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Introdução
E
m novembro de 2005, entrei num ônibus na cidade de São Paulo. Ao
pagar a viagem ao condutor, fui identificada como a “portuguesinha”.
Sentei-me na primeira fila e iniciou-se uma conversa entre o homem
sentado ao meu lado, um mulato de setenta anos, duas mulheres brancas
de cerca de sessenta anos sentadas na fila de trás e o próprio condutor.
Começaram por comentar o quanto prezavam Portugal e os portugueses,
passando depois para uma discussão sobre a amabilidade dos portugueses e de
como conseguem estabelecer uma ótima relação com todos. A conversa conti-
nuou com comentários sobre a ausência de racismo entre os portugueses,
sobre como eles conseguiram estabelecer relações amigáveis em África e
no Brasil, e como a relação entre Portugal e Brasil sempre foi excepcional
e excelente.
Quando saí do ônibus fiquei pensando sobre os comentários desses
passageiros que tinham espontaneamente iniciado uma conversa comigo
e como, apesar de nenhum deles ter lido Gilberto Freyre, eles pareciam
partilhar dos ideais freyrianos. Essa experiência não era nova para mim
(nem para os cientistas sociais que estudam o Brasil), já que muitas vezes
ouvi brasileiros falarem sobre esse assunto e elogiar a ótima relação entre
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as duas nações irmãs. Uma série de textos que discutem e criticam a ideo-
logia freyriana do luso-tropicalismo, as qualidades positivas da colonização
portuguesa e a miscigenação veio-me à mente. Enquanto seguia meu ca-
minho para a entrevista com um pai de santo da Umbanda que tinha muitas
relações com Portugal, pensei no modo como os próprios portugueses, em
Portugal, conceitualizam essa relação com o Brasil à luz da sua recente
conversão às religiões afro-brasileiras.
Começaremos este capítulo com um breve relato de como as religiões
afro-brasileiras têm se expandido em Portugal nos últimos vinte anos.
Passaremos, em seguida, à caracterização desse cenário religioso a partir de
dois pontos de vista. Primeiro, interpretaremos o modo como os líderes reli-
giosos afro-brasileiros (pais e mães de santo) conceitualizam o seu trabalho
religioso e como percebem a organização e função das religiões afro-brasi-
leiras em Portugal, sobretudo no que diz respeito à cura e ao melhoramento
do bem-estar das pessoas. Em segundo lugar, analisaremos a perspectiva dos
seguidores e “consumidores” dessas religiões, focando o modo como uma
alteridade religiosa exótica é combinada com um reportório ideológico e
uma tool box em que a religião surge como uma solução para as situações de
crise e em que as noções de cura, bem-estar e melhoramento pessoal têm
um papel crucial. O material apresentado neste capítulo foi recolhido ao
longo do trabalho de campo conduzido em terreiros em Portugal desde
2006. A pesquisa incluiu entrevistas com líderes rituais e seguidores dessas
religiões, assim como pesquisa na internet e no Brasil (sobretudo São Paulo
e Fortaleza, em casas com fortes ligações com Portugal).
imensa, e cada terreiro segue a forma ditada pelo seu pai ou mãe de santo
(CAPONE, 2004).
A Umbanda, conhecida por ser uma “religião verdadeiramente brasi-
leira”, uma síntese do imaginário religioso brasileiro, parece ser a variedade
que mais agrada aos portugueses, funcionando como uma “ponte cognitiva”
(FRIGERIO, 2004) entre o Catolicismo tradicional e variantes mais afri-
canas, como o Candomblé, sobretudo por causa dos sacrifícios animais e
da manipulação de sangue, que são mais dificilmente aceitos (SARAIVA,
2013b). Se tentarmos sistematizar os tipos de rituais e as casas de culto
em Portugal, podemos dizer que elas se organizam em três tipologias di-
ferentes, centradas em movimentos migratórios e conexões entre Portugal,
Brasil e África (PORDEUS JR., 2009; SARAIVA, 2010a; 2010b; 2010c;
GUILLOT, 2009).
No primeiro grande grupo estão os portugueses que, nas suas movi-
mentações pelo Atlântico, trouxeram as religiões afro-brasileiras com eles.
Nesse grupo estão os portugueses que eram imigrantes no Brasil, foram
iniciados nas religiões afro-brasileiras lá e trouxeram-nas de volta para a
velha metrópole. A situação simétrica é ilustrada pelos portugueses que
agora vão para o Brasil para serem iniciados ou aí desenvolverem a sua
carreira religiosa, já que veem o Brasil como uma Meca religiosa (CAPONE,
2004). O segundo grupo é composto de brasileiros que vieram para Portugal
para trabalhar noutras áreas, mas que, chegando a Portugal, viram a opor-
tunidade de desenvolverem o seu conhecimento religioso, e aqueles que
vieram com o objetivo específico de abrirem terreiros em Portugal. Nesse
grupo estão também brasileiros que vão só por algumas semanas, para da-
rem consultas baseadas no jogo de búzios e que regressam ao Brasil sem
constituírem comunidades religiosas. Um terceiro grupo é formado por
portugueses que não têm conexões com o Brasil, mas sim com a África.
Nascidos numa das antigas colônias e com ascendentes africanos, invocam
essas relações para legitimarem a sua autoridade religiosa. Não obstante,
os seus discursos levam-nos de volta à construção mítica de uma conexão
atlântica entre Portugal, África e Brasil que invoquei no início do capí-
tulo, em que descrevi a cena no ônibus de São Paulo e a sua ligação com
os ideais freyrianos sobre o luso-tropicalismo, assim como o conceito de
Gilroy sobre o Atlântico Negro.
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Este não é um caso isolado. Muitos desses líderes rituais que não têm
terreiros, mas dão consultas, são donos de lojas esotéricas que vendem livros
sobre práticas da Nova Era, com parafernália importada do Brasil para ser
usada em todos os tipos de rituais. Essa incorporação de princípios e técnicas
diferentes para curar o corpo material e espiritual não vai contra o que é
considerado equilibrado e saudável dentro das religiões afro-brasileiras,
como veremos a seguir. Essa é a razão principal pela qual eles se combinam
tão bem, tanto na perspectiva dos curadores rituais como na perspectiva
dos usuários.
da batida dos tambores e de outros espetáculos que essa força entra em ação.
Os deuses são assim convocados para vir à presença dos vivos.
Possessão e o corpo
No processo de construção do carácter sobrenatural da doença, a cura
do corpo humano transforma-se no mais importante locus de ação, em que
a crença e as emoções estão concentradas e em torno do qual uma série de
representações que ultrapassam largamente a caracterização biológica do
corpo humano são construídas.
Assim, crenças e sentimentos centram-se no corpo, enquanto um con-
junto de representações que vão além da simples caracterização biológica dos
seres humanos é construída. Se esses princípios são a base para as religiões
afro-brasileiras em seu “país de origem” (Brasil), eles se tornam uma espécie
de “lei de Deus”, uma vez que são deslocados e os indivíduos que executam
os rituais são portugueses. A fenomenologia das religiões afro-brasileiras é
personificada pelo português e torna-se uma “bíblia”, que deve orientar não
só a vida nos terreiros, mas toda a vida cotidiana. O que se segue, portanto,
vem das conclusões a que cheguei depois de ouvir a interpretação que os
meus informantes fazem do que leem nos livros provenientes do Brasil ou o
que ouvem nos ensinamentos de seu pai ou mãe de santo.
Para os seguidores dessas religiões, o papel do corpo se relaciona direta-
mente com dois aspectos. Um deles é a importância da relação permanente
e constante que os vivos mantêm com o mundo dos mortos, que tiveram um
corpo físico, mas agora são apenas seres sem uma aparência concreta. O fato
de que a relação entre o mundo dos vivos e o dos mortos é crucial também
é visível na concepção da vida, que implica não só a relação da família com
os parentes vivos, mas também com os mortos, que se tornaram, na maio-
ria dos casos, os antepassados, espíritos ou deuses.
Essa relação nos leva ao segundo aspecto, que diz respeito à importância
do corpo e ao papel central que a incorporação por espíritos desempenha
nessas religiões. O fenômeno da possessão é da maior importância e a base
para o próprio sistema religioso; tais sistemas religiosos operam por meio
da gestão sistemática do corpo como o locus para a manifestação do sagrado
(BRUMANA e MARTINEZ, 1997, p. 11). O veículo de comunicação com
os deuses e os espíritos, conceitualizados como representações das forças da
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O corpo iniciado
Nas religiões afro-brasileiras, a possibilidade de uma pessoa ser médium
é muitas vezes expressa por meio de queixas físicas, sinais dados pelos
deuses de que essa pessoa deve trilhar o caminho da iniciação e aprender a
domesticar as suas capacidades mediúnicas. Subjacente está a ideia de que
o desequilíbrio deve ser corrigido, sob pena de a condição se agravar e poder
até levar à morte de um indivíduo. A percepção de que os deuses e as en-
tidades são cruéis, rígidos e não aceitam recusas, discutida amplamente na
literatura antropológica, aplica-se aqui com toda a segurança: se a pessoa é
escolhida, não pode virar as costas e não aceitar essa condição, sob pena de
morrer ou de alguém na sua família sofrer graves retaliações.
O despertar para a iniciação é frequentemente associado com problemas
de saúde, visível em distúrbios no organismo. Muitas vezes, é a recorrên-
cia de distúrbios de saúde que abre a possibilidade de que a pessoa possa ter
sido escolhida pelos deuses para ser o seu “cavalo”. Alguns exemplos retirados
de meu trabalho de campo em Portugal ilustram essa ideia. Uma mulher que
mais tarde se tornou a mãe de santo de um terreiro de Candomblé em Lisboa
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Perder o equilíbrio
A importância de manter um equilíbrio para se estar saudável implica
a pressuposição da importância de manter uma boa relação entre os dois
mundos, o dos vivos e o dos mortos, ou entre os humanos e o sobrena-
tural. Só se essa relação se mantiver positiva existirá um equilíbrio; caso
contrário, os problemas surgem. Desde o começo do processo de iniciação,
o corpo é pensado como o centro das inscrições que os orixás desejarem
fazer e como símbolo do pacto social e religioso que se instala entre o deus
e o indivíduo (BARROS e TEIXEIRA, 1989, p. 49). Diferentes ações
negativas têm consequências variadas, e é no corpo que se manifestam e se
tornam visíveis os distúrbios decorrentes dessas faltas.
Uma das possibilidades é a marca ou ação do orixá sobre alguém es-
colhido para ser iniciado, como vimos. O sinal de que a pessoa foi esco-
lhida pelos deuses para desenvolver a sua mediunidade manifesta-se por
meio de problemas físicos, que desaparecem quando a pessoa aceita a sua
condição e começa o processo de iniciação. Uma segunda possibilidade é
a doença ser uma ação ou marca em alguém que negligenciou as suas obri-
gações e deveres rituais para com os deuses ou antepassados. A violação de
regras e a transgressão de tabus (sexuais, alimentares) é, como tal, também
uma causa para o surgimento de queixas físicas. O que a pessoa faz afeta
não apenas a ela, mas a toda a família de santo, e só pode ser reparado por
meio de um estrito cumprimento dos rituais e ações prescritas. Já que tais
violações põem em risco a posição do indivíduo enquanto membro de uma
congregação, são vistas como extremamente perigosas e devem ser tratadas
pelo pai ou mãe de santo, que define as sanções e as purificações rituais que
devem ter lugar a fim de restaurar o equilíbrio individual e social.
Uma terceira causa de distúrbios advém de um contato excessivo com
os espíritos dos mortos, os eguns; tal situação ocorre no caso de uma morte
recente na família que não tenha sido tratada adequadamente, isto é, em
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A mesma lógica é seguida nos terreiros em que se opta por uma apro-
ximação mais coletiva, como uma mãe de santo que dirige sessões de cura
e em conjunto com os seus médiuns relata:
O trabalho no terreiro é complementado com as sessões de cura. Na maio-
ria das vezes as pessoas vêm com problemas familiares ou problemas de
amor que são somatizados e criam problemas de saúde. Estas situações
são identificadas nas sessões semanais e redirecionadas para as sessões
de cura. (Mãe V)
Eu fui lá no ano passado com o meu filho! Eu sonhava em fazer isso a partir
do momento em que comecei a frequentar este terreiro aqui em Portugal,
há três anos. Eu queria ir à fonte, à origem. Foi uma experiência maravilhosa!
(S, 55 anos, escriturária)
Referências
ALMEIDA, M. V. de. Um mar da cor da terra. Raça, cultura e política de
identidade. Oeiras: Celta, 2000.
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