.
Finjo ler o texto em sua mão.
— Que lugar?
— Uma consulta.
Meu olhar procura o dela no mesmo instante.
— Está sentindo alguma coisa?
Era isso que ela estava escondendo de mim? Se ela estiver doente…
— Não é isso — ela se adianta, evitando me encarar. — Não é uma consulta médica.
A pergunta deve ficar estampada na minha cara, porque ela suspira antes de voltar a falar.
— É uma taróloga — revela. — Quero uma leitura de cartas.
Uma… o quê?
— Leitura de cartas?! — me sobressalto, esquecendo de manter a discrição.
Agui me puxa um pouco mais para o canto.
— Pensei muito antes de decidir, ok? — retruca depressa. — Se você não quiser ir comigo,
tudo bem, vou sozinha. Mas sem sermão.
O que diabos Agui espera encontrar numa visita a uma taróloga?
Abro a boca para responder, certa de que minha amiga perdeu o juízo, mas alguém é mais
rápido que eu.
— Por que estou ouvindo a voz de Cleópatra quando não deveria? — ouço o professor dizer
de onde está.
Ágata abaixa a cabeça e vai se afastando a passos curtos de mim.
Não me atrevo a abrir a boca de novo até estarmos sozinhas.

Ágata nos leva para o outro lado da cidade. Faço todo o caminho desejando ter simplesmente
ficado na biblioteca decorando minhas falas, mas tive esperanças de convencê-la a desistir da
ideia.
Não só não consegui dissuadi-la, como também não descobri o motivo de ela estar recorrendo
a medidas tão extremas. Apesar de parecer aliviada pela companhia, Agui promete me contar
tudo depois da consulta, quando as cartas já tiverem falado. Sim, cartas de papel têm mais
relevância que a minha opinião agora.
Não que eu desacredite nessas coisas — descobri da pior forma que o sobrenatural existe e
influencia nossas vidas —, mas isso não me deixa com o pé menos atrás em relação a quem
promete usá-lo em favor próprio.
Charlatões existem e não estão nem um pouco preocupados com quem procura por eles
querendo respostas.
Mas Agui é muitas coisas e impulsiva é a mais grave entre elas. Quando acorda decidida sobre
algo, nada consegue fazê-la voltar atrás. Não entendo seus impulsos na maioria das vezes, mas
nunca a deixo por conta própria.
Ela para o carro na frente de uma construção de tijolos vermelhos, com tapumes cobrindo toda
a parte de baixo e uma escada estreita na lateral.
A não ser que o GPS tenha nos mandado para o lugar errado, a casa da pessoa que Agui está
procurando fica lá em cima.
— Vai mesmo fazer isso? — pergunto pela última vez, franzindo a testa.
Agui desliga o carro.
— Vou.
A rua está praticamente vazia, então ninguém nos vê subindo as escadas.
Ela hesita por um segundo antes de bater à porta, e torço para que esteja se perguntando se
deve dar às costas e ir embora.
No entanto, antes que ela tenha a chance de decidir, a fechadura se abre com um clique e a
porta range à nossa frente.
— Ai, caramba, você chegou adiantada!
Uma garota baixinha enfia metade do corpo para fora do arco e nos encara com os olhos
arregalados.
Tem sardas espalhadas pelo rosto e pequenas tranças presas com acessórios ao longo do
cabelo acobreado. Há uma argola em seu nariz arrebitado e um alargador na orelha esquerda.
— Desculpa — Ágata ri, sem jeito. — Cheguei numa hora ruim?
A julgar pela reação da garota, poderíamos muito bem ter chegado para envenenar seu
gatinho.
— Não, pode entrar. — A cartomante escancara a porta. — Só não tive tempo de deixar tudo
pronto, então você vai precisar esperar um pouquinho.
A garota se afasta e faz um gesto, nos convidando a entrar.
Sigo Ágata, que segue a anfitriã por uma sala recheada de caixas parcialmente esvaziadas,
móveis em processo de montagem e peças de roupas jogadas aqui e ali. Um gato preto passa
correndo e some debaixo de uma mesa.
— Amor, eu disse pra não colocar água na zamioculca! Agora essa merda está encharcada —
A cartomante berra, erguendo um vaso do chão e o levando até uma janela no canto.
Uma segunda mulher vira a esquina do corredor e entra na sala. Tem o estilo um pouco
diferente da cartomante, sem tranças ou piercings, mas ainda posso ver algumas semelhanças.
Sorrio por educação.
A mulher de cabelo cacheado passa por nós sem dar nenhum indício de que nos viu.
— É, você falou isso há uma semana — ela resmunga em resposta à outra.
— E por acaso eu preciso falar todo dia? Deixe a porra da planta em paz.
— Vai se foder.
Ágata me lança um olhar e eu encaro o tapete no chão, decidindo simplesmente fingir que não
estou ouvindo toda a conversa.
Vejo de relance quando a afogadora de plantas se acomoda no sofá e acende um cigarro com
mãos finas.
No instante seguinte, a cartomante volta do resgate à zamioculca.
— Só um minuto, ok? — diz, antes de começar a revirar uma caixa especialmente grande. —
Qual o nome de vocês mesmo?
— Ágata.
— Sienna — falo em seguida.
— Legal. O meu é Gia.
Me encosto na parede enquanto esperamos Gia terminar sua busca.
A outra mulher, cujo nome ninguém se preocupou em dizer, segura algo na minha direção e
depois na de Agui, finalmente nos notando.
— Querem? — Balança um cigarro entre os dedos.
— Não, obrigada — dizemos ao mesmo tempo.
Não percebo que Gia saiu da sala até ouvir sua voz de um cômodo próximo.
— Tenho água, cerveja e coca-cola, se quiserem — avisa.
— Não precisa — Agui responde por nós.
Afogadora de plantas liga a TV e fofocas de subcelebridades estão sendo contadas pelos mais
diversos ângulos.
Aproveito a espera para bisbilhotar de longe a composição da casa de Gia.
Ágata contou que a encontrou por acaso num anúncio do Instagram e que as avaliações em
sua página são boas. Para mim, ela é uma impostora inteligente até que se prove o contrário.
Há quadros pendurados nas paredes da sala e alguns outros apoiados precariamente nos
móveis. Minha atenção recai sobre uma outra caixa deixada no chão, cheia de acessórios
esquisitos.
No topo dos itens, reconheço alguns baralhos, velas e cristais de vários tamanhos. Imagino
que é assim que se pareça uma pasta de esoterismo no Pinterest.
— Você também trabalha com isso? — pergunto à mulher no sofá, correndo o risco de ser
ignorada de novo.
Mas ela só me olha com desinteresse.
— Pareço maluca a esse ponto?
Pisco uma vez.
— Eu não…
— Ela faz as coisas, eu só ajudo. Leitura de cartas, mapa astral, búzios… ela talvez traga a
pessoa amada em três dias, mas não temos certeza ainda.
Não consigo evitar o olhar de censura que dou a Ágata. Tantas formas de se cair em um
golpe…
— Definitivamente não funcionou comigo — é Gia quem retruca, de volta à sala.
A assistente de cartomante sopra espirais de fumaça e lhe dá um olhar lascivo.
— Não ouvi você reclamando mais cedo.
Gia revira os olhos e acena para Agui.
— Pode vir, Ágata.
Minha amiga começa a segui-la pelo corredor, mas se vira para mim de repente.
— Pode entrar comigo, se quiser — ela diz.
Faço que não com a cabeça.
— Te espero na porta.
Quando as duas somem em um dos cômodos, deixo escapar um suspiro.
Em vez de esperar sentada, faço como disse a Agui e fico de guarda na porta, atenta a
qualquer coisa fora do lugar. Ouvindo o suficiente para saber se algo estranho acontecer, mas
não para invadir a privacidade da minha amiga, por mais que o suspense esteja me deixando uma
pilha de nervos.
Alterno meu peso entre as pernas várias vezes e conto cada cerâmica do piso de novo e de
novo, até a porta se abrir e Agui passar por ela.
Mas ela não parece nervosa como achei que pareceria. Isso deve significar que ela gostou do
que ouviu.
Merda, eu devia ter entrado.
— Acabei — diz ela, com uma expressão enigmática. — Mas ela quer falar com você.
Sinto uma ruga entre as minhas sobrancelhas.
— Comigo?
Agui apenas aquiesce antes de seguir pelo corredor e me deixar para trás.
Começo a ir atrás dela, mas ouço uma voz através da porta aberta.
— Sienna?
Olho desconfiada para o interior do quarto. Há uma mesa em uma das extremidades e uma
cadeira diante dela. Armários e estantes junto às paredes, e um sofá pequeno no canto, mas no
geral o espaço é organizado.
Mal passo pela porta e já encontro Gia meio deitada, meio sentada no sofá.
— Quer um? — Ela estende um cigarro na minha direção.
Mais um e vou poder pedir música no Fantástico.
— Não, valeu.
Ela franze a testa.
— Não usa nada? Nem uma verdinha?
— Geralmente não — digo, imediatamente imaginando se isso me faz parecer uma
conservadora.
Minha atenção vaga pelo quarto outra vez, se detendo na mesa adiante. Mais especificamente,
no conteúdo dela.
Velas, frascos com líquidos de cores estranhas e ramos de flores ocupam a maior parte da
superfície lisa. E, claro, uma pilha de cartas dispostas no centro.
— Por que me chamou? — vou direto ao ponto e cruzo os braços.
— Por que não se senta um pouco? Posso ler as cartas para você — diz ela.
— Acho que não preciso. Mas obrigada.
Gia me olha com seriedade.
— Sei lá… sinto uma energia específica em você. Uma pendência, talvez. Você perdeu
alguém recentemente?
Lá vamos nós.
Me impeço de revirar os olhos.
— Não. Ninguém. — Não vou contar a ela sobre vovó, e meu último cacto não conta.
— Ninguém com quem ainda tinha assuntos a tratar? Pendências costumam ficar com a
pessoa por bastante tempo. Às vezes, nunca se desfazem.
É óbvio que sei que Gia só está dizendo coisas genéricas para me convencer a pagar pelos
seus serviços. Ela não tem como saber fatos sobre mim ou sobre a minha situação atípica. Mas
ainda assim, pensamentos me ocorrem. Ideias. Possibilidades que nem sequer existem.
Minha pendência com o meu pai não pode mais ser resolvida. Não seria tão simples assim.
— Não — repito, fechando a cara.
Exalando anéis de fumaça, Gia dá de ombros novamente.
Fico encarando-a por alguns segundos, meus pés colados no chão.
O que estou fazendo? Que inferno.
— Vamos dizer que eu tenha. — Minha boca se move sozinha. — O que você acha que
poderia fazer?
É isso. Já foi. Que mal fará?
É, devo estar enlouquecendo.
— Não sei. Poderíamos checar a origem dessa pendência. Ver se há algo que você possa fazer
para resolvê-la.
Meu peito vibra com uma lembrança.
Se está tão determinada assim a manter a sua alma, por que não entra em contato com seu
pai e o convence a romper o acordo?
Fecho a porta atrás de mim.
— Você consegue falar com os mortos?
Continuo falando? Por que simplesmente não vou embora? Não posso estar considerando essa
ideia terrível. Pode muito bem ser uma armadilha de Kai, ou um teste para ver até onde sou
capaz de ir.
— Uau, isso foi de zero a cem muito rápido — ela se espanta. — Bom, eu nunca tentei antes,
mas tenho um tabuleiro Ouija, se você quiser arriscar
Devo ter ouvido mal…
— Um tabuleiro Ouija? — repito, boquiaberta.
— É, ganhei de uma ex. Acho que ela comprou numa promoção na Amazon.
Ela não pode estar falando sério. É a ideia mais absurda que já ouvi.
— E como isso funciona?
O que tenho a perder a essa altura? Na melhor das hipóteses, tudo não passará de uma
encenação e eu vou embora de mãos abanando. Na pior, meu pai me manda catar coquinho.
Mesmo que seja uma artimanha do demônio, nada pode piorar uma situação que já desandou
completamente.
— Tenho quase certeza de que vamos precisar de algo para restringir a conexão, senão vamos
acabar com um espírito aleatório na mesa. Você tem alguma coisa que pertenceu à pessoa em
questão?
Engulo em seco.
— Tenho o mesmo sangue que ele. Serve?
Esse fardo tem que servir para alguma coisa.
— Lamento pela sua perda. Mas acho que vai servir, sim.
Gia se levanta e corre até a mesa.
— Pode sentar aqui? — Aponta para a cadeira em frente à sua.
Ando até lá com as pernas bambas e os ombros pesados.
Ela espera eu estar sentada para fechar as cortinas pesadas, mergulhando o quarto na
penumbra, e acender as velas sobre a mesa.
Com a pulsação acelerada nos ouvidos, observo ela abrir uma gaveta e retirar de lá uma caixa
plana e quadrada.
— Eu sentia que isso seria útil um dia — murmura, posicionando o objeto entre nós duas.
Fora da caixa, o tabuleiro parece um brinquedo excêntrico. Duvido que funcione. Duvido?
— É seguro? — pergunto, mas não parece apropriado.
Gia abre um sorrisinho.
— Não vamos perder nossas almas nem nada do tipo, se é isso que quer saber. — Se ela
soubesse… — No máximo, algum espírito oportunista vai encher meu saco por alguns dias. Nada
que já não tenha acontecido antes.
Ok. Nada demais.
Torço as mãos suadas.
Não estou com medo. Não estou.
— Como ele se chamava? — ela questiona.
Encaro-a por meio minuto, demorando a entender a pergunta.
— Nathan. — Minha mãe não ficaria nada feliz. — Não sei o resto.
— Ok. Coloque os dedos aqui.
Imito o gesto de Gia e sinto a peça menor do tabuleiro sob meus dedos.
Não pense demais.
Gia inspira antes de voltar a se mexer.
— Esse chamado é para Nathan, cujo sangue se encontra nessa mesa. Venha até nós e fale
conosco.
Não sinto nada. Por um longo instante, nada muda. Minha respiração é a única coisa que
parece viva aqui.
— Você está entre nós, Nathan?
Um arrepio me varre quando Gia se cala.
A chama das velas tremula. Uma brisa entra no quarto abafado. Meu cabelo balança sozinho.
Gia fica pálida e minha garganta se fecha mais um pouco.
A peça que seguramos finalmente se move.
— Você está fazendo isso? — sussurro.
Sim, ela está. Por favor, esteja.
— Não. Observe as letras — Gia responde no mesmo tom.
Assisto de olhos arregalados conforme minha mão é guiada de um lado para o outro.
Impossível. Essas coisas não funcionam.
Dica de alguém que já morreu: há sempre uma forma de se comunicar com quem está do
outro lado.
O objeto para de se mexer.
Gia olha para mim.
— “Olá, filha” — ela entoa.
Me esforço para engolir. Como isso está acontecendo?
— Vá em frente, pergunte algo que somente ele saberia.
Todo pensamento lógico abandonou minha cabeça no segundo em que a peça começou a se
mover, então me concentrar é extremamente difícil.
O que preciso dizer? O que preciso fazer?
Nathan. Esse espírito pode ser o meu pai. Pode ser qualquer outra pessoa. Pode ser Gia
trapaceando. Preciso saber.
— Quem conhecemos em comum? — pergunto. Minha voz soa fina demais e estranha.
A palheta entra em ação mais uma vez, agora com mais afinco. Meus olhos embotam, mas
consigo rastrear as letras.
— “Amélia” — Gia traduz assim que tudo fica imóvel. — Está correto?
Meu pai está aqui. Da forma mais antinatural e tenebrosa possível. Mas ele está aqui. Posso
falar com ele. Pedir que me liberte do acordo e me deixe viver a minha vida.
O que tenho a perder? O que ele tem a perder?
— Fale sobre a pendência — Gia me traz de volta.
Passo a língua pelos lábios subitamente ressecados.
— O que você fez antes de morrer… pode ser desfeito?
Não vou ser específica demais. Se de alguma forma Gia estiver por trás disso, não vou
facilitar sua farsa. Se for realmente Nathan, ele vai saber o que estou dizendo.
A palheta vai até a palavra no topo.
— Sim.
Meu coração tropeça.
— Você pode desfazer agora?
Nunca me achei uma pessoa ansiosa. Mas enquanto os segundos passam e nada acontece,
acho que estou morrendo. É o pior tipo de tortura que já conheci.
Cinco segundos. Quinze segundos. Trinta segundos.
Minha respiração sai com esforço.
— Nathan? Ainda está nessa sala? — É Gia quem quebra o silêncio.
Nada. Por mais uma eternidade, nada.
Até a peça dar uma guinada e parar sobre um número muito específico.
Logo depois, vidros explodem por toda parte e as velas se apagam ao mesmo tempo.
Levo as mãos ao rosto por instinto.
A cadeira é a única coisa que me impede de tombar no chão.
— Mas que merda?! — ouço Gia berrar.
— Minha nossa!
Esbaforida, toco meu peito com a mão trêmula, me surpreendendo quando noto que meu
coração continua batendo.
As cortinas se abrem e a luz volta a encher o quarto.
O estrago não foi tão grande. Um espelho pequeno se estilhaçou em um milhão de pedaços e
uma taça de cristal estourou.
Gia balança a cabeça e bate a mão no tabuleiro.
— Filho da mãe!
A cartomante logo está diante de mim com um copo de água na mão. Aceito sem discutir.
Não digo nada por muito tempo. Minha alma ainda está voltando ao corpo.
— “Seis” — ela diz. — O que ele quis dizer com isso?
Tomo toda a água em dois goles.
— Não sei — respondo.
Seis. Não é como se ela fosse entender, de qualquer forma. Seis semanas.
Esse é o tempo que te resta, sua idiota. A mensagem foi bem clara.
— Obrigada de qualquer forma. — Sinto que devo agradecer, apesar de tudo.
Recupero minha carteira na bolsa e deixo algumas notas em cima da mesa.
— Não precisa. — Gia começa a devolver o dinheiro. — Ele nem ao menos te ajudou. Que
merda.
Empurro levemente seu braço.
— Por favor. Pela tentativa.
Ela aperta os lábios, talvez pensando em insistir, mas me levanto antes e vou até a porta.
— Se cuida — me despeço.
Com um sorriso triste, Gia acena.
— Te vejo por aí.
A despeito do que eu achava, gostei de Gia.
Mas espero não encontrá-la nunca mais.
13: SIENNA
Look What You Made Me Do, Taylor Swift

Largo os legumes no carrinho, desviando da montanha de cenouras como se cada uma delas
tivesse me ofendido pessoalmente.
Ainda odeio cenouras, a propósito, só não mais que ir ao supermercado. Especialmente depois
de um fracasso colossal.
Com mais força que o necessário, empurro o carrinho até a próxima seção.
Uma senhora ameaça começar um sermão quando evito, por bem pouco, atropelar seu
cachorro no corredor estreito.
Fujo da seção sem pegar o que deveria, mas algumas lutas terminam melhores quando
abandonadas.
Estou decidindo o que mais preciso comprar quando um par de asas passa voando por mim e
pousa na barra do carrinho.
Ótimo. Era realmente o que me faltava.
Não me dou ao trabalho de parar e olhar. A presença atrás de mim é palpável o bastante para
eu saber que tenho companhia.
— Qual é a das mariposas, afinal?
Malditas mariposas. Nunca trouxeram nada de bom. São bem desagradáveis agora que parei
para pensar.
— Não gosta delas? — A voz se aproxima e eu passo a vê-lo pelo canto do olho quando
ficamos ombro a ombro.
— Tanto quanto gosto de você — rebato, crispando os lábios. Ok, talvez não tenha sido a
minha resposta mais inteligente. — Não gosto nem um pouco, caso não tenha ficado claro.
Juro que sou capaz de ouvir o sorrisinho de Kai ao meu lado. Demônio maldito.
— Não são mariposas — ele enfim responde, quando me detenho na prateleira de sucos. —
São muito mais interessantes, mas como não podem estar aqui, elas encontram uma forma de me
acompanhar sem chamar atenção.
Olho para ele pela primeira vez.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e as costas ligeiramente apoiadas na prateleira em que
paramos, Kai não parece mais do que um acompanhante inofensivo.
Ele sabe passar despercebido, e o fato de que ninguém nos arredores está prestando atenção
em nós, mesmo com ele andando descalço por aí, é a prova disso.
— Se não são mariposas, então o que são? — Mantenho a voz baixa só para garantir.
Kai dá de ombros.
— Você vai ver com os próprios olhos.
Bufo, desistindo do suco. Quantas lutas vou precisar abandonar hoje?
Para a surpresa de ninguém, Kai me segue por mais corredores. Ele não volta a falar até
estarmos sozinhos no fim da seção de matinais.
— Foi uma ótima tentativa mais cedo, monstrinho. Admito que não esperava que você teria
coragem, mas me surpreendi. Uma pena não ter dado certo.
— Uma pena mesmo — resmungo, estudando uma embalagem de cereal. — Continuo
tentando de todas as formas me livrar de você, mas é como uma coceira nas costas que minha
mão não consegue alcançar.
Kai toma a caixa das minhas mãos e a joga no carrinho com outras três.
Ele sabe quantas caixas de cereal eu compro por mês? Excelente. Nem um pouco
preocupante.
— Vamos torcer por mais sorte na próxima — diz simplesmente, assumindo o controle do
carrinho. — E já que estamos falando nisso, acho que devo te contar que sua tentativa de contato
com seu pai não passou despercebida. Por azar, o método que você usou não é exatamente
discreto.
Impeço o movimento do carro com uma mão.
— O que quer dizer com isso?
Kai estende o braço e tira algumas caixas de leite da prateleira.
— Em poucas palavras, significa que ninguém do outro lado está feliz com você agora. Eles
decidiram diminuir sete dias do seu tempo de julgamento.
Espera. O quê?
Balanço a cabeça, incrédula.
— Isso é ridículo! Eles quem?
Na verdade, pouco me importa quem são eles. Ninguém tem o direito de diminuir o meu
tempo, eu me recuso a aceitar isso.
— Os Juízes. Houve um consenso entre eles, o que é um verdadeiro milagre. Acho que,
quando se trata de você, céu e inferno chegam a um acordo muito rapidamente.
— Mas eu não fiz nada! — Que se dane a discrição, estou furiosa demais para continuar
sussurrando. — Mal falei com ele, se é que aquilo pode ser chamado de conversa.
Ele não pode estar falando sério. Não estão me punindo por uma troca de três minutos que
resultou em absolutamente nada. Como isso pode ser justo?!
— Você tentou trapacear. — Ele suspira. — Devia pelo menos ter tomado mais cuidado.
Cerro os punhos com tanta força que as unhas afundam na pele.
— Mas você quem deu a ideia de tentar anular o contrato!
Ele finge ponderar por um instante.
— Dei, não foi?
A verdade me atinge como um trem descarrilado.
De repente, todas as malditas peças se encaixam.
— Você sabia. — Nem me dou ao trabalho de perguntar primeiro. — Você sabia que eu seria
punida por isso.
Não, ele não só sabia. Ele contava com isso. Estive tão cega pela urgência de escapar dessa
situação que me recusei a ver a provocação de Kai pelo que realmente era: uma armadilha
plantada em plena vista. Eu devia ter imaginado.
Kai se inclina um pouco mais na minha direção como se estivesse prestes a compartilhar um
segredo.
— Perdão, esqueci de mencionar os riscos. Tarde demais para isso?
Calor aquece minhas bochechas e pontos vermelhos mancham a minha visão.
— Odeio você — digo entredentes.
Mentiroso. Cínico. Vil. Vou repetir quantas vezes forem necessárias até estar convencida de
que não posso confiar em um única palavra que sai da boca dele.
Tomo o carrinho de volta e me apresso em colocar o máximo de distância possível entre mim
e o demônio.
Mas não escapo rápido o bastante para deixar de ouvi-lo se divertindo às minhas custas.
— Qual é, você ainda tem cinco semanas pela frente. Para que precisa de mais tempo? Sabe
que o anjo não vai salvar você. Anjos não operam milagres, monstrinho.
— Vai pro inferno — grito de volta.
Se ele ao menos fosse e nunca mais voltasse…
Volto para casa convicta de que o dia não tem como ficar pior, mas eu já devia saber que nada é
tão ruim que não possa piorar.
Assim que passo pela porta, o olhar glacial de Thalia me perfura. Ela é como um fantasma
empoleirado na cadeira da cozinha, cuja única preocupação é assombrar almas desprevenidas.
Decido de última hora que o silêncio será meu escudo.
— Fico longe por um dia e você faz uma barganha com o inimigo, tenta trapacear e perde
uma semana de julgamento? — diz, interpretando meu silêncio corretamente.
Passo por ela e deixo as compras sobre a pia, grata pela desculpa para não ter que encará-la.
Não sei o que dizer a ela. Admitir que fui completamente ingênua e que arrisquei demais em
troca de nada, de repente me parece impossível. Ela me avisou. Por que achei que eu podia
resolver tudo sozinha?
Ouço um suspiro cansado atrás de mim antes de ela prosseguir.
— Você está se enveredando num caminho muito perigoso, Sienna. — A voz dela é seda e
aço ao mesmo tempo. — Me desculpe, mas estou começando a achar que você não está levando
isso a sério.
Dou meia-volta para encarar Thalia.
— É difícil para mim — desabafo. — Eu não pedi para estar nessa situação. Ainda vou
cometer muitos erros porque aparentemente é só o que eu sei fazer.
— Sei que é. Mas são somente cinco semanas, Sienna. Esqueça quem você é por cinco
semanas. É só o que precisa fazer.
Minha garganta aperta.
— Você já tentou esquecer quem você é? É tão simples assim?
— Não sou humana, mas se estivesse na mesma situação que você, é o que eu tentaria fazer.
— Você não sabe o que é vestir essa pele. Para humanos, o mundo não é preto e branco,
Thalia.
A dureza nos olhos do anjo se transforma em algo maior. Mais sincero e antigo.
— Não tente me ensinar como os seres humanos funcionam — murmura. — Eu estava lá
quando foram criados.
— Então talvez você tenha esquecido das rachaduras — digo, com um vazio se alojando em
meu peito.
Thalia fica de pé e diminui a distância entre nós. A rigidez em seu semblante suaviza.
— Vamos continuar ajudando quem precisa. Para cada deslize, faremos o triplo de boas
ações, combinado?
Ela tem razão. Ajudar é o mínimo que posso fazer a essa altura do jogo. Mas…
— Isso vai compensar o que fiz de errado?
Parece superficial demais. Como tentar remendar um tiro com um band-aid.
Thalia franze as sobrancelhas em confusão, então me apresso em explicar o que está me
deixando inquieta.
— Em cinco dias, consegui perder uma semana de julgamento, Thalia. Vou precisar fazer
algo bom o suficiente para equilibrar o estrago que causei.
— Ser uma boa pessoa envolve ajudar os outros e praticar a gentileza e o altruísmo — o anjo
aponta. — Se você quer se tornar uma pessoa melhor, esse é o caminho, Sienna.
Penso na última provocação de Kai antes de eu perdê-lo de vista mais cedo.
— Eu não tenho tempo para me tornar boa, preciso ser boa.
E isso é o máximo que vou conseguir em cinco semanas.
Não posso esquecer disso.
Thalia balança a cabeça por um instante, deixando nítida sua decepção.
— Você quer chegar ao destino, mas não quer a jornada. Quem você espera convencer desse
jeito? — retorque, apertando os lábios.
Cruzo os braços na frente do peito, subitamente na defensiva.
— Sinto muito que a minha empolgação com a viagem não esteja lá em cima. Não escolhi
embarcar nesse trem.
Pelo menos ela não pode dizer que não estou sendo sincera aqui. Estou cansada,
envergonhada e com medo, mas preciso que ela saiba que nada disso é uma brincadeira para
mim. Uma brincadeira de péssimo gosto, talvez.
Só quero ter a minha vida de volta. Quero fingir que não há nada além da morte, que Kai é tão
inofensivo quanto sempre pareceu ser. Quero a doce ignorância na qual estive submersa por todo
esse tempo.
Ainda assim, fico com uma sensação horrível quando ela não responde.
Sei que Thalia está tentando me ajudar e realmente acredita que eu preciso abraçar o processo
de me tornar alguém melhor. Posso duvidar de seus métodos, mas não de seu objetivo.
É pensando nisso que deixo de lado a minha obstinação e aceito seu conselho.
— Vou dar o meu melhor — prometo.
A voz no canto da minha mente, dizendo que não tenho nenhuma chance, fica um pouco mais
alegre.
14: KAI
Vigilante Shit, Taylor Swift

Não me preocupar com Sienna significa que posso me dedicar mais aos assuntos que precisam
da minha atenção.
É fácil demais deixá-la por conta própria, sabendo que é uma questão de tempo até ela sair da
linha. Então, em vez de despender minha energia com coisas inevitáveis, posso utilizá-la em
noites como essa.
Passo por um criado que vem carregando uma bandeja, e aproveito para surrupiar minha
primeira taça de licor da noite.
O líquido denso e escuro borbulha, um aviso de que é melhor não tomá-lo se eu quiser me
manter alerta.
Substâncias humanas não têm efeito por aqui, mas é natural que tenhamos nossas próprias
fontes de ópio. Para o licor, o favorito entre os entorpecentes demoníacos, usa-se o néctar
extraído das flores-cadáveres do Poço, que brotam da vitalidade das almas mergulhadas lá
dentro.
A substância, se tomada sem pudor, lança até o mais forte dos demônios em um estado
perigoso de euforia.
Essa noite, estou em território inimigo por opção. Tenho passe livre para perambular pelo
Reduto das Sombras, graças a recepção que os príncipes prepararam para uma breve passagem
de Lúcifer no Segundo Domínio, e não há ocasião melhor do que essa para sondar os ânimos em
relação a Mammon.
Finjo bebericar o licor enquanto me aproximo da mesa principal.
O banquete exposto é de encher os olhos, mas ninguém encostou na comida nem uma vez.
Raras são as coisas das quais sentimos o gosto. Especiarias muito específicas que só surgem a
cada centena de anos ou órgãos de criaturas praticamente extintas. Qualquer outro gosto nos
escapa, e, ao contrário dos humanos, não costumamos comer pela experiência.
A poucos passos da mesa, ninguém menos que Astaroth e Python, Comandantes da Ordem
dos Caluniadores e dos Acusadores, respectivamente, conversam atrás de suas próprias taças,
isolados dos demais.
Examino a torta de carne com falso interesse, usando a audição afiada dos meus corvos para
ouvir o que a dupla está dizendo.
— É óbvio o que ele está fazendo. — Um deles murmura. — Há tempos vem tentando
dificultar nossas operações na Cidadela. Nossos números caem enquanto os dele só aumentam. O
Domínio Dourado está tão vendido que não me surpreenderia se ele tomasse o trono qualquer dia
desses.
— Só quando a neve do Domínio Dourado virar lava é que ele vai poder dar ordens a nós — o
outro responde, e reconheço a voz rouca de Astaroth.
Não me surpreende que os outros príncipes da Cidadela estejam irritados com Mammon.
Quanto maior se torna o poder e a influência de um, mais ameaçada a posição dos demais fica.
O papel de cada uma das seis Ordens — Caluniadores, Enganadores, Falsos Deuses,
Acusadores, Travessos e Vingadores — é prover recursos ao Domínio Dourado. Se uma delas
não estiver atendendo às expectativas, a punição não costuma ser trivial. O melhor a se fazer é
manter os poderes equilibrados entre os príncipes, portanto, quando um deles manipula a
balança, os ânimos se exaltam.
Passei bastante tempo ao lado de Mammon para aprender a pensar como se fosse um deles.
Às vezes, você se alia a quem odeia, e às vezes, se vira contra seus aliados, mas no fim o
objetivo sempre é garantir que os outros não se aliem contra você. Ou Mammon se esqueceu
disso, ou parou de se importar. Seja qual for, pretendo usar isso a meu favor.
Antes que consiga ouvir mais, noto um movimento pelo canto do olho.
— Sábio é aquele que ouve com propósito.
Me viro, esperando encontrar o trio mais capcioso do Reduto das Sombras, mas quem me
cumprimentou está sozinho.
— Radamanto. — Faço uma mesura cordial. — No que posso ser útil à Vossa Maleficência?
O Juiz retribui o gesto com um movimento da própria taça. Seus olhos opacos espreitam a
superfície como se pudessem pescar segredos no ar.
— Pode apagar todas essas luzes e restaurar a escuridão do palácio? — pergunta, a voz mansa
e o semblante relaxado.
Abro um meio sorriso.
— Não sem instaurar o caos — respondo.
— Então não pode me ajudar.
Radamanto começa a se afastar da mesa e faz sinal para que eu o acompanhe.
Não posso brincar com a torta de carne a noite toda, então o sigo.
— Mas estou curioso — o Juiz volta a falar, conforme abrimos caminho pelo salão. — Como
conseguiu entrar no Reduto hoje?
O Reduto das Sombras é o segundo dos cinco infernos, abaixo apenas do Domínio Dourado, e
portanto só pode ser acessado livremente pelos próprios habitantes e pelos que estão acima.
Os príncipes como Mammon e os magistrados como Radamanto pertencem ao Reduto e não
precisam de convite para acessá-lo, mas o resto de nós não pode entrar aqui sem um, assim como
eles também não podem pisar no Domínio Dourado sem uma convocação.
Impedir o trânsito das castas mais baixas em cada um dos domínios é uma ótima forma de não
acordar com uma revolta explodindo na sua cara.
— Mammon — digo simplesmente.
— Claro. Mammon parece ter se afeiçoado desde que você apareceu aqui. Você se destaca,
Alto Maligenii.
O Juiz para de andar quando vê que não há mais ninguém perto de nós.
— Não sou mais que um membro leal à minha Ordem — murmuro, parando ao lado dele para
não bloquear sua visão do salão.
— Então não deve estar muito contente com as repressões que vocês andam sofrendo — ele
pondera. — Acho uma pena que Mammon esteja sendo tão implacável ao lidar com essa
situação. Não é culpa de ninguém além dele que os Enganadores estejam insatisfeitos.
Ah, estamos chegando a algum lugar aqui, então.
— O Comandante tem suas obrigações — falo o que ele já espera ouvir.
O sorriso polido se torna ardiloso e ele nivela nossos olhares, aproveitando nossa pouca
diferença de altura.
— E prioridades. Posso perguntar qual é a sua prioridade no momento?
É uma dança mutuamente desonesta e nós dois estamos bem cientes disso, mas uma vez que o
primeiro movimento é feito, só resta ao outro acompanhar.
— Ser útil à Ordem da melhor forma que posso.
Não é uma mentira, mas ele não precisa saber os detalhes sórdidos.
— Não esperava nada menos. Quero que saiba que a Corte ficaria mais do que feliz em ajudar
você a atingir todo seu potencial. Se estiver disposto a… — Ele aproxima o rosto antes de
continuar. — Ser útil de outras formas.
A Corte é só um nome bonito para se referir ao trio de juízes infernais.
Radamanto é a cabeça, mas Aeacus e Minos são tão letais quanto. Embora não estejam à
frente de nenhuma Ordem, muitas vezes exercem influência sobre a Cidadela tanto quanto os
príncipes.
A questão é que os interesses da Corte quase nunca são os interesses de todo o resto.
— Eu não teria como retribuir o favor — digo, mais uma vez flertando com a verdade. —
Mas fico feliz que me considerem digno dele.
Há algo sobre receber propostas mesmo quando você não tem interesse em aceitar. Sempre é
útil para saber quem está desesperado e quem está no controle, dependendo do resultado da
proposta. Baelgrim vai adorar essa novidade.
Radamanto estala a língua.
— Ah, não somos muito exigentes — diz. — Ao menos pense a respeito, Alto Maligenii.
Teremos outras oportunidades de voltar a esse assunto depois.
E, tão rápido quanto surgiu, o Juiz se afasta.
Pela visão periférica, vejo o motivo de sua repentina fuga.
Ela caminha como se fosse dona do lugar, com o queixo erguido e os olhos de gato fixos em
mim. O vestido preto, sua própria versão do nosso uniforme, se molda para comportar seus
movimentos, e mesmo que não tivesse um urso sanguinário escondido na manta cinza em suas
costas, ela ainda poderia muito bem devorar todos nós.
Se o inferno tivesse uma rainha, seria ela.
— Você está com cara de quem foi forçado a comer merda. — É a primeira coisa que ela diz
quando para na minha frente.
Os cantos da minha boca se contraem no primeiro sorriso genuíno que dou essa noite.
— Gen — digo, com um meneio de cabeça. — E você está um espetáculo.
Gehenna revira os olhos puxados.
— Achei mesmo que você fosse dizer algo assim.
Mas não consegue evitar e também sorri a contragosto.
— Muito previsível?
Ela me dá seu olhar incisivo, conhecido por despir almas.
— Às vezes, sim — admite ela. — Mas aí eu te encontro cochichando com um Juiz e me
surpreendo. Qual golpe Radamanto queria aplicar dessa vez?
— Você o afugentou antes que ele pudesse dar detalhes. Não achou que eu me livraria dele
sozinho?
— Ah, eu sei que você poderia — diz, os olhos cinzentos faiscando por um milésimo de
segundo. — Mas te conheço bem o suficiente para saber que há uma parte de você que ficaria
tentada a ouvi-lo.
Gen costumava me conhecer como a palma da mão. Antes, quando só tínhamos um ao outro e
nenhum espaço para segredos. Ela conheceu a minha pior versão e isso nunca a assustou. Mas
sempre houve muito mais coisas para temer sobre ela do que sobre mim.
Só que ela está enganada dessa vez. Sou mais paciente agora do que costumava ser, e talvez
eu realmente tivesse dado corda a Radamanto em outros tempos, mas hoje reconheço o valor do
caminho mais demorado.
A Corte é tão útil para mim nesse momento quanto Mammon.
— Tenha mais fé em mim, Gen — digo. — Sou uma pessoa mudada.
Sem quebrar nosso contato, ela crispa os lábios cheios tingidos de carmim.
— Não tenho dúvida nenhuma disso.
Algo na atmosfera muda de repente.
Gehenna e eu não conversamos de verdade há anos. Desde que decidiu seguir por conta
própria, ela impôs uma distância entre nós e eu respeitei sua escolha. Tomamos caminhos
separados um do outro, sempre à vista, mas nunca ao alcance.
Não sei o que ela pensa sobre quem me tornei, porém, a julgar pelo seu tom de reprovação,
acho que não vou receber um parabéns.
Decido retornar a conversa a um terreno conhecido.
— Como tem sido seja lá o que você anda fazendo para Mammon? — pergunto, sabendo o
quanto ela dá valor ao trabalho.
Às vezes, até demais. As duas cicatrizes atravessando a pele marrom da sobrancelha à maça
do rosto são prova disso.
Assim como eu e boa parte dos Enganadores, Gen já foi humana um dia. E, ao contrário do
que se pensa, só há duas formas de se perder traços humanos no inferno: ou você se envolve em
uma briga feia e consegue algumas marcas, ou começa a mexer com magia escura.
Gen não é do tipo que se envolve em brigas e sai machucada.
Um músculo se contrai levemente em sua mandíbula, indicando que a mudança proposital de
assunto não passou despercebida, mas ela segue adiante.
— Esclarecedor — revela. — Você chega aqui sem saber absolutamente nada, e depois de um
tempo acha que aprendeu todas as verdades, mas se começar a cavar, vai descobrir que o que
sabe é somente uma fração.
A magia escura, dentre todos os mistérios do inferno, é o que sempre cativou o interesse de
Gen. Talvez pelo fato de ser uma fonte de poder extremamente volátil e letal, ou porque pouco se
sabe sobre o que ela é capaz de criar, mas há muito tempo Gehenna tem dedicado seus dias em
prol de decifrá-la.
Depois que Mammon destacou uma equipe exclusivamente para o estudo dessa magia que
moldou o inferno à sua vontade, os boatos têm dito que ele está em busca de formas para criar
novos Artefatos.
Até hoje, não se sabe da existência de um Artefato que tenha sido fabricado por outra fonte
além da magia escura. Demônios podem fazer uso deles e, dependendo da complexidade, podem
até adaptá-los, mas não criá-los do zero.
Conheço Mammon bem o bastante para saber que ele irá esgotar cada possibilidade antes de
se dar por vencido.
— Enfim, espero que você se junte a mim um dia — Gen complementa.
Deixo escapar uma risada.
— Tenho certeza que Lorchi vai amar a ideia.
Ela arqueia uma sobrancelha displicente.
— Desde quando você liga para o que Lorchi gosta ou não?
— Só achei que você ligasse — respondo.
Nesse exato momento, uma sombra começa a cortar o salão na nossa direção.
— E falando no diabo… — resmungo, levando a taça aos lábios à medida que Lorchi chega
mais perto.
O demônio ainda nem se juntou a nós quando começa as saudações.
— Tive esperanças de que conseguiria evitar o desagrado da sua presença por mais alguns
dias, mas aí está você — observa ele, torcendo o nariz.
Assim que para ao lado de Gehenna, seu braço a enlaça pela cintura.
Os dois são uma combinação adequada, eu diria. Gen, parecendo ter todos na palma da mão
com sua postura altiva, e Lorchi, sempre com o corte de cabelo em dia e uma pose de herdeiro
mimado. Poderiam muito bem se passar por nobreza se quisessem.
— Queria me evitar e cruzou o salão inteiro para falar comigo? — pergunto, erguendo a
sobrancelha.
Gen arranha a garganta.
— Eu estava dizendo a Kaiyaan que ele seria bem-vindo no destacamento especial de
Mammon, se algum dia se cansar de lidar com humanos.
Kaiyaan. Ela é a única que me chama por esse nome. Para os outros demônios, sou o Alto
Maligenii. Irmão, aos olhos de Bael. Para Mammon, sou garoto. E quando estou com Sienna,
sou apenas Kai.
Lorchi sorri com desdém.
— Mas a agenda do Alto Maligenii não tem espaço para os caprichos do Comandante, ou
estou enganado? — esnoba.
Contenho um bocejo.
— Minha agenda esteve a serviço do Comandante desde quando você limpava bosta de harpia
nos becos da Cidadela — retruco. — Se alguém aqui precisa compensar alguma coisa, não sou
eu.
Seu sorriso azeda e ele se empertiga nos trajes finos, deixando a raiva dominar seu semblante
até então insolente.
— E onde está você agora? Definitivamente não ao lado de Mammon, e se pelo menos
estivesse ocupado demais fazendo jus ao seu título, talvez essa sua negligência fosse justificável.
Mas você se tornou um eco patético do ceifador que já foi um dia. Você pode ter muitas
prioridades, mas duvido que a Ordem esteja entre elas.
Se ele ao menos soubesse que cada movimento meu e cada decisão que tomo é pensando na
Ordem…
— Você está errado. — Nisso e em muitas outras coisas. — A Ordem é a minha prioridade,
mas a verdadeira Ordem, não a que você e sua corja estabeleceram às custas de todo o resto.
A verdadeira Ordem não rola em lençóis de seda enquanto os menos favorecidos fazem todo o
trabalho. Nenhum favoritismo se aplica a ela e as chances de ascensão não estão a seu favor. Sua
função não é bajular o Comandante e atender aos seus caprichos.
Sem os esforços dos verdadeiros Enganadores, que mantêm nosso domínio organizado e
nossas fileiras abastecidas com novas almas, não somente a Cidadela colapsaria, mas também os
cinco infernos.
Bufando, Gehenna balança a cabeça, fazendo mechas de cabelo vermelho caírem de seu
penteado.
— Sempre um clima agradável quando vocês dois se juntam. Podem parar de mijar um no
outro?
Lorchi põe uma mão em seu ombro sem desviar os olhos coloridos de mim.
— Volte para a sala, Gehenna. Não quero que se envolva nisso.
Movimento errado, Lorchi.
— Então volte você para lá — ela rebate, se desvencilhando do toque. — Estávamos muito
bem aqui antes de você chegar.
Ele não deve conhecê-la tão bem se achou que podia simplesmente tirá-la de cena. Gehenna é
uma força da natureza que nenhum de nós jamais poderia domar.
Cerrando o maxilar, ele aceita a rejeição dela, mas não sem uma última tentativa de
intimidação.
— Seus dias de paz estão contados, Alto Maligenii — declara, chegando mais perto para
garantir que somente eu o ouça. — Mammon não vai fazer vista grossa com você por muito mais
tempo. Vou garantir isso.
Espero ele ter retomado a distância entre nós para responder.
— Cuidado. Alguém pode te ouvir e achar que o Comandante não toma as decisões sozinho.
Com um último olhar venenoso, Lorchi se vira e marcha para longe a passadas duras.
Com tantos oponentes reais para lidar, Lorchi é a menor das minhas preocupações agora. Ele
certamente me odeia, mas a fila não é pequena.
Visto a face da mais perfeita inocência quando Gehenna me examina, e ela estreita os olhos
na minha direção.
— Não me olhe com essa cara — ela censura. — Ele está certo, você não tem mostrado todo
seu apoio a Mammon ultimamente. Posso ver que algo está fermentando nessa sua cabeça, só
não sei ainda o que é.
Começo a andar e ela me acompanha.
— Um demônio não pode mais ter seus próprios planos? — provoco.
Mas Gen não é ingênua.
— Quando o demônio em questão é você, tenho o direito de me preocupar. Pode ser que dessa
vez seu plano seja apocalíptico o suficiente para condenar todos nós.
Ou para salvar todos nós. É com isso que estou contando.
— Fico feliz que ainda me leve tão a sério, mas a preocupação é desnecessária. Nunca vou ser
um risco para você, Gen.
A última parte está longe de ser uma mentira.
— Essa é uma promessa e tanto — ela retruca ao meu lado.
Uma que espero ser capaz de manter.
15: SIENNA
Babydoll, Ari Abdul

Doei sangue pela primeira vez na vida. Estava sonolenta e de estômago vazio, apesar de todas as
indicações, e a picada incomodou mais que o normal, mas Thalia ficou satisfeita no fim.
Não é tão difícil deixá-la contente, só preciso fazer o que ela diz ou trazer minhas próprias
sugestões, como foi o caso dessa vez. O problema é que também não é difícil decepcioná-la, e eu
pareço ser incapaz de evitar.
— É sexta-feira. Eu voto para irmos no Le Marquis. — Ágata se agita em cima do pufe
imenso.
Faço uma careta.
— Toda sexta-feira estamos no Marquis. Por que ainda votamos? — pergunto.
Nosso grupo de cinco está descansando depois de um longo ensaio. Eu, Ágata, Yuri, Rubi e
Liang, que tem passado mais tempo conosco desde que os ensaios começaram.
A semana foi intensa, mas a promessa da sexta-feira renovou parte das energias.
— Eu voto em acharmos um lugar onde eu possa ser pobre e me divertir ao mesmo tempo —
Yuri se pronuncia, brincando com um objeto do cenário.
— Impossível — Agui balança a cabeça, sorrindo de lado a lado. — Você tem alma de rico.
Ela está mais alegre depois da visita à cartomante. Quando deixamos a casa de Gia, Agui
finalmente abriu o jogo e contou que recebeu uma proposta para atuar em uma produção norte-
americana, mas que não sabia se deveria aceitar.
Ao que parece, a leitura de cartas que Gia fez a ajudou na decisão de recusar o convite, mas
Agui não entrou em detalhes e eu tampouco cobrei.
Como poderia, tendo meus próprios segredos para manter? Eu provavelmente teria
argumentado contra sua decisão baseada em tão pouca lógica, se Gia não tivesse me convencido
de suas habilidades.
O fato é que Ágata parece em paz agora, e isso é o que importa.
Sentado ao meu lado, tão perto que nossos joelhos se esbarram o tempo todo, Liang me cutuca
com o ombro.
— Qual o seu voto, Si? — pergunta.
— Estou com o Yuri — digo, dando de ombros. — Vidas pobres importam.
Agui atira uma tampinha de garrafa em mim.
— Calem a boca, vamos para o Marquis. Pago a bebida dos dois.
— Acha que pode comprar o meu voto? — Yuri rebate. — Pode mesmo. Le Marquis, aí
vamos nós.
Ocupados rindo, não notamos outra pessoa se aproximando do nosso círculo até ela se
manifestar.
— Estou vendo que vocês estão cheios de planos para o fim de semana, mas vou querer a
redação no meu e-mail até as seis.
Nossas cabeças giram simultaneamente na direção do professor.
Com as mãos na cintura e um olhar desconfiado, Edgar parece prestes a nos dar um sermão.
Não conhecido pelo bom senso, Yuri estala a língua.
— Quais as chances de o prazo mudar para segunda-feira? — graceja, fazendo cara de bom
moço.
Edgar ergue a sobrancelha.
— O prazo era ontem, Yuri. Não abuse da sorte.
O sorriso morre no rosto de Yuri, e pelo menos duas pessoas deixam escapar um suspiro.
Essa semana não vai acabar nunca.
— Sienna, podemos falar?
Me sobressalto no assento.
Não, minha mente grita.
— Claro — respondo em vez disso.
Não deve ser nada demais.
Deixo meus amigos discutindo como terminarão suas redações e sigo Edgar.
Minha pulsação aumenta quanto mais perto chegamos de sua sala.
Controle-se. Ele não vai tentar nada.
Na sala particular, novamente me sento na cadeira em frente à mesa, enquanto Edgar nos
serve taças de sidra. Dessa vez, ele não pergunta se aceito.
— Obrigada — digo ao receber a minha.
Ele se senta na beirada da mesa e bebe metade de sua taça num gole.
— Como você está? — pergunta em seguida.
Molho os lábios com a bebida, mas não a tomo.
— Bem. Como vai Diana?
— Grávida.
E então ele gargalha como se tivesse ouvido a piada mais engraçada do mundo.
Meu queixo cai com a surpresa.
O quê?!
— Perdão, eu ia dar a notícia com mais contexto. — Ele abana a mão no ar, recuperando o
fôlego.
Encaro-o até ter certeza de que ele não vai desmentir o que acabou de dizer.
Diana. Grávida. Desse homem.
Preciso de todo o meu autocontrole para não torcer o nariz com repulsa.
— Parabéns, Edgar! — Ser uma boa atriz muitas vezes vem a calhar. — Vocês devem estar
bem felizes.
— É. Vai ser complicado lidar com a criação, com a questão da distância e tal, mas estamos
animados.
Ele não vai ficar com ela na França, mesmo que isso o faça perder boa parte da gravidez. Por
que isso ainda me surpreende?
— Vocês vão dar um jeito — murmuro, segurando a taça com força.
Finalizando sua bebida em outro gole, ele faz que sim com a cabeça.
— Conseguiu fazer novas fotos?
A mudança é como um tapa. Em um instante, ele conta que vai ser pai, no outro, está
cobrando fotos íntimas de alguém que não é sua esposa.
— Não, ainda não consegui. — Minhas entranhas se contorcem. — Com os ensaios da peça,
os trabalhos das outras matérias para entregar e o casamento da minha mãe se aproximando, não
tive tempo.
Ah, esqueci de mencionar a disputa pela minha alma?
Edgar suspira.
— Que pena. Já revi todas que você tem lá.
Faço tanta pressão na taça que é um milagre ela não quebrar.
— Vou ter novas logo — minto.
Mas Thalia está certa. Não posso enganá-lo para sempre, e adiar sua reação não vai impedir
que ela venha. Preciso me livrar do trato com Edgar de uma vez por todas.
— Ótimo — diz ele, ficando de pé. — Depois de amanhã vai acontecer uma social lá em casa,
somente para os mais próximos. Se eu fosse você, apareceria. Não preciso nem dizer que vai
gostar de quem encontrará lá, preciso?
Merda.
Um nó aperta minha garganta. Apesar disso, me obrigo a sorrir.
— Vou me esforçar para ir.
Se vou perder seus favores, posso muito bem aproveitá-los enquanto ainda sou capaz. Eles
farão toda a diferença no meu início de carreira e vão me economizar alguns anos correndo atrás
de contatos. Só preciso viver tempo suficiente.
Descontraído, Edgar pega algo no topo de uma estante.
Me acomodo na cadeira para vê-lo melhor e o encontro segurando uma câmera analógica
apontada para mim.
— O que está fazendo?
Edgar não responde. Em vez disso, aperta o botão um par de vezes e o click das fotos enche a
sala.
Continuo imóvel no assento, esperando uma explicação.
— Se sente na minha mesa — ele pede, com um sorriso bobo no rosto.
Está se divertindo com a minha confusão.
Não sei de onde tiro a coragem para fazer o que ele pede, mas faço. Relutante, ocupo o lugar
onde ele mesmo estava instantes atrás.
Ele tira mais fotos, vez ou outra mudando o enquadramento.
Não sei o que estamos fazendo aqui. Não estou sequer posando. Tudo o que faço é encará-lo
com uma interrogação na testa.
— Beba a sidra.
Eu poderia interromper esse momento bizarro, dar as costas e deixá-lo sozinho com seus
fetiches, mas não é o que faço.
Levo a peça delicada à boca, sorvendo quase nada da bebida.
Click. Click. Click.
— Linda — diz ele, me observando por detrás da lente.
Fico onde estou, me sentindo mais vazia a cada ruído da câmera.
— Como assim, não vai abrir hoje? É sexta-feira! — protesta Ágata, por pouco não se agarrando
à gravata do segurança.
Puxo Agui pela manga do vestido de paetê antes que ela ceda ao impulso.
— Esquece, Agui. Não vão abrir só porque a gente quer.
Atrás de nós, Yuri solta um grunhido de frustração.
— Que merda. Vou avisar a galera para não vir — diz ele, tirando o celular da pochete
metalizada combinando com a calça.
Tendo desistido de brigar com o segurança do Le Marquis, Agui faz beicinho.
— Mas para onde vamos agora?
Nós três pensamos por um instante.
— Rua Augusta? — sugiro, arrancando uma careta indignada de Ágata.
Mas, antes que ela responda, a porta do clube se abre e alguém sai lá de dentro.
— Obrigado, Santiago. Fico te devendo essa.
Minhas bochechas esquentam e eu quase tropeço com a surpresa.
De todos os lugares que eu esperava encontrá-lo, aqui com certeza não é um deles. Ele deve
amar me provocar a cada oportunidade que surge.
Semicerro os olhos para a atuação do demônio, que passa pelo segurança e desce para a
calçada sem demonstrar saber que estou aqui.
Com um gesto descontraído de cabeça, seu olhar cruza com o meu e ele arregala os olhos
dissimulados.
— Sienna? Que surpresa agradável te encontrar aqui — encena, e é tão crível que por um
segundo me pergunto se ele realmente não sabia que me encontraria.
Sem chances. Ele sempre sabe exatamente onde estou e nunca apareceu por acaso nos lugares
que frequento. Está simplesmente fazendo o que faz de melhor: ludibriar.
Com Ágata e Yuri me encarando em expectativa, fico sem escolha a não ser dizer algo em
resposta.
— Ah, oi — digo sem entusiasmo.
Faço as apresentações da forma mais seca possível.
— De onde vocês se conhecem? — É Ágata quem deseja saber.
Ela está me olhando de esguelha desde que Kai abriu a boca pela primeira vez.
— Amigos de longa data — Kai rouba minha resposta.
— Estranho. Ela nunca me falou de você. Me pergunto por que será… — O olhar incisivo que
Agui me dá é uma promessa do quanto vou ter que ouvir mais tarde.
Um dos cantos da boca de Kai repuxa.
— Ah, ela adora manter os segredinhos sujos escondidos — diz ele.
Aperto os dentes com força.
Espero que ele seja capaz de notar, só de olhar para mim, a aversão que estou sentindo por ele
nesse exato momento.
Notando a tensão no ar, Ágata inicia outra conversa.
— Não deixaram a gente entrar no clube, e já que você está vindo de lá, pode dizer o que
rolou? — pergunta ela.
Kai olha de relance para o funcionário guardando a entrada do clube.
— Um pequeno incêndio no palco, não tenho certeza — explica em voz baixa. Duvido que o
homem atrás dele sequer esteja nos ouvindo. — Que pena que perderam a viagem.
Não acredito nele nem por um segundo. Talvez o incêndio seja mesmo real, não estou
duvidando disso. Mas definitivamente não se trata de um incidente. Não se Kai está envolvido.
— Merda — Agui choraminga, balançando uma perna.
— Pensem em outro lugar, rápido — Yuri pede, com o celular na mão.
Mas sempre foi difícil chegarmos a um consenso quando se trata de clubes. Não é à toa que
acabamos no Le Marquis todas as vezes.
Kai dá um passo à frente, discretamente se colocando entre nós.
— Conheço um clube ótimo perto daqui. Posso mostrar a vocês onde fica.
— Não precisa — corto de imediato, cruzando os braços.
Não vou levar meus amigos a lugar nenhum com ele.
Mas Ágata cutuca minhas costelas com o cotovelo.
— Qual é o clube? — Seu tom apaziguador compensa a minha rispidez.
Piscando de maneira preguiçosa na minha direção, o demônio responde.
— Se chama Obsidiana — diz. — Não é tão conhecido, mas deve atender o que vocês
querem.
Agui murmura algo sobre precisar olhar as avaliações na internet e corre para o lado de Yuri,
que já está digitando no celular.
Um segundo de distração e Kai se inclina para falar no meu ouvido.
— Você está em dívida comigo, monstrinho — lembra, usando seu tom verdadeiro pela
primeira vez.
Pestanejo, sentindo o coração acelerar e então se acalmar quando ele retoma nossa distância.
Minha mente dispara com os objetivos que Kai pode ter me levando a esse tal de Obsidiana.
Nenhum deles me tranquiliza.
Começo a rejeitar a oferta — dane-se a dívida —, mas Yuri é mais rápido:
— Ah, vamos tentar — ouço-o dizer. — É aquilo: se tá no inferno, abraça o capeta.

As habilidades de manipulação do demônio são inquestionáveis. Não que eu já não soubesse


disso, é claro. Mas vê-lo em ação, se mesclando às pessoas e fingindo ser como elas, me deixa
impressionada.
Kai é um ator melhor que qualquer um de nós. Assim que seu papel é dado, ele veste essa
nova pele e engana facilmente todos ao redor.
Assisti-lo torna-se inevitável à medida que a trama se desenrola e ele toma para si o
protagonismo. Ninguém nem ao menos se dá conta. Estão todos ocupados demais tentando
permanecer em sua órbita para se darem conta de que estão diante de um embuste.
Ágata, Rubi, Yuri… todos eles ouvem com dedicada atenção seja lá qual for a mentira que
Kai está contando neste momento.
De onde estou, observo de olhos estreitos a forma como Kai entretém meus amigos.
Também vejo Liang se aproximando pelo canto do olho.
— Você não parece muito empolgada com a presença dele — comenta.
— Eu só não esperava encontrar ele hoje — confesso uma parte da verdade.
— Ele está bêbado? Não quis comentar nada, mas ele está descalço e tal…
Yuri escolhe esse momento para vir saltitando até mim, me poupando de ter que responder.
Ele para a poucos centímetros, a fim de cochichar em meu ouvido.
— Amiga, me diz logo: você está saindo com esse cara? Porque se não estiver, já aviso que
vou dar mole.
Quase mordo a língua.
— Não, não estamos saindo — esclareço. — E não, você não vai dar mole pra ele. Ele não é
confiável.
Yuri revira os olhos esfumados, longe de parecer desmotivado com as minhas negativas.
— Não preciso confiar nele para fazer o que estou pensando.
Agora é Ágata quem chega, abraçando Yuri por trás e ostentando um sorriso de lado a lado.
— O que vocês estão fazendo aí parados? Vamos dançar! — ela grita, chacoalhando Yuri
pelos ombros, que luta para se desvencilhar dela. — O Kai foi pegar outra bebida para mim.
Acho que gosto dele, só não entendi onde foram parar os sapatos. Por que você não me contou
dele antes? — A última parte é dirigida somente a mim.
Resisto ao impulso de revirar os olhos também. De repente, o nome de Kai está na boca de
todo mundo.
— Porque não tinha importância nenhuma — respondo, incisiva. — E vocês dois, parem de
dar bola para ele.
Ágata balança a cabeça e Yuri ergue uma sobrancelha bem definida, pronto para ouvir a
minha versão.
Mas não tenho a chance de me explicar, porque Kai reaparece com um copo na mão e uma
sugestão de sorriso no canto da boca.
Aposto que ouviu toda a conversa. Ou talvez eu esteja lhe dando crédito demais.
— Um Martini com limão tahiti — diz ele, oferecendo o drink a Ágata, que aceita de bom
grado.
Ele se vira para mim em seguida, me olhando como se gostasse do que vê em meu rosto. E
não deve ser nada bom.
— Preciso falar com você — anuncio, passando depressa por ele.
Não olho para trás para confirmar se ele me segue. Quando abro uma distância segura dos
meus amigos, me viro e dou de cara com o demônio petulante.
— Por que quis que eu viesse para cá? Desembucha.
Ele pondera um pouco e em seguida balança a cabeça.
— Você não acreditaria se eu contasse.
— Conversa fiada — disparo, cruzando os braços. — Nada mais me surpreende vindo de
você.
Kai olha ao redor como se procurasse alguém. Parece encontrar o que busca um instante
depois.
— Está vendo aquela mulher ali? — Ele aponta para a área do bar, e apesar de não ser tão alta
quanto ele, consigo ter um vislumbre da tal mulher quando me viro. — O nome dela é Donatella.
Ela é uma súcubo, e também é a dona desse lugar.
Olho para ele de queixo caído.
— Ela é uma o quê?
— Um demônio feminino com fortes inclinações sexuais — explica devagar. — Ela se
alimenta com a luxúria das pessoas, então um lugar como esse é o paraíso pessoal dela. Acontece
que eu quero um favor de Donatella, e não tem forma melhor de se pedir um favor do que
oferecendo presentes antes. Você e seus amigos aqui hoje são o meu presente para ela.
Uma súcubo. Aqui.
Meu estômago embrulha quando penso que podem haver muitos outros demônios andando
por aí o tempo todo.
Como saberemos? Eles se parecem conosco e, no caso da mulher que estou encarando agora,
são bonitos. Irresistíveis, até. A bem da verdade, Kai também não é o que se espera de um
demônio.
— Calma. O que você quer dizer com “meu presente para ela”? — Estreito os olhos com
desconfiança. — Você não pode oferecer eu ou os meus amigos nas suas barganhas.
A última coisa que preciso é contrair outra dívida enquanto me livro da primeira.
— Relaxe, nenhum de vocês vai perder a alma hoje à noite — diz ele, piscando um olho. —
Talvez a dignidade, mas não seria nada fora do normal.
Meus dentes rangem quando cerro o maxilar.
— Você é um pesadelo — acuso, vendo o quebra-cabeça se encaixando. — O que você fez
para impedir o Le Marquis de abrir hoje?
Porque, como eu já esperava, ele fez alguma coisa.
— Um simples curto-circuito. Amanhã tudo estará normal de novo.
— Inacreditável — balanço a cabeça, embasbacada.
Ele traçou um plano, eliminou os contratempos e manipulou cada um de nós para estar
exatamente onde ele precisava.
Odeio que ele tenha esse poder sobre mim. Que não haja nada que eu possa fazer a respeito.
— Só aproveite a noite e se divirta, monstrinho — ele volta a falar, dessa vez sem o sorrisinho
desdenhoso. — Vocês estão seguros aqui, Donatella vai garantir isso. E haja o que houver, não
tente vir atrás de mim se eu sumir em algum momento, entendido?
Se ele sumir, sou capaz de agradecer a todos os deuses pela dádiva.
Não o quero perto dos meus amigos, mentindo para eles e os seduzindo.
Quanto mais cedo desaparecer, melhor será.
Começo a voltar pelo caminho que viemos, mas me sobra tempo para retrucar uma resposta.
— Tenho coisa melhor para fazer além de ir atrás de você.
Mas é difícil não lembrar que passei a maior parte da minha vida procurando por ele em
multidões.
16: SIENNA
Black Magic, Jaymes Young

Estou um pouco mais bêbada agora, e de repente a ausência de Kai se torna a única coisa que não
consigo tirar da minha cabeça.
Ele desapareceu completamente a essa altura. Até meus amigos perguntam por ele, mas não
tenho a resposta que eles querem.
Bebo como se não houvesse amanhã. Danço até minhas panturrilhas protestarem e eu não ser
nada além de suor e calor.
Acho que Liang tentou chegar em mim quinze minutos atrás, mas, a bem da verdade, eu não
estava prestando atenção nele.
Depois de um tempo, meus olhos não servem para mais nada além de procurar pela silhueta
de Kai no meio de toda essa gente. Mas ele não retornou à pista de dança desde que desapareceu
por um corredor nos fundos do clube.
Me afasto do bar, passando por Ágata e o rapaz que ela começou a explorar com a língua.
Não consigo lembrar o que aconteceu com Liang depois que o deixei falando sozinho e fui
buscar outra bebida, mas ele não está mais no meu encalço, o que é uma benção.
Não é que eu não goste de Liang. Ele é legal, mas não vejo algo acontecendo entre a gente,
pelo menos não por enquanto.
Digo a Yuri que estou indo ao banheiro e rejeito sua oferta de me fazer companhia. Não
porque acho que seja perfeitamente seguro aqui, independente do que Kai tenha prometido, mas
porque não estou realmente indo fazer xixi.
Preciso saber onde Kai se meteu. Ele não deveria estar fazendo mais nada além de me
atormentar. E já que ele decidiu por conta própria envolver eu e meus amigos em seus planos, eu
tenho todo o direito de saber o que ele está tramando agora.
O ambiente gira ao meu redor, as luzes piscando no ritmo da música ensurdecedora. Minhas
pernas ameaçam ceder à medida que avanço entre os corpos, e preciso usar todo o meu foco para
me manter equilibrada.
Deixo a parte lotada do clube para trás, entrando em um espaço totalmente novo, que começa
com um corredor de luzes vermelhas. Não há mais ninguém aqui além de mim, mas tampouco
vejo seguranças bloqueando a passagem, então sigo em frente.
O corredor lembra mais um túnel, com curvas acentuadas que impedem a visão do que quer
que esteja no final dele. Uso a parede para me equilibrar, o salto alto fazendo barulho no
porcelanato enquanto ando.
Sei que Kai está aqui em algum lugar. Vi quando ele e o outro demônio seguiram por esse
caminho mais cedo. E ainda que ele tenha mencionado seus negócios com Donatella, não estou
convencida de que o escritório dela é por esse lado.
O corredor vai ficando mais largo, e quando faço mais uma curva, dou de cara com uma
cortina vermelha que vai do chão ao teto e de uma parede à outra.
A música do clube é pouco mais que um ruído distante aqui, de modo que consigo ouvir a
movimentação vinda do outro lado do tecido. A essa altura, não tenho mais pudor dentro de
mim. Seja lá o que houver além da cortina, não vai me impedir de descobrir onde Kai foi parar.
Afasto o tecido pesado com as mãos a fim de dar uma espiada.
Definitivamente não é um escritório. A menos que Donatella receba muitos convidados ao
mesmo tempo.
Esse lugar está mais para uma extensão do clube que acabei de deixar para trás, só que menos
barulhento. Há muitos lustres pendurados no teto baixo, mas o salão está mergulhado na
penumbra.
Entretanto, não é o cenário — com suas almofadas espalhadas pelo chão e espreguiçadeiras
estrategicamente posicionadas — que me deixa sem fôlego.
É a forma como as pessoas se amontoam em cima desses objetos. Algumas em pares, outras
em trios. Todas ávidas e famintas, caçando e sendo caçadas ao mesmo tempo.
E, no centro do salão, ajoelhado e parcialmente oculto pelas sombras, Kai conduz seu próprio
espetáculo.
Sua camisa não está em lugar nenhum à vista, e seu peito brilha com o suor, tornando a visão
mais intoxicante do que já é.
Mas ele não está sozinho. De uma pilha de almofadas, uma mão com unhas afiadas e tingidas
de vermelho-sangue se ergue e espalma seu abdome, onde brinca um pouco antes de começar a
descer lentamente.
Meu coração dá um salto desajeitado conforme observo a cena com um fascínio doloroso se
apossando de mim.
Instinto me diz para dar meia-volta imediatamente, mas meu corpo é incapaz de obedecer.
Sou nada mais que uma espectadora involuntária de uma cena que ameaça me dilacerar por
dentro.
Devo ter desviado o olhar por um instante, pois, quando os ergo novamente, há uma corda nas
mãos de Kai. Ele a desenrola sem pressa, os olhos fixos na presa abaixo de si.
Posso sentir quebrando. Aquela parte do meu coração que ainda espera por ele. Quebra e dói
como um golpe enferrujado. A sensação deveria ser suficiente para fazer meus pés se moverem,
mas não é.
A bem da verdade, não fosse pelo toque em meu braço, que me arranca brevemente do transe,
eu seria capaz de passar a noite toda sob tortura.
Alarmada por ter sido pega no flagra, viro a cabeça na direção do toque.
Surpreendentemente, não é um segurança pronto para me levar de volta, e sim uma mulher de
cabelos curtos, franja e olhos delineados. Vestindo nada mais que um robe rosa, ela mostra os
dentes brilhantes.
— Não fique aí só olhando, lindinha — diz ela, passando a língua nos lábios sugestivamente.
Balanço a cabeça, lenta demais para pensar numa resposta decente.
— Eu… — começo, mas a mulher fecha sua mão ao redor da minha e me leva consigo para
onde quer que esteja indo.
Tento protestar e explicar que tudo não passa de um mal-entendido terrível, porém meus olhos
fazem um movimento errado e de repente Kai está na minha mira de novo. Só que agora seu
olhar também está cravado em mim.
Não há nada terno por trás dele. Nenhum vestígio de diversão. É o olhar de um predador
quando encara sua presa, prometendo nada mais que prejuízo.
Seus olhos me acompanham sem vacilar. Me concentro tanto para não tropeçar com a força de
seu escrutínio que por um instante esqueço da estranha me guiando pelo salão.
Alheia às cambalhotas que meu coração dá, ela me leva adiante, cada vez mais perto de onde
Kai e seu passatempo estão.
Quero fincar os pés no tapete e impedi-la. Quero dar as costas e correr para longe, onde eu
não possa vê-lo e ele não possa me atingir.
Mas, bem lá no fundo, quero ficar e ver o pior dele. Quão letal ele pode ser. Mesmo que isso
me deixe em pedaços.
Não é até estarmos a poucos passos que o vejo torcer a corda e passá-la pelos punhos
estendidos em sua direção, de cuja pessoa a quem pertencem ainda não vejo com clareza. Não
que eu precise vê-la para saber que se trata de Donatella.
Em momento algum Kai quebra nosso contato visual.
Vejo o exato instante em que algo mais surge nos olhos dele. Algo afiado, insalubre. Um
desafio. Ele está me lançando um desafio. Eu o conheço o suficiente para saber que não devo
aceitar.
A mulher finalmente solta minha mão. Percebo que paramos diante de um sofá vazio. Com
uma risada baixa, ela me segura pelos ombros e me põe sentada no móvel. Com o tanto de álcool
que ingeri, não ofereço grande resistência.
— O que você… — Mas me distraio com uma terceira mão empurrando meu cabelo para o
lado.
Um rapaz perfeitamente esculpido se junta a nós no sofá, desviando minha atenção da mulher,
que começa a se ajoelhar na minha frente.
— Relaxe — ele sussurra, semelhante a uma carícia, enquanto se abaixa para beijar a maçã do
meu rosto.
O toque envia pequenos choques pela minha espinha, chegando a lugares longínquos. Meus
lábios se abrem ligeiramente e inspiro o ar pela boca. É estranhamente tranquilizador.
Assim que ele se afasta, abro os olhos que nem me dei conta de ter fechado.
Só que deveria tê-los mantido fechados, assim não veria a sugestão de sorriso despontando no
canto da boca de Kai.
Ele está gostando do que vê? Aposto que sim. Ele deveria me conhecer o suficiente para saber
que eu não costumo fugir de seus desafios.
A mulher, agora de joelhos diante de mim, começa a massagear meus tornozelos com mãos
quentes. Não tento impedi-la.
Assisto, incapaz de desviar o foco, Kai terminar de atar os braços de Donatella e prendê-los
acima da cabeça dela, desarmando-a. Ele não demora a recomeçar o trabalho, dessa vez com as
pernas da súcubo.
Talvez seja pela forma como ele me olha enquanto lida com sua acompanhante, ou até mesmo
pelo calor do ambiente, removendo minhas barreiras e meu bom senso, mas começo a me
imaginar no lugar de Donatella.
Indefesa abaixo dele, suscetível a seus caprichos.
As mãos da minha nova amiga sobem até as panturrilhas, onde o músculo dói. É fácil fingir
que são as mesmas mãos que estão lidando com a corda.
Minha respiração pesa, meus lábios entreabrem. Ele é tudo o que vejo e sinto. Não há mais
ninguém nessa sala além de nós. É tão fácil acreditar nisso…
Seu toque deslizando pela lateral das minhas coxas… sua boca em meu ouvido, sussurrando,
sussurrando… Não ouço o que ele está dizendo, mas acredito em cada palavra.
Fecho os olhos quando seu olhar já está marcado a ferro na minha mente, me empurrando, me
desafiando.
Sou uma mulher ambiciosa, mas eu me contentaria em ter apenas isso pelo resto da minha
vida.
Estou chegando perto da beirada. Posso sentir a queda. Vai custar tudo de mim, mas parece
um preço justo. Nem mesmo sei porque demorei tanto. É o que eu sempre quis…
Mas não é tudo o que eu sempre quis. Há muito mais coisas. E eu estou a um passo de
condenar todas elas.
Meus olhos se abrem de súbito, apontados para o lustre acima de mim. Devo ter deixado a
cabeça cair para trás sem nem perceber, completamente imersa na fantasia que criei.
Abaixo a cabeça e dou de cara com a mulher de robe deslizando os dedos pela carne do meu
joelho, os olhos brilhando de interesse.
Engulo em seco, puxando minha perna de seu agarre.
— Desculpa, eu… Não posso estar aqui — digo, esbaforida.
Fico de pé com dificuldade, as pernas ainda bambas e a cabeça girando, mas ninguém me
detém.
Com o rosto aquecido, arrisco um último olhar na direção de Kai.
O demônio continua me observando, e não somente ele. Com o queixo apoiado em uma
almofada, Donatella pisca preguiçosamente para mim. Resquícios de um sorriso ainda marcam
seu semblante como se estivesse se divertindo às minhas custas há poucos instantes.
De um ponto acima dela, Kai ergue uma sobrancelha.
É a gota d'água para mim.
Aos tropeços, dou a volta no sofá e disparo, o mais rápido que sou capaz, na direção da saída.
Preciso escapar. Por favor, me ajude a escapar daqui.
Estive tão perto de colocar tudo a perder… Que estúpida eu sou. Me lançando nas armadilhas
dele, de novo e de novo. Quando vou aprender?
Disparo pelo corredor vermelho sem me deixar abalar pelos saltos. Se a ida pareceu durar um
minuto, a volta pode muito bem ter durado dez segundos.
De volta ao caos do clube, o alvoroço e a música são como um tapa. Cambaleio entre as
pessoas, procurando algum rosto conhecido. Yuri é o primeiro que encontro, embora seu rosto
não esteja tão disponível assim.
Puxo seu braço sem cerimônia, pouco me importando em atrapalhar seu beijo.
— Estou indo — digo aos berros quando ele se vira para mim.
Ele faz uma careta.
— O quê? Você está bem? — grita de volta.
Balanço a cabeça.
— Sim, só… vou pegar um táxi.
Ou vou correndo, não me importo muito, desde que me distancie daqui.
Dele.
— Ok, eu fico de olho na Agui — promete ele, já sondando o espaço à procura dela. —
Compartilhe sua localização e avise quando chegar.
O portão de saída do Obsidiana não pareceu tão longe quando cheguei. Agora, cada passo que
tenho que forçar até lá é uma pedra a mais no meu estômago.
Não consigo respirar direito até estar na calçada do clube, com a brisa lambendo minhas
bochechas quentes.
Ainda não me sinto eu mesma, mas pelo menos não estou mais intoxicada por aqueles
pensamentos de antes. Só preciso de mais distância e tudo vai ficar bem…
Eu devia ter imaginado que não seria tão fácil assim, porque, quando o táxi me deixa em casa
vários minutos depois, mais zonza e enjoada que nunca, é Kai quem abre a porta do carro e me
impede de tropeçar no meio-fio.
— Não p-preciso da sua ajuda — gaguejo, me desvencilhando dele.
Ele me ignora, e essa é a única razão pela qual não perco o equilíbrio. Com sua mão firme ao
redor do meu braço, consigo passar pela porta e entrar no elevador sem causar uma cena.
Não toco em nenhum botão, mas o elevador se fecha e começa a subir mesmo assim.
— Você fugiu — diz Kai, mas estou de olhos fechados e não o vejo. — Achei que estivesse
se divertindo lá.
— Queria nunca ter visto aquele lugar — resmungo, parecendo mais uma lástima.
— Avisei para não ir atrás de mim.
E avisou mesmo. Quase como se soubesse que eu precisaria do conselho. Como se… Calma
aí.
— Você sabia que eu ignoraria seu aviso. — A constatação me faz abrir os olhos de repente e
encará-lo. — Queria que eu fosse atrás de você, não é?
Ele tem a pachorra de rir.
— Suspeitei que ficaria curiosa — confessa.
Filho de uma…
A porta do elevador se abre, me distraindo da resposta que quero dar.
Sem perder tempo, Kai sai para o corredor e eu fico sem opção além de segui-lo.
Segui-lo, não. Estou indo para a minha casa.
Passo por ele de queixo erguido, me concentrando em dar um passo por vez.
Ele não faz nada além de assistir em silêncio e com as mãos nos bolsos enquanto vasculho
minha bolsa atrás da chave, para em seguida travar uma luta com a fechadura ridiculamente
pequena.
Me sinto até um pouco mais sóbria quando enfim termino de abrir a porta.
— Espero que tenha conseguido o que foi buscar às minhas custas — amargo, sentindo falta
de algo para chutar no caminho até o quarto.
— É cedo demais para saber, mas estou otimista — ouço-o dizer atrás de mim.
A visão da minha cama deixa minhas pálpebras mais pesadas de imediato. Despenco entre os
lençóis, sem nenhuma pretensão de sair daqui tão cedo. O alívio no corpo é instantâneo.
— Eu não estava perseguindo você — me pego dizendo, de alguma forma sabendo que ele me
ouve. — Só fiquei entediada e curiosa.
Mais sinto do que propriamente ouço Kai se aproximar.
— E gostou do que viu? — pergunta ele.
Levo alguns segundos para notar que ele começou a desabotoar minhas sandálias. Ele nem ao
menos me toca no processo. Eu devia estar aliviada por isso, mas só me sinto frustrada.
— Aquela mulher com você… — Não vou mesmo parar de falar agora que comecei? — Era a
súcubo que você chamou de Donatella?
Como se pudesse ser alguém mais.
— Sim — ele responde.
— Ela estava enroscada no seu pescoço como uma deusa do sexo. E ela afastou a mecha de
cabelo da sua testa, essa maldita mecha que nunca fica no lugar. Como isso é justo? Eu sempre
quis fazer isso, e ela fez sem nem se importar. Estou com inveja.
As palavras jorram sem filtro para fora de mim. Como se não tivessem importância nenhuma,
ao mesmo tempo que poderiam me envenenar se continuassem guardadas por mais tempo.
Percebo que não estou preocupada com o que Kai pode pensar delas. Não estou preocupada
com quase nada a essa altura.
Espero por suas provocações, mas elas não vêm.
— Não fique tão impressionada. Tudo aquilo não passou de uma brincadeira para ela — diz
ele, assim que descalça meu outro pé.
Uma nova ideia me ocorre, e ergo meu torso da cama.
— Você vai me deixar passar os dedos pelo seu cabelo? Porque eu adoraria — sussurro na
penumbra.
É uma boa ideia. Uma que eu já deveria ter sugerido há muito tempo. Por que esperei tanto?
Largando as sandálias num canto, Kai nem demonstra ter ficado surpreso com a proposta.
— Deixo se você pedir de novo pela manhã, sem uma gota de álcool no seu corpo — diz.
Minha cabeça tomba para o lado.
— Mas não preciso estar sóbria para isso.
— Eu sei. Mas se você disser isso de novo em voz alta, sóbria, vou saber que realmente quer
isso.
Demônio arrogante. É claro que ele diria algo assim.
— Não quero mais — retruco, caindo de volta no colchão. — Vá se ferrar você e seu maldito
cabelo macio e brilhoso.
O cabelo dele é bonito mesmo. Não sei fingir ser imune a ele.
A risada baixa de Kai faz minha cabeça girar como o álcool nunca seria capaz.
— Bons sonhos, monstrinho. — Sua voz se distanciou e está mais perto da porta agora. Indo
embora, como sempre.
Um punho se fecha ao redor do meu coração, estrangulando-o. É uma sensação familiar
demais. Algo entre a saudade e o medo de ser a última vez que o vejo.
— Kai? — chamo uma última vez, antes que ele vá.
Na pouca luz, vejo sua silhueta se deter na porta, esperando.
— Sabe que eu deixaria você me tocar como tocou ela, não sabe? — É pouco mais que um
sussurro, mas sei que ele me ouve. — Se você quisesse. Eu te deixaria fazer comigo qualquer
coisa que você quisesse.
Porque é a verdade. E eu posso ter medo da verdade na luz do dia, mas, hoje à noite, ela é
tudo o que eu tenho.
Kai não responde, e logo me convenço de que nunca irá. Não esperava nada menos depois de
todo esse tempo. Em outra vida, quem sabe…
Fecho os olhos e deixo que o cansaço embale meu sono. Caio sem me esforçar. Tão
facilmente que quase não ouço quando ele responde do escuro em voz baixa.
— Vou pensar no que fazer com essa promessa.

A superfície da água oscila quando mergulho a mão, descobrindo tarde demais quão gelada ela
está. É estranho estar tão fria, porque o sol já passou do ponto escaldante há muito tempo.
Seco a mão nas diversas camadas do vestido enquanto aperto o cabo da sombrinha com mais
força.
— Vai ter que remar mais rápido que isso se não quiser torrar nesse calor — digo, inclinando
a cabeça para dar uma olhada em Kai.
O demônio estreita os olhos para mim de onde está sentado na outra ponta do barco.
Uma risada me escapa de repente.
— O que você está vestindo? — cacarejo, com lágrimas nos olhos, embora não saiba do que
exatamente estou achando graça.
Kai parece bem normal em seu casaco de lapela, colete e gravata. A cartola largada perto de
suas botas com certeza seria mais útil na cabeça, protegendo-o do sol.
De cara amarrada, ele ignora meu acesso de riso e continua remando.
— Devia perguntar a si mesma — retruca ele.
— Espera, isso é real? — consigo arfar, assistindo o barco deslizar sobre a água.
Não vamos chegar a tempo nesse ritmo.
— Claro que não é real — Kai diz. — Você está sonhando.
— Você não devia estar aqui, então — aponto, me distraindo pela forma como os músculos
dele se contraem por baixo das roupas em cada movimento.
O demônio sopra uma risada incrédula.
— Acredite, eu não estaria se tivesse escolha. Estava fazendo algo importante antes de você
me arrastar para cá.
Como se eu tivesse enfiado nós dois nesse barco mixuruca, embaixo de um sol de matar. Se
algum de nós tem culpa, é ele, por não estar remando direito.
— Muita discórdia para causar? — escarneço.
— Somente o necessário.
— Posso saber para quê?
Ele me olha com menos censura do que antes.
— Para usurpar um trono, monstrinho — explica ele. — Estou torcendo para que, quando
você chegar à Cidadela, muitas coisas já tenham mudado.
Inclino a cabeça ligeiramente de lado.
— Parece perigoso — pondero. — Talvez eu dê sorte e você morra no processo. — Paro de
repente e endireito a postura. — Por que está remando na direção do navio?
Balançando a cabeça em sinal de confusão, Kai bufa.
— Por que tem um navio no meio de um lago?
Quase deixo a sombrinha cair conforme nossa pequena embarcação se aproxima da maior.
— Como eu vou saber?! — Espera. Não é um navio. — Ai, merda, acho que é um dragão.
17: KAI
Centuries, Fall Out Boy

A visita ao Obsidiana rendeu outras coisas além de uma promessa embriagada no escuro e um
sonho sem pé nem cabeça. Não que eu não tenha me divertido vendo a real natureza de Sienna
aflorando com a dose certa de incentivo.
Vê-la entrando no salão de Donatella, a princípio tão confusa e assustada, foi ainda melhor do
que eu tinha imaginado. Ela parecia uma presa fácil demais no meio de todos aqueles
predadores, mal sabendo o que encontraria ali.
Por um instante, temi que a devorassem. Considerei ter me precipitado demais ao atraí-la para
o meio da ação, e quase abri mão do meu próprio plano para tirá-la de lá antes que as coisas
saíssem do controle.
Mas não precisei mover um dedo. No minuto seguinte, ela estava mergulhada até o pescoço
no jogo. Eu nunca me enganei em relação a ela, e dessa vez não foi diferente. Ela não só aceitou
meu desafio, como o levou a um outro patamar.
Não precisei ler sua mente para saber com precisão o que se passava lá dentro quando ela
relaxou naquele sofá. Eu estaria mentindo se dissesse que a visão não expulsou todo pensamento
racional da minha cabeça naquele instante.
A constatação disso ainda me assombra.
Devo ter perdido a noção do tempo enquanto observava, porque Donatella ficou curiosa. As
cordas prendendo seu corpo não a impediram de se erguer das almofadas para espiar o que tinha
atraído minha atenção. Longe de ficar incomodada, ela fez um som de aprovação com o que
encontrou.
A coisa com súcubos é que elas não se importam de dividir os holofotes. Dentro ou fora da
ação, elas sabem apreciar um momento de êxtase quando veem um. Donatella, como a líder do
bando, soube se aproveitar da luxúria de Sienna melhor que ninguém.
Agora, enquanto repasso o momento na minha cabeça, fico tentado a acreditar que o motivo
pelo qual ela aceitou me ajudar não teve nada a ver comigo.
Indiretamente e sem nem sequer saber, Sienna contribuiu para que a Cidadela amanhecesse
um pouco mais fragmentada hoje.
A noite anterior durou cinco vezes mais do que o normal. Tempo suficiente para que os
cortesãos mais animados de Mammon decidissem começar uma noitada de farra, licor e sexo. E
quem melhor para conduzir um evento desses, senão uma horda de súcubos mal-intencionadas?
O plano caiu como uma luva, facilitado pela notória falta de criatividade dos bajuladores do
Comandante. Só o que o séquito de Donatella precisou fazer foi alimentar os egos, manter as
taças cheias de licor e riscar o fósforo perto de uma combinação naturalmente inflamável.
A noite terminou com pelo menos quinze cortesãos sem a cabeça e meia dúzia deles empalada
no salão comunal da Ordem.
Teria sido um amanhecer normal na Cidadela, se o grupo de fanfarrões não fizesse parte do
círculo íntimo de Mammon. Ele precisou se esforçar para vender a imagem de que permanecia
no controle da situação, mas aposto que estava se mordendo por dentro.
De olho em seu humor instável, vejo o Comandante se remexer na cadeira.
— Desgraça! Apostei com Asmodeus que esse aí levaria a melhor — ralha, fechando a cara
para o que vê na arena abaixo de nós.
Do lado direito de Mammon, confortável em seu próprio assento, Abaddon, Comandante da
Ordem dos Travessos, mastiga algo borrachudo.
— Sempre soube que não duraria — comenta o outro príncipe, indiferente. — Carinhoso
demais.
Mammon nega com um movimento de cabeça, fazendo os fios cinzas do cabelo se agitarem.
— Não, ele era firme o bastante. O erro dele foi outro. — Ele se inclina na minha direção,
parado à sua esquerda. — Diga a ele qual foi, garoto.
Assisto o corpo do combatente sendo arrastado para longe dos olhares da multidão. Ou o que
sobrou dele, pelo menos.
— Honra — digo. — Não se joga limpo quando se quer vencer, especialmente contra essas
bestas.
Os príncipes parecem gostar da resposta.
— Isso mesmo — murmura Mammon. — Uma lição que sempre fiz questão de ensinar a
você.
Uma lição que pretendo usar em breve.
— Busque mais prisioneiros — ele grunhe para os soldados na base da arena. Um rugido de
aprovação vem da platéia, onde cortesãos enraivecidos assistem a matança. — Esses fodidos não
vão parar de reclamar até estarem nadando em sangue. — Essa última parte é dirigida somente a
Abaddon e eu.
— Eles ficaram ansiosos com o que aconteceu durante a noite — comento.
Com a menção do incidente, um músculo enrijece no maxilar de Mammon.
— Quem eles esperam que eu puna? Não posso começar uma guerra com Belzebu pela
cabeça de algumas putas. E fazer isso seria admitir que meus homens são vulneráveis a esse
ponto.
Mas eu sei o verdadeiro motivo pelo qual ele não irá retaliar. Belzebu, da Ordem dos Falsos
Deuses, é possivelmente o único que não está tramando pelas costas de Mammon a essa altura.
Provocá-lo agora não seria inteligente, mesmo que para saciar o desejo de vingança de sua corte.
Essa foi uma das garantias que dei a Donatella em troca de seu favor.
— E por falar em guerra — Abaddon começa —, conseguiu o que queria enviando aquelas
tropas ao Poço?
Tropas no Poço? Por que justo Abaddon, que não tem uma preocupação sequer além de passar
seus dias em depravação no mundo mortal, se importaria com um procedimento tão corriqueiro
quanto esse? A não ser que…
— Está insinuando que mandei minhas tropas por outro motivo além da supervisão habitual?
— Mammon retruca, e até o terceiro olho em sua testa se contrai na direção do colega.
O Príncipe das Travessuras estala a língua.
— Insinuando, não. Deixando claro que sei — declara. — Só não entendi por que todo o
sigilo comigo. Sabe muito bem que não dou a mínima para esse jogo de vocês.
O que é uma excelente forma de ficar a par de todas as tramoias. Ninguém desconfia de você
se não te veem como uma ameaça.
— Se não dá a mínima, por que eu deveria te contar?
— Oras, não é óbvio? Preciso saber em quem apostar.
— Se ainda tem dúvidas, não merece que eu facilite.
Pouco ou nada incomodado com o mau humor de Mammon, o outro príncipe se levanta aos
risos. Apanha um osso do tamanho de um braço humano e vai se juntar a um grupo de
espectadores mais empolgados.
— Mandou tropas ao Poço antes da época? — pergunto quando estamos só Mammon e eu. —
Algum motivo específico?
Não sou mais o confidente de Mammon há um bom tempo, e se Lorchi estiver levando as
próprias ameaças a sério, é possível que eu não receba a resposta que quero do Comandante.
Mas, se ainda tenho o mínimo de créditos com ele, preciso me aproveitar disso.
Um instante se passa com ele em silêncio, distraído com a própria barba. Não é do feitio dele,
mas me pergunto se irá fingir que não me ouviu.
— Fogo — diz por fim. — Quero saber como extrair aquele fogo.
A despeito da crença humana de que o inferno é apenas fogo, o único lugar que, de fato,
produz esse elemento aqui é o Poço. E não é que o lugar esteja em chamas, na verdade, ele é
mais frio do que a própria Cidadela. Mas é lá que as almas que não são nem boas demais para
estarem no céu, nem tão ruins para acabarem no Vale das Lamentações, agonizam em eterno
silêncio.
Suas vozes silenciadas são a força motriz para a criação do fogo que fornece calor ao Domínio
Dourado, perpetuamente congelado. Sem esse fogo, o lar de Lúcifer sucumbiria ao frio
impiedoso.
Por razões óbvias, nenhum príncipe tem poder sobre o Poço ou sobre o que é produzido lá.
Mas se Mammon está pensando em formas para extrair o fogo em benefício próprio, isso muda
toda a dinâmica atual do jogo.
Com um poder como esse, ele poderia não só começar a negociar com o Domínio Dourado,
mas também controlá-lo. Como se a ambição de criar novos Artefatos não fosse grande o
bastante, ele quer abocanhar qualquer chance de vantagem que ver pela frente…
Cruzo as mãos nas costas, mas sem sair da minha posição ao lado dele.
— E confia em Abaddon com essa informação? — pergunto, na medida certa de zelo. — Ele
pode não tomar partido, mas por isso mesmo que não deve lealdade a ninguém.
Também não é do feitio de Mammon deixar seus assuntos no imaginário alheio. Se Abaddon
conseguiu essa informação por conta própria, deve ter andado prestando muita atenção aos
arredores. O que não combina muito com ele.
Ele abana uma mão no ar.
— Ah, ele não vai trazer esse assunto à tona com quem não deve — assegura. — Nesse exato
momento, enquanto falamos, os outros príncipes votam para proibir a circulação de Abaddon no
mundo mortal. Uma punição por algo que acreditam que ele tenha causado. Adivinhe de quem
será o único voto contra.
Inteligente. Ele não apenas sabia do conhecimento de Abaddon sobre suas movimentações,
como também se adiantou para garantir que o outro não tivesse motivos para comentar com mais
ninguém.
Inclino a cabeça um pouco mais na direção dele.
— Uma votação que com certeza não surgiu por acaso — deduzo, encaixando as peças
faltantes.
Uma sombra de sorriso cruza seu rosto.
— Posso ter dado a sugestão de forma indireta — admite.
Se não puder mitigar uma ameaça, dobre-a à sua vontade. Outra lição digna de nota. Tive um
professor e tanto.
Mas ele me ensinou demais para seu próprio bem.
— Ah, pelos cinco infernos! — O Comandante esbraveja, quando mais um combatente cai em
pedaços no chão da arena. — Isso não é uma luta, é um massacre! Nunca vi nada mais
entediante. Por que não trazem logo os guerreiros?!
Mais adiante, Abaddon gargalha.
— Você matou todos eles, já esqueceu?
Essas novas informações com certeza vão ser úteis para definir meus próximos passos.
Sabendo onde está ao menos uma parte do foco de Mammon, consigo trabalhar nos pontos onde
ele está sendo descuidado.
Subitamente inspirado, começo a remover minhas lâminas e capa, depositando-as na mesa
montada para Mammon.
— Aonde está indo? — A pele ao redor do terceiro olho se enruga quando ele nota o que
estou fazendo.
— Pensei que ia querer ver um pouco de ação — respondo, agora vestindo somente a calça e
o colete do uniforme, sabendo bem como ele vai reagir.
Compreensão transforma seu semblante, que vai do aborrecimento ao deleite em uma fração
de segundo.
— Agora, sim, a brincadeira ficou interessante — diz, deslizando para a ponta da cadeira. —
Vá. Mostre a esses fodidos como se vence uma rinha, garoto.
Mais que isso, pretendo mostrar como se vence uma guerra, Alteza.
18: SIENNA
Good Luck, Broken Bells

Acordo como se tivesse sido atropelada por um trem. Minha cabeça, minhas articulações, meus
olhos, tudo dói. Minha garganta não dá trégua até eu ter bebido o terceiro litro de água da manhã.
E ainda nem são dez horas.
Fico a maior parte do tempo jogada no sofá da sala, com a TV ligada no mudo e o ventilador
ninando meus cochilos inquietos.
Evito pensar sobre a noite passada, preocupada com os lampejos que me vêm à memória, mas
ainda mais com o que não lembro. E como se não bastasse as lembranças da noite, o sonho
maluco que tive também não ajuda em nada.
Foi um sonho como qualquer outro, me convenço. Já tenho problemas o bastante para
inventar mais.
Mas talvez não tenha sido tão ruim assim. Talvez Thalia não tente acabar com a minha raça
no minuto em que puser os olhos em mim. Posso dormir e me preocupar com isso depois.
Alheio aos meus planos, meu celular toca a plenos pulmões em cima da mesa de centro.
Estico o braço para derrubá-lo e trazer a paz de volta, mas tudo o que consigo é empurrá-lo para
longe do meu alcance. O toque estridente perfura meu cérebro em uma agonia sem fim.
O nome da minha mãe na tela é a única coisa que me impede de lançar o aparelho janela
afora.
— Alô? — atendo, me jogando de volta no sofá.
— Adivinha quem está em São Paulo hoje?! — cantarola mamãe do outro lado da linha. —
Está livre hoje? Pode nos encontrar para almoçar?
Ah, que maravilha. Sair de casa hoje era realmente tudo que eu precisava.
A simples ideia de interagir com pessoas no meu estado atual faz meu estômago revirar, mas
não descarto a ideia de imediato.
Minha mãe quase nunca vem à cidade, ainda mais com seu noivo atarefado. Ela tem falado
sobre marcarmos um almoço juntos há meses, desde que começou os preparativos do casamento,
mas o plano não saiu do papel. Até agora, pelo visto. Quão insensível da minha parte seria
recusar o convite porque bebi além da conta?
Mas talvez eu não precise demorar tanto lá. Uma conversa rápida e um prato devem bastar. É
o melhor que tenho a oferecer hoje.
— Acho que sim — digo, a despeito da sensação de morte iminente.
— Desculpa avisar em cima da hora. O Renan conseguiu marcar com Georgina hoje, então
vocês vão poder se conhecer antes do casamento, não é ótimo?
Meu padrasto tem uma filha mais ou menos da minha idade, que passou os últimos anos
morando na Espanha e agora está se restabelecendo no Brasil.
Sei disso porque ele trouxe o assunto à tona todas as vezes que nos reunimos até a data de
hoje. Sei, inclusive, que Georgina gosta de arte contemporânea, gatos e pintura, de tanto ter
ouvido sobre ela.
Minha mãe nunca se conformou que nós duas só nos conheceríamos no casamento, então
deve estar em polvorosa agora que vai finalmente conseguir nos juntar sob o mesmo teto.
Duvido que algo irá mudar em nossas vidas com esse almoço, mas se é importante para
mamãe, posso fingir um pouco.

— Obrigado por ter vindo, Sienna.


Cumprimento Renan meio sem jeito, numa mistura esquisita de abraço e aperto de mão. Não
interagimos com muita frequência agora que moramos em cidades diferentes.
Minha mãe é a próxima, e ela não vê problema em me apertar até eu ficar sem ar. Ela se
afasta, desbloqueando minha visão da mesa.
— Filha, essa é a Georgina — diz ela, gesticulando para a terceira pessoa sentada. —
Georgina, essa é a Sienna.
Minha boca se abre com o choque.
De jeito nenhum. Não pode ser.
Despojada na cadeira em frente à de Renan, ninguém menos que Gia, a cartomante, me encara
com as bochechas levemente coradas.
Suas tranças estão presas num coque, e talvez seja a maquiagem combinando com as roupas
sofisticadas, mas praticamente não vejo os traços da garota que conheci no outro dia. Ainda
assim, não tenho dúvidas de que é ela. Aqui, com a minha mãe. Numa reunião de família.
Se está tão perplexa quanto eu, Gia disfarça melhor. Suas covinhas aparecem quando ela sorri
para mim com moderação.
— Bom finalmente te conhecer — diz conforme se levanta para me cumprimentar.
O perfume amadeirado faz cócegas nas minhas narinas quando ela me abraça brevemente.
Custo a acreditar que isso está mesmo acontecendo.
— Igualmente — murmuro, decidindo manter a peteca no ar.
Se ela está fingindo que não me conhece, é porque ninguém além de nós duas sabe a verdade.
E, a depender de mim, isso não vai mudar.
Minha mãe sorri e bate palminhas antes de se sentar. Todos nós aproveitamos a deixa para
fazer o mesmo.
Fico com o assento ao lado de Gia, e preciso enrijecer o pescoço para não virar de lado e
começar a encará-la. Deve haver uma explicação lógica para isso. Não é?
— Gia estava contando como foi voltar para o Brasil depois de tanto tempo longe — conta
Renan.
Seguindo o gancho do pai, Gia continua o assunto.
— É, eu morava na Espanha. Sinto falta do clima de lá.
De repente, me lembro da pilha de caixas no apartamento que visitei com Ágata, e a forma
como tudo parecia largado pelos cantos.
É claro, ela ainda estava em processo de mudança. Parece tão óbvio agora que sei a outra
parte da história…
— Você estudava lá? — dou corda, usando a pergunta como pretexto para analisá-la melhor.
O mais intrigante é que essa versão dela não parece nem um pouco com a cartomante que
Ágata foi procurar.
— Não, eu trabalhava em algumas coisas — responde ela.
O fato de ela não entrar em detalhes sobre as coisas com que trabalhava já é uma explicação e
tanto.
Me pergunto o que Renan ou minha mãe achariam de ter sangue místico na família. Quer
dizer, mais um.
— Gia é uma excelente pintora, Sienna — Renan complementa, como só um pai-coruja faria.
— Você ainda vai ver alguns dos quadros dela.
Acho que já vi. Mas ele não precisa saber disso.
Dispensando a bajulação do pai, Gia me olha com interesse. Posso dizer que ela está, apesar
de tudo, se divertindo com a nossa situação.
— E você, o que faz?
— Sou atriz.
Minha mãe se agita do outro lado da mesa.
— Conte a ela da peça nova, filha — diz ela, com os olhos brilhando de empolgação.
Renan pode ser um pai-coruja, mas minha mãe é a minha maior fã e não esconde isso.
— Ah, é uma releitura do Inferno de Dante — conto, sem interesse em monopolizar a
conversa. — Deve estrear no próximo mês.
Gia balança a cabeça lentamente. Meu palpite é que esteja assimilando o que está descobrindo
sobre mim e, de alguma forma, relacionando isso à impressão que passei quando nos
conhecemos. Assim como eu, ela também está montando um quebra-cabeça.
— Ela pegou o papel principal — mamãe revela, mal se contendo.
E lá vamos nós…

A oportunidade de ficar a sós com Gia surge depois do almoço. Quando a sobremesa acaba e
mamãe e Renan entram em uma conversa só deles, Gia pede licença para acender um cigarro na
ala lateral do restaurante.
Conto até cem e também me levanto.
— Já volto — digo, embora ninguém esteja prestando atenção.
Serpenteio pelas mesas, tomando o cuidado de parecer despretensiosa. Posso estar indo ao
banheiro, ao bar, ou simplesmente a fim de esticar as pernas.
Já longe da nossa mesa, avisto Gia debruçada sobre o parapeito da varanda, e me adianto até
ela.
Paro ao seu lado, deixando meu olhar vagar pelo mesmo horizonte que ela contempla. É mais
um daqueles dias cinzentos.
— Isso é bem esquisito — digo após um instante.
Soprando a fumaça como se não tivesse muitas preocupações no mundo, ela balança a cabeça
em concordância.
— Verdade.
Arrisco um olhar de lado.
— Seu pai sabe sobre o seu trabalho?
Mas, apesar de não conhecer Renan como a palma da minha mão, sei que ele pode ter ideias
bem conservadoras às vezes.
Não imagino um advogado como ele aceitando com tranquilidade a profissão da filha. E, se
eu fosse arriscar, diria que a mudança de estilo dela tem algo a ver com isso.
Gia retribui minha olhadela.
— Sua mãe sabe que você anda falando com gente morta por aí? — rebate.
— A ideia foi sua!
Bem, não completamente. Mas foi ela quem começou.
Com um suspiro, ela vira o corpo para mim.
— Olha, que tal a gente fingir que nunca se conheceu antes de hoje? Eu não me meto nos seus
assuntos e você não se mete nos meus. Todo mundo sai ganhando.
Justo. Se vamos ser praticamente irmãs, é melhor que comecemos a guardar os segredos da
outra. Além do mais, não é como se eu fosse envolvê-la nos meus assuntos de novo. Aprendi a
lição da primeira vez.
— Não pode contar à minha mãe nada do que ouviu lá — digo, apenas para reforçar.
Ela pisca um olho.
— Ética profissional.
Sim, eu tenho uma meia-irmã que fala com espíritos e lê o destino das pessoas. É
simplesmente impossível lembrar da época em que minha vida era normal. O que mais falta
acontecer?
Uma risada contrariada me escapa.
— Essas coisas só acontecem comigo — digo, balançando a cabeça.
Os cantos da boca de Gia repuxam.
— Me diga se quiser tentar de novo. — Ela me lança um olhar cúmplice. — Ou se precisar de
ajuda com outro espírito.
Não digo a ela que, se tudo der errado, posso eu mesma me tornar um espírito em breve. E
duvido muito que um tabuleiro Ouija seria capaz de me trazer de volta.
19: SIENNA
Devil Saint, Luma

A ausência de Thalia pesa como chumbo no meu estômago.


Ela não apareceu depois que voltei do almoço, nem quando me sentei na sala e esperei por
ela, tampouco quando me inquietei com o silêncio do apartamento e saí para uma corrida nas
adjacências.
O dia todo sem notícias. Sem nem ao menos ouvir quão decepcionada ela ficou comigo depois
da noite de ontem.
Me pergunto se é possível que o anjo tenha decidido não voltar mais. Se apenas decidiu que
sou uma causa perdida e que o esforço não vale a pena. Sendo esse o caso, estarei por conta
própria até o fim do julgamento, ou decidirão me condenar de uma vez por estar além de
qualquer salvação?
As dúvidas me fazem correr com mais afinco, até mesmo quando o sol vai embora e o céu
fica escuro. Corro como se isso me impedisse de lidar com as consequências das minhas últimas
ações.
Na metade do caminho de volta, meu estômago ronca. Não comi nada desde o almoço, e a
energia que gastei me exercitando agora cobra seu preço.
Como não me sinto capaz de cozinhar hoje nem por um milagre, acabo pedindo dois
sanduíches para viagem na cafeteria da esquina do meu prédio. É aquela velha história: há dias
em que você vai dar o seu mínimo e ele terá que bastar.
Quando entro no apartamento, só o que quero é tirar o tênis de corrida, sentar no sofá e jantar.
Mas alguém lá em cima não deve gostar muito de mim, porque, depois que abro a porta, me
deparo com ninguém menos que Kai encostado no balcão da cozinha, de braços cruzados.
Meu rosto esquenta com a torrente de lembranças da noite passada — de como ele parecia
naquele salão, me castigando com o olhar, das coisas que admiti em voz alta e as que não me
recordo de ter dito…
Não esperava encontrá-lo de novo tão cedo. Queria ter ao menos ensaiado algo não tão
vexaminoso para dizer.
— O que está olhando? — falo depois de segundos sendo encarada em silêncio.
Em vez de trazer tudo à tona outra vez, posso simplesmente fingir que nada aconteceu. E
torcer para que ele entenda o recado.
Kai inclina a cabeça ligeiramente de lado.
— Vejo que está sóbria de novo — diz ele, me avaliando. — Ainda quer passar os dedos pelo
meu cabelo?
Recado não recebido.
Se o chão se abrisse e me engolisse agora, eu não acharia ruim. Realmente pedi para tocar o
cabelo dele? É de longe a coisa mais patética que eu podia ter feito.
Fecho a cara e entro na cozinha, passando por ele como se sua mera presença não afetasse
cada célula do meu corpo.
— Não sei do que está falando — minto. — Minha única lembrança é de estar dançando com
meus amigos no clube.
— Que conveniente — ouço-o dizer atrás de mim. — Aposto que esqueceu o sonho também.
Merda. Ele não deveria saber disso.
Me viro para encará-lo.
— Como sabe do sonho?
Kai dá de ombros.
— Eu estava lá.
É a segunda vez que ele diz isso. Assim como na primeira, eu não faço ideia do que algo
desse tipo significa. Ele estava no meu sonho, sim, mas como? Se eu o coloquei lá, por que já
não tenho essa resposta?
— Como isso é possível? — pergunto.
— É um tipo diferente de invocação. — Kai não parece nem de longe tão impressionado
quanto eu. — O humano precisa estar em extrema sintonia com o demônio que deseja conjurar,
ou não funcionará.
Meu rosto esquenta com a insinuação.
— Extrema sintonia? — repito. — O que isso quer dizer?
Kai ganha tempo umedecendo os lábios antes de responder.
— Uma conexão emocional forte. Essas invocações costumam acontecer quando o humano
está pensando demais no demônio em questão. — Ele desvia o olhar para limpar uma mancha
invisível no próprio punho. — E vice-versa.
A cozinha parece ficar ainda menor, sem oxigênio suficiente.
— Isso não pode estar certo, porque eu não estava pensando em demônio nenhum — me
defendo, erguendo o queixo em um desafio para que ele ouse dizer o contrário.
Mas o demônio é sorrateiro e apenas move o canto da boca antes de responder.
— Se você diz…
Volto a dar as costas para ele, sentindo as gotas de suor em minhas têmporas, e tiro um prato
do armário com mais aspereza que o necessário.
Começo a servir os sanduíches, mas paro quando uma mão cobre a minha sem aviso. O calor
que emana de Kai e seu toque fazem minha respiração ficar presa na garganta.
— O que acha de jantar comida de verdade? — A voz dele soa perto demais.
Viro a cabeça e encontro seus olhos azuis cravados em mim, esperando uma resposta.
O que foi mesmo que ele disse?
— Eu…
— Vamos cozinhar. — Ele tira o prato de sanduíches do meu alcance. — Você corta e eu
preparo.
Ele não pode estar falando sério.
— Quer que eu acredite que você cozinha? — pergunto, num misto de ceticismo e surpresa.
Kai abre um sorriso travesso que me obriga a me esforçar para não pensar muito a respeito.
— Só não fique mal-acostumada — diz ele. — Não vou cozinhar para você no inferno.
E então ele se vira para a geladeira.
Não tenho muito o que fazer agora, a não ser assisti-lo de queixo caído.
Ele é realmente uma caixinha de surpresas. Uma hora está conduzindo negócios duvidosos
com demônios sexuais, outra hora está cozinhando para mim. Quantas versões desse mesmo
demônio podem existir, e quando vou parar de me surpreender com elas?
No minuto seguinte, estou fatiando tomates enquanto Kai cuida do resto. Isso está mesmo
acontecendo. Esse dia não tem como ficar mais estranho.
— E então, anda conseguindo se divertir na coleira? — Kai pergunta do nada.
Estamos dividindo o espaço limitado da pia, praticamente ombro a ombro. Tento não pensar
muito em toda essa proximidade, mas cada vez que o tecido de sua camisa raspa meu braço, meu
coração faz uma coreografia engraçada.
Quando não respondo à pergunta, ele balança a cabeça.
— Aquele anjo é um pesadelo. Você vai morrer de tédio antes mesmo de chegar no
julgamento.
A figura diminuta de Thalia surge na minha cabeça. Espero voltar a vê-la. Acho que lhe devo
um pedido de desculpas.
— Não é como se eu tivesse opções. E não me diga que morrer e perder minha alma é uma
opção, ou vou enfiar essa faca na sua garganta — ameaço.
Ele manuseia a própria faca com precisão conforme corta pedaços de frango.
É difícil não lembrar do que essas mesmas mãos estavam fazendo algumas horas atrás.
— Você vai morrer uma hora ou outra — diz ele, dispersando meus pensamentos perigosos.
— Mas não posso morrer agora. Tenho planos e uma vida inteira pela frente.
Me recuso a morrer depois de todos os sacrifícios que fiz para chegar até aqui. Só vou deixar
esse mundo quando tiver certeza de que vovó está orgulhosa de mim. E estou cada dia mais perto
de chegar lá.
— Humanos e suas lógicas. — O demônio suspira. — Estou tão longe de entender quanto
sempre estive.
— Não é complicado. Nós simplesmente não queremos desistir da única vida que temos.
— Só que essa não é a única vida que vão ter. Vocês se apegam a um fragmento limitado de
tempo, sofrem por ele, matam por ele, e esse fragmento se acaba num sopro. Não é nada perto da
eternidade que encontrarão do outro lado.
Como ele pode não saber? Nós simplesmente temos tanto medo do desconhecido que a mera
ideia de abandonar solo familiar nos paralisa.
— Não conhecemos o outro lado — lembro. — Tudo que sabemos está aqui. Boa ou ruim,
essa é a única vida que conhecemos bem o suficiente para decidir se queremos ou não continuar
nela.
— Um desperdício.
Parto uma cebola ao meio com mais força do que o necessário.
— Você já esteve no meu lugar um dia. Esse discurso fazia sentido na sua cabeça humana e
limitada?
— Está perguntando se eu era apaixonado pela vida como você? Não posso dizer que era.
Nunca vi o lado bom dela.
Acho que isso explica seu completo desprendimento com a vida humana e a certeza
inabalável de que está bem melhor depois de morto. Odeio que ele tenha vivido nas
circunstâncias erradas, mas me recuso a ver a morte como solução para alguma coisa.
— Mesmo assim, nem toda criatura miserável nesse mundo quer morrer — argumento.
— Eu não era miserável.
O resto da explicação, se é que ele vai dar, fica em suspense quando ele abre o armário em
busca de uma panela. Ele deve estar ganhando tempo, ou talvez esteja se perguntando se vale ou
não a pena entrar nos detalhes sórdidos de sua vida.
Espero alguns segundos antes de encarar seu perfil com expectativa. Ele está enganado se
acha que pode parar agora que começou.
— Nasci em 1734, no interior da Inglaterra — ele revela por fim. — Minha infância foi
atípica. Morei em um orfanato até os oito anos e nunca conheci meus pais. Quando fiz nove, fugi
de lá e acabei nas ruas com outras crianças.
Sinto minha testa enrugar.
— Por que fugir de um orfanato? — pergunto, esquecendo por um momento da minha tarefa
de cortar cebolas.
— Nem tudo vale a pena por um prato de comida e um teto. Eu estava melhor por conta
própria. Arranjei trabalho na casa de lordes, o que mal me garantia o suficiente para sobreviver,
mas aprendi a roubar desses homens sem ser pego. No começo, eu só roubava comida. Eu devia
ter treze anos quando peguei algo mais valioso pela primeira vez.
Minha garganta aperta quando penso na criança que ele foi um dia, tendo que aprender a se
virar desde cedo, com ninguém além de si mesmo com quem contar.
— E como conseguiu enganar o lorde?
— Não precisei, ele estava morto. Pó de arsênico no leite antes de dormir. A esposa tinha
viajado para a casa da família em Birmingham, então ninguém me viu entrar no quarto e levar
um colar de rubi.
Pestanejo algumas vezes.
— Você matou um homem para poder roubar dele?
Eu não deveria estar tão chocada. Ele era pouco mais que uma criança no modo
sobrevivência, e se na época Kai fosse ao menos um pouco parecido comigo, sua bússola moral
não significava muito.
— Não só por isso. O cara era um porco. O mundo virou um lugar melhor sem ele, acredite.
Sabendo que tem minha completa atenção, ele prossegue:
— Depois disso, tive que sair de lá e procurar outra casa. Fui parar na mansão de uma viúva
alucinada, mas muito rica.
— Deixa eu adivinhar — digo, estreitando os olhos. — Você matou a pobre coitada também?
Kai faz que não com a cabeça.
— Não, mas a tuberculose matou poucos meses depois que cheguei — responde. — Todos os
empregados foram trancafiados na casa até terem certeza de que não estávamos doentes também.
Éramos vinte e seis, mas só nove saíram de lá. Os outros foram mortos depois da primeira tosse,
porque ninguém queria arriscar ser infectado.
Não posso nem imaginar como foi estar no lugar dele. Que rude da minha parte falar sobre
humanidade quando ele claramente não conheceu nenhuma.
— Quantos deles você matou? — pergunto, mordendo o interior da bochecha.
— Nenhum. Estava mais preocupado em me esconder nos armários. — Ele faz uma pausa e
estica o braço para pegar o legume que abandonei na tábua de corte. — Vai ser mais rápido se eu
fizer isso.
Ah, certo. Estamos cozinhando.
Deixo Kai terminar e me ocupo com a parte de salgar os cortes de frango.
— E o que aconteceu depois?
Por favor, conte tudo em detalhes.
— Eu saí da quarentena e passei alguns meses na rua de novo. Dessa vez, roubei tudo o que
eu conseguia pôr as mãos. Fiquei confiante demais e comecei a correr riscos idiotas. Eu era bom
em roubar, mas era burro. Em um inverno cruel, a guarda da cidade me encurralou e eu acabei na
prisão. Devo ter ficado lá por uns nove meses, até que me disseram que a fiança tinha sido paga e
que eu iria embora.
— Pagaram a fiança? Quem?
— Um aristocrata de Birmingham — ele conta. — Comecei a trabalhar na propriedade dele
para quitar a dívida. Foi lá que tudo terminou.
Talvez seja o fato de que eu sei onde essa história vai acabar e tenha ressalvas em relação a
ela, mas a sensação de estar vendo um trem descarrilhando é quase tangível. Meu pulso acelera
com antecipação.
— A propriedade dele tinha muitas outras crianças trabalhando para quitar uma dívida que
nunca terminava — continua a dizer. — Trabalhávamos quinze horas por dia quando tínhamos
sorte, em troca de duas refeições. Quem tentasse fugir acabava sem um dos membros, e no caso
das mulheres, acabavam servindo para outras coisas. Nunca tentei escapar. Passei seis anos
naquele lugar, e vi mais crianças do que eu podia contar morrerem de doenças. Eu mesmo teria
morrido, mas quem tem a alma dividida não pode ser morto sem passar pelo julgamento.
Me pergunto até que ponto isso é algo bom. Na teoria, não posso morrer nas próximas cinco
semanas, mas não significa que eu não posso sofrer acidentes, adoecer ou ser torturada, por
exemplo. Com Kai não era diferente. Ele não morreu antes da hora, mas também não é justo
dizer que ele viveu.
— A parte final dessa história foi bem parecida com a sua, na verdade. Antes de completar
vinte e um anos, um Arcanjo me explicou tudo. Recebi sete semanas para decidir que rumo
tomaria, mas só precisei de três dias. A escolha pareceu bem óbvia. Eu não queria continuar
daquele jeito, queria ter poder para fazer mais. Meu anjo nunca teve chance.
Aí está o que nos diferencia. Enquanto para mim morrer significaria o fim de tudo, para Kai,
continuar vivo era o real sacrifício.
— Como você morreu? — pergunto num fio de voz.
O fantasma de uma lembrança cruza o rosto dele. Se é boa ou não, ele não deixa transparecer.
— Três dias depois da visita do Arcanjo, eu usei minhas habilidades para ficar na casa
principal depois que os outros empregados se recolheram. Subi até o andar onde ficavam os
quartos da família e comecei um incêndio no corredor, depois fiz o mesmo nos aposentos do
lorde. Desci para o hall antes que o incêndio crescesse e esperei.
Meu peito aperta antes mesmo que ele termine de falar.
— Ele e a esposa devem ter acordado com a fumaça, porque ouvi os gritos abafados depois de
um tempo, mas não podiam sair do quarto com o corredor também em chamas. Me lembro da
sensação do fogo lambendo a pele e da onda de dor que não durou mais de dez segundos. Depois
disso, eu não conseguia mais respirar. Mas me lembro de estar mais feliz do que tinha estado há
um bom tempo.
Para além do choque com os acontecimentos e com a frieza que Kai mostrou em seu último
instante de vida, também fico confusa.
— Mas você não podia morrer antes das sete semanas — digo, falhando em enxergar a lógica.
Kai aperta os lábios.
— Não podia ser morto. O livre-arbítrio de acabar ou não com a minha própria vida não foi
tirado.
É claro. Eu devia ter imaginado que o livre-arbítrio, apesar de não tão livre assim, seria
considerado nessa hora. Toda a ideia do julgamento parece se basear nesse conceito, afinal de
contas.
Gostaria que fosse livre o bastante para eu não precisar escolher nenhum dos dois caminhos.
— Você não tinha garantia nenhuma de que o depois seria o que você estava esperando —
aponto.
— Eu tinha que arriscar. No pior dos casos, eu continuaria naquela espécie de semi-existência
que sempre tive. Nenhuma novidade até aí.
Não é uma lógica ruim, mas…
— Podia ser bem pior — insisto.
— Podia ser melhor — ele rebate. — Felizmente, nunca me arrependi da minha escolha.
Admiro sua autoconfiança, isso não posso negar. Ele agarrou a oportunidade que julgou ser a
melhor, e a única que achou que teria. Pagou para ver e acertou na aposta.
É claro que não é e nunca será o meu caso.

O resultado dos nossos esforços combinados acaba sendo um frango recheado que, devo admitir,
cheira muito bem e tem uma aparência melhor ainda.
Pelo visto, Kai ainda não se cansou de me surpreender. Ele parece ter muitas cartas na manga
e sabe bem quando usar cada uma delas.
Não satisfeito, o demônio também prepara bolinhos de carne e improvisa uma salada de frutas
com o que encontra na geladeira. Em uma hora, há mais comida na minha cozinha do que eu
poderia comer em uma semana.
Enquanto preparo a mesa, percebo que não faço a menor ideia dos hábitos alimentares de Kai.
A única vez que o vi comer algo foi quando o conheci na casa da lagoa. Ele devorava pêssegos
como se sua vida dependesse disso, e parecia estar curtindo cada segundo da experiência. Mas
não sei se isso implica que demônios se alimentam no dia a dia, e se devo colocar dois pratos em
vez de um.
Decido deixar a louça extra por perto apenas por precaução.
Kai se senta do outro lado da mesa depois que a última tigela é posta, e me observa com
expectativa conforme me sirvo de uma porção generosa.
A última hora foi tão atípica que minha fome foi varrida para o canto da mente, mas agora ela
está de volta e mais forte do que nunca.
À minha frente, Kai continua me observando comer, a mão repousando despretensiosamente
entre o aglomerado de pratos.
Mesmo depois de tudo, meu coração bate mais forte no peito a cada segundo que passo sob
seu olhar.
— Qual é o gosto? — ele pergunta.
Paro com o garfo a meio caminho da boca.
— O quê?
— O frango.
— Ficou bom, se é isso que quer saber. — Não há razão para mentir.
Mas ainda não é o que ele está esperando ouvir.
— Sei que ficou bom — diz, pouco preocupado com a modéstia. — Mas quero saber qual
gosto ele tem.
Tenho quase certeza de que agora ele está tirando sarro de mim.
— De frango…? — retruco.
Ele estala a língua, rejeitando minha resposta mais uma vez.
— Qual é, você pode fazer melhor que isso. O que sente quando põe um pedaço na boca?
Deixo sua pergunta pairar enquanto pego outra porção. Nunca parei para pensar no que sinto
quando estou comendo. Que tipo de pergunta é essa? E por que ele está tão interessado?
Apesar da desconfiança, faço um esforço para pensar numa resposta.
— O molho se destaca, mas quando paro para notar, sinto o gosto das ervas e do queijo —
digo depois de mais algumas garfadas.
— E a textura?
— O que você…
— Só estou curioso — ele explica. De alguma forma, sei que está sendo sincero.
Penso um pouco mais.
— Como você grelhou, a primeira mordida é crocante.
Como não reparei nisso antes? A combinação é perfeita.
— Interessante. — Impressão minha ou ele está se divertindo? — E aqui?
Kai empurra a montanha de bolinhos de carne na minha direção.
Não preciso ser convencida a provar um pedaço; a cara por si só já está ótima.
— Você usou azeite — arrisco, aguçando meu paladar. — Salsinha. Pimenta do reino…
Minha mente provavelmente está pregando peças em mim, mas acho que estou vendo algo
parecido com orgulho no rosto de Kai.
— Gostou? — pergunta ele.
Faço que sim com a cabeça.
— Deixe espaço para a sala de frutas — ele pisca um olho.
Não há nada simples sobre esse demônio, e a sua imprevisibilidade é só um lembrete disso.
Como vou manter a guarda levantada se em noventa e nove por cento das vezes eu não faço
ideia do que ele está planejando? Ajuda se eu encarar tudo como uma artimanha, mas às vezes
não parece… certo. Às vezes, ele é somente Kai. Ou ao menos aparenta ser.
— Por que está fazendo isso?
A pergunta deixa um gosto estranho em minha boca. Me lembra que não posso confiar nele
como costumava confiar.
Em um segundo, seus olhos mudam e a máscara de indiferença cai de volta no lugar. Ele
retrai a mão sobre a mesa, aumentando nossa distância. O gesto é físico, mas sinto a lacuna se
abrindo em meu peito.
— É apenas comida, monstrinho — fala em seguida, dando de ombros. — Não tem nenhum
plano maquiavélico por trás.
Engulo através do desconforto.
— Mas por quê? Imaginei que você teria assuntos mais importantes para tratar, você sabe, no
inferno.
Seria mais fácil se tivesse. Se sua mera companhia e seus gestos não despertassem lembranças
que estou tentando apagar.
— Nenhum deles é tão divertido quanto te atormentar — ele provoca.
Mas a diversão abandonou seus olhos.
— Que existência empolgante — resmungo de volta.
— Espere até ser imortal. Você vai perceber o quanto o conceito de empolgante pode variar.
Fico em silêncio pelo resto do jantar.
É mais fácil dessa forma. Mesmo quando tudo que eu quero é contar a ele sobre cada novo
sabor que descubro.
20: SIENNA
Like that, Bea Miller

No domingo, acordo com uma sirene mental me lembrando da festa de Edgar.


Passei o resto da noite de ontem fugindo das sugestões do demônio, até mesmo das mais
inocentes, como tirar o lixo da pia.
Thalia continuou sem dar as caras, o que quase fez eu me encolher na cama enquanto perdia
toda a esperança de consertar as coisas.
Só fui capaz de dormir depois que o apartamento ficou quieto, sem a presença de Kai para me
distrair do sono. Felizmente, sem sonhos estranhos dessa vez. Mas um pressentimento me diz
que o fim de semana ainda está longe de acabar.
Como se para confirmar isso, Edgar me envia uma mensagem reforçando o convite que fez há
poucos dias. Decido ignorá-la por enquanto, em parte porque sei que Thalia não aprovaria, e
também porque a ideia de ficar sozinha hoje à noite me parece muito mais agradável.
Dedico a manhã para fazer uma faxina completa na casa, com Måneskin de trilha sonora.
À tarde, me permito simplesmente deitar no sofá na companhia do livro de Clementina. O
tempo voa enquanto estou presa nas páginas da história, incapaz de parar sem saber o que vem a
seguir. O drama da personagem principal é palpável. A dor e a culpa dela são como se fossem
minhas.
Só quando viro a última página é que percebo que essa é a história de Dona Clementina. Com
nomes e lugares diferentes, mas, no fundo, ainda é a história dela. De repente, todas as peças se
encaixam.
Ela escreveu este livro. Enquanto eu lia os pensamentos e dilemas da protagonista, era na
consciência dela que eu estava mergulhando. Não consigo evitar admirá-la ainda mais que antes.
É preciso uma alma de aço para não se curvar diante do que ela vivenciou. Agora, mais do que
nunca, desejo saber se mandar Camilo até ela ajudou em algo.
É nisso que estou pensando, em ir vê-la mais uma vez, quando um movimento na varanda
chama a minha atenção.
Os olhos translúcidos do anjo encontram os meus. Percebo que está escuro lá fora, e a pele cor
de giz de Thalia faz um contraste interessante com o céu atrás dela.
Quase no mesmo segundo, o aperto em meu estômago alivia um pouco.
No entanto, se o semblante dela for um indicador de seu humor, a situação é pior do que
antecipei.
— Sei que está brava comigo — é a primeira coisa que sai da minha boca. — E tem todo o
direito de estar.
Guardando as mãos nos bolsos do suéter, Thalia franze os lábios.
— Bem, não posso estar feliz, posso? Você continua caindo em todas as armadilhas dele.
Continua pensando nele das mais inaceitáveis maneiras. — Ela se interrompe pelo tempo de uma
respiração. — Eu estava otimista antes, mas agora você precisa me dizer o que quer, porque nem
eu posso te salvar se você não quiser ser salva.
Sinto o impulso de correr até o anjo e garantir que ela não irá partir de vez. Embora eu não
mereça uma segunda chance, vou implorar por uma mesmo assim.
— Quero o mesmo que você, Thalia — digo, sem nem sequer pestanejar. — O que eu sinto
por Kai é… complicado e antigo. Não dá pra apagar da noite para o dia. — Enquanto falo, uma
ideia arriscada me vem à mente, aflorada pela ânsia de remover a reprovação do rosto do anjo. —
Mas isso pode ser útil. Posso usar essa conexão que tenho com ele para outras coisas.
O pensamento me escapa rápido demais. Nem mesmo tenho tempo de considerar as
implicações do que acabei de compartilhar. Não é algo que eu tenha cogitado até esse momento,
quando a confiança de Thalia em mim parece estar dando seus últimos suspiros.
No entanto, devo pensar em mim primeiro. Kai faria o mesmo se estivesse em meu lugar. Sei
que faria.
Rugas se formam na testa do anjo.
— Do que está falando?
Com as mãos suando de forma involuntária, dou um passo até Thalia.
— Nos leve para aquele jardim de novo.
— Você…
— Prometo que vou explicar — adianto, torcendo para que ela acredite em mim mais uma
vez. — Só não aqui.
Aprendi que nada nesse plano é tão privado que não possa ser visto e ouvido pelos que estão
de fora. Se vou realmente fazer isso, não quero que a informação corra solta por aí para depois se
voltar contra mim.
Se fica intrigada ou se apenas quer me dar o benefício da dúvida antes de partir para sempre,
não tenho como saber, mas o fato é que Thalia atende o meu pedido.
Mal pisco e o ambiente à nossa volta já mudou completamente, agora cheio de plantas e flores
banhadas pelo que eu arriscaria chamar de pôr do sol. A luz alaranjada mais uma vez me cega
por um instante.
Enquanto seco as lágrimas dos olhos, vejo o anjo cruzar os braços contra o peito, desconfiada.
— Desembucha — diz ela.
Ok, direto ao ponto, então.
— Descobri que posso invocar Kai enquanto estou sonhando — revelo, sem arrodeios.
Thalia ergue uma sobrancelha.
— Quer que eu finja surpresa?
É claro que eu era a única a não saber disso. É quase inevitável pensar no que mais está sendo
omitido sobre mim de propósito.
Limpo a garganta antes de continuar.
— Sabia que Kai tem planos para roubar a coroa de alguém no inferno?
É isso. Está feito e não tem mais volta.
Sinto muito, Kai.
— Onde ouviu isso? — Thalia me avalia com atenção.
— Ele me contou no meu último sonho.
Significa que ele confia em mim a ponto de compartilhar um segredo como esse? A mera
hipótese me deixa com um nó na garganta. Ele faria o mesmo se estivesse em meu lugar.
O fato do anjo precisar pensar antes de responder me diz que a informação é de seu interesse.
— Você não tem como saber se ele está falando a verdade. E mesmo que esteja, duvido que
um demônio menor como ele consiga chegar muito longe.
— E se chegar? — Deixo a pergunta pairar alguns segundos. — O céu não gostaria de prever
todas as possibilidades? Acho que posso descobrir mais do que ele está planejando. Vou juntar
cada informação que puder e dar a vocês…
— E em troca…? — Thalia corta, com certa acidez.
Me sinto culpada e ao mesmo tempo feliz que ela tenha interpretado da forma correta, me
poupando de ter que eu mesma trazer o assunto à tona.
— Que vocês se lembrem da minha ajuda quando eu precisar da de vocês — respondo. — Um
pouco de benevolência viria bastante a calhar.
Não acho que estou pedindo muito. Tenho certeza de que os anjos se beneficiarão das
informações que posso arrancar de Kai para deixá-los a par das movimentações de seus inimigos.
Eles podem até conseguir outra fonte, mas nenhuma delas terá o acesso que tenho a Kai por
causa dos meus sonhos.
E já que decidi vender o demônio por interesse próprio, o mínimo que posso fazer é cobrar um
preço justo por isso.
Thalia não responde imediatamente. Tenho a impressão de que ela precisa oferecer um pouco
de resistência antes de aceitar.
Alterno meu peso entre as pernas enquanto espero.
— Vou dar o recado às castas superiores — ela enfim cede. — Mas seu pedaço de informação
foi vago demais para ter qualquer garantia, vão querer mais detalhes da próxima vez.
Um sorriso nervoso se forma em meus lábios.
— Vou cuidar disso.
Com um último olhar contrafeito, Thalia nos leva de volta para a minha sala.
Estou tão abalada com a segunda chance e a barganha promissora que consegui elaborar que
nem sequer me incomodo com o truque.
— Sabe o que mais? Fiquei com uma vontade súbita de brindar a algo — digo, o coração
martelando no peito.
— Não é para tanto — murmura o anjo, estática no lugar onde já estava.
Ignoro-a e ergo a mão para ela.
— Não diga nada. Vou abrir um vinho e você vai brindar comigo.
— Essas porcarias humanas não fazem efeito em anjos — ela se opõe, erguendo o queixo.
— Ótimo. Assim você não tem com o que se preocupar.
Antes que ela consiga inventar outra desculpa, corro para a cozinha e pego duas taças e a
garrafa de vinho que venho guardando há meses, esperando até ter um motivo para brindar.
Não ando tendo muitos motivos para ficar feliz ultimamente, mas acho que posso celebrar as
pequenas coisas, como o fato de que Thalia não desistiu de mim ainda. Não sei até quando terei
essa chance.
E, contanto que eu não pense muito no que minha atitude vai significar para Kai, posso fingir
por um momento que nem tudo é desgraça.
De volta à sala, encho as taças até a metade e ofereço uma ao anjo. Ela, por sua vez, não dá
indícios de que irá pegá-la.
— Thalia — falo, usando a minha melhor expressão de cachorro sem dono.
Se fica mexida ou não, ela termina por aceitar a taça com um suspiro.
Abro meu primeiro sorriso de verdade em dias.
— Um brinde à mão que lava a outra. — Levanto minha taça. — E às segundas chances.
Thalia me observa tomar um gole do vinho, mas fica claro que ela não pretende me
acompanhar.
Tudo bem. Posso beber por nós duas.
Com um olhar conspiratório, saio da varanda por um instante e ligo o Spotify na TV. Nenhum
brinde que se preze termina sem uma trilha sonora. Convenientemente, Rihanna encabeça a
playlist.
— Vamos lá, tire essa máscara estóica por dois minutos e sinta o momento — digo a Thalia.
— Não é um crime, sabe?
Mas ela continua inflexível onde está, olhando para mim como se estivesse secretamente —
talvez nem tanto assim — questionando meu estado mental.
— We found love in a hopeless place — cantarolo enquanto danço o caminho todo até chegar
nela.
O anjo revira os olhos, mas a ruga no canto de sua boca a entrega.
Sim, ela está julgando meu comportamento ridículo, mas não consegue se impedir de achar
graça. Geralmente, esse é o primeiro passo para começar a agir de forma ridícula também.
Danço no ritmo da música, provocando-a. Ela não é inatingível, já percebi isso. Deve ser
exaustivo ser imperturbável o tempo todo. Talvez ela precise se soltar por um minuto e
simplesmente não saiba como fazer isso. Acho que posso ajudá-la a esquecer quem é.
— Vamos lá, mexa os ombros assim.
Agarro seus ombros e os chacoalho. Thalia começa a se desvencilhar de mim.
— Sienna — protesta, mas eu não desisto tão fácil.
Mexo seus ombros um pouco mais, até ela começar a se mover por conta própria. O olhar que
ela me dá me diz que não consegue acreditar no que está fazendo.
— Isso aí, você leva jeito!
Motivada por essa brecha em sua armadura, pego suas mãos nas minhas e balanço nossos
corpos, uma risada escapando dos meus lábios.
Nunca imaginei que veria um anjo dançando ao som de Rihanna. Quando foi que a minha
vida se tornou tão aleatória?
A risada de Thalia segue a minha, e o som é tão inédito e bonito que o sinto no fundo da
minha alma. Ela parece… livre. Eu não tinha percebido que ela estava numa gaiola até esse
momento. Sinto a necessidade de mantê-la do lado de fora para sempre.
Mas então algo muda em seu rosto. O sorriso esmorece e seus olhos escurecem, em seguida,
ela para de se mexer.
Faço o mesmo, porém falho em enxergar o problema.
— O que foi?
— Isso é errado — declara ela, se escondendo atrás do escudo outra vez. — Não sou humana.
Esses impulsos não fazem parte da minha natureza.
Balanço a cabeça.
— É uma brincadeira. Não estamos fazendo nada demais — digo.
Pensei que ela soubesse disso tão bem quanto eu.
Quando seus olhos encontram os meus novamente, ela parece atormentada de uma forma que
nunca vi antes.
— É você. Você desperta isso em qualquer um que chegue perto o bastante. — A acusação
em sua voz faz cortes em minha pele. — Por que me recusei a ver isso? Sua natureza corrompida
estende os braços para corromper os outros também.
Não consigo pensar em uma resposta de imediato. Meu queixo cai e um som de choque deixa
a minha garganta.
Ela não pode estar falando sério.
— Não estou tentando corromper ninguém. — Sinto raiva do tremor em minha voz, expondo
os efeitos do que acabei de ouvir. — Qual o seu problema?
Mas ela me olha como se eu fosse uma espécie de praga da qual não quer ficar perto.
— Emeryel e os outros estavam certos. Nunca mais me trate como humana de novo — diz,
logo antes de desaparecer.
E, simples assim, estou sozinha de novo, com uma acusação nas costas e uma indignação
crescente fervendo dentro de mim.
Pelo que estou sendo culpada agora? Por tentar causar uma distração inocente depois de um
fim de semana lastimável? Posso ter dado a Thalia muitos motivos para desconfiar de mim, mas
nunca tive a intenção de manipulá-la. E ainda assim, de alguma forma, a culpa é minha.
Cometendo erros ou não, o jugo recai sobre mim sem hesitação. É assim que funciona,
aparentemente. E, para piorar, meus aliados parecem ser os primeiros a me condenar. Que baita
incentivo.
Tudo bem. Se o céu pode me culpar por coisas fora do meu controle, posso muito bem fazer a
culpa valer a pena. Ainda gosto de corrigir injustiças, afinal de contas.
Pego meu celular no sofá e mando uma mensagem para Edgar com uma única palavra.
Indo.
Thalia agora terá um motivo justo para me odiar.
21: SIENNA
Soldier, Fleurie

Me sinto a pessoa mais perigosa do lugar conforme atravesso a sala de Edgar. A mais
imprudente eu com certeza sou.
Alertas vermelhos disparam na minha cabeça o tempo inteiro, mas eu tive todo o caminho até
aqui para desistir da ideia. É tarde demais para voltar atrás agora.
Encontro Edgar e seus amigos no lado externo da casa, aglomerados ao redor da piscina.
Alguns se aventuram no bar, outros conversam em cima de espreguiçadeiras e pufes. E, no meio
deles, o professor parece fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Mal dou dois passos quando ele ergue a cabeça ruiva e me nota.
— Minha musa, você veio!
Ele se adianta em minha direção. Posso dizer que não está inteiramente sóbrio pela névoa em
seus olhos.
Sorrio mesmo que meu senso de humor esteja bem longe daqui.
— Não acreditou que eu viria?
Edgar me analisa dos pés à cabeça, um brilho de satisfação iluminando seu semblante, muito
embora eu não esteja usando nada mais que um vestido preto comum e tenha trançado meu
cabelo como uma coroa. Pegando minha mão, ele me conduz até as outras pessoas.
— Todos vocês, conheçam Sienna Bianco — diz em voz alta, atraindo a atenção dos amigos.
— A próxima grande revelação brasileira.
Uma dúzia de cabeças se vira para me encarar, e percebo, com uma volta no estômago, que
conheço boa parte delas.
São atores e atrizes em sua maioria. Experientes e famosos. E cá estou eu, um cordeirinho
sedento no meio de todos eles.
A primeira a se levantar é uma mulher negra de cabelos cacheados e pele negra retinta, cujo
trabalho eu já conheço. Ela me puxa para um abraço saudoso e meu coração salta de emoção.
— Estou vendo por que não para de falar dela, Ed. Você é linda, querida — declara ela,
sorrindo também com os olhos.
— Obrigada, Tati — consigo dizer sem parecer uma imbecil. Sim, estou tendo uma conversa
com Tati Braga. E não é um sonho. — Sou uma grande fã sua.
Tati já era uma atriz brilhante quando nasci. O país inteiro a ama.
Ao seu lado, uma mulher de feições duras e aura confiante aparece, erguendo a mão para um
aperto.
— Você já conhece a Pietra Reis, Sienna? — Edgar fala ao meu lado. — Trabalhamos juntos
em alguns roteiros na última década.
Faço que sim com a cabeça enquanto seguro a mão da roteirista.
— Que incrível te conhecer pessoalmente — digo em tom solene. — Já fiz trabalhos sobre
você na Academia.
Pietra suspira e chega mais perto para cochichar.
— Vou entender se me odiar por isso — brinca, arrancando um sorriso genuíno meu.
Conheço muitas outras pessoas depois disso, cada uma com um comentário inteligente para
oferecer.
Quando termina de intermediar as apresentações, Edgar me entrega um copo. Bebo para não
ser a única a fazer desfeita. O segundo vem quando estou trocando telefones com uma atriz de
teatro.
Edgar me segue como um dono orgulhoso seguiria seu animal enquanto ele atrai a atenção das
pessoas ao redor. É estranho me sentir como um troféu para alguém. Deixo que ele fale de mim
para os amigos, mas me certifico de construir minha imagem sem sua interferência, porque
preciso que essas pessoas me vejam como algo além de um capricho alheio.
Não consigo deixar de me perguntar se Diana está aqui hoje, ou se já partiu para a França e
deixou o marido com seus negócios. Ela sabe que estou aqui? Sequer se importa? Mas os
minutos correm e não a vejo em lugar nenhum.
O terceiro drink é mais doce que o anterior. Minha língua fica mais relaxada, ávida para
participar das conversas. Me preocupo menos com as coisas fora do meu controle.
No quarto copo, sou toda sorrisos e amenidades. As pessoas se tornam mais legais e
interessantes, os assuntos fazem minhas bochechas doerem de tanto rir. Até os olhares de Edgar,
quando acha que ninguém está vendo, se tornam mais suportáveis. Como um detalhe sem muita
importância à margem dos meus pensamentos.
Pessoas famosas, no final das contas, são pessoas. Ficam chapadas, falam besteira e fazem
coisas constrangedoras. Mas ninguém está aqui para julgar ninguém, eu logo percebo. É por isso
que fica tão fácil esquecer os filtros. Quando ninguém está apontando dedos, você fica mais
ousado e sem medo de cometer deslizes. Ou de simplesmente ser você mesmo.
Então, quando Edgar me oferece mais e mais bebidas, eu aceito. Me aproveito das coisas que
ele pode me dar, mesmo que eu não tenha a intenção de retribuí-las.
O barulho vai ficando cada vez mais distante. As vozes se misturam e se perdem antes de
chegar ao meu cérebro. Me sinto vazia e ao mesmo tempo cheia de coisas que não reconheço.
Minha percepção das coisas muda em pequenos lapsos. Em um segundo, estou sentada, no
próximo, estou em pé. Os rostos mudam ao meu redor em uma velocidade que não consigo mais
acompanhar.
Todo esse movimento faz minha cabeça começar a girar, fora de foco.
Acho que passo mal, porque sinto mãos me estabilizando antes de sumirem. É como acordar e
cair no sono repetidamente. Por que estou me movendo tão depressa? Quero só fechar os olhos
e…
— Olhe para você, toda corada.
A barba faz cócegas no meu pescoço.
Não gosto disso. Por que ele está tão perto?
— Edgar…
Acho que falo em voz alta. Ou penso. Não parece fazer diferença.
Do outro lado do mundo, uma porta bate.
— Merda. Já volto para você, querida. Não saia daí.
Sair daqui? Para onde eu iria? Nem ao menos sei onde estou.
Então não me movo. Por muito tempo, ou talvez por menos de um minuto, fico quieta e torço
para passar despercebida.
Mas a quietude não dura.
— Sienna — ouço alguém chamar.
Procurar pelo som demanda algo que não tenho agora, então não tento. Sinto a parte de trás da
minha cabeça se chocar contra algo duro e frio.
— Preste atenção — a voz volta a falar.
É difícil prestar atenção. Não deveria ser tão difícil. Por que não consigo abrir os olhos?
Duas mãos apertam meus ombros com firmeza, e o calor momentâneo do toque derrete uma
fração do meu torpor. Preciso me concentrar.
— Ouça a minha voz. — Outro aperto, mais tangível dessa vez. — Acorde.
Essa voz. Conheço essa voz. Posso confiar nela. Preciso confiar.
O espaço ao meu redor aos poucos começa a entrar em foco, e a minha cabeça para de girar.
A teia de aranha se solta.
Pisco os olhos várias vezes para dissipar a névoa, finalmente me dando conta do semblante
carrancudo diante de mim, ainda me segurando.
Kai.
Olho em volta, assimilando o banheiro onde estamos, e depois para baixo, sentindo minha
pulsação aumentar quando vejo uma alça do vestido caída de qualquer jeito na altura do meu
braço.
Uma por uma, as memórias se apossam de mim; a rodinha de atores, as bebidas que Edgar me
deu, o quarto silencioso, as mãos me tocando enquanto eu tentava me esquivar…
Um soluço fica preso em minha garganta quando me dou conta das circunstâncias.
— Você vai querer dar o fora daqui antes que ele volte — Kai continua, me lembrando de que
não estou mais sozinha.
— Ele estava…
Fúria e nojo se alastram entre os meus pensamentos, fazendo minha visão escurecer.
Começo a esfregar meu pescoço onde senti Edgar me tocar antes, mas Kai segura meu
antebraço com delicadeza.
— Não posso te proteger ou interferir se ele tentar te machucar de novo, então é melhor você
se apressar — diz ele.
Noto sua agitação, mas não tenho tempo para pensar a respeito. Um ruído de porta batendo
ressoa lá fora.
Não estamos mais sozinhos no quarto.
Arrumando meu vestido o mais rápido que posso, saio do banheiro sem parar para checar se
Kai está me seguindo. Ele pode decidir se vai ou não ser notado.
Percebo que estou descalça, mas não me lembro de ter tirado as sandálias, tampouco onde as
deixei.
Não importa, vou embora daqui com ou sem sapatos.
Entro no quarto meio iluminado, sentindo de imediato o cheiro do perfume de Edgar. Sinto a
bile subir à garganta bem no instante em que meus olhos o localizam perto da porta.
O professor se ocupa servindo whisky em um copo, mas se vira ao ouvir meus passos. Seu
cabelo está mais despenteado do que me lembro, e alguns botões da camisa foram abertos,
expondo uma parte de seu peito.
— Desculpe a demora, não quis te fazer esperar…
— Estou indo embora — interrompo, desviando o olhar dele.
Aproveito para procurar minhas sandálias perdidas.
— Indo embora? Mas nem começamos ainda. Você estava curtindo tanto.
Edgar se aproxima de mim até estarmos com os corpos quase encostados, o que me força a
jogar a cabeça para trás para olhá-lo nos olhos.
Consigo sentir o álcool em seu hálito, e meu estômago se revira de repulsa. Sem pensar duas
vezes, empurro seu peito e restabeleço a distância entre nós.
— Não estava curtindo porra nenhuma! — sibilo, a raiva borbulhando dentro de mim. —
Você estava se aproveitando de mim!
Edgar consegue se equilibrar sem deixar o copo cair de sua mão, mas seu rosto assume uma
expressão totalmente diferente.
— Me aproveitando de você? Que maluquice é essa? Você veio até aqui com seus próprios
pés. — Ele estreita os olhos como se estivesse me enxergando pela primeira vez. — Aceitou meu
convite sem se queixar e me usou como ponte. Por que esse drama de repente?
— Eu ter aceitado seus convites não significa que quero ter um caso com você — cuspo,
recuando mais alguns passos.
Só paro quando sinto meu calcanhar esbarrar em algo.
Edgar me segue, mais uma vez aniquilando o espaço entre nós. Seus movimentos são
calculados e predatórios, com o único objetivo de me encurralar.
— Está falando sério? — questiona ele, largando o copo de vidro em cima do móvel em que
tropecei. — Eu vejo como você me olha, Sienna. Você usa esses vestidos para mim. Quer me
impressionar na sala de aula e fora dela. Sei exatamente o que você está querendo de mim.
Presa contra a parede e o corpo do professor, sinto o medo sobrepujar a raiva. Ele nunca vai
me deixar sair daqui sem oferecer resistência.
Viro o rosto quando Edgar tenta me beijar, e com uma mão, alcanço o copo atrás de mim.
O barulho de vidro se partindo ressoa pelo quarto quando o quebro contra a lateral da cabeça
de Edgar, lançando cacos de vidro e whisky em todas as direções.
O professor cambaleia para trás, imediatamente cobrindo a região atingida com as mãos.
— Vagabunda de merda! — esbraveja, fazendo meu coração chegar à garganta.
Aproveito a chance para sair correndo, mas não dou quatro passos antes de ser agarrada com
brutalidade pelo braço e jogada contra a parede tão bruscamente que perco o fôlego.
A dor na minha espinha me cega por um longo instante.
— Você cometeu um erro grave, sua puta estúpida.
Edgar fecha as duas mãos ao redor do meu pescoço. Me contorço e chuto compulsivamente,
usando os braços para afastá-lo, mas ele é mais forte e consegue me dominar sem muito esforço.
Incapaz de respirar, engasgo repetidas vezes, sentindo minha visão escurecer de forma
assustadoramente rápida.
O aperto em minha garganta só aumenta, e quando enfim percebo que é assim que vou
morrer, não importa que regras céu e inferno tenham criado, as mãos se vão, liberando passagem
para o oxigênio que me falta.
Caio no chão em meio a uma crise de tosse violenta. Não sou capaz de ver com clareza o que
fez Edgar me soltar, mas ouço os bramidos do professor e um baque surdo de algo sendo jogado
no chão.
Ao levantar a cabeça um pouco mais, tenho um vislumbre de Kai se debruçando sobre o corpo
caído do professor, que agora se debate em silêncio.
A mão do demônio se fecha contra a garganta de Edgar, e só isso parece ser o suficiente para
subjugar o professor.
— Eu estaria fazendo um favor ao mundo acabando com a sua raça aqui e agora — ouço Kai
dizer, a voz gélida, e percebo que nunca o achei tão ameaçador quanto nesse instante. — Mas
seria muito fácil para você e sem graça para mim. Em vez disso, vou te dar o que você merece.
Você não precisa estar morto para conhecer o inferno.
Afago minha garganta, metade aliviada por não estar mais sendo estrangulada, metade
apavorada com o que estou vendo.
O corpo de Edgar convulsiona no chão sob o domínio do demônio, que observa o homem
esmorecer abaixo dele com uma expressão de deleite. Por fim, os espasmos cessam por
completo.
Kai deixa a cabeça do professor tombar contra o assoalho e se levanta, voltando-se para mim.
Por pouco não volto a me engasgar. Instinto primitivo me manda fugir, mas engulo em seco e
me forço a encará-lo.
— O que você fez com ele? — Minha voz sai falha e rouca, mas consigo não tremer.
Kai chega mais perto e se curva sobre mim, me segurando com gentileza para me erguer do
chão.
Estremeço sob o toque dele, incapaz de esquecer a cena que acabei de assistir.
— Dei um novo brinquedo ao Devorador, minha serpente de estimação. O traste está nos
portões do inferno agora, mas também está aqui. Preso aos dois mundos, sofrendo em dobro —
explica, me ajudando a manter o equilíbrio.
— Ele vai voltar ao normal?
Não que eu esteja com pena de Edgar, espero mesmo que ele esteja sofrendo, mas preciso
saber se terei que voltar a lidar com o professor em um futuro próximo.
Duvido que ele vá esquecer essa briga, e é quase garantido que, se não puder acabar com a
minha vida, ele acabará com a minha carreira, o que será tão doloroso quanto.
De canto de olho, enquanto me apoio no corpo firme de Kai, o vejo dar de ombros.
— Talvez, se eu convencer o Devorador a largar o osso.
A visão do corpo inerte de Edgar não me causa nenhuma compaixão. Sendo bem sincera,
gosto do que vejo.
Ele não pode me fazer mal agora. Talvez nunca mais.
— Espero que sua serpente goste do brinquedo — digo.
Imagens de uma criatura infernal caçando o professor rodam na minha cabeça como um clipe.
São bastante satisfatórias.
— Você precisa sair daqui agora — Kai me arranca dos devaneios.
Ele tem razão. Se alguém aparecer, vai ser impossível explicar o que aconteceu aqui. Talvez
acreditassem em mim, mas ainda haveria consequências.
Não posso lidar com elas, principalmente porque não provoquei nada disso. Edgar selou o
próprio destino. Me recuso a compartilhar esse fardo com ele.
Começo a andar até a porta com a ajuda de Kai, mas escuto a maçaneta girar antes mesmo de
vê-la.
Congelo no lugar, com o coração indo parar na boca.
A porta se abre, revelando a silhueta do outro lado.
Diana.
Sinto minha visão embotar e escurecer nos cantos.
Estou tão fodida.
A esposa de Edgar olha para mim primeiro. Nos meus olhos, mas, sobretudo, para o meu
pescoço. A visão não deve ser agradável, porque ela engole em seco algumas vezes. Seu rosto
endurece antes mesmo de assimilar o resto da cena.
Quando Diana muda o foco para o marido no chão, minhas pernas enfraquecem. Sem Kai
para me segurar, teria sido muito mais difícil me manter de pé.
Pelo que parece uma eternidade, aguardo. Pelos gritos. Pela acusação que arruinará meu
futuro. Por um golpe que seja. Não tento escapar, pois sei que não há para onde fugir.
Diana sabe quem eu sou e sabe o que eu fiz. Logo, todos também saberão.
É assim que acaba? Era essa a vida medíocre da qual Kai queria me poupar? O inferno não
parece o pior dos destinos agora.
— Saia daqui.
O sussurro de Diana é tão distante que me pergunto se não o imaginei.
Meu olhar aflito procura o dela. O que ela está esperando para chamar ajuda?
Mas a mulher retribui meu olhar de forma sombria. Não sei interpretar a tempestade em seus
olhos.
Medo? Determinação? Raiva? Talvez seja tudo isso junto.
— Vá embora e não fale disso para ninguém, se você tem amor à sua vida — diz ela.
Não tenho outra reação além de pestanejar.
Devo ter entendido errado. Ela não…
— Depressa — Kai murmura ao meu lado, me puxando consigo.
Diana se afasta da porta para dar passagem a nós dois, e quando procuro por uma explicação
em seu rosto, ela desvia o olhar.
Nada mais faz sentido. Por que ela me diria para ir embora? Seu marido está tão bem quanto
morto. Ela deveria estar acabando comigo agora.
Deixo Kai me levar. Não sei aonde estamos indo, mas duvido que seja pior que esse lugar.
Espero pela perseguição o caminho todo, mas ela não vem.
Ninguém vem.
Nada acontece.
22: SIENNA
R.I.P 2 My Youth, The Neighbourhood

Certa vez, quando eu tinha dezesseis anos e o mundo parecia grande demais para o meu pouco
alcance, vovó me levou ao cinema e me fez ver um filme que eu nunca tinha ouvido falar.
Ela ficou sentada lá por duas horas, se certificando de que eu não pegaria no sono e me
ouvindo resmungar o tempo todo.
Eu não queria estar lá. Queria estar na minha cama, me debulhando em lágrimas por causa da
minha falta de sorte e de oportunidades. Eu estava convicta demais de que nunca me tornaria
uma atriz relevante.
Vovó me fez assistir até o final. Depois da última cena, enquanto os créditos rolavam, ela me
olhou de um jeito diferente e falou: Um dia, é você quem eu vou assistir nesse telão. E eu vou
dizer a todo mundo que você é minha neta. Nada nesse mundo pode segurar você, meu bem.
Você foi feita para realizar todos os seus sonhos.
Foi tudo o que ela disse.
E aí ela morreu.
Sem me assistir no telão. Sem ter dito a todo mundo o quanto eu a orgulhava.
Não sei onde ela está agora, se de alguma forma está esperando para me ver tornando meus
sonhos realidade. Só o que sei é que arruinei todas as chances que eu tinha disso acontecer um
dia.
Eu a matei pela segunda vez. Como pude fazer isso com ela?
— O que deu em você? — Ágata pergunta, aproximando sua cadeira da minha.
Pestanejo para minha amiga, ainda parcialmente em transe.
Ela não faz ideia.
Não preguei os olhos por um minuto sequer durante a noite. Em vez disso, me revirei na cama
por horas, com o estômago revolto e o pânico ameaçando me paralisar.
Vomitei um par de vezes e fiquei vários minutos embaixo da água fria do chuveiro, tentando
lembrar como se respira.
Kai teria me feito companhia, mas eu pedi para que me deixasse sozinha. Não quis que ele me
visse naquele estado. Teria tornado tudo pior.
— Como assim? — Minha boca está tão seca que o movimento da língua não parece mais
natural.
Agui franze os lábios, me observando com cautela.
— Está agitada hoje — diz ela.
Estou uma bagunça.
Esperar a noite toda por uma ligação ou uma visita da polícia não é tarefa fácil. O tempo
inteiro eu fiquei atenta aos ruídos do lado de fora do apartamento. Tinha certeza de que alguém
chegaria a qualquer momento, bateria à porta, e quando não tivesse resposta, a traria abaixo. A
espera foi a pior parte.
De alguma forma, consegui me arrastar para fora da cama hoje mais cedo e me vestir. Escolhi
uma blusa de gola alta que escondesse os hematomas no meu pescoço, e me obriguei a vir à
Academia. A agir normalmente, acima de suspeitas.
Se Diana ainda não contou à polícia o que aconteceu, não farei uma autodelação. Mas eu sei
que é só uma questão de tempo… Ela provavelmente está em choque. Vai cair em si logo, logo,
e quando isso acontecer, vou pagar o preço das minhas escolhas erradas. Vou desapontar vovó
outra vez.
— Estou pensando no meu discurso no casamento da minha mãe — minto. — Não quero
errar a mão.
Vou estar presa no dia do casamento? Minha mãe com certeza adiaria o evento. Mas aí já vou
estar morta. É o meu fim. E acaba da pior forma possível.
Agui afaga meu braço.
— É a sua mãe. Ela vai amar qualquer coisa que você disser.
Ela ainda vai me amar quando descobrir o que fiz?
Encaro a porta da sala onde estamos esperando a aula começar.
Eu poderia tentar fugir. Aproveitar o silêncio de Diana e ir para o mais longe que eu
conseguir. Não poderia ir para a casa de parentes ou amigos, teria que encontrar um lugar onde
ninguém me procurasse e eu pudesse me esconder.
Talvez mudar de aparência e pensar em um segundo nome. O país é grande, eles demorariam
anos para vasculhar cada canto. Mas eu não poderia avisar a ninguém, nem mesmo a minha mãe.
Teria que sumir sem deixar vestígios.
Se eu me apressar, ainda posso…
A porta se abre de repente.
Meu coração sobe à garganta no mesmo instante.
São eles. Chegaram para me levar embora.
Sinto muito, vovó.
Só que quem passa pelo arco não está fardado e nem carrega armas. É simplesmente… a
diretora da Academia.
Ela sabe? Veio pedir que eu a acompanhe para um lugar onde eu possa ser detida sem causar
um escândalo? Os policiais estão lá fora esperando? Quão rápido eu vou ter que correr se quiser
fugir agora?
Ao longo da sala, cochichos se espalham como fogo no palheiro.
Ágata me dá um olhar confuso, mas me forço a permanecer sentada enquanto a mulher se
posiciona no centro.
Respire. Respire!
— Bom dia a todos — cumprimenta a mulher, depois de conquistar a atenção de toda a turma.
— Tenho alguns avisos a dar.
Ela sabe. Ela vai contar o que fiz a todos eles. Nem mesmo Ágata vai acreditar na minha
versão.
Cravo as unhas na palma das mãos e deixo que a dor me distraia do que vem a seguir.
— Essa manhã, recebi a notícia de que o professor Edgar Costacurta precisará passar um
tempo afastado da Academia por motivos de saúde. Sua esposa, Diana, me contou pessoalmente
sobre a situação, e também pediu que um professor substituto fosse alocado para a turma de
vocês, a fim de não prejudicar o andamento do semestre e da peça em que estão trabalhando.
O quê?
O olhar estarrecido que Ágata me lança não chega nem perto do choque que sinto.
— Vocês seguirão a programação normal com o substituto, e caso Edgar retorne nesse meio
tempo, veremos o que podemos fazer. — Uma mão é erguida no canto da sala. — Pois não?
— Podemos saber o que aconteceu com o professor? — A pergunta vem de uma caloura.
A diretora cruza as mãos atrás das costas antes de responder.
— A informação que tenho é que o estado dele precisa de atenção e cuidado. A família pediu
privacidade, então isso é tudo que saberemos por agora. — Outra mão voa no ar. Minha cabeça
gira. — Pode falar.
Um aluno do último ano se endireita na cadeira.
— A peça ainda terá a assinatura dele?
— Sim, nada muda, a não ser a presença dele nos ensaios. Como ainda não definimos quem
será o substituto ou a substituta, vocês ficam liberados da aula de hoje. Fiquem à vontade para
repassar o que já ensaiaram até agora, se preferirem. Até mais.
A mulher começa a se retirar da sala tão de repente quanto chegou.
Ágata confunde meu estado catatônico com o sentimento do resto da turma.
— Mas que merda?! — Ela balança a cabeça, atordoada.
De algum ponto atrás de nós, ouço Yuri assobiar.
— Ele estava perfeitamente bem na sexta-feira, gente!
Rubi estoura uma bola de chiclete à minha esquerda.
— Aposto que é cirrose. O homem bebe como se não houvesse amanhã — comenta como se
não estivesse surpresa.
Sinto que estou perto de vomitar de novo. Preciso de ar. Preciso sair daqui.
Me levanto depressa, colocando a alça da mochila no ombro.
Agui franze a testa para mim.
— Vou para casa adiantar uns trabalhos — digo de forma mecânica.
— Não quer ficar na biblioteca? — pergunta ela.
Sei que seria o mais recomendado a fazer para não chamar atenção, mas sou incapaz de ficar
aqui por mais tempo.
— Foco melhor quando estou sozinha — respondo. — Te mando mensagem depois.
Fujo da sala sem esperar pelos meus amigos. Talvez pensem que estou abalada porque
gostava do professor. Não me importo que pensem isso. Se servir de justificativa para o meu
comportamento, vou usar como pretexto.
Não há policiais quando passo pela porta. A diretora tampouco está à vista. No corredor, a
Academia é a mais perfeita imagem da ordem. Ninguém está aqui por mim. Não estou sendo
punida pelo crime de Edgar.
— Sienna? Tem um minuto?
Me viro tão bruscamente que a mochila quase cai no chão.
É apenas Liang.
— Ah, oi. — Minha voz sai estrangulada.
Meu par abre um sorriso nervoso que faz seus olhos repuxarem ainda mais, e enfia as mãos
nos bolsos da calça.
— Você está bem? Não soube de você desde sexta — diz. — Fiquei preocupado, mas o Yuri
me disse que você tinha ido embora de táxi. Pensei em te mandar mensagem, mas não quis ser
um pé no saco.
É apavorante como a noite de sexta-feira se tornou o menor dos meus problemas. A impressão
que tenho é de que tudo estava perfeitamente bem antes de ontem.
— Estou ótima. — Começo a andar com ele ao meu lado. — E você não seria um pé no saco.
Liang me olha de canto de olho.
— Fiquei pensando e acho que a gente podia sair juntos essa semana, o que acha?
Sair? Não esperava ser convidada para algo tão trivial no dia de hoje.
Passo pelas portas do pátio onde deixei o carro.
— Pode ser — digo, porque não consigo pensar numa desculpa agora.
Posso refletir sobre isso depois.
Liang balança a cabeça, animado. Ele se vira para mim, mas minha atenção é capturada por
algo adiante.
Apoiado contra a lataria do meu carro, um demônio descalço e de olhos azuis me observa.
Parece calmo, sem um pingo de arrependimento remanescente da noite passada. A visão é…
reconfortante. Meu estômago vibra no mesmo instante.
— Qual dia você prefere? — Liang volta a falar, alheio aos arredores.
— Eu… — Definitivamente não consigo fazer isso agora. — Olha, a gente pode se falar
depois? Preciso resolver uma coisa.
Meu colega abaixa os olhos para o chão.
Sou uma pessoa horrível.
— Entendi. Tudo bem — diz, ainda com um meio sorriso.
Com uma pontada de culpa, aceno brevemente para ele.
— Te vejo por aí.
E então praticamente corro para o carro.
Kai me vê chegar mais perto, mas não move um músculo até eu dar a volta no carro e abrir
minha porta.
Trocamos um olhar cheio de coisas não ditas por cima do teto antes de entrarmos.
— Ela não contou — falo no segundo em que fecho a porta.
Da pouca distância entre um banco e outro, o escrutínio de Kai tem ainda mais efeitos sobre
mim.
— Isso é bom, não é?
Mastigo o lábio inferior.
— Não entendo. Por que ela esconderia a verdade? Ela me viu lá, sabe que fui eu.
Não saber é a verdadeira tortura. Meu futuro está nas mãos de Diana, e eu não faço ideia do
que ela tem em mente.
— Ela é mãe agora. — O comentário é inesperado, mas me lembra desse detalhe importante
que acabei esquecendo. — Talvez isso tenha feito ela repensar algumas coisas.
De fato, Diana agora está esperando um filho. É possível que não queira provocar um
escândalo na família para poupar a criança no futuro?
Porque com certeza haveria acusações dos dois lados. Eu faria questão de dizer a quem
quisesse ouvir quem realmente era Edgar Costacurta e o que ele tentou fazer comigo. Mesmo que
ninguém ficasse do meu lado, a dúvida estaria sempre lá. Assombraria a família de Diana por
anos.
A outra possibilidade é mais improvável. Nela, Diana enfim reconheceu o caráter do marido e
aproveitou para se livrar dele antes que seu filho tivesse a chance de descobrir por si só. A
criança não vai ter o pai em sua vida, mas nem sempre isso é algo ruim. Falo por experiência
própria.
O fato é que não a conheço o suficiente para deduzir seus motivos. Mas, sejam lá quais forem
eles, não vou me opor a nenhum se isso significar que serei deixada em paz.
Sou arrancada dos pensamentos quando Kai estende a mão para ligar o ar-condicionado do
carro.
Algo está faltando.
— O que aconteceu com o seu anel? — pergunto, enfim notando sua ausência.
Kai dá de ombros.
— Dei uma folga ao Devorador.
Mas eu não acredito nele. Não o vi sem o anel desde que voltou para a minha vida. Ele não o
removeria sem um motivo realmente significativo. Ainda mais depois de…
Meus olhos se arregalam quando as peças se encaixam.
— Eles tiraram ele de você?! — me sobressalto. — Por ter quebrado a regra e interferido?
Não parei para pensar muito sobre o que a interferência de Kai traria de consequências para
ele. Acho que me acostumei a ser a única com algo em jogo, porque a ideia de mais alguém ser
punido não me ocorreu até agora. Que egoísta da minha parte.
Ele inspira como se estivesse pronto para mudar de assunto.
— Não se preocupe — diz. — Eu achei ele uma vez, vou achar de novo.
Fico espantada por Kai não parecer nem um pouco aborrecido. Como ele pode não estar?
Perdeu algo que era importante para ele, e a troco de quê? Me ajudar depois de eu tê-lo traído
poucas horas antes? O que ganhou com isso, além de uma punição?
Em seu lugar, eu estaria rangendo os dentes e chutando pessoas na rua.
— Por que fez isso? — murmuro, porque não faz nenhum sentido. — Quebrar as regras para
me ajudar, sabendo das consequências.
Eu provavelmente estaria em algum lugar entre a vida e a morte agora, se ele não tivesse
intervido, mas isso não é da conta dele. Ele poderia muito bem ter deixado o destino seguir seu
curso, e de quebra ainda garantiria a perdição da minha alma daqui a poucas semanas.
— Não sou muito bom com regras — responde em um tom displicente.
Balanço a cabeça, longe de estar convencida. Tem que existir um motivo.
— Dessa vez você só tinha a perder. Por quê? — insisto, travando nossos olhares.
Kai me encara por vários instantes. Vejo a batalha interna acontecendo dentro dele, decidindo
se fala a verdade ou arranja outra desculpa.
Por fim, com um movimento do pomo-de-adão, seu olhar muda para o meu pescoço coberto.
— Ele estava te machucando — diz, sério, como se pudesse enxergar as marcas roxas através
do tecido. — Ninguém vai ferir você enquanto eu estiver por perto.
Fito o demônio ao meu lado sem ter ideia do que responder. Eu esperava muitos motivos, mas
jamais esse.
Enquanto o encaro, com o coração trovejando no peito, sinto o estrago sendo feito sem que eu
possa fazer nada para impedir.
Primeiro, o alvoroço no meu baixo ventre. Depois, a culpa opressora pelo segredo dele que
vendi ao anjo.
Por que ele tinha que me dizer essas coisas? Não sabe o potencial destruidor que elas têm?
Após uma pausa considerável, onde não consigo pensar em mais nada além do que ele disse, e
no quanto tornam tudo mais doloroso, respiro fundo e me obrigo a trazer a conversa a um terreno
mais estável.
Limpo a garganta.
— Você está literalmente empenhado em ceifar minha vida, então… — Tento brincar, a
despeito das palpitações internas.
E é bom que eu lembre que, apesar de ter me salvado de Edgar, Kai ainda tem um objetivo
comigo.
— São coisas completamente diferentes — ele retruca, sem deixar espaço para discussão. —
Eu arrancaria meus olhos antes de te fazer algum mal.
Ai. Ele sabe onde dói e não tem pena. Não tenho a menor resistência a esses ataques.
Estou tão ferrada.
— Obrigada — consigo dizer o que precisa ser dito.
Parece tão pouco perto do que estou sentindo, e tão falso depois do que fiz… Mas minha
gratidão por ter me ajudado é a única coisa que posso oferecer a ele. Não posso me esquecer
disso.
Mesmo que hoje a única coisa que me ajudaria era esquecer.
23: KAI
Play with Fire, Sam Tinnesz

Não gosto de torturas tanto quanto gostava no passado. Antes, dependendo do quanto alguém me
desagradasse, conduzir sua tortura era um passatempo bem-vindo. Mas agora a sujeira dos
procedimentos me incomoda.
O sangue que endurece e cria uma crosta na pele, o mal cheiro das feridas abertas há dias…
Não me sinto muito melhor que uma besta quando preciso recorrer a esses métodos. Mas nem
sempre posso evitá-los.
— Nanzi, Nanzi… — Largo o alicate em cima da mesa de instrumentos. — Sei que acha que
eu vou cansar em algum momento, mas está vendo essa plateia assistindo? Cada um deles ficará
mais do que feliz em cuidar de você enquanto eu descanso. Por que não me responde logo e vai
tratar essas feridas antes que apodreçam?
É realmente uma chateação. Alguns demônios perdem a noção de até onde devem ir para
guardar um segredo. Acham que preferem morrer antes de abrir a boca. E quando o alvo é tão
teimoso quanto Nanzi está sendo agora, sou forçado a apelar para medidas mais extremas.
Tão disposto a contribuir quanto esteve desde sua captura, duas noites atrás, Nanzi range os
dentes e suporta a dor em silêncio.
É um dos mais obstinados com quem já lidei até hoje. Não é à toa que Mammon confia nele
para manter o sigilo de seus planos sórdidos.
Não são muitos os demônios que compõem o destacamento especial do Comandante. Além de
Gehenna e Lorchi, Nanzi é o único com acesso irrestrito às missões secretas que Mammon os
incube de realizar. Juntos, eles são o tripé que sustenta os experimentos do Príncipe da
Enganação.
Mas Nanzi era o alvo mais garantido no momento. Ele é leal a Mammon, disso não tenho
dúvidas. Só que sua lealdade não é nem de longe exclusiva. Descobri isso recentemente.
Aceitando que não vou ter nenhuma resposta dele indo pelo caminho mais fácil, enfim puxo a
última carta da manga.
— Tragam a infeliz. — A ordem é para três dos novos membros do clã, recrutados por
Baelgrim há pouco tempo, que assistem a cena enquanto esperam uma chance de se fazerem
úteis.
Atado à cadeira no centro da sala, Nanzi estreita os olhos e os alterna entre mim e Bael, que o
observa de braços cruzados e um sorriso diabólico.
Ele não faz ideia. Jura que seu segredo pessoal está a salvo, afinal, conseguiu guardá-lo por
todos esses anos. Obviamente que um incompetente como eu não seria capaz de descobrir o que
ele esconde…
— Nanzi! — O berro vem sem aviso.
O sorriso de Baelgrim se transforma em uma expressão de completo deleite. Não me divirto
tanto quanto meu braço direito, mas pretendo usar meus recursos sem hesitar.
Percebendo quem os soldados estão carregando para esse lado da sala, o rosto de Nanzi se
enche de desespero e intenções homicidas.
— Não! Solte ela, seu maldito — esbraveja o demônio, se debatendo inutilmente contra as
amarras.
Arrasto os pés no assoalho enquanto minha segunda captura é colocada de joelhos na frente
do parceiro e imobilizada por correntes presas ao teto.
É uma Caluniadora, e seu rosto está uma bagunça de suor, cabelos e sangue escorrendo de
alguns poucos cortes.
— Você a escondeu muito bem, Nanzi — comento, passando pelos membros do clã, que se
amontoam no canto da minha câmara particular para ver o que acontecerá em seguida. —
Demônio nenhum sabia da existência de uma amante sua.
Ele a manteve fora de cena por mais tempo do que pensei ser possível. Amantes são
especialmente difíceis de serem escondidas, porque geralmente são o primeiro alvo de um
inimigo.
Eu não a teria descoberto se ela não tivesse começado a fazer perguntas por aí depois que seu
parceiro sumiu, o que chamou a atenção de Valrana, minha recém-recrutada espiã, que
prontamente nos alertou da reviravolta.
A Caluniadora foi descuidada, confiando demais na imunidade que o tempo escondida a
emprestou. Ou talvez tenha deixado de se importar com os riscos quando percebeu que Nanzi
não voltaria.
— Você vai ser esmagado, desgraçado! Vai desejar ter caído num ninho de harpias quando ele
acabar com você.
Aproveito seu rompante para começar de novo.
— Me diga: Mammon está ou não criando Artefatos com magia escura?
Pouso uma mão no ombro da Caluniadora.
Ela se rebela para se livrar do meu toque, ao mesmo tempo em que levanta a cabeça para
encarar o parceiro.
— Não fale nada, Nanzi — diz ela, pouco impressionada com o tratamento que recebeu.
Como se recarregado pela visão da amante, Nanzi cospe no chão aos meus pés.
— Vá se foder.
Ele realmente precisa saber seus limites. Vai descobrir que algumas lutas não valem a pena, e
da pior forma possível.
A faca está na minha mão antes mesmo que ele se dê conta do que estou fazendo.
Desprevenida, a Caluniadora não tem tempo de lutar contra quando forço sua mandíbula a se
abrir e deslizo a lâmina na base da língua.
O órgão cai no chão com um ruído molhado e parte do sangue respinga na minha roupa. O
que sobrou vai insistir em descer pela garganta dela até sufocá-la.
Ela tomba a cabeça para frente na tentativa de se impedir de engasgar.
— Sansha! — vocifera Nanzi, as veias saltando em sua testa vermelha. — Seu filho da puta,
vou destruir você!
Puxo a cabeça de Sansha de volta, movendo a ponta da lâmina para outro ponto em seu rosto.
— Acho que os olhos também, assim ela para de chorar tanto — digo, desafiando-o a pagar
para ver.
Não quero fazer isso, mas farei se ele não colaborar. Vamos lá, Nanzi.
Sansha começa a engasgar com o próprio sangue.
— Pare! Não toque nela! Vou te dizer o que quer saber.
Bom garoto.
Deixo que ela volte a cuspir no chão e me aproximo mais do demônio.
— Para o caso de tentar me enganar, tenho outro soldado na mesma situação que você. —
Curvo o tronco para nivelar nossos olhares. — Se as respostas de vocês forem diferentes, vou
ficar muito zangado, Nanzi. Não me faça arrancar esses lindos olhos que ela tem.
A parte do outro soldado é mentira. Nanzi é o meu único caminho para os planos de Mammon
nesse momento. É por isso que preciso dessas respostas. Mas quero fazê-lo pensar duas vezes
antes de tentar me enganar.
Ele mostra os dentes em uma demonstração de desprezo, porém sei que não vai subestimar
minha ameaça. Seria cometer o mesmo erro duas vezes seguidas.
— Não há Artefato nenhum — diz ele por fim. — Ele está criando soldados com magia
escura.
A sala mergulha no silêncio por um instante antes de Bael se manifestar.
— Isso é impossível — diz ele, ecoando o pensamento de quase todos nessa sala. — Só
matéria inanimada pode suportar essa magia.
É isso que sempre ouvimos. A magia escura, além de ser extremamente imprevisível e
danosa, só se estabelece em objetos, nunca em seres que andem, pensem ou falem. Nenhum
demônio até hoje serviu de receptáculo para uma força tão instável. O que Nanzi está alegando
contradiz tudo o que até então achávamos saber com certeza.
Mas não seria a primeira vez que Mammon demonstra estar atrás de coisas sem precedentes.
O fogo do Poço também não podia ser extraído, e lá está ele.
— Era disso que Lorchi estava se gabando quando mencionou um guerreiro de verdade —
divago, relembrando a forma como Lorchi encheu o peito para dizer que logo eu seria nada aos
olhos do Comandante. — Achei que falava dele mesmo.
Ele, mais do que ninguém, deve estar fascinado com a ideia de um exército que não precisa
canalizar poder de lugar nenhum. Quantas guerras ele não poderá convencer Mammon a travar
se essas armas forem reais?
Para além da Cidadela, o inferno inteiro ficaria sujeito ao jugo de um poder tão incomparável.
O rosto marcado por cicatrizes de Gehenna me vem à mente. Ela é parte disso. Não me
admira que tenha ficado tão impressionada com o que descobriu.
— Quantos já foram criados?
Fito os olhos fundos do demônio.
Ele aperta os lábios, ameaçando voltar a resistir. Sem precisar que eu peça, Bael sai de onde
está e se posiciona ao lado de Sansha.
A Caluniadora se encolhe instintivamente, de alguma forma sabendo que ele será ainda pior
que eu.
— Quantos, Nanzi? — repito, vendo a raiva e o medo brigando por espaço em suas feições.
— Centenas — revela, decidindo não testar a pouca sorte. — O suficiente para subjugar
qualquer domínio que Mammon queira.
É claro que sim. Não seria Mammon se não fosse espalhafatoso. Maldito ganancioso.
Murmúrios percorrem o ambiente quando o clã entende a gravidade do que temos em mãos.
Tão pálido quanto sua pele marrom permite, Baelgrim passa a mão no rosto.
— E onde eles estão sendo escondidos? — pergunta antes que eu tenha a chance.
— Aqui. Não sei o local exato, mas sei que estão na Cidadela.
Tenho dificuldade de acreditar nessa parte.
— Não sabe o local onde o trabalho de toda sua existência está sendo mantido?
Estreito os olhos para ele, atento a qualquer tentativa de blefe.
Nanzi bufa.
— O Comandante escolhe a dedo quem tem acesso aos experimentos que fazemos. Não fique
surpreso se capturar e torturar todo o nosso destacamento, e ainda assim não conseguir as
informações que procura.
Eu tinha imaginado que Nanzi estaria inteiramente a par de todo o esquema, o conhecendo de
cabo a rabo, mas agora que sei do que se trata isso que facilmente pode ser o plano mais
ambicioso de Mammon, entendo por que o Comandante não iria querer manter todos os ovos
numa única cesta.
Especialmente se ele souber da existência de Sansha e do risco que Nanzi corre estando com
ela.
Mas alguém fora dessas paredes sabe.
— Dois palpites. — Bael lê minha mente, como acontece com frequência. — Lorchi e
Gehenna.
Não tenho dúvida nenhuma disso.
Embora não tenha gostado do que ouvi, fico aliviado por ter chegado ao fim das sessões de
tortura.
Nanzi foi útil ao que eu esperava que fosse. Posso finalmente livrá-lo do tormento.
— Sabe, Nanzi — começo, limpando a faca na calça antes de guardá-la na bainha lateral. —
Eu até te daria uma chance de mudar de lado antes de Mammon cair. Afinal, o que sobraria de
você quando o Comandante soubesse da sua traição? Mas preciso enviar uma mensagem clara o
bastante para que todos entendam. Infelizmente para você e felizmente para mim, seu trabalho é
nesse momento o ponto mais fraco de Mammon. É onde devo atingi-lo.
Sei que ele não esperava realmente sair vivo daqui. A partir do momento em que o capturei
debaixo da vigília do Comandante, ele soube que eu nunca o deixaria escapar. Seria um tiro no
pé. A questão sempre foi quando sua hora chegaria, e não se.
— Deixe Sansha ir. Eu dei o que você queria, não dei?
Ele soa resignado. O sangue que goteja de suas feridas já formou uma poça no chão a essa
altura.
— Eu poderia. — Balanço a cabeça em concordância. — Ela com certeza está mais simpática
agora que não tem muito o que falar. Mas eu seria um idiota se soltasse as correntes do inimigo
logo depois de forjá-lo. O que posso prometer é uma morte rápida para ambos, independente do
que aconteça a vocês depois.
É o melhor que posso oferecer a eles sem pôr tudo a perder. Pode não ser o bastante, mas fará
diferença quando estiverem sentindo na pele. Não preciso ser um bárbaro o tempo todo.
— Que toda a ira dos cinco infernos recaia sobre você como uma maldição incurável — entoa
o demônio, em uma fúria quieta. — Seu coração será arrancado do peito antes de a coroa descer
sobre a sua cabeça.
Já fui amaldiçoado antes. Para cada alma que ceifei, um infortúnio foi jogado em meu
caminho. Mas é algo inevitável quando se vive no inferno. Maldições não assustam quem já vive
rodeado por elas.
— Levem os dois — digo aos soldados em posição. — Sejam misericordiosos na morte, mas
carniceiros depois dela. Quero os corpos expostos bem à vista.
Até o final dessa noite, Basom e seu clã receberão boas notícias de Malphas, nossa
mensageira, e terão motivos para comemorar. E todo o resto da Cidadela receberá o recado.
Me dirijo aos meus companheiros de motim. Estudo o rosto de cada um deles e deixo que
saibam que eu estou ciente do que iremos enfrentar.
— Fizemos uma descoberta e tanto hoje. Vou pensar no que fazer com ela. Estão dispensados.
Um por um, o clã se dispersa para fora da câmara, deixando Bael e eu a sós.
— O filho da puta não está brincando — diz ele, quando o último membro sai e sela a porta,
desabando no único assento disponível além da cadeira de tortura. — Soldados com magia nas
veias…
Ando até a mesa que não está coberta de objetos ensanguentados e começo a servir um pouco
de licor em duas taças. Depois de hoje, qualquer distração passageira é bem-vinda.
— Ele me contou sobre as tropas enviadas ao Poço para tentar extrair fogo — comento, dando
voz à suspeita martelando em minha cabeça. — Acidentalmente deixou que Abaddon soubesse
disso. Sabe onde quero chegar, não é?
Bael estala a língua.
— Uma cortina de fumaça, é claro. — Compreende sem esforço. — As tropas no Poço
causariam alvoroço suficiente entre os príncipes para tirar a atenção deles de outros assuntos.
— É por isso que ele abriu margem para boatos. Está contando com eles.
Agora, sim, essa parte da história faz sentido.
Entrego uma taça ao meu estrategista, que bebe um gole no mesmo instante. Não sou o único
precisando clarear as ideias depois de tantas revelações.
— Tanta informação valiosa… se você fosse um espião, seria o demônio mais rico dos cinco
infernos — diz Bael, passando os dedos pelo cabelo solto. — Tem ideia do que o Reduto das
Sombras poderia fazer com essas informações?
Eles começariam uma guerra sem precedentes, onde não só os principados agiriam, mas
também o próprio Lúcifer seria obrigado a intervir. O inferno inteiro seria colocado na balança.
Me aproximo de uma das janelas encobertas e observo as águas escuras do Mar da Desolação
no horizonte além da Cidadela.
— Radamanto tentou uma aproximação na última vez que nos vimos — revelo, os eventos
daquela noite ainda frescos na memória. — Outro que definitivamente tem seus próprios planos
e segredos.
Bael assobia.
— E o que disse a ele?
— O que acha? — Olho-o por cima do ombro. — Se a intenção fosse trocar seis por meia
dúzia, eu consideraria me aliar a um deles.
Mas não é somente pela queda de Mammon que estou aqui. Radamanto e sua Corte só seriam
úteis até certo ponto. Duvido que concordariam com o resto do meu plano.
— É isso. — Ele abre os braços como se acabasse de fazer uma grande descoberta. — Você
está chegando perto, irmão. Precisa se blindar e abrir vantagem de todas as formas que puder a
partir de agora. Você perdeu o Devorador por um motivo idiota. Não pode mais cometer esse
tipo de deslize.
É claro que ele traria esse assunto à tona de novo. Bael não perde uma oportunidade de pegar
no meu pé quando acha que estou errado. Não importa quantas vezes eu tenha dito que isso é um
problema meu, ele sempre vai arranjar um jeito de me repreender pelo que fiz, como se bancar o
irmão mais velho fosse mais forte que ele.
Mas eu perderia o Devorador quantas vezes fosse preciso para impedir aquele desgraçado de
fazer mal a Sienna. Por mais que o Artefato fosse útil e tenha conquistado um espaço dentro de
mim, perdê-lo como punição por ter mandado o infeliz para onde merece me parece um preço
justo.
Meu único arrependimento é não ter me livrado do desgraçado já no primeiro momento,
quando se aproximou enquanto ela não fazia ideia do que estava acontecendo. Antes de suas
mãos desprezíveis deixarem aquelas marcas na pele dela.
Bael acha que foi um erro, mas a verdade é que eu voltaria no tempo apenas para fazer tudo
de novo, com mais requintes de crueldade dessa vez.
— Acha que preciso dele para derrubar Mammon?
Esvazio minha taça em um único gole e volto a caminhar pela sala.
— O que me preocupa não é a perda em si. É o motivo. Você não é o anjo da guarda da garota
e sabe muito bem disso. Agir como tal não é inteligente.
Não sou um maldito anjo da guarda, mas fico feliz por isso. O que o anjo fez quando ela mais
precisou? Não, eu prefiro ser o demônio que a atormenta, se isso significar que estarei lá por ela.
Jogo a taça vazia em cima da mesa com os instrumentos maculados.
— Acabou o sermão?
Bael fecha a cara, mas não resmunga de volta.
— Ótimo — digo, passando por ele no caminho até a porta. — Agora pode arranjar algo útil
para fazer.
24: SIENNA
After Dark, Mr.Kitty

Em casa, a primeira coisa que faço é correr para debaixo do chuveiro. Ainda não sinto que
consegui limpar o toque dele. Não importa o quanto eu arranhe minha pele, ainda sinto
resquícios de Edgar em mim.
Fico sob a água até meus dentes baterem de frio, depois visto um roupão e começo a preparar
algo para comer. Não como nada desde a festa, e considerando a quantidade de vezes que
vomitei durante a noite, acho que é seguro dizer que estou morrendo de fome.
Estou terminando de levar uma assadeira de macarrão cremoso ao forno quando ouço um
arranhar de garganta. Me viro, esperando encontrar Thalia.
O anjo está em pé na entrada da cozinha, segurando outro copo de chá verde de forma casual.
Com as bochechas quentes de vergonha, abro a boca para falar, mas ela tem a mesma ideia.
— Eu devia ter te ouvido…
— Desculpa por ter agido daquela forma…
Nos encaramos em silêncio, ambas surpresas com o que ouvimos uma da outra.
Eu não esperava um pedido de desculpas de Thalia depois de tudo o que aconteceu.
— Não, você tinha razão — me adianto, abraçando meu próprio corpo. — Não sou confiável.
O fato de eu ter cedido a um impulso estúpido por pura birra prova isso. Devia ter respeitado seu
conselho e ficado longe dele.
Thalia suspira de maneira penosa antes de responder.
— Não vou te culpar pelo que ele fez. Você não tinha como saber quão errado as coisas
dariam. Sinto muito que tenha descoberto da pior forma.
De fato, eu não esperava que a coisa toda chegasse ao ponto que chegou. Mas, em retrospecto,
eu devia ter interpretado os alertas vermelhos da forma que mereciam. Pagar para ver foi
ingenuidade, e essa palavra não combina comigo.
— O que aconteceu lá, com ele… eu não planejei nada daquilo — digo, porque preciso ter
certeza de que ela entenderá. — Kai… o demônio interferiu e pagou o preço. Isso quer dizer que
também serei julgada?
Posso ter sido a causa do que aconteceu a Edgar, mas Kai agiu por conta própria quando
resolveu me ajudar. Sou grata a ele, porém não posso ser responsabilizada por quase ter sido
estrangulada, posso?
— Você não se envolveu ativamente no que aconteceu com o homem, nem sugeriu ou pediu
que o demônio ferisse ele, então o inferno não poderá usar isso contra você — diz Thalia, tirando
um peso enorme dos meus ombros.
Mastigo o lábio inferior, sem conseguir parar de pensar em certas coisas…
— O que teria acontecido se Kai não tivesse intervido? — A pergunta sai antes que eu me
impeça. — Sei que não posso morrer antes do julgamento, mas…
— Você não está imune de situações críticas e das sequelas que elas trazem. Imagino que não
esteja se sentindo muito bem depois de tudo que aconteceu. Se quiser conversar sobre isso…
Ela se cala quando balanço a cabeça com veemência.
Não quero conversar sobre nada disso. Algo irreparável podia ter acontecido comigo naquele
quarto, como eu já imaginava. O mais assustador nisso tudo é a percepção de que morrer nem
sempre é o pior destino.
O pacto do meu pai me protegeu da morte por vinte e um anos, mas não pode me proteger das
calamidades que fazem a morte parecer o menor dos problemas.
— Fui muito dura com você no nosso último encontro — Thalia volta a falar, meio sem jeito.
— Não estou aqui para te julgar, você já tem juízes demais. Me deixei levar por uma comoção
sem sentido e não me orgulho disso.
Ela está mesmo se desculpando por ontem. Um anjo. Se redimindo com alguém como eu.
Começo a achar que ela estava certa desde o início.
— Não acha mais que sou uma má influência até para um anjo? — provoco, parte brincando,
parte falando sério.
O anjo balança a cabeça em negação.
— Não deveria existir nenhuma má influência para a minha espécie. Não somos como os
humanos, que precisam se policiar para andar na linha. Fomos feitos para manter todo o resto na
linha. — Ela me olha antes de continuar. — É só que, às vezes, especialmente quando estou com
você, sinto e penso coisas que não cabem a mim. Não sou empática, mas sinto empatia. Sou
racional, mas perco a cabeça discutindo. Não sou humana, mas, por um instante, é como se eu
fosse.
— Não parece tão ruim, para ser sincera — digo, embora provavelmente não seja o que ela
quer ouvir.
— Está se esquecendo que a raiz de todo o mal foi um anjo que não quis agir como um.
Nunca parei para pensar em como Lúcifer e seu bando devem ter subido a régua moral dos
anjos ao caírem.
Isso explica porque Thalia é sempre tão rígida e impenetrável. Talvez, além de provar a si
mesma que é um bom anjo, precise mostrar aos outros também, de forma que não haja dúvidas.
— Achei que os anjos já tinham parado de cair — murmuro, lembrando das histórias bíblicas.
Uma sombra passa pelo rosto de Thalia depois disso, mas vai embora rápido demais. Talvez
tenha sido apenas o jogo de luzes.
— Não pararam — é tudo o que ela diz.
Uma ruga se forma em minha testa, mas um apito atrás de mim me lembra do macarrão no
forno. Apanho as luvas e começo a tirar a assadeira lá de dentro.
— Pode não parecer, mas não sou um monstro. Não quero te prejudicar, e não faço besteira
porque quero. Estou tentando, mas não é fácil acertar.
É irônico. Toda a minha vida eu assisti a filmes e julguei os personagens por suas escolhas
erradas. Alguns deles só faziam burrada uma atrás da outra, e eu achava que ninguém seria tão
estúpido assim. Até acontecer comigo.
— Seria mais fácil se você não tivesse que resistir ao demônio tanto quanto às propostas dele.
Olho de volta para o anjo, embasbacada.
— Não é verdade! — Quase me engasgo. — Eu nunca deixaria nada acontecer entre nós. Não
sou tão burra assim.
A mentira é patética. Eu sou patética. Espero mesmo que Thalia acredite nisso quando nem eu
mesma me levo a sério nessa questão?
Longe de parecer impressionada, Thalia se aproxima a passos lentos da pia, onde por fim se
apoia. Não há nada mais que preocupação em seu rosto quando ela me olha.
— “Se o teu olho te faz pecar, arranque-o” — fala em um tom firme. — É o que dizem as
Escrituras. O mesmo vale para o seu coração, Sienna. Se ele pode te destruir, se livre dele
enquanto ainda há tempo.
Se ao menos fosse tão simples assim…

O dia seguinte na Academia é bem mais tolerável. Sem Edgar, obviamente, mas também sem
surpresas desagradáveis e visitas indesejadas.
Um professor substituto chega para se encarregar da peça e da matéria de Edgar, e embora a
situação ainda me cause dor de estômago, ensaiar longe da vista do ex-professor é um alívio.
Sim, eu perdi qualquer vantagem que ele tivesse a oferecer, mas a sensação é de estar
recomeçando do jeito certo.
Liang, apesar de passar a manhã ao meu lado, não volta a falar do convite para sairmos juntos.
Talvez tenha se cansado de me ver fugindo dele sempre que tenta uma aproximação. Não me
incomodo com isso — o que não quero é que um clima estranho fique entre nós.
No melhor dos cenários, ainda temos mais algumas semanas de trabalho na peça, e quanto
mais à vontade estivermos perto um do outro, melhor será para todo mundo.
Depois do almoço, meus nervos já estão mais controlados e eu parei de me sobressaltar
sempre que uma porta é aberta.
Ágata, Rubi e Yuri decidem passar um tempo estudando na biblioteca, mas ainda estou
inquieta demais para ficar sentada em silêncio, então escolho ficar na sala de Encenação
repassando minhas falas.
Olhar para Francesca da Rimini é como tentar enxergar dentro de mim mesma. Posso
simpatizar com ela, mas não consigo compreendê-la totalmente, porque para isso eu teria que me
compreender.
Tenho dúvidas das quais temo as respostas. Francesca teria se entregue a Paolo se soubesse
que acabaria presa no inferno? O destino que caiu em seu colo teria sido suficiente para ela?
Alguns dizem que há infernos piores: viver longe de quem se ama seria um deles. Não sei até
que ponto isso é verdade, e suspeito que Francesca também não fazia ideia. Temos muito em
comum.
Sentada no chão do tablado, entoo as linhas de Francesca para a plateia vazia à minha frente.
Repito até se tornarem parte de quem sou. Só paro quando ouço palmas atrás de mim.
Não preciso me virar para saber de onde vem o som, porque, nesse mesmo instante, uma
mariposa resolve descansar no meio da minha folha de estudo.
Os passos de Kai se destacam na sala fechada e vazia, e não cessam até ele estar ao meu lado.
— Você é perfeita para esse papel.
Ergo a cabeça para enxergá-lo direito, e o movimento deve ter revelado parte do meu pescoço
escondido pela roupa, porque percebo Kai olhando para ele de forma esquisita.
Mexo na gola alta para encobrir os hematomas de novo.
— Nunca sei quando você está sendo irônico e quando não — digo.
É uma das muitas coisas que não sei sobre ele.
Kai dá um sorrisinho antes de se sentar a alguns passos de mim, encostando-se na parede da
coxia.
— Não sabe lidar com elogios, monstrinho?
— Ah, então vai começar a me bajular agora — murmuro, erguendo uma sobrancelha. — É
assim que pretende conquistar a minha alma?
O demônio me olha com puro sarcasmo e malícia.
— Prefere uma abordagem mais incisiva?
— Não sabia que demônios consultam suas vítimas sobre como devem atormentá-las.
— Geralmente não consultam. — Ele dá de ombros. — Acho que esse é o meu diferencial.
Nem um pouco pretensioso.
— Um demônio educado — pondero, fingindo estar impressionada. — Me admira você ter
durado tanto tempo.
Kai descansa a parte de trás da cabeça na parede.
— Nem sempre fui assim — diz ele. — No começo, eu podia jurar que era gasolina.
Qualquer movimento instigante o suficiente ao meu redor era desculpa para começar um
incêndio.
— E o que mudou?
Estudo os traços impecáveis do rosto dele, desde o nariz reto, passando pelas sobrancelhas
cheias e parando nos lábios corados e assimétricos. Até consigo imaginá-lo como um vilão
dessas histórias sombrias que contam por aí, mas o pensamento não me causa medo.
Seria diferente se eu o tivesse conhecido em sua antiga versão? Meu coração teria menos
dificuldade para aceitar que ele é o cara mau da minha história?
— Muita coisa. O fogo destrói numa fração de segundo. É impaciente, descuidado. Passei a
gostar mais do gelo, que é tão poderoso quanto, e te consome lentamente. Ele abraça seu corpo
antes de congelar seu sangue e interromper seus batimentos cardíacos, tudo isso enquanto você
observa. Te dá tempo para um último pensamento. Há algo de poético nisso, você não acha?
Há essa coisa sobre Kai que me faz querer concordar com o que ele diz, por mais perigoso
que seja.
Sim, ele é poeticamente trágico. O que seria de mim sem seus versos?
— Também é cruel — digo em voz baixa, fitando o mar calmo em seus olhos.
— Há certa beleza na crueldade — ele responde no mesmo tom.
Ele não é a prova viva disso? É simplesmente a criatura mais bela que já conheci. Pessoas
começariam guerras por um simples vislumbre de si mesmas no reflexo dos olhos dele.
Escritores tentariam e falhariam em descrevê-lo de forma justa. Crianças não podem mais do que
sonhar em andar por aí como ele anda.
Ninguém está imune a esse demônio. Bem distante disso, me arrisco a dizer que sou a mais
suscetível de todos.
— No que está pensando?
A provocação em sua voz me traz de volta à realidade. Onde estou encarando-o como se eu
fosse capaz de cometer insanidades.
— Em nada — sussurro, rápido demais.
Kai me sonda como se pudesse enxergar a verdade através de mim. Seus olhos escurecem
ligeiramente e um músculo de seu maxilar tensiona.
É como sofrer combustão espontânea e continuar viva no meio das chamas. Me sinto febril
com o olhar dele. O que ele está fazendo? Não sabe que meus sentimentos são perigosamente
inflamáveis? Por que de repente está agindo como se quisesse começar um incêndio?
Meu celular apita com novas notificações, me tirando à força do transe.
É só quando desvio o olhar dele que percebo meus batimentos acelerados e o calor em meu
rosto.
Estou perdendo o juízo. Bendita seja a pessoa que me mandou mensagem bem no momento
certo.
Apanho o aparelho do chão com as mãos suadas, e três mensagens de Yuri aparecem na tela.
Preciso lembrar de agradecê-lo mais tarde.
As últimas duas são figurinhas, mas a primeira é um convite para passar no Le Marquis e
comemorar o aniversário dele já na virada do dia.
Respondo que sim imediatamente.
— Preciso ir.
Me levanto do chão com um pulo.
— Grandes planos? — pergunta Kai.
— Talvez.
O demônio está de pé antes mesmo que eu me dê conta.
— E o que ainda estamos esperando?
É quando eu percebo que a noite vai ser longa.
25: SIENNA
Cinnamon Girl, Lana Del Rey

É terça-feira, mas o Le Marquis não está vazio como eu tinha imaginado. Quando chego no clube
depois de ter passado em casa e me trocado, a primeira coisa que vejo é Yuri e Ágata dançando
enroscados no meio da pista.
Olho de soslaio para trás, meu peito vibrando quando confirmo que Kai ainda está me
seguindo.
Ele não deveria ter vindo. Não estou num bom momento para ter o autocontrole testado.
Fazendo o melhor que posso para ignorá-lo, me enfio entre alguns dançantes até chegar nos
meus amigos. É Yuri quem abraço primeiro.
— Garota, que vestido é esse?! — ele fala por cima da música.
Não tem nada demais no meu vestido. Ele só… mostra pele demais. É inteiramente coberto de
strass prateado, com mangas curtas e gola média, uma fenda até o meio da coxa e outra na região
das costelas.
Gosto de como ele abraça meu corpo ao mesmo tempo em que esconde a pele machucada. E
talvez eu tenha o escolhido com segundas intenções, mas prefiro não admitir nada que me
comprometa.
— E ainda veio com ele? — Agui olha para além de mim, onde imagino que Kai deva estar.
— O que está aprontando?
Dou de ombros, desinteressada.
— Ele veio sozinho — digo simplesmente. — Vem, eu quero dançar.
E é o que faço pela próxima hora. Danço sozinha, com Yuri, com Agui e Rubi, até mesmo
com estranhos que se empolgam demais.
Pelo menos a cada duas músicas, meu olhar cruza com o de Kai, que observa tudo de um
banco no bar.
Ele não bebe, não conversa com as pessoas que tentam se aproximar… apenas fica lá e
observa.
É difícil assimilar que tenho a atenção dele só para mim. Também é intoxicante, como se eu
nunca pudesse ter o suficiente dela.
Logo, todas as pessoas desaparecem e ficamos só nós dois nesse salão. Minha pele arde, meus
pulmões dobram o esforço. Tento lembrar do último conselho do anjo, mas não posso arrancar
do peito o que já está nas mãos do demônio.
Em certo momento, decido que preciso de uma bebida para apaziguar o calor. Começo a
traçar o caminho até o bar, mas uma mão me segura pelo braço.
— Finalmente te encontrei.
Dou de cara com Liang, de rosto rosado, cabelos desgrenhados e sorriso sincero. Pouco faço
para esconder a surpresa.
— Não sabia que você estava por aqui.
Ele se abaixa para falar mais perto.
— Estava em casa sem fazer nada quando a Ágata me mandou uma mensagem. Pensei: por
que não?
Dou um passo involuntário para trás.
— Legal! Acho que vou pegar uma bebida.
Em minha defesa, não é uma desculpa. Eu já estava no meio de uma missão quando ele me
interceptou.
Antes que eu me afaste, Liang gesticula para a pista.
— Quer dançar na volta? — pergunta.
— Dançar? — repito, pensando devagar demais. — Sim, tudo bem. Já volto.
Então escapo sem perder tempo. Acho que chegou a hora de ser honesta com Liang. Ele
claramente está criando expectativas, e até agora eu não me sinto inclinada a me aproximar dele
dessa forma.
Seria mais fácil se o interesse fosse recíproco, é verdade. Liang seria uma excelente fonte de
distração.
Quando me debruço no balcão do bar, bem ao lado de onde Kai está sentado, ele inclina a
cabeça para me olhar.
— Terceira vez — diz ele.
Franzo a testa.
— Quê?
— É a terceira vez que foge dele. — Ele aponta na direção que acabei de vir. — Estou
impressionado por ele ainda estar tentando.
Kai estava contando? Com que propósito? E por que isso faz o animal dentro de mim se
agitar?
— Ele está sendo paciente — digo.
— Mas você não pretende recompensar a paciência dele. Onde espera chegar com isso?
— Não sei — respondo, com um movimento de cabeça displicente. — Acha que eu deveria
recompensar?
Ele não morde a isca.
— Se é o que você quer, tem todo o meu apoio — garante.
Posso estar me iludindo completamente, mas noto uma indiferença forçada em seu tom.
— Não vou me envolver com Liang.
O demônio me examina de perto, à procura de algum fio que possa puxar.
— Porque não quer ou por não achar que deve? — pergunta.
Aí está.
— Talvez eu só ache que não vale o esforço.
Sim, Liang seria uma boa distração, mas em que posição isso nos deixaria depois? Ainda
seríamos bons colegas com uma química surreal no palco, ou nos tornaríamos completos
estranhos, arrependidos de nossas escolhas?
— Não é essa a desculpa que você tem usado esse tempo todo?
Não estou imaginando coisas, há um quê de acusação em sua voz.
Viro o rosto até estar cara a cara com ele. O espaço entre nós é curto demais para me impedir
de sentir os efeitos em meu corpo.
— Ninguém nunca provou que eu estava errada — argumento, porém soa mais como um
desafio.
O que estou procurando aqui?
Ele estreita os olhos, prolongando a tensão do momento. Por um minuto delirante, acho que
ele vai aceitar o desafio e provar que estou, sim, errada.
Que dia e tanto seria.
— E existe alguém no mundo capaz disso? — ele pergunta, em vez disso.
Queria poder dizer a ele que, às vezes, o esforço para tê-lo não me parece tão grande assim.
Que, a depender de como ele me olha, preciso me conter para não me arrastar sozinha para o
inferno, onde sei que irei encontrá-lo.
Às vezes, penso que, se alguém no mundo vale o meu esforço, esse alguém é Kai.
— Cuidado, monstrinho — ele adverte em voz baixa, interpretando algo em meu rosto que
não fui capaz de mascarar. — Alguém pode pensar que você está esquecendo nossos papéis aqui.
Como se isso fosse possível. Eu nunca me esqueceria o que está em jogo.
Porém, em momentos como esse, é fácil ignorar a verdade e fingir que nada disso tem
importância.
Sei que ele também sente isso. Eu estava lá quando ele me olhou mais cedo como se eu fosse
uma blasfêmia que ele adoraria cometer. Ele poderia tentar negar, mas eu reconheço o calor em
seus olhos, pois refletem o meu próprio.
— Conheço muito bem nossos papéis — respondo.
— Acho difícil acreditar nisso quando me olha desse jeito.
Hipócrita. Se ele pudesse se ver agora… Quanto lhe custaria admitir o esforço que está
fazendo para não encarar meus lábios agora mesmo?
Ergo ligeiramente o queixo, mais ousada a cada segundo que passa.
— De que jeito estou te olhando?
Como se eu fosse uma alma atormentada e só ele pudesse me redimir.
— Como se eu fosse uma possibilidade — diz ele, desviando o olhar por um instante. —
Espero não precisar dizer o óbvio, Sienna.
Talvez seja o fato de que ele usa o meu nome em vez do apelido que me deu, mas novamente
sinto a distância se abrir entre nós.
Ele está me empurrando quando eu queria que ele tomasse a decisão por mim. Uma palavra
sua, um toque, e eu dificilmente resistiria.
No entanto, seja lá o que estiver detendo-o, parece ser mais forte que o meu senso de
autopreservação.
— Por favor, poupe o seu tempo — é só o que digo em troca.
A faca em meu peito só vai até onde eu permitir.
Dou as costas a Kai e refaço o caminho para a pista de dança, de mãos vazias e sentindo seu
olhar abrasador me seguindo.
Ele desenhou um limite claro entre nós, um que eu falhei em manter. É melhor assim, digo a
mim mesma. A sensatez de Kai sem dúvidas supera a minha. Mas isso não quer dizer que a
rejeição não machuca.
Ágata me vê chegando e abre um sorriso embriagado, lançando os braços ao redor do meu
pescoço e me embalando no ritmo da música.
Sorrio de volta, tentando ignorar o gosto amargo na boca. Ponho as mãos na cintura dela e me
obrigo a relaxar um pouco.
— Alguém está doido pra ficar sozinho com você — ela fala no meu ouvido.
Não respondo, pois bem atrás de nós está Liang, de olho em meus movimentos.
Ele toma um gole da cerveja, sorrindo de lado quando nossos olhares se cruzam.
Entendendo meu silêncio como reciprocidade, Ágata se afasta para dançar com Rubi.
Liang aproveita a oportunidade que Ágata criou e se aproxima de mim sem perder tempo. Não
querendo pesar o clima, continuo dançando e sorrio de vez em quando.
Talvez Kai esteja certo. Talvez o motivo pelo qual não consigo ficar à vontade com a ideia de
me aproximar de alguém seja porque estou confundindo a natureza da nossa relação.
Eu sei tão bem quanto tenho certeza da morte que nada pode existir entre Kai e eu, mas por
que isso não é suficiente para me fazer parar de sentir o que sinto?
Quando ele está por perto, a sensação é de que tenho infinitas possibilidades e formas de me
perder nele, quando a verdade é que não há nenhuma. Pelo menos nenhuma que não acabe
comigo dentro de um caixão.
A única coisa que posso e devo esperar de Kai é sua indiferença.
— Você está incrível nesse vestido.
Sinto os lábios de Liang roçando minha orelha quando ele se abaixa para cochichar mais
perto. Sua voz sai ligeiramente rouca, de certo pelo esforço de precisar gritar acima da música.
Retribuo tocando os ombros dele, como um convite silencioso para uma dança conjunta. Ele
apoia uma mão em meu quadril, visivelmente satisfeito.
Não preciso complicar isso se eu não quiser. Somos dois adultos perfeitamente capazes de
expressar nossas vontades. Além disso, somos dois profissionais que sabem separar as coisas
quando preciso.
Não consigo deixar de me perguntar que mal faria uma distração a essa altura.
Seguimos as batidas da música e, por um momento, me concentro apenas nas sensações. No
calor do corpo de Liang, na mão apertando suavemente meu quadril, no quão bom é me sentir
desejada, mesmo que pela pessoa errada.
Fico de costas para Liang, balançando os quadris. Sua mão se muda para o meu ventre, e eu
percebo, com ligeira surpresa, que não me incomodo com a proximidade. Se ao menos ele me
fizesse sentir daquela forma…
Kai deve estar orgulhoso. Talvez acredite que vou finalmente deixá-lo em paz agora que me
distraí.
Tento evitar, mas sou incapaz de não procurá-lo de novo. Encontro-o no mesmo lugar que o
deixei, encostado no balcão do bar, bem de frente para mim.
Eu esperava me deparar com qualquer coisa — arrogância, divertimento, tédio —, mas não
com a expressão perturbada que agora endurece as feições dele.
Nem a iluminação pobre consegue amenizar a forma que Kai me assiste dançar.
Como se eu pudesse ser a responsável pela destruição dele, e não o contrário.
Estremeço com a intensidade do olhar, precisando usar cada gota de força de vontade em meu
corpo para não paralisar aqui mesmo, com Liang logo atrás de mim.
Tenho vontade de gritar. De arranhar alguma coisa.
Kai não tem o direito de olhar para mim dessa forma. Não depois de ter relembrado nossos
lugares, não depois de ter esnobado a minha falta de lucidez. Ele não pode simplesmente decidir
que estava errado.
Interrompo a dança no meio, incapaz de continuar aqui.
— Desculpa, tenho que ir — digo, me precipitando à reação de Liang.
Antes que ele diga alguma coisa, me afasto a passos largos, desviando das pessoas em meu
caminho.
Meu coração pulsa enlouquecidamente, prestes a sair pela boca.
Não ouso dar sequer uma olhada na direção de Kai, com medo do que posso dizer ou fazer.
Paro na outra ponta do bar e me equilibro no balcão, suando em bicas. Jogo uma nota no
passadiço e espero o barman se virar.
— Vodka. A garrafa cheia — forço a voz para não refletir o misto de sentimentos dentro de
mim.
O barman me entrega uma garrafa resfriada, e dou as costas ao bar como se estivesse fugindo
do diabo em pessoa, rumando na direção da saída.
Não consigo ficar aqui, tão perto dele, sem acabar perdendo a cabeça.
Quero gritar com ele, machucá-lo de alguma forma, mandá-lo para o inferno e beijá-lo como
se minha vida dependesse disso, não necessariamente nessa ordem. E qualquer uma dessas coisas
vai me deixar mais perto de perder minha alma.
O vento fresco da noite é um alívio para a minha pele suada quando saio na calçada.
Removo o lacre da garrafa e sorvo um gole doloroso antes de me lançar na direção de um táxi
que acaba de encostar para deixar alguém.
Se pudesse me ver agora, Thalia ficaria orgulhosa.
Se não puder resistir, então fuja.
É possivelmente o conselho mais sábio que já recebi até agora.

Inserir a chave na fechadura leva quase um minuto inteiro, pois agora há três chaves e três
fechaduras diante de mim. Por pouco, a garrafa pela metade não escorrega da minha mão e se
espatifa no tapete.
Entro no apartamento, me contentando em usar o fecho de segurança até voltar a ser capaz de
trancar a porta corretamente.
Tropeço no escuro, largando minhas coisas pelo chão a caminho do quarto.
A vodka se perde em algum ponto entre o sofá e a mesa de jantar, e quando chego ao quarto,
pelejo para tirar as sandálias.
Apesar do entorpecimento, me dou conta de que a tarefa seria mais fácil com mais luz além da
que entra pela janela, então busco o interruptor.
Mas dou somente dois passos antes de me deter com um solavanco, notando a forma escura
curvada sobre o parapeito.
É claro que fugir não é suficiente. Ele sempre me encontra.
— Não quero saber — me adianto, balançando a cabeça. — Dê o fora daqui.
Kai não move um músculo sequer. Não se vira para me encarar, não move os braços apoiados
no parapeito. É como se eu não estivesse aqui.
Bufo, feliz pelo favor que o álcool me fez ao remover meus filtros. Me sinto tentada a
esmagá-lo.
— Eu sou uma piada para você? — volto a falar, a despeito da língua pesada. — Você olha
para mim e pensa no quão patética eu sou? É engraçado para você? Porque eu acho que você não
consegue mais evitar.
É poderoso dizer isso em voz alta. De repente, não sei mais porque guardei meus pensamentos
por tanto tempo, mas agora que comecei, não quero nunca mais parar.
— Você não pode brincar comigo. Não com isso.
Lentamente, Kai se vira na minha direção. O divertimento costumeiro não está em nenhum
lugar à vista, e tudo o que enxergo é a tempestade se formando em seus olhos.
Atormentado. Se eu tivesse que escolher uma palavra para descrevê-lo agora, seria essa.
Ainda assim, ele não parece prestes a oferecer uma resposta à minha acusação, o que me
enfurece ainda mais.
— E sabe o que mais? Eu não sou patética, você é patético — emendo, chegando perto o
bastante para cravar um dedo em seu peito.
Quero tirá-lo do sério, por bem ou por mal.
— Está tão acostumado a enganar que engana a si mesmo. Pelo menos eu conheço a minha
verdade, demônio.
Kai segura minha mão junto ao peito, travando meus movimentos.
Um vinco se forma no centro de sua testa, e imediatamente sei que consegui o que queria.
— O que espera que eu diga? — pergunta, a voz perigosamente baixa. — Quer que eu peça
desculpas? Não sei que utilidade você teria para um pedido de desculpas, mas posso pensar em
uma coisa ou duas que eu poderia dizer que faria você retirar tudo que acabou de colocar para
fora, e acredite: você não quer ouvi-las. Te custaria mais do que você está disposta a pagar.
Encaro os olhos escurecidos de Kai, desejando saber se ele consegue ouvir as batidas
desritmadas do meu coração.
Estamos tão perto um do outro que sinto sua respiração fazendo cócegas em minha bochecha.
— Você não sabe quanto estou disposta a pagar. Só está com medo de admitir em voz alta que
em algum momento começou a se importar.
Não sei mais o que estou tentando alcançar, mas sinto que preciso fazê-lo, ou não terei paz.
— Vá dormir, Sienna — Kai retruca, cerrando o maxilar.
— Admita. Vi como me olhou lá. Não estava feliz.
O calor em minha voz deixa claro que não estou pronta para abandonar essa discussão.
Kai aumenta o aperto em torno da minha mão, mantendo nossos olhares presos.
— Você vai se arrepender dessa conversa quando acordar.
— Covarde! — Fico na ponta dos pés para enfrentá-lo cara a cara, mas permanecer
equilibrada teria sido impossível sem a ajuda dele. — Você sabe que sentiu alguma coisa. Quem
está esquecendo nossos papéis agora?
Nossas respirações se misturam, e não posso mais distinguir de quem são os batimentos
selvagens que ressoam entre nós.
Nos estudamos por um minuto inteiro, nenhum querendo ser o que desvia o olhar primeiro.
Em um gesto inesperado, Kai ergue uma mão hesitante e toca a lateral do meu rosto, mal
ousando encostar a ponta dos dedos.
Fecho os olhos, me sentindo sobrecarregada e prestes a sucumbir a essa migalha de afeto.
Engulo em seco, todo o meu corpo se concentrando nessa ínfima região onde seus dedos me
tocam.
É em momentos como esse que temo nunca haver um preço que eu não esteja disposta a pagar
em troca disso.
Sinto os fios rebeldes de Kai roçarem a maçã do meu rosto quando a respiração dele muda
para o meu ouvido.
Penso ter sentido seus lábios na pele da orelha, mas talvez seja minha imaginação antecipando
meus anseios.
De qualquer forma, sou incapaz de conter a descarga de arrepios.
Estou sonhando? Se estiver, não quero acordar nunca mais.
Por um instante breve demais, ficamos assim. O fantasma de seus dedos em minha pele, as
respirações entrecortadas.
Acho que eu poderia morar para sempre nesse momento.
— Odiei te ver lá com ele — Kai quebra o silêncio de repente, a voz grave. — Odiei não ser
eu te tocando daquela forma. Mas, além disso, odeio a possibilidade de nunca poder estar no
lugar dele.
Quando foi que respirar se tornou tão difícil?
— Por que diz isso? — Minha voz falha, mal passando de um sussurro.
— Porque para isso você teria que morrer.
Não é o que eu queria ouvir.
Kai não disse nada mais que a verdade, mas acho que eu estava esperando por uma doce
mentira. Pela promessa de que tudo isso não culminaria num desastre.
Quero tanto acreditar nisso que eu teria aceitado qualquer mentira que saísse dos lábios dele
agora. Aceitaria tudo o que ele estivesse disposto a me dar. É quase trágico que justo agora ele
esteja acima de qualquer enganação.
Meu coração despenca e a queda dói mais que tudo.
Com cada fibra do meu ser, forço meu corpo a recuar. A tomar distância da única coisa da
qual preciso e não posso ter.
Não posso vencer essa guerra, nunca pude, e a parte mais irônica é que tenho ainda menos
chances agora que ele se rendeu.
Minha garganta se fecha quando olho para Kai com o novo abismo que criei entre nós.
Ele não tenta me impedir. Sua expressão me diz que ele sabia o que aconteceria desde o
início. Mas ele parece decepcionado mesmo assim.
Assisto enquanto ele se vira e sai do quarto em silêncio, indo para onde eu não posso segui-lo.
É melhor assim. Você não tem escolha.
Mas é cada vez mais difícil acreditar nessas coisas.
26: KAI
Under The Influence, Chris Brown

Não tenho sido eu mesmo ultimamente.


Pelo menos não quem eu achei que eu fosse.
Acho que é seguro dizer que, de alguma forma e sem que eu percebesse quando, Sienna
modificou a química do meu cérebro.
Agora, fico sempre impaciente quando não estou perto dela. Como se isso não bastasse, eu,
que queria muitas coisas antes daqueles olhos mudarem algo dentro de mim, agora sinto que não
preciso de mais nada.
Aqueles olhos âmbar que parecem ser capazes de engolir estrelas, galáxias e universos.
Que chances eu poderia ter contra eles?
Lembro de todas as vezes que a provoquei sobre a efemeridade de sua existência, mas nada
disso tem relevância agora, porque não importa quão trivial seja a vida dela, ou quão frágil ela
possa ser; no final das contas, sou eu quem passa o dia esperando por uma chance de vê-la de
novo.
O que tenho sido ultimamente, senão a sombra dela? Quero segui-la por toda parte, em cada
segundo de seu dia.
Não sei o que Sienna fez comigo. Ela se enraizou aos poucos, e quando me dei conta, o
sentimento já estava profundo demais para não causar rachaduras.
Por causa dela, pela primeira vez em muito tempo, eu senti medo. Enquanto a via dançar nos
braços de outra pessoa na noite passada — vivendo o momento como se as preocupações
pudessem ficar para depois — eu soube o que era temer algo novamente.
Temi uma existência eterna sem ela. A ideia de perdê-la para o céu, sem nunca mais poder
estar em sua presença de novo, e a Ordem jamais descobrindo quão brilhante ela é, me
aterrorizou como nada mais conseguiu em séculos.
Mas eu não teria dito nada disso a ela. Nunca tive a intenção de manipulá-la usando os
sentimentos que ela sente por mim, e embora as coisas estejam diferentes agora, continuo não
tendo.
Independente do quanto eu a deseje aqui comigo, quero trazê-la para cá porque só aqui ela
será completa. Talvez seja pedir muito, mas espero que ela chegue à mesma conclusão.
Quando ela me fez admitir o que senti observando-a do bar, eu soube como a noite terminaria.
Não importa o que diga, ela não está preparada para o que tenho a oferecer. Para o que isso
imediatamente custaria a ela. Por outro lado, foi libertador poder dizer aquelas coisas em voz
alta. Assustador, sim, mas bom em igual medida.
É claro que há muito mais coisas que Sienna ainda não sabe. Como, por exemplo, que penso o
tempo todo sobre como seríamos insuperáveis juntos, e o quanto quero tornar real cada um dos
desejos perversos e mesquinhos que ela possa ter nessa vida.
Espero não somente dizer isso a ela um dia, mas também mostrar o quanto falo sério.
Distraído pelos pensamentos e pelo banho frio, me sobressalto com uma batida na porta do
meu aposento.
Levo um instante tentando deduzir quem pode ser, já que o número de transeuntes aqui em
cima é estritamente limitado.
Uma das vantagens de ser o Alto Maligenii é ter a parte superior de uma das torres da
fortaleza inteiramente dedicada a mim.
É uma das mais hostis, não somente com dezenas de janelas que precisam ser seladas por
causa das tempestades de areia, mas também com uma varanda suspensa sobre a escarpa mais
letal da Cidadela.
Uma queda significaria uma jornada bastante sangrenta por todo o caminho até embaixo.
Gosto da torre, não à toa a escolhi para estabelecer meus aposentos. Ela tem sido
excepcionalmente útil para as reuniões do clã e as atividades que preciso conduzir de vez em
quando.
Saio da banheira e me enrolo numa toalha, imaginando que seja Baelgrim do outro lado, ou
Valrana, pronta para relatar alguma informação arrancada de maneira duvidosa.
Quando abro a porta, descubro estar enganado.
Gehenna estreita os olhos felinos ao notar meu estado, como se não esperasse me encontrar
fazendo coisas tão triviais quanto tomar banho.
— Ainda lembra o caminho — digo, quase surpreso.
— Tenho uma memória impecável — responde ela.
Noto seu uniforme e a expressão cansada em seu rosto. Por mais inesperada que seja uma
visita de Gen, sei que ela não veio por acaso.
Me encosto no batente da porta.
— O que te traz aqui nessa adorável noite sem fim?
Gen fica mais séria.
— Obrigações. Nem todos aqui têm o privilégio de passar o tempo perseguindo humanos no
mundo mortal.
— Sempre soube que você sente saudade dessa época — provoco, sabendo muito bem que ela
nunca se contentou só com isso.
Quando cheguei aqui, Gen já fazia parte da Ordem há quase três séculos. Ela foi para mim o
que já fui para muitas outras almas e agora estou sendo para Sienna.
Mas Gen sempre achou que poderia fazer muito mais além de popular o inferno com almas, e
aproveitou a oportunidade logo que pôde.
Ela dá de ombros.
— Um dia sem ameaças e avisos de morte espalhados pela fortaleza me faria bem —
murmura.
Ah, sim, o resultado da última reunião do clã deve ter sido uma provocação e tanto.
— Está se referindo aos membros decepados e pendurados em cada torre?
Não tento fingir que estou abalado. Gen não esperaria isso de mim sob nenhuma
circunstância.
— Você conhecia ele — ela aponta, reflexiva. — Nanzi era um dos secretários de Mammon
na época em que você e o Comandante se aproximaram. Deve ter interagido com ele algumas
vezes.
— Provavelmente — admito. — Mas não criei nenhum apego por ele, se é nisso que está
tentando chegar.
Ciente de que não contei nenhuma mentira até agora, Gehenna suspira.
— Estamos investigando todos os cantos da Cidadela em busca de quem deixou essa
mensagem para o Comandante.
O jeito como ela soa mais exasperada do que preocupada me faz rir por dentro.
— E você veio até os meus aposentos porque acha que estou por trás disso? — lanço a
pergunta.
— Vim porque é o procedimento padrão — ela corrige, arqueando uma sobrancelha. — E era
eu ou um pelotão inteiro. Você acharia mais difícil se livrar deles do que de mim.
— Não quero me livrar de você. — Libero passagem para que ela consiga entrar. — Fique à
vontade para conduzir a investigação como achar necessário.
Não há nada para ser encontrado aqui ou no resto da torre. Tenho o cuidado de manter tanto
meus aposentos quanto minha câmara, onde temos feito as reuniões e onde lidei com Nanzi e
Sansha, sempre em ordem.
O exército de Mammon pode vasculhar cada canto quantas vezes quiser, mas não se pode
encontrar o que não existe.
Sigo Gen conforme ela entra no quarto, olhando tudo ao redor sem se preocupar com a
discrição.
Não está tão diferente do que ela se lembra; ainda tenho a mesma cama, banheira e tapete de
sempre, e minha mesa continua abarrotada de coisas que já poderiam estar no lixo.
As prateleiras repletas de Artefatos, no entanto, são novas para ela.
Ela para na frente delas por um momento, estudando o arsenal em silêncio.
Venho coletando Artefatos há um bom tempo. Encontrá-los e recuperá-los quase nunca é
fácil, e muitas vezes tenho que abrir mão de alguns para conseguir outros melhores, mas é
através deles que adquiro poder de barganha.
Gosto de manter os preços acessíveis, especialmente agora que Mammon está subindo os
impostos sobre esse tipo de mercadoria, e muitos me procuram porque forneço o que precisam
sem que tenham que arriscar o próprio pescoço numa aventura imprevisível.
O Devorador devia ter sido o precursor do negócio, mas acabei me afeiçoando a ele e o
mantive comigo. Isso me lembra que ainda quero reavê-lo.
— Também posso sentar aqui e esperar alguns minutos antes de descer e informar que o álibi
do Alto Maligenii é incontestável — diz Gen, se virando para me encarar.
Cruzo os braços na frente do peito.
— Está preocupada com o que pode descobrir se começar a perguntar?
Há uma razão pela qual ela ainda não levantou questionamentos reais. Gen não está tão
interessada assim na verdade. Conhecendo-a como conheço, imagino que ela até já saiba tudo
que precisa.
— Não posso responder a essa pergunta sem precisar acorrentar você e levá-lo comigo —
admite.
Uma risada curta me escapa.
— Você nunca confiou muito em mim, não é?
Não posso culpá-la. Ela me viu maquinar muitas coisas por um bom tempo. Deve reconhecer
o padrão até quando ele não está realmente lá. Suas suspeitas não são uma surpresa para mim.
Como eu esperava, Gen não cai na provocação. Em vez disso, ela diminui a distância entre
nós até estar a poucos passos. Seus movimentos são meticulosos, treinados à perfeição.
Mesmo exausta, Gehenna ainda é a coisa mais intimidadora que já pôs os pés no meu quarto.
— Seja lá o que estiver fazendo, Kaiyaan, tome cuidado. — Sua voz pesa com austeridade,
embora esteja longe de ser uma ameaça. — Se não puder estar atrás, é melhor que esteja cinco
passos à frente dele. E quanto à humana, espero que saiba onde está pisando. Se arranjar para si
uma fraqueza, ela nunca passará despercebida aqui. Pense primeiro nos seus inimigos e só depois
em si mesmo.
Ela sempre foi a mais calculista de nós. Sua frieza e pragmatismo a trouxeram até aqui, não
seus impulsos e caprichos. Entendo que ela pense dessa forma, principalmente em relação a
Sienna.
Já fui a fraqueza de Gen uma vez, e ela não hesitou em se livrar do fardo. O que eu mesmo
causei a Nanzi só prova o quanto ela tem razão.
— Quantas acusações, Gen. — Balanço a cabeça. — Quanto tempo gastou pensando nelas?
Pode parecer que estou desmerecendo o conselho dela, mas eu apenas não dou tanta
importância aos meus inimigos quanto ela.
Há uma linha muito tênue entre estar sempre vigilante e viver seus dias em prol de quem quer
se livrar de você. Desde que morri, eu prometi nunca estar no segundo lado de novo.
— Mais do que deveria. Você e Lorchi fingem que não, mas são mais parecidos do que
imaginam. Teimosos e arrogantes. Nunca dão ouvidos a quem se importa com vocês.
O fato é que Gen não merece nenhum de nós. No minuto em que ela perceber isso, vai deixar
de se preocupar tanto.
— E ele se importa com você? — pergunto, deixando as provocações de lado. — Sabe que as
coisas não vão ser assim para sempre, não é? O lado irônico da eternidade é que nada nunca
continua igual. Agora mesmo, do lado de fora dessas paredes, legiões de rebeldes estão se
organizando para lutar pelo que acreditam. Em breve, não existirá exército nos cinco infernos
capaz de conter todos eles. Quando esse momento chegar, acha que Lorchi vai priorizar você?
Ainda pode escolher quais lutas quer travar, Gen.
Não me importo que isso soe como uma confissão. Gehenna não precisa de nenhuma
declaração minha para saber o que estou pensando, ela ainda conhece essa parte de mim que o
tempo não transformou.
Agora, preciso que ela se dê conta do rumo inevitável que as coisas estão tomando e decida de
qual lado quer ficar. Eu odiaria perdê-la completamente para Mammon. Odiaria fazer dela minha
inimiga.
Após um tempo em silêncio, digerindo tudo o que ouviu, Gehenna começa a voltar pelo
caminho que veio.
— Vou manter os olhos bem abertos, então — fala por fim, me olhando por cima do ombro.
— Para ver quando esse momento estiver perto.
Mas ela sabe que já está.
Ela sabe que eu sempre cumpro minhas promessas.
27: SIENNA
Don't Forget About Me, Cloves

Quando acordo na manhã seguinte ao que aconteceu entre mim e Kai, me sinto derrotada em
todos os aspectos. Física e emocionalmente consumida.
Penso em, só por hoje, não levantar da cama e me esconder do mundo por um tempo. Não vai
tornar minha situação mais fácil, mas talvez a impeça de piorar.
Entretanto, o plano fica só no meu imaginário, porque, um tempo depois, Thalia aparece para
fazer eu me sentir ainda pior.
— Não tenho energia para discutir hoje, Thalia — murmuro, a voz abafada pelo travesseiro.
Mas o anjo não se deixa abalar e arranca o cobertor de cima de mim.
— Que bom, eu também não. Agora vá tomar um banho e tirar essas remelas.
E, de alguma forma inexplicável, eu reuno forças para atender ao pedido.
Apesar de fazer jus ao que disse no nosso último encontro — sobre não estar aqui para me
julgar — descubro que lidar com a frustração estampada no rosto de Thalia é tão difícil quanto
ouvir um longo sermão.
Enquanto me visto, não pergunto o que ela tem em mente dessa vez, e me arrependo disso
mais tarde, quando estou entrando em uma fantasia de princesa para animar as criancinhas
doentes de um hospital.
E depois disso, conforme limpo cocô de cachorro no quintal de uma ONG para animais
abandonados.
Sem que eu precise pedir duas vezes, até voltamos à casa de repouso de Dona Clementina, e
eu finalmente tenho a chance de devolver o livro e saber o que aconteceu depois que Camilo foi
procurá-la.
Parte do gelo em meu peito derrete ao ouvi-la contar que agora estão se comunicando todos os
dias, conhecendo um ao outro novamente.
Eu ficaria o dia todo escutando-a tagarelar sobre como as horas estão mais ensolaradas, mas
Thalia tem outros planos para mim, e logo estou envolvida em mais atividades.
A estratégia do anjo logo fica clara: me fazer compensar em dobro cada deslize que eu
cometi. Em vez de reclamar, faço o que ela diz. Sei que não precisaria de todo esse trabalho se eu
fizesse a minha parte, portanto não tenho o direito de culpá-la.
Essa mesma rotina se estende por mais de um dia, e na Academia, as aulas e os ensaios
continuam exigindo muito de mim.
Enfim tive a iniciativa de abrir o jogo com Liang sobre a nossa situação — o mínimo que eu
poderia fazer depois de largá-lo sozinho na pista de dança —, e isso impediu que o clima entre
nós evoluísse para algo ainda pior.
Eu ficaria aliviada por esse desfecho saudável, se não me sentisse tão drenada pela minha
mais nova e frenética agenda.
Enquanto Kai parece ter evaporado depois do nosso último confronto, Thalia fica ainda mais
determinada a me redimir através de boas ações. Trabalho tanto durante o dia que só tenho
tempo para pensar na ausência do demônio quando me deito na cama à noite.
É quando sinto falta dele a ponto da saudade fazer meu coração se encolher. Digo a mim
mesma que manter a distância vai me ajudar e que deveria estar grata por ter partido dele a
iniciativa, mas não adianta.
Ainda demoro a dormir toda noite, e quando enfim durmo, esperando encontrá-lo num sonho,
só o que tenho são pesadelos. Neles, nunca mais vejo Kai, e isso me faz acordar ainda mais vazia
pela manhã.
Hoje à noite, no entanto, estou farta de pesadelos. Quando descanso a cabeça no travesseiro,
concentro toda a minha energia e intenção no desejo que tenho de revê-lo. Alimento essa chama
com tudo que encontro dentro de mim: medo, raiva, saudade, paixão. Se isso não funcionar, não
sei o que mais irá.
Quando caio no sono, a imagem por trás dos meus olhos tem rosto e nome.

Termino de encher os copos com água e me viro para encontrar Kai deitado sobre um cotovelo.
Ele me observa andar até ele, em seguida aponta com o queixo na direção do tabuleiro no
chão.
— Xadrez? Já jogou isso alguma vez na vida? — pergunta.
Deixo um copo com ele antes de me sentar no tapete, assumindo uma posição adequada para
o jogo.
Felizmente, as cortinas do quarto estão abertas e a luz que entra é suficiente para não nos
atrapalhar.
— Assisti O Gambito da Rainha. — Dou de ombros como se essa fosse a única explicação
necessária. — Pode começar.
Kai me encara em silêncio por vários segundos, e apesar da sensação distante de que por
algum motivo eu deveria estar fugindo de seu olhar, não faço nada para evitá-lo.
Quando se cansa dessa nossa troca improdutiva, o demônio faz um gesto para o tabuleiro
entre nós.
— As peças brancas são suas, você começa — diz ele.
— Ah, certo.
Posso fazer isso. Só tenho que escolher uma peça e movê-la, não pode ser tão difícil assim.
Fito as duas fileiras de peças brancas e as casas vazias à frente delas.
Que estranho, eu podia jurar que as regras estavam claras na minha cabeça poucos segundos
atrás.
— Tente mover o peão do rei duas casas à frente — Kai sugere, notando minha hesitação
repentina.
Claro! Como eu não pensei nisso?!
Avanço o peão e espero até que o demônio faça sua jogada.
Ao contrário de mim, ele não leva nem cinco segundos em seu turno. Só que…
— Ei, você fez o mesmo que eu! — protesto, torcendo o nariz para o peão preto que agora
está cara a cara com o meu.
— Abrimos caminho para nossos bispos e rainhas. — Ele aponta para o meu jogo. — O que
vai ser agora?
O cavalo de repente me parece a opção mais óbvia. Por quê? Oras, é um cavalo!
Movo-o duas casas após o bispo, convencida, mas na sequência imediata o demônio espelha
minha jogada outra vez.
Me empertigo no tapete.
— Está somente imitando meus movimentos! Não gostei desse jogo.
O tabuleiro some no mesmo instante. Melhor assim.
A risada curta de Kai enche o quarto.
— Precisa ser minimamente versado em estratégia para gostar de xadrez — diz, arqueando as
sobrancelhas com ares de importância.
— Para a sua informação, sou muito boa com estratégias — retruco conforme cruzo os braços
na frente do peito. — Esse jogo é simplesmente sem graça.
Não é nada como Anya Taylor-Joy fez parecer na série.
Ainda parcialmente deitado, o demônio estala a língua.
— Não sei, não. — Seu olhar afunila como se quisesse me medir. — O que você faria se
tivesse que atrair um vizinho seu para fora de casa antes de invadi-la em busca de algo?
Que tipo de teste é esse? Até uma criança de cinco anos saberia responder.
Decido não parecer tão ofendida assim.
— Depende… Meu vizinho tem um cachorro? Se sim, posso soltá-lo. Isso no mínimo geraria
comoção na rua e garantiria uma boa distração por alguns minutos.
Kai não responde. Em vez disso, me assiste com um fantasma de sorriso no canto da boca.
— O quê? — Ergo o queixo. — É jogo baixo demais usar o pobre cachorro?
— Na verdade, é uma ótima ideia.
É só então que reconheço sua expressão como orgulho. Ele está orgulhoso de mim ou da
minha resposta? Bom, acho que não faz muita diferença.
A percepção faz meu ego aumentar de maneiras perigosas.
— Talvez eu devesse ser sua estrategista — digo. — Seu golpe de estado viria muito mais
rápido.
Acho que Kai vai rir e fazer um comentário condescendente, mas ele parece levar muito a
sério.
— Essa posição já foi ocupada — fala, seu olhar em mim. — Mas iremos pensar em algo à
sua altura, monstrinho.
À minha altura.
Como se eu fosse uma deusa num pedestal e ele estivesse aqui para se ajoelhar por mim.
Por que gosto tanto de como isso soa?
28: KAI
Fire, Barns Courtney

Os esforços de Mammon para chegar no culpado pela morte de Nanzi não o levam a lugar
nenhum. Seus soldados derrubam construções, queimam bens alheios e interrogam a torto e a
direito, mas dão de cara com um beco sem saída todas as vezes.
Os rebeldes além dos muros da fortaleza levam a culpa, e só posso imaginar o quanto Basom
e seu clã estão se divertindo ao ver o Comandante correndo atrás do próprio rabo.
Não perco a chance de me dispor a liderar algumas patrulhas com a missão de caçar e
aniquilar o máximo de insurgentes que conseguirem do lado de fora da Cidadela. Estando
envolvido nessas tarefas, consigo prever a condução de cada uma e mandar mensagens úteis para
Basom através de Malphas.
Ele sabe se virar com elas, porque as patrulhas não se provam tão produtivas quanto Lorchi
esperava que fossem.
A missão consome boa parte do meu tempo, e embora eu não consiga dedicar atenção a
Sienna no mundo mortal, não a perco de vista enquanto tenho mariposas observando-a por mim.
Ela e o anjo estão se dedicando bastante, devo admitir. Três dias sem cometer nenhum deslize
deve ser um recorde para o meu monstrinho. Pretendo colocá-la de volta nos trilhos muito em
breve.
E é graças à mente afiada de Sienna que mais uma vez o Terceiro Domínio vira de ponta
cabeça.
Depois de refletir por um tempo sobre a estratégia que ela traçou em sonho, em resposta ao
meu desafio, só precisei adaptá-la ao contexto certo e convencer Baelgrim a se esgueirar pela
Cidadela sem ser notado, com a missão de libertar as bestas usadas nas rinhas e provocar um
tumulto de grandes proporções.
Com mais de quarenta feras à solta dentro da fortaleza, o caos se instala de vez. A eficácia do
plano não me surpreende. Tanto Sienna quanto Baelgrim sabem exceder minhas expectativas.
Tropas se dispersam para tentar controlar os danos e conter as bestas, cortesãos se tornam
ariscos e insatisfeitos enquanto confinados em seus aposentos, e Mammon passa mais tempo no
Reduto das Sombras do que empenhado em resolver os problemas que prejudicam a Ordem.
Lorchi assume as frentes de atuação, mas não vejo Gehenna em canto algum por dias. Algo
me diz que seu sumiço está relacionado ao novo exército especial de Mammon, cuja existência
ainda é um segredo.
O Comandante parece estar escondendo seu mais recente experimento para não perder o fator
surpresa quando enfim decidir usá-lo.
Talvez os soldados ainda estejam recebendo treinamento, afinal, aprender a controlar uma
magia como a deles não deve ser algo trivial.
Meu plano é encontrá-los e lidar com eles enquanto ainda não sabem que estão na mira.
Quero roubar o fator surpresa deles.
Hoje, enquanto todas as almas estão encarregadas de alguma tarefa, é o dia que escolhi para
caçar. Talvez não haja outro momento com tantas brechas de segurança como nesse, portanto
pretendo aproveitá-lo.
Escondido nas sombras, observo as passarelas que conectam cada uma das torres da Cidadela.
Algumas mais acima, as que levam ao lado norte da fortaleza, estão entupidas de soldados que
buscam por sinais das feras fugitivas.
Um pouco mais abaixo, alguns demônios aproveitam o caos para agir em benefício próprio
sem serem penalizados.
Ouço o clangor de metal não tão distante daqui, e rugidos que estremecem o chão. É um
verdadeiro pandemônio.
— Reforços no portão sul! — alguém berra a poucos passos de onde estou.
Segundos depois, um fragmento de tropa passa por mim sem notar minha silhueta no escuro.
Quando os perco de vista, saio do meu posto e avanço na direção da torre na qual estive
fazendo vigília.
Não há ninguém guardando a entrada, o que não é de se estranhar, já que Mammon tem
passado bem longe daqui nos últimos dias.
Começo a subir os degraus, mas me detenho ao ouvir passos atrás de mim.
— Ei! Ninguém está autorizado a entrar aí até as tropas voltarem aos seus postos — diz uma
voz desconhecida.
Me viro parcialmente, apenas o bastante para ver o rosto da sentinela.
— Tenho assuntos com o Comandante — tomo o cuidado de soar intransigente como todo o
séquito de Mammon.
Algo na postura do demônio muda quando ele percebe com quem está falando. A mão ao
redor da lança afrouxa, caindo ao lado do corpo logo em seguida.
— O Comandante não está na torre, Alto Maligenii — ele volta a falar, agora mais comedido
que antes. — Com a fortaleza nesse estado, talvez demore para voltar.
— Posso esperar — murmuro de volta, e termino de subir os degraus sem esperar por uma
resposta.
A torre do Príncipe da Enganação, movimentada e bem guardada em dias comuns, hoje parece
um mausoléu. O imponente salão de entrada está abandonado, e as escadas, tão acostumadas a
comportar centenas de transeuntes por dia, agora parecem assombradas.
Devo ter passado metade da minha existência imortal circulando por esses corredores na
companhia de Mammon. Ele era um professor ardoroso e eu um aprendiz sedento, juntos
formávamos uma dupla e tanto. As lembranças que tenho daqui na época pareciam boas, mas
olhando em retrospecto, éramos apenas dois mercenários com sonhos de dominação.
Subo vários lances de escada até chegar no último andar, onde fica o escritório do
Comandante.
Para não ser injusto ao dizer que não há segurança alguma vigiando o lado de fora, uma
sentinela solitária está prostrada na frente da porta da sala particular, parecendo terrivelmente
entediada.
Apesar de saber que os esforços se concentrariam na caça às bestas, vim preparado para lidar
com obstáculos e guardas remanescentes.
Desembainho uma faca e a lanço numa outra porta, fazendo a madeira se rachar onde é
atingida. O barulho produzido é suficiente para colocar o demônio em alerta.
— Quem está aí?
Usando as colunas a meu favor, mudo de lugar conforme ele avança pelo corredor com
cautela.
Quando ficamos perto o bastante um do outro, saio de trás da coluna e o surpreendo com um
golpe que perfura seu peito.
O demônio luta para se desvencilhar, arregalando os olhos quando me vê, mas enfio a adaga
ainda mais fundo, até sentir sua vitalidade esmorecer.
Ele cai no chão com um baque surdo.
Não quero deixar um corpo para trás como comprovação de que alguém esteve sondando a
torre de Mammon em sua ausência, portanto o arrasto comigo para dentro do escritório antes de
fechar a porta.
A forma mais rápida que tenho de me livrar do cadáver é fazendo com que não sobre nenhum
resquício dele para contar história.
Removo minha capa e uso-a para cobrir a sentinela, de modo que os corvos possam fazer seu
trabalho. Quando eu terminar o que vim fazer aqui, eles já terão cuidado de tudo.
Agora começa a parte divertida.
Preciso encontrar qualquer pista que se relacione com o novo exército do Comandante,
principalmente sua localização.
Mammon não deixaria nenhum documento explícito sobre tal assunto porque os riscos são
altos demais, porém isso não significa que não há peças soltas do quebra-cabeça espalhadas por
aqui, que só quem já teve um vislumbre da imagem completa conseguiria identificar.
É com isso em mente que começo a vasculhar a infinidade de coisas que ele guarda nessa sala.
Mammon é um acumulador, mas não posso julgá-lo por isso, tendo seguido pelo mesmo
caminho.
A mesa está relativamente limpa, com uma pequena pilha de livros no canto, um pergaminho
em branco e um mapa dos cinco domínios infernais aberto no centro. Depois de confirmar que
não há nada marcado no mapa, começo a explorar mais a fundo.
Abro todas as gavetas que vejo, atento a fundos falsos e truques de ótica. Não encontro nada
suspeito nelas e deixo tudo como estava antes de mudar o foco.
O par de baús no chão é o que reviro em seguida. Procuro por cartas, mapas ou relatórios de
missões, mas o conteúdo em sua maioria são livros, peças velhas de armadura e garrafas
esquecidas de licor. Os poucos escritos que encontro não revelam nada remotamente
interessante.
Justo. Eu não esperava que seria fácil encontrar algo. Mas uma hora os esconderijos vão
acabar, e se houver alguma informação aqui, irei encontrá-la.
Me concentro nas estantes e nos armários abarrotados. Livros, roupas, velas, caixas com
folhas em branco, pena e tinteiro dentro, cantis de licor… Quanto mais desenterro, mais coisas
aparecem.
— Onde você escondeu seus brinquedos, Mammon? — falo comigo mesmo, vários minutos
depois, analisando a sala enquanto minha mente trabalha nas possibilidades.
Tem que haver uma pista. É simplesmente impossível não deixar rastros quando se lida com
algo desse tamanho. Mammon é inteligente, mas até ele comete deslizes de vez em quando.
Volto para a mesa com o mapa aberto e checo mais uma vez para garantir que não deixei
passar nada, mas ele continua sendo só um mapa.
Apenas por desencargo, pego volume por volume na pilha de livros no canto, folheando
rapidamente, e não é até chegar no fim da pilha que encontro algo preso entre duas páginas. Uma
carta.
É no mínimo esquisito que Mammon tenha guardado uma carta dentro de um livro.
O envelope não tem assinatura, mas reconheço o selo da Corte que antes lacrava seu
conteúdo.
Não vou ficar me perguntando o que os Juízes têm a tratar com Mammon quando posso
simplesmente abrir e descobrir sozinho. E é o que faço.
O ofício começa com as saudações de praxe, mas o fato de se dirigir não somente a Mammon,
e sim aos príncipes de todas as ordens, com exceção de Abaddon, me chama a atenção.
O texto propõe uma audiência entre os principados e a Corte, datada algumas semanas atrás,
para discutir a "inconveniência causada por um companheiro e suas implicações", sem mais
detalhes.
Minha última conversa com Mammon volta à memória como uma descarga elétrica.
Nesse exato momento, enquanto falamos, os outros príncipes votam para proibir a circulação
de Abaddon no mundo mortal.
A carta não me diz nada que eu já não tenha ouvido do próprio Comandante. Depois da
audiência, Abaddon e suas hordas ficaram impedidos de deixar o inferno para se aventurar no
mundo mortal, e a não ser que encontre uma forma de furar o bloqueio dos demais, o Príncipe
das Travessuras terá que esperar semanas para voltar às atividades.
Uma penalidade bastante incisiva como punição para… Que inconveniência Abaddon causou,
afinal de contas?
Mais uma vez, lembro do que Mammon disse durante a rinha.
Uma punição por algo que acreditam que ele tenha causado, em vez de por algo que ele
causou. Portanto, ao que tudo indica, Abaddon foi penalizado por coisas que não fez, e Mammon
sabia disso. Sugeriu a audiência e a votação para ser o único voto favorável e dar continuidade à
sua cortina de fumaça, ciente de que a Corte falharia com Abaddon desde o início.
Tento trazer à memória os burburinhos que ouvi na época, sobre uma confusão generalizada
— mas rapidamente contida — nas docas ao leste da fortaleza.
Se bem me lembro, um incidente envolvendo um navio carregado de especiarias dos Três
Mares, que acabou atracado no meio das docas, e rebeldes saqueadores.
Alguns dos homens de Abaddon estavam a bordo do navio nesse dia, e ao que parece, ele
surgiu no lugar errado no meio da noite, o que facilitou para os rebeldes levarem grandes
quantidades de mantimentos.
Não me parece improvável que o Príncipe das Travessuras tenha levado a culpa por isso,
afinal, ele era o bode expiatório perfeito naquela situação. Mas minha intuição grita que
Mammon está mais envolvido nisso do que deixou transparecer.
Volto a analisar o mapa, dando um foco maior à região das docas. O que tem de especial nela?
É somente uma das seis espalhadas pelos cinco domínios, embora seja a principal da Cidadela.
O mar é especialmente bravo lá e há uma grande concentração de criaturas aquáticas prontas
para atacar qualquer coisa menor que um navio. Sem falar no desfiladeiro de navios fantasmas
praticamente ao lado, que abriga muitos terrores inimagináveis.
Ninguém se aventuraria no desfiladeiro por vontade própria. O lugar é tão hostil que não me
lembro de uma época em que ele tenha sido frequentado.
Agora que estou pensando a respeito, as adjacências do desfiladeiro me parecem o lugar
perfeito para guardar algo que não se quer que seja encontrado. A despeito do que pode habitar
aquelas montanhas, que outro lugar se sairia tão bem em manter os curiosos longe?
Uma descarga de adrenalina passa pelo meu corpo conforme elaboro a teoria na mente.
É possível que Mammon esteja escondendo seu exército no desfiladeiro? E, se o acidente com
o navio aconteceu tão perto de lá, há alguma chance de ter sido causado pelos novos soldados
sem controle da magia dentro deles?
Se fosse isso, Mammon iria querer desviar a atenção do incidente para outro lugar, e quem
melhor que os Semeadores de Travessuras para acusar de algo tão esdrúxulo?
Sim, minha teoria pode estar totalmente errada. No entanto, é a única hipótese que consegui
tirar dessa visita à torre do Comandante. Antes de descartá-la, preciso verificar.
Só que não posso simplesmente dar as caras nas docas agora, pegar um navio emprestado e
começar a explorar a região. Haveria burburinhos, e não estou tentando sair do modo furtivo por
enquanto.
Não, preciso usar outra abordagem. Uma que seja discreta, rápida e eficaz.
Me dirijo de volta aonde deixei o corpo do soldado, nem um pouco surpreso quando encontro
somente a capa, sem nenhum resquício do demônio por baixo.
Meus corvos tem asas, detectam movimentos com facilidade e são leais a mim. Quando
preciso, eles me emprestam sua visão para que eu tenha olhos em vários lugares diferentes.
Costumo usá-los para saber, quase que em tempo real, o que Sienna está aprontando no
mundo mortal, mas também são extremamente úteis em batalha. Eles podem sondar o
desfiladeiro por mim, e se houver algo suspeito por lá, eu vou descobrir.
Coloco a capa sobre os ombros novamente, decidindo não perder mais tempo. Sentindo a
pulsação aumentar em antecipação, ando até a janela e a abro para colocar meu plano em prática.
O comando é breve. Basta um pensamento meu e dois corvos se desprendem da capa, indo
pousar no parapeito da janela.
Dois bastam para o que preciso e dificilmente chamarão atenção no céu escuro. Dois pares de
olhos me observam, esperando por instruções.
Indico o caminho que devem fazer até o destino final, e quando eles voam noite adentro,
minha visão bifurca em três.
Há a janela à minha frente, para a qual estou olhando agora, mas também um céu vasto e
escuro sob o qual meus corvos pairam.
Posso ver a Cidadela abaixo de mim, mas o pandemônio parece insignificante de um ponto
tão alto.
Fecho meus olhos para me concentrar melhor no que realmente importa.

Sobrevoamos o desfiladeiro, vendo centenas de navios destroçados à deriva. Ondas violentas se


chocam contra a base das rochas, empurrando cascos e velas quebradas. Com exceção da fúria
do Mar da Desolação, o lugar parece abandonado.
Dou um sinal e os corvos alçam voo escarpa acima, passando pelos cumes afiados até
alcançar o topo do planalto.
Já na parte de cima, por alguns bons metros de distância, não vejo nada além de terreno
arenoso e árvores decrépitas, mas a área é maior do que eu tinha imaginado. Vou precisar
explorar um pouco se quiser encontrar alguma coisa.
Os corvos continuam o trajeto numa velocidade impressionante, de modo que as criaturas se
arrastando no solo não passam de borrões. Até que um movimento na lateral faz as aves
redobrarem a atenção.
Uma criatura alada, que mais parece um morcego gigante, bate as asas perto de onde estamos.
Não parece estar conduzindo uma perseguição, mas seu interesse é nítido.
Com uma manobra rápida, os corvos sobem mais alto no céu e voltam a mergulhar na direção
do chão quando a criatura começa a se aproximar.
Momentaneamente atordoada, a coisa perde alguns segundos tentando decidir para onde ir, o
que dá tempo às aves para despistá-la entre os galhos das árvores.
Só retomam a altura quando não há mais ameaça visível.
É quando vejo a elevação tomando forma à direita, mais adiante no horizonte. Parece um
segundo planalto a princípio, mas há algo diferente nesse.
Conforme chegamos mais perto, vejo as fendas na base da escarpa, criando passagens para o
interior do rochedo. Eu me precipitaria em achar que se trata de um esconderijo para as criaturas
que habitam aqui, se não fosse a luz emanando de dentro das fendas.
Agora a uma distância razoável do rochedo, vejo as silhuetas de prontidão do lado de fora das
passagens. Sentinelas. Algo importante está sendo mantido aqui.
Sem perder tempo, procuro por acessos secundários ou brechas que me permitirão entrar lá.
Ainda que em forma de corvo, tentar entrar pela fenda protegida seria idiotice.
Sabendo o que preciso, os corvos perscrutam a superfície irregular enquanto fazem o
reconhecimento do local. Na parte de trás, avisto uma erosão na pedra do tamanho de uma
cabeça humana. Não sei se é funda o suficiente, mas o diâmetro suporta a passagem de um
corvo.
Enquanto um entra, o outro se empoleira na escarpa, mantendo a vigília. Esqueço um pouco a
visão do lado exterior e foco no túnel à minha frente.
É totalmente escuro, mas corvos não precisam de luz para se orientar. Nos embrenhamos na
pequena fenda até algo começar a brilhar mais à frente.
O túnel culmina em uma abertura na parte alta do rochedo, com vista para seu interior. Lá
embaixo, o cenário é inusitado.
Dezenas de barracas enchem o espaço rodeado pelo rochedo, e ainda mais demônios circulam
pelas vias que as separam. Soldados uniformizados com o emblema da Ordem, até onde posso
ver, mas sem sinal do novo exército feito de magia escura.
Quais as chances de esse não ser o lugar certo? Que outros negócios Mammon teria num
esconderijo como esse, longe de tudo?
Observo a movimentação com uma inquietação crescente, tentando montar mais esse quebra-
cabeça.
Esses soldados estão passando muito tempo aqui, a julgar pelo acampamento robusto. Não
parece ter sido montado recentemente, e também não acho que será desfeito em breve. Estão
executando uma operação árdua aqui, mas onde estão os frutos dela?
No meio do reconhecimento, sinto meus ombros retesarem quando um rosto familiar entra em
meu campo de visão.
Gehenna caminha entre as barracas com passos duros e cabeça erguida, abrindo caminho entre
os demais antes mesmo de chegar neles.
Entretanto, não é a visão dela que faz minha respiração engatar por um segundo. Contra todas
as possibilidades e toda a lógica que rege este mundo, uma criança caminha às pressas ao lado
de Gen, não querendo ficar para trás.
A imagem é tão absurda que custo a acreditar no que estou vendo. Mas lá está ele, um garoto
da altura do torso de Gehenna, traçando caminho entre um destacamento inteiro de demônios.
Não pode ser uma criança humana, porque além das orelhas pontiagudas, a área ao redor dos
olhos é coberta de escamas.
Ele é algo mais. Algo novo.
A magia escura parece ter forjado essas novas criaturas do zero, literalmente. Ainda estão
crescendo.
Um dia, se tornarão as armas mais potentes do inferno, mas hoje ainda são filhotes
aprendendo a sobreviver.
A grande aposta de Mammon ainda não é seu maior trunfo.
E, se depender de mim, nunca se tornará.
29: SIENNA
Daylight, David Kushner

Minha parte favorita da casa é, com absoluta certeza, a banheira que mandei instalar quando me
mudei para cá. É pequena e divide espaço com o box, mas sem ela meus dias seriam mais
estressantes do que já são.
É nela que recarrego as energias depois de um dia cansativo ou solitário, e hoje o dia foi uma
mistura de ambos.
Brinco com as bolhas de espuma pairando acima da água, sem a menor vontade de abandonar
meu banho reconfortante mesmo depois de quase uma hora.
Tenho uma coreografia para ensaiar, mas não consigo reunir a disposição necessária para
encarar minhas obrigações, então uso a desculpa de que não posso avançar muito sem Liang para
acompanhar.
Melhor seria se eu estivesse mesmo me ocupando, assim não deixaria a mente vazia para ser
feita de oficina. Não estaria imaginando o que Kai pode estar fazendo agora e se ainda pretende
me ver de novo fora dos meus sonhos.
Faz cinco dias desde a última vez que nos vimos. Bem, dois, se contarmos com aquela partida
esquisita de xadrez.
Por que meus sonhos nunca fazem sentido? Lembro deles quando acordo, mas enquanto estou
lá, não consigo agir de forma consciente. É como ser telespectadora de um filme criado pela
minha própria cabeça.
Dessa vez, hesitei por um tempo enquanto pensava se devia ou não contar a Thalia o que ouvi
de Kai. Quantas vezes mais eu precisarei traí-lo? Isso por si só faz eu me sentir o pior ser
humano do mundo, mais do que qualquer julgamento de Thalia.
Não importa o quanto eu diga que é por um bem maior, que é a minha vida que está em jogo,
ainda sinto gosto de sangue na boca depois que revelo os segredos dele. Por um lado, sou
secretamente grata por não precisar encará-lo agora que está longe.
Não consigo me impedir de pensar que ele está me evitando depois da cena que causei no
nosso último encontro, da qual também fugi no final.
Talvez ele esteja mais bravo do que deixou transparecer no sonho sobre a minha indecisão em
relação a nós dois, mas o que eu poderia fazer? Fugir tem sido uma das poucas opções que ainda
tenho.
Estou mergulhando num estado de autocomiseração quando algo muda no ambiente. Meu
corpo é mais rápido que meu raciocínio, e arrepios me varrem sem nenhum aviso.
Só há uma pessoa no mundo capaz de provocar essa reação em mim. É assim que sei que ele
está aqui.
Com o sangue bombeando mais rápido nas veias, me preparo para enfrentá-lo de novo. Mas
somente culpa e coisas constrangedoras me vêm à cabeça, então me obrigo a manter a
neutralidade.
— E eu achando que ainda tinha o mínimo de privacidade — digo, sabendo que ele pode me
ouvir, embora ainda não tenha me virado para vê-lo.
— Esperava se esconder no banheiro para sempre?
A voz dele. Ah, como senti saudade dela…
— Não custa nada tentar.
A risada abafada de Kai ressoa pelo cômodo, enviando ondas elétricas pela minha espinha —
uma reação que estou longe de ser capaz de controlar.
— Vai precisar de mais do que nudez para me intimidar, monstrinho — diz.
Me sento na banheira, esticando o braço para pegar o roupão na cadeira. No entanto, devo ter
esquecido de trazê-lo, porque não encontro nada lá.
Ótimo. Não é como se minha toalha estivesse pendurada na frente da pia onde Kai
provavelmente está encostado agora.
Contenho um suspiro.
— Vire de costas — murmuro.
— Por quê?
Cretino.
— Esse jogo é baixo até para você.
— Não sei do que está falando.
É mais um de seus desafios não verbalizados. Conhecendo-o como conheço, ele não vai ceder
até que eu deixe claro que não o aceito.
Só que eu nunca fugi de nenhum deles e não pretendo começar agora. Ele não é o único que
pode jogar esse jogo.
Fico de pé na banheira, com água escorrendo pelo meu corpo, mas pelo menos meu cabelo
está seco e bem preso no topo da cabeça. Obrigo minhas mãos a continuarem abaixadas e me
viro na direção da pia.
Encontro Kai de braços cruzados, apoiado no mármore. Vê-lo depois de todos esses dias me
traz de volta a sensação que cresceu comigo enquanto eu o assistia ir e vir ao longo dos anos. O
impulso de correr até ele e enlaçar os braços em torno de seu pescoço ainda é o mesmo.
Kai me encara de volta, sem nunca desviar os olhos dos meus.
Ele nunca admite que eu venci um desafio.
— O quê? — Ergo uma sobrancelha displicente conforme saio da água e vou até o cabide da
toalha. — Se sentindo intimidado?
O demônio nem pestaneja. Não sou tímida com o meu corpo, mas nunca foi tão difícil manter
a postura com alguém me olhando assim.
— Nem um pouco — diz, vendo eu me enrolar na toalha.
— Estou vendo — retruco. — Nem ao menos consegue reagir como uma pessoa normal.
Ele nem arriscou uma olhadela! Provavelmente é sua maneira de não me deixar vencer
totalmente. Maldito.
Passo por ele no caminho até a porta, perfeitamente ciente da pulsação fora de controle em
meu peito. Nunca conseguirei provocá-lo sem ser a primeira a sofrer com isso.
Porém Kai segura meu braço e me impede de dar mais um passo adiante.
Minha pele queima onde ele me toca — um presente da minha imaginação traiçoeira —, mas
me limito a olhar para frente, forçando uma indiferença impossível. Meu corpo inteiro se retesa
com antecipação.
Sem mais nem menos, o demônio me empurra suavemente contra a pia, cobrindo meu corpo
com o seu e me cercando com os braços.
Por mais que force uma máscara despreocupada, as pupilas dilatadas dele entregam uma parte
do que se passa em sua mente agora. Nada bom, tenho certeza.
— Você ficaria surpresa com o tanto de coisas que uma pessoa normal nunca poderia fazer
com você — fala, afiado como uma lâmina. — Eu, por outro lado… Talvez você descubra
qualquer dia desses que Deus não é o único que você pode adorar de joelhos, monstrinho.
Seu olhar muda para os meus lábios, e pouco posso fazer para esconder o arrepio que me
percorre de uma extremidade à outra com a insinuação descarada.
Como ele consegue fazer isso sem sequer me tocar? Com um olhar, ele me desmonta. Com
palavras, ele me molda à sua vontade.
Não sou a única levando o jogo a sério, e suspeito não estar à altura do meu oponente.
Usando meu último fio de racionalidade, deslizo para o lado e escapo.
— Tenho uma dança para ensaiar — digo, ligeiramente afobada. — Se não se importar…
Abro a porta e saio para o corredor, precisando de ar fresco.
Kai não fica para trás.
— Posso ser seu parceiro.
Ele me segue até a porta do quarto.
Pego o vestido que deixei em cima da cama e o visto rapidamente por cima da toalha, sem
coragem para me secar de forma adequada.
— Nada pessoal, mas não sei se você atenderia aos requisitos.
Nunca imaginei Kai fazendo uma coisa tão comum quanto dançar, mas preciso admitir que o
pensamento me deixa intrigada. Ele é do tipo que acompanha ou do que toma o controle e
conduz?
Enfiando as mãos nos bolsos, o demônio não se deixa abater pela minha falta de fé.
— Tenho permissão para tentar? — pergunta.
Há um desejo sincero em seus olhos. É por isso que não rejeito a oferta imediatamente,
embora devesse.
Acho que posso dar uma chance a ele e dispensá-lo com a consciência tranquila quando ele
ver que não dá conta da tarefa. Além disso, que mal fará uma dança?
Prendo o cabelo num novo coque antes de sair do quarto outra vez, liderando o caminho até a
sala. Kai não diz nada enquanto me acompanha.
Paro no centro do tapete e me viro para ele. É estranho vê-lo sem a insinuação de sorriso no
canto dos lábios.
Ele não parece estar se divertindo às minhas custas agora, em vez disso, me olha como se
estivesse esperando que eu conduza nossos próximos passos.
Acho que estou prestes a descobrir que tipo de parceiro de dança tenho em mãos.
Estendo a mão para Kai, que a pega sem hesitar. O calor de sua pele é vertiginoso.
Pecaminosamente convidativo.
Por que estou me metendo nessa?
— Coloque a mão aqui — falo sem muita firmeza na voz, trazendo seu toque para a minha
cintura.
Ele faz o que digo. Não questiona, simplesmente obedece.
Tento não pensar muito no quão perto estamos e no quanto isso consegue ser mais íntimo que
a troca no banheiro. Ponho uma mão em seu ombro e com a outra entrelaço nossos dedos.
Kai me estuda como um aprendiz aplicado faria.
Devagar, começo a guiar nossos movimentos.
Mantenho os passos moderados para deixá-lo se acostumar ao ritmo. Surpreendentemente —
ou não —, ele se sai muito bem. Nossa dança é fluida, quase certa demais. Me faz pensar nas
danças que Kai andou tendo por aí ao longo de tantos anos de existência. Quantas mãos ele já
segurou?
Me aproveitando de sua aparente desenvoltura, prossigo para uma parte mais complexa da
coreografia. É onde Francesca deve dar as costas a Paolo para ser erguida do chão. Começo a
ficar de costas para ele.
— Quando eu me virar, você me lev… — Mas já estou no ar antes de sequer terminar a frase.
Kai realiza o movimento como se estivesse habituado à coreografia.
Nem mesmo Liang conseguiu fazer isso nos primeiros minutos de ensaio.
Mas ainda que o demônio tenha esse talento oculto, ele não tinha como prever qual seria o
próximo passo.
— Andou assistindo meus ensaios? — acuso mais do que questiono.
Se tem algo que aprendi sobre Kai, é que ele não precisa estar por perto para estar lá. Talvez
ele tenha uma bola de cristal no inferno e fique assistindo minha vida como um filme.
Me colocando de volta no chão, ambas as mãos em minha cintura, ele aproxima o rosto da
minha orelha.
— Andei assistindo você — confessa.
Fecho os olhos pelo tempo de uma respiração, reunindo forças para continuar. Mas quando
volto a ficar de frente para ele, a última coisa em minha cabeça é a dança.
Ele está perto e quente demais para o meu próprio bem. E a mecha caindo em sua testa nunca
pareceu tão provocativa quanto agora.
Seria errado demais passar os dedos pelo cabelo dele?
— Vá em frente — ele fala, me pegando de surpresa.
Engulo em seco, sentindo as maçãs do rosto esquentarem.
— O quê?
O canto de seu lábio flexiona num esboço de sorriso.
— Faça o que está pensando, monstrinho. Nós dois sabemos que você quer.
É só cabelo, repito várias vezes em minha mente. Se eu fizer isso agora, vou poder esquecer
esse impulso irracional de uma vez por todas. Uma vez que souber qual é a sensação de senti-lo
entre meus dedos, posso parar de sonhar com isso. Certo?
Minha mão ganha vida própria e toma a decisão por mim. Só por agora, vou fingir que não há
motivos para resistir.
Como se antecipando meu toque, os olhos do demônio escurecem vários tons. Ele alegou
saber o que eu queria, mas e quanto a ele? Porque, a julgar pela forma como me olha agora, eu
diria que ele deseja esse contato tanto quanto eu.
Quando foi que o mundo virou de ponta cabeça e deixou Kai e eu no mesmo lugar?
O primeiro roçar dos dedos é hesitante, quase cauteloso. Não tento ajeitar os fios no lugar
ainda, em vez disso, brinco um pouco com eles. Gosto da maneira como deslizam pelos meus
dedos, sem nenhuma resistência e fazendo cócegas.
Quando enfim empurro a mecha rebelde para trás, estendo o gesto o máximo que posso.
Quem eu estava tentando enganar? Não sinto que perdi o interesse agora que fiz o que por
tanto tempo desejei. Tocá-lo uma vez nunca vai ser o bastante.
As mãos de Kai começam a retomar o caminho para minha cintura, mas me afasto com um
sobressalto quando meu celular toca em cima da mesa.
Com a pulsação latejando nos ouvidos e as pernas bambas, corro para atender.
Essas interrupções só podem ser interferência divina.
De todos os momentos possíveis, custo a acreditar que minha mãe escolheu justo esse para
fazer uma chamada de vídeo comigo. Parece que o Karma já está agindo.
Olho rapidamente por cima do ombro para garantir que Kai está longe o bastante para passar
despercebido. Se minha mãe colocar os olhos nele, vou ter tantas perguntas para responder que
nem saberei por onde começar.
Com as mãos suadas, atendo a chamada.
— Querida, quis ligar antes, mas estou tão atolada de coisas — mamãe fala assim que me vê
na tela. — Passei os dois últimos dias na casa da lagoa, deixando tudo em ordem, mas quanto
mais organizamos, mais temos coisas para fazer. Como está por aí?
Consigo ver em seu rosto o quão cansada ela está por causa do casamento que acontecerá
daqui a três dias, e imediatamente me sinto mal por não estar lá para ajudá-la.
— Tudo tranquilo — digo, ensaiando um sorriso apaziguador. — Como estão o vovô e o
Renan?
Sem erguer os olhos, vejo quando Kai muda de posição. Espero que ele não esteja pensando
em me meter numa enrascada.
Mamãe suspira do outro lado.
— Seu avô decidiu manter distância da montagem, depois de quase arranjar briga com os
decoradores por causa das galinhas, e Renan está mais ansioso do que eu. Até montou arranjos
com as próprias mãos quando percebeu que alguns lugares ficariam sem flores, coitado. Vou te
enviar as fotos que fiz… — Ela para na metade da frase, arregalando os olhos levemente. — Ah,
oi! Não sabia que estava acompanhada, filha.
Percebo tarde demais que Kai surgiu atrás de mim, acenando para a câmera por cima do meu
ombro.
Meu rosto queima no mesmo instante.
— Não é… — Balbucio, tentando tirá-lo de cena. — Quer dizer, ele não…
— Olá — o demônio cumprimenta. — Sou o Kai.
Cerro os dentes, desejando mais que tudo estapeá-lo pela audácia.
Mamãe acena de volta com um sorriso agradável.
— E eu sou Amélia — responde ela. — Me desculpem por ter atrapalhado vocês.
— Não atrapalhou — Kai fala, ao mesmo tempo em que retruco:
— Ele já está de saída.
Ficamos os três em silêncio por cinco longos segundos, e eu não consigo lembrar de uma
situação mais constrangedora que essa.
Demônio maldito.
Minha mãe é a primeira a recuperar a fala.
— Ele sabe do casamento, querida? — pergunta, para o meu total e completo horror. — Sinta-
se convidado, Kai. Vai ser um prazer te conhecer melhor.
Ah, não… Sem chances de isso acontecer!
— Ele não… — começo, mas Kai também se adianta:
— Agradeço de coração, Amélia. O prazer será todo meu.
Aí está o verdadeiro Kai de volta, se divertindo às minhas custas. É claro que isso aconteceria
mais cedo ou mais tarde.
Resisto ao impulso de dar uma cotovelada em seu estômago enquanto mamãe assiste.
Ela assente em resposta, mas logo está me dando aquele olhar conspirador que adora usar
quando acha que estou tramando algo.
— Ligo para você depois, filha, pode ser? — sugere, mordendo outro sorriso. — Te amo,
tchau!
E a ligação é encerrada sem mais nem menos.
Me viro para Kai com um olhar assassino.
— Está proibido de aparecer no casamento da minha mãe — decreto, fechando a cara.
Ele anda até o sofá e se senta com os cotovelos apoiados nas coxas.
— Fui convidado, não fui?
Cínico. Cretino. Por que ele sempre tem que levar vantagem em tudo?
— Não importa. Como vou explicar você sumindo e aparecendo do nada o tempo inteiro?
E esse nem seria o maior dos problemas. Minha mãe não precisa de entidades sobrenaturais
perambulando em seu casamento, e isso vale tanto para Kai quanto para o anjo. Ela poderia até
não saber quem eles são, mas eu saberia.
E a última coisa que quero é passar a ocasião inteira sendo lembrada do meu destino
nebuloso.
— Você vai pensar em algo — diz ele, piscando um olho para mim.
— Não. É só um fim de semana. Você pode esperar eu voltar para casa.
Estou sendo bastante razoável aqui. Ele admitiria que estou certa se seu único objetivo não
fosse me provocar.
Com um sorriso petulante que alcança os olhos, Kai arqueia a sobrancelha.
— Mas onde estaria a graça nisso, monstrinho?
Isso deve ser um lembrete do porquê não se deve convidar seus demônios para uma dança.
Eles definitivamente não sabem brincar.
30: SIENNA
Eyes don't lie, Isabel LaRosa

O dia do casamento de mamãe amanhece nublado, e embora seja uma data feliz, meu humor não
está muito melhor que o tempo.
Há algo sobre voltar à casa da lagoa, onde possivelmente Kai me encontrará em algum
momento, que me deixa inquieta e com uma sensação estranha na barriga.
Voltei a vê-lo depois da nossa pequena dança, mas não consegui arrancar sua promessa de que
manteria a distância durante o fim de semana. Julguei prudente já começar a pensar na história
que vou precisar contar à minha mãe e ao resto da família.
Thalia, por outro lado, garantiu que tentaria ser o mais discreta possível em sua próxima
visita. Mas não é o que ela pode causar que me preocupa. Depois dessas semanas, lidar com o
anjo ficou muito mais fácil.
Ao contrário de Kai, ela não é uma caixinha de surpresas. Não espero de Thalia nada menos
que um comportamento exemplar.
— Sua irmã chegou.
Paro de encarar a espuma do meu capuccino e ergo os olhos para Thalia.
Ela observa algo do lado de fora da cafeteria, e quando sigo seu foco, vejo um carro parando
rente ao meio-fio.
Gia está alguns minutos adiantada, o que significa que meu tempo na companhia do anjo
acabou mais cedo que o esperado, mas isso não é de todo ruim. Quanto mais cedo pegarmos a
estrada, mais cedo chegaremos no interior.
Eu teria saído nas primeiras horas de sol se estivesse viajando sozinha, mas mamãe deu a
ideia de Gia e eu irmos juntas, e como eu não tinha nenhum motivo bom para rejeitar, acatei a
sugestão.
Observo-a sair do carro, vestindo shorts, sandálias e uma camisa regata. Está mais parecida
com a garota que conheci sob circunstâncias pouco convencionais. Mas ela não é a única pessoa
a deixar o carro.
Minha mente trabalha para tentar descobrir se a mulher que agora segura a mão de Gia é a
mesma pessoa que conheci em seu apartamento, mas não chego a uma conclusão. Nem mesmo
cheguei a saber o nome dela naquele dia.
Dou mais goles na minha bebida, perfeitamente ciente de que precisarei apresentar Thalia a
Gia, a não ser que o anjo desapareça nesse exato instante.
Apresentar um anjo a uma cartomante sensitiva. Não há nenhuma forma de tornar isso menos
estranho.
Como se notando a direção dos meus pensamentos, Thalia esboça um sorriso complacente.
Aproveito sua aparente boa vontade para traçar um plano.
— Vou dizer que você e eu estudamos juntas, ok? Vai evitar mais perguntas.
Ela encosta na cadeira, mas não diz nada contra ou a favor.
Respiro fundo, decidindo levar a ideia adiante e ver no que vai dar.
Quando Gia e sua acompanhante se juntam a nós na mesa, trocamos breves abraços e
cumprimentos, e quando não posso mais evitar, começo as introduções.
— Thalia, essa é Gia, filha do meu padrasto — digo, e o que se segue é uma troca hesitante de
olhares.
O anjo não sorri ou faz qualquer movimento para cumprimentar Gia.
Pelo amor de Deus, anjos não aprendem etiqueta?!
Me viro para Gia na tentativa de amenizar o clima.
— Thalia e eu estudamos juntas. — É a melhor invenção que eu poderia pensar?
Provavelmente não, mas é a mais fácil e a menos suspeita.
O rosto de Gia se enche de compreensão.
— Então você também é atriz? — pergunta ela. — Que engraçado, não conhecia nenhuma
atriz até semana passada e agora já conheço duas.
Começo a responder no lugar do anjo, mais do que ciente de que ela não irá se juntar a mim
na mentira que criei, mas Thalia estreita os olhos ligeiramente.
— E você é a cartomante? — murmura, medindo Gia dos pés à cabeça. — Que engraçado, já
eu conheço muito mais cartomantes do que gostaria.
Arregalo os olhos por meio segundo, embasbacada.
Me adianto para mudar o foco da conversa, mas Gia já está corrigindo a postura e com a
resposta na ponta da língua.
— E você é assim com todas ou só comigo mesmo?
Toco o braço da cartomante, desesperada para mudar de assunto.
— Gia…
— Com todas, não — Thalia interrompe, ficando de pé de repente. — Acho que nos veremos
mais tarde, Sienna. Façam uma excelente viagem.
E então ela se afasta da nossa mesa e some de vista pelas portas duplas do café.
Ficamos as três encarando o trajeto do anjo em um silêncio consternado.
O que deu em Thalia? Que motivos ela teria para tratar Gia com tanta aspereza? Ela parecia…
contrariada. Um pensamento me ocorre, mas o descarto rapidamente. O anjo com certeza não
estaria com ciúmes de Gia. Estaria?
Deus, que situação tenebrosa.
O mais rápido que consigo reagir, e esperando que seja bom o bastante para quebrar o gelo,
me viro para a mulher parada ao lado de Gia.
— Desculpa, não lembro seu nome.
A mulher de cabelo pixie pestaneja por meio segundo e em seguida abre um sorriso ansioso.
— Ah, ainda não nos conhecemos. Sou a Mel.
Outra garota, então.
Só agora desviando a atenção da saída, Gia torce o nariz coberto de sardas e me olha com ares
de acusação.
— Que fique registrado: gosto mais da sua outra amiga.

Leva quase três horas para chegarmos à casa da lagoa. Não consigo desligar a mente o suficiente
para dormir, mas também não me sinto particularmente sociável a essa hora da manhã, então,
pela maior parte do tempo, finjo estar cochilando.
Funciona, porque nem Gia nem Mel tentam me incluir em suas conversas. É um alívio,
considerando que não quero ter que voltar ao tópico Thalia.
Só volto à vida quando entramos na cidadezinha onde passei minha infância, uma vez que Gia
não sabe o caminho para a casa do meu avô.
Quando o carro para na frente da casa amarela de dois andares, Gia olha ao redor e assobia.
Sei exatamente o que ela está pensando.
A casa rodeada de árvores e a lagoa aparecendo logo adiante também me deixam
impressionada mesmo depois de tanto tempo.
— Você cresceu aqui? — pergunta ela, me olhando no banco de trás. — Que lugar incrível.
Sim, é incrível. Para uma criança, poucos lugares seriam tão extraordinários para se crescer.
— Passei mais tempo com os meus avós, então sim. Tenho ótimas memórias aqui.
Assim que meus pés pisam na grama e o vento bagunça meu cabelo, sou invadida pelo
sentimento de nostalgia.
Sinto falta desse lugar. Desde que entrei na Academia e me mudei para a cidade, tive poucas
oportunidades de voltar aqui. E depois que vovó adoeceu e morreu, a ideia de estar aqui de novo,
cercada pelas lembranças dela, por muito tempo me deixou deprimida.
Por mais que a saudade do meu avô fosse imensa, eu não consegui me forçar a visitá-lo até
que a dor se tornou um pouco mais gerenciável. Mas apesar de tudo, é ótimo estar em casa de
novo.
Pela porta aberta, vejo mamãe sair meio andando, meio correndo. Descalça e radiante, ela
desce os degraus da entrada para vir em nossa direção. Meu peito se aquece conforme ela se
aproxima.
— Aí estão vocês — diz ela, sorrindo de lado a lado.
Mamãe abraça Gia primeiro, depois Mel, a quem é brevemente apresentada, e por último
envolve os braços ao meu redor.
— Ah, que pena a Ágata não ter vindo.
Ajeito a alça da mochila no ombro.
— É, o pai dela está no meio da campanha política e ela sempre se ocupa com isso nos fins de
semana. Mas ela mandou beijos e presentes.
Compartilhamos brevemente os detalhes da viagem e mamãe diz a Gia onde ela pode
encontrar o pai.
— Queria dar mais atenção a vocês, mas pelo visto a noiva é a que mais precisa trabalhar
durante a festa de casamento — diz, rolando os olhos.
— Podemos ajudar com algo? — pergunto, observando os arredores e vendo que a decoração
já está no lugar.
Ao fundo, na margem da lagoa, a estrutura para a cerimônia também parece finalizada.
— Não, só estou acertando pequenos detalhes aqui e ali — mamãe explica, abanando a mão
no ar. — Por que não aproveitam o sol enquanto curtem a piscina?
Gia faz um som de aprovação e minha mãe passa o braço pelos meus ombros.
— Deixem suas coisas lá em cima, meninas — diz a Gia e Mel. — Terceiro quarto à
esquerda.
Quando as duas se afastam, mamãe dedica sua completa atenção a mim. Ela tem aquele
mesmo olhar matreiro que usou na nossa última ligação.
— Eu estava mesmo esperando que ele viesse, sabe? — Ela me olha de lado.
— Quem?
— Kai. Gostei dele. São amigos da faculdade?
Crispo os lábios, sem acreditar que minha mãe está realmente perguntando por ele. O fato de
ela não saber quem ele é de verdade torna tudo pior.
— Amigos não é bem a palavra certa.
Mas ela interpreta minha evasiva da forma errada.
— Ah… então quero conhecer ele mais ainda. É coisa séria?
— Mãe, não estamos juntos. Ele é só um cara que conheço e estou passando tempo ao redor
para ver no que vai dar.
Não é exatamente uma mentira.
— Entendi — diz ela por fim. — Que pena. Ele é bonitinho.
Contra fatos não há argumentos. Mas…
— Não foi você quem me ensinou que beleza não é tudo? Vamos dar tempo ao tempo. E
talvez ele apareça aqui em algum momento. Ele gosta de ser imprevisível.
Mamãe ri, balançando a cabeça em descrença.
— É errado eu estar achando isso engraçado? — pergunta. — Você se mete em cada uma,
filha…
Outra coisa que não posso negar. E ela nem sabe o quanto isso é verdade.
Desvio os olhos para a grama recém-aparada.
— Pelo menos uma de nós está achando graça.

Só subo as escadas depois que encontro vovô e o abraço por vários minutos. Ele parece forte e
alegre, quase igual a quando vovó estava aqui. Sei que está feliz por mamãe porque eu não o via
sorrir tanto há anos. É um dia bonito.
Descubro que meu quarto não mudou quase nada. Os móveis ainda são os mesmos, os livros
nas prateleiras não foram mexidos, e até a cortina de renda que vovó fez para mim ainda cobre a
janela. A única diferença é que, sem mim para bagunçá-lo, o quarto está muito mais limpo.
Me aproximo da cama e examino a colagem de fotos na parede acima da cabeceira. São
lembranças do ensino médio, em sua maioria, mas também há capas de álbuns que eu não
conseguia parar de ouvir na época, e desenhos que rabisquei e não tive coragem de jogar fora.
Um desses desenhos é dolorosamente ruim, no entanto, sempre foi o meu preferido.
Tiro a fita que o prende à parede, trazendo a folha para mais perto.
São traços grosseiros e descuidados, nitidamente feitos por uma criança.
Era para ser o retrato de um rapaz sentado sob uma árvore enquanto come uma fruta, mas
minhas habilidades de desenho não acompanhavam minha intenção.
Na minha memória, o dia em que conheci Kai foi muito mais especial do que esse esboço. Eu
jamais teria conseguido replicar a visão que tive.
Sorrio para o desenho que guardei comigo durante vários anos. Ele é só mais uma prova de
que Kai não mudou nada, ao menos não por fora.
— O que exatamente isso deveria representar?
Quase deixo o papel cair, tamanho é meu susto. Me viro apenas para dar de cara com Kai, que
parece ter sido invocado pelos meus pensamentos.
Um vinco cresce entre suas sobrancelhas à medida que ele analisa o desenho na minha mão
como se estivesse tentando desvendar um enigma.
Dou-lhe um olhar acusatório.
— Não consegue ficar menos de vinte e quatro horas longe de mim?
Ignorando meu comentário, Kai move um braço com agilidade e rouba a folha.
— Devolva! — Automaticamente tento recuperar o item.
Mas o demônio é mais alto e consegue mantê-lo fora do meu alcance sem dificuldade. Ele
estuda o desenho de perto, desviando das minhas investidas.
— Lembro desse dia — fala em seguida. — Você me desenhou depois que foi embora?
Desisto de tentar vencê-lo e me sento na cama com um longo suspiro de derrota.
— Estava de castigo e entediada.
Kai sorri, e parece estar revisitando memórias antigas.
— Comi muitos pêssegos naquele dia.
— Eu sei. Você me deu um. — Uma teoria me ocorre. — Pensando bem, era para ser uma
recompensa por eu ter me comportado mal?
— Uma recompensa pela vingança muito bem feita — corrige ele, me devolvendo o desenho.
— Não sobrou uma cenoura para contar história.
Uma risada involuntária me escapa.
— Não como cenoura até hoje, sabia?
— Pelo menos ninguém pode dizer que você não é obstinada.
Começo a responder que ele não está errado, mas alguém bate na porta do quarto.
Alarmada, salto da cama e alcanço a maçaneta.
Gia me espera do outro lado, com as mãos nos bolsos do short, e quando nota por cima do
meu ombro que não estou sozinha, ela ri meio sem jeito.
— Ops. Não sabia que tinha mais alguém aqui — murmura.
— Gia, esse é Kai — falo sem arrodeios, não querendo prolongar o momento como foi com
Thalia.
— Legal — diz, acenando de volta para Kai. — Só vim perguntar se você está a fim de dar
uma volta pelo lote. Amélia disse que a vista é bonita lá em cima.
— Sim. Boa ideia. Descemos em um minuto.
Gia vai embora tão rápido quanto chegou, e quando fecho a porta, me viro para encarar o
demônio.
— Você vai ter que arranjar outra roupa.
Uma ruga surge na testa de Kai.
— O que tem de errado com essa? — questiona.
— Se vai ficar, pode tentar chamar o mínimo de atenção possível. Andar num sol de quarenta
graus usando calça e camisa de mangas vai fazer o oposto.
O cenho franzido dá lugar a um sorrisinho.
— Sou mesmo um segredo sujo que você quer esconder, não é?
Reviro os olhos, ainda que somente para disfarçar o calor em meu rosto.
— Vou trocar de roupa — digo. — Desça em cinco minutos ou fique para trás.
Não é um desafio, mas ele entende como um.

Quando volto ao andar de baixo, Kai já está esperando por mim no pé da escada.
Estanco no lugar por um instante, embasbacada demais para garantir que não irei tropeçar nos
degraus.
Ele realmente encontrou outra coisa para vestir. Embora continue descalço, não há nem sinal
da camisa e calça que veio usando religiosamente desde que o conheci.
No lugar delas, ele veste um short bege que chega até metade das coxas e uma camisa leve de
algodão, com mangas até os cotovelos e botões na parte de cima. Mas nenhum botão está
fechado e a fenda no tecido revela um pedaço da pele bronzeada de seu peito.
Minha mente, ávida demais quando o assunto é Kai, cria um cenário onde estou passando a
mão por essa fenda, sentindo o calor de sua pele e a tensão dos músculos em reação ao meu
toque.
Como ele se parece por baixo dessas roupas?
Engulo em seco, sentindo uma comoção balançar muitas partes do meu corpo. Ele parece…
um pedaço de mau caminho, no sentido literal da palavra.
Tenho que focar para terminar de descer a escada com as pernas trêmulas e o coração
martelando.
A somente dois degraus dele, o demônio passa a língua pelos lábios.
— Estou discreto o suficiente agora? — pergunta, aparentemente satisfeito com o que vê em
meu rosto.
Acho melhor não responder que, vestido assim, ninguém em sã consciência o deixaria passar
despercebido, afinal, fui eu quem sugeri a troca de roupa.
No entanto, conforme passo por ele rumo à porta, me pergunto como foi que consegui piorar a
situação ao deixá-lo ainda mais irresistível.
31: SIENNA
Skin and Bones, David Kushner

Nos limites da propriedade de vovô, subindo uma encosta às margens do lago, há uma antiga
capela abandonada desde que me entendo por gente.
Vovó costumava aparar a vegetação ao redor para impedir que a construção fosse
completamente engolida pela natureza, mas agora a grama está alta e a trilha que leva a ela
praticamente não existe mais.
É Mel quem decide se aventurar pela relva com a promessa de que as fotos lá de cima ficarão
ótimas com a vista que a capela proporciona.
Gia logo cede e começa a ir atrás dela, e porque espera-se que eu cumpra o papel de anfitriã,
sigo as duas.
Kai me acompanha de perto, a postura descontraída como se um pouco de sol fosse
justamente o que estava precisando.
Evito olhar para ele mais do que o estritamente necessário, ainda não acostumada com sua
mudança de visual. Talvez por Gia e Mel estarem logo adiante, ele não tenta iniciar conversas
comigo e eu também não me esforço. Fico secretamente grata por isso, embora não vá admitir
em voz alta.
Ao final da trilha, a velha construção se ergue contra a luz do sol, criando um ambiente
favorável para as fotos de Mel.
É realmente uma vista e tanto quando se olha daqui de cima. É possível ver não somente a
lagoa na descida da encosta, mas também parte da mata que circunda o lote. Devo ter pelo menos
uma dúzia de fotos de aniversário com essa paisagem de fundo.
Empolgada pela recompensa da aventura, Mel se põe a discutir com Gia quais seriam os
melhores ângulos e poses. Querendo dar um pouco de privacidade a elas, cruzo o velho arco da
porta para fugir do sol impiedoso, deixando que explorem os arredores da igrejinha.
Pelo canto do olho, vejo Kai me seguir capela adentro.
Está quente demais até para essa época do ano, e por um breve instante, me arrependo de não
termos seguido o conselho de mamãe e ficado na piscina nos refrescando.
Passo por duas fileiras de bancos e subo os degraus até o púlpito abandonado.
Aqui deve ser o ponto mais arejado da capela, considerando as janelas que se abrem dos dois
lados, portanto é onde vou esperar até podermos ir embora.
Tomo um pequeno impulso e me sento no púlpito, chegando à conclusão de que não é um
desrespeito se ninguém estiver vendo.
Kai estuda o cenário ao redor, com todos os objetos religiosos espalhados pelas paredes.
Me pergunto com que frequência ele entra em templos sagrados, e se é estranho de alguma
forma. Pode não ser um vampiro, mas, até onde sei, esse ainda é território inimigo.
Descuidado, ele percorre um dedo por um vitral particularmente empoeirado, deixando um
rastro através da sujeira.
— Está abandonada há alguns anos já — digo como se precisasse justificar todo o descaso ao
nosso redor.
Kai perde o interesse no vitral e começa a subir os degraus do altar onde estou. Sua expressão
é ilegível, de modo que não tenho como saber por onde andam os pensamentos dele.
— Há templos mais vazios que esse, e nem estão abandonados — murmura, sem tecer
explicações.
Um pensamento específico me ocorre.
— Você não tem curiosidade de saber como é?
Uma interrogação se forma no rosto dele antes que eu termine de elaborar a pergunta.
— O céu — complemento. — Tantas pessoas frequentam igrejas como essa na esperança de
um dia acabarem lá… Você nunca teve vontade de saber o porquê?
Ele dá de ombros quando para na minha frente.
— Não dá para sentir falta de algo que você nunca conheceu. O que quer que haja lá, não
acho que eu precise.
— Que arrogante da sua parte — provoco.
— É apenas lógica — ele argumenta. — Cheguei até aqui sem ajuda divina. Por que só agora
eu precisaria dela?
O ser humano também não acha que precisa da promessa de uma vida sem dores, até precisar.
Mas não digo isso a ele. De toda forma, não acho que seja seu caso.
— Me acha idiota por querer ir para lá e não para o inferno? — indago, parte brincando, parte
preocupada com a resposta.
O semblante de Kai suaviza conforme ele me observa em silêncio.
Em resposta ao seu olhar, minha pulsação acelera ligeiramente.
— Eu não te acharia idiota por nenhuma decisão que você tomasse. Embora eu ache que essa
em especial tenha muito mais a ver com querer continuar viva do que o destino final da sua alma
quando morrer.
Não sei dizer até que ponto ele está errado, então não o corrijo.
— E por que acha que eu iria querer acabar no inferno? — pergunto depois de um instante.
Kai finge ponderar uma resposta, ao mesmo tempo em que encurta a distância já pequena
entre nós.
O fantasma de sorriso é varrido do meu rosto pela tensão da aproximação.
Sinto a temperatura de seu corpo se mesclando à minha própria, tornando a sensação um
pouco mais atordoante.
— Consigo pensar em uma coisa ou duas que seriam do seu interesse lá — insinua, baixando
a voz até ser quase uma carícia.
Engulo em seco, fugindo de seu olhar provocador.
— Não tenho tanta certeza assim — minto.
Nenhum de nós acredita nisso, é claro.
Kai toca meu queixo com um dedo, fazendo uma leve pressão para cima. Não tenho escolha a
não ser encontrar seu olhar de novo.
Sem que eu possa fazer nada para evitar, um calafrio me varre de uma ponta à outra. Gotas
grossas de suor descem pela parte do meu peito onde o biquíni não cobre. Minha respiração
vacila mais de uma vez.
Inabalável, Kai deixa a mão cair alguns centímetros.
— Está quente aqui — diz, numa cadência que ativa todas as partes adormecidas de mim.
Seus dedos roçam a pele suada da minha clavícula, desencadeando uma corrente elétrica por
todo meu corpo. Sinto a região esquentar sob seu toque como se estivesse em chamas.
Ele mal me toca, mas o deslizar suave dos dedos contra minha pele poderia ser facilmente
confundido com algum método de tortura. Me sinto a ponto de sofrer uma combustão.
Kai mantém meu olhar preso ao dele, testando meus limites. Enxergo em seus olhos tudo que
temo também estar estampado nos meus.
Fome. Fogo. Urgência. É, além de tudo, um pedido sussurrado às estrelas. Um desejo de
raízes tão densas quanto o oceano por trás desses olhos.
— Sabe que está em cima de um altar consagrado ao Senhor, não sabe? — pergunta, me
estudando com atenção. Sua voz adquire uma entonação rouca, quase sôfrega.
Não consigo evitar olhar para os lábios dele enquanto se mexem.
São tão convidativos.
— Sei — respondo em um fio de voz.
Também sei que deveria me importar com esse fato, mas não consigo lembrar por quê.
Seus dedos sobem mais um pouco, causando cócegas e arrepiando a pele já sensível. Brincam
ao redor do meu pescoço como se lidassem com algo extremamente frágil.
Fecho os olhos, temendo que o turbilhão de estímulos possa ser demais para o meu coração
mortal.
— É melhor rezar para ele não te ver ofegante assim.
Sinto cócegas nos lábios quando ele fala, e é assim que me dou conta de que a única coisa nos
separando é um movimento de cabeça — meu ou dele.
Não há sequer um motivo em minha mente pelo qual eu não deva puxá-lo para mim nesse
exato momento, e me perder em seu gosto como um bom samaritano se perderia no limbo.
Na verdade, sinto que, se não fizer exatamente isso, toda a minha existência até chegar nesse
instante terá sido em vão.
Me preparo para sentir seu gosto em meus lábios, e é o que teria acontecido se a voz de Gia
não viesse lá de fora.
— Sienna, terminamos aqui.
Praticamente me jogo do púlpito, ganhando o máximo de distância possível entre Kai e eu.
Meus batimentos são tão altos nos meus ouvidos que mal escuto quando Gia aparece na porta
da igreja três segundos depois e me olha com cara de paisagem.
— Vamos continuar explorando? — pergunta ela, alheia ao que acabou de acontecer aqui.
— Sim.
Desço do altar como se agora fosse eu quem estivesse em território inimigo.
Não olho para trás porque não preciso disso para saber que Kai está vindo.
Me pergunto se Gia realmente não nota minha agitação e o rosto vermelho, ou se apenas é
uma atriz melhor que eu.
Acho que acredito mais na segunda hipótese.

De volta à casa, Gia me puxa para um canto sem que ninguém perceba.
— Isso vai soar estranho, mas… quão bem você conhece esse cara? — pergunta, me pegando
de surpresa.
Pestanejo algumas vezes.
— Kai? Não somos tão amigos assim, mas acho que sei qual é a dele. Por que pergunta?
Eu esperava, no máximo, um comentário bobo sobre o que aconteceu na capela, mas Gia
parece preocupada de alguma forma.
— Não sei — diz ela, mordendo o lábio enquanto pensa. — Sinto uma energia esquisita vinda
dele. É diferente de tudo que já vi até hoje. Não posso afirmar que é ruim, mas eu recomendaria
tomar cuidado.
Ela pode sentir que tem algo estranho sobre ele? Maravilha. Não é como se o fato de ele ser
um demônio precisasse ser mantido em segredo.
Disfarço a tensão em meus ombros quando penso que Kai pode estar à espreita.
— Como eu disse, somos mais colegas que qualquer outra coisa — reafirmo para tranquiliza-
la. A última coisa que preciso é Gia pensando demais sobre esse assunto. Deus sabe o que ela
pode descobrir a partir de sua intuição. — Duvido que ele faria mal a uma mosca, mas prometo
prestar mais atenção.
Aparentemente mais aliviada, Gia dá tapinhas no meu ombro.
— Garota inteligente. Se precisar de ajuda, grite — diz.
— Obrigada, Gia.
Não sei muito sobre ela e ainda é cedo para considerá-la uma grande amiga, mas estou feliz
por tê-la na família. Ela é provavelmente a única pessoa que não perderia a cabeça me ouvindo,
se eu pudesse contar tudo o que está acontecendo comigo.
Observo conforme ela se afasta para encontrar Mel no caminho para a piscina, mas, no
segundo seguinte, meus olhos desviam até onde Kai está parado adiante, atirando pedrinhas na
lagoa e assistindo-as criar ondulações na água.
De costas para mim, ele não percebe minha atenção.
Logo me dou conta de que devo parecer uma maníaca observando-o assim, e é por isso que
me forço a entrar em casa. Um pouco de distância fará bem a nós dois agora.

O vestido que escolhi usar hoje é vermelho, tem alças e um decote moderado, mas consegue ser
modesto o suficiente para a ocasião.
Me visto com calma depois do banho, dedicando um tempo para as loções e cremes de pele
que guardo para momentos especiais.
Felizmente, não há mais vestígios do que as mãos de Edgar deixaram em meu pescoço. Teria
sido difícil esconder as marcas com esse vestido.
Decido não prender os cabelos, mas arranjo a cascata de forma que o volume fique escorrido
para trás e não espalhado por toda parte. Com excessão do batom combinando com o vestido, a
maquiagem é leve — em especial a sombra similar ao tom da minha pele —, e os brincos
perolados harmonizam bem com o resto.
Ainda estou dando os últimos toques quando Kai volta ao quarto, dessa vez usando a porta.
Estive evitando-o desde que voltamos da capela, mas sabia que mais cedo ou mais tarde teria que
ficar a sós com ele de novo. Pelo menos agora estou mais calma e não tão propensa a cometer
uma besteira.
Começo a me virar para dizer qualquer coisa, porém as palavras morrem em minha boca
quando ponho os olhos nele.
Pela segunda vez no dia, estou de queixo caído por causa do demônio.
As roupas de verão se foram e no lugar delas ele usa um blazer por cima do colete preto e
calças da mesma cor. Abaixo do colete, as golas da camisa social branca aparecem, e em seus
pés o sapato impecavelmente lustroso se destaca.
Contenho um suspiro, me dando conta de que qualquer palavra para descrevê-lo agora seria
um eufemismo.
Como pode não haver monumentos erguidos em homenagem a este homem?
Kai sorri quando me pega encarando-o.
— Acertei na escolha? — pergunta ele, guardando as mãos nos bolsos. — Achei que a
ocasião pedia algo mais elaborado.
Não consigo decidir o que me deixa mais abalada: a visão dele nessas roupas ou o fato de ele
ter se preocupado em ficar adequado para o casamento da minha mãe. Eu não teria me importado
se ele aparecesse descalço e com os trajes de sempre, mas reconheço o esforço que fez.
— Combinou com você — respondo, mas soa falso pelos motivos errados.
Há mais coisas que eu gostaria de dizer.
O olhar de Kai aquece conforme ele me analisa lentamente da cabeça aos pés.
De repente, estou nervosa demais para continuar quieta, e começo a tentar fechar o zíper na
parte de trás do vestido. Antes que eu sequer o alcance, Kai já está na minha frente.
Ele me vira gentilmente de costas, de modo que fico diante do espelho e posso vê-lo atrás de
mim. Nossos olhares se encontram no reflexo ao mesmo tempo que sinto seus dedos na pele
exposta das minhas costas.
Kai brinca por alguns segundos antes de subir o zíper, mas assim que termina a tarefa, sua
mão sobe para os fios de cabelo em minha nuca.
— Sabe o quanto estou me segurando para não ser o vilão da sua história? — murmura em
meu ouvido. — Você não facilita, não é?
Engulo tão alto que consigo ouvir o ruído. Meu peito sobe e desce de maneira afetada
enquanto sinto seu toque descendo pelo meu cabelo.
E então, sem aviso, ele se inclina e deixa um beijo terno em meu ombro. É nesse exato
instante que percebo a inevitabilidade das coisas.
Eu vou mesmo morrer em poucas semanas, porque não existe nenhuma parte de mim que
esteja disposta a abrir mão de Kai. Nunca houve e nunca haverá.
Eu menti para mim mesma quando acreditei que tinha uma escolha. Como posso escolher
qualquer outra coisa além dele?
Com o coração minúsculo, fico de frente para ele outra vez.
Fito seus olhos e deixo que ele veja nos meus as coisas que sinto e não ouso falar em voz alta.
Ele entenderá cada uma delas. Sempre foi muito bom em decifrar minha alma. É por isso que
ninguém além dele me cativou.
Há tantas coisas que ainda quero dizer e mostrar a ele…
Tantos pecados para cometer e me redimir de joelhos…
Mas, somente por agora, vou fazer as coisas na ordem que precisam ser feitas.
— Está na hora de descer — digo depois de um tempo.
Esse pode muito bem ser o começo do fim.
32: SIENNA
Girls Just Want To Have Fun, Cyndi Lauper

Nos reunimos na estrutura de tendas montada à beira da lagoa, com o sol de fim de tarde como
testemunha.
Os convidados em seus assentos e Gia e eu em pé de cada lado do arco, assistimos minha mãe
caminhar pelo tapete no centro, indo ao encontro do noivo.
Mamãe é a noiva mais bonita que já vi, radiante em seu vestido de chiffon. Renan tem muita
sorte, e eu tenho ainda mais por saber que ela não ficará sozinha quando eu partir. Ele cuidará
dela.
Sinto lágrimas nos olhos durante a cerimônia inteira. Se vovó estivesse aqui, não teria como
ser mais perfeito.
Quando enfim seguimos para a área da recepção, Gia me oferece o braço que Mel não está
segurando.
Ela, que usa um vestido de manga borboleta alguns tons mais escuros que o meu, com as
tranças presas no topo da cabeça, parece estar lidando com as emoções melhor que eu.
Aceito seu braço e completamos o caminho juntas.
Na recepção, os ânimos são outros. Parte dos convidados já se sente à vontade para remover
as camadas extras de roupa, e a outra parte, que é a minha família, não perde tempo para começar
os trabalhos alcoólicos.
Enquanto mamãe se desdobra para dar atenção a todos, faço meu papel e também
cumprimento os convidados, perdendo um pouco mais de tempo quando eles são meus parentes.
Todos eles querem saber como está a faculdade e quando vou aparecer na TV, então levo
algum tempo para explicar as coisas.
Sei que está na hora de uma bebida quando começo a procurar por Kai entre as pessoas. Posso
dizer que ele está por perto, mas não o vejo desde a cerimônia. De qualquer forma, não é hora de
pensar nisso ainda.
Depois da segunda taça, fica mais fácil ignorar a inquietação no meu estômago. Logo chega a
hora de Gia deixar suas palavras para nossos pais, as quais todos ouvem emocionados, e em
seguida é a minha vez.
Subo na plataforma onde Gia me espera para entregar o microfone, e percebo que não estou
nervosa. Sei o que quero falar.
Sorrio de volta para Gia quando ocupo o mesmo lugar que ela estava agora há pouco.
— Boa noite — digo, ouvindo minha voz saindo pelos alto-falantes. — Gostaria de dizer
algumas palavras aos noivos. — Ergo minha bebida no ar. — É a minha terceira taça, então vou
tentar não falar nada comprometedor.
Os convidados riem, mas meu foco se fixa em mamãe, sentada na mesa do centro. Seus olhos
já estão marejados, embora o sorriso esteja lá.
— Mãe, eu sei que você já sabe disso, mas tenho um orgulho imenso de ser sua filha e de ter
crescido ao lado de uma mulher tão fantástica quanto você — começo. — Você me ensinou tudo
o que sei, e eu devo a você tudo o que sou hoje. É uma verdadeira benção ver você começando
essa nova página da sua história. Você merece o “felizes para sempre” mais do que qualquer um
que eu conheça.
Lágrimas gordas escorrem por suas bochechas agora, e meu coração vibra quando a vejo
receber conforto do noivo.
Ela vai ficar bem. Não estará só.
— E, Renan — me dirijo ao noivo depois de limpar a garganta. — Quando você chegou nas
nossas vidas, eu estava tão ocupada com os meus problemas de adolescente que não tinha tempo
para estar lá para a minha mãe. Obrigada por ter sido o melhor amigo dela enquanto não estive
por perto.
Ele balança a cabeça, visivelmente comovido. É mamãe quem o afaga agora.
— Eu achava que nós duas estávamos muito bem sozinhas, mas foi você quem me mostrou
que poderíamos ficar ainda melhor. Desculpa por algumas vezes não ter sido a enteada que você
merecia, mas quero que saiba que você é o padrasto que qualquer um desejaria ter. Tenho certeza
de que vai fazer minha mãe mais feliz do que ela já é hoje. Vocês dois têm uma bela jornada pela
frente. Que ela seja cheia de alegria, amor e companheirismo. Amo vocês.
Os aplausos vêm, mas não desço da plataforma ainda. Preparei mais uma coisa para mamãe.
— E, para não ficar em meias palavras, aqui vai o meu pedido especial para a banda —
continuo, mirando os músicos atrás de mim, que já sabem o que precisam fazer.
No instante seguinte, o instrumental de Girls Just Want To Have Fun enche o espaço.
— Que tal uma dança, mãe?
Mamãe se levanta da cadeira como se Cyndi Lauper em pessoa tivesse subido ao palco para
cantar sua música favorita.
Renan, que me ajudou com a surpresa e entrou em contato com a banda por mim, gargalha ao
ver a reação da esposa.
Desço da plataforma para encontrar mamãe no meio do caminho, onde damos as mãos e
dançamos como costumávamos fazer toda vez que essa música tocava nas festas.
Algumas de suas amigas se juntam a nós, e depois minhas tias, até que há tanta gente
dançando ao nosso redor que fica difícil não esbarrar em alguém.
Esbarramos mesmo assim. Nesse momento, pouca coisa importa. Minha mãe está feliz como
nunca, e eu não poderia pedir mais que isso.
Rodopiamos juntas, nossas risadas se misturando aos versos da música, porque, como diria
Cyndi, não nascemos no lado privilegiado, mas vamos nos divertir de toda forma.
Com um giro, entrego mamãe nas mãos do noivo, que continua os passos com ela.
Eu a observo por um momento, memorizando sua risada e o jeito como seus olhos se fecham
quando está muito feliz. Não posso esquecer esses detalhes. Quero guardá-los comigo para
reviver esse dia sempre que precisar. Não sei o que acontecerá comigo, mas contanto que eu
tenha minha mãe enraizada dentro de mim, vou ficar bem.
Me retiro da roda sem ser percebida, assistindo-os de fora. O riso em meu rosto não demora a
dar lugar às lágrimas.
Estou triste? Não exatamente. Acho que eu só gostaria de ficar um pouco mais. É como no
final do espetáculo, quando você não quer dar adeus, mas as cortinas já estão se fechando. Você
só se curva e agradece, afinal, nem mesmo as histórias mais incríveis duram para sempre.
Grata por ninguém estar prestando atenção, me afasto da agitação com o coração trovejando.
Não quero que minha mãe se preocupe comigo hoje. Ela nunca entenderia e eu não
conseguiria explicar. Só preciso respirar um pouco e me concentrar.
Saio da proteção da tenda, onde está a maior parte da iluminação, e serpenteio entre os
garçons que vão de um lado ao outro com bandejas nas mãos.
Já é noite, mas nunca fica escuro demais aqui fora.
Só percebo para onde estou indo quando chego na entrada do deck de madeira, onde mal
consigo ouvir o barulho da festa. Termino o caminho até o final dele, me agarrando às estacas
assim que as alcanço.
Estou aceitando a morte ao admitir que não sou capaz de evitá-la? Porque parece que estou
desistindo sem lutar, mas quando foi que eu tive as armas necessárias para isso?
Todas as coisas que fiz sob influência de Thalia… como elas podem me redimir sem eu nunca
ter me arrependido realmente? Como vão me salvar, se eu nunca quis ser salva de Kai?
Deixo as lágrimas rolarem livres porque sei que preciso disso para me sentir melhor.
Vou ficar bem. Não importa o que aconteça, serei inquebrável. Meu pai pode ter roubado meu
livre-arbítrio, mas ele não pode me impedir de encarar meu destino de cabeça erguida.
Estou contemplando o efeito da lua no espelho da lagoa quando ouço passos se aproximando
de mim no deck. Pela forma como minha pele reage, sei que só pode ser Kai.
Vim atrás de um pouco de solidão, mas percebo que a presença dele não me incomoda. Na
verdade, é reconfortante. É quase como uma promessa de que eu tampouco ficarei sozinha.
Ele para ao meu lado no minuto que fungo e estendo a mão para enxugar o rosto. Não diz
nada, porém sinto seu olhar examinando meu perfil.
— Não se sinta mal por mim — digo em primeiro lugar, ainda encarando a lagoa. — Não é
culpa sua eu ser um ser humano horrível.
E também não é minha culpa, para ser justa. Fui feita desse jeito. Lutar contra sua natureza só
é possível até certo ponto.
— Você não é um ser humano horrível — diz ele, gentil demais para o meu bem. — Só está
se medindo com a régua errada.
Sou o monstrinho dele, mas não sou terrível? Quando vou começar a entender o que se passa
em sua cabeça?
— Aparentemente é a régua que o céu criou — retruco.
— Então o problema é todo deles.
Sinto vontade de rir do comentário.
Kai sempre faz parecer que as piores ideias são, na verdade, as melhores. Gostaria de um
pouco dessa confiança.
Quando não respondo, ele toca meu pulso e me incentiva a olhá-lo.
Noto que a parte de cima de sua roupa se foi, permanecendo apenas a camisa branca de botão.
O contraste com o cabelo escuro e a pele bronzeada é algo digno de poemas.
— Eu estava falando sério, sabia? — ele quebra o silêncio, sondando meu rosto. — Quando
disse que você poderia conquistar o que quisesse mesmo não estando mais viva. Se você acabar
morrendo, vou garantir que consiga tudo que quiser.
Inclino a cabeça sutilmente de lado.
— Se eu acabar morrendo? — repito, incapaz de não achar graça. — Você estava tão
confiante que ganharia a minha alma. Começando a duvidar de si mesmo?
Kai dá de ombros.
— Quem sabe o que pode acontecer até lá? Você é uma caixinha de surpresas.
— E ainda assim, você jura que me conhece bem — aponto.
O olhar dele desvia para o meu pulso que ele ainda tem na mão.
— Você me é familiar — diz como se admitir isso em voz alta não fosse tão simples. — É
como olhar para quem eu mesmo costumava ser.
Isso me deixa mais surpresa do que irei admitir.
— Porque você era cruel? — arrisco, embora ele continue sério.
— Porque eu podia ter queimado o mundo se quisesse. E você é igual. — Sua atenção volta
para o meu rosto. — Eu odiaria te ver se curvando a qualquer coisa que seja. Não aceito que seja
menos do que o astro em torno do qual todo o resto gravita.
Não acho que haja algum outro demônio tão bom com as palavras quanto esse. Ele transforma
todas as minhas hesitações em pó sem sequer se esforçar. Ou talvez eu já não precise ser
convencida há um bom tempo.
De repente, me sinto a pior pessoa do mundo.
Kai precisa saber o quanto traí sua confiança. Não posso deixá-lo me ter em tão alta estima
depois do que fiz — seria o maior ato de covardia que já cometi.
— Tenho que te contar uma coisa — falo antes que minha coragem se dissolva.
Incapaz de sustentar seu olhar, passo a escrutinar os botões da camisa dele. Não quero ver o
desapontamento em seu rosto quando ouvir o que estou prestes a dizer.
Ele fica em silêncio e me deixa prosseguir.
— Eu contei ao anjo as coisas que você me disse em sonho. Sobre os seus… planos. — Deus,
isso é muito mais difícil do que parece. — Pensei que, se pudesse ser útil, eles me ajudariam
depois. Vou entender se você achar que não pode mais confiar em mim.
Entender, sim, mas não ouso dizer que aprenderei a lidar com isso. Por que é que só
valorizamos as coisas depois que as perdemos?
Espero pela reação de Kai que fará jus à sua raiva. Se eu erguer a cabeça, vou encontrar
desprezo gelado em seus olhos azuis até então aquecidos? Ele vai simplesmente recuar e abrir o
máximo de distância possível entre nós? Ou ele pode…
O som da risada mais genuína que já ouvi na vida corta a noite.
O demônio joga a cabeça para trás, rindo tanto que seus ombros tremem.
Espera, o quê?!
Pestanejo, me perguntando se, de alguma forma, ele não ouviu o que acabei de falar.
Quando recupera o fôlego, Kai balança a cabeça.
— Você é mesmo um monstrinho, não é? — diz, os olhos brilhando. — Já te falei o quanto
amo isso em você?
Meu estômago vibra com a declaração. Ele só pode ter enlouquecido.
— Você não ficou chateado. — Não é uma pergunta, mas uma constatação absurda. —
Como…
— Não dou a mínima para o jogo dos anjos — Kai declara. — Eles não significam nada para
mim ou para os meus objetivos. Que assistam o quanto quiserem.
Ele está mesmo falando sério. Acabei de confessar uma coisa horrível, e ele não poderia ter se
importado menos. Acho que vou demorar para processar esse momento.
Inspiro o ar com calma.
— Mesmo assim, peço desculpas — digo, porque é o mínimo que devo a ele. — Eu não devia
ter me aproveitado de você.
O demônio abre um sorrisinho.
— Vamos dançar — propõe.
Simples assim. Como se a discussão anterior fosse tão importante quanto falar do céu sem
nuvens.
Olho rapidamente na direção de onde a festa está acontecendo.
— Não quero voltar para lá ainda — digo, precisando de mais um tempo aqui fora.
Kai dá dois passos para trás antes de estender a palma da mão para mim, num convite
silencioso.
— Não precisa — fala. — Somos só nós agora.
Sendo assim, acho que não preciso de mais nada.
33: SIENNA
Talk, Hozier

Algo muda no rosto de Kai quando enrosco os braços ao redor de seu pescoço. Ele solta o ar
lentamente, conforme segura minha cintura e me leva um pouco mais perto de si.
Umedeço os lábios só porque vejo que ele está olhando para eles.
— Está tendo problemas para manter as mãos longe de mim, não é? — provoco, assim que
começamos a nos mover.
Kai não tenta se defender.
— Não sou nenhum santo, monstrinho — diz ele, aproximando o rosto do meu até não haver
nada além de uma nesga de ar nos separando. — Meu autocontrole só vai até certo ponto.
Me pergunto em quanto tempo ele o perderia. No que eu poderia fazer para arrancar isso dele.
— Seu autocontrole não parece lá grande coisa.
— Mas é ele que está te impedindo de descobrir todas as coisas que estou imaginando fazer
com você nesse momento.
Minha respiração tremula contra os lábios dele.
Não vou recuar dessa vez. Não me importo de não conhecer o caminho. Se o pior que pode
me acontecer é me perder, então vou ficar muito bem.
— E se eu quiser descobrir?
— Você correria para bem longe se soubesse — sopra, tocando meu nariz com o seu.
Estamos respirando o mesmo ar agora. Mas não é perto o suficiente. Preciso de mais. Muito
mais.
— Correria? — sussurro, me abrindo para ele. Para o que desejei por tanto tempo.
A pressão de suas mãos em minha cintura aumenta, assim como a velocidade do sangue
correndo em minhas veias.
Kai ainda me dá um segundo para voltar atrás, como se esperando que eu me dê conta do que
estou fazendo e do caminho sem volta que estamos tomando, mas não me movo nem um
centímetro.
No instante seguinte, sua boca está na minha e eu estou me desfazendo. Seus lábios tomam os
meus com uma urgência febril, e não há nada de delicado neles.
Uma mão se enrosca no meu couro cabeludo conforme ele aprofunda o beijo sem perder
tempo, orquestrando nossas línguas numa sintonia que causa contrações nas partes sensíveis do
meu corpo.
Quebro o contato só pelo tempo de respirar, e ele aproveita para pressionar minhas costas
contra a estrutura do deck, voltando a esmagar meus lábios nos seus logo em seguida.
A mão na minha cintura desce pelo quadril e não se detém até agarrar a parte de trás da minha
coxa, apertando-a à medida que diminui a distância já nula entre nossos corpos.
Enfio as mãos em seu cabelo, desesperadamente precisando de tudo que ele tiver para me dar.
Se ele é a redenção, eu serei a pecadora. Se ele é antídoto, tomarei quantos venenos forem
necessários para poder bebê-lo. Mas se ele for o meu fim, eu pularei começos e meios de novo e
de novo, só para encontrá-lo.
Engasgo quando Kai interrompe o beijo para mordiscar meu maxilar, avançando pela
garganta e nuca, usando os dentes para me consumir. Mesmo que eu não estivesse de olhos
fechados, tudo que eu poderia enxergar seria ele.
Honestamente, não sei o que me faz abrir os olhos. Talvez seja o anseio de saber se isso tudo
é mesmo real e que não estou sonhando.
Mas, no lugar da visão do corpo de Kai se mesclando ao meu, só consigo ver Thalia parada no
começo do deck. Me olhando de volta como se nada no mundo a tivesse preparado para esse
momento.
Meu corpo enrijece de imediato, e Kai traz o foco de volta ao meu rosto. Seja lá o que ele
encontra, é o bastante para fazê-lo olhar para trás.
Todo o calor e toda a euforia que senti enquanto beijava Kai me abandona à medida que me
desvencilho dele e tropeço na direção do anjo.
— Thalia — digo, sentindo a visão ficar embotada.
Porém, apesar de me ouvir claramente, Thalia se vira e começa a andar na direção oposta.
— Thalia, espere! — Apresso o passo para alcançá-la antes que ela suma. — Me deixe
explicar!
Não tenho como explicar. Só preciso… preciso que ela entenda.
Os sapatos de salto atrapalham minha corrida, então me livro deles. Tenho que impedi-la de
partir.
— Thalia, me ouça!
A vários metros de onde estou, o anjo para de repente e se vira para mim.
— Não se dê ao trabalho — diz ela, de alguma forma impedindo que a decepção em seu
semblante alcance a voz. — Posso ver que você já tomou sua decisão.
— Não — balbucio, chegando mais perto. — Eu só… por favor, não vá ainda.
Não quero deixá-la ir porque sei que ela nunca mais voltará. Não vou vê-la de novo outra vez.
Sei disso no fundo da minha alma. Mas não consigo, não posso abrir mão dela dessa forma.
Ainda não.
Thalia balança a cabeça, fitando a figura patética que devo parecer aos seus olhos.
— Você sabia que não podia ter os dois. Sua vida e ele. Ainda assim, deixou que ele se
enraizasse dentro de você. Eu queria poder dizer que estou surpresa, mas não estou. Sua natureza
e a dele refletem uma à outra. Quanto mais perto estiverem, mais perto vão desejar estar, até que
a necessidade consuma vocês dois.
O gosto salgado das lágrimas chega aos meus lábios.
— Eu tentei… — sussurro, vendo o anjo se tornar um borrão.
Eu tentei. Não foi suficiente, mas Thalia precisa saber que tentei.
— Tudo bem — ouço-a dizer. — Alguns nem mesmo tentam.
E então ela some. Para sempre, dessa vez.
O frio intenso que se apossa do meu corpo nada tem a ver com a brisa noturna. É como se a
morte em pessoa tentasse me consolar.
Acabou. Não há mais lutas a serem travadas agora. Eu perco por desistência.
— Interpretei mal sua vontade?
Me viro e encontro Kai parado alguns passos atrás de mim. Há uma linha profunda no centro
de sua testa, a prova clara de seu tormento.
Encaro-o por vários segundos, desejando saber como viemos parar aqui.
Quando foi que nossas vidas colidiram, em primeiro lugar? Em que momento foi decidido que
Kai teria um papel no meu destino? Algum de nós teve sequer uma escolha nisso tudo? Por que
de repente parece que estamos presos em uma piada de mal gosto?
Meus ombros cedem com o que talvez seja o peso do mundo.
— E se eu passar a te odiar no futuro? — verbalizo o pensamento que até então nunca havia
me ocorrido. — Se assinar a minha sentença de morte agora, um dia me fizer culpar você por
essa decisão? Kai — cambaleio até ele, espalmando uma mão em seu peito —, eu não quero
passar a eternidade odiando você.
Não tenho como garantir que isso nunca aconteça. A eternidade parece tempo demais perto do
quanto as convicções humanas podem durar. O que faríamos, então? A possibilidade mastiga
meu coração e o cospe numa bandeja de prata.
Com um movimento da cabeça, Kai passa a encarar o vazio atrás de mim.
— Achei que a essa altura você já tivesse feito as pazes com a ideia de deixar essa vida para
trás — diz ele, ficando mais tenso a cada segundo.
— Não acredito nisso — respondo em voz baixa. — Se você realmente achasse, não teria se
contido quando poderia ter me feito ceder há muito mais tempo.
Ele enfim perde a compostura.
— O que essa vida tem a oferecer a você que eu também não poderia? — questiona, a
angústia escorrendo de sua voz. Nossos olhares travam um no outro novamente. — Fama?
Glória? Paixão? Vou te dar tudo isso. Eu te dou a porra do inferno inteiro se você quiser, Sienna.
Mas nunca foi sobre o que Kai pode me oferecer. É sobre a única coisa que eu não poderia ter
se escolhesse ficar com ele.
— Eu não quero o inferno inteiro, Kai. — Balanço a cabeça veementemente. — Eu… —
Minha voz quebra. — Eu queria poder viver. Tentar me tornar a pessoa que a minha avó
acreditava que eu seria. Tem tanta coisa que não fiz ainda… Que desperdício de vida seria.
Não é justo. Eu o quis por tanto tempo. Houve uma época em que eu não queria mais nada.
Hoje eu desejo tantas coisas, mas não posso tê-lo sem perder todo o resto.
Kai fica quieto por tempo demais. É difícil saber se ele ao menos está respirando. Seus olhos
não entregam nada do que está se passando em sua cabeça, embora ele claramente esteja
pensando muitas coisas.
Me pergunto se vai chegar à conclusão de que não valho todo esse desgaste. Que a minha
incapacidade de tomar uma decisão sobre nós e mantê-la até o fim quer dizer apenas que sou
fraca demais e indigna de suas tentativas.
Quase me surpreendo quando ele segura meus ombros e revela o que tem em mente.
— Você não quer morrer agora. Entendido. — Ele aumenta o aperto. — E se você não
precisasse morrer? Se houvesse uma maneira de continuar viva depois que tudo isso acabasse,
mudaria algo?
Se ao menos algo assim fosse possível…
— Mudaria tudo — digo, mesmo não entendendo que importância isso tem agora.
Essa possibilidade não existe. Se eu não for capaz de me salvar, estarei morta antes do meu
aniversário, e se por um milagre eu conseguir ficar viva, Kai será banido da minha vida para
sempre. Sabíamos das regras desde o início.
Kai esquadrinha cada parte do meu rosto com atenção devotada.
— Ficaria comigo sabendo que quando sua hora chegasse, sua alma acabaria junto da minha?
Não é uma pergunta difícil. Sempre torci para que quando o meu tempo nesse mundo
acabasse, o reflexo do que eu encontrasse do outro lado fosse ele.
Se o que ele está dizendo fosse possível e eu pudesse ter as duas coisas, eu nunca mais rezaria
pedindo por algo. Já teria mais do que o suficiente.
— Não consigo pensar numa companhia melhor para passar a eternidade — murmuro em
resposta.
Nossas testas se encontram brevemente.
Kai toma uma longa respiração, me segurando como se dependesse disso para manter seu
próprio equilíbrio.
— Volte para a sua mãe — diz ele por fim. — Há algo que preciso fazer.
Depositando um beijo no topo da minha cabeça, ele me solta e começa a se afastar.
Seguro seu braço no último momento.
— Aonde vai? — pergunto, mais confusa que antes.
Kai parece determinado o bastante para ter um plano para colocar em prática.
Mas o que ele poderia fazer? Não pode simplesmente mudar as regras do jogo nas vésperas da
última partida. Não consigo nem imaginar o que ele teria que ceder para conseguir fazer isso.
Entretanto, a julgar pelo jeito que me olha, ele já sabe o que tem que fazer e não irá descansar
até ter terminado.
— Encontro você quando terminar. Confia em mim?
Eu não estaria aqui se não confiasse. Seja lá o que ele pretende fazer, não duvido de suas
intenções.
Só espero, para seu próprio bem, que ele realmente saiba o que está fazendo.
34: KAI
Afraid, The Neighbourhood

Sou incapaz de ver Sienna sofrendo e não fazer algo para ajudá-la.
Quando nos beijamos, eu tive certeza de que ela queria aquilo tanto quanto eu, que um pouco
mais de espera arrancaria nossa sanidade. Mas depois, enquanto a via se agarrar ao fragmento de
vida que ainda tem, não pude cruzar os braços e deixá-la perder algo tão importante para ela.
Tenho que ajudá-la. Mesmo que Baelgrim nunca me perdoe, ou que para isso todo o inferno
precise queimar.
O sangue escorrendo do corte em minha mão cai no terceiro e último recipiente, completando
o ritual de convocação. Imediatamente, chamas azuis saem dos três cálices dourados e uma porta
surge onde até então só havia parede. Foi mais rápido do que eu imaginei que seria.
Guardo a adaga de volta no coldre à medida que me encaminho para o portal recém-aberto.
Com os pensamentos em Sienna, deixo a sala convocatória para trás e cruzo a passagem para
o Reduto das Sombras que o ritual fez surgir.
A sensação de transitar entre domínios é sempre desagradável como se a pele estivesse
descolando de seus ossos para em seguida voltar ao lugar. Serve como uma espécie de raio-x,
onde quem convidou pode ler as intenções do convidado. Nem sempre é tão eficaz.
Mas dura pouco. Estou em outra sala no tempo de uma respiração.
É o que eu esperava de um local de audiências. Um cômodo quadrado, sustentado por pilares
dos dois lados, e mais à frente, no nível mais alto da sala, três cadeiras postas lado a lado. Não
me surpreendo que só a do meio esteja ocupada.
Caminho reto até estar diante da Corte em sua mais notável representação.
— Ora, ora. — É o Juiz quem fala primeiro, a voz arrastada. — Que audiência mais
promissora…
— Radamanto — cumprimento.
O Juiz tamborila sobre o apoio de braço da cadeira, me examinando com expectativa.
— Alto Maligenii dos Enganadores, enfim nos encontramos de novo.
Ele parece genuinamente surpreso e intrigado com a minha convocação, mas não vai admitir
isso, porque se o fizesse, estaria confessando que temeu ter sua proposta anterior rejeitada.
— Tenho uma solicitação a fazer à Corte — vou direto ao ponto.
— E por que fui o único convocado? — pergunta ele, dissimulado.
— A plateia está na Corte, mas a Corte não está na plateia, ou estou enganado? — falo,
poupando-nos da encenação. Nós dois sabemos que ele é a figura máxima da trindade magistral,
e que fala por toda a Corte. — Além disso, pela nossa última conversa, achei que nos
entendemos bem, Vossa Maleficência.
Radamanto estreita os olhos.
— Quanto a isso, ainda não me decidi. Mas vá em frente, faça seu apelo.
Posso dizer o quanto ele está apreciando esse momento. É a primeira vez que ele precisa
aceitar uma convocação minha e me ver diante de si com um pedido a ser feito. Deve sentir que
me tem nas mãos.
— A mortal sob minha responsabilidade — começo. — Quero que o tempo de vida dela seja
poupado depois do julgamento, mesmo quando ganharmos.
Assim ela terá de volta o que seu pai a privou de ter: uma vida que não está fadada a acabar
cedo demais. Ela poderá perseguir seus sonhos e se tornar quem deseja. Enquanto ela vive, vou
ficar por perto e observá-la. Nada muito diferente do que já tenho feito.
O Juiz estala a língua.
— Isso não está no contrato — murmura o óbvio. — As almas dos humanos condenados pela
Corte devem ser trazidas ao inferno para se tornarem úteis o quanto antes.
— Eu sei. E eu quero uma mudança no contrato. Com certeza algo tão pequeno não seria
problema nenhum para você.
Com todo o poder da Corte em mãos, não há muita coisa que seria um problema para
Radamanto. Ele pode criar e derrubar leis sempre que sentir vontade.
— Não seria — ele admite. — Mas Mammon teria que concordar com o adiamento, já que
significaria um desfalque nas legiões dele.
Puxo o ar por alguns segundos a mais para me impedir de revirar os olhos.
— Espera que eu acredite que Mammon sentirá falta de uma única alma? — Me pergunto se
ele realmente acha que não sei como são as coisas aqui. Deve achar que sou novo demais para
entender nossas dinâmicas. Nunca se é novo demais quando se aprende desde o berço. — A
única aprovação que preciso é a da Corte, Radamanto.
Sem mais falsas modéstias, o demônio milenar inspira ruidosamente enquanto se empertiga
no assento. A partir de agora, a encenação acabou.
— Muito bem — diz. — Já que está recorrendo à Corte nesse apelo, posso assumir que
também decidiu aceitar nossa ajuda em outros assuntos?
É a vez da contrapartida agora. Ele sabe que eu não estaria aqui, com um apelo como esse, se
não tivesse algo igualmente significante para oferecer em troca. Aposto que, no segundo em que
cruzei aquele portal, ele já estava se remoendo para ouvir minha proposta.
O rosto de Baelgrim me vem à cabeça por um instante. Ele não sabe que estou aqui e jamais
vai me perdoar quando souber o que fiz por suas costas.
A ideia de decepcioná-lo revira meu estômago, mas entre enfrentar sua mágoa e deixar que
Sienna morra antes do tempo, prefiro tentar a sorte com meu parceiro. Só o que posso fazer
agora é garantir que ele saiba que isso não é definitivo.
Mammon é nosso principal inimigo, porém Radamanto não é e nunca será nosso aliado. Vou
me livrar dele antes que tenha a chance de pôr as garras na Ordem, mesmo que agora ele seja
indispensável para o que preciso.
Fito os olhos turvos do Juiz, marcando-o como o próximo a cair.
— Nós dois queremos Mammon fora da jogada. Se está tão interessado assim numa aliança,
garanta que a vida da mortal seja poupada após o julgamento, e eu aceitarei as interferências da
Corte nos meus planos até onde achar que devo — asseguro.
Ele não se deixa impressionar.
— Aceitará a ajuda da Corte sempre que for preciso — corrige, deixando claro suas
verdadeiras intenções. — Um preço razoável pela vida da sua humana.
Concordo que seja um preço razoável, embora não deva existir um que eu não pagaria por ela.
Eu faria tratos com cada um dos meus inimigos se precisasse. É claro que teria que me livrar
deles logo depois, mas faria isso de bom grado.
— Ok.
Farei com que a Corte não dure tempo suficiente para ficar no meu caminho. Não estarei em
dívida com Radamanto se ele não estiver mais aqui para cobrar.
O demônio ergue o queixo, se deleitando demais em seu triunfo para se preocupar com o alvo
que acabou de ser posto em suas costas.
— Temos um trato, Alto Maligenii. — Ele sorri. — Agora que tal compartilhar os detalhes
sórdidos do seu plano?
Então eu conto tudo. Menos as partes que realmente farão diferença.
35: SIENNA
I'm yours, Isabel LaRosa

Espero Kai voltar pelo resto do casamento, na madrugada que sucede a festa e no dia seguinte
quase inteiro. Mas ele não volta.
É como costumava ser antes, quando ele vinha, me deixava sentir o gostinho da companhia
dele, e depois me fazia esperar por anos.
Tento não pensar muito no que pode estar segurando-o lá. No plano misterioso que ele traçou
para realizar algo aparentemente impossível. E se algo deu errado? É possível que o tenham
punido por mais uma vez tentar interferir onde não deveria? Se estiver ferido…
Uma batida na porta me arranca dos meus devaneios. Segundos depois, a maçaneta gira e a
cabeça de Gia aparece entre o batente e a porta.
— Ei, podemos ir? — pergunta ela, me vendo sentada na cama.
Faço que sim com a cabeça, sentindo uma ponta de culpa por não ter descido na hora que
combinamos.
Depois que minha mãe e Renan saíram para a lua de mel, ainda de manhã, Gia e eu decidimos
ficar para o almoço e fazer companhia a vovô antes de pegarmos a estrada.
Almoçamos quase uma hora atrás, mas eu não saí mais do quarto desde que subi. Continuei
esperando pelo momento em que Kai entraria por essa porta.
— Você está bem? — ela volta a falar quando me levanto e ando até minha mochila. — Ficou
meio aérea de ontem pra cá.
Não só fiquei mais distraída depois que voltei para a festa ontem, como também passei a noite
em claro e agora devo estar pálida e cheia de olheiras.
Imagino que Gia e vovô não tenham perguntado antes para não serem indiscretos, mas, em
defesa de Gia, eu também iria querer confirmar se a visse desse mesmo jeito.
— Voltar aqui me deixa emotiva — digo, mordendo o interior da bochecha. — Acho que há
uma parte de mim que queria nunca ter saído daqui.
Essas coisas não são mentiras, mas tampouco são a razão do meu coração apertado. Ainda
assim, é algo que Gia pode entender.
As dobradiças rangem quando ela abre a porta um pouco mais.
— Seu avô é um amor de pessoa. Eu também não ia querer sair de perto dele se fosse você.
Sorrio enquanto lembro o quanto foi bom rever meu avô. Pude vê-lo sorrindo, cantando e
dançando com mamãe, e essa possivelmente foi a única coisa que me manteve no lugar até a
festa acabar.
— Vou avisar a ele que estamos indo.
É hora de ir para casa, onde poderei esperar Kai pelo tempo que for necessário. Acho que
velhos hábitos nunca morrem.

Na altura em que o relógio marca meia-noite, estou convencida de que não vou voltar a ver
Kai até estar morta.
Meu estômago se revira num misto de preocupação, medo e necessidade de saber onde ele
está.
Como vou saber se ele está bem? Até onde sei, ele pode estar em sérios apuros por tentar me
ajudar. Não é só com o meu destino que estou temerosa agora.
Não consegui me concentrar em nenhuma das coisas que iniciei para ocupar a mente. O filme
entrou em segundo plano, as músicas me irritaram, cozinhar não deu certo e dormir foi
simplesmente impossível. A única função que sou capaz de desempenhar agora é esperar em
silêncio.
Há uma vozinha no fundo da minha cabeça querendo que eu acredite que Kai não voltou
porque não achou que valesse a pena. Sufoco-a vez após outra, me recusando a considerar essa
possibilidade.
Ele me pediu para confiar nele, então estou confiando. Kai não sumiria deliberadamente a
essa altura do campeonato, pelo menos não sem dar explicações. Se ainda não veio, é porque
algo está em seu caminho.
Tendo atingido minha capacidade máxima de inércia, me levanto do sofá e me refugio na
varanda, onde o ar frio da noite arrepia meus braços. Não há estrelas no céu hoje, e a lua também
não está à vista.
Me sinto completa e irremediavelmente sozinha. É assim que irei morrer? Terei que rasgar o
véu da morte com minhas próprias mãos e descobrir por conta própria o que acontece depois? A
ideia me assusta mais do que decepciona.
Debruçada sobre o parapeito, fecho os olhos no que deve ser a centésima tentativa de impedir
uma crise de pânico.
Você está bem. Kai está bem. Tudo vai se acertar. Repito tudo como um mantra, me
perguntando quando irei começar a acreditar nisso.
— Não está pensando em pular, está?
Meu sangue congela de espanto. Um milhão de coisas terríveis perpassam minha cabeça no
segundo que levo para processar essa voz. Me viro tão depressa que meu pescoço estala.
Dou de cara com Kai sob o arco da varanda, de volta aos trajes de sempre e com uma
expressão apreensiva no rosto.
Poucas sensações na minha vida foram tão boas quanto vê-lo aqui, são e salvo.
Minha respiração fica presa, e apesar da tempestade dentro de mim, não consigo formar um
único pensamento racional sequer.
— Pensei que… — engasgo, piscando várias vezes para ter certeza de que não estou
imaginando coisas.
— Que eu não voltaria para terminar o que começamos ontem? — Uma ruga surge entre as
sobrancelhas dele. — Pareço imbecil a esse ponto?
O que começamos ontem…
Meu pulso acelera involuntariamente.
— Te esperei o dia todo.
Kai remove a distância entre nós, tocando meu queixo quando chega perto o bastante.
Examino seu rosto em busca de indícios de algo fora do lugar, mas só encontro determinação
nele e nenhum arrependimento.
— Fiz um acordo em troca de mais tempo para você — diz. — Seja qual for o resultado do
julgamento, você não vai morrer agora.
Meu corpo fica tenso contra o dele.
— Como…
— Se mesmo assim você ainda quiser ser salva, ainda dá tempo — ele se adianta, e dizer isso
parece custar muito a ele. — O anjo pode te ajudar. Vou garantir que ajude. Mas se achar que o
que fizemos ontem não foi nem de longe o suficiente, vou ficar mais do que feliz em ser a causa
da sua perdição.
Sinto a respiração ficar mais rasa.
O que ele está dizendo… Eu ouvi certo?
— Vou poder viver?
Minha voz sai carregada com as emoções que passei o dia todo tentando conter.
Vou ficar viva sem precisar abrir mão de Kai? É uma promessa tão boa que reluto em
acreditar.
— Até chegar sua hora de partir. Nem antes nem depois disso.
Eu poderia duvidar dele e pedir explicações, mas não acho nem por um segundo que ele esteja
mentindo para mim. Porque ele causou isso. Ele criou uma saída para mim quando não havia
nenhuma.
Deus, eu o amo.
Amo tanto que tenho medo de não suportar.
Não penso, apenas o puxo pelo colarinho e selo nossas bocas juntas, tal qual um acidente não
premeditado que só estava esperando para acontecer.
Não sou nada mais que desespero agora. Desespero por algo do qual fui privada desde o
início. Mas não há mais nada me impedindo, nada capaz de me tirar dos braços de Kai.
Se fica surpreso, Kai não demonstra. Ele retribui o beijo como se estivesse destinado a esse
momento desde o princípio dos tempos. Não há indulgência na forma como ele me toma para si.
Seus braços me cercam e prendem contra o parapeito enquanto sua boca lida com a minha.
Espalmo a mão em seu peito, forçando a camisa a se abrir pelo simples fato de que preciso
senti-lo em todos os lugares. Quando toco a pele quente de seu tórax, ele suspira em meus lábios.
Antes que eu me dê conta, estou sendo erguida do chão pela cintura. Puro instinto me faz
enrolar as pernas ao redor de Kai, e logo estamos nos movimentando casa adentro.
Não deixo seus lábios irem até sentir a superfície dura contra a minha bunda.
Kai me põe sentada no balcão da cozinha e me observa, com os olhos turvos, enquanto
termino de desabotoar sua camisa e a descarto no chão. Quase tudo em mim treme, mas minhas
mãos estão firmes.
Com seu torso agora totalmente desimpedido, dedico um instante para explorá-lo com a
devoção que merece. Passo os dedos pelos músculos rijos, fascinada com cada curva e cada
cicatriz que descubro.
Ele é perfeito. E, pelo menos por agora, ele é meu.
Sua paciência dura pouco, no entanto. Em um piscar de olhos, ele se assoma sobre mim de
novo. Não me beija, mas suas mãos descem pelo meu corpo, deslizando contra o tecido leve do
meu vestido. Minha pele esquenta em resposta.
Quando alcança minhas coxas, as mãos de Kai se perdem sob a barra do vestido.
A reação é imediata e me deixa ofegante.
Os dedos brincam ao longo da parte interna da minha coxa, roçando o ponto onde mais
preciso de atenção.
Minhas pernas tremem e eu contenho os ruídos que ameaçam me escapar. Ele está tão perto e
emana um calor tão febril que estou ficando tonta.
— Preciso que você me diga que realmente quer isso, porque sou egoísta demais para parar
quando começarmos — ele fala, atento a cada reação minha.
Os dedos se mudam para as tiras da minha calcinha, provocando com uma lentidão delirante,
e eu sei, pela intensidade de seu olhar, que ele está usando todo seu autocontrole para não
arrancá-la de uma vez.
— E eu preciso que você faça comigo cada uma das coisas que já imaginou fazer — respondo
em voz baixa, não confiando em mim mesma para falar mais alto.
Um toque de selvageria cruza os olhos de Kai conforme ele desliza a peça delicada pelas
minhas pernas, e eu prontamente me mexo na bancada para agilizar o processo.
— Tive medo que você nunca fosse pedir — confessa.
Observo-o se abaixar à medida que a calcinha passa pelas minhas coxas e panturrilhas, por
fim se ajoelhando entre as minhas pernas bambas.
Olhando para cima, para mim, Kai afasta meus joelhos o suficiente para me deixar exposta
para ele.
Sinto seu polegar acariciando minha fenda, e eu fecharia os olhos até me perder na sensação,
se não fosse pelo olhar dele me prendendo no lugar.
— Você devia ver seu rosto agora — ele murmura, a voz carregada de uma fome que não
pertence a esse mundo. — Eu quero ser o único para quem você vai olhar dessa forma pelo resto
da sua vida e depois dela.
Kai aproxima o rosto de onde seu polegar brinca, e eu ofego em sofrimento quando sua língua
me toca.
Estremeço, involuntariamente arqueando os quadris, mas as mãos dele se fecham em meus
joelhos, mantendo-me sob seu domínio.
Ele movimenta a língua em pequenos círculos, instigando minha carne já sensível, depois a
empurra para dentro de mim.
Um gemido me escapa e eu tombo a cabeça para trás. A sensação vertiginosa faz parecer que
estou caindo, e caindo, e caindo…
Logo as investidas de Kai se tornam um trabalho conjunto de dedos e língua, atingindo-me em
todos os lugares carentes. Não consigo assimilar mais nada, a não ser a onda extasiante se
formando em meu ventre.
Talvez seja porque esperei esse momento por tempo demais, ou simplesmente porque sou
mais vulnerável a Kai do que pensava, mas não demora quase nada para que eu sinta os
primeiros espasmos e meus músculos se contraiam enquanto caio numa espiral de estrelas.
Me desmancho de todas as mais belas formas possíveis, sussurrando o nome de Kai enquanto
ele me conduz até o último segundo.
De olhos fechados, sinto-o se erguer sobre mim, as mãos me agarrando pelo quadril sem
perder tempo, puxando-me para fora da bancada.
Não reclamo, apenas entrelaço as pernas ao redor dele e o deixo tomar as rédeas do que
acontecerá agora.
Kai parece prestes a me consumir por inteiro, tamanho é o incêndio por trás de seus olhos. Ele
entra no quarto comigo no colo, me deitando na cama e prendendo-me com seu corpo.
— Não estou me sentindo muito romântico agora, monstrinho — murmura, a voz grave e
afetada.
Não sei como, mas meu vestido sai do caminho numa velocidade assustadora. Estou
completamente exposta agora.
Kai se aproveita disso e desce os lábios pela minha garganta, deixando uma trilha de beijos
por todo o caminho até o ponto entre os meus seios.
Com a mão livre, ele segura meu seio, trazendo a boca ao mamilo intumescido e o
mordiscando suavemente.
É um desafio reencontrar minha voz em meio ao turbilhão de sensações atordoantes, mas
consigo arfar uma resposta.
— Não precisa ser — digo, apertando as pernas ao redor dele quando meu centro volta a
pulsar dolorosamente.
Meus pensamentos são todos dissolvidos para dar lugar a um único anseio: tê-lo dentro de
mim, me preenchendo até que eu não saiba mais a diferença entre céu e inferno. Posso ter os dois
bem aqui. Ele já provou que sim.
Só que, diferente de mim, Kai ainda está vestido demais para o meu gosto. E eu preciso do
contato da pele dele na minha em todos os pontos possíveis e imagináveis.
Empurro-o pelos ombros com certo desespero, indo junto e alcançando o botão de sua calça
antes mesmo que ele se coloque totalmente de pé.
Mesmo através do tecido, sua excitação é nítida. Faz a dor entre as minhas coxas se
intensificar.
— Não me faça esperar, demônio — ronrono, ficando de joelhos e trabalhando no zíper com
uma agilidade admirável. Aparentemente, sou um talento natural quando o assunto é despi-lo.
Kai me observa de cima com os olhos faiscando, me deixando lidar com sua calça sem
interferir.
Quando a peça cai em seus pés, já estou cuidando da cueca.
Ele puxa o ar entre os dentes no momento em que me livro da última peça e fecho uma mão
ao redor de sua extensão.
Devoro sua imagem ironicamente divina, umedecendo os lábios pela proximidade de sua
ereção. É intimidante, e só a visão dela traz meus anseios mais profundos à superfície.
Prendo meu olhar ao dele da mesma maneira que ele fez comigo instantes atrás.
— É tão bom quanto você imaginava? — pergunto, deslizando a mão para frente e para trás.
— Me ver ajoelhada pra você?
O demônio estreita as pálpebras ao mesmo em que enrosca os dedos nos meus cabelos.
— Devo ser a criatura mais sortuda que já pôs os pés nesse mundo — ele murmura de volta,
fazendo uma leve pressão no meu couro cabeludo.
Ainda de olho nele, deposito um beijo em sua parte mais sensível, para em seguida lambê-la.
O aperto em meu cabelo aumenta, assim como o tormento em seu rosto.
Coloco parte dele na boca, inebriada pela visão de Kai vulnerável a mim.
— Porra… — A voz já rouca agora escorre luxúria em cada sílaba. Por um segundo, Kai
aperta os olhos e deixa a cabeça cair para trás.
Sinto-o pulsar em minha língua, mas no segundo seguinte, estou sendo içada para cima.
— Preciso estar dentro de você agora ou vou enlouquecer — ele confessa antes de me beijar
outra vez com o que imagino ser a intensidade de mil tempestades infernais.
Como esse pode ser o final errado? Não há nada no mundo mais certo que isso.
Quando ele me deita de volta na cama, me prendendo embaixo de si, meu peito vacila com a
certeza do que virá a seguir.
— Quero você de costas — ele sopra em meu ouvido logo que nosso beijo tórrido termina.
Mordo o lábio até quase doer. A ideia imediatamente se torna o meu desejo mais primitivo e
urgente, expulsando todo o resto. A fera dentro de mim rosna, pronta para se rebelar. As
correntes não podem mais contê-la.
Antes que eu me posicione, Kai se adianta e me vira com um movimento ágil. Em um
segundo, estou deitada de bruços com um lado do rosto colado aos lençóis.
Ergo o torso com a ajuda dos cotovelos, e no mesmo instante sinto a mão de Kai se fechar ao
redor do meu pescoço, firme, porém cuidadoso.
Pequenos tremores me percorrem quando sinto o peito dele pressionar minhas costas
arqueadas.
— Isso é o mais gentil que consigo ser no momento, monstrinho — ouço-o atrás de mim, e de
alguma forma, sem poder vê-lo direito, a adrenalina em meu corpo atinge um novo nível.
Kai se posiciona entre as minhas pernas, me arrancando um gemido de antecipação quando a
prova de seu desejo cutuca minha entrada.
Espremo os lençóis em meus punhos fechados, precisando me agarrar a algo. Sinto que
preciso me concentrar para me manter no estado sólido, caso contrário, irei evaporar. Meu
quadril se ergue de forma involuntária para encontrá-lo no meio do caminho.
A respiração dele fica pesada atrás de mim. Queria poder ver seu rosto agora, mas não
preciso. A forma como aperta levemente os dedos em meu pescoço, me reclamando para si, é a
prova de que seu autocontrole caiu por terra.
— Uma vez você me mandou conhecer a minha verdade — ele diz, entre mordiscadas no
lóbulo da minha orelha. — Eu conheço agora. É você. Você é a minha verdade e a minha
religião.
Fecho os olhos e engulo o sentimento esmagador no fundo da minha garganta.
— E aqui — Kai sussurra, deslizando para dentro de mim sem um pingo de misericórdia — é
o único céu em que eu quero estar.
Um gemido rasgado me escapa. Meus músculos se contraem com a invasão, precisando de um
instante para se adaptar a ele dentro de mim.
Kai espera o tempo de uma respiração para começar a se movimentar. A princípio, o ritmo
que ele estabelece é comedido, quase como se estivesse com medo, mas logo sua testa se choca
contra a parte de trás da minha cabeça conforme ele entra e sai de mim.
O barulho dos nossos corpos juntos preenche o quarto, mas meus gemidos rivalizam com ele.
É todo o incentivo que Kai precisa para entender que não tenho medo de suas chamas,
contanto que queimemos juntos.
E, no momento em que ele para de se conter, me dando tudo de si até eu estar em total
combustão, é quando mais me sinto viva em toda a minha vida.
Não damos trégua até o orgasmo nos tirar de nossas mentes quase ao mesmo tempo. Quando
meu corpo estremece vários instantes depois, o dele tomba por cima do meu.
Mas uma vez não é suficiente.
Logo começamos uma segunda rodada, e então uma terceira.
Em cada uma delas, Kai consegue me provar mais um pouco o porquê de sermos perfeitos
juntos.

Em algum momento da madrugada, enquanto descansamos de frente um para o outro na cama,


Kai desliza os dedos pelo meu quadril molhado de suor.
Ele não parece cansado, para falar a verdade. Sou a única que precisa recuperar as forças entre
um turno e outro.
Pisco os olhos preguiçosamente, retribuindo sua atenção.
— No que está pensando? — pergunto.
— Em quantas vezes seguidas um ser humano pode gozar sem sofrer uma parada cardíaca —
ele responde sem titubear.
Uma risada rouca me escapa.
— Não sou tão frágil assim, sabia? Você vai ter que descobrir na prática.
Não sei quantas mais vou aguentar, mas me sinto disposta a descobrir.
Um canto da boca de Kai se retorce.
— Tempo para praticar não vai ser um problema.
Me apoio em um cotovelo e chego mais perto para examiná-lo melhor.
De cabelos bagunçados, lábios inchados e peito nu, Kai é a perfeita imagem da luxúria
encarnada. Gosto da visão dele entre os meus lençóis. Eu cometeria crimes só para mantê-lo aqui
para sempre.
Mas também há algo além de desejo em seu rosto. Algo mais gentil que me faz querer
suspirar como uma adolescente.
— Nunca pensei que veria você assim — digo, incapaz de me conter.
O demônio estreita levemente os olhos.
— Assim como?
— Rendido — provoco, estendendo um dedo para traçar desenhos na maçã do rosto dele.
— Acha que estou rendido por você, monstrinho? — Ele arqueia uma sobrancelha petulante.
— Não está?
Mesmo que ele não admita, posso ler em seu semblante. Ele derrubou seus muros e decidiu
que lutar é perda de tempo. Só não sei se isso significa que ele me deixou vencer, porque, a bem
da verdade, eu também me rendi a ele.
A mão no meu quadril sobe sem pressa, causando arrepios por onde passa, até chegar no meu
rosto.
Kai acaricia minha bochecha com os dedos, testando para ver se vou desviar os olhos
primeiro.
Eu não vou. Não vou tirar os olhos dele nunca mais.
— A verdade — ele começa a dizer em voz baixa — é que somente duas coisas poderiam ter
poder sobre mim agora. A primeira seria a morte, se eu já não estivesse morto. A segunda é você.
Não acho que tenho algo a dizer que se compare a isso, então escolho mostrar como me sinto
a respeito.
Com o coração trovejando como nunca, subo em cima dele e o beijo até que a minha alma
reconheça a dele como sua igual.
36: SIENNA
The Other Side, Ruelle

O dia de estreia da peça também é a véspera do meu julgamento. Não seria, se eu não tivesse
perdido uma semana como punição, mas agora não há muito que eu possa fazer a respeito a não
ser tentar não entrar em pânico.
Mas é difícil não entrar em pânico no dia em que estreio um espetáculo e perco minha alma.
Nos últimos dias, Kai tem feito seu melhor para me distrair, me encurralando a cada
oportunidade que temos de nos perder um no outro, seja lá onde estejamos, e o método estava
funcionando maravilhosamente bem, mas agora ele não está aqui e minha cabeça é terreno fértil
para desgraças.
No momento, a mais alarmante delas é: por que Kai não está aqui, faltando menos de quinze
minutos para o início da peça? Ele prometeu que não perderia por nada, mas daqui das coxias, de
onde estou observando a plateia, não consigo vê-lo em nenhum assento.
Noto minha mãe e Renan nas primeiras fileiras, e até Gia, para o meu espanto. Mas não Kai.
Levo um pequeno susto quando sinto alguém tocar meu braço. Ao virar, vejo Cleópatra, ou
melhor, Ágata.
— Vem, vamos concentrar agora — diz ela, gesticulando na direção do resto do elenco.
Todo mundo está cintilando de felicidade hoje, e eu sei que também deveria estar.
Inalo uma boa porção de ar e enlaço a mão de Ágata na minha.
Um problema de cada vez, Sienna.
Mas congelo no lugar quando vejo um rosto inesperado entrando nas coxias. Todos os
gatilhos voltam em uma correnteza assim que Diana Costacurta dá os primeiros passos na minha
direção.
Bem, não na minha especificamente — ela parece interessada no elenco como um todo —,
mas dá no mesmo.
Diana não devia estar aqui. Por que viria à estreia da peça se Edgar ainda continua na mesma?
Sem entender o que há de errado comigo, Agui me estimula a voltar a andar. Quanto mais
ando, mais perto chego da esposa de Edgar.
A mulher, por intermédio do professor substituto, cumprimenta os atores e os deseja sorte
com um sorriso polido no rosto. Só eu noto que ele não chega aos olhos?
Sem escapatória, espero ao lado de Ágata pela minha vez de cumprimentar Diana. Me
pergunto se ela irá conseguir fingir que nada aconteceu.
Agui a abraça primeiro. Ela irá perceber a gravidez através das roupas de Diana? Talvez ainda
seja muito cedo para isso.
Quando para à minha frente, Diana não age nada diferente de como agiu com os outros. Ela é
toda sorrisos e profissionalismo.
O nó em minha barriga alivia um pouco conforme ela se aproxima para beijar minha
bochecha.
— Estamos ambas livres agora — ela diz em meu ouvido, tão baixo que eu não teria ouvido
se não estivesse atenta.
E, tão rápido quanto veio, ela segue para a próxima atriz.
Encaro suas costas quase por tempo demais, pensando no significado de suas palavras. Elas
explicam o suficiente.

O primeiro ato começa e termina sem sinal de Kai.


Continuo procurando-o na plateia nos próximos atos, mas ele não vem.
O pressentimento ruim só aumenta.
37: KAI
And so It Begins, Klergy

Brinco com a peça circular de metal entre os dedos, enquanto eu, Baelgrim, Valrana e Malphas
discutimos o melhor momento para separar a cabeça de Mammon do pescoço.
Nenhum deles sabe como recuperei a posse do anel, e é por isso que decido abrir o jogo com
Bael assim que estivermos a sós.
Meu acordo com Radamanto, que terminou me garantindo o Devorador de volta, ainda é um
segredo, mas não posso mais deixar Bael às cegas assim.
Contei a Radamanto sobre a operação de Mammon para extrair o fogo do Poço, mas deixei de
fora o fato de que isso é somente a ponta do iceberg. Revelei o que andei fazendo para
desestabilizar o Comandante e onde quis enfraquecê-lo primeiro, mas não tirei minhas alianças
das sombras.
Ele ainda não sabe de onde a revolução virá e é assim que pretendo mantê-lo.
Há divergências na forma como iremos tomar a coroa de Mammon, no entanto, é consenso
entre nós quatro que devemos agir logo, enquanto o novo exército ainda pode ser tirado do
caminho.
Todos tiveram dificuldade para acreditar no relatório do reconhecimento que fiz para além do
desfiladeiro. Não posso julgá-los, eu também duvidaria se não tivesse visto.
Acho que, no fundo, os três ficam um pouco mais aliviados depois do primeiro susto. Talvez
Mammon ainda ache uma forma de usá-los como arma, mas serão mais fáceis de lidar enquanto
ainda não estiverem completamente desenvolvidos. Em segredo, alimento a esperança de que
não precisaremos matar nenhum daqueles filhotes em um confronto direto.
Deixo-os de sobreaviso, com ordens para estarem prontos para agir quando forem chamados,
ciente de que muito em breve a oportunidade se apresentará. O mesmo vale para os rebeldes
além da fortaleza, a quem Basom deixará a par quando Malphas lhe entregar o relatório dessa
reunião.
As últimas instruções, porém, ficam inacabadas quando ouvimos uma movimentação do lado
de fora da torre.
Baelgrim é o primeiro a se levantar e espiar através dos vitrais da janela.
Estamos na ala sul nesse momento, o que nos dá uma boa visão das ruas lá embaixo.
— O que está havendo? — pergunta Valrana.
Bael nos olha por cima do ombro.
— Mammon voltou.
É claro. Agora que o problema com as bestas está sob controle e seus capachos voltaram à
missão de descobrir quem matou Nanzi, ele não tem mais desculpas para continuar no Reduto
das Sombras.
— Muito bem — digo, com os olhares de Valrana e Malphas pousando em mim. — Voltem
aos seus postos e aguardem. Se não nos reunirmos de novo aqui, nos vemos na batalha.
A espiã e a mensageira concordam com um movimento de cabeça antes de se retirarem com
uma agilidade admirável.
Guardo o anel no bolso, me dando por satisfeito com as modificações que andei fazendo nele.
Vai servir bem ao seu propósito.
Um segundo depois, o barulho das sirenes ressoa pelos quatro cantos da fortaleza. Uma
convocação. O Comandante deseja ver todos nós na cúpula.
Baelgrim e eu trocamos um breve olhar, e embora eu tenha pressa para contar a ele sobre
Radamanto, sei que chamaremos muita atenção se não estivermos lá quando Mammon se sentar
em seu trono.
É por isso que, em vez de impedi-lo de marchar para fora da câmara, faço o mesmo que ele.
Os andares inferiores da torre estão pululando de demônios que, interrompidos no meio de
suas tarefas, agora tentam se apresentar na frente do Comandante sem atrasos. A torre de
Mammon não fica longe daqui. O desafio é sempre abrir caminho entre as hordas para chegar no
tempo certo, de preferência sem acabar enfiado numa briga.
No salão de entrada da torre de Mammon, a aglomeração é tanta que um congestionamento se
forma na base da escada que leva à cúpula.
Baelgrim e eu aguardamos o escoamento gradual da Ordem, atentos aos arredores, mas
discretos o bastante para não chamar atenção.
— Me pergunto o que o Comandante tem a dizer.
Não preciso me virar para reconhecer a voz de Lorchi atrás de mim.
— Estranho — respondo, usando o mesmo tom monótono que ele. — Não era você quem
soprava as coisas no ouvido dele?
Baelgrim se mexe ao meu lado, desconfortável.
Ele já não ter enfiado uma adaga na garganta de Lorchi até hoje é um mistério para mim.
— Às vezes, sim — ouço-o dizer, para logo em seguida surgir do meu outro lado. — Por
exemplo, fui eu quem aconselhou ele a negar a alteração de Radamanto no contrato da sua nova
mortal.
O sangue pulsa em meus ouvidos conforme viro a cabeça na direção dele.
— Do que está falando? — pergunto, a despeito do sorriso desprezível em seu rosto e do
quanto ele me faz querer estripá-lo.
Lorchi estala a língua.
— Do apelo que você fez à Corte pela vida dela. Sabe, eu realmente não acho que seja um
bom negócio para a Ordem perder mão de obra sem nenhum motivo relevante. O Comandante
também não, por isso rejeitou a intervenção de Radamanto.
Minhas mãos estão no colarinho dele antes mesmo que ele tenha tempo para pestanejar.
De repente, não há nada que eu queira mais do que arrancar camada por camada de sua pele e
fazê-lo mastigar uma por uma.
Bael tem razão, eu devia ter me livrado desse desgraçado na primeira vez que ele me
aborreceu.
— Por que está fazendo isso? — falo entredentes, mantendo-o sob meu agarre.
Será possível que suas ocupações são tão escassas a ponto de ele investir tempo se metendo
nos meus assuntos pessoais? Agora vejo que o superestimei, mas eu achava que um ato tão
mesquinho quanto esse estivesse abaixo dele.
Ao nosso redor, os demônios se dividem como as águas de um rio. Com exceção de Baelgrim,
que vejo se aproximar pela visão periférica, ninguém ousa chegar muito perto.
Lorchi não tenta se desvencilhar ainda, embora uma fração do sorriso imbecil tenha
esmorecido.
— Ora, só estou ansioso para conhecer sua namoradinha — diz. — Ouvi dizer que ela é muito
mais interessante que você.
Aproximo nossos rostos para que ele consiga ver com clareza o aviso em meus olhos e ouvir
cada palavra do que vou dizer.
— Você vai querer ficar bem longe dela, Lorchi — digo, transformando a fúria numa calma
gélida. — A não ser que já tenha perdido o gosto por essa cabeça vazia que você tem.
A única coisa me impedindo de travar esse embate aqui e agora é a constatação de que, se
meu acordo com Radamanto foi rompido por Mammon, não resta muito tempo para Sienna.
Ela irá a julgamento em poucos instantes e não haverá nada para impedir sua morte.
Preciso encontrá-la. Vou resolver esse problema com as minhas próprias mãos, mas agora só
preciso ir até ela.
Lorchi parece bem ciente disso.
— Por que não perguntamos o que ela mesma acha disso, daqui a pouco, quando ela se juntar
a nós?
Ele aproveita para se livrar das minhas mãos.
Deixo que ele se afaste dessa vez. Quando nos encontrarmos de novo, ele não terá tanta sorte.
Os membros da Ordem, antes se atropelando para subir as escadas e se apresentar ao
Comandante, observam a cena com expectativa. Uma pena que ainda não terão a carnificina que
desejam ver. Ainda.
Confiante na vitória, Lorchi passa por mim e abre caminho até a escada.
Ele poderia já estar lá em cima, mas veio até aqui para se gabar por ter sabotado meu plano,
como um pirralho arrogante faria.
Visivelmente decepcionados, os demônios aos poucos retomam seu objetivo original.
Baelgrim surge na minha frente com uma expressão sombria no rosto.
— Do que ele estava falando? — ele questiona.
Mais uma vez, a oportunidade de contar a verdade a Bael me escapa.
Ponho uma mão no ombro dele e o encaro brevemente antes de responder.
— Eu devia ter falado com você antes, mas prometo que vou explicar tudo quando voltar.
E essa não é a única coisa que pretendo fazer.
38: SIENNA
Me and the Devil, Soap&Skin

— Filha, ouviu o que eu disse?


Sou arrastada de volta para a realidade.
À minha frente, mamãe me olha em um misto de expectativa e confusão.
Percebo que divaguei durante toda a conversa e não faço ideia do que ela estava dizendo.
Olho para Renan, que, por sua vez, olha para Gia.
— Sim, acho ótimo — digo, torcendo para que seja uma resposta coerente.
Uma ruga marca a testa de mamãe e Gia disfarça um sorriso.
Merda.
Não consigo me concentrar em nada desde que a estreia terminou e voltei para o camarim
com o resto do elenco. Mal lembro como minha mãe, Renan e Gia chegaram aqui. O próprio
espetáculo agora parece uma memória antiga e distante.
Agora está mais perto do que nunca da minha audiência. Sei que não preciso mais me
preocupar, porém a sensação de desalento se recusa a ir embora. É como estar caminhando na
direção do precipício com um paraquedas nas costas, mas sem muita confiança nele.
Se Kai estivesse aqui, eu estaria mais tranquila? Estou assim justamente por que ele não
apareceu? Não sei direito o que pensar. Minha cabeça dói.
— Podem esperar um minuto? Vou ao banheiro — murmuro, antes que mamãe fale mais
alguma coisa que não vou ouvir.
Praticamente corro para fora do camarim, esbarrando em mais de uma pessoa no processo.
Mas não sei aonde estou indo. O que vai acontecer com o meu corpo quando minha alma for
levada para o julgamento? Vou simplesmente cair inconsciente? Se sim, preciso arranjar um
local seguro e longe das vistas da minha família. Posso me esconder no banheiro, mas caso
demore muito e eles tranquem o teatro…
Dou de cara com uma parede de músculos assim que viro uma esquina. O impacto me faz
tropeçar, mas sou amparada antes da queda.
O rosto de Kai entra em foco de forma inesperada. Arregalo os olhos, consternada.
— Onde você estava? — Minha voz soa esganiçada quando ele me puxa para um abraço
urgente.
Kai está tenso e sério demais para diminuir o pânico se formando em meu estômago.
— Sinto muito por ter perdido sua estreia — diz.
Ele soa abatido como se lamentasse muitas outras coisas.
Sou incapaz de evitar uma careta.
— Aconteceu alguma coisa?
Pegando minhas mãos, Kai endurece o maxilar antes de falar de novo.
— O acordo que fiz para garantir que você ficaria viva depois do julgamento não está mais
valendo — declara, o olhar preso no meu. — Precisamos tirar você daqui agora e te esconder até
eu voltar.
A notícia é como ácido na pele. Faz meus joelhos quererem vacilar de novo e minhas
entranhas darem um nó. De alguma forma, consigo não me encolher.
Então é isso? Vou morrer hoje e acordar no inferno amanhã? Não consigo visualizar esse
desfecho, mesmo me esforçando para isso. Tudo parece tão irreal.
— Me esconder? — ecoo a fala de Kai, depois de um instante em silêncio. — É a minha alma
que eles vão levar, como vou esconder isso deles? E para onde você vai?
Por que ele está dizendo essas coisas como se não fossem absurdas?
Kai me olha com uma determinação perigosa.
— Vou resolver esse problema de forma definitiva. E quanto a esconder você deles, conheço
uma forma.
Não faço ideia do que ele está dizendo, mas quando ele começa a andar a passos largos pelo
corredor e me leva consigo, minha confiança nele ainda é inabalável.

Kai encontra um camarim destrancado e me pede para esperar um minuto lá dentro, enquanto sai
para buscar algo.
Meu coração trepida fora de controle, e preciso engolir a bile várias vezes para não vomitar.
Já estou morrendo, aparentemente.
Ando em círculos pelo cômodo quase idêntico ao que eu estava antes, incapaz de lembrar se
Kai chegou a dizer o que estava indo buscar.
A noção de tempo fica prejudicada quando se está prestes a morrer? Porque não sei se são
minutos ou segundos que se passaram desde que Kai me encontrou.
Penso na minha família lá fora, esperando que eu volte, mas não acho que irei. O que diremos
a eles? Porque com certeza não vão sair do teatro até terem certeza de que estou bem.
A porta volta a se abrir de repente, mas não é o demônio quem aparece primeiro.
Minha respiração fica presa na garganta.
— Gia?
Merda. O que ela está fazendo aqui?
Gia me olha de volta enquanto entra no camarim, seguida por ninguém menos que Kai.
Não é possível. Foi ela quem ele foi buscar?
— Você está bem? — pergunta ela, com uma expressão estranha no rosto.
Escondo as mãos trêmulas atrás das costas para que Gia não perceba nada anormal.
— Sim, eu…
— Ela precisa da sua ajuda, oráculo — Kai se adianta, terminando de fechar a porta à chave.
Fico sem palavras por um longo instante.
— Do que você chamou ela? — balbucio por fim.
Cartomante, sim, e talvez médium, mas oráculo? O que ele quer dizer com isso?
Gia aperta os lábios e se dirige ao demônio, ignorando minha pergunta.
— O que preciso fazer?
— Um ritual — Kai responde sem perder tempo. — Vou mostrar exatamente como deve ser
feito.
— Espera, do que vocês estão falando? — Massageio as têmporas. — E, Gia, por que você
não está fazendo perguntas?
Ela está agindo como se compreendesse toda a dimensão do que está acontecendo, quando
deveria estar achando que perdemos o juízo. Por que sou a única pessoa que parece perdida aqui?
— Eu sei a verdade, Sienna — diz ela, hesitante. — E sei o que ele é. Não fiquei em paz
depois do que te falei quando voltamos da igrejinha, então acabei encurralando ele mais tarde e
exigindo explicações.
Meu queixo despenca vários metros.
Ela sabe? Sabia todo esse tempo e ainda assim não disse nada? Sem mencionar o fato de ela
ter se preocupado com a minha segurança a ponto de confrontar Kai diretamente para saber suas
intenções. Se eu não estivesse tão em choque, ficaria impressionada.
— Por que só estou sabendo disso agora?
Alterno o olhar entre os dois, esperando alguma explicação.
Kai vem parar na minha frente.
— Você pode brigar comigo depois, mas agora precisamos nos ater ao plano. Não temos
muito tempo, monstrinho.
Por mais que eu queira insistir no assunto até as coisas começarem a fazer sentido, sei que ele
está certo. O tempo é o meu maior inimigo agora, e a não ser que façamos algo a respeito, não
vou estar viva para vencer essa discussão.
Atrás de Kai, Gia alterna o peso das pernas.
— Eu disse aos nossos pais que te daria uma carona para casa. Eles vão voltar para o hotel,
mas acho melhor você mandar um áudio para a sua mãe antes de ficar inconsciente, ou ela vai
suspeitar.
Respiro fundo, decidindo abstrair os absurdos da situação por enquanto e focar no mais
crucial.
— Certo. E o que vai acontecer depois desse tal ritual? — questiono.
— Você vai morrer — Kai diz, sério. — Mas Gia vai te trazer de volta logo depois. Enquanto
estiver morta, sua alma vai estar segura no limbo e eles não poderão te achar.
— No limbo?
Todo mundo já ouviu falar do limbo pelo menos uma vez na vida. Ele nunca me pareceu um
lugar que alguém gostaria de ir por livre e espontânea vontade.
— É onde todas as coisas ficam suspensas e nada pode ser encontrado. Vou garantir que você
saia de lá rápido. Pode confiar em mim mais uma vez?
Apesar de não gostar da ideia, não preciso pensar muito a respeito. Eu confiaria em Kai
mesmo que tivesse outra escolha. E ainda que tudo dê errado, saberei que ele tentou me ajudar
até não ser mais possível.
Faço que sim com a cabeça e vejo os ombros dele relaxarem um pouco. É quase como se
estivesse esperando uma resposta diferente.
Mas o gesto dura pouco, porque, no minuto seguinte, Kai está dando instruções de como o
ritual deve ser feito para funcionar corretamente.
Sorvo cada palavra com atenção, perfeitamente ciente de que minha vida agora depende do
nosso sucesso.
O ritual, na verdade, é bem simples. Não demanda ingredientes exóticos, caldeirões de estanho
ou sangue de uma virgem. Só precisamos de um espelho, e esse não é um objeto difícil de ser
encontrado em um camarim.
Antes de partir em sua própria missão, Kai desprende um dos espelhos da parede e entrega a
Gia, que o manuseia com cuidado para não causar um incidente. O demônio também improvisa
um ritual para selar a porta do camarim e impedir possíveis intromissões, não querendo arriscar
nossa segurança.
Por último, ele deixa um beijo terno no topo da minha cabeça, e tento ao máximo não encarar
isso como uma despedida.
— Sinto muito por ter te arrastado para essa bagunça — lamento, a voz abafada contra o
peito dele.
Kai aumenta seu aperto ao meu redor.
— Seus problemas são os meus problemas agora, monstrinho. Não se desculpe por isso. Vou
travar suas lutas e pretendo vencer todas elas.
Meu peito se comprime.
Eu não o mereço.
Ainda em seu abraço, deixo que a certeza dele acalme meu coração trovejante. Seja lá o que
Kai tiver que fazer, ele vai ficar bem. Minha experiência com demônios pode ser limitada, mas
duvido que haja alguém páreo para ele ou que possa impedi-lo de conseguir o que quer.
Não devia ser tão reconfortante saber que vamos nos encontrar de novo, seja aqui ou no
inferno.
Quando ele parte, envio uma mensagem de voz para tranquilizar mamãe e imediatamente
ocupo minha posição para o ritual. Me deito no chão frio, com as pernas juntas e as mãos
cruzadas sobre a barriga, exatamente como Kai ensinou.
Gia também se adianta e ergue o espelho acima de mim, de forma que o meu reflexo fique
alinhado no centro. Logo estou encarando minha própria imagem refletida.
— Preparada? — pergunta ela, me olhando de cima pela borda do espelho. Uma gota de suor
corre em sua testa.
Engulo em seco.
— Se eu não voltar, você pode cuidar da minha mãe? — Minha voz embarga contra a minha
vontade.
Não quero pensar nisso, mas é impossível evitar.
— Você vai voltar — ela assegura, mais confiante do que eu. — E a sua mãe também é minha
família agora, eu cuidaria dela em qualquer circunstância.
Balanço a cabeça e tomo uma longa respiração.
— Obrigada.
Com Gia e Renan, mamãe nunca ficará sozinha se eu não voltar. Vai ser mais fácil lidar com
as coisas sabendo disso.
Encaro meu reflexo e meu reflexo me encara de volta.
Hora de conhecer o limbo.
É o sinal que Gia precisa para começar a entoar as palavras que Kai ensinou.
Não fazem qualquer sentido para mim, pois só existem no enoquiano, que, segundo Kai, é a
língua materna dos anjos. Duvido que mesmo Gia consiga entender algo, mas só o que importa é
que as formulações estejam certas, e Kai garantiu que estariam antes de ir.
Gia profere as palavras de poder num ritmo contínuo, conforme meus olhos se perdem dentro
deles mesmos.
Por um tempo, parece que nada vai acontecer. No entanto, partes do meu corpo começam a
formigar em seguida. A voz de Gia vai ficando mais distante, minha respiração condensa e o
reflexo no espelho chega cada vez mais perto, até nossos narizes se encostarem.
De repente, ele não está mais lá. O espelho e o reflexo somem, deixando um vazio no lugar.
Em vez da voz de Gia em meus ouvidos, sinto água se chocar contra eles. Imediatamente, ergo a
cabeça para me livrar da sensação.
O cenário que encontro me deixa sem reação por muito tempo.
Estou deitada em um chão coberto de água, que se agita ao meu redor em pequenas ondas. E é
isso. Não consigo enxergar mais nada; para qualquer lado que eu olhe, é só água turva e
horizonte em branco.
O único som é o ruído das ondulações na água, mas não é como numa praia. O elemento da
vida é ironicamente morto aqui. É o que se pode esperar do limbo, eu acho. Completo vazio, com
nada para acompanhar exceto seus próprios pensamentos.
Me sento e abraço meus joelhos, sem saber o que mais posso fazer.
Kai garantiu que ninguém me encontraria aqui e que ele me levaria de volta logo, antes
mesmo de alguém poder sentir a minha falta e a de Gia. Também disse que enquanto Gia
mantivesse o espelho acima do meu corpo, não haveria risco de me perder no limbo.
No momento em que for seguro, Gia deverá reverter o encantamento e trazer minha alma de
volta ao plano físico. Somente ela poderá finalizar o ritual que começou. Enquanto isso, não há
muito que eu precise fazer além de esperar.
O julgamento deve começar em breve, mas não haverá réu por enquanto.
Fecho os olhos e me concentro no movimento da água ao meu redor. Torço para que o tempo
passe mais rápido aqui e que eu não tenha que esperar muito. Não é um lugar agradável.
Conto as batidas do meu coração, depois o número de vezes que respiro por minuto. Quando
minhas nádegas ficam dormentes, me obrigo a levantar.
Caminhar dificilmente vai me levar a algum lugar, mas faço isso somente para ter o que fazer.
Abro caminho pela água rasa, procurando inutilmente por algo concreto.
Kai me avisou que eu não encontraria outras almas no limbo, uma vez que é uma jornada
pessoal e solitária. Cada alma possui seu próprio limbo e eles nunca colidem. Ainda assim, sinto
um ligeiro pânico ao lembrar que não há absolutamente nada aqui além de mim.
Após certo tempo andando, já não tenho mais certeza de para qual direção estou indo. Se em
linha reta ou se em círculos, não parece fazer diferença alguma.
Não há começo e fim no limbo. Não há ponto de partida e destino. Começo a achar que nem
mesmo estou saindo do lugar.
Minha garganta se fecha e o ar se torna escasso.
Eu corro como se precisasse garantir que ainda estou no controle do meu corpo. Que ainda
estou viva.
Mas não importa o quanto eu corra, nada muda. O vazio desse lugar é imperturbável.
Preciso sair daqui. Preciso voltar logo.
Paro, arfando, e cerro os olhos até as pálpebras doerem.
Quando volto a abri-los, algo mudou. Surgiu é a palavra certa. Alguns passos à minha frente,
três portas se erguem do chão, presas por nada visível.
Arrepios lambem meu corpo conforme caminho até elas, notando que, além das tábuas
suspensas no ar, não há nada depois delas. Não há nenhum jeito de saber aonde essas portas
supostamente levam, a não ser passando por elas.
Paro diante das três, examinando uma por uma.
A da esquerda é simples, branca e de madeira maciça. Uma porta comum, que facilmente se
encontraria em muitas casas pelo mundo. A do meio é maior, brilha em dourado e tem
ornamentos entalhados minuciosamente. Sem dúvidas, uma porta cheia de promessas. A da
direita é a mais decadente das três. A pintura está descascada e há lascas saindo da madeira. Nem
um pouco convidativa.
Sei que vim até o limbo para me esconder, mas desespero líquido me corrói por dentro.
Talvez eu possa descobrir o que há por trás dessas portas e voltar para cá em seguida. Não
preciso me demorar do outro lado, uma breve olhada, um mínimo escape que seja, vai ser o
bastante para acalmar minha mente.
Meus pés se movem sozinhos, alheios ao conflito dentro de mim.
Por mais clichê que seja, escolho a porta mais bonita para começar. Paro na frente dela e
observo as formas incrustadas novamente, assim como a maçaneta dourada e o desenho
entalhado nela. Fico com a estranha sensação de já ter visto essa porta antes.
Sem pensar muito nas consequências, giro a maçaneta aos poucos.
À medida que a fresta se torna uma passagem, noto a completa discrepância entre o ambiente
daqui e o do outro lado, a começar pelo piso laminado e dourado que a passagem revela,
culminando num cenário inesperado.
Quando ganho a visão total do espaço além da porta, me deparo com um salão circular e
abobadado, com paredes altas pintadas de branco.
Não parece ser grande desse ângulo, e tampouco consigo ver se há alguém lá dentro. Se essa
for uma extensão do limbo, estarei sozinha nela também, mas ao menos terei deixado o vazio.
Dou um passo adiante, depois outro, até estar parada embaixo do arco da porta, de onde posso
contemplar melhor o que me espera.
Em alguns pontos do salão, banhadas pela luz vinda do teto transparente, há árvores que me
lembram versões menores de palmeiras. Próximo delas, arbustos se erguem com flores de cores
vibrantes.
Mas é o que está no centro do recinto que mais chama a minha atenção. Pequenas esferas de
tamanhos distintos flutuam ao redor umas das outras, e o arranjo delas de alguma forma me é
familiar.
Me afasto da passagem e chego mais perto delas, quase convencida de que não há ameaças
aqui.
Agora contemplando de perto, fica impossível não associar as esferas a planetas e a
configuração delas a galáxias. A beleza da composição é estranhamente comovente. É como
olhar toda a vida existente sob uma nova ótica, de um ponto sem interferências.
Não sei quanto tempo passo só observando o espetáculo, mas ficaria muito mais, se não fosse
pelo movimento que minha visão periférica captura em um dos cantos do salão.
Viro a cabeça instintivamente.
Uma exclamação fica presa em minha garganta quando avisto a figura familiar congelada no
meio de uma caminhada, com os olhos também cravados em mim.
— Thalia? — digo, perplexa.
Sim, Thalia. Com asas e tudo.
— Sienna? — O anjo hesita. — O que está fazendo aqui?
A despeito do choque, minhas mãos começam a suar involuntariamente.
Como Thalia pode estar aqui? Não deveria haver ninguém mais no meu limbo. Ela veio me
buscar para a audiência?
Ah, merda.
— Eu não sei — confesso a verdade. — Tinha uma porta e eu… atravessei. Que lugar é esse?
E por que é tão destoante do que deixei para trás?
Thalia me olha com cautela, como imagino que olharia para uma criatura exótica.
— Aqui é a… Como assim "tinha uma porta"? — Ela se interrompe e estreita os olhos. —
Onde você estava antes?
— No limbo, eu acho. Não tinha nada lá.
O anjo faz que não com a cabeça. Quase posso ver os pensamentos disputando espaço em sua
mente.
— Você não devia estar aqui — diz ela. — Seu julgamento já vai começar.
Engulo em seco, subitamente lembrando de que Thalia é um anjo e portanto nunca apoiaria
esse plano.
Eu devia ter ficado quieta.
— Não posso ir para lá agora. Preciso de um pouco mais de tempo.
Decido continuar com a verdade. Mentir para Thalia agora só vai deixá-la menos propensa a
me ajudar. Não que eu espere que ela me ajude. Como poderia?
Quando o anjo não responde e em vez disso me encara com a testa franzida em concentração,
resolvo não abusar da minha sorte mais do que já fiz.
— É melhor eu voltar para lá. — Aponto na direção da porta.
Quanto antes eu voltar para o limbo, mais fácil será para Thalia simplesmente fingir que
nunca estive aqui. Preciso ir antes que alguém mais entre, algum outro anjo menos empático que
Thalia.
Só dou um passo antes de ela falar outra vez.
— Sinto muito, Sienna — ouço-a dizer, e me pergunto se estou imaginando a dor em sua voz.
— Mas você não pode fugir das consequências dos seus atos.
No tempo que levo para virar a cabeça, um círculo transparente se fecha ao meu redor como
paredes.
Meus olhos se arregalam quando percebo o que acabou de acontecer, e imediatamente bato os
punhos cerrados contra a prisão.
— Thalia! — berro, usando toda a força do meu corpo, mas vendo que não parece fazer
diferença.
Seja lá qual for o tipo de magia que Thalia lançou para me prender nesse círculo, não sou
forte o suficiente para quebrá-la.
Encaro o anjo com uma onda de pânico se apossando de mim.
— Thalia, não! Por favor.
Mas Thalia apenas abaixa o olhar para o chão e se vira, pronta para voltar pelo caminho que
veio.
Quando ela se move, minha prisão mágica faz o mesmo.
O anjo está me levando para enfrentar a justiça divina.
39: KAI
Here We Go, Norman

— Fique bravo comigo. Me dê um soco, se quiser. Mas eu não me arrependo de tentar ajudá-la.
Baelgrim me olha como se quisesse me machucar com muito mais que um soco. Não posso
culpá-lo.
— Acha que eu não sei disso? — ele fala entredentes, o rosto oscilando entre tons de
vermelho. — Você tem agido como o cachorrinho dela já faz um tempo, não pense que estou
surpreso. Tive esperanças de que você deixaria isso de lado, mas pelo visto não vai. Arrastou
todo o clã para os seus problemas.
Olho ao redor rapidamente para garantir que não temos companhia no corredor. Mas são
poucos os demônios que arriscam passear pelo meu andar sem bons motivos, portanto Bael e eu
temos privacidade.
— A Corte não vai ter poder nenhum sobre a Ordem enquanto eu estiver aqui — asseguro,
ciente do problema principal. — Mammon, Radamanto, os outros príncipes… não me interessa
quem eu tiver que derrubar no caminho, vou fazer o que for melhor para a Ordem.
Tampouco posso culpá-lo por ter pensado que seria diferente, considerando que acabei de
contar a ele que fiz um acordo com o inimigo. Traí sua confiança quando ele menos esperava.
Bael cruza os braços, o semblante marcado pelo mal-humor.
— E deixa eu adivinhar — começa, em tom desdenhoso —, agora você vai até aquela torre
atrás da cabeça de Mammon, ignorando todo o bom senso. Estou errado?
Ele sabe bem como meu raciocínio funciona. Não é à toa que está nessa comigo desde que nos
aproximamos e que será meu senescal quando a hora chegar.
— Não venha, se não quiser. — Eu não poderia pedir algo diferente dele e dos outros. Minha
intenção nunca foi arrastar ninguém para os meus problemas ou pedir que lutassem minha lutas.
— Fique seguro e, caso eu não volte, organize o clã para quando uma oportunidade melhor
surgir. Destrua Mammon assim que puder. Mas eu não vou cruzar os braços quando ela mais
precisa de mim.
Estou bem ciente de que posso não voltar. Apesar de acreditar mais em mim do que na
capacidade de Mammon de acabar comigo, tudo pode acontecer numa batalha.
E se eu acabar dando um passo maior que a minha própria perna, não quero que a Ordem se
detenha por causa disso. Se não for eu quem vai tomar a coroa de Mammon, que seja Bael. Nós
dois sabemos o quanto a coroa combinaria com ele.
Minha única lástima será não poder poupar Sienna de um destino que ela nada fez para
merecer.
Baelgrim solta o ar dos pulmões como se assim pudesse expurgar a raiva que sente de mim
nesse momento. Quando termina, os pensamentos homicidas parecem não estar mais tão fortes.
Talvez tenha invocado nossos momentos de amizade e parceria nos últimos anos.
— Quando notou sua ausência na cúpula, Mammon solicitou que você fosse ao escritório dele
assim que retornasse. Ele estará esperando você.
Balanço a cabeça em sinal positivo.
— Uma desculpa a menos que vou precisar dar — murmuro.
Não que eu pretendesse invadir a torre do Comandante sem nenhum planejamento, mas ter
um pretexto para visitá-lo com certeza vai agilizar as coisas.
— Vou reunir o clã — Bael declara, me pegando de surpresa. — Mandarei o aviso para
Basom e os rebeldes. Começaremos pelo cerco na torre de Mammon, para neutralizar os
soldados de dentro e impedir que os de fora entrem. Você vai encontrar um pandemônio quando
tiver terminado, mas não se detenha. Deve chegar ao Reduto das Sombras depressa se quiser
salvar sua mortal.
Encaro meu parceiro de luta com admiração renovada e gratidão. Ele não me deve nada, nem
mesmo sua confiança depois do que fiz. Mas ele escolhe ficar ao meu lado de toda forma.
Quando estiver naquela sala com Mammon, é desse gesto que lembrarei. Ele me manterá de
pé mesmo que minha carne ameace sucumbir.
— Nos encontraremos na batalha, Comandante — diz ele, solene.
Aperto seu ombro, desejando que essa não seja a última vez que reafirmamos nossa relação.
— E celebraremos depois dela.

Baelgrim tinha razão. Assim que atravesso a porta da torre do Comandante, sou notificado de
que Mammon está esperando por mim em seus aposentos pessoais.
Imaginei que ele me receberia no escritório, mas não estou me queixando. O espaço ia ficar
realmente pequeno para o que eu tenho em mente.
Subo as escadas até o último andar, cuja quantidade de sentinelas é sempre menor que nos
outros.
Príncipes no geral se preocupam com sua reputação, e o que seria da de Mammon se os outros
começassem a achar que ele precisa de guarda dentro de sua própria torre?
Como esperado, os corredores estão vazios.
No intervalo entre a batida na porta e a espera até ver Mammon do outro lado, milhares de
cenários atravessam minha mente. De todas as coisas que poderiam dar errado, e de tudo que
poderia fazer a diferença no momento final. Preciso estar preparado para qualquer um deles.
A porta se abre sem cerimônia, revelando um regente de pés descalços e peito nu. Não muito
diferente do que ele costuma ser quando está dando festas no Reduto das Sombras. A diferença é
que, na Cidadela, poucos conhecem essa versão dele.
— Aí está você — diz ele, à guisa de cumprimento. — Entre logo.
É o que faço, sem nenhuma razão para agir diferente do que eu agiria em circunstâncias
normais.
No aposento, reparo no quão pouco foi mexido desde a última vez em que estive aqui. Mas
imagino que não há muito sentido em mudar um ambiente no qual você mal pisa.
Paro diante de uma mesa que, em comparação com a que há em seu escritório, parece
inutilizada. Ele certamente não é do tipo que leva trabalho para casa.
Mammon me deixa na mesa e vai atrás do carrinho de bebidas.
— Por que não se apresentou mais cedo? — ele pergunta, de costas para mim enquanto serve
duas taças.
— Tive um imprevisto.
Se virando outra vez, o Comandante me oferece uma das taças que encheu com licor.
— Você está se ocupando demais com o recrutamento — aponta, depois de tomar um gole da
própria bebida. — Era onde eu precisava de você antes, mas agora estamos desperdiçando suas
habilidades. Quero sua atenção em tarefas mais importantes daqui em diante.
Por que essa súbita mudança me cheira a Lorchi?
Ergo uma sobrancelha.
— Como, por exemplo…?
Ele abre um sorriso de quem mal via a hora de responder essa pergunta.
— Como, por exemplo, o treinamento da minha nova divisão que você tão diligentemente
descobriu a existência. Imagino que tenha dado trabalho conseguir informações sobre ela.
Meu silêncio fala mais que quaisquer palavras. Para ele, significa que não tenho como negar a
acusação. Para mim, é uma admissão de que não fui tão cuidadoso assim nas minhas
maquinações.
Não sei como ou o que mais ele descobriu, mas percebo, enquanto encaro seus três olhos
leitosos, que nada disso importa mais. Não mudará o desfecho desse encontro.
Enfim podemos ser honestos um com o outro. Já era hora.
— Fazer Nanzi falar não foi tão difícil quanto eu achei que seria. — Deduzo que ele também
já sabe dessa parte. — Só precisei usar o incentivo certo.
Mammon não parece surpreso, o que indica que acertei no palpite. Ele sabia que matei um de
seus melhores homens e não agiu de acordo? Confesso que estou intrigado para saber o porquê.
— Inteligente da sua parte, garoto — fala. — Quase fiquei impressionado quando Lorchi me
contou tudo. Todo esse caos na Cidadela, e era você o tempo inteiro… Mas me diga, o que você
esperava conseguir no final das contas?
Uma risada curta e sem humor me escapa.
— É de se imaginar que você já tivesse essa resposta, não? — provoco, deixando a taça
intocada em cima da mesa.
— Estava esperando que ela não fosse tão óbvia. Que você não seria tão óbvio assim.
Pretendia me matar e roubar minha coroa? Acha mesmo que consegue manter um principado,
garoto? O que eu fiz que fez você acreditar ser uma tarefa tão fácil?
Movo os pés até estar de frente para Mammon, sem nada em nosso caminho. Quero ter essa
discussão cara a cara com ele.
— Você me ensinou a acreditar que sou capaz do que quiser, lembra? — replico, achando
graça da ironia de certas coisas. — Vou assumir sua coroa e ser um regente melhor do que você,
simplesmente porque eu quero.
A expressão de Mammon se torna insondável. Não vejo raiva, surpresa ou decepção. Há algo
mais suprimindo todas essas coisas.
— Você tem razão, a culpa é mesmo minha — ele fala por fim. — Me permita lhe passar uma
nova lição sobre não travar lutas que não se pode vencer. Estou disposto a esquecer tudo isso
depois que você tiver aprendido o seu lugar. Tenho muitos usos para essa sua determinação,
garoto.
Enquanto fala, Mammon passa por mim e para no centro da câmara, onde o espaço aberto é
mais amplo. A mensagem que ele me passa quando abre os braços é clara.
— Uma rinha? — murmuro, custando a acreditar no quanto a arrogância dele pode afetar sua
inteligência.
Ele poderia chamar quantos soldados quisesse e ordenar minha prisão imediata por traição e
confabulação contra a coroa, mas acha que pode me corrigir em vez disso.
Por que ainda me surpreendo, afinal? O ego de Mammon sempre foi seu adereço mais
marcante.
— Sem nenhuma magia para interferir no resultado — explica, se deleitando com o momento.
— Exatamente como nos velhos tempos.
Sorte a minha que nunca gostei de depender de Artefatos para salvar minha própria pele. Não
preciso deles para enfrentar Mammon em uma batalha, e, para ser justo, ele também não se sai
nada mal nos combates corpo a corpo. Nosso desfecho vai ser suado e sangrento, pelo visto.
Retiro minha capa sem desviar os olhos do meu oponente.
Ele sorri em resposta ao meu aceite antes de puxar duas adagas de um suporte na parede mais
próxima.
Faço o mesmo com a lâmina presa no coldre da calça.
Briga de facas sempre foi o passatempo preferido dele. Posso ver por que parece tão satisfeito.
Conforme nos encaramos, a tensão que antecede a batalha paira no ar. O fantasma de um
sorriso zombeteiro desponta nos lábios de Mammon, deixando claro que ele não me vê como
uma ameaça.
Cerro os punhos com a adaga em uma mão e assumo uma posição de combate, canalizando
meu desprezo e usando-o como força motriz.
A luta começa quando faço a primeira investida e Mammon se esquiva com facilidade. Ele se
move com uma graça que entrega sua experiência em confrontos físicos, empunhando as
próprias facas com uma precisão impecável.
Quando ele revida, desvio de seu ataque bem na hora certa.
— Você era mais rápido, garoto — provoca.
Recomeçamos a dança ao redor um do outro, e no próximo ataque, chego um pouco mais
perto dele.
Nada abalado, Mammon avança novamente, usando uma sequência rápida de golpes que
mudam de ângulo a cada segundo e me forçam a recuar cada vez mais para não ser atingido.
— Vamos lá, você nem está tentando — ele ralha, os olhos brilhando.
Deixo que ele assuma as investidas, me limitando a bloquear golpe após golpe. Já estive aqui
antes. Sei que a arrogância dele irá deixá-lo confortável rapidamente, portanto me aproveito
disso.
Logo começo a traçar o padrão nos golpes de Mammon, e não me surpreendo que ele ainda
confie tão cegamente nas mesmas técnicas que costumava me ensinar no passado. Antes que ele
se dê conta, estou prevendo seus movimentos, desviando das investidas e contra-atacando no
mesmo ritmo que ele.
A surpresa transforma o rosto dele quando consigo cravar a adaga em seu braço, e, pela
primeira vez, o sorrisinho de escárnio estremece. Mas a muralha em torno dele logo é erguida
outra vez, e preciso arriscar uma manobra improvisada para não receber um contragolpe no
abdome.
Ainda assim, calculo mal a distância que preciso abrir entre nós e a adaga de Mammon
atravessa minha mão.
A dor sobe pelo braço no mesmo instante, me fazendo cerrar o maxilar até os dentes
rangerem.
Satisfeito, ele não tenta me impedir quando recuo alguns passos.
— Estou pegando pesado demais? — Seu tom é pura provocação e soberba.
Não tenho opção além de deixar o sangue jorrar do ferimento na palma da minha mão.
Retomo o confronto com a mão boa, me concentrando no inimigo e não na dor.
Ataco de novo e de novo, e defendo quando preciso. Não demora até estarmos os dois com
suor escorrendo em nossas testas.
Nenhum abaixa a guarda, mas Mammon é mais descuidado e se sobrecarrega primeiro, me
dando a brecha que preciso para abrir vantagem.
Com uma investida arriscada, mas boa demais para deixar passar, derrubo uma adaga da mão
dele, que cai no chão com um barulho seco.
Ele tropeça para trás, surpreso demais para fingir outra reação.
Nossos olhares se cruzam por um breve momento, e é impossível não notar a arrogância
sendo substituída por uma determinação fria. O ego dele pode ter sido ferido, mas o orgulho
agora está mais forte que nunca.
— Vejo que aprendeu alguns truques — ele murmura, estreitando os olhos. — Quais outros
você tem guardado aí?
Ao contrário de Mammon, não gosto de subestimar meus oponentes. Talvez essa seja uma das
diferenças primordiais entre nós dois.
Gosto de manter a guarda levantada mesmo quando o outro parece estar em maior
desvantagem. Não há espaço para prepotência no campo de batalha. Você está morto até
conquistar a chance de sair vivo dele.
Mammon não se dá ao trabalho de recuperar a arma caída. Em vez disso, ele se lança na
minha direção com fúria renovada e distribui golpes com mais agilidade que antes.
Bloqueio os ataques da melhor forma que posso, mas ele ainda consegue me acertar em
alguns pontos estratégicos, abusando de suas habilidades milenares.
Sinto o calor e a viscosidade do sangue escorrendo dos cortes antes mesmo de sentir qualquer
dor, mas me forço a pensar sobre isso depois. Agora, apenas luto de volta, competindo com cada
ataque dele e nem um pouco disposto a ceder.
À medida que causamos danos um ao outro, se torna nítido que a força dos golpes de
Mammon vai sendo minada.
Apesar de estarmos ambos ofegantes e feridos, os movimentos dele perdem a constância e a
fluidez que lhe davam vantagem no início da luta. A máscara de presunção está longe de ser
encontrada, e em seu lugar há somente um demônio lutando desesperadamente para salvar seu
orgulho.
Abro um talho em seu peito com a lâmina, aproveitando a fração de segundo em que ele se
abala para jogá-lo para trás.
Mammon cambaleia e isso é tudo o que preciso para fazê-lo perder o equilíbrio nas pernas.
Ele cai no chão com um estrondo e eu caio por cima dele, usando cada segundo a meu favor.
Perco a visão do olho esquerdo quando sangue escorre do corte acima da minha sobrancelha,
porém, se perder essa chance, não tenho como garantir que outra virá.
Levo a adaga até a curva do pescoço de Mammon, pressionando para baixo enquanto ele
segura minha mão.
— Saiba que suas lições te trouxeram até esse momento — digo entredentes. — Essas são as
mãos que você mesmo treinou. Fico feliz em poder te ensinar algo uma última vez.
Mammon range os dentes cobertos de sangue, usando as pernas para tentar me golpear.
Uma técnica que eu mesmo já apliquei diversas vezes, mas que, graças a ele, sou
perfeitamente capaz de contornar.
Observo com o olho intacto conforme a realidade cai sobre ele. Incapaz de continuar
segurando minha lâmina, ele ruge à medida que a carne de seu pescoço é atravessada, rompendo
vasos e empurrando-o para mais perto do fim.
Não é uma visão que vou querer gravar na memória para reviver quando estiver entediado. É
uma para lembrar de jamais subestimar meus inimigos.
— Adeus, Mammon.
Com uma última pressão, minha lâmina desfaz milênios de existência e conquistas. Em um
instante, há resistência, sons estrangulados e ossos no caminho. No outro, mais nada. Apenas o
silêncio que a morte costuma deixar na saída.
Por mais bem-vindo que seria um descanso agora, sei que não há tempo.
Mammon estar morto ainda não significa muita coisa. A vida de Sienna continua tão
ameaçada quanto antes, e a não ser que eu dê novas instruções a Radamanto sobre a alma dela,
nada vai mudar.
Me levanto com o dobro do esforço que levei para me abaixar sob doses cavalares de
adrenalina.
Não devo parecer tão impressionante agora, embebido em sangue e com mais cortes do que
gostaria. Baelgrim com certeza vai me dar um sermão por isso. Isso é, depois que tiver decidido
o que fará com a cabeça de Mammon.
Em uma mão, seguro a cabeça de olhos esbugalhados e boca semiaberta. Na outra, a coroa
que caiu dela.
Agora vem a parte mais difícil de um golpe de estado.
40: KAI
Watch It Fall, Willyecho

Ou a coroa é o passe para transitar entre domínios, ou a magia do inferno me reconhece como
novo residente do Reduto das Sombras, porque a passagem na câmara de Mammon se revela
assim que tomo posse da coroa.
Não preciso de nenhum ritual para deixar a Cidadela dessa vez.
Na nova guerra contra o tempo, não me dou ao luxo de esperar antes de partir ao encontro da
Corte. Com sorte, eles ainda não terão saído para a audiência e eu poderei dispensar as novas
ordens sobre o julgamento de Sienna.
O corte fundo em minha perna me faz mancar até o portal, e quando passo para o outro lado,
descubro que o desconforto habitual da travessia é ainda pior quando se está machucado.
Entretanto, para além do breve atordoamento da viagem, algo mais poderoso me nocauteia
assim que coloco os pés no Segundo Domínio.
A sensação é a de dar de cara com uma parede energizada, que se infiltra em cada célula do
meu corpo e me rouba a capacidade de me mover. A cabeça de Mammon e a coroa escapam das
minhas mãos.
Sou jogado no chão antes mesmo de conseguir ver o que me atingiu. A dor lancinante me faz
apertar o maxilar e usar tudo de mim para manter os olhos abertos.
Tento mover qualquer parte do corpo, mas correntes surgem repentinamente e se enroscam
em meus braços, pernas e tronco, aumentando ainda mais a descarga elétrica.
De joelhos, ergo a cabeça com um esforço monumental, somente para encontrar três rostos
conhecidos me encarando de volta.
— Vida longa ao Príncipe dos Enganadores!
Lorchi.
É ele quem está mais perto de mim, contemplando a cena com um sorriso afetado. Atrás dele,
Gehenna limpa as unhas com uma faca.
Mas é Radamanto quem se levanta primeiro da mesa em que os três estão sentados.
— Aí está você — exclama o Juiz, esfregando a palma das mãos. — Mal víamos a hora de te
reencontrar.
Gostaria de poder dizer que estou surpreso. Mas, por algum motivo, uma combinação como
Lorchi e Radamanto parece ter sido escrita nas estrelas. Era mesmo uma questão de tempo.
Engulo através das ondas de dor, sustentando a cabeça em pé. Só então presto atenção onde
estou, e parece ser um salão comum de refeições, como os que temos na Cidadela, só que mais
escuro. Não há muita luz no Reduto das Sombras.
— Trocando as alianças tão cedo, Radamanto? — cuspo, entre uma respiração rasa e outra.
O Juiz estala a língua, chegando mais perto.
— Gosto de diversificar minhas apostas, Alto Maligenii. Nosso amigo Lorchi aqui me
pareceu bastante promissor e eu não resisti. — Ele para e vira a cabeça na direção de algo na
lateral do meu campo de visão. — Uma pena que Aeacus e Minos se tornaram um fardo a essa
altura do campeonato.
Faço reflexo ao gesto dele e vejo dois corpos inertes pendurados por ganchos em um dos
pilares.
Aí está o resto da Corte. Que belo tratamento para se dar aos seus iguais.
Outra cadeira raspa no chão. Lorchi aparentemente não quer ficar para trás na conversa.
— E eu estava certo, no final das contas — ele fala. Seu olhar convencido se fixa em mim. —
Rapidinho ele pulou na garganta de Mammon como um cão bem treinado. Eu disse que ele seria
o caminho mais fácil até a coroa, não disse?
— Seu plano precisava de mim para liquidar Mammon porque você mesmo não seria capaz?
— murmuro, encarando-o com o olho que não está coberto de sangue. — Nem posso dizer que
estou chocado.
— Infelizmente, você é o único que ele não destruiria imediatamente ao menor sinal de
revelia. Apostei que ele ao menos te daria o benefício da dúvida e, no pior dos casos, iria querer
punir você com as próprias mãos, sem pressa. Com essa brecha e com a motivação que você
tinha, seria difícil não ganhar dele.
Preciso admitir que foi uma boa jogada. Covarde, se formos considerar que o plano era
mandar alguém para vencer no lugar dele, porém, eficiente.
Ainda é cedo para reconhecer que cometi o mesmo erro que Mammon ao não dar a devida
importância a um rival? Devo ser a criatura mais hipócrita desse lugar no momento.
— E deixa eu adivinhar — prossigo. — Mammon nunca rejeitou o apelo que fiz à Corte. Foi
só a desculpa que você precisava para me dar essa motivação extra, estou enganado?
Porque é claro que ele sabia que isso me forçaria a agir depressa.
— Ele nem mesmo sabia sobre o seu apelo — Radamanto responde no lugar do aliado. —
Pode odiá-lo um pouco menos agora.
Quão irônico é que Mammon tenha sido morto mais cedo que o previsto por algo pelo qual
nem mesmo foi responsável. Deus tem senso de humor, afinal.
— Então, agora que Mammon está fora da jogada… — deixo a pergunta no ar.
Lorchi se aproxima o suficiente para apanhar a coroa caída e limpar uma sujeira invisível do
metal.
— Posso me livrar de você também — diz. — De um jeito ou de outro, ninguém apoiaria a
sua regência quando soubessem o que você fez. — Lorchi faz uma pausa para contemplar a
cabeça no chão e os corpos dos juízes. — Decapitar um regente e matar dois terços da Corte?
Acha que os outros príncipes confiariam em um usurpador como você? A coroa seria arrancada
junto com a sua cabeça num piscar de olhos.
— Claro… — Balanço a cabeça, compreendendo onde ele quer chegar. — E quem melhor do
que o braço direito do antigo Príncipe da Enganação para recuperar a coroa usurpada, não é
mesmo?
Tão previsível. Se os príncipes tiverem um terço da inteligência que imagino que tenham,
reconhecerão o embuste que Lorchi é sem nem precisar fazer esforço.
O demônio ri à medida que acomoda a coroa na própria cabeça.
— Uma baita responsabilidade que estou disposto a assumir pelo bem da Ordem.
Meu olhar viaja além dele e se detém em Gehenna, a única que não se moveu ou falou uma
palavra desde que cheguei aqui.
Ela parou de brincar com a faca, mas parece entediada observando o desenrolar das coisas.
Sequer pisca quando me pega encarando-a.
— Você escolheu um lado, no final das contas — digo, percebendo o quanto eu esperava que
ela me surpreendesse.
— Sempre tive um lado, Kaiyaan — ela retruca. — Você simplesmente preferiu não enxergar.
Outro erro que assumo. No fundo, meu desejo de tê-la lutando ao meu lado me cegou para a
possibilidade mais real. Eu agiria diferente se pudesse voltar atrás? Talvez. Talvez não. Nem
toda lição pode ser aplicada depois de aprendida.
— E aqueles filhotes no desfiladeiro? — mudo a abordagem. — Vai mesmo transformá-los
em máquinas de matar?
Um músculo tensiona em seu rosto — único indício de que toquei em um ponto sensível. Mas
Gen é muito boa em manter as aparências.
— É o que eles são. Foram criados e só servem para isso.
Não acredito nela tanto assim.
Alguém limpa a garganta em alto e bom som.
— A conversa está agradável, mas a Corte tem outro compromisso para atender agora —
informa Radamanto. Ele continuar se referindo a si mesmo como A Corte, depois de ter
aniquilado a maior parte dela, é no mínimo duvidoso. — Alto Maligenii, algum recado que
queira dar à sua querida mortal?
Não é nem mesmo sobre a disputa pela alma de Sienna agora.
O que Radamanto quer levando essa audiência a cabo é que eu saiba que ele está no controle.
Que pode e vai exercer seu poder sobre a Ordem, independentemente da minha opinião. Para
isso, ele encontrou o aliado perfeito em Lorchi.
Incapaz de perder uma oportunidade, Lorchi assobia.
— Ah, é mesmo uma pena que você não estará aqui para recepcionar a humana — ele
provoca. — Mas não se preocupe, vou cuidar dela pessoalmente.
Por cima do meu cadáver.
— Na verdade, tem algo que eu pretendia dar a ela pessoalmente, mas pelo visto não vou ter a
chance — confesso, bem ciente da poça de sangue se formando ao meu redor. Não tenho muito
tempo. Encaro Radamanto. — Se importa em entregar você mesmo? Está no meu bolso.
— Eu não cairia nessa, se fosse você — Gehenna quebra o voto de silêncio pela segunda vez,
desconfiada das minhas intenções.
Esperta demais.
— O quê? — resmungo, vendo que Radamanto está levando a sério o conselho de Gen e
parece não querer arriscar. — Tem medo do que eu possa fazer mesmo estando desarmado,
ferido e imobilizado?
O argumento o deixa com duas opções: admitir que está realmente com medo, ou dar um
passo adiante e mostrar que não represento ameaça alguma para ele agora. É quase fácil demais.
O Juiz solta uma risada ríspida, avaliando meu estado deplorável antes de decidir que o
conselho de Gehenna é desnecessário. Ele anda até mim e espera que eu sinalize em qual bolso
está meu presente para Sienna.
Facilito sua tarefa de bom grado.
Quando tira a mão da minha calça, ele examina o objeto com cautela. Não deve ser nada do
que ele esperava, porque um riso incrédulo deixa sua garganta.
— Um anel de compromisso? — ele cacareja. — Por Lúcifer, você é mesmo um romântico
incorrigível, não é? Quer garantir que ela se lembrará de você quando estiver morto?
O brilho do pequeno anel em sua mão faz meus músculos relaxarem minimamente. Isso vai
ter que servir. Não será definitivo, mas nos fará ganhar tempo. É o que posso garantir por
enquanto, então que seja o bastante.
— Que patético — Lorchi zomba, dando as costas.
No curto espaço de tempo que tenho, analiso o que pode acontecer a seguir. Mas até mesmo
nos piores cenários, a escolha de Radamanto de confiar na minha armadilha torna impossível
para ele se salvar.
— Você me fez um grande favor, Vossa Maleficência — murmuro em resposta.
Com um comando silencioso, o anel na mão dele dá vida à serpente de quinze metros que já
me salvou mais vezes do que posso lembrar.
Foi a surpresa que preparei para Sienna quando percebi que ela precisaria de proteção no
mundo mortal. Adaptei o objeto original para que fosse discreto e pudesse se encaixar no dedo
dela, e eu pretendia ensiná-la a usá-lo sempre que estivesse em perigo.
Não confiaria essa tarefa a outro além do Devorador, que se provou leal a mim por tanto
tempo. Agora, mais uma vez, preciso dele para cuidar dela.
O Devorador deixa seu receptáculo já preparado para fazer o que precisa, e Radamanto mal
tem tempo de tropeçar para trás quando metade de seu corpo é dilacerado pelas presas do animal.
Ele berra e tenta escapar, mas o veneno da serpente tem ação instantânea. Seus membros
enegrecem, a necrose se espalhando como fogo em palha, até que ele cai no chão em meio a
espasmos violentos.
Tudo acontece rápido demais. O Devorador só tem tempo de farejar ao redor, quando uma
espada feita de gelo e maldições é cravada em suas costas, abrindo uma lacuna tão brutal que a
serpente não tem chance alguma de lutar de volta antes de tombar.
Gehenna puxa a espada do corpanzil abatido, me lançando um olhar gelado antes de desviá-lo
para Lorchi.
Meus machucados não doem tanto quanto ver a serpente sem vida, depois de ter executado
com perfeição seu último trabalho em meu nome.
Serei grato ao Devorador todos os dias da minha existência, e se houver algo depois, nada
mudará.
Perto de onde a serpente caiu, o corpo apodrecido de Radamanto repousa em completa
inércia.
Morto.
A partir de hoje, o inferno não possui mais Corte. É um dia para ficar na história.
Estagnado na mesma posição que parou, Lorchi contempla a cena como se não pudesse
assimilar rápido o suficiente.
— Você está acabado, Alto Maligenii — diz ele por fim, virando a cabeça na minha direção
outra vez. Há choque em sua expressão, mas o ódio rivaliza com ele. — Se acha tão esperto, não
é? Pois saiba que isso não muda nada. Minha principal missão a partir de agora será arrastar a
alma da sua concubina para cá. — Ele inclina a cabeça para o lado, indicando que uma ideia
acabou de lhe ocorrer. — E sabe o que mais? Vou deixar você vivo para assistir cada detalhe do
que farei com ela depois.
Cuspo o sangue acumulado em minha boca.
— Vai precisar de muito mais que essas correntes para me impedir de voltar para ela, Alteza.
Você perdeu a porra do juízo se acha que pode me segurar aqui por muito tempo.
Não vou descansar até ter certeza de que ela está segura. Posso queimar o inferno inteiro se
for preciso, mas enquanto eu existir, vou lutar para encontrá-la de novo e protegê-la.
— Não preciso de muito tempo. Ela vai estar morta antes que você sequer perceba.
Algo me diz que vou gostar de destruir Lorchi mais do que gostei do que fiz com Mammon.
Que a caçada comece.
41: SIENNA
The End, Klergy

Thalia me leva diretamente ao local onde serei condenada. Não importa o quanto eu proteste e
lute para me libertar do círculo que ela criou para me prender, nada a impede de me arrastar até o
lugar em que encontrei o Arcanjo Emeryel pela primeira vez.
O que achei que fosse uma igreja desativada, e que o Arcanjo me avisou que seria o palco do
meu julgamento.
Na altura em que cruzo o arco de entrada com Thalia encabeçando o caminho, estou
esbaforida e trêmula da cabeça aos pés.
Meu estômago despenca à medida que noto o quanto o lugar mudou desde a última vez que
vim aqui. Não o lugar em si, mas sua ambientação. A começar pelo arco sinistro ao fundo — a
Origem — que continua lá, mas é como se a passagem e o seu apelo tivessem sido neutralizados.
Agora também há três assentos virados na direção do altar — um em cada lado e outro solitário
no meio — e cadeiras dispostas na parte mais elevada do templo.
Nunca estive diante de um tribunal, mas reconheço esse sem muito esforço. Lá em cima é
onde devem ficar os juízes, e não preciso pensar muito para deduzir que a cadeira do meio, na
parte de baixo, é a minha. As outras só podem ser para Thalia e Kai.
Me pergunto se Kai já sabe do meu fracasso em manter um plano tão simples, e se está bravo
comigo nesse momento. Não o culpo se estiver; também quero bater minha própria cabeça contra
a parede por ter sido tão burra.
Thalia anda em linha reta entre as fileiras de bancos vazios, me ignorando categoricamente.
Sigo atrás, sem ter muita escolha.
Quando chegamos aos assentos ainda desocupados, ela me faz sentar no meu lugar sem ao
menos me olhar nos olhos.
Por um breve momento, penso que ela removerá o círculo ao meu redor, só que, em poucos
segundos, fios sobrenaturais brotam dos apoios de braço da cadeira, me prendendo no lugar.
Faço pressão para me libertar, porém, assim como a magia da gaiola, essa também não me dá
chances.
— Thalia, você não precisa fazer isso — murmuro uma vez mais, a garganta já seca pelo
esforço de antes.
Dignando-se a me olhar dessa vez, o anjo abre a boca para falar algo, mas pensa melhor e
desiste.
Sou realmente idiota por ter confiado nela todo esse tempo. Em troca, não vou receber nada
além de uma punhalada nas costas.
Por que eu esperava que ela fosse me ajudar? Quando foi que Thalia mostrou que se
preocupava comigo além do que já era esperado dela?
Vejo quando ela se prepara para reivindicar o assento ao meu lado, mas outro movimento à
minha frente me faz virar a cabeça de forma involuntária.
Três figuras imponentes surgem em cima do altar e ocupam metade das cadeiras disponíveis.
Eles variam em altura, sendo um particularmente mais alto que os outros dois, e têm asas ainda
maiores que as de Thalia.
Trajam armaduras prateadas com adornos de ouro, que lhes conferem uma aparência bélica e,
ao mesmo tempo, celestial.
Estou tão ocupada reparando na autoridade que eles exalam que esqueço de reagir.
Alguém mais se junta aos três em seguida. Reconheço Emeryel, o primeiro Arcanjo com
quem tive contato, conforme ele caminha até parar ao lado dos outros anjos.
O Arcanjo cruza as mãos atrás das costas antes de se dirigir ao resto de nós.
— Nos reunimos aqui, neste dia, para a audiência que determinará o destino da alma de
Sienna Bianco, prometida ao inferno vinte e um anos atrás, e consagrada ao céu há vinte anos.
Ambas as Cortes, Celestial e Infernal, agora chegarão a uma sentença.
O mais alto deles, que ficou com o assento do meio, deixa o olhar pairar entre mim e Thalia.
Me encolho um pouco na cadeira.
— Onde está o outro? — pergunta ele, lançando um breve e crítico olhar para o assento vago
ao meu lado. Sua voz enche o espaço como um trovão. — E por que a outra Corte não está aqui?
Ainda em pé numa postura reverente, Thalia abaixa o olhar em sinal de respeito.
— Já deveriam ter se apresentado, Barachiel — ela diz.
Meus batimentos perdem o ritmo quando me dou conta do que isso pode significar.
Se nem Kai nem os juízes do inferno estão aqui, algo deve ter acontecido para detê-los. Isso
quer dizer que o plano de Kai deu certo? Ou que as coisas saíram completa e irremediavelmente
do controle? As duas hipóteses fazem meu estômago se contorcer.
Em resposta, o juiz celestial crispa os lábios, visivelmente aborrecido.
— Bem, meu tempo não é ilimitado. Se a acusação não está aqui, Amadiel, Auriel e eu
devemos assumir que o outro lado não tem interesse na alma da humana?
Isso mesmo, quero gritar. Mas a figura à esquerda do juiz impaciente se mexe no assento.
— Concordo que seja o mais lógico a se fazer, Barachiel — ele manifesta, a voz mansa
contrastando com a rispidez do outro. — Nesse caso, precisaremos discutir o que faremos com a
alma dela, já que a morada celestial também não irá recebê-la.
Espera. O quê?
Me agito na cadeira, fazendo os fios mágicos ao redor dos meus pulsos tensionarem.
— O que isso quer dizer? — pergunto, antes que alguém me impeça de abrir a boca. — Se o
inferno está me rejeitando, a única alternativa que resta é o céu. A questão não se resolve por si
só?
Quatro pares de olhos se cravam em mim. Meu instinto diz que não foi a coisa mais esperta a
se fazer, mas consigo me manter ereta no lugar.
— Não temos obrigação alguma com você, criança. — É a vez do anjo da direita se
pronunciar. — Amadiel está certo.
O anjo da esquerda, a quem chamam de Amadiel, balança a cabeça em acordo com quem
assumo que seja Auriel.
— Em seu tempo de provação, tivemos provas suficientes de que sua natureza é
inerentemente corrupta. Não é bem-vinda na morada celestial — diz ele.
Minha cabeça gira, incapaz de enxergar sentido no que dizem. Se minha alma não vai ser
entregue ao inferno, e o céu também a rejeita, o que irá acontecer comigo?
Barachiel, que se limitou a somente ouvir enquanto os outros falavam, entrelaça as mãos no
colo coberto pela armadura. Seu olhar de aço recai diretamente sobre mim.
— Que sua alma repouse no limbo a partir deste dia.
Não, não, não.
— Arcanjo, Virtude. Podem levá-la.
Pânico gela meu sangue e, antes que eu perceba, estou me debatendo na cadeira, forçando as
cordas até meus pulsos doerem.
O limbo não. Qualquer coisa menos o limbo.
— Não posso ir para o limbo! — protesto, procurando o olhar de cada um deles. Paro em
Thalia. — Thalia, diga a eles que isso é um erro.
Ela mais uma vez não vem em meu socorro.
A voz de Emeryel é a que enche o lugar dessa vez.
— A sentença da Corte é inquestionável e infalível — diz o Arcanjo, indiferente ao meu
desespero. — Você será guiada agora ao lugar onde passará a eternidade, criança.
— Mas eu dei informações a vocês — berro. Procuro Thalia de novo, enxergando-a através
das lágrimas que embotam minha visão. — Diga a eles que tínhamos um trato!
O silêncio dela quebra meu coração pelo que acredito ser a última vez. Então é assim que nos
separamos para sempre?
— Potestades, assumam — ouço Emeryel comandar, segundos antes de duas armaduras
surgirem do nada e ocuparem meu campo de visão. Mãos seguram meus braços.
Sou erguida da cadeira, já sem as amarras me prendendo, mas cercada por dois anjos muito
maiores que eu, que sequer estavam aqui antes.
— Me soltem — vocifero, resistindo em vão.
Eles são mais fortes e me dominam com facilidade.
Entretanto, preciso ao menos tentar. Se essa será minha última luta, não posso entregá-la de
bandeja. Quando meu cotovelo se choca contra o metal de uma armadura e a dor irradia pelo
meu braço, uma voz me faz parar de me contorcer.
— A Corte talvez queira reconsiderar a decisão sobre a humana. — Thalia fala pela primeira
vez desde que a sentença foi dada. — Há algo sobre ela que até então ignorávamos.
Quando me viro para vê-la, boquiaberta, encontro-a se dirigindo aos juízes.
Uma ruga se forma entre as sobrancelhas de Barachiel.
— O que está dizendo, Virtude? — pergunta ele, a voz como lixa raspando metal.
Thalia ergue ligeiramente o queixo antes de prosseguir.
— Antes de chegarmos aqui, eu mesma a encontrei tentando se esconder da audiência. Ela
não sabia onde estava ou como tinha ido parar lá, mas… — Ela faz uma pausa e me olha de
esguelha. — A humana estava na Sala dos Santos.
Um silêncio sepulcral se instaura na sala, seguido por entreolhares incrédulos.
Tenho a impressão de ser a única que não entendeu o que Thalia disse. Antes que eu tenha a
chance de pedir uma explicação, o Arcanjo dá um passo à frente.
— Que invenção sem sentido é essa? — murmura ele, zangado. — Isso é simplesmente
impossível.
Thalia retribui seu olhar sem pestanejar.
— Eu vi com meus próprios olhos. Ela alegou ter atravessado uma… porta.
Auriel emite um ruído de impaciência.
— Não há nenhuma forma de…
— Façamos um teste, então — Thalia o interrompe, para o espanto de todos presentes.
Aproveito o choque dos anjos-guardas me segurando e me desvencilho deles.
— Do que vocês estão falando? — questiono em voz alta, cansada de ser mantida no escuro.
— O que é essa Sala dos Santos?
É Barachiel quem se digna a responder minha pergunta, embora seu desprazer com a tarefa
seja nítido.
— A Sala dos Santos é um local imaculado onde somente nós, os anjos do Divino, podemos
entrar — começa ele. — Uma mortal como você jamais poderia pôr os pés lá.
Compreendo o que ele está me dizendo, mas o problema é que não faz o menor sentido. Essa
tal Sala dos Santos, se for mesmo a sala em que eu estava antes de chegar aqui, claramente não é
tão protegida assim, ou eu não teria conseguido entrar com tanta facilidade.
— E ainda assim, ela entrou — Thalia retoma o argumento. — Não podemos enviá-la ao
limbo sem antes entender as implicações desse evento. Se a Sala se abriu para Sienna…
— Chega! — Emeryel corta, mais ríspido do que jamais achei que poderia ser. —
Recomponha-se, Virtude. — Ele lança a Thalia um olhar de pura censura e decepção. — Não
tenho dúvidas de que o que houve não passa de um mal-entendido. A Sala nunca se abriria para
ela.
Mas ele não é o único impaciente aqui, porque Amadiel fica de pé e anda até a beira do altar.
— Você disse que passou por uma porta? — indaga, me examinando mais de perto agora. —
Como exatamente ela era? O que viu nela antes de atravessá-la?
Engulo em seco sob a intensidade de seu escrutínio, me obrigando a não recuar.
A porta. O que ela tinha de especial? Não consigo lembrar de nada digno de nota. Me parece
surreal que ele esteja tão interessado em algo tão irrisório quanto uma porta.
— Ela era… alta e dourada — digo o que consigo resgatar da memória. — Tinha um desenho
gravado na maçaneta...
— Que desenho?
Ele dá mais um passo à frente, perdendo a compostura por um breve segundo. Quando
percebe o deslize, ele se empertiga no lugar.
Invoco mentalmente a imagem da maçaneta que toquei antes de abrir a porta para escapar do
limbo.
O desenho não devia ter mais de dez centímetros e não se destacava tanto assim no metal, mas
estava visível o suficiente para que eu o notasse. Lembro de ter achado-o familiar de alguma
forma.
— Parecia a letra R, talvez — respondo, soando mais como uma pergunta. — Mas por que
isso importa?
— Maldito! — Barachiel esbraveja atrás de Amadiel.
— Não deveria fazer diferença alguma. Ele foi banido — Auriel também se agita.
Mais uma vez, não tenho ideia do motivo de toda essa comoção. Ele quem? Por que sinto que
estou perdendo uma parte crucial da história?
Desviando os olhos de mim, Amadiel se vira para encarar os outros dois.
— Dissemos aos outros que o julgamento dela não seria comprometido por isso, estávamos
enganados todo esse tempo? — pergunta ele como se a hipótese fosse algo até então
inimaginável.
Me precipito para o lado de Thalia, desesperada por respostas.
— Thalia, o que está acontecendo?
Ela, no entanto, está mais preocupada em controlar o incêndio que causou.
— Sugiro que adiemos essa audiência até termos certeza de que isso tem algo a ver com ele
— diz ela, aumentando o tom de voz para garantir que será ouvida. — Eu me disponho a
acompanhar a humana de perto nos próximos dias, enquanto investigamos as possibilidades.
Algo a ver com ele. Com Kai? O que Kai poderia ter a ver com aquela porta?
— Ele quem, Thalia? — insisto, encarando seu perfil.
Ela olha para mim dessa vez, mas a voz estrondosa de Barachiel chama a nossa atenção ao
mesmo tempo.
— Se Nathaniel tiver algo a ver com esse absurdo, precisamos descobrir como isso é possível,
além de reunir toda a Comissão Divina para pensar em soluções para esse caso — declara o juiz.
Nathaniel?
— Quem é Nathaniel? Do que vocês estão falando?
Deus, vou enlouquecer se as peças não começarem a se encaixar agora!
Thalia finalmente decide me dar o que peço.
— Nathaniel é o dono da porta que você atravessou para a Sala dos Santos. A runa desenhada
nela é a identidade dele.
— Mas o que isso tem a ver comigo?
— Ele era um anjo. E era o seu pai.
Um arrepio percorre minha espinha antes mesmo que eu termine de absorver as palavras de
Thalia.
Sinto o impacto delas no meu âmago, balançando minhas estruturas até desmoronarem.
Subitamente, o oxigênio parece ficar escasso.
O que Thalia está dizendo?
— O quê? — balbucio no momento em que pontos pretos surgem no canto da minha visão.
— Um anjo banido da morada celestial muito tempo atrás — a voz de Barachiel assume. —
Não satisfeito em se misturar aos humanos, também se aliou a Lúcifer para alcançar suas
ambições sórdidas. Ele deixou você no corpo de sua mãe logo antes de sumir de vez. O começo
de uma prole condenada. Você e ele não são diferentes por natureza. Assim como a Sala parou
de se abrir para Nathaniel, jamais deveria ter se aberto para você.
Algo muito parecido com pânico crava as unhas nas minhas entranhas, torcendo e puxando.
Preciso forçar meus pés a continuarem plantados no chão, embora esse tenha sumido abaixo de
mim.
— Meu pai era um anjo?
Minha voz não parece vir de mim. Não a reconheço mais.
Meu pai… um anjo. Isso tem que ser uma piada de mal gosto. Um artifício para me enganar e
controlar.
Meu pai não era ninguém mais que um ganancioso disposto a vender a própria alma e a dos
outros para conseguir o que queria. Não havia nada de especial nele. Era um homem como
qualquer outro. Um anjo não faria o que ele fez.
Então um flash de memória surge involuntariamente.
Os contornos de um objeto há muito esquecido no fundo de uma gaveta. O relógio que,
segundo mamãe, foi a única coisa que meu pai deixou com ela antes de desaparecer. Nenhum
detalhe marcante, exceto pelo risco visível na tampa, sobre o qual nunca pensei muito a respeito,
mas que agora parece conter toda a verdade da minha existência.
Foi onde vi pela primeira vez o desenho deixado na maçaneta.
Agarro o espaldar da cadeira com tanta força que os nós dos meus dedos ficam brancos.
— Por que você nunca me contou?
A pergunta esganiçada é para Thalia. O sentimento de traição deixa minha língua amarga.
Outra lembrança surge sem avisar.
Achei que os anjos já tinham parado de cair.
A sombra que passou brevemente pelo rosto dela…
Não pararam.
Somente resquícios da verdade. Como ela pôde me olhar nos olhos por tanto tempo e não
achar que eu merecia saber essa parte da história? Ainda que não mudasse o desfecho, eu tinha o
direito de saber.
Até mesmo agora, depois do julgamento, eu não teria descoberto nada se não fosse por uma
improbabilidade do destino. Teria sido jogada no limbo sem conhecer a minha verdadeira
origem. Dói perceber que Thalia não é melhor que esses anjos forjados em ferro.
Quem mais sabia disso? Kai? Ele mesmo sugeriu que eu tentasse fazer contato com meu pai
uma vez. É possível que tenha sabido a verdade o tempo todo e me deixado às cegas
propositalmente? Meu coração quer rejeitar a ideia, mas a parte racional em mim não deixa.
Onde quer que ele esteja agora, é melhor se manter vivo até estar cara a cara comigo de novo.
Thalia me encara de volta, e pelo menos há pesar em seu semblante.
— Prometo que falaremos sobre isso mais tarde — ela assegura, levando uma mão ao meu
ombro. — Mas agora você irá para casa.
Começo a discutir, longe de ter ouvido explicações suficientes, mas Emeryel surge ao lado de
Thalia no tempo de uma respiração.
O Arcanjo estende o braço envolto pela túnica, e logo o toque frio de seu dedo está no ponto
entre minhas sobrancelhas.
— Essa audiência está adiada até novas instruções — decreta ele, de volta ao tom neutro que
usava no início. — Você teve sorte, criança. Nos encontraremos de novo em breve.
Um protesto fica preso em minha garganta quando sinto aquela mesma sensação de estar
sendo içada por um gancho. Assim como da primeira vez, não sobra tempo para reação.
No segundo em que me dou conta, estou de volta ao chão frio do camarim, com os músculos
rígidos e um espelho na minha cara.
— Jesus Cristo! — a exclamação vem de além do meu reflexo.
Ouvir a voz de Gia não ajuda a apaziguar minhas emoções tempestuosas. Acho que nada seria
capaz de ajudar nesse momento.
Ela se livra do espelho de qualquer jeito, e eu consigo ver seu rosto de novo. Parece que
envelheceu dez anos em poucos minutos, provavelmente por causa do susto. Fora isso, não acho
que muita coisa mudou desde que deixei esse plano.
— O que houve? — pergunta ela, estendendo uma mão para me ajudar a levantar. — Não
devia ficar lá até ser seguro voltar?
Fico sentada com certa dificuldade, devido a rigidez do corpo. A sensação esquisita não deixa
dúvidas de que eu realmente estive morta nesses últimos instantes.
Entre o turbilhão de pensamentos, lembro de Kai e não consigo não torcer com todo o meu ser
para que ele esteja bem.
O que quer que ele tenha feito, alterou completamente o rumo das coisas. Se não fosse por ele,
eu certamente estaria morta agora. Mesmo que ele também tenha omitido a verdade de mim, e
independente do impacto que isso tenha na confiança que tenho nele, prefiro que ele lide com as
consequências disso estando vivo.
— Não sei bem o que aconteceu — respondo, e parece que engoli areia. — Eles me levaram
para o julgamento.
Gia se senta na minha frente.
— O quê? E você foi absolvida? O que vai acontecer agora?
Meu estômago dá voltas. Não sei por onde começar a explicar.
Sou filha de um anjo caído, e, por algum motivo que ninguém conhece, tive acesso a uma
parte do céu.
Isso muda tudo, não muda? O fato de os anjos terem me mandado de volta indica muito mais
do que benevolência. Novas regras foram adicionadas ao jogo, e dessa vez nenhum de nós sabe
exatamente quais são.
A única coisa que parece certa é que, se eu for a primeira a desvendar esse enigma, posso ter a
vantagem que preciso para assumir eu mesma as rédeas do meu destino.
Se o inferno me quer morta e o céu não acha que mereço estar lá, é hora de achar outra saída.
Ergo os olhos cansados para Gia.
— Acho que vou ficar viva por mais um tempo.
Sienna, Kai e Thalia retornarão na conclusão de tirar o fôlego da duologia Um Grão de
Maldade.
AGRADECIMENTOS

Não tenho muitas certezas na vida, mas uma delas é que este livro não seria nem um terço do que
é hoje sem as pessoas que vou mencionar agora.
Lari Alcantara, minha heroína sem capa, você foi a peça chave que transformou Um Grão de
Maldade nessa versão que o mundo agora pode conhecer. Sem sua leitura crítica certeira e seus
palpites de ouro, eu não estaria tão convencida de que entreguei o melhor que pude neste
trabalho. Obrigada por ter, inclusive, deixado a skin profissional de lado naqueles momentos
específicos onde só precisávamos surtar juntas por causa da história. Você tornou o processo tão
gostoso quanto seria possível.
Caroline Dias, antes mesmo de nos falarmos pela primeira vez, eu já era sua fã. Seus livros
são fonte de inspiração para mim, e seu trabalho como autora independente tem sido minha
referência desde que conheci você. Agradeço ao universo por ter cruzado nossos caminhos e pelo
fato de que hoje posso te chamar de amiga. Obrigada pelas dicas, pelas trocas aleatórias no
Instagram e por ter aceitado ser leitora beta deste livro. Quando você disse sim ao convite, eu mal
acreditei na minha sorte.
Gabriely, Cecília e Cintia, minhas lindas betas, o que seria de mim sem vocês?! Um escritor
pode jogar quantas milhares de palavras quiser no papel, mas se não houver alguém disposto a
lê-las em primeira mão e dizer se elas fazem sentido, o esforço terá sido em vão. Vocês foram a
minha bússola entre uma versão e outra. Serei grata até o fim dos tempos pela paciência e
sinceridade de vocês. Acho que isto é um até logo.
Bárbara, Lea, Rildo e Jordana — conhecer vocês em 2023, durante a Bienal, foi um dos
pontos mais altos do meu ano. Sou louca pelo trabalho de vocês nessa comunidade literária;
torço demais para que cada um encontre aquilo que está procurando e mais um pouco. Obrigada
pelo apoio incondicional que ofereceram ao livro desde o momento em que souberam sobre ele.
O plano de sair para comer e encher a cara está sempre de pé quando é com vocês.
Minha preciosa irmã, sem você nada disso teria sido viável. Obrigada pela dedicação; por
cuidar tão bem de mim e dos nossos gatos enquanto estou enfurnada no quarto, trabalhando e/ou
escrevendo. Você me deu a base sólida que eu precisava para trilhar o caminho até aqui.
Tarcisio, você foi meu primeiro leitor, quando eu nem mesmo tinha escrito dez capítulos desta
história. Obrigada por ler, tecer comentários e me ouvir por horas divagando sobre os meus
planos confusos. Muitas das suas críticas me fizeram dar alguns passos atrás e tapar brechas que
eu nem tinha percebido. Você é o único que convive com a minha versão mais autêntica o tempo
todo, então obrigada por não ter fugido ainda. Já pode parar de jogar Baldur's Gate.
Marília, Glória, Marconi e Mateus — obrigada por serem meu porto seguro. Nunca preciso
me preocupar ou gastar meus neurônios quando estou com vocês. Queria que pudéssemos passar
muito mais tempo juntos, porque assim a vida ficaria mais leve. Amo vocês pelas minhas
próximas sessenta e nove vidas.
Ana Bozollan (@bozollan.artes), a arte de capa que você fez para Um Grão de Maldade está
na minha lista de coisas favoritas da vida. As outras ilustrações, então, eu até hoje não consegui
assimilar direito. Você é genial!
Bruno Bryan (@brunobryan_arts), sua arte da minha cena predileta do livro é um
monumento. Imprimir cartões postais ou cartazes com ela não basta, eu quero tatuá-la na testa.
Arquelana (que provavelmente não vai ler isto aqui), mas que foi o motivo de eu ter
conhecido a playlist mais transformadora de vidas de todos os tempos. A paixão por Hozier que
habita em mim saúda a paixão por Hozier que habita em você. Sou sua fã.
Meus leitores, atuais e futuros — vocês são a razão de eu ter escrito este livro por meses a fio,
sem descanso até estar satisfeita com o resultado alcançado. Assim como certezas, também não
tenho muitas ambições, só que uma delas é estar cercada de pessoas que apreciem o que despejo
nas minhas histórias. Obrigada por estarem aqui. O mundo da escrita é solitário, no geral, mas
em todo o resto do tempo, são vocês que me mantêm nos trilhos. Até a próxima, amigos.
A AUTORA

Linette Douglas cresceu no interior de Pernambuco, rodeada de cães, primos tagarelas e


romances não indicados para sua idade. Começou a ler quando conheceu a saga Hush Hush
(Becca Fitzpatrick) em 2011, e desde então não parou mais de buscar refúgio em romantasias
com morenos misteriosos e sarcásticos. Nos dias de hoje, mora com a irmã e seus três gatos: Jon,
Loki e Snow, nas terras carnavalescas de Olinda. Ela mantém um Instagram dedicado a livros e
não perde uma chance de indicar boas fantasias ou de comentar sobre elas com leitores que são
inocentes demais para dar corda.

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Instagram, TikTok e Twitter: @linetteverso

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